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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS VERÔNICA DO COUTO ABREU A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE EMMANUEL MOUNIER PARA UMA REFLEXÃO ÉTICOCRISTÃ PERSONALISTA DA PESSOA NA CONTEMPORANEIDADE BELÉM 2008 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS VERÔNICA DO COUTO ABREU A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE EMMANUEL MOUNIER PARA UMA REFLEXÃO ÉTICOCRISTÃ PERSONALISTA DA PESSOA NA CONTEMPORANEIDADE Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará como requisito parcial a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais com área de concentração em Sociologia sob a orientação da Profª Dr Kátia Marly Leite Mendonça BELÉM 2008 3 A CONTRIBUIÇÃO DO PENSAMENTO DE EMMANUEL MOUNIER PARA UMA REFLEXÃO ÉTICOCRISTÃ PERSONALISTA DA PESSOA NA CONTEMPORANEIDADE por VERÔNICA DO COUTO ABREU Tese submetida à avaliação como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais BANCA EXAMINADORA Orientadora Profª PósDr Kátia Marly Leite Mendonça PPGCSUniversidade Federal do Pará UFPA Examinador Prof PósDr Samuel Maria de Amorim e Sá PPGCS Universidade Federal do Pará UFPA ExaminadoraProfª Dr Eleanor Gomes Palhano PPGCS Universidade Federal do Pará ExaminadorProf Dr Josep Pont Vidal NAEAUniversidade Federal do Pará UFPA ExaminadoraProfª Dr Ilda Lopes Rodrigues da Silva Pontifícia Universidade Católica PUC RJ Profª Dr Maria José da Silva Aquino Examinadora Suplente PPGCS Universidade Federal do Pará UFPA Profª Dr Maria Vitoria Souza Paracampo Examinadora Suplente ICSA Universidade Federal do Pará UFPA Aprovado Belém de 2008 4 Dados Internacionais de CatalogaçãonaPublicação CIP Biblioteca de PósGraduação do IFCHUFPA BelémPA Abreu Verônica do Couto A contribuição do pensamento de Emmanuel Mounier para uma reflexão éticocristãpersonalista da pessoa na contemporaneidade Verônica do Couto Abreu orientadora Kátia Marly Leite Mendonça 2008 Tese Doutorado Universidade Federal do Pará Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de PósGraduação em Ciências Sociais Belém 2007 1 Antropologia filosófica 2 Existencialismo 3 Personalismo 4 Mounier Emmanuel 19051950 I Título CDD 22 ed 128 5 Quando meus pensamentos se elevavam a pensar sobre esta dedicatória minha alma chorava de tristeza e no mesmo instante e com semelhante ardor minha alma era só alegria Vou falar da alegria de ser presenteada por Deus pelos pais que tive porque me sinto absolutamente uma pessoa feliz e de sorte por ter caído em mãos tão generosas de Mário Alderina e Cota minha tiamãe Eles me repassaram com grande espírito de adesão o que é ser uma pessoa com valores o que é ser generoso o que é ter amor no coração o que é ter amor a Deus e como conseqüência amor ao próximo Aprendi o grande trunfo do perdão da humildade da persistência Eles não só repassaram não mas deram testemunhos em suas palavras e ações Sempre tive a certeza de que a vida adulta de uma pessoa é reflexo direto do que ela vivencia em seus espaços íntimos e privados que é a família Se vivenciar encontros diálogos amor reciprocidade adesão engajamento espiritual com a mesmo intensidade há de viver atos de entrega e amor ao outro E minha família foi fonte viva de uma vivência rica de acolhimento carinho onde aprendi verdadeiramente o que é ser PESSOA Dedico então este trabalho A minha mãe ALDERINA Mulher culta inteligente delicada persistente e com uma humildade sem ser simplória tinha uma dócil autoridade sempre vindo com seu jeito lento e seu sorriso envergonhado me dar grande felicidade e fortaleza Tinha valores tão exigentes e austeros que às vezes até aborrecia Era intransigente com meus estudos dava primazia ao conhecimento aliado à humildade de ser Tinha orgulho dos seus e ficaria muito orgulhosa por essa grande vitória na minha vida Voltou para Deus sem que vivenciasse corporalmente este grande momento de felicidade Mas também ela sempre dizia num 6 tom profético quando defenderes tua tese já estarei lá com Deus E ela está com Deus OBRIGADA MAMÃE Dedico este trabalho o meu pai MÁRIO o maior pai do mundo Soube com sua extrema humildade vivenciar encontros de afeto tão profundos que me deixava surpresa diante de tão grande entrega ao outro Sua generosidade era admirável compartilhava as dores dos outros era sensível um homem de fé cujas mãos por vezes milagrosas acalmavam minhas dores de cabeça de estômago minhas dores da alma Era um homem tão carinhoso que seu toque parecia o remédio para tudo Por vezes perguntava o que é mesmo que tu estás estudando Sem entender muito os estudos doutorais ficava orgulhoso por mim e propagava a todos Voltou para Deus antes de me ver com o título de Doutor OBRIGADA PAPAI Dedico este trabalho a minha tiamãe COTA Uma tia extremamente dedicada amorosa generosa mulher de oração e fé participou ativamente de minha educação me transmitindo um amor tão profundo e valores tão dignos que até hoje guardo carinhosamente comigo Já está há bastante tempo com Deus se aqui estivesse ficarei orgulhosa de minha conquista OBRIGADA COTA A vocês minha mais profunda gratidão eternamente AMO VOCÊS INFINITAMENTE 7 AGRADECIMENTOS Ainda que este trabalho tenha sido escrito por duas mãos indiscutivelmente muitas mãos foram responsáveis direta ou indiretamente para sua conclusão tanto no que diz respeito à esfera intelectual como também e sobretudo à dimensão afetiva amorosa traduzidas quer seja pelas discussões intelectuais quer seja pelo apoio próximo ou distante pelo silêncio por contribuições passadas ou presentes pelas orações dirigidas a mim ou simplesmente porque algumas pessoas torciam por mim Muitas foram verdadeiramente as pessoas que contribuíram antes e durante à realização de minha tese que agora passo a evidenciar com uma profunda gratidão A DEUS sempre o alicerce na construção de minha vida com o qual este trabalho fezme aproximar Dele compreendi que quanto mais lia e estudava sobre a pessoa mas tinha a certeza de minha aproximação pessoal e espiritual com Ele Com a mesma veemência agradeço a Nossa Senhora de Fátima Nossa Senhora de Nazaré Nossa Senhora do Desterro todas Maria a Mãe de Deus Sempre rezei pedindo capacidade intelectual para realizar este trabalho e por conseguinte colocava nas mãos do Sagrado Coração de Deus todas as preces A minha amada filha NATÁLIA razão de todas as minhas conquistas Com lições herdadas de meus pais e de atos de amor carinho compreensão e ética digo com orgulho que estou participando do despertar de pessoa da Natália Te amo infinito A minha FAMÍLIA canalizadora das expressões e emoções especialmente minha irmã MÔNICA Ela esteve em todos os momentos vivenciando minhas angústias existenciais e intelectuais na elaboração da tese A minha sempre e eterna mestra TEREZINHA DE LISIEUX Ela me incentivou a avançar em estudos mais profundos me apoiou acreditou em mim vivenciou e continua compartilhando de todos os momentos de minha vida Obrigada amada mestra A minha amigairmã VERA PARACAMPO que também esteve presente em todos os momentos dessa árdua caminhada Sempre disponível me incentivava apoiava cobrava com uma doce austeridade o término de minha tese devido à exigüidade de tempo Obrigada A minha orientadora KÁTIA MENDONÇA A ela devo meu crescimento intelectual e principalmente a minha gratidão dirigese ao meu despertar de pessoa na fé Se antes herdei de meus pais a vivência da fé com Kátia testemunhei concretamente o que é ter fé o que é acreditar verdadeiramente no nexo existencial da pessoa com o mundo com a 8 natureza e com Deus Não agradeço somente a orientação da tese ocorrida sem pressão sem torturas sem cobranças descabidas e aqui mostro que uma pessoa é capaz de realizar um trabalho acadêmico com responsabilidade e liberdade de expressão e sobretudo agradeço minha inserção e adesão definitiva na fé A todos os meus colegas de doutorado em especial ÍRIS RIBEIRO Embora vindo de longe São Luiz foi a mais próxima Com ela aprendi a organizar meus estudos Sua disciplina e doçura me marcaram para sempre A minha aluna SÍLVIA MARIA NUNES pelas contribuições acerca de pesquisas sobre Mounier Aos professores do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais em especial Daniel Brito Wilson Barp Maria José Aquino Eleanor Palhano Violeta Loureiro Alex Fiúza de Melo Heraldo Maués Pedro Paulo Coroa À Secretaria do PPGCS em especial PAULO sempre disponível ao encontro dialogal e com competência para resolver e informar sobre todas às questões relativas ao Programa Aos professores que gentilmente participaram da minha banca de defesa Prof Samuel Sá Profª Eleanor Palhano Prof Josep Vidal e em especial Profª Ilda Lopes À Universidade Federal do Pará e ao Departamento de Políticas e Trabalhos Sociais Curso de Serviço Social que ao me conceder licença para cursar o doutorado me proporcionou condições temporais e financeiras para a minha formação continuada 9 RESUMO A presente tese explicita a proposta da filosofia social política cristã e ética de Emmanuel Mounier a partir de sua antropologia filosófica cujo fundamento é a pessoa concebida não somente em sua pessoalidade vocação essencial de sua existência mas sobretudo na sua dimensão comunitária social política e transcendental e na compreensão da pessoa como um sercomooutro chegandose à idéia de comunidade como a estrutura social que melhor permite ao homem realizar sua natureza relacional Com esses pressupostos discuto suas principais idéias articulando com autores que influenciaram e fundamentaram sua filosófica como Paul Louis Landsberg Gabriel Marcel Max Scheler Paul Ricoeur indo também ao encontro de Buber no que se refere alguns conceitos discutidos por ele e que guardam grandes aproximações com o pensamento de Mounier Os elementos essenciais da idéia de Mounier são a existência incorporada e encarnada no mundo a comunicação a vocação e a liberdade Logo o modelo político que melhor poderia favorecer esse tipo de comunidade é a sua proposta de um projeto personalista cuja estrutura social política e econômica tivesse como primazia a pessoa acima das instituições ou processo político e econômico a qual está sedimentada no ser comunitário O caminho para se chegar a esse modelo seria uma revolução permanente sobretudo uma revolução espiritual fruto de uma descentralização social e econômica que reestruturaria toda a sociedade Palavraschave Personalismo Mounier Pessoa Comunidade Dimensão sóciopolítica 10 ABSTRACT The present work explains the proposal of Mouniers social political christian and ethical philosophy leaded by his philosophical anthropology which mainstay is the Person conceived not only in its personality essential vocation of existence but overall in its comunitary dimension socialpolitical transcedental and in the comprehension of the Person like a human being within another surrounding the idea of comunity as the social structure which best allows for Human Beings perform their relational natures Within that proposal I intend to discuss Mouniers main ideas articulated with authors whose influenced directly Mouniers philosophy like Paul Louis Landsberg Gabriel Marcel Max Scheler and Paul Ricouer going towards Bubers ideas which some concepts of his thought have a big approximation with Mouniers main ideas The essential elements of Mouniers ideas are the incorporated and incarnated existence in the world itself comunication vocation and freedom Thus the political model which would better support this kind of communinity is the proposal of a project based in a personalism which social political and economic structures are founded in the primacy of the person above institutions political or economic processes and which person is based in a comunitary being The path to attain this model would be a permanet revolution overall a spiritual revolution product of a social and economic decentralization wich would restructure society utterly Keywords Personalism Mounier Person Comunity Dimension socialpolitical 11 SUMÁRIO RESUMO 08 ABSTRACT 09 INTRODUÇÃO 12 CAPITULO I FUNDAMENTOS DO PERSONALISMO 22 11 O PERSONALISMO NO SENSO COMUM O Individualismo 22 12 O PERSONALISMO NO SENSO COMUM O Coletivismo 28 13 DO INDIVÍDUO À PESSOA 33 14 O TERMO PERSONALISMO NO SENTIDO RELIGIOSO PSICOLÓGICO E POLÍTICO 37 15 O PERSONALISMO COMO VISÃO PROPRIAMENTE FILOSÓFICA 43 16 O PERSONALISMO De suas origens à atualidade 51 17 A PESSOA NO PERSONALISMO 58 18 O PERSONALISMO TRADUZIDO NO MOVIMENTO E NA REVISTA ESPRIT 66 19 A PESSOA DE MOUNIER testemunho de uma práxis sócioespiritual 71 CAPITULO IIO SENTIDO DA PESSOA EXISTENCIAL PERSONALISTA 79 21 SER PESSOA EM VÁRIAS VISÕES FILOSÓFICAS 79 22 DIÁLOGO DE MOUNIER COM O MOVIMENTO EXISTENCIALISTA 107 CAPITULO III A PESSOA COMO DIMENSÃO COMUNITÁRIA 114 31 INDIVÍDUO E MASSA COMUNIDADE E PESSOA 114 32 DA PESSOA À COMUNIDADE 126 33 O COMPROMISSO COMO AÇÃO PESSOAL PARA O DESPONTAR COMUNITÁRIO O ENGAJAMENTO HISTÓRICO 129 CAPITULO IV A PESSOA NA DIMENSÃO TRANSCENDENTAL 137 41 A ENCARNAÇÃO 138 42 A COMUNICAÇÃO 143 12 43 A LIBERDADE 153 44 A CRISE ESPIRITUAL NO MUNDO MODERNO 158 CAPITULO V A DIMENSÃO POLÍTICOSOCIAL DA PESSOA 167 51 A DESORDEM ESTABELECIDA 169 52 AS ESTRUTURAS DE UM PROJETO PERSONALISTA 176 521 A educação personalista 176 522 Por uma economia para a pessoa 185 523 Por uma democracia personalista 189 REFLEXÕES FINAIS 191 REFERÊNCIAS 196 13 INTRODUÇAO Num mundo contemporâneo marcadamente individualista onde pessoas e instituições são regidas por forças ocultas e visíveis da razão instrumental a qual se tornam distanciadas uma das outras sem solidariedade onde os laços afetivos são frágeis e efêmeros e predomina a lógica do lucro e do consumo ainda há espaço para se ter esperança principalmente apoiado em vivências concretas de lutas rupturas e adesões de pessoas que sob a égide do humanismo cristão influenciaram e ainda hoje seduzem pela sua maneira de pensar Destaco nesse cenário o grande filósofo francês Emmanuel Mounier cujas lutas se expressaram por confrontos dialógicos na França de 1930 marcada pelo Fascismo e Nazismo Ele com um grupo de intelectuais fundou em 1932 a Revista Esprit em Paris cujo objetivo era o de realizar investigações e escrever sobre os problemas da época enquanto que concomitantemente existia um movimento chamado Terceira Força que visava propor estratégias para os assuntos políticos e sociais Ambas as formas de dialogar com o mundo revista e movimento tinham como pressuposto a ética e liberdade responsável da pessoa humana sob a qual os participantes se confrontavam no que Mounier denominou de desordem estabelecida Na primeira edição da revista em 1932 a manchete A revolução será moral ou não provocou duas distintas reações De um lado os jovens humanistas sedentos por ações concretas de transformação da sociedade e do outro cristãos conservadores que não aceitavam essa forma de protestar De uma maneira ou de outra o pensamento personalista de Mounier começava a configurarse como um movimento em favor da pessoa humana de suas relações com o mundo do reconhecimento do outro como pessoa no sentido de uma libertação responsável e por conseguinte ética O projeto políticocomunitário de Mounier foi marcadamente um projeto engendrado por sua existência pessoal De família pobre e católica ainda muito jovem conhecera o mundo fragmentado e excludente da esfera social comunitária ao visitar e conviver nos bairros pobres de Grenoble sua cidade natal e ao mesmo tempo conviver com as limitações da visão e audição frutos de um acidente no início da juventude Como comenta Severino 1983 p10 citando os relatos de Mounier Foi quando recebi o batismo de fogo da miséria humana Indiscutivelmente esses contatos o impulsionaram a questionar o mundo e as amarras da razão instrumental que aprisiona o homem e o faz anônimo Ao confrontarse 14 com as ambigüidades inerentes à condição humana na esfera sóciopolítica trilhou o caminho de uma revolução pessoal e espiritual qual seja a criação com outros duma sociedade de pessoas cujas estruturas costumes sentimentos e até instituições estejam marcadas pela sua natureza de pessoas MOUNIER 1964 p93 Mas essa revolução espiritual que preconizava não tinha um caráter introspectivo abstrato e individualista ela iniciava na pessoa e se estendia às esferas concretas de sua existência Em todos os seus escritos insiste na supremacia da pessoa humana perante o mundo visando tecer uma ética históricosocial do personalismo onde o homem atue sobre situações concretas e históricas pelo seu engajamento responsável Mounier expressa com clareza à ruptura de um pensamento objetivista sobre o homem ao colocar A existência da pessoa não pode tecerse apenas ao nível de um agir puramente técnico A pessoa é chamada a agir eticamente a construir seu próprio ser a se fazer Sua essência não é um dado completo e adquirido de uma vez por todas mas uma tarefa a ser realizada mediante sua ação responsável MOUNIER 1964 p97 Assim apoiada no pensamento de Mounier e em seu projeto personalista que pretendo trilhar um caminho de investigação para desvelar os fundamentos do personalismo suas influências e contribuições no campo das ciências sociais e como esse pensamento se articula nas discussões sobre a pessoa na contemporaneidade Desse modo a pesquisa foi feita a partir de uma atitude investigativa buscada nas obras de Mounier nos artigos da Revista Esprit na literatura de autores da Filosofia da Existência que fundamentaram o personalismo ou que mantêm um diálogo com o Personalismo e em pesquisas realizadas pela rede mundial de computadores internet Considerações em torno da escolha do tema Desde a graduação em 1987 sempre fui seduzida por estudos éticocristãos pelo fato principalmente de minha formação como assistente social se dirigir para ações na esfera social marcadamente carente onde presenciava a miséria humana com toda a sua dureza os rostos envelhecidos de homens e mulheres clamando por ajuda gestos humildes pedindo socorro diante das limitações das condições socioeconômicas totalmente desfavoráveis ou nulas para o livre exercício da liberdade 15 Essas pessoas sempre fizeram parte de minha trajetória profissional com as quais interagia com respeito sensibilidade de compreender o clamor do outro ética como atitude de dialogia e empatia compromisso de um agir essencialmente sóciotransformador de lançar um olhar a pessoa como ser humano em suas limitações mas também em suas potencialidades A inicialização em estudos fenomenológicos e personalistas na Graduação alargou meus horizontes permitindo outra visão não a marxista Até porque o serviço social enquanto disciplina inserida na divisão sóciotécnica do trabalho segundo Netto 1990 p 38 tinha e ainda tem preferencialmente uma ênfase marxista Mas a escolha de um caminho desconhecido na época e ao mesmo tempo a fascinação pelo tema me conduziu à aproximação de uma perspectiva metodológica dialógica interacional de trocas de saberes com o outro no sentido de despertálo para um nível de consciência critica e histórica capaz de ser agente de sua transformação e não meramente um expectador alienado e paralisado diante de um mundo dominado pelo capitalismo e por forças que impedem a pessoa de lutar Concordo com Mounier 1964 p42 quando ele diz que a nossa vida é regida por questões matérias a tal ponto que o meu feitio e a minha maneira de pensar são amoldados pelo clima a geografia a minha situação à face do globo a minha hereditariedade e talvez até pela ação maciça dos raios cósmicos Mas também penso que existem outras questões que fogem ao conteúdo da materialidade e diante de tantas mazelas de múltiplas facetas da vida é preciso contemplar essas questões sem nada fazer É preciso dizer aos usuários que o mundo é assim mesmo sempre teve exploração o sistema capitalista é cristalizado e endurecido de tal modo que sempre irá impedir nossa liberdade de conquistar uma vida melhor Ou ao contrário é preciso nos organizar para realizar a tal revolução armada para fazer valer nossos direitos Ou ainda lançar com a minha intervenção as trevas da desesperança Não eu acreditava que existia outra forma de pensar e foi justamente no pensamento personalista que encontrei a ressonância e o eco para as minhas inquietações O Serviço Social num caminhar Fenomenológico permitiu então empreender estudos e fazer uma opção em intervenções nas microrelações sociais sem negligenciar questões macros sem desconsiderar discussões sobre a totalidade e a amplitude das determinações sócioeconômicas ideológicas e políticas e compreender a pessoa não como sujeito anônimo somente considerado como mão de obra produtiva como um alienado ou explorado Exigiu sobretudo em compreendêlo em todas as suas dimensões da vida cotidiana pois antes dele ser um usuário dos serviços sociais ele é uma pessoa e como tal deve ser compreendida em toda a sua integridade e totalidade 16 Já no Mestrado realizado na PUC RJ continuei meus estudos mais uma vez ao nível da intervenção na pesquisa participativa e qualitativa com famílias de rua cujas relações parentais se processavam no espaço da rua Para compreender essas relações minhas reflexões mais uma vez fizeram com que eu buscasse na Fenomenologia o ponto de convergência das vivências subjetivas em meu contato com os moradores de rua Portanto a inspiração fenomenológica foi a grande propulsora de minhas indagações no campo de intervenção social aliado a análise de Jean Lacroix sobre a compreensão de família em suas forças e fraquezas Agora no Doutorado meus estudos se dirigem para um pensar filosófico a partir dos fundamentos que subsidiam o pensamento personalista de Mounier seu principal representante no sentido de conhecêlos e desvelar as articulações teóricas presentes nesses fundamentos Assim para o presente estudo tornouse importante refletir o sentido de ser pessoa a partir de variadas visões filosóficas e como conceito sofre alterações significativas passando pela lógica individualista até chegar ao termo utilizado por Mounier Ao mesmo tempo neste estudo investigo as várias noções de uma filosofia da pessoa que contemple o homem em seu sentido e valor ético Todos esses estudos sobre os fundamentos do personalismo permitem a manutenção de um diálogo com autores que de uma forma ou de outra influenciaram fundamentaram o pensamento personalista entre os quais Max Scheler Gabriel Marcel Paul Ricoeur Paul Louis Landsberg e por outro lado articulo com alguns conceitos e questões discutidas por Mounier um autor que embora sendo de matriz religiosa diferente das de Mounier apresenta uma raiz fundamental que é o voltarse para a pessoa na sua materialidade e transcendentalidade entre os quais Martin Buber Além disso pretendo estabelecer um diálogo entre o existencialismo e o personalismo traçando aproximadamente o mesmo caminho trilhando por Mounier na sua obra Introdução aos Existencialismos 1963 onde ele apresenta uma classificação dos filósofos existencialistas recorrendo à metáfora de uma árvore O existencialismo apresentava as mesmas interrogações perante o mundo os homens a existência O Existencialismo é um modo de pensar que considera a existência como fundamento primeiro para a sua reflexão Daí Mounier afirmar que não há uma filosofia que não seja existencialista e considerála como uma corrente do pensamento moderno posto que a conceitue como uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das idéias e da filosofia das coisas MOUNIER 1963 p 11 17 Todos os existencialistas ao interrogaremse sobre o sentido da existência humana chegaram a conclusão que ela não pode ser conhecida nela mesma como um dado objetivo e neutro da cientificidade mas como um caráter essencial da existência que é a subjetividade Em minhas constatações diante das leituras empreendidas para uma compreensão mais profunda do personalismo e da pessoa concordo com Ricoeur 1965 quando afirma que pessoa e existência se referem a duas ordens de preocupação que não se correspondem de modo exato A primeira preocupação é da ordem éticopolítica uma intenção pedagógica vinculada a que ele chama de crise da civilização a qual permanentemente Mounier vai dizer sobre os problemas da humanidade e a segunda é relativa a uma reflexão critica e ontológica em tensão com uma tradição filosófica clássica No mesmo texto Ricoeur confirma a supremacia de Mounier em termos das discussões sobre a pessoa humana tendo como princípio fundamental no que Mounier diz 1967 a pessoa como encarnação no sentido que é um todo matéria e espírito é comunhão integrante de sua própria existência a pessoa só se realiza doandose à comunidade através do Outro e é liberdade de descobrir por si mesmo a sua vocação e de adotar livremente os meios de realizála desenvolvendo a idéia de comunidade e ação responsável Do ponto de vista teórico nesta tese pretendo despertar para a importância e a atualidade do pensamento de Mounier além disso complementar os estudos sobre essa temática ao estabelecer o diálogo entre o pensamento de Mounier os fundamentos desse pensar e a filosofia da pessoa percorrendo o universo da pessoa por mim traçado a pessoa no sentido comunitário no sentido transcendental e no sentido socialpolítico Caminho metodológico da pesquisa Todas essas reflexões em torno do Personalismo exigiram a leitura das obras de Mounier alguns artigos publicados na Esprit se bem que muitos artigos são contidos nas obras de Mounier e viceversa Ou seja ao realizar a leituras das obras de Mounier e de suas publicações na Esprit percebese uma transposição de escritos Além disso minhas leituras se direcionam as obras as principais de autores que influenciaram o pensamento de Mounier Minha expectativa quanto ao estudo foi o de buscar a compreensão dessas visões dialógicas do pensamento de Mounier atrelado a um modo de pensar e agir que possa contribuir para uma atitude ética no estabelecimento de relações com o outro com Deus com o mundo com a natureza e conosco mesmo Pois acredito que essa compreensão de homem e 18 de mundo pode romper com paradigmas préestabelecidos lançar olhares diversos de compartilhamento com o outro reavaliar valores introduzir outros e levar para um caminho de paz Diante de um vasto material retirado das obras de Mounier das leituras dos autores que considerei mais importantes para realizar um diálogo das pesquisas bibliográficas sobre os autores existencialistas evidenciei algumas indagações que em levaram a fazer um recorte de pesquisa surgindo às seguintes questões norteadoras Por ser um termo que pode traduzir individualismo o personalismo pode ser confundido por outras visões que não condizem com sua verdadeira filosofia a pessoa com um ser comunitário e não individual Existem outras áreas de conhecimento que utilizam corretamente a perspectiva personalista de Mounier em seus estudos e investigações Como desmistificar o termo o colocando em seu sentido e significado como considerado por Mounier O Personalismo foi de tal forma revelador para o estudo da pessoa a ponto de ser considerado como um movimento de enfretamento político ético cristão O Personalismo é considerado como uma matriz filosófica e um movimento político que teve como instrumento de divulgação de suas idéias a Revista Esprit Qual a importância da revista para o Personalismo Quais os seus idealizadores além de Mounier Na medida em que o personalismo tem uma raiz comum no existencialismo cristão quais os pressupostos desta filosofia que influenciaram o Personalismo É correto traçar um perfil de uma filosofia da pessoa baseado em várias visões resgatando seu sentido Assim diante dessas reflexões o processo de investigação teve como objetivos Refletir sobre as visões existentes sobre o personalismo visando desmistificar o termo colocandoo em seu sentido filosófico trabalhado por Mounier Analisar o personalismo como movimento que foi revelador para o estudo da pessoa no seu enfrentamento político ético cristão e desvelar a importância da Revista Esprit e os seus principais idealizadores Discutir qual o sentido da pessoa na modernidade a partir de autores personalistas existencialistas Identificar a importância do existencialismo no pensamento personalista e quais os pressupostos desta filosofia que influenciaram o Personalismo 19 Estabelecer um diálogo entre Mounier e autores da filosófica da existência como Paul Louis Landsberg Max Scheler Gabriel Marcel Paul Ricoeur e Martin Buber na medida em que eles tiveram como raiz fundamental a primazia da pessoa como ser transcendental e comunitário Para alcançar os objetivos propostas da pesquisa utilizei como estratégia metodológica a consulta a leitura e a pesquisa bibliográfica 1 Livros de Mounier em português e espanhol 2 Artigos da Revista Esprit de 1932 a 1950 principalmente publicações retiradas das obras de Mounier 3 Obras de Paul Ricoeur acerca do Personalismo e outras que evidenciem uma filosofia da pessoa 4 Obras de Martin Buber que contém aspectos coincidentes sobre as temáticas refletidas por Mounier como comunidade e relação dialogal O tipo de pesquisa utilizada foi a bibliográfica Segundo Gil 2002 a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado constituído principalmente de livros e artigos científicos Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho dessa natureza há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas GIL 2002 p 44 Mesmo concordando com Gil 2002 de que os livros constituem as fontes bibliográficas por excelência neste estudo utilizei uma importante fonte de pesquisa que foi a Internet a fim de pesquisar os trabalhos e referências não só a Mounier mas autores que de alguma forma influenciaram ou foram influenciados por seu pensamento No entanto vale ressaltar que em Internet nem sempre as fontes e escritas são confiáveis tornando as informações vulneráveis e interpretadas de forma equivocada Assim diante dessas limitações meu cuidado foi redobrado por isso sempre que possível consultei às fontes bibliográficas originais Essas barreiras metodológicas recaem naquilo que Gil 2002 coloca sobre uma contrapartida que pode comprometer em muito a qualidade da pesquisa pois se as fontes secundárias forem reproduzidas de forma errônea todo o trabalho fundamentado nessas fontes tende a reproduzir ou ampliar esses erros Desse modo ele sugere então convém aos pesquisadores asseguraremse das condições em que os dados foram obtidos analisar em 20 profundidade cada informação para descobrir possíveis incoerências ou contradições e utilizar fontes diversas cotejandoas cuidadosamente GIL 2002 p 45 As fontes bibliográficas foram consultadas tendo por objetivo tanto a referência informativa quanto remissiva sobre as quais fala Gil 2002 p28 podese falar em dois tipos de referência livros de referencia informativa que contém a informação que se busca e livros de referencia remissiva que remetem a outras fontes1 A pesquisa do tipo bibliográfica foi desenvolvida em etapas tendo por base a classificação de Gil 2002 a partir de um processo que envolve escolha do tema levantamento bibliográfico preliminar formulação do problema elaboração do plano provisório do assunto busca das fontes leitura do material fichamento organização lógica do assunto e redação do texto Logo neste estudo as referidas etapas podem ser assim materializadas a escolha do tema a escolha do tema como informado foi motivado por interesse de estudos avançados em campo já conhecido mas que precisava ser aprofundado b levantamento bibliográfico preliminar vários estudos exploratórios foram realizados para definição do tema como a pesquisa na internet algumas obras de Mounier Paul Ricoeur Buber assim como trabalhos de natureza teórica que abordavam o assunto c formulação do problema a partir das leituras preliminares defini o problema a ser pesquisado Isso permitiu a identificação das abordagens teóricas relevantes para o estudo e por conseguinte a elaboração das questões norteadoras d elaboração do plano provisório do assunto esse plano conforme Gil 2002 consiste na organização sistemática das diversas partes que compõem o objeto de estudo E provisoriamente elaboramos o sumário da tese Na medida em que era discutido com a orientadora e nos avanços das leituras este foi sistematicamente alterado até chegar a níveis mais ou menos definidos e identificação das fontes nessa etapa mais uma vez utilizei as fontes bibliográficas anteriormente coletadas assim como recorri aos cortes necessários para melhor clarificar a pesquisa sendo importante nesta fase a consulta a diversos materiais tais como teses e dissertações periódicos anais de encontros resumos e pesquisa na internet em site de busca 1 Segundo Gil 2002 os principais livros de referência informativa são dicionários enciclopédias anuários e almanaques Os livros de referência remissiva podem ser globalmente designados como catálogos Outra referência são as publicações periódicas com a colaboração de vários autores tratando de assuntos diversos embora relacionados a um objetivo mais ou menos definido As revistas e os jornais são as principais publicações periódicas e constituem nos tempos atuais uma das mais importantes fontes bibliográficas E nesse sentido tomei como referência as publicações da Revista Esprit por considerar o mais importante meio de divulgação das idéias personalistas 21 f leitura de material Após a identificação e localização das fontes bibliográficas procedemos à leitura do vasto material originado da pesquisa Com o avanço das leituras resultou a seleção de materiais os quais favoreceram a definição do estudo g Elaboração do texto da Tese Disposição dos capítulos No primeiro capítulo minha intenção foi a de desmistificar o termo Personalismo Para isso discuto a noção de individualismo e coletivismo além disso busco investigar o termo em outros sentidos que não condizem com a postura personalista Nessa direção elaboro reflexões acerca do sentido religioso psicológico e político do personalismo trabalhadas por essas posturas que são absolutamente contraditórias e diferenciadas do termo filosófico de Mounier Por outro lado explicito outras visões de autores que trabalham com a perspectiva personalista a fim de mostrar que Mounier é fonte inspiradora de um pensar que visa a transformação da pessoa apoiada em sua vivência concreta É assim que busco o termo personalista colocandoo sob a égide de um pensamento filosófico e movimento iniciado por Mounier e ao mesmo tempo apresentar o caminho personalista como movimento e revolução espiritual da pessoa No segundo capítulo discuto o conceito de pessoa em várias visões filosóficas desde a antiguidade fazendo um paralelo com o conceito de indivíduo até chegar às discussões da pessoa em autores com os quais Mounier fundamenta seu pensamento ou que mantém aspectos convergentes entre eles Max Scheler Paul Louis Landsberg Gabriel Marcel Martin Buber e Paul Ricoeur Por outro lado discuto também as reflexões do personalismo com o existencialismo articulando suas visões mas deixo claro que embora Mounier possa ser incluído entre os autores do existencialismo ele guarda alguns aspectos que o distanciam dessa postura filosófica principalmente no que se refere à postura existencialista nãocristão Considerando que a pessoa é uma totalidade de expressões e manifestações na vida cotidiana a partir do terceiro capítulo proponho uma reflexão da pessoa no sentido comunitário proposta principal de Mounier quando define a pessoa totalmente diferente de indivíduo e a coloca nas largas expectativas de ser comunitário porque está sempre em relação com o outro em comunidade ação e engajamento Como a pessoa não é só materialidade mas igualmente transcendentalidade no quarto capítulo abordo as temáticas discutidas por Mounier quando ele coloca a pessoa na 22 dimensão que é encarnação ou seja é corpo exatamente como é alma na dimensão da comunicação que encontra ressonância no encontro com o outro e na dimensão da liberdade situada e engajada no mundo e na história Finalizo esse capítulo refletindo sobre a crise espiritual no mundo moderno Como Mounier não ficava apenas em discussões abstratas e utópicas mas seu pensamento era ação e engajamento no quinto e último capítulo discuto sobre a pessoa no sentido socialpolítico e os significados da revolução personalista e comunitária proposta por Mounier materializadas no projeto de sociedade por ele engendrado que é o projeto personalista Por fim apresento as reflexões finais onde enfatizo a importância e a atualidade do pensamento de Mounier principalmente quanto às suas reflexões em torno da pessoalidade atrelada a uma revolução espiritual pessoal e moral A expectativa quanto ao estudo foi a de buscar a compreensão dessas visões dialógicas do pensamento de Mounier conectado a um modo de pensar e agir que possa contribuir para uma atitude ética no estabelecimento de relações sociais com o outro com Deus com a natureza e conosco mesmo pois acredito que essa compreensão de homem e mundo pode concorrer para que a pessoa possa viver livremente consigo mesmo e com o próximo tendo diálogo de verdade e intimidade com Deus conviva pacificamente nos processos sociais que o leve ao caminho de uma revolução moral e espiritual Na perspectiva teórica e prática pretendo contribuir com discussões no campo da pesquisa na área Violência e Não Violência nos Processos Sociais no campo da Sociologia e do Serviço Social 23 CAPITULO I FUNDAMENTOS DO PERSONALISMO 11 O PERSONALISMO NO SENSO COMUM INDIVIDUALISMO Antes de excursionar na história do Personalismo é interessante explicitar o termo concebido do ponto de vista do senso comum o qual denomino de cunho religioso político psicológico e colocálo também em contraposição ao individualismo aliás comumente associado ao Personalismo e igualmente confrontálo frente ao coletivismo E sobretudo porque o termo é fonte de interpretações equivocadas do ponto de vista filosófico a partir de Emmanuel Mounier filosofo francês por quem este movimento filosófico foi intensamente vivido na França e na Europa no entre guerras e ainda hoje influencia e fundamenta o pensamento de diversos autores chamados personalistas Se bem que a palavra em si desliza em terreno duvidoso se não coerentemente compreendida no tocante à ênfase pela qual o trabalho pretende caminhar motivo pelo qual compreendo ser importante apontar o termo personalismo a partir do senso comum ou seja distanciado de seu caráter filosófico ou especificamente como é tratado por Mounier principal representante deste movimento sob a qual a pessoa humana tem valor permanente inconfundível imprevisível e transcendental Em termos gerais o individualismo é um conceito que traduz a primazia do indivíduo sob sociedade e o Estado sendo sua tônica a idéia de Liberdade propriedade privada e limitação do poder do Estado Conforme indica Dumont 1993 o conceito de indivíduo designa duas visões o primeiro se refere a um objeto fora de nós como um sujeito empírico que pensa age tem vontades e o outro como um valor um ser moral independente autônomo o que representa a ideologia do homem moderno Dumont 1993 esclarece que quando o indivíduo se reveste de valor supremo aí sim se trata de individualismo onde o individuo não é subjugado a ninguém e a nada as suas próprias regras regem suas atitudes e comportamentos o que caracteriza a sociedade ocidental Em sua obra O individualismo uma perspectiva antropológica da sociedade moderna Dumont 1993 reflete que com o surgimento do Estado extinguese a união harmônica entre Deus e o todo universal e o indivíduo passa a ser integrante de uma comunidade que forma o Estado Nesse sentido ele comenta 24 Para os modernos sob a influência do individualismo cristão e estóico aquilo a que se chama direito natural por oposição ao direito positivo não trata de seres sociais mas de indivíduos ou seja de homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem de Deus e enquanto depositários da razão Daí resulta que na concepção dos juristas em primeiro lugar os princípios fundamentais da constituição do Estado e da sociedade devem ser extraídos ou deduzidos das propriedades e qualidades inerentes no homem considerando como um ser autônomo independentemente do todo e qualquer vínculo social ou político DUMONT 1993 p 91 O individualismo por seu caráter concentrador manipulador e por isso mesmo arrebatador de inúmeras visões de mundo tidas como verdadeira tornouse um dos temas fundamentais de discussões e críticas por parte daqueles que rechaçam essa doutrina Ainda que esteja presente com mais intensidade na época contemporânea fruto da lógica capitalista da globalização do poder manipulador dos interesses pessoais da competição de mercado dos pequenos guetos que se formam em comunidades fechadas quer por insegurança ou por interesses egoístas o individualismo sempre esteve presente na história da humanidade e foi fonte de debates entre as ciências sociais Dumont 1993 teceu toda uma análise sobre o individualismo buscando sua gênese no cristianismo e outros autores discursaram sobre essa mesma problemática Verdade é que todos buscam na discussão da liberdade os aspectos constitutivos do individualismo na modernidade O autor adverte que os princípios cristãos já traziam em si os pressupostos do que seria o individualismo na cultura da modernidade mas como algo ligado a uma ideologia holista segundo a qual o valor se encontrava na sociedade como um todo e aquele indivíduo que por acaso não se enquadrava sob esse sistema pelo fato de buscar sua autonomia e independência era considerado indivíduo foradomundo ou renunciante isso porque o cristianismo nos primeiros séculos era atrelado diretamente ao Estado Como diz George Jardim em seu artigo intitulado O individualismo na cultura moderna seja nas entranhas do cristianismo na ambição do homem renascentista ou na auto afirmação do homem moderno o individualismo traz em si uma posição particular diante do sistema em que este está inserido Cormac Burke juiz espanhol em seu artigo Personalismo e Individualismo 1994 embora não mencione o nome de Mounier como representante do Personalismo faz uma interessante diferença entre as duas visões posto que com freqüência são confundidas como se fossem de um mesmo pensamento ao se referir ao Concilio VaticanoII2 2 O Concílio Vaticano II CVII XXI Concílio Ecumênico da Igreja católica foi aberto sob o papado de João XXIII no dia 11 de outubro de 1962 e terminado sob o papado de Paulo VI em 8 de dezembro de 25 Por ser a comunhão o tema central do documento da Igreja Católica está sempre aberta a todos os homens mas ao mesmo tempo em que a igreja propõe esta comunhão coloca também as bases para o desenvolvimento de uma visão personalista da vida do homem pois não somente focaliza o homem em comunidade mas também fundamenta suas reflexões sobre a pessoa humana Assim Burke 1994 p 83 ressalta que Esta combinação de elementos a comunidade como ideal e meta a pessoa como ponto de referência se realiza de um modo harmônico se entendermos adequadamente a natureza autêntica do personalismo E discorrendo sobre a essência do personalismo ele diz que constitui uma visão de homem que privilegia a dignidade como filho de Deus abrangendo sua autorealização e os valores transcendentes e duradouros O personalismo concede especial atenção a liberdade individual a própria e a dos outros e por conseguinte tem uma extraordinária consciência da responsabilidade pessoal Mais uma vez Burke é quem diz quem tem um verdadeiro espírito personalista é consciente da dignidade dos direitos os outros não menos que os seus lhe parece natural comportarse respeitosamente com os demais Nessa perspectiva a idéia de entrega doação pessoal respeito ao próximo está dentro da essência do personalismo e por isso também a idéia de natureza humana é essencialmente relacional A pessoa cresce e se desenvolve relacionandose com os outros de modo aberto e generosamente receptivo e por isso os valores humanos constituem um sólido fundamento para a comunidade Ainda salienta Burke 1994 que personalismo cristão propõe uma vocação fundamental de cada pessoa em comunhão E a vida em comunhão com Cristo exige uma luta permanente contra o egocentrismo e o egoísmo Uma comunidade defende ele não fundada sobre o respeito da dignidade da pessoa acaba por converterse em uma massa sem alma em um campo de concentração ou em um Estado totalitário por isso ele faz questão de contrapor personalismo e individualismo Por questões óbvias e anteriormente já colocadas o individualismo se apresenta como uma visão deturpada do personalismo Concordo com Burke 1996 quando ele diz 1965 Nestes três anos com grande abertura intelectual se discutiu e regulamentou temas pertinentes à Igreja católica sempre visando a um melhor entendimento de Cristo junto à realidade vigente do homem moderno Este melhor entendimento de Cristo foi e é a verdadeira hermenêutica do CVII Hermenêutica que nos dá o verdadeiro espírito do CVII e todos os concílios ecumênicos da Igreja católica Na homília de abertura do CVII aos padres conciliares o Papa da época expõe sua intenção Procuremos apresentar aos homens de nosso tempo íntegra e pura a verdade de Deus de tal maneira que eles a possam compreender e a ela espontaneamente assentir Pois somos Pastores João XXIII 1962 26 Em certo modo podese dizer que o individualismo se apresenta com uma versão mutilada e falsa do personalismo Fala também de direitos mas não de deveres Exige liberdade de ação mas não assume responsabilidade pelos seus próprios atos Toma o individuo e não a verdade como norma da moralidade Favorece a livre decisão nos comportamentos sem preocuparse com as exigências da vida social Se preocupa consigo mesmo não com os demais a menos que os interesses alheios não coincidam com os próprios Defende os direitos alheios somente quando pode fazê lo sem corte pessoal BURKE 1996 p112 Todas essas observações a cerca do individualismo me conduzem a uma conclusão muito importante não se pode ser individualista e ao mesmo tempo estar em comunhão com os interesses comunitários por isso estas visões são irreconciliáveis e frontalmente opostas O individualismo foi severamente criticado por Mounier por representar concepções intelectualistas conferidas ao indivíduo como meramente racional ou como um sujeito lógico O próprio Mounier no decorrer de suas obras já assinala a diferença fundamental entre pessoa e indivíduo melhor dizendo todo o seu pensamento propunha romper com o homem egoísta isolado e limitado no qual o homem está mergulhado por seu individualismo o tornando um homem abstrato Lorezon 1996 p 81 estudioso do personalismo no Brasil afirma que a crítica ao individualismo é parte integrante de todas as discussões da Revista Esprit e pelo qual Mounier vai denunciar com virulência esse inimigo número um do espírito comunitário Ao falar da pessoa suprimida como objeto manejável Mounier 1964 concentra sua análise no egocentrismo próprio dos indivíduos que dificultam a comunicação com outrem permanecendo no individualismo que é segundo ele Um sistema de costumes de sentimentos de idéias e de instituições que organiza o individuo partindo de atitudes de isolamento e defesa Foi uma ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX Homem abstrato sem vínculos nem comunidades naturais deus supremo no centro duma liberdade sem direção nem medida sempre pronto a olhar os outros com desconfiança calculo ou reivindicações MOUNIER1964 p 6162 Em outra importantíssima obra Manifesto ao Serviço do Personalismo Mounier 1967 dedica um capítulo para falar da civilização burguesa e individualista e ao mesmo tempo denuncia o que ele chama de crise de civilização Pois bem ainda falando de 27 individualismo o mundo ocidental está mergulhado indubitavelmente numa civilização burguesa e individualista e por mais que seus alicerces primeiros estejam ancorados em lutas legítimas da pessoa pouco a pouco se desviou surgindo a idéia de uma concepção tão estreita de indivíduo que por si só anunciava sua decadência ou nas próprias palavras de Mounier 1976 p250 O individualismo é uma decadência do indivíduo antes de ser isolamento do indivíduo isolou os homens na medida em que os aviltou No mundo burguês o homem perdeu o sentido de si e do outro porque tudo gira em torno de coisas utilizáveis uma vez que o capitalismo se estende as mais longínquas culturas com suas conquistas porque indefinidamente multiplicado não já por um trabalho medido pelas forças naturais mas por um jogo especulativo o do lucro ganho sem qualquer serviço prestado tipo para qual tende todo o lucro capitalista MOUNIER 1976 p26 O individualismo abriu caminho no entanto para o surgimento do ideal burguês representado pelo homem que perdeu o sentido do ser perdeu o amor vive no ter e é possuído pelos seus bens e por uma espécie de espírito pequeno burguês este ansioso por adquirir a mesma segurança Dessa forma o individualismo burguês é muito mais corroído por suas relações de afastamento com o outro ser porque é um homem que perdeu sentido de estar próximo Seu intento é a segurança e o conforto que o dinheiro pode proporcionar suas realizações e sonhos estão pautados no mundo do consumo a dimensão espiritual por sua vez é totalmente afastada dos ditames materiais sua vida é invadida por um ideal burguês que tudo quer cujo pensamento é usando palavras de Mounier 1964 chegar e para chegar utiliza os meios econômicos como forma de segurança O tema do individualismo no mundo moderno parece prevalecer em todas as esferas da vida cotidiana quando a pessoa se fecha às possibilidades de troca e reciprocidade com o outro pois comumente o mundo sob o ponto de vista da lógica capitalista oferece inúmeras alternativas de fechamento do eu Zygmunt Bauman 2003 sociólogo ao se referir sobre as questões comunitárias no mundo contemporâneo e globalizado diz que na medida em que a vivência em comunidade significa a perda da liberdade esse processo acaba gerando um dos dilemas mais significativos para a compreensão das dinâmicas sociais Ao mesmo tempo ele enfatiza almejamos e resistimos à segurança coletiva em prol da liberdade individual e como conseqüência temos duas tendências que acompanharam o capitalismo moderno de um lado o esforço de substituir o entendimento natural pelo ritmo regulado da natureza tradição personificada nas rotinas artificialmente projetadas e coercitivamente impostas e monitoradas e por outro lado a tendência de criar do nada um 28 sentido de comunidade dentro do quadro de uma nova estrutura de poder ou seja a busca pela naturalização dos padrões de conduta impostos pelo processo de racionalização abstratamente projetado e ostensivamente artificial Temos assim a exigência de um controle forte porém difícil de realizar pois o sentimento de incerteza tornase o mecanismo mais simples de dominação Em uma sociedade de risco o medo vem de dentro das pessoas e a comunidade é um lugar cálido um lugar confortável e aconchegante Lá fora na rua toda sorte de perigo está à espreita temos que estar alertas quando saímos prestar atenção com quem falamos e a quem nos fala estar de prontidão a cada minuto BAUMAN 2003 p 63 grifo meu Infelizmente esse é um ideal que não passa no teste da realidade ironiza Baumam 2003 A realidade é ao contrário não comunitária e a insegurança está cada vez mais presente A insegurança que diz respeito a todos se origina do mundo em que vivemos desregulamentado flexível plural competitivo e repleto de incertezas onde cada um está deixado por conta própria Como assinala Bauman 2003 somos convocados a buscar soluções biográficas para contradições sistêmicas procuramos salvação individual de problemas compartilhados O mundo volátil e mutante à nossa volta induz a um investimento naquilo que podemos ou supomos controlar qual seja a nossa autopreservação Para tanto o paliativo para a insegurança é a busca por segurança que tem a ver com a nossa integridade corporal nossas propriedades nossa comunidade e que faz do estranho o inimigo a ser evitado ou combatido e onde o individualismo encontra sua justificativa mais coerente Na verdade estamos mergulhados de tal forma em nosso individualismo que mal percebemos a face do outro em nossa volta ou pior vivemos uma cultura da indiferença quando por exemplo já assimilamos os fatos hediondos como normais ou no mínimo nos chocamos face à comoção e apelo midiático diante de fatos que se revelam como assombrosos do ponto de vista éticomoral e violento mas depois esses eventos caem no esquecimento e são comumente substituídos por outros eventos violentos Contanto que acontecimentos dessa natureza não nos afetem diretamente ou ninguém de nosso circulo familiar a tendência é nos solidarizar momentaneamente e seguirmos adiante Tudo isso vai criando um clima de indiferença e banalização dos acontecimentos que perdem seu ineditismo e começam a ser encarados como naturais corriqueiros comuns diante de uma sociedade protagonista de relações calcularizadas e mergulhadas na indiferença com o 29 outro a mesma que Albert Camus relatou em o O Estrangeiro quando o personagem Mersault mesmo numa relação fugaz e indiferente com Maria Cardona sua namorada seria feliz assim pois planejavam casar aliás ela sonhava por ele não houvesse ocorrido a presença do outro O personagem até então levava uma vida tranqüila quando um dia na praia encontro um outro um árabe Porque este lhe esbarrou o caminho Mersault o mata Será preso e num julgamento que comoverá a imprensa da época revelará com frieza ao ser perguntado por que matou o árabe no que responderá com total ausência de arrependimento ou comoção porque estava fazendo calor 12 O PERSONALISMO NO SENSO COMUM O COLETIVISMO Igualmente fechado por suas forças tirânicas contra a pessoa o Coletivismo por avizinharse do totalitarismo ou seja de estados fascistas que a história registrou como um dos mais violentos contra a dignidade da pessoa humana vindo a provocar aviltamentos dolorosos e marcas profundas à livre presença da pessoa no mundo distanciase também do Personalismo sendo duramente rejeitado em todos os escritos de Mounier e dos intelectuais de sua época Considero que o grau máximo do coletivismo se expressa na maneira pelas quais os mulçumanos em especial os grupos formados por terroristas resolvem seus conflitos destruindo um aos outros utilizando para isso armas mortais e literalmente humanas os chamados homensbombas Estes seduzidos pelo poder tirânico de seus ditadores se lançam na atividade de defesa de seu povo mesmo que para isso sacrifiquem sua própria vida em favor de uma causa maior É sabido que estes homens atualmente algumas mulheres também estão sendo utilizadas para este fim deixam um vídeo gravado se despedindo de seus familiares e suas falas ostentam orgulho por ato tão honroso Essa forma de defesa do Estado se assemelha a meu ver com as doutrinas do fascismo e do nazismo onde a concentração de forças residia na figura de um ditador cruel e implacável para seus desafetos e vítimas mas admirado por seus seguidores a ponto de sacrificar a si e seus familiares Não menos limitante à livre iniciativa da pessoa humana o comunismo era fonte de severas críticas por apresentar as desordens perpetradas por dirigentes que dominavam a verdade a partir de seu aporte econômicopolitico Ao debater sobre o cristianismo Mounier 30 1967 denunciou sua agonia ante seu desconhecimento de que o mundo não caminhava mais sob a égide cristã pelo contrário estava se tornando anticristão dominado principalmente por regimes políticos que atestavam sua fragilidade E na discussão entre comunismo e cristianismo profetiza os perigos de cingir o espiritual ao político quando alguns componentes da Revista Esprit tendiam para essa adesão e a revista era acusada de comunista fato este contestado com veemência por Mounier 1972 O comunismo totaliza e centra o problema humano na história econômica política como um círculo em torno de seu centro O realismo cristão descreve a história humana em torno de dois pólos como um eclipse um pólo material e um pólo sobrenatural o primeiro subordinado ao segundo embora o segundo esteja estritamente ligado às posições do primeiro Devese precaver de transformar esta relação complexa e dialética numa sublimação idealista mas se chega a falsificála consentir em transformar o sobrenatural em simples superestrutura se se entra demasiado no jogo da imanência para evitar a armadilha do idealismo então já não há mais perspectiva cristã E acrescenta no mesmo trecho É pois impossível deliberadamente dividir em duas partes seu compromissamento com os comunistas soluciono os problemas da terra com minha fé os problemas do céu Seria cair por paradoxo num compromisso comunista na concepção individualista e idealista da fé que apenas se maltratou por cem anos Uma perspectiva cristã intervém em todos os problemas até os mais externos a partir do momento que dizem respeito ao homem MOUNIER 1972 p135 Esses cenários de estados totalitários teciam um panorama de escravidão esmagamento e forças devoradoras da liberdade que cerceavam sua expressão por isso são opostos ao fascismo e ao nazismo Aliás é mister registrar que na França dos anos 30 no período entre guerras uma grande parte da Europa coexiste com grandes vultos da violência na política quais sejam Stalin Mussolini e Hitler Isso recai em grande escala na visão de homem totalmente fechado em si mesmo muito embora o discurso fascista aponte um indivíduo não isolado com seus semelhantes mas no entanto entregue à abnegação pelo sacrifício da vida particular em favor do coletivo É impregnado por uma espécie de delírio coletivo entorpecendo até sua sensibilidade espiritual e mais precisamente no que diz Mounier 1972 p 46 prisão mais espessa mais secreta mais temível pelas suas seduções do que pelas suas ideologias despertando no homem um desejo de comunhão de fidelidade mas inexoravelmente preso nas amarras da opressão da despersonalização 31 O fascismo coloca o indivíduo subordinado à nação sendo a sua única e verdadeira realidade o Estado Isso se evidencia precisamente nas próprias palavras de Mussolini em um de seus discursos no partido colocada por Pini 1962 O homem fascista é um indivíduo que é nação e pátria lei moral soldada nos indivíduos e nas gerações pela tradição É um homem arraigado com uma missão destinada a suspender essa tendência que tem a vida que quer romper esse vínculo vicioso do prazer pelo prazer para instaurar na forma superior de existência que supere os limites do espaço e do tempo A vida do indivíduo declarado fascista por sua abnegação por seu sacrifício dos interesses particulares por uma mesma força realiza esta forma de existência em que reside todo o valor do homem PINI 1962 p 62 Os valores políticos do fascismo chegaram a tal ponto que em outro discurso proferido por Mussolini em 1925 no Congresso do partido a palavra de ordem foi intransigência absoluta ideal e prática onde o Fascismo a partir de então rompeu com o passado estabelecendose não somente como partido mas como um ideal e como modo de vida Nas palavras enfáticas de Mussolini PINI 1962 p71 que reafirma sua concepção ao declarar que o fascismo é um partido é uma milícia é uma corporação Não basta deve tornarse algo a mais deve tornarse um modo de vida E este modo de vida anunciado pelo fascismo é a coragem acima de tudo a intrepidez o amor ao perigo a repugnância pelos homens inúteis e pacifistas estar preparados à ousadia tanto na vida individual quanto na coletiva e desprezar tudo que é sedentário Por isso o fascismo causava tanto aversão àqueles que defendiam com igual coragem à liberdade individual e a dignidade humana desprezados pelo fascismo Mais ainda além de cercear a liberdade em todas as suas dimensões e manifestações o grande pavor era pela fúria assassina e impiedosa dos seguidores do partido Sua força de persuasão era tamanha que ameaçava alastrarse por toda a Europa não só de Mussolini e Hitler mas todas as nações democráticas ocidentais Conforme mostra Barros 1969 em um importantíssimo ensaio sobre o fascismo ele diz que é um produto da crise que aflige o mundo contemporâneo e como seus fins primordiais são repressão da revolta contra a penúria e a preparação para a guerra para atingir esses meios evidentemente elimina as liberdades e assim afirma como meio para a consecução desses fins suprime as liberdades democráticas Como fruto que colhe vem desde logo a miséria a miséria econômica em que chafurda o povo enquanto ricos pompeiam um fausto insultante a miséria cultural que se abre na perseguição aos intelectuais e na morte da iniciativa e a miséria 32 moral consubstanciada no servilismo na corrupção no banditismo policial no egoísmo mais feroz nos preconceitos mais hipócritas e mais cruéis BARROS 1969 p 58 É tão profunda a subordinação do indivíduo ao Estado que este se torna interior ao próprio indivíduo sua liberdade é vontade vinculada com a sua identificação com o Estado onde se fundam indivíduo e nação por um poder inquestionável não há espaço para reflexão pois o indivíduo pensase no para e com o Estado fazendo e legitimando suas reverências ao poder e este reivindica sua dominação absoluta a sua vida privada e por conseguinte a sua vida espiritual e da sociedade A sensação que causa o fascismo e o nazismo aos indivíduos é descrito por Mounier 1967 p 54 como um delírio coletivo onde Uma massa de homens desprotegidos e sobretudo desamparados de si próprios chegaram a esse ponto de desorientação em que se lhes resta um único desejo a vontade frenética à força de esgotamento de se desembaraçarem da sua vontade das suas responsabilidades da sua consciência depondoa nas mãos de um Salvador que julgará em lugar deles deliberará em lugar deles agirá em lugar deles MOUNIER 1967 p 54 O Nazismo que se instaurou na Alemanha em 1923 a partir de Hitler figura com um dos acontecimentos mais sangrentos e cruéis da história da humanidade e igualmente foi alvo de duras denúncias por parte do movimento personalista por representar em grande escala um golpe duro à democracia e a liberdade principalmente a partir de 1931 quando o Partido NacionalSocialista aumentou sua representatividade no Parlamento Com Hitler no poder a Alemanha passou a ser o berço da ditadura nazista onde Hitler liderava como ditador máximo com poderes totalitários e policiais A partir de então Hitler começou a adotar uma série de medidas a fim de consolidar sua superioridade de ditador como por exemplo a proibição de formação de partidos políticos e sindicatos dando sinais visíveis de sua absoluta intransigência e poder como ditador além de golpear a dignidade da pessoa humana com leis racistas as chamadas leis contra os nãoarianos Em todos os níveis da vida alemã o nazismo se disseminou de tal forma que passou a regular a vida econômica e social Os jovens eram educados nos ideais nazistas que propunha uma ideologia no antisemitismo na crença da ascendência da raça ariana sobre as demais além de subjugar o individuo ao Estado Ao falar na ideologia do antisemitismo Mendonça 2002 p 27 em artigo sobre uma perspectiva fenomenológica e personalista do homem como dotado de comportamento com viés de violência e eticidade indica que Adorno e Horkheimer irão abordar a questão da 33 alteridade e denunciar o elemento patológico contido no antisemitismo mas também chama a atenção para o fato de que as relações sociais violentas engendradas pelo preconceito ultrapassam em muito a questão antisemita e irão dizer respeito melhor dizendo se estenderão para as relações sociais na modernidade Assim é perceptível que o antisemitismo se disseminou não somente em terras alemãs propagado pelo nazismo ainda que frontalmente fosse a forma de preconceito mais expressiva da história da humanidade mas esteve e está presente em todas as sujeições do processo de individualidade e anulação do indivíduo Ainda referindome ao antisemitismo cabe aqui colocar o que Mendonça 2002 retirou da Dialética do Esclarecimento o que para mim sintetiza a questão antisemita na justificação do mal por mais corretas que sejam as explicações e os contraargumentos racionais de natureza econômica e política não conseguem fazêlo porque a racionalidade ligada à dominação está ela própria na base do sofrimento Na medida em que agridem cegamente e cegamente se defendem perseguidores e vitimas pertencem ao mesmo circuito funesto O comportamento antisemita é desencadeado em situações em que os indivíduos obcecados e privados de sua subjetividade se vêem soltos enquanto sujeitos Só a cegueira do antisemitismo sua falta de objetivo confere certa verdade à explicação de que seria uma válvula de escape A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam atenção E como vitimas são intercambiáveis segundo a conjuntura vagabundos judeus protestantes católicos cada um delas pode tomar o lugar do assassino na mesma volúpia cega do homicídio tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal A ação tornase realmente um fim em si autônomo ela encobre sua própria falta de finalidade O antisemitismo conclama sempre a ir até o fim do trabalho Entre o antisemitismo e a totalidade havia desde o início a mais íntima conexão A cegueira alcança tudo porque não compreende MENDONÇA 2002 p 29 Os coletivismos e todas as suas expressões políticas comunismo nazismo fascismo querem propagar os valores gerais da sociedade digase a sociedade idealizada por esses poderes totalitários mas com total desprezo as formas de ser singular pois a eles são conferidos importância na medida em que servem cegamente a sociedade O individualismo adota uma perspectiva contrária sendo a sociedade suprimida em favor do indivíduo criando por outro lado outras formas de egoísmo Essas ideologias foram bastantes presentes na história do século XX principalmente nas duas guerras mundiais na tentativa de impor estas visões de mundo e aumentar o poder daqueles que nelas se apoiavam a fim de aprisionar os homens e demarcar um elemento importante essencial ao capitalismo o pensamento burguês o qual tanto Mounier e seus 34 companheiros da Revista Esprit fundada em 1932 sobre a qual falarei mais tarde como movimento principal do Personalismo combateram fortemente 13 DO INDIVÍDUO À PESSOA Falar sobre a pessoa é primeiramente e antes de tudo explicitar as formas abomináveis sob as quais se firmou o conceito de não dignidade da pessoa humana pois como já foi visto todos os movimentos que assolaram a Europa no período entre guerras são um acinte as largas expectativas da pessoa humana e por isso representavam um perigo claro e notável a sua liberdade e essencialidade de ser pessoa Evidentemente não foi à toa que não somente o movimento personalista mas todos os movimentos em favor da vida se levantavam contra todas as formas de desprezo da vida Assim antes de entrar propriamente no Personalismo de Mounier se bem que nas escritas anteriores vez por outra me reporto ao Personalismo por entender que Mounier se posicionou claramente contra todos os movimentos que abalavam o cerne do ser pessoa mister é esclarecer o que é o indivíduo na sociedade moderna Em Adorno e Horkheimer 1956 o tema do indivíduo merece algumas considerações por enfatizarem uma espécie de trajetória sociológica deste Apesar de afirmarem que em sociologia o tema é relativamente pouco discutido por considerarse o indivíduo um dado irredutível confiando sua análise à Biologia à Psicologia e a Filosofia E por um longo tempo o indivíduo foi absolutizado como categoria extrasocial Os citados autores mencionam Boécio para expressarem a definição de indivíduo que já aparece no século VI Individuum é aplicável de muitas maneiras dáse o nome de indivíduo àquele que não pode ser subdividido de modo nenhum como a unidade ou o espírito chamase indivíduo ao que por sua solidez não pode ser dividido como o aço e designase como indivíduo aquele cuja predicação própria não se identifica com outras semelhantes como Sócrates ADORNO HORKHEIMER 1956 p 45 Quer dizer a citada definição enfatiza o singular e o particular encerrado na concepção do indivíduo embora numa acepção puramente lógica e fechada Em outra concepção a chamada Nominalista advinda da teoria dos mônades Adorno e Horkheimer 1956 oferecem uma visão individualista do homem na sociedade burguesa pela qual segundo Leibniz uma substância particular não atua sobre outra a não ser pela conseqüência de sua idéia ou ainda as mudanças não tem causas externas mas advém de 35 algo interno A sociedade sob essa ótica será pois a superposição de indivíduos fechados em si mesmos A partir da idéia de que a vida humana é essencialmente convivência os autores põem em dúvida o conceito de indivíduo meramente como unidade social fundamental Assim se expressam Se o homem na própria base de sua existência é para os outros que são seus semelhantes e se unicamente por eles é o que é então a definição última não é a de uma indivisibilidade e unidade primárias mas outrossim a de uma participação e comunicação necessárias aos outros ADORNO HORKHEIMER 1956 p 47 Essa análise se assemelha a maioria das teses cujo vetor principal voltase para a pessoa sendo com os outros no mundo num processo de participação e coexistência vivida com e para o outro Ao falarem sobre o conceito personalista de pessoa Adorno e Horkheimer 1956 admitem que tenha suas raízes no cristianismo vindo a ter uma conotação social na reforma protestante embora ponderem que o cristianismo por si só não justifique o desenvolvimento histórico e social do homem O conceito do homem como pessoa é estabelecida nas amarras das condições sociais onde esse homem vive e desempenha determinados papéis ou seja em conseqüência desses papéis e em relação com os seus semelhantes ele é o que é filho de uma mãe aluno de um professor membro de uma tribo praticante de uma profissão Assim essas relações não são para ele algo extrínseco mas relações em que se determina a seu próprio respeito como filho aluno ou o que for ADORNO HORKHEIMER 1956 p 48 Isso significa atribuir um caráter funcional a pessoa e dessa forma tornase impossível buscar a singularidade pura do indivíduo mas apenas a um ponto de referência abstrato Mas a pessoa é segundo Adorno e Horkheimer 1956 uma categoria social uma vez que a sua vida só é plenamente vivida numa correlação vital com as outras pessoas inserido num contexto social específico sendo por isso que afirmam A vida humana é essencialmente e não por mera casualidade convivência Outrossim reconhecem que o homem não faz parte de uma indivisibilidade mas ao contrário este homem é participação e comunicação com os outros quando comentam 36 Mesmo antes de ser indivíduo o homem é um dos semelhantes relacionandose com os outros antes de se referir explicitamente ao eu é um momento das relações em que vive antes de poder chegar finalmente à autodeterminação ADORNO HORKHEIMER 1956 p 47 A definição de indivíduo implica também colocálo evidentemente em relação com a sociedade e com a natureza sendo que como afirmam Adorno e Horkheimer 1956 uma constelação entre os três momentos tem um caráter dinâmico que foge portanto a qualquer forma perpetuadora e permanente de sua interação Ou seja as relações indivíduo sociedade e natureza fazem parte de uma teia dinâmica em que vão se processando conforme as variações de suas interações Ao citarem os grandes expoentes da filosófica como Platão Aristóteles e Kant Adorno e Horkheimer 1956 assinalam o caráter profundamente natural do homem de viver em comunidade É assim que só é na polis que o homem é verdadeiro homem pois convivem entre si sendo reafirmado em Kant quando afirma que o homem está determinado à vida com os outros homens de forma organizada aí se distanciando do animal visto sua tendência associativa Kant ao afirmar o primado da sociedade sobre o indivíduo principalmente na doutrina positivista a sociologia principalmente nos seus primórdios colocava o indivíduo como um mero exemplar do gênero reduzindoo a uma importância secundária Adorno e Horkheimer 1956 argumentam que o indivíduo não é somente um dado da natureza um ser biológico individual mas uma sociologia crítica deve assimilar que o indivíduo pode e deve ser visto junto com outros componentes e não como uma importância menor Por discordarem de que o ser individual não e meramente uma entidade biológica os autores expressam indivíduo significa algo que não é apenas a rigor a entidade biológica O individuo surge de certo modo quando estabelece o seu eu e eleva o seu serpasi a sua unidade à categoria de verdadeira determinação ADORNO HORKHEIMER 1956 p 52 37 E essa determinação só pode ser vivenciada a partir do momento em que o indivíduo passa a uma autoconsciência e por conseguinte e necessariamente para uma autoconsciência social superando o dado abstrato biológico imputado pelo evolucionismo Ao conceber o indivíduo na sociedade burguesa é explícito sua subordinação ao princípio da concorrência o fazendo dependente de seus interesses próprios em detrimento à coletividade Com razão Adorno e Horkheimer 1956 afirmam Com a entronização do princípio de concorrência a eliminação dos limites das ordens correlativas e o inicio da revolução técnica na indústria a sociedade burguesa desenvolveu um dinamismo social que obriga o individuo econômico a lutar implacavelmente por seus interesses de lucro sem se preocupar com o bem da coletividade ADORNO HORKHEIMER 1956 p 55 E desse modo a própria sociedade vai afastando de si o indivíduo que por conseguinte se apropria de bens comuns e coletivos com o aval da própria sociedade e desde já a sociedade que estimulou o desenvolvimento do individuo desenvolvese agora ela própria afastando de si o individuo a quem destronou Contudo o individuo desconhece esse mundo de quem intimamente depende até o julgar coisa sua ADORNO HORKHEIMER 1956 p 47 Nessa perspectiva o indivíduo só é verdadeiramente social quando se reconhece e toma posse do mundo e da natureza ainda que a sociedade burguesa capitalista o afaste desse fim E como na sociedade moderna o homem é cada vez mais coisificado pelos liames de uma vida individual por si egoísta e tiranizado pelos interesses do lucro vemos o homem aprisionado por seus fantasmas seus medos e inseguranças diante de mundo cada vez mais avesso aos apelos da alma Na modernidade o homem passou a ser protagonista de transformações que lhe conferiram um caráter alienante do ponto de vista de que é alheio ao seu próprio destino A partir da teoria critica da sociedade vai surgir um conceito básico para designar o homem em tempos de barbárie que é a sua relação com a natureza a cultura e a sociedade e a dominação de um sobre o outro daí definindo a dialética existente entre individuo e sociedade principalmente em se tratando de realizar as críticas pertinentes aos estados aprisionadores do homem frente aos totalitarismos adesão cega aos ditames do coletivo da indústria cultural3 3 Conceito elaborado por Adorno e Horkheimer 1956 que diz respeito a uma teoria social do conhecimento pelos quais tudo se transforma em artigo de consumo não importando o que seja Para eles qualquer coisa que se popularize e ganhe 38 do desencantamento frente ao mundo aniquilado pela indiferença A partir de então é superada a dicotomia entre homem e sociedade reafirmado por Adorno e Horkheimer 1956 ambos os conceitos são recíprocos Na obra de Adorno Minima Moralia 1993 ele vai colocar a situação de como o indivíduo se encontra ao refletir sobre o homem moderno e sua vida danificada Se hoje os últimos traços de humanidade prendemse apenas ao indivíduo como algo que encontrase em seu ocaso eles nos exortam a pôr um fim àquela fatalidade que individualiza os homens tãosomente para poder quebrálos por completo em seu isolamento ADORNO 1993 p 78 14 O TERMO PERSONALISMO NO SENTIDO RELIGIOSO PSICOLÓGICO E POLÍTICO Após essa breve contextualização sobre o individualismo o coletivismo e o indivíduo convêm colocar as várias visões vinculadas ao Personalismo embora se esclareça que não estão inseridas dentro de um sentido filosófico e longe estão de serem identificadas à visão personalista de Mounier Durante esta pesquisa agrupei essas várias visões e as classifiquei como religiosa política e psicológica Iniciei pelo dicionário Aurélio que em suas definições sobre o termo ora afasta o cunho filosófico ora o reconheça A referência acredito se baseia nas noções do item 1 2 e 6 do termo segundo o Dicionário Aurélio 1Qualidade do que é pessoal subjetivo 2 conduta de quem refere tudo a si próprio indivíduo de personalismo onipotente 3 Filos Doutrina segundo a qual a pessoa é o tema central de reflexão 4 Filos Doutrina inspirada em Leibniz segundo o qual o mundo é constituído por uma totalidade de espíritos finitos que no seu conjunto formam uma ordem ideal em que cada um deles conserva sua autonomia 5 Filos Doutrina cujos representantes foram Emmanuel Mounier 19051950 filósofo nascido em Grenoble França e Nicolai Berdieff 18741948 filosofo e místico russo que embora concebendo o ser humano em sua individualidade como um valor absoluto considera que esse valor não é independente nem superior ao do relacionamento do individuo com a coletividade e com a natureza mas por intermédio desse relacionamento se expressa e se perfaz O Personalismo toma corpo nas cruzadas éticopolíticas que afirmam a necessidade do aprimoramento moral do individuo como panacéia para a cura de todos os males políticossociais 6 Polit Fenômeno caracterizado pela concentração da unidade da força eleitoral e do prestigio de um partido na pessoa de um chefe carismático AURÉLIO 1999 êxito de consumo a indústria promove e repete o mesmo padrão intensificando a passividade social e por outro lado essa uniformização técnica leva à administração centralizada 39 Apesar de inúmeras versões sobre o personalismo é reconhecido o caráter filosófico do termo principalmente enfocando a centralidade da pessoa Uma das visões equivocadas atribuídas ao Personalismo é vista na doutrina espírita4 para quem as atitudes de dirigentes espíritas que concentram suas ações em si mesmos são impregnadas pela erva daninha do personalismo as quais contribuem para o seu crescimento e alojamento e isso acontece por três razões 1 pelo egoísmo que desvirtua o caminho do verdadeiro espírita o levando para um processo de fascinação pois são seduzidos ao ego da pessoa sendo cego aos perigos do poder e incentivando uma prática centrada em si mesmo onde o dirigente personalista comanda o grupo como bem quer ocasionando uma cristalização de seu pensamento sobre os demais e o grupo 2 pela ignorância doutrinária e por conseguinte falta de estudos e aprofundamentos O contrario disto resultaria em minimização do personalismo 3 pela má formação cultural do dirigente uma vez que se ele não recebeu os devidos estímulos para idéias progressistas poderá fecharse em si mesmo Desse modo o personalismo é pedra de tropeço para a solidariedade a fraternidade a cooperação a afetividade Aqui o personalismo figura como aprisionador do despertar da consciência da pessoa como um sinal destrutivo que impregna membros e principalmente dirigentes para um caminho de egoísmo e tirania Ainda falando de personalismo no sentido religioso particularmente espírita Chico Xavier um dos maiores expoentes do espiritismo no Brasil assinala em sua escrita sobre a doutrina espírita que o personalismo é o maior adversário das aspirações de natureza espiritual porque representa o excessivo apego a nós mesmos e não permite enxergar a verdade fora de nós mesmos Desse modo desvencilharse do personalismo é praticar o exercício da mediunidade que segundo ele é um exercício de esquecimento de si afirmando que o personalismo de caráter religioso é um dos entraves mais sérios à evolução do espírito E mais precisamente se refere que mesmo discordando de outra pessoa jamais discorda dela publicamente 4 Diversas pesquisas foram efetuadas principalmente via internet e toda a doutrina espírita quando se refere ao personalismo atribui o termo focado no dirigente espírita individualista e concentrador Ver site httpwwwespiritismocombr 40 Quem me conhece sabe que eu jamais haveria de me posicionar contra um companheiro de Doutrina ou de me insurgir publicamente contra qualquer órgão representativo do nosso Movimento Não que eu não tenha como qualquer pessoa que sou opinião formada sobre este ou aquele assunto de caráter doutrinário mas muito cedo aprendi que sempre que a minha palavra for motivo de dissensão ou de discórdia entre os irmãos de ideal é melhor que eu me cale BACELLI 2004 p 62 Aqui o termo é associado ao egoísmo à solidão e frontalmente contrário às elevadas aspirações espirituais professadas pela doutrina espírita e por isso rechaçada por determinar em última instância o entrave de uma vida espiritual ilibada uma vez que é mais valorizada a palavra de quem dirige do que propriamente os ensinamentos da doutrina espírita Digase de passagem o chefe espiritual personalista exerce uma liderança autocrática centrado em si mesmo e mesmo recebendo orientações e mensagem espíritas sobre sua conduta arrogante negase a ver a verdade nas palavras espirituais de tão forte que é sua crença em si mesmo razão pela qual é suporte de egoísmo potencializado por espíritos que exercem má influência e por conseguinte dedicamse a incitar a supremacia de suas atitudes sobre os outros Assim contra qualquer atitude centralizadora os lideres espirituais aconselham o uso constante da oração aos bons espíritos a fim de ajudálo a considerar seus erros e conscientizálo sobre suas inserções danosas ao bom andamento da doutrina espírita Contase também com a ajuda de toda a comunidade espírita no sentido de conduzilo a outra forma de participação aquém daquela anteriormente exercida Coincidindo com a idéia do líder espiritual o personalismo na política está aliado à idéia de um líder que por si só reina independente de seu partido e das adversidades do momento político Em relação a essa afirmação Soares 2006 comentando sobre a possibilidade bem próxima do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhar um segundo mandado afirma que no Brasil a política se faz mais em função de pessoas e nomes do que de partidos e idéias sendo o fenômeno do personalismo na política uma fraqueza presente em todos os partidos O fim do personalismo continua e somente será corrigido num processo de educação política do povo assevera o jornalista Nesse sentido o personalismo é centrado em uma pessoa individualmente em seu carisma pessoal que escapa muitas vezes a qualquer evento exterior a si 41 Por outro lado acerca da questão das reformas políticas caracteriza três fenômenos interligados que podem dificultar a institucionalização dos partidos políticos entre esses fenômenos figura o personalismo das lideranças um traço bastante presente na política nacional como se refere o autor do artigo O personalismo é um traço importante da política nacional desde sempre Seja em função da relevância das lideranças individuais seja em função da descontinuidade do sistema partidário nacional os eleitores normalmente tendem a identificarse e emprestar seu apoio político mais a candidatos do que aos partidos Uma forma moderna de personalismo que vem ocorrendo em vários países da América Latina nas últimas décadas é o neopopulismo SOARES5 2006 O jornalista adverte ainda que o personalismo na política é tão marcante que hoje no cenário brasileiro vêse o lulismo como forma personalista da política brasileira sendo a função da política personalista atual manterse sob duas direções pelo clientelismo parlamentar e pela patronagem Em outra menção de cunho político a reforma aparece na relação entre o populismo e o personalismo os configurando como um entrave aos princípios éticos e democráticos da política Nisso é enfatizado o que é o personalismo culto às personalidades com a conseqüente desvalorização do debate político e a despolitização dos conflitos 6 e para que se neutralizem as pretensões personalísticas na política a reforma deve contemplar a adoção de lista fechada pois o sistema em listas abertas favorece o personalismo e a competição interna em cada partido Alguns até propõe em acabar com o personalismo na política pois tem profundas raízes na cultura brasileira do favorecimento ao carisma pessoal do candidato uma vez que o personalismo nesta perspectiva se materializa por meio de relações emocionais centrados no candidato e não no partido No que se refere ao moralismo na política um artigo intitulado Personalismo e Moralismo Soares 2006 comenta que a primeira forma de manipulação e a mais importante é o personalismo pois transforma a questão política vinculado a grupos e classes em problema meramente individual pois os políticos são elevados as suas qualidades mais superiores a fim de impressionar o eleitor geralmente aqueles atrelados a uma comunidade 5 Ver mais especificamente no Blog da Revista Veja em httpwwwvejaabrilcombrblogs 6 Disponível em http wwwespiritismocombr Acesso em 12 Jan 2006 42 que o elegem sua ligação direta é somente com a aqueles grupos que o apóiam ou ligados a ele por ajuda financeira Diz ainda o autor que O principal argumento de que se vale o personalismo é o moralismo Consiste em considerar todos os problemas sob o ângulo da honestidade ou desonestidade reservando aquela naturalmente para si O moralismo repousa em uma falácia que consiste em ignorar que em qualquer regime político em que uma classe mais que outra detenha o poder existe uma forma de repartição da renda social em favor desta classe o que com o tempo é institucionalizado e moralizado SOARES7 2006 Ainda aliada à idéia de liderança política é bem visível esta postura nos setores políticos árabes onde personalismo se caracteriza pela exposição excessiva e persistente dos dirigentes das nações árabes estampados nas fotos enormes nas ruas Essas maneiras de conceber o personalismo estão atreladas portanto há uma manipulação individual impetrada pelos dirigentes populistas com uma liderança paternalista somente voltada para o aprisionamento e alienação das pessoas que em nada se identifica com o personalismo de Mounier e com a ética Nas discussões acerca da personalidade cujo debate é centrado nas questões psicológicas dos sentimentos o orgulho aparece como negação de muitas virtudes se encontrando na base de todas as ações humanas e visivelmente contrárias à caridade porque a verdadeira caridade é simples modesta tolerante enquanto o egoísmo é dissimulado fonte de defeitos morais Figuram como subproduto do orgulho a vaidade a indiferença o preconceito a presunção o desprezo a pretensão e a inveja todos atuando juntos ou separados formam o tão conhecido personalismo estado de supervalorização do EU ou o que denominamos de Egocentrismo exacerbado 8 Mais adiante o autor afirma que o personalismo tem como efeito gerar idéias de que tudo aquilo que parta do indivíduo é o melhor é mais correto que é a mesma coisa da superioridade pessoal onde se formula juízos e concepções pessoais como verdades incontestáveis No campo da psicologia portanto o personalismo aparece como uma conduta de caráter comprometido de verdade e autenticidade correspondendo a uma distorção da 7Disponível em http wwwmonografiascomtrabalhosalienacaopoliticapovoalienacaopolitica povo2shtml Acesso 12 Jan 2006 8 Disponível em http wwwgnosisonlineorgPsicologiaGnosticaAHimsa Acesso em 17 Out 2006 43 realidade e cuja conseqüência recai numa vida voltada para si mesma sem possibilidade de trocas significativas com o mundo e com o outro Em outra versão o personalismo é mencionado como característica de uma sociedade egoísta não fraternal canalizada para a violência Em contraposição estabelece o AHimsa conceito retirado da política praticada por Gandhi definida como NãoViolência inspirada pelo amor universal pois é toda a renúncia de morte e dano ocasionado pela violência Nesta perspectiva o eu utiliza a personalidade como instrumento de ação e por conseguinte o personalismo resulta dessa mistura de ego e personalidade O culto à personalidade foi inventado pelo eu Realmente o personalismo gera egoísmos ódios violências etc Tudo isso é rechaçado pelo AHimsa9 Em outra parte fala que o personalismo é tão nocivo que chega a arruinar totalmente as organizações esotéricas podendo destruir inclusive qualquer organização Destas considerações a cerca do Personalismo compreendo que todas as visões citadas nenhuma faz menção ao caráter filosófico do termo daí confirmase a total desvinculação do movimento filosófico empreendido por Mounier com os já citados Desse modo é necessário colocar em contraposição aos termos que porventura possam a partir de agora associálo ao Personalismo ainda que Paul Ricoeur 1996 p 155 amigo de Mounier e grande colaborador da Revista Esprit lamente a escolha infeliz pelo fundador do movimento Esprit de um termo em ismo ademais posto em competição com outros ismos que se nos mostram amplamente hoje em dia como simples fantasmas conceituais RICOEUR 1996 p 155 15 O PERSONALISMO COMO VISÃO PROPRIAMENTE FILOSÓFICA Se até agora se reclamou por considerar que os termos utilizados para o personalismo não fazem jus ao caráter filosófico cumpre citar alguns campos em que figura como termo apropriado a versão filosófica 9 Disponível em http wwwgnosisonlineorgPsicologiaGnosticaAHimsa Acesso em 17 Out 2006 44 Assim é que em um trabalho no campo jurídico sobre a importância dos direitos da personalidade Alfredo E F de Oliveira 2002 assinala que esses direitos tratam de valores relacionados à pessoa e por isso há uma grande influência da filosofia personalista na constituição do desenvolvimento dos direitos da personalidade Prova disso é que este mesmo autor dedica um item sobre a importância da visão personalista no estudo da personalidade e reconhece na noção do direito o valor incondicional da pessoa humana baseada no personalismo de Mounier citando igualmente Maritain como fontes do estudo da pessoa Ou seja consagra a necessidade de uma ordem jurídica fundamentada nos valores da pessoa humana e seus reflexos na vida social Nesse sentido expressa A idéia de um direito voltado para os valores da pessoa humana nos moldes preconizados pelo personalismo é de grande importância para a consolidação da doutrina dos direitos da personalidade na medida em que imprime uma concepção substancial de pessoa reveladora de variados aspectos dignos de proteção pelo direito10 Embora de um modo bastante simplificado o estudo jurídico da personalidade consagra ao personalismo de Mounier um destaque importante enquanto influência teórica no estudo da personalidade jurídica A propósito do campo jurídico convém ressaltar a influência do personalismo na Constituição Francesa de 1946 quando na edição da Esprit de 1939 ao mencionar que a pessoa deve ser protegida contra os abusos do poder Mounier preconiza um projeto de proteção da pessoa ou seja um estatuto público da pessoa e os limites constitucionais dos poderes do Estado ao sugerir o equilíbrio do poder central pelos poderes locais organização do recurso dos cidadãos contra o Estado habeas corpus limitação dos poderes da polícia e independência do poder judiciário A mesma proposta também foi alvo da revista entre 1944 e 1945 Um destaque bastante significativo ao Personalismo diz respeito aos estudos metodológicos em Serviço Social preconizados por uma importante autora da área Anna Augusta de Almeida Ao romper com a forma tradicional de intervenção sob a qual se volta para o indivíduo isolado pelas questões sociais advindas de um modo de pensar funcionalista e de instituições voltadas meramente para atender as necessidades materiais imediatas dos usuários propôs o que chamou de Uma Nova Proposta a Metodologia Dialógica que entre 10 Disponivel em httpwwwjus2uolcombrdoutrina Acesso em 23 de out 2005 45 várias percepções filosóficas repousa o sentido da pessoa do usuário e do profissional de serviço social nas expectativas de pessoa em Mounier além e principalmente relacionados à noção de comunidade como discursa a própria autora ao expor os fundamentos de sua metodologia acrescentando ainda um importante autor no estudo da pessoa que é Landsberg A visão personalista de pessoa e comunidade em Mounier e Landsberg ajudaramme em particular a compreender o sentido dado por eles ao fenômeno da socialidade cujo significado implicava relacionar as noções de pessoaliberdade comunicaçãotransformação e compromisso ALMEIDA 1980b p 42 O grande diferencial dessa metodologia são os elementos constitutivos de um agir profissional pelo qual o usuário é provocado a refletir sobre a realidade específica que o trouxe ao profissional e as questões sociais são problematizadas e objetivadas visando a transformação não da pessoa nem do fenômeno enfocado no diálogo e sim da maneira pela qual o usuário irá vislumbrar com a descoberta de um novo sentido proporcionado pelo movimento do diálogo Para que haja uma nova percepção da realidade situada no aqui e agora da situação existencial problematizada esta se fará por meio da ação dialogal em que ambos vão participar por meio do encontro intencional comprometido como um fazer que se torne projeto e que deverá ser assumido como historicidade responsável inserido num horizonte de valores da opção de um valor que dê sentido e direção ao caminhar dialogal A metodologia dialógica continuadamente vêse envolvida em uma atividade intencional voltada para uma relação dialetizante entre percepção e reflexão presença e investigação pensamento e ação A influência marcante do personalismo na citada metodologia se evidencia na estrutura das descrições mediante três categorias trabalhadas por Almeida 1980 pessoa diálogo e transformação categorias que configuram a adesão ao projeto personalista A propósito da categoria pessoa convém colocála como concebida por Almeida 1980 p119 destacando o ser pessoa do usuário quando é reconhecido pela sua condição humana e não enquanto oprimido alienado desajustado Pessoa para a proposta é o homem total que é sujeito logo racional e livre Assim a pessoa é ela mesma independente de sua condição na esfera social econômica e cultural e como tal deve ser compreendida pois antes de ser um excluído como cidadão participativo e ativo no acesso aos benefícios sociais é uma pessoa cuja integridade se expressa na mais elevada plenitude do ser 46 Alvo de muitas críticas marxistas a metodologia dialógica foi acusada de moverse nas amplas descrições e fundamentações positivistas por dar ênfase a pessoa do usuário e sua situação existencial No que se refere à categoria da pessoa é importante esclarecer que tal metodologia não centra sua intervenção no foco com o indivíduo aliás tampouco o trata como um ser individual ao contrário sua ação é voltada à pessoa como ser em situação nas diversas dimensões do vivido pois ao falarse de situações do cotidiano quem é senão a pessoa que tem que aparecer invariavelmente como centro principal das questões a serem discutidas e dialogadas No entanto o objetivo não é a transformação da pessoa enquanto ser singular mas a transformação é na questão social pela qual o assistente social e o usuário estão envolvidos no processo dialogal embora seja verdade que ao transformarem a questão social em algo a ser reconhecido e trabalhado modificam tanto sua visada referente ao fenômeno quanto se modificam a si mesmos Na metodologia dialógica se rompe com o cerco alienante onde tudo é conduzido por pensamento e ações centradas em um sistema cujo principal vetor é a supremacia do econômico sob todas as formas de movimentos das relações sociais Apoiado em um pensamento personalista a metodologia dialógica quis suprir o usuário de sua pessoalidade ao compreendêlo em sua totalidade de pessoa não meramente como um alienado ou explorado porque da classe subalterna antes uma pessoa que faz um apelo diante de suas dificuldades materiais advindas de uma política pública que o torna um pedinte e a ajuda um favor Vale ressaltar que a metodologia dialógica não negligencia nenhuma forma de exploração capitalista pela qual se originam quase todas as mazelas sociais existentes todavia converge as suas reflexões para um sentido social sob o qual se vincula aos fenômenos sociais como coexistência situada no aqui e agora vínculo que nos une aos outros gerando experiências e reações Ainda mais particularmente aos fenômenos interhumanos que se dão nas relações entre os homens no seu cotidiano ALMEIDA 1980 p 56 Na prática profissional do serviço social se realiza o encontro entre sujeitos De um lado a pessoa do profissional possuidor de um domínio técnico sistematizado e refletido e de outro a pessoa do usuário igualmente possuidor de um conhecimento embora irrefletido onde nesse encontro tematizam a Situação Existencial Problematizada SEP e daí num 47 movimento dialógico asseguram o livre caminhar de uma ultrapassagem que se revela num projeto constituindose numa decisão livre e criativa ou melhor dizendo numa descoberta de si do outro do mundo dos fenômenos os quais antes tematizaram e que agora se abre como um novo Nessa direção a nova proposta dialógica sistematizada por Anna Augusta de Almeida revela a sua intenção de transformação ao dar um sentido a pessoa dando importância capital ao diálogo e a visada fundamental assumida pela tomada de consciência antes ingênua no inicio do encontro dialogal fazendose intencional e crítica no movimento do diálogo e por fim transformandose numa historicidade responsável realizando um projeto de vida e de sociedade como mostra Almeida 1980 Assim fica evidente que para realizar a tarefa própria aos fins do serviço social a metodologia dialógica deve estar fundamentada no reconhecimento da liberdade e da socialidade serpessoano mundo De outro modo ela não poderia abordar temas existenciais consciência participação justiça esperança E outros mais os quais exigem à práxis profissional em sua totalidade manifestarse nas três dimensões social histórica e política ALMEIDA 1980 p 64 Vale ressaltar que ao se falar do diálogo não se poderia limitálo somente no âmbito de uma metodologia antes porém tratase de ampliálo e mais do que isso de colocálo fundamentalmente como uma relação ética essencial que é exigida de todos nós Já no campo da educação é perceptível a influência do Personalismo associado à postura de Paulo Freire quando este trabalha a postura ética e transformadora do diálogo na educação quando se supera a relação unilateral e distanciada estabelecendose a relação dialogal que supõe troca porque a educação é comunhão mediatizado pelo mundo Em suas reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da liberdade Weffort 2007 comenta que a fundamentação do pensamento de Paulo Freire e principalmente sua prática pedagógica indicam uma postura contrária das concepções abstratas do liberalismo sendo sua filiação existencial bem clara Para ele Freire selou sua adesão ao existencialismo ao afirmar existir é um conceito dinâmico Implica uma dialogação eterna do homem com o homem Do homem com seu Criador É essa dialogação do homem sobre o seu contorno e até sobre os desafios e problemas que o faz histórico WEFFORT 200711 11 Ver mais detalhes em httpwwwpaulofreireorg Acesso em 15 Dez 2005 48 Para Freire 1994 o mais importante no processo de educação são as relações que se estabelecem entre as pessoas e as constantes e permanentes trocas com o outro não se esquecendo no entanto do diálogo estabelecido também com Deus com o transcendental que aponta inúmeras possibilidades de liberdade pois esta é concebida como um modo de ser do homem Freire 1994 reelabora esse ser em relação com o outro por meio da educação uma vez que compreende o outro como um ser total trazendo à tona a liberdade no processo educativo Isso significa dizer que o ponto de partida para a compreensão do mundo e do outro ocorrem em uma dimensão concreta pois a idéia de liberdade só adquire plena significação quando comunga com a luta concreta dos homens por libertarse FREIRE 2007 p 17 Essa liberdade é configurada na interrelação subjetiva do sujeito a sujeito Ainda que Freire12 use permanentemente em suas reflexões a palavra sujeito o termo significa que seu pensamento reflete a concepção personalista de pessoa pois a mesma aponta que ele vê o sujeito como ser que pensa sobre si mesmo interage com os outros e com o mundo Freire foi influenciado de diversas maneiras uma delas é o seu pensamento humanista com ênfase no personalismo de Mounier entre outras influências bem próximas dele ou seja por Martin Buber que reconhecidamente ajudou Freire a pensar a questão do diálogo como meio de libertação dos homens De qualquer forma todos os comentaristas e estudiosos de Freire são unânimes em afirmar que o Personalismo não só foi o ponto de partida do autor para compreender a pessoa do educando e do educador mas também o fundamento da capacidade criadora do sujeito de a partir de seu mundo vivido ir ao encontro de outra pessoa embora seu semelhante mas infinitamente diferente no entanto com uma capacidade de interligarse com o outro na plena realização do aprendizado e na troca de saberes Um importante comentarista e estudioso de Freire Gadotti 1996 p 108 assim se refere a influência marcadamente personalista O pensamento de Freire reflete entre outras as correntes filosóficas existencialista e personalista baseadas nas leituras dos textos de Jaspers e Mounier Carlos Alberto Torres em seu livro Estudos Freireanos aponta que três filosofias marcaram sucessivamente a obra de Paulo Freire o existencialismo a fenomenologia e o marxismo e acrescenta que a obra Freiriana repousa em um constante movimento que ele 12 Ver mais especificamente em httpwwwpaulofreireorg Acesso em 15 Dez 2005 49 batizou de Círculo Hermenêutico Esse Círculo Hermenêutico é contornado por diversas questões a cerca de sua postura pedagógica Dentro destes pólos gira constantemente a reflexão de Freire mas sua produção pedagógica se nutre sobretudo da prática é fundamentalmente reflexão sobre a prática mais que aquisição bibliográfica Em diferentes momentos sua leitura das tradições ou dos textos se vê enriquecida por novas formas de prática e por sua vez os textos lhe ajudam a expressar ou formular sua reflexão Como um elemento permanente mas que também vai sendo lido dinamicamente na memória está a cosmovisão nordestina inicial A circulação hermenêutica se enriquece e amplia no processo de maneira que poderiase representar melhor como um espiral em contínuo movimento 13 Mais adiante especifica as fontes cristãs do pensamento freiriano advindas do personalismo ao colocar que sua leitura das fontes cristãs tem lhe sido mediadas pelo personalismo de Mounier cuja influência tem persistido através dos anos O próprio Freire admite em seus escritos quando ao se referir à admiração que nutria pelas leituras de Tristão de Atayde coloca que acrescidas a esta leitura se juntariam as leituras de Maritain de Bernanos de Mounier e outros Não há somente convergência de pensamentos entre Freire e Mounier Suas trajetórias de vida embora diferentes professam e repercutem em suas maneiras de pensar e agir No que diz respeito à Freire assim escreve Aguirre 1990 p 156 Falar do pensamento de Freire é vinculálo a sua trajetória de vida Ele valoriza sua própria história bem como sua experiência e existência no mundo enquanto pessoa Vê nessa história uma possibilidade de entender outras histórias de pessoas como ele Aliás só consegue ver a história dele mesmo na relação com o outro 14 Da mesma forma expressa Lorezon 1996 p 05 em seu livro sobre a atualidade do pensamento de Mounier ao enfatizar a importância de seu pensamento e de seu testemunho de vida É que na leitura de sua obra não se pode separar a reflexão filosófica do projeto de vida e de mudança de uma civilização Tantos outros comentaristas críticos e estudiosos de Mounier dão testemunhos da vinculação peremptória de sua vida e suas obras O Profo Balduino Andreola do Centro Universitário La Salle em Canoas e da Escola Superior de Teologia EST em São Leopoldo RS é um importante estudioso das obras de 13 Ver mais especificamente em httpwwwpaulofreireorg Acesso em 15 Dez 2005 14 Ibid 50 Freire Em 1985 defendeu a tese intitulada Emmanuel Mounier et Paulo Freire une pédagogie de la personne et de la communauté pela Catholique de Louvain na Bélgica onde coloca não só as influências de Mounier no pensamento de Freire mas sobretudo buscou as convergências e complementaridades em direção a uma postura de filosofia da pessoa ao atrelar educação comunidade e solidariedade humana Andreola 2005 menciona que Mounier influenciou todos os círculos cristãos da época pois sua visão vislumbrava uma perspectiva política e de engajamento dos cristãos ávidos por realizar uma revolução humanista na história impulsionada pela ação livre e compromissada da pessoa Nesse sentido diz Andreola Freire leu Mounier e comenta As categorias pessoa e comunidade são fundantes na obra de Mounier O Personalismo como filosofia da pessoa e como processo histórico liderado por Mounier tendo na revista Esprit desde 1932 seu veículo principal significou um movimento amplo de sentido intelectual e revolucionário Além destas convergências eu busquei também em Freire e Mounier as contribuições para o diálogo intercultural15 A partir desses comentários de estudiosos de Freire fica claro a sua vinculação ao projeto personalista de Mounier considerando que as categorias escolhidas por Freire para não só anunciar uma pedagogia revolucionária centrada na pessoa e em suas expressões máximas do cotidiano mas sobretudo trabalhar o sujeito como movimento e como lugar de encontro com outros homens unidos por laços de amor e solidariedade e tendo a liberdade como condição fundamental são eixos fundantes em sua trajetória educativa ou como o próprio Freire 2007 indica A compreensão desta pedagogia em sua dimensão prática política ou social requer portanto clareza quanto a este aspecto fundamental a idéia de liberdade só adquire plena significação quando comunga com a luta concreta dos homens por libertarse FREIRE 2007 p 78 Freire identifica na pessoa e na sua realidade a forma essencial de transformar o mundo e por conseguinte a si mesma da mesma forma Mounier ia buscar no mundo concreto a fonte de todas as transformações do vivido A unidade de pensamento entre um e outro darse igualmente pelo rompimento de tudo que é definitivo formal hierarquizado e por isso alienante ao homem na busca de sua liberdade É tão por isso que ambos sempre foram considerados alijados de uma filosofia sistemática A liberdade criativa e a fé nos homens 15 Revista Eletrônica Fórum Paulo Freire Ano 1 n 1 2005 51 fogem a qualquer algema da hierarquia por isso Severino 1983 vai dizer se referindo ao Personalismo Portanto a liberdade é um movimento de um dinamismo simultâneo e essencialmente forte e frágil Por sua impetuosidade original e quase que prometéica consegue despertar e arrancar os espíritos levados e entorpecidos pelas situações que os alienam SEVERINO 1983 p 71 E nessa liberdade humana que se encontram os dinamismos de uma educação que transforma porque não aliena porque é constantemente conquistada contra os indeterminismos preenchida entretanto de transcendência da pessoa que caminha pelo suporte de ser consciente e livre Severino 1983 mais uma vez vai comentar sobre essa transcendência que se torna uma marca integrante na pessoa Consciência e liberdade as duas grandes marcas da transcendentalidade humana É graças a elas que toma forma a personalidade humana e elas transfigurarão toda a existência pessoal A existência pessoal continuará sendo uma continua e plena manifestação da bidimensionalidade do homem Um ser imanente à natureza mas simultaneamente transcendendoa SEVERINO 1983 p 72 Mounier se nega a aceitar hierarquias rígidas em nome de qualquer situação que envolva a pessoa pois isso implica em sua despersonificação A pessoa como é um projeto a vir a ser está acima de estruturas e regimes que a queriam enquadrar O que vai contar é o espaço e tempo das vivências como escreve Lorezon 1999 citando Mounier Para nós uma filosofia do engajamento é inseparável de uma filosofia do absoluto ou da transcendência do modelo humano Não quer isto dizer que uma imagem ne varietur do homem seja dada na história só à inteligência histórica Ela está sempre ligada a um tempo e a um lugar e a representação que ela tem do homem eterno é sempre particularizada pelo ponto de vista de onde ela o encara LOREZON 1999 p 06 Ao anunciar sua pedagogia transformadora Freire 1994 quis assumir com toda a totalidade desta entrega o sentido da esperança e do acreditar no homem pois só assim a educação ruma para a inclusão das pessoas seja em qualquer circunstância e lugar Foi por isso que um dos títulos de seus livros leva esse nome Pedagogia da Esperança e fica mais evidente quando ele defende que hoje mais do que em outras épocas devemos cultivar 52 uma educação da esperança enquanto empoderamento dos sujeitos históricos desafiados a superarem as situações limites que nos desumanizam a todos p 93 E nesse sentido para Freire frente aos pensamentos de um ambiente cristalizado pelo domínio técnico e ações impulsionadas por uma cultura capitalista que afasta o homem de um pensar reflexivo a esperança é o caminho profícuo para a humanização do homem e a educação vai justamente trabalhar na emancipação social Assim é que findada a dúvida colocase o Personalismo em sua justa denominação como utilizada por Mounier o qual o termo foi emprestado de Charles Renouvier na obra de igual título ou seja o próprio Mounier indica que o citado autor empregouo em 1903 para classificar a sua filosofia ainda que admita que o termo prossiga por caminhos indecisos e divergentes 16 O PERSONALISMO DE SUAS ORIGENS À ATUALIDADE A respeito desse tema se impõem colocar o quanto é diversificado a questão da origem do personalismo até se chegar em Mounier como uma explosão do sentido da pessoa dado pelo mesmo Uma das questões da história do personalismo segundo um autor americano Kevin Schmiesing16 que escreveu sobre as origens do personalismo afirma que o termo surgiu pela primeira vez nos discursos de Schleiermacher em 1799 Esse trabalho não foi traduzido do inglês até 1893 entretanto o personalismo tinha apreciado já alguma popularidade entre os americanos Bronson Alcott foi o primeiro a usar o termo definindo em um Ensaio de 1863 como a doutrina pela qual a realidade final do mundo é uma pessoa divina que sustentasse o universo por um ato contínuo da vontade criativa Em 1868 Walt Whitman elabora um ensaio intitulado Personalismo e por fim em 1903 o termo tinha incorporado o léxico francês também com a publicação de Le Personalisme de Charles Renouvier Kevin Schmiesing afirma que foi no contexto americano que o personalismo adquiriu primeiramente o caráter de uma escola da filosofia na Universidade de Boston pelo professor 16 Ver mais especificamente no site httpwww slobokancomarchives onde o referido autor discorre sobre as origens do Personalismo afirmando que foi no contexto americano que o personalismo foi moldado à categoria filosófica Ele faz um apanhado do termo dos primórdios até a atualidade 53 Bowne 18471910 que fez do personalismo um método filosófico e recolheu em torno dele um significativo número de estudantes que carregaram a escola a uma segunda geração Os mais importantes entre esta geração eram Edgar S Brightman 18841953 Albert C Knudson 18731953 Francis J McConnell 18711953 George Albert Coe 18611951 e Ralph T Flewelling 18711960 Este último trouxe a aproximação do personalismo à universidade da Califórnia do Sul onde lançou o jornal que serviria como o fórum para o personalismo americano O Personalismo europeu passa primeiramente pela Alemanha a partir de Edmund Husserl 18591938 Scheler Max 18741928 e Edith Stein 18911943 Ainda que seja difícil classificar Husserl como personalista asseveram alguns críticos da fenomenologia a verdade é que ele criou uma ciência da subjetividade do vivido colocando a pessoa como figura importante dentro de sua filosofia ainda que ele tenha sido matemático e não filósofo Treinado como um matemático as influências de Husserl incluíram Franz Brentano psicólogo que na época dava aulas sobre a consciência como ato e mais tarde Husserl foi retirar dessas explicações a categoria da intencionalidade não como ato puramente psicológico mas sobretudo como ato intencional Porém o expoente mais visível do Personalismo se desenvolveu sem dúvida nenhuma na França dos anos 30 Podese dizer que Gabriel Marcel representante do Existencialismo Cristão foi uma figura precursora da idéia de que a pessoa é eminentemente um ser transcendental pois essa é a máxima do Personalismo Marcel participou ativamente da Cruz Vermelha na 1ª Guerra Mundial onde tinha a difícil missão de comunicar aos parentes a morte e o desaparecimento dos soldados Isso o fez pensar mais cuidadosamente sobre o sofrimento e a concretude da vida das pessoas Assim como muitos pensadores que embora não tenham um estatuto epistemológico definido por rejeitarem qualquer sistema fechado de pensar Marcel era avesso à sistematização em parte pelo espírito poético e artístico que tinha tanto é que seus escritos estão em forma de fragmentos notas diários e ensaios Na sua elucidação sobre o ter e o ser apresenta as bases fundamentais de sua filosofia que se aproxima inteiramente do Personalismo quando diz O Ser tem primazia sobre o Ter O Ter é aquilo que é objetivável é a exteriorização do ser ele é o coisificarse do ser o seu vir para fora O Ter acentuando a si mesmo anula o ser mas tornandose instrumento subirá ao plano do ser Somente assim é que poderemos abordar o Ser sem transformálo em Ter em objeto em espetáculo em suma a relação SerTer é uma relação de essencial tensão 54 dialética na qual o ser está sempre ligado ao Ter e deve purificálo não deixandose absorver por ele mas orientandoo para si17 Ainda que não identificado como personalista Jacques Maritain 18821973 foi um grande contribuidor para a criação da Revista Esprit e é uma figura importante no desenvolvimento do Personalismo francês Como Mounier Maritain era ativo nas discussões políticas Em sua obra o Humanismo Integral explicita uma filosofia política que defende uma plena realização do homem e do humano dentro de princípios cristãos que serviram de base para o desenvolvimento mundial de movimento político democrata cristão iniciado na Europa e América Latina na metade do século XX Maritain e Mounier depositaram suas esperanças em uma nova civilização cristã conduzida a rejeitar o individualismo do burguês e o coletivismo social dominante na Europa em que ambos viam com preocupação e também viam na pessoa o antídoto ao individualismo excessivo Como proclamara Maritain 1962 p132 Este novo humanismo sem medida comum com o humanismo burguês e tanto mais humano quando menos adora o homem mas respeita realmente e efetivamente a dignidade humana e dá direito às exigências integrais da pessoa nós o concebemos como que orientado para uma realização socialtemporal desta atenção evangélica ao humano a qual não deve existir somente na ordem espiritual mas incarnarse e também para o ideal de uma comunidade fraterna Não é pelo dinamismo ou pelo imperialismo da raça da classe ou da nação que ele pede aos homens de se sacrificarem mas por uma vida melhor para os seus irmãos e pelo bem concreto da comunidade das pessoas humanas pela humilde verdade da amizade fraterna a fazer passar ao preço de um esforço constantemente difícil e da pobreza na ordem do social e das estruturas da vida comum é deste modo somente que um tal humanismo é capaz de engrandecer o homem na comunhão e é por isto que ele não poderia ser outro senão um humanismo heróico MARITAIN 1962 p132 Para alguns comentaristas das obras de Maritain e Mounier18 os dois se distanciaram no final dos anos 50 quando o primeiro seguiu no sentido do liberalismo americano e Mounier seguiu a trilha do humanismo europeu socialista De qualquer forma Maritain teve grande influência no Personalismo francês dando primazia a pessoa a sua liberdade e as suas reflexões evidentemente enaltecem e privilegiam a pessoa como ser transcendental quando coloca que A posição do filósofo é de que o ser humano tem dimensões espirituais e materiais como um todo unificado que participa da sociedade em prol de um bem comum O objeto de sua filosofia era esboçar as condições necessárias para fazer o indivíduo mais humano em todos os sentidos Para o humanismo integral a melhor 17 HUSMAN Denis VERGEZ 1982 18 Disponível em httpwwwmaritainorgbr Acesso em 23 Dez 2005 55 ordem política é aquela que reconhece a soberania de Deus Ele rejeita não somente o fascismo e o comunismo mas todos os humanismos seculares19 Em 1999 um jornal europeu dedicou sua edição para perguntar o personalismo ainda vive na Europa O editor do jornal Luk Bouckert colocou solenemente que existem além de centros espalhados pela Europa com França Espanha além do México e Argentina exemplos de autores personalistas atuando em várias áreas de Vaclav Havel em Praga além de pesquisas em economia e ética personalista apontando Amartya Sen ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998 Por consideraremse pontos de convergências significativas entre Sen e Mounier na atualidade é interessante mencionar alguns aspectos que se acredita ter uma ligação entre ambos principalmente no que se refere à discussão da liberdade e a dimensão expressiva que a pessoa ocupa no campo social e ético Amartya Sen nasceu na Índia na cidade de Bengala hoje Bangladesh em 1933 É economista membro do conselho do Banco Mundial Mora em Cambridge no Reino Unido onde é professor do Trinity College de Cambridge Em 1998 recebeu o prêmio Nobel em economia por suas contribuições à economia de bemestar e ao imprimir em suas reflexões a questão da pobreza suas conseqüências sobre as limitações de liberdade na vida das pessoas Para ele pensar em pobreza é analisar todas as formas como ela se manifesta pois não está somente situada no âmbito material de renda e de recursos e por conseguinte não se pode estabelecer uma generalização e aplicála da mesma maneira em todos os locais e circunstâncias pessoais É respeitado como um intelectual grandioso por suas reflexões relativas à pobreza exclusão social nos países subdesenvolvidos tendo seus discursos polêmicos provocados reações diversas O caso é que Sen tem influenciado as políticas sociais do Banco Mundial no trato à pobreza nos países subdesenvolvidos pois rompe com o discurso meramente econômico e de rendimentos para visualizar as diferenças de diversas ordens nesses países desde a cultura até a religião influenciando as políticas sociais e o modo de vida dessas pessoas Diversos fatores geográficos biológicos e sociais e outros aumentam ou reduzem o impacto exercido pela renda sobre cada indivíduo Entre os mais desfavorecidos faltam em geral determinados elementos como instrução acesso a terra saúde e longevidade justiça apoio familiar e comunitário crédito e outros recursos produtivos voz ativa nas instituições e acesso a oportunidades Muitas coisas que vivenciou em sua vida cotidiana influenciaram profundamente o modo de pensamento de Sen Fato interessante ele narra quando tinha 10 anos e um homem esfaqueado foi pedirlhe ajuda 19 Citado no site httpwwwjurisnautacombr Aceso em 23 Dez 2005 56 Era a época em que hindus e mulçumanos matavamse nos conflitos grupais que precederam a independência e a divisão da Índia e do Paquistão Kader Mia o homem esfaqueado era um trabalhador diarista mulçumano que viera fazer um serviço em uma casa vizinha por um pagamento ínfimo e fora esfaqueado na rua por alguns desordeiros da comunidade hindu majoritária naquela região Enquanto eu lhe dava água e ao mesmo tempo gritava pedindo ajuda aos adultos da casa e momentos depois enquanto meu pai o levava ás pressas para o hospital Kade Mia parava para nos contar que sua esposa lhe dissera para não entrar em área hostil naquela época tão conturbada Mas Kader Mia precisava sair em busca de trabalho e um pouco de dinheiro porque sua família não tinha o que comer A penalidade por essa privação econômica acabou sendo a morte que ocorreu mais tarde no hospital SEN 2000 p 22 Sen 2002 p24 comenta que esse fato foi uma experiência devastadora em sua vida a ponto de influenciar seu pensamento como economista Não nega que as privações de ordem econômica limitam de tal maneira a pessoa que pode causarlhe a morte pois a privação de liberdade econômica pode gerar privação de liberdade social assim como a privação de liberdade social ou política pode da mesma forma gerar a privação de liberdade econômica Ser pobre afirma Sen 2002 não significa viver abaixo de uma linha imaginária de pobreza por exemplo auferir um rendimento igual ou inferior a US2 por dia Ser pobre é ter um nível de renda insuficiente para prover determinadas funções básicas levando em conta as circunstâncias e requisitos sociais circundantes sem esquecer a interconexão de muitos fatores Trabalha com o conceito de liberdade substantiva ou seja concebida sob o ponto de vista de capacidade individual em que as pessoas caminham para desenvolveremse no sentido de valorizar as coisas importantes para elas Sen 2002 defende a tese de que a liberdade da pessoa precisa ser considerada como liberdade substantiva significando que devem escolher uma vida onde se tem razão para valorizar e consiste em liberdade como desenvolvimento tanto pessoal quanto social econômico e político Ele recomenda que em vez de medir a pobreza pelo nível de renda calculese o que o indivíduo pode realizar com essa renda a fim de se desenvolver levando em conta que essas realizações variam de um indivíduo para outro e de um lugar para outro De outra forma não teria explicação a existência nos países ricos de bolsões de pobreza entre pessoas de rendimentos médios pondera Sen Segundo artigos visualizados pela Internet podese considerar Sen como participante do circulo da economia personalista razão pela qual se cogita pontos coincidentes entre Sen e Mounier Por um lado Mounier trabalha a liberdade como condição total da pessoa tomando como referência a ação responsável portanto moral afirmando que isto é um dos componentes da ética personalista Toda ação pressupõe liberdade para agir o que levou 57 Mounier à elaboração de um esboço da teoria da ação que se traduz em 4 dimensões Dentre essas noções podemse relacionar com o pensamento de Sen quando o fazer tendo em vista o econômico e o industrial Nesta questão se aproxima de Sen quando este não ignorando o caráter econômico do desenvolvimento como liberdade imprime às suas análises uma preocupação com as questões concretas das vidas das pessoas onde as heterogeneidades pessoais diversidades ambientais variações no clima social diferenças de perspectivas relativas às necessidades de mercadorias associados aos padrões de comportamentos e a distribuição na família são fatores considerados para definir a liberdade substantiva que as pessoas tem o direito de gozar como cidadãos agir significa se construir como unidade pessoal Eis a razão pela qual a ação se liga inevitavelmente ao agir comunitário uma vez que o universo pessoal ao qual Mounier se refere tem abrangência para o outro e para o mundo Ao falar de capacidade para alcançar a liberdade substantiva Sen expressa que isto consiste nas combinações de funcionamentos cuja realização seja concreta sendo a capacidade um tipo de liberdade para realizar combinações alternativas de funcionamentos refletindo as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter fruto de uma escolha pessoal mas influenciada pela sua condição concreta de existir a ação contemplativa ou o teorizar visa estabelecer a perfeição e a universalidade aspirando um reino de valores éticos válidos para toda a humanidade Sen igualmente pauta suas reflexões sobre as questões sociais em valores éticos variados respeitando as diferenças a ação possui um plano comunitário indispensável á humanização do mundo No entanto ela deve ser integral ou seja deve penetrar em todas as esferas da vida pessoal e favorecer a realização da pessoa como ser de comunhão com os outros no mundo A liberdade substantiva consiste igualmente em penetrar nas esferas humanas e favorecer a realização do desenvolvimento como um processo de eliminação de privações de liberdade e de ampliação das liberdades substantivas Mais do que isso o desenvolvimento diz respeito ao pleno desenvolvimento da pessoa e as oportunidades e acesso que ela pode ter para potencializar ou buscar sua qualidade de vida material e pessoal Mounier 1963 tem uma posição marcadamente existencial por voltarse para a análise da existência humana concretamente vivida pois considera o homem um projeto a 58 vir a ser longe de determinismos de qualquer ordem quer seja econômico ideológico religioso político e social A partir dessa perspectiva existencialistapersonalista é possível estabelecer uma interlocução com Sen quando este afirma que no contexto de análise das relações entre renda e bem estar considerase muitas diferenças que podem determinar a qualidade de vida da pessoa Entre ambos permeia o cotidiano que perpassa as relações sociais e interpessoais O homem não pode ficar aprisionado em análises definitivas e deterministas por mais que o capitalismo o empurre à alienação Em sua crítica a sociedade moderna Mounier não nega a influência do capitalismo e em certa medida o poder econômico que transcorre no desenvolvimento da humanidade Como Sen Mounier alega que o econômico é apenas um dos determinantes da vida não é a único e não justifica as outras questões do ser Podese afirmar que em ambos a idéia de que as questões materiais da existência perpassam pelas dimensões pessoais sociais existenciais e outras são marcantes fugindo a uma análise essencialmente econômica A capacidade desenvolvida por Sen cuja dimensão aponta para um tipo de liberdade ou seja para a liberdade substantiva de escolher a vida que se tem razão para valorizar recai igualmente na temática da liberdade trabalhada por Mounier no enfoque de uma liberdade com condições isto é liberdade de pessoas situadas no mundo e perante os valores condicionada e situada pelas situações concretas da cotidianeidade A questão da liberdade é um dos temas mais polêmicos da sociedade contemporânea Mounier não se furtou de questionála ressaltando alguns aspectos da liberdade ao afirmar que a liberdade não é uma coisa é resultado de um ato concreto demanda de uma decisão e uma ação a qual consiste em escolher entre possibilidades ou alternativas reais existentes De outro lado Sen trabalha com a questão da liberdade tanto no seu sentido formal como por exemplo liberdade política e direitos civis básicos que devem favorecer a emergência de valores sociais consensuais quanto com o sentido da liberdade enquanto desenvolvimento pessoal social e comunitário pois afirma que ela é exercida nas variações pessoais heterogêneas diversidades ambientais culturais climáticas e na própria distribuição na família A privação de capacidades é vista por Sen pela pobreza que impossibilita as pessoas de desenvolveremse pelas liberdades substantivas O desenvolvimento desse modo é considerado como um processo de eliminação de privações de liberdades e de ampliação das liberdades substantivas Do mesmo modo Mounier 1964 destaca a liberdade como responsabilidade ou seja ela é resultado de uma atitude interna porém condicionada à liberdade de outros fatores num compromisso consigo mesmo e com o outro A liberdade 59 vivida como privação é no seu sentido negativo a liberdade existe também no seu sentido positivo ou seja no momento em que favorece o homem em desenvolverse 17 A PESSOA NO PERSONALISMO Dado as discussões dos antecedentes do personalismo diversos pontos gerais podem ser propostos para caracterizar as aproximações personalistas de diversos autores que embora de filosofias e áreas diversificadas do pensamento podem encontrar alguns pontos comuns Primeiro a pessoa humana está na primazia das discussões Em segundo a estrutura fundamental da pessoa humana é percebida enquanto uma combinação da matéria e espírito esta aproximação dialetizante leva a crer no homem enquanto transcendência marca que configura a maioria do pensamento de autores citados e em terceiro lugar a pessoa é concebida como um ser cuja natureza implica na comunidade O Personalismo continua a atrair filósofos teólogos e pessoas que em nome da ética e da diversidade de seus pensamentos e ações políticas e sociais optam em favor da pessoa e da comunidade Pensar em Personalismo é reportarmonos indiscutivelmente à Emmanuel Mounier 19051950 Ele foi um das figuras seminais na consolidação do pensamento personalista na França quando pessoalmente e sentindo na própria pele foi protagonista da vida intelectual francesa dos anos de 1930 até 1950 Ele dizia que todo o sistema do pensamento que ignorar a realidade da união do corpoespírito é errôneo e tende freqüentemente a ser perigoso porque o homem é corpo exatamente como é espírito não havendo mais a dicotomia que muito tempo permaneceu na filosofia Ao definir Personalismo Mounier já adverte que não é um sistema pois embora não fugindo à sistematização a existência é permeada de pessoas livres e criadoras pelo princípio da imprevisibilidade pela qual é afastada qualquer possibilidade de sistematização definitiva È tão somente por isso que declara Por isso e embora por comodidade falemos do personalismo preferíamos falar dos personalismos e respeitar seus diversos caminhos MOUNIER 1964 p17 Em suas obras Mounier continuadamente reflete sobre a pessoa humana mais especificamente no Personalismo de 1949 edição em francês tempos antes de sua morte prematura em 1950 aos 45 anos já indica as discussões acerca da pessoa contrapondo a noção de indivíduo A pessoa é uma existência incorporada não existindo a dualidade corpo e 60 alma pois é presença no mundo é ao mesmo tempo corpo e alma numa reciprocidade indefinida Para melhor clarificar a contraposição entre indivíduo e pessoa elaborei o quadro a seguir Quadro 1 Contraposição entre indivíduo e pessoa INDIVÍDUO PESSOA Atenção voltada para si próprio Atitude de isolamento e defesa Ignora a liberdade do outro Ser egoísta Ocupado com ele mesmo Vê no outro a limitação de sua liberdade Sentido somente do eu Atenção voltada para si e p os outros Atitudes de compartilhamento Vê no outro a extensão de sua liberdade Ser disponível e aberto ao outro Ocupado também com os outros O outro não o limita o faz crescer e ser Sentido comunitário nós Fonte elaborado pela autora A partir daí vêse a diferença fundamental entre pessoa e indivíduo e mais precisamente apreendese a pessoa no sentido comunitário de viver continuadamente em relação com o outro com o mundo mas também voltado para si mesmo num sentido transcendental Longe de conceber a pessoa abstratamente o personalismo assevera muito bem o caráter concreto situado e engajado da pessoa quando lhe são atribuídos a materialidade de sua existência O meu feitio e minha maneira de pensar são amoldados pelo clima a geografia a minha situação face ao globo a minha hereditariedade e talvez até pela ação maciça dos raios cósmicos MOUNIER 1964 p 17 Aqui se explicita os condicionamentos materiais pela qual a pessoa está situada muito embora eles por si só não sejam suficientes para reunir as determinações transcendentais de que tanto reflete Mounier e os autores personalistas sobre a pessoa Não se trata tão somente de colocála como a mais maravilhosa criação mas é a única realidade que conhecemos e que simultaneamente construímos de dentro Sempre presente nunca se nos oferece MOUNIER 1964 p19 E por mais que a pessoa seja constantemente massacrada em seus direitos e dignidade aviltada em sua condição inalienável de seu existir no mundo tanto materialmente 61 quanto em outras esferas de sua vida ainda assim será sempre um homem pois o personalismo centra suas reflexões na unidade da humanidade respeitando em todos os sentidos a pessoa o ser humano que deve ser respeitado em todas as circunstâncias e momentos de seu existir chegando a afirmar Mounier 1964 p 73 um homem mesmo diferente mesmo degradado é sempre um homem a quem devemos permitir que viva como um homem Ricoeur 1968 vai dizer sobre o personalismo que é uma ética concreta independente da fé cristã independente quanto a suas significações dependente quanto ao ato de seu aparecimento em tal ou tal consciência sendo seu mérito vinculado originalmente sua maneira de filosofar ao afloramento ao nível da consciência de uma crise de civilização e de ter tido a ousadia de visar para além de qualquer escola filosófica uma nova civilização em sua totalidade p 137 Ora o que Mounier criticava era justamente o que ele chamava de desordem estabelecida conceito que irei explicitar mais adiante ou seja a sociedade econômica profundamente individualista e sobretudo privada do horizonte da transcendência Ele se deu conta de que para contestar a moral burguesa com base nas verdades de fundo da fé cristã era preciso pôr em plena luz a maneira como esta se afastara das verdades que com palavras pretendia proteger e nisso residia sua crítica a civilização constantemente em crise Nem por isso entretanto resguardava ou amenizava suas repreensões para proteger o cristianismo muito embora fosse profundamente adepto aos ensinamentos cristãos Aliás Mounier o principal representante do personalismo cristão era extremamente generoso em suas criticas e comentários sobre as questões as quais não concordava Ao comentar sobre uma filosofia um sistema de pensamento ou uma questão e fenômeno qualquer vivido em sua época Mounier ponderava as várias perspectivas do fato ou seja por mais que fosse sumariamente contrário a uma posição se tivesse que dali extrair algo de bom e positivo não se furtava em dizer e logo em seguida propunha seu pensamento sobre aquele determinado fato outrora criticado Foi assim por exemplo com o cristianismo marxismo democracia e tantas outras questões com as quais mantinha uma atitude dialogal presente em suas obras e reflexões variadas na Revista Esprit desde o seu surgimento em 1932 até os últimos dias de sua vida em 1950 O que Mounier pretendia em suas reflexões era pôr em evidência os valores espirituais e afirmar sua primazia sem no entanto incorrer no erro doutrinário ou moralista e 62 assegura ao mesmo tempo se contrapondo ao marxismo que segundo ele não dá um valor devido a pessoa Mas nós afirmamos contra o marxismo que não há civilização e culturas humanas que não sejam metafisicamente orientadas Só um trabalho que vise para além do esforço e da produção uma ciência que vise para além do deleite e finalmente uma vida pessoal em que cada um se dedique a uma realidade espiritual que o transporte acima de si mesmo são capazes de sacudir o peso de um passado morto e de criar uma ordem verdadeiramente nova MOUNIER 1976 p 15 Essa nova ordem seria a civilização personalista que se apresenta como um caminho frente à crise que nos aprisiona não meramente como uma crise econômica ou política porém como um desmoronamento de uma área de civilização cristalizada e legitimada e ao mesmo tempo minada pela era industrial capitalista nas suas estruturas liberal na sua ideologia burguesa na sua ética MOUNIER 1976 p 16 Eis o diagnóstico que Mounier traçou de seu tempo Mesmo depois de passados 50 anos a crise persiste o capitalista elevase aos mais altos cumes de exploração o consumismo dita regras de conduta e moral a ética continua burguesa mas com espessuras muito mais largas de ideologias intencionalmente construídas para aprisionar a pessoa com requintes de simbolismos e simulações que escapam até mesmo aos mais bem intencionados defensores de uma ética cujo fundamento primeiro e derradeiro seja a pessoa E qual seria a civilização personalista Mounier traça um perfil dessa nova ordem em especial na sua obra Manifesto ao Serviço do Personalismo orientando primeiramente suas reflexões para a pergunta essencial o que é a pessoa Porque não se pode compreender personalismo sem se referir exaustivamente ao sentido de pessoa dada por Mounier 1967 Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência e de independência de seu ser ela alimenta essa subsistência por uma adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por uma tomada de posição responsável e uma constante conversão desse modo unifica ela toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo mediante atos criadores a singularidade de sua açãoMOUNIER 1967 p 89 A propósito dessa definição não rigorosa como o próprio Mounier adverte entende se que podemos analisar vários aspectos a pessoa é um ser transcendente por mais que não queira admitir e para lá de suas recusas é um ser eminentemente espiritual entrelaçado por 63 caminhos imprevisíveis por argumentos desconhecidos que fogem a qualquer explicação científica e material Outros autores ligados à Filosofia da existência problematizaram em seus pensamentos a questão do ser humano obviamente tema presente e persistente em suas obras por tratarse de questões existenciais principalmente autores da filosofia contemporânea iniciando em Soren Kierkegaard filósofo sob o qual pesa o reconhecimento de ser o precursor do existencialismo no que comenta Nunes 1967 p 53 o qual se opôs a Hegel e a idéia de sistema foi um desses pensadores solitários em completa discordância com a época em que viveu Por ser Kierkegaard um grande contestador das contradições da natureza humana rompe com o racionalismo cartesiano e introduz em suas reflexões o impulso da fé religiosa Em suas obras simbolizadas por pseudônimos principalmente Postscriptum sustentava que uma sistematização lógica para a existência era impossível uma vez que a existência é incompleta e está evoluindo constantemente20 Em Regiões dos Filósofos 1996 p 34 Ricoeur vai declarar O que não se refuta em Kierkegaard é o existente o existente real autor de suas obras e o existente mítico filho de suas obras Não refuta Kierkegaard quem o lê medita e em seguida faz a própria tarefa com o olhar fixo na exceção O cristianismo por outro lado fornece as chaves para a abertura da pessoa em seu sentido espiritual Quando Mounier 1972 p 75 reflete que a realidade viva do homem está sujeita a duas ameaças que são a subjetividade e a objetivação indica os descaminhos segundo os quais a pessoa perde sua pessoalidade no processo de objetivação Ele assegura que O espiritual isto é o pessoal é pelo contrário o que não pode jamais tornarse objeto ou o espiritual isto é o pessoal estamos com esta equação no núcleo da afirmação cristã Ela equivale a esta outra o homem real é o mesmo que o homem pessoal Consoante esta afirmação a pessoa se revela como um ser espiritual mas não como um ser abstrato dirigido somente ao infinito mas como um ser real concreto voltado para Deus a fim de realizar um diálogo familiar sem uma relação de dominação como o senhor e o escravo mas de fraternidade entre as partes O caráter transcendental da pessoa e da sua relação com a natureza que é manifestação do divino não é propriedade do homem mas uma espécie de sacramento 20 Disponível em http wwwcobrapagescombr Acesso em 24 Jan 2006 64 natural que contribui para voltálo para Deus como o homem contribui por sua vez no sentido de orientar a natureza para Deus MOUNIER 1972 p77 A pessoa é tão atrelada às suas condições de vida material e espiritual que Mounier indica que ao falar de revolução material é invariavelmente remetermos a noção de revolução espiritual de tão engendradas que são pois ele afirma que não há revolução material fecunda cujas raízes não sejam espirituais e não seja orientada espiritualmente Além do mais a pessoa em sua relação com o mundo se entrelaça de maneira tão estreita que pensar e agir passam a fazer parte de uma mesma realidade dando sentida a sua vida material e espiritual concomitantemente num espírito manifestado numa carne num corpo situado num tempo e num lugar ancorados numa história enfim Nisso o tema da corporeidade aparece numa análise igualmente relacional no universo o qual o homem habita e reafirma a união indissociável entre corpo e espírito conforme mencionado por Mounier quando se refere ao corpo que é o instrumento de acesso ao outro é um intermediário nato quando ele me une ao universo que é por ele penetrado de todos os lados no tempo e no espaço nos homens e em suas comunidades que desde a comunhão conjugal até a comunidade popular têm nele sua base carnal mas levada pelo movimento do espírito MOUNIER 1972 p 79 A pessoa é livre e como tal sempre aberta a novas atitudes mesmo negando sua liberdade já faz uma escolha e todas as opções que elege o faz mediante atos intencionais e compartilhados com outro ser nunca isolados embora individuais mas sempre em relação com o outro pois a liberdade do homem é liberdade duma pessoa desta pessoa assim constituída e situada em si própria no mundo e perante os valores MOUNIER 1964 p 116 Assim em todos os momentos e circunstâncias a pessoa está atrelada a liberdade embora as opções tenham um grau de simplicidade e complexidade conforme a escolha e a situação Decidir o que vestir para ir ao trabalho por exemplo é bem mais simples que uma escolha profissional Entretanto existem escolhas irreversíveis que uma vez optada não têm como voltar atrás estão cristalizadas A liberdade está presente na vida não como fala Sartre como uma condenação mas sobretudo como um dom a qual temos que continuadamente conquistar pois está posta como uma gratuidade Mounier 1964 sempre confirma a liberdade em sua manifestação situada e engajada no mundo pois os acontecimentos ou melhor as liberdades de ontem são sempre abalados pelas liberdades de amanhã 65 Ela também tem sua dimensão de transcendência quando está vinculada na condição total da pessoa quando o homem é inteiramente livre e quando o quiser onde as liberdades concretas não são condições essenciais ao exercício da liberdade como no exemplo de Mounier 1964 Esta é a liberdade que assiste ao deportado nos próprios momentos em que parece encerrado na escravidão e na humilhação Neste sentido podemos dizer que as liberdades concretas não são indispensáveis ao exercício da liberdade espiritual que assim manifesta nos momentos de grandeza a sua transcendência às condições de fato MOUNIER 1964 p116 Mediante o exercício de liberdade a pessoa vai sendo com o outro fazendo e fazendose junto com o outro como o mundo nas atitudes cotidianas nas relações interpessoais institucionais uma vez que sua presença no mundo é permeada transpassada pelas opções que continuadamente faz na sua cotidianeidade As suas escolhas porém não são capazes de ser reconhecidas se não for segundo uma escolha responsável pois não é somente ruptura é acima de tudo adesão mediante a qual O homem livre é um homem que o mundo interroga e que responde é o homem responsável A liberdade assim entendida não isola mas une não permite anarquia mas é na verdadeira acepção destas palavras religião devoção Não é o ser da pessoa mas o modo como a pessoa é tudo o que é e éo mais plenamente do que por necessidadeMOUNIER 1964 p123 Desse modo a liberdade implica em um ato responsável que tem conseqüências que se projeta precisa ser compartilhado para não ser configurado como um ato precipitado por um ímpeto inconseqüente e desvairado É por isso que a liberdade da pessoa não é total e irrestrita não posso agir de qualquer modo nem dispor de minha liberdade arbitrariamente ela é um ato definitivamente responsável A pessoa é sempre relação com o outro impossível portanto realizar um ato absolutamente isolado pois qualquer ato tem um alcance por menor que seja sempre respinga na sua condição de pessoa no seu modo especificamente de existir pois se constitui como que numa perspectiva de universalidade ou seja voltadas para o mundo e para outras pessoas A interlocução com o outro é tão arraigada que Mounier 1964 p 64 chega a dizer que a pessoa não existe senão para os outros não se conhece senão pelos outros não se encontra senão nos outros A experiência primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa 66 E mais o sentido comunitário da pessoa chega a seu ápice pelo entrelaçamento de vivências e encontros seguido do sentido que a vida tem em projeção ao outro que me é diferente por mais diferente e estranho que seja é a única realidade conjunta de minha humanidade na medida em que sou com o outro e para o outro ou melhor dizendo como Mounier só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar É por isso que o sentido comunitário da pessoa é continuadamente trabalho por todos os personalistas pois está diretamente fundamentada na vivência com outro tendo como raiz relacional o mais característico da pessoa sua humanidade embora incorporada por sua individualidade com sua maneira particular de ser com a sua história as suas experiências cotidianas É sempre voltada para uma atitude relacional com o outro tendo o mundo como mediador de suas relações e a filosofia como auxiliadora das reflexões sobre o ser do homem na sociedade De qualquer forma todos os aparatos de cobertura para a livre iniciativa humana repousam na noção de respeito a sua dignidade que tem sua expressão máxima na vida cotidiana das relações desde às de parentesco na intimidade de um lar às de amigos conjugais de trabalho vizinhança Até as relações distantes devem ser permeadas pela ética solidariedade amor perdão e outros suportes que certamente enriquecem as relações interpessoais Até a ciência se não caminhar para atingir aquele homem ou mulher lá onde vivem em suas angústias e dores alegrias e sabores onde a ciência irá buscar sua verdade Fora do humano Impossível Por isso Mounier tece sua filosofia de ação e engajamento nas relações intermediadas pelo amor e pela liberdade Vale dizer que alguns percebem a categoria amor solidariedade perdão entre outras como meramente um trabalho de autoajuda Não desmerecendo grandes autores que brilhantemente vêem na autodeterminação a grande saída para as angustias e limitações humanas posso afirmar com propriedade que tais investidas na realidade vivida e cotidianamente construída pela pessoa extrapolam o sentido da autoajuda elas se voltam para o desvelamento das potencialidades para o despertar da pessoa não meramente como sujeito contemplativo mas sobretudo como pessoa que tem direitos que caminha em busca de ser mais 67 18 O PERSONALISMO TRADUZIDO NO MOVIMENTO E NA REVISTA ESPRIT Existe uma pluralidade de concepções acerca do personalismo enquanto movimento filosófico que se originou na França nos anos 30 e influenciou sobremaneira todo um pensamento na busca de um novo humanismo um humanismo concreto iniciado por Mounier Mas falar do personalismo é definitivamente associálo não somente como movimento filosófico ou como uma nova maneira de pensar o homem é concebêlo como movimento político cuja tônica de sua expressão se publiciza na Revista Esprit fundada por Mounier em 1932 antes entretanto de ser discutida cuidadosamente por seus integrantes que teciam as circunstâncias para este movimento Assim como menciona Mounier 2007 na obra El compromisso de la accion Em 1930 durante una conversacíon com Jacques Maritain surge la idea de fundar una revista que fuera el canal de sus inquietudes Dos años más tarde durante el verano de 1932 se reunió em la montaña con una quincena de jóvenes preocupados todos ellos desde suas diversas ideologías por la gran crisis de la civilizacíon occidental Deciden hacer un frente común y para ello fundar uma revista Esprit órgano de este nuevo movimiento personalista MOUNIER 2007 p 16 Ao redor de Mounier que se encarrega de ser a expressão do grupo dirigindo a revista juntouse a ele jovens intelectuais que comungavam na época de dois sentimentos e convicções O primeiro e sem dúvida o impulsionador do movimento foi a indignação diante das atrocidades do regime de Vick as mazelas advindas do período pósguerra e seu massacre à dignidade humana Eram jovens chocados com toda ordem de miséria injustiça desamor e caos perante a crise econômica de todo o ocidente capitalista e como conseqüência o fracasso das instituições no trato destas questões O segundo é a convicção de que são homens que crêem têm esperança e que clamam por valores espirituais Não foi a toa que o primeiro número da revista vinha como uma sugestiva interrogação a revolução será moral ou não será Apesar de a revista nascer sob a égide de pensadores cristãos e mais especificamente católicos como o era Mounier a revista tinha a preocupação de agregar várias tendências religiosas ou ao contrário até de tendências atéias pois não descriminava ninguém e nenhuma posição Lorezon 1996 p 40 ao se referir a revista declara A revista e o 68 movimento Esprit foram pioneiros dessa abertura de pensamento e ação num momento histórico em que diferentes sistemas ideológicos e religiosos atingiam um ponto culminante de sectarismo A Esprit foi a expressão máxima de dialogia dos diversos modos de pensar e ver o mundo vindo a preencher uma lacuna em torno dos grandes debates das mazelas que afligiam o mundo no período das duas grandes guerras Ela tinha um caráter também comunitário pois todos os assuntos abordados passavam por discussões entre os grupos que compunham a revista Justamente por abrigar várias tendências religiosas e filosóficas o produto final dos artigos era riquíssimo em conteúdo e vivência dos seus autores E a tônica de todas as discussões era a indignação de um lado e a afirmação espiritual de outro e isso ia tecendo a essencialidade da revista Para um bom número deles ou mesmo a maioria cristãos ou judaicos estes valores são de origem religiosa têm um nome religioso mas vão renunciar a darlhes o seu nome religioso têm a preocupação que os que são agnósticos ou ateus que não têm religião possam exprimirse à igualdade em nome de valores que compartilham O próprio nome Esprit é uma palavra que estava na moda e ligeiramente evidente a este momento de conturbações e convulsões sociais e crises religiosas O diagnóstico da época segundo Carlos Díaz 2006 um dos principais biógrafos de Mounier é que a civilização européia ia mal porque fez desde vários séculos um erro sobre o homem devido ao individualismo liberal ou que chama Mounier a desordem estabelecida nos planos econômicos políticos culturais morais e religiosos Desde o começo Mounier elabora com Jean Lacroix uma visão do homem a sociedade e a civilização desejável onde o tema da pessoa desempenha o papel central a pessoa é outro coisa que o indivíduo 1967 p38 diz e a pessoa desabrochase apenas no conjunto das suas relações com o mundo o passado o futuro e com outro no sentido comunitário Se o Personalismo não se confunde com coletivismo e individualismo tampouco se identifica com o chamado comunitarismo sentido pejorativo da comunidade nos dias atuais Tratase de preparar fortemente uma refundição da civilização atacando o egoísmo do indivíduo os regimes totalitários que golpeiam a pessoa para realizar uma revolução total que a coloque no centro E essa revolução referese a dois domínios nos quais se deve avançar juntos e que não se deve privilegiar um em proveito do outro Esses dois domínios colocados por Guy 69 Coq21 em Conferência La Revue Esprit a Lyon em Paris em 2006 referemse a primeiro o domínio das estruturas quais sejam as estruturas econômicas e políticas que devem ser transformadas anticapitalismo antiliberalismo parlamentar antiburguesia Segunda dimensão os homens Cada um deve ter a preocupação de desenvolver nele a pessoa A pessoa autêntica não é o indivíduo dos individualistas tornarse uma pessoa é uma luta perpétua contra os conformismos os hábitos os vícios Então o movimento Esprit queria reconsolidar o espiritual estes famosos valores espirituais do conservantismo burguês que o monopolizou desde a Revolução francesa e desde a República E o que se reclama do espiritual é a direita conservadora E Mounier na sua luta contra a desordem estabelecida toma primeiro como alvo os que se dizem espiritualistas Ele tem a preocupação de fazer encontrar a revolução que lhe é uma expressão muita cara retorna com freqüência a ela para designar sua luta pelos que sofrem da injustiça da exclusão da opressão e por conseguinte o movimento operário está incluída aí por isso os intelectuais da Esprit irão ao encontro do movimento operário Paralelamente à criação da Esprit surge o movimento Terceira Força que é a prolongação da revista voltada para as ações de ordem política sendo seu diretor George Izard Em 1936 devido a vários desentendimentos há a separação entre a revista e o movimento Isso porque segundo o próprio Mounier a revista estava se afastando de sua essência que era a de ser um órgão de divulgação pois para ele a Esprit não tinha o caráter de identificação de qualquer partido político com o objetivo de exercer qualquer espécie de poder Na época Mounier afirmava que a Esprit tratavase de um movimento que prepararia para a revolução uma espécie de movimento de vanguarda e nesse cenário a revista vem em segundo plano E a Esprit seria por conseguinte a revista do movimento como uma espécie de órgão de propaganda Em 1934 Mounier vai se afastar de 03 pessoas por acreditar que o movimento vai ceder às tentações parlamentares e eleitorais De fato Mounier tinha razão pois a Terceira Força vai inserirse gradativamente no jogo das forças políticas tanto é que Izard será deputado pela Frente Popular em aliança com o movimento Mas no momento em que Izard tornase deputado em 1936 e a Terceira Força tornase quase um partido político a ponto de 21 Filósofo francês professor associado ao IUFM Versailles Trabalha principalmente sobre as temáticas de educação de escola ligadas à democracia civismo e a aprendizagem e vinculadas à laicidade e aos valores republicanos Presidente da associação dos Amigos de Emmanuel Mounier desde a morte de Paul Fraisse que era o último da geração de Mounier a ocupar a associação é membro do Comitê de redação da Revista Esprit 70 indicar candidatos à eleição podese dizer que as relações entre a Revista Esprit e o movimento são definitivamente rompidas Então o movimento Esprit queria consolidar o espiritual Não os valores da direita conservadora nem os valores dos espiritualistas e moralistas tampouco os conversadores e reacionários A sua revolução espiritual tem a preocupação de ir ao encontro dos anseios e necessidades das pessoas que sofrem injustiças que são provocadas pelo regime burguês e capitalista É por isso que sua revolução será espiritual ou não será estando atrelada evidentemente ao caráter concreto da ação pois poderia correr o risco de transformase em meramente idealista Foi então dentro deste contexto econômico social político e ideologicamente corrosivo do ideal burguês que surgiu a Esprit Se por um lado congregou importantes aliados estudantes intelectuais e jovens com sede de justiça e paz por outro ganhou muitos inimigos Estes alvos de severas e duras críticas por parte de Mounier e de toda a revista pois os escritos eram de uma austeridade que chegava fundo aos corações e mentes empedernidos pelo ilusório mas existente mundo burguês capitalista e totalitário Frente a estas crises Esprit quis ser o lugar comum de encontro unido por um mesmo amor ao homem sem renegar no entanto a si mesmo Nesse movimento alguns saiam de sua preferência católica outros se convertiam à descoberta da Igreja de Cristo redescobrindo seus próprios caminhos A revista não queria aprisionar ninguém com suas idéias e crenças era um espaço de reflexão onde todos eram respeitados na sua maneira de ser e pensar Diante de tais diversidades de pensamento um ponto em comum os aproximava a indignação diante das mazelas dos mundos e das injustiças sociais Como bem comentam Blas e Pintos na obra de Mounier 2007 p 17 Ni capitalistas ni marxistas ni fascistas ni comunistas Mounier y sus compañeros quieren trabajar unidos para hacer un poco de luz sobre o hombre en uma lucha contra la injusticia y a la miseria Em 1939 logo após o início da 1ª Guerra Mundial Mounier e seus colaboradores da revista se confrontaram contra todos os horrores da guerra principalmente contra o nazismo e a posição da França frente à guerra Assim a revista sofreu o primeiro ataque de fechamento mas nem por isso a equipe se intimidou e paradoxalmente agregava mais simpatizantes entre eles alguns intelectuais influentes da época Somente em novembro de 1940 a revista voltou a circular ainda embutida de um espírito combativo contra as opressões materiais que afetavam as classes menos favorecidas aos ataques visíveis contra a liberdade da pessoa pelo qual o nazismo e fascismo faziam sua bandeira principal 71 Entre agosto de 1941 e 1944 os nazistas fecharam novamente a revista e Mounier é preso e transferido para ClemendFerrand acusado de ser líder da clandestinidade na região de Lyon Aos seus pais escreveu da prisão sou profundamente feliz por haver passado por aqui Um homem necessita conhecer a enfermidade a desgraça ou a prisão 2002 p 15 Em 1944 Mounier voltou à Paris tendo que reiniciar sua jornada na Esprit reunir as pessoas recriar o entusiasmo perdido com o fechamento da revista motivar a equipe do movimento e novamente chamar a atenção dos leitores Da equipe anterior conseguiu reunir novamente Lacroix Marroux Fraisse Coguel dAstorgue Humeau e depois grandes nomes como Jean Marie Domenach e Paul Ricoeur e após muitos outros Carlos Diaz nos dirá que a prisão de Mounier constituiu um verdadeiro batismo de fogo para Esprit A revista passa ter uma grande credibilidade entre os leitores e a sociedade francesa em geral a tal ponto de dividir opiniões criar polêmicas e evidentemente sua tiragem cresce assustadoramente chegando a circulação de 13000 mil exemplares E a revista ia ganhando espaço a passou a ser uma entidade de respeito que tem um sentido e significado Como em 1944 se instaurou na França o governo provisório sob a direção do General Charles de Gaulle vinculado ao movimento de resistência o diretor da revista Mounier se instala em uma comunidade por ele fundada ChântenayMalabry vivência concreta do personalismo comunitário Nos anos seguintes a revista continua a ser um referencial de debates críticas e discussões sobre a vida a existência a dimensão política econômica social enfim a Esprit aborda diversos temas que interessam dos jovens aos intelectuais Como Mounier era um homem que não separava o pensamento da ação e sua vida foi uma eterna busca entre essas duas dimensões não bastava só a revista era necessário recriar todo um movimento para fazer jus dar vida e relançar os grupos e a reativação dos grupos vai operarse por meio de uma pequena publicação que é o Jornal Interno órgão de comunicação dos grupos Nesse período Mounier tem dois grandes motivos para relançar o movimento Esprit Por um lado conta com a colaboração de um editor um colaborador que está para consagrar sua energia é Paul Fraisse que vai ser o artesão da reativação do movimento Por outro lado Esprit encontrase atravessada como outras revistas um período de crise É uma das primeiras etapas da crise da imprensa que vai fazer desaparecer na França um bom número de publicações procedentes nomeadamente da Resistência São as primeiras crises do papel afetando obviamente outras revistas também O preço do papel tem um aumento espantoso a crise econômica é visível e isso afeta o poder de compra dos 72 franceses e no mais confeccionar uma revista de qualidade fica muito caro Esprit é uma revista que se auto sustenta com os assinantes e como a crise é geral é necessário que encontre o seu orçamento e este são as suas vendas e nesse sentido teve que se adequar aos apelos comerciais sem no entanto perder a convicção dos valores de luta o ideal de revolução espiritual Então passa a ser verdadeiramente uma revista movimento mas é também uma revista que agrega muitos grupos porque se abre à diversidade É uma revista de encontros ela integra outras correntes de pensamentos a única corrente de pensamentos dos seus fundadores Nesse quadro o movimento é concebido precisamente ao mesmo tempo como o lugar de expressão de uma identidade mas igualmente como o lugar de construção de uma nova identidade a partir destes encontros Há o problema da dupla pertença e é às vezes difícil ter ao mesmo tempo uma diversidade e o lugar de expressão de uma identidade específica E entre estes dois objetivos vão desenrolarse finalmente entre estes dois pólos a revistamovimento é algo de homogêneo e ao mesmo tempo o acolher da diversidade Dois objetivos contraditórios entre os quais vai oscilar a vida dos grupos e ao mesmo tempo conciliáveis E até hoje a revista é um dos grandes destaques na vida intelectual da França 19 A PESSOA DE MOUNIER testemunho de uma práxis sócioespiritual O século XX foi cenário de uma batalha entre duas poderosas ideologias de um lado o coletivismo que embasava os ideais do Comunismo Nazismo Fascismo em oposição à ideologia coletivista tinhase o individualismo O coletivismo promovia os valores gerais da sociedade com desapreciação dos indivíduos O homem só era importante para a sociedade na medida em que este servia a mesma Já o individualismo adotava uma perspectiva contrária exaltava o individuo em contraposição a sociedade era um indivíduo insolidário que buscava seu próprio bem e aplicava a lei do mais forte Essas ideologias geraram poderosos movimentos sociais e políticos que aderiram de forma muitas vezes trágica a história do século XX As duas Guerras Mundiais estão ligadas à intenção dos totalitarismos de impor sua visão de mundo e conseqüentemente aumentar seu poderio 73 Esse cenário trouxe a muitos a necessidade de revalorizar a pessoa concreta e existente tanto do ponto de vista intelectual e conceitual quanto do ponto de vista da sociedade Foi nesse período histórico que se desencadearam as primeiras premissas no câmbio da perspectiva supracitada resultando nas idéias de Gabriel Marcel que experimentou de modo muito forte a importância que cada pessoa apresentava e percebeu também que a felicidade de algumas pessoas dependia de umas poucas palavras um sim ou um não O autor pontuava que o mais importante era a pessoa concreta e individual e não suas abstrações Nesse mesmo período começaram a surgir às primeiras teorias acerca da pessoa denominada de filosofia personalista tendo como um de seus precursores Emannuel Mounier O personalismo é uma antropologia que surgiu na Europa tendo como objetivo oferecer uma alternativa tanto ao individualismo quanto ao coletivismo frente ao individualismo que exalta o indivíduo autônomo O personalismo remarca o dever de solidariedade do homem com seus semelhantes e com a sociedade Em meio à crise do século XX Mounier desenvolve a concepção de que crise não era somente um desajuste técnico senão algo mais profundo era uma crise de estruturas e sobretudo de atitudes morais A solução não podia ser somente a reforma das estruturas que ignorasse a crise espiritual nem uma reforma moral que ignorasse a crise das estruturas Como o nome de sua filosofia indica é uma reflexão centrada na pessoa Para Mounier 1964 a pessoa é a realidade profunda do ser humano em si mesmo inobjetivável porque o ser humano nunca pode ser reduzido a um objeto A idéia do pensamento do filosofo é que o ato fundamental de constituição da pessoa não é um ato de individualidade e sim de comunicação Este pensamento vai além das posições conservadoras e quer chegar a um sentido mais amplo de justiça inspirado pela generosidade A Filosofia de Mounier ocorreu mediante várias reflexões acerca de sua própria vivência pois ele sentiu na pele os horrores dos conflitos internacionais As grandes crises econômicas marcaram profundamente a sua geração principalmente pela situação sócio econômica das pessoas fruto da ambição do regime capitalista que deu origem à desordem econômica e política e a inversão de valores essenciais Ele fez críticas ao estadismo tanto na situação limite de Estado Totalitário quanto no tocante às sementes totalitárias que considera existirem na chamada democracia individualista Ele acreditava que o mundo perfeitamente secularizado não tinha capacidade para sustentar a si próprio para dar resposta às perguntas do homem 74 Se os espíritos mais inconformistas querem se fazer avançar no mundo e pensam que para isso é necessário uma revolução este autor afirma que tal revolução terá de assumir uma natureza essencialmente moral ou não será uma verdadeira revolução Afirma também que a política não se pode reduzir a uma técnica de satisfazer necessidades tem de estar impregnada de espiritualidade porque as necessidades humanas são unicamente de natureza material Mounier era um autêntico cristão e por meio de sua religiosidade buscava o caminho da verdade em qualquer circunstância não podendo fazer acomodações a partir de particularismos políticos Sua pretensão era o fundamento de um verdadeiro humanismo novo descobrindo valores humanos universais Contudo não é uma pesquisa isolada ao lado dessa fundamentação está constantemente confrontado o princípio aos acontecimentos que então se precipitam o fascismo domina a Europa explode a guerra da Espanha a paz é vendida em Munique em 1929 a crise econômica abala o mundo e a recuperação capitalista não garantia a satisfação às exigências da nova geração desses pensadores É nesse período que Mounier e outros pensadores colocam suas idéias em prática por meio da Revista Esprit esta foi um ponto de referência para uma geração inteira de intelectuais que de diferentes maneiras buscava solucionar a grande crise na qual se encontrava o Ocidente A filosofia personalista nasceu cresceu e se desenvolveu nas páginas da Revista Esprit As maiores e mais importantes obras de Mounier são de fato coletâneas de artigos publicados Esse dado elucida o fato de que a filosofia personalista não nasceu no âmbito das universidades e sim no meio de debates políticos e culturais de um tempo O esforço constante de Mounier era o de salvar o projeto cultural que estava se formando ao redor da revista seu objetivo maior não era de garantir uma segurança econômica e sim de buscar conteúdos espirituais originários da cultura cristã porém sempre confrontando as demais culturas Devido as suas novas idéias para a época revolucionárias Mounier passou a ser perseguido por alemães foi preso várias vezes por ter sido confundido como membro do Movimento Combat Em 8 de julho de 1939 foi julgado e absolvido Durante as sucessivas prisões e principalmente na última Mounier redigiu grande parte do Traité du Caractere sem tradução para o português no qual faz críticas maciças aos fundamentos psicosocial da pessoa e de seus condicionamentos Para Lucien Guissard 1962 a obra retrata a emergência da pessoa sobre a natureza e que é uma tentativa não só de conjurar a imagem abstrata da pessoa mas também de romper com os determinismos mais ou menos solicitados pelas ciências 75 Na perspectiva do Traité a pessoa não somente um dado tal qual é sua encarnação é também um projeto ou seja a pessoa se afirma autoconsituitivamente num tríplice movimento de interiorização e de superação de suas próprias condições e condicionamentos É nessa superação das dimensões puramente científicas que Mounier vê a transcendência da pessoa sobre o dado puro A atitude de não resignação perante aos acontecimentos é uma das características mais fortes do caráter de Mounier Ele traça como ideal a ação de acolhimento e de afrontamento Isso significa a necessidade de encarar a realidade sem se demitir colocar a pessoa não em fuga e sim diante dos fatos que ela esteja envolvida O pensamento não pode estar desligado da ação pois o verdadeiro pensamento é aquele que está encarnado na pessoa que o pensa se a mesma estiver distante ou dela separado como os vários idealismos este pensamento é apenas um delírio Na perspectiva Personalista a pessoa é a própria presença do homem tendo direito à realização pessoal e pode assim exigir o compromisso político na luta para que os valores da pessoa sejam reconhecidos e promovidos Para Mounier 1964 o homem é corpo e espírito ao mesmo tempo ou seja é um ser natural que faz parte da natureza A existência pessoal é uma pulsação um ritmo harmonioso nas vias de sua complementaridade Ele afirmava que a existência pessoal é uma existência dialética entre natureza e transcendência É dialética como toda dimensão que se encontra ao se aproximar da realidade problemáticomisteriosa que é a pessoa A dialética Personalista diz respeito à propriedade e ao desabrochar da pessoa ou seja implica uma desapropriação de si e de seus bens rompendo com o egocentrismo Assim podese afirmar que a existência pessoal é uma constante dialética que procura uma unidade pressentida desejada e jamais realizada Por ter a sua vida interior tão sólida e firmada em sua fé e ao mesmo tempo aberta para fora de si mesmo o filósofo apresentava a seguinte postura diante dos acontecimentos e das demais pessoas costumava adotar uma atitude de afrontamento que é a posição do homem de pé em face da descoberta diante daquele que se aproxima seja amigo ou inimigo posição esta que pode ser simultaneamente de acolhimento ou de combate O acolhimento é a própria abertura para o acontecimento Não é um abstrato que se contenta em observar e explicar exteriormente É uma parte da totalidade na qual está engajado porque numa parcela de comunidade humana a ela inserida É por meio do acontecimento que a pessoa toma uma forma humana onde a atitude com que o encara é idêntica a que toma face aos homens 76 Os acontecimentos formam uma segunda sociedade por trás da sociedade dos homens invisíveis e temíveis E diante deles muitas vezes imprevisíveis é preciso abandonar a atitude do otimista e do pessimista do timorato e do desastrado seja qual for a metafísica é preciso adivinhar os acontecimentos e traduzir sua mensagem SEVERINO In MOUNIER 1983 p11 Assim percebese que o homem aberto aos acontecimentos é na verdade um homem aberto às pessoas Grande e profunda era sua capacidade de acolhimento junto aos outros homens Era um ser disponível a todo tipo de contato diálogo para além das esferas das relações imediatas Esse fato esta relacionado ao problema de saúde de sua filha mais velha Esse problema o fez pensar em outras vidas que vivem problemas semelhantes Observando de outra maneira podemos entender que a dor motivada pela fatalidade o fez na mais pura maneira cristã transcender saindo então do limite de sua existência pessoal Transcender é para Mounier ultrapassar um movimento A transcendência não é um estado fora de nosso alcance e sim um movimento interior que nos eleva e é por este motivo que o cristão afirma que Deus é transcendente por excelência intimius intimo meo A transcendência propriamente dita existe no coração da existência é a experiência de um movimento infinito ou pelo menos indefinido para mais um ser movimento de tal modo que seja inerente ao ser que aceita a si mesmo ou se recusa com ele Tal é a transcendência do existencialismo cristão e do personalismo cristão para os quais se designa o apelo de Deus na participação da vida divina Mounier apresentava uma sensibilidade universal Para ele a pessoa era uma promessa de universalidade Esse pensamento se configura na sua revista que era aberta e exigente era a expressão de sua própria atitude de afronta e acolhimento O afrontamento é um dos conceitos que Mounier utilizava para afirmar um dos eixos fundamentais de seu pensamento Ele afirmava que o afrontamento e o diálogo eram simultâneos pois o ato de dizer alguma coisa significava aceitar que o outro pode nos rejeitar e contradizer num face a face O filósofo procura erguer o homem e colocálo no centro da luta constante da conversão A pessoa humana é generosidade é abertura ou seja afrontamento Ela procura expor em seu movimento de personalização de exteriorização que é o próprio dinamismo criador do homem Por ser a pessoa humana capaz de relações e de um poder de decisão esta pode afrontar os outros os acontecimentos e a natureza 77 Mounier fez várias críticas aos modelos ideológicos que colocavam a pessoa humana em segundo plano fascismo nazismo marxismo defendia uma civilização personalista comunitária que tem como objetivo principal à pessoa e sua complexidade colocando sempre em questão a realidade em que elas se encontravam Assim posso afirmar que a filosofia personalista é também uma filosofia da comunicação sendo a sua função fundar a sociedade Somente as pessoas reunidas em comunidade é que poderão enfrentar as idéias coletivistas e o totalitarismo A comunicação é de suma importância para a pessoa que vive o momento de personalização pois é na relação com o outro que acontece a integração o crescimento e a afirmação pessoal Para Mounier 1964 a comunicação se tornou fundamental a partir de seu casamento Foi nesse momento que ele passou a dar maior valor à comunicação e a vivência em comunidade A comunicação é de fundamental importância para a pessoa pois é na afinidade com o outro que ela vai se afirmar O outro não é um meio limite para a afirmação mas um meio que auxilia e faz crescer o ser como pessoa Desse modo um é para o outro um encontro de si mesmo Outro aspecto característico do pensamento personalista é a associação da noção de consciência com a de comunidade sustentada por suas percepções e reflexões acerca da comunicação interpessoal e comunhão Na verdade ele propõe uma revolução comunitária como alternativa aos equívocos causados pelo comunismo soviético e do liberalismo capitalista A sua noção de comunidade visava resgatar a sociabilidade do humanismo garantindo assim a igualdade material sem perder de vista a imparcialidade da justiça e liberdade individual Porém essa liberdade não se encontra no âmbito da individualidade liberal e sim da pessoa o ente humano portador de uma consciência autônoma que só pode ser pensada em comunicação com as outras consciências Assim o agir no mundo comunitário é pautado pela comunicação das consciências ou seja a comunicação da existência com outras Mounier nos ensina que devemos adotar a seguinte postura Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim não conhecendo os outros apenas com um conhecimento geral mas captar com a minha singularidade numa atitude de acolhimento e um esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar ser e de ser eu 1964 p109 78 A comunicação interpessoal constitui então para Mounier a experiência basilar do ser humano A pessoa e a comunidade são indissociáveis e a primeira só se compreende por meio da segunda A comunidade por outro lado é superior à sociedade A abertura para o outro é um fator primitivo e constitutivo da pessoa Por seguir esse caminho é que Mounier resignificou a sua noção católica compreendeu que a comunhão ocorre quando a pessoa chama a si mesmo e assume seu destino seu sofrimento sua alegria e o dever dos outros Essa comunhão é um dos sustentáculos da idéia de revolução comunitária proposta pelo autor Distinguindose do modus operandis do modelo bolcheviquesoviético de revolução a revolução comunitária é a instauração de um processo de conscientização que deve se espalhar por toda a sociedade anunciando um socialismo utópico que venha a substituir tanto as opressões de direita quanto aos totalitarismos de esquerda Ao perceber e vivenciar a realidade de sua época ele verificou que a angústia existencial do homem europeu acontecia pelos regimes totalitaristas que se espalhavam pela Europa e dominava a França na década de 30 Então Mounier nesse momento histórico se aproxima das preocupações existencialistas ao mesmo tempo em que também se preocupa com a condição do homem em seu meio e trabalho tema central do marxismo Para enfatizar seu pensamento Mounier faz um retorno às idéias defendidas por Kierkegaard e Karl Marx Este retorno dá vida ao personalismo do século XX Dois ramos diferentes se formam no século XX contras as forças impostas pela sociedade burguesa e espiritualista da época De um lado a teoria de Kierkegaard a qual chama o homem a ter uma consciência de sua subjetividade Assim é perceptível o extremo histórico das separações e dicotomias pois de um lado se tem o individualismo e do outro o coletivismo O objetivo de Mounier era fazer com que as idéias de Kierkegaard e Marx ultrapassassem as diferenças para atingir a unidade Afirmava que o problema da civilização está no fato de se fazer dessa dicotomia uma nova geração de pensadores os quais partiriam do pensamento ideológico da burguesia capitalista a fim de romper com o individualismo e conseguir a autonomia O marxismo propunha a desmistificação do idealismo em relação ao homem pois no personalismo o homem tem sua particularidade mas sempre em comum união com o outro pois é no outro que a pessoa se afirma e fazse no social pelo diálogo Para Mounier as dicotomias existentes na humanidade são produtos da alienação do homem A alienação do homem é a própria miséria material e não aceita a pessoa como 79 corpo e alma Afirmase então que acabar com a miséria material colocaria um fim a alienação No marxismo há somente a preocupação de situar o indivíduo na economia negócios e na sociedade foi esta premissa que chamou a atenção de Mounier O qual deu início a sua idéia de desalienação do indivíduo O personalismo ao contrário do capitalismo separa a pessoa da máquina pois o sentido de sua existência é bem maior do que a necessidade de trabalho apesar deste promover satisfação e realização no ato laboral O personalismo distanciase do marxismo separa a pessoa das instituições pois antes do cidadão integrase a qualquer grupo ele é uma pessoa em sua pessoalidade e por isso sua mente é única e peculiar impossibilitando que o seu querer e as suas ânsias particulares sejam satisfeitas com as vontades do grupo Assim é perceptível que o personalismo de Mounier vai se afunilando em suas preocupações até que fosse localizada uma angústia definida com mais propriedade em outras palavras a ânsia do proletário em busca de justiça e dignidade Constatase em Mounier um apego as idéias marxistas de encontrar e destacar o proletariado ostracisado pelo estado e poder dos capitalistas Finalizo aqui colocando as belas palavras de Ricoeur sobre seu amigo que traduzem a grandiosidade de Mounier Teve Mounier como nenhum daqueles que soube reunir em torno de si o sentido pluridimensional do tema da pessoa Mas a mim me parece que o que nos atraiu para ele é algo de mais secreto que um tema de muitas faces a rara concordância entre duas tonalidades do pensamento e da vida a que ele próprio chamava de força na esteira dos antigos moralistas cristãos ou ainda a virtude de nos pormos frente e frente e a generosidade ou abundância do coração que corrige a crispação da virtude da força por algo de agraciado e delicado é a sutil aliança de uma bela virtude ética com uma bela virtude poética que fazia de Emmanuel Mounier esse homem ao mesmo tempo irredutível e que se dava RICOEUR 1968 165 grifo meu 80 CAPITULO II O SENTIDO DA PESSOA EXISTENCIALISTA PERSONALISTA 21 SER PESSOA EM VÁRIAS VISÕES FILOSÓFICAS Falar de pessoa humana é inevitavelmente falar de seu caráter comunitário principalmente na perspectiva éticopersonalista de E Mounier Quando ele faz uma clara distinção entre indivíduo e pessoa desde já reconhece a primazia da pessoa e por conseguinte a sua dimensão voltada para o ser comunitário que envolve compartilhamento interação sercomooutro estar como outro a ponto de somente ser reconhecido como pessoa fazendose com e pelo outro Aqui adentro numa temática da condição humana de existir colocando primeiramente a condição do próprio homem enquanto ser eminentemente humano se diferenciado de outros seres vivos pela maneira especificamente de existir A questão da pessoa é freqüentemente debatida no âmbito de várias filosofias na antropologia na psicologia enfim em diversos estudos que privilegiam seu estatuto de ser no mundo ainda que convenha afirmar que nem todas têm como primazia a pessoa humana como modo especificamente de existir A existência pessoal é continuadamente conquistada por um processo gradativo que vai sendo firmado na pessoa pois só muito lentamente que a consciência se vai libertando do mineral da planta ou do animal que em nós pesam Não se desenvolverá somente no plano da consciência mas em toda a sua grandeza no plano do esforço humano para humanizar a humanidade MOUNIER 1967 p 21 Ou seja a nossa vida é moldada pelas ações e tensões contidas no cotidiano que em última instância podem determinar nossas atitudes de sermos verdadeiramente pessoas capazes de conduzir a história de rompermos com teias ideológicas massacrantes que invadem nosso cotidiano Como por exemplo quando somos continuadamente metralhados por apelos midiáticos de propaganda na política na economia na moda nas políticas do Estado entre outras que podem nos conduzir a atitudes de consumo e acomodação e a conceber como naturais certos valores ou contravalores repassados pela sociedade que do ponto de vista ético é danoso a qualquer forma de ser no mundo Aliás os valores que aviltam a dignidade humana são continuadamente propagados direta ou indiretamente por pessoas ou instituições em todas as esferas da vida social 81 Por outro lado é interessante apontar que embora com menor intensidade mas igualmente contagiante nossas atitudes são reforçadas pela categoria essencial que embala nossa unidade com o outro o amor por fazer eco às dimensões constitutivas do homem e sua relação com o outro e com Deus Em um artigo que fez parte de seu estagio pósdoutoral Mendonça 2007 faz uma alusão clara entre a dor e a esperança que move o homem na modernidade possuído pela razão instrumental e coloca a educação como espaço dialógico dessa esperança em Buber e Marcel autores de viés existencialista teísta ao dizer Diante da construção histórica de uma cultura da violência entendida como mentalidades que se constroem sobre a relação dialógica não estabelecida o encontro não realizado o face a face interditado o desafio da educação após séculos de domínio de tais valores é subvertêlos e construir uma cultura voltada para a recuperação do sentido da vida Tudo o mais amor paz nãoviolência a responsabilidade ética a compaixão a solidariedade o desapego o respeito à vida em todas as suas manifestações a honestidade a fé que dialoga antes que exclui a dignidade e last but not least o respeito ao espaço público à comunidade e à cidadania será resultado disso Educar para a percepção do sentido da vida e para uma relação dialógica com o mundo é o conteúdo da educação em Martin Buber no que ele chama de educação do caráter MENDONÇA 2007 Muito embora a dor esteja presente sob diversas formas de se manifestar em nossos dias transpassando nossas relações que muitas vezes subtraem a pessoa humana de se estabelecer como ser autêntico comunitário e dialógico ela pode reverterse também em esperança às vezes pequena mas a tal ponto significativa que pode mudar o curso de nossas expectativas Muitas vezes a esperança parece pequena em face de magnitude da dor mas é ela que nos impulsiona a redescobrir e recriar o mundo Isso nos faz caminhar em busca de algo novo em meio ao desânimo Charles Péguy poeta e filósofo francês que teve grande influência no pensamento de Mounier em poema sobre a esperança a coloca como a irmã mais nova mas só ela sendo capaz de levar as outras a atravessar o mundo 82 Esta pequena Esperança que parece coisa de nada esta pequena filha Esperança Imortal Pelo caminho escarpado arenoso e estreito arrastada e braços dados com suas duas irmãs maiores segue a pequena Esperança como uma criança sem forças para caminhar Mas na realidade é ela quem faz andar às outras duas e que as arrasta e que faz andar o mundo inteiro e a que arrasta Porque em verdade não se trabalha senão pelos filhos E os dois maiores não avançam Se não graças à pequena Charles Péguy Le Porche du Mystère de la Deuxième Vertu Pórtico do Mistério da Segunda Virtude22 Se a pessoa constitui uma questão amplamente debatida em nossos dias vale ressaltar o problema que o conceito de pessoa apresenta na história da filosofia apesar de que alguns estudiosos reconhecem que seu conceito passou despercebido na filosofia grega por esta considerar somente o valor universal e abstrato da pessoa O caráter individual singular da pessoa tem apenas um aspecto provisório Observa Nogare 1985 se referindo ao humanismo dos gregos tendo como referência W Jaeger que a descoberta do homem nos gregos não é do eu subjetivo singular mas do homem considerado na sua idéia na sua validade universal e normativa Chama a atenção porém que pelo fato dos gregos não considerarem o valor singular e concreto do homem isso não quer dizer que privilegiaram o individualismo pois colocado por J Jaeger citado por Nogare O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo mas o humanismo para usar a palavra no seu sentido clássico e originário Humanismo vem de humanitas Pelo menos desde o tempo de Varrão e de Cícero esta palavra tece ao lado da concepção vulgar e primitiva de humanitário que não nos interessa aqui um segundo sentido mais nobre e rigoroso Significou a educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana como seu autêntico ser JAEGER apud NOGARE 1985 p 26 A conotação do valor absoluto do homem está na esfera da fé cristã Embora a revelação cristã esteja dirigida a todos os homens indistintamente não se pode concebêla 22 httpwwwpermanenciaorgbrrevistahistoriaDossieHomenagemhtm 83 como um dado universal no sentido grego mas é dirigido ao homem individual concreto porque diz respeito ao homem como filho de Deus Embora o cristianismo seja essencialmente um dado revelado ao homem desde seus primórdios foi obrigado a justificar sua credibilidade perante os homens se associando aos grandes pensamentos filosóficos Nogare 1985 sustenta que o primeiro a mostrar essa possibilidade de diálogo entre filosofia e fé cristã foi São Paulo vindo a seguir os padres entre os quais Santo Agostinho 354430 No entanto foi Tomás de Aquino 12251274 que aferiu ao Cristianismo o caráter filosófico na discussão sobre o que é o homem O pensamento tomista tem como desdobramentos a afirmação de que o homem é composto de matéria e espírito Isto quer dizer que é um corpo e como tal está submetido às leis da matéria tais como espaço e tempo É também ao mesmo tempo espírito Assim os dois formam uma unidade substancial íntima e profunda Nas palavras de Nogare 1985 expressando o pensamento tomista Não há hiato entre os dois mundos no homem a matéria se espiritualiza e o espírito se materializa de forma tal que constituem um único ser em que nunca será possível separaremse fisicamente os dois componentes O homem é pois este ser paradoxal simultaneamente corpo e espírito síntese natural de princípios contrários e de exigências opostas NOGARE 1985 p 51 Por ser o homem ao mesmo tempo corpo e alma a definição da pessoa em Santo Tomás vai coincidir com Boécio para o qual a pessoa é toda substância individual de natureza racional É pois a inteligibilidade traço característico da pessoa que a diferencia de outros seres e isso se pode afirmar sem dúvida nenhuma ainda que haja outras características que irei apontar ao longo deste estudo que diferencia a pessoa do animal que não meramente a inteligência A filosofia tomista não só aponta a unidade entre corpo e alma ela menciona a pessoa como valor absoluto e dotado de perfeição revelada nas palavras do filósofo a pessoa significa o que há de mais perfeito em todo o universo 1973 p 112 Esse sinal de perfeição Santo Tomás vai buscar na origem grega de pessoa que significa uma máscara que era usada pelos atores a fim de projetar sua voz para o público e como os atores desempenhava papéis de homens famosos em vários campos da atividade humana era grande sua importância A palavra pessoa também era usada nas Igrejas para designar pessoas que tinham autoridade e poder De qualquer forma para Santo Tomás é pelo fato de ser racional que a pessoa goza de valor absoluto perante o universo 84 Se os gregos pouco consideravam a conotação individual e singular do homem e outras filosofias ignoravam seu valor ou simplesmente não apontavam seu significado de ser único e singular vale mencionar aquele que em cada passo dado ou palavra proferida valorizava o próximo como pessoa independente de sua condição social política de gênero de etnia Estou falando de Jesus Cristo Ele que fez brotar com suas atitudes e sobretudo exemplos o humanismo cristão ainda que nada tenha escrito teve como interlocutores homens a maioria reconhecidamente humilde e ignorante do ponto de vista intelectual e entretanto escreveram por ele a mais bela e profética escritura de seu estatuto social e projeto de sociedade contida na Bíblia Sagrada Em Jesus Cristo vêse o desdobramento da pessoa como ser único singular subjetivo e ao mesmo tempo como ser comunitário pois o tempo todo Jesus estimulava seus seguidores e o povo em geral a ter atitudes de compartilhamento diálogo e a pessoa a se formar e educar sob uma postura comunitária Num tempo em que se privilegiavam os sacerdotes e anciãos que tinham o poder das leis e destino das pessoas Jesus caminhava numa via contrária ao estabelecido convivia com os pobres os doentes as mulheres as prostitutas as crianças e seres de pouco valia na época sob o jugo romano Mas foi justamente aí que Jesus deixou sua missão e exemplo para todos os homens ainda que tivesse muitos amigos ricos e se sentasse com classes consideradas odiosas para a maioria do povo os coletores de impostos Isso é uma prova cabal de que Jesus era absolutamente desprovido de qualquer forma de preconceito de que não descriminava ninguém Ele estava junto daqueles que julgava precisar de seu conforto e de libertação espiritual mas foi particularmente no meio do povo que fez suas palavras se eternizaram como bem fala Jesus em Marcos 1331 O céu e a terra passarão mas as minhas palavras não passarão O ponto alto de sua valorização pela pessoa humana está contido nas várias passagens de seu evangelho destinado aos homens tanto de sua época quanto para a atualidade e épocas vindouras afirmando seu total e universal amor a todas as pessoas e classes posto que suas palavras superam as barreiras do tempo embora tenham sido escritas há 2008 anos vinde a mim as criancinhas pois é delas o reino de Deus época em que as crianças eram poucos valorizadas Quem nunca pecou que atire a primeira pedra defendendo uma prostituta perseguida pelo povo sob os rigores da lei romana quanto à prática da prostituição num tempo em que as prostitutas os doentes eram considerados desprezíveis nos seus evangelhos é constante a presença de mulheres tanto é que foram elas as primeiras a serem avisadas pelo anjo sobre a ressurreição de Jesus 85 O exemplo de Mateus coletor de impostos que se transformou em um de seus discípulos e Pedro pescador humilde e iletrado a quem Jesus o constituiu como o grande precursor de sua Igreja além de José de Arimatéia homem rico e justo que doou o lençol de linho sob o qual foi envolto o corpo de Jesus após a sua morte e tantos outros exemplos de humildade coragem sabedoria advinda de seu estado de humano e divino mas essencialmente humano pois foi para os humanos que falava e profetizava com teor de piedade e libertação Vale ressaltar novamente que Jesus coexistia pacificamente com todos aqueles que se aproximaram dele não importando se eram pessoas ricas pobres pecadoras ou santas Ele queria repassar a mensagem pela qual dizia ser caminho a verdade e a vida advinda dos ensinamentos de seu Pai a toda a humanidade Veio entretanto tocar os corações e mentes de pessoas menos dóceis a sua palavra e com isso Ele queria recuperar o sentido das pessoas mais pecadoras sofredoras excluídas Não foi líder de nenhuma revolução política e social embora não tenha hesitado em colocarse contra as estruturas opressoras de seu tempo se insurgindo contra as hipocrisias e estruturas legalistas que afastavam os homens de seu próximo e de seu verdadeiro amor a Deus A sua mensagem era de amor e de obediência à palavra de seu Pai mas nunca de subserviência aos chefes espirituais e políticos da época se declarando contrário a qualquer forma de primazia do material ao espiritual do ter ao ser quando motivado por indignação ao presenciar seu templo repleto de comerciantes que desrespeitavam frontalmente a Deus agiu com incomum ato de agressividade para com aqueles presentes nas negociatas diante do templo de Deus E assim no seu caminho despertou as consciências adormecidas pela ignorância humana diante do amor Aliás toda sua mensagem é pautada pelo preceito do amor incondicional e universal que devemos nutrir por todas as pessoas e por conseguinte todo o seu ato de amor ao próximo se estendeu à dimensão de comunidade Lembremos o que diz o Ato dos Apóstolos em que se evidencia o caráter comunitário dos primeiros cristãos Os irmãos eram assíduos ao ensino dos Apóstolos à união fraterna à fração do pão e às orações Devido aos inúmeros prodígios e milagres operados por intermédio dos Apóstolos apoderavase dos espíritos uma sensação de temor Todos os crentes viviam unidos e tinham tudo em comum Quem tinha terras ou outros bens vendia os e distribuía o dinheiro por todos de acordo com as necessidades de cada um Como uma só alma freqüentavam diariamente o templo repartiam e comiam o pão em suas casas com alegria e simplicidade de coração louvando a Deus e gozando da simpatia de todo o povo E o Senhor aumentava todos os dias o número dos que entravam no caminho da salvação At 24247 86 Se eu quiser falar propriamente de pessoa humana em seu sentido filosófico singular e da complexidade de seu ser da sua preocupação voltada para superar os dualismos de uma visão intelectualista que por muito tempo prevaleceu na modernidade associando o pensamento da pessoa a um simples dado universalista e objetivista estarei falando de alguns autores como por exemplo Kierkegaard Buber Ricoeur Sartre Heidegger Scheler e Marcel que embora de matizes de pensamento diferenciados deram primazia a pessoa humana privilegiando seu caráter de unicidade entre alma e corpo e suas atitudes dotadas de reflexão e ação de imanência e transcendência ou como comenta Lorezon 1996 p 12 Além do mais a comunidade enquanto integração consciente das pessoas só poderá se estabelecer se salvaguardar a vocação especifica e insubstituível de cada um Isto quer dizer que há reciprocidade e complementaridade Por isso se vê como se coloca a dialética dessas duas realidades dialética difícil para quem deseja levar em consideração a complexidade da vida pessoal feita esquematicamente de um tempo de recolhimento e de um tempo de exteriorização Todos os excessos cometidos de uma parte ou de outra implicam numa certa degradação do ser humano em sua tendência à despersonalização LOREZON 1996 p 12 Isso quer dizer que há uma agregação complementação uma extensão entre os dois pólos da vida humana pessoa e comunidade não havendo privilégio de um sobre o outro e muito menos separação Kierkegaard é constantemente citado nas obras de Mounier no que o classifica como o pai do existencialismo a exemplos de outros que igualmente creditam à Kierkegaard como aquele que mergulhou profundamente seu pensamento na existência humana e também pelo fato de ser um opositor intransigente ao pensamento de Hegel na Alemanha assim como Marx Porém o que Marx criticava em Hegel era precisamente seu pensamente idealista e espiritualista da vida enquanto Kierkegaard colocavase contra suas teorias a respeito da realidade Enquanto para Hegel a realidade era o espírito universal para Kierkegaard a verdadeira realidade é o existente o singular e não o universal 1985 P120 E esse existente singular é o homem porque somente ele é singular único Se para Mounier o que diferencia a pessoa do animal é a capacidade desta de amar ter esperança para Kierkegaard esta diferença está no fato de que somente o singular humano tem consciência de sua singularidade 87 Como que para confirmar sua paixão pelo singular Kierkegaard investe firme contra toda forma de sistema e por isso era o real opositor de Hegel Assim Nogare 1985 expressa com muita claridade o pensamento de Kierkegaard se contrapondo a qualquer forma de sistema no que se refere à existência humana O sistema não pode dar conta da realidade sobretudo da realidade humana O sistema é universal a realidade é singular O sistema é abstrato a realidade é concreta O sistema é racional a realidade é irracional O sistema é eterno a realidade é efêmera O sistema é olimpicamente impassível a realidade é paixão emoção e choque Numa palavra o sistema é tudo menos a realidade e a realidade é tudo menos o sistema NOGARE 1985 p 121 Mounier 1963 afirma que foi na filosofia de Hegel que a existência humana atingiu sua decadência mas esse majestoso e escrupular triunfo tiveram seu reinado deposto quando pelas mãos do profeta chamado Kierkegaard este declarou solenemente não pode haver sistemas da existência e filosofar não consiste em proferir discursos fantásticos para fantásticos seres mas a existentes falamos 1963 p 22 E Mounier completa E é sempre um existente quem fala Eis a omissão capital o pecado original do racionalismo E assim o racionalismo não considera que o espírito conhecente é um espírito existente e que o é não em função de qualquer lógica imanente e sim de uma disposição individual singular e criadora Nesse sentido não se pode sistematizar pelos moldes positivistas a existência humana porque ela é dialética está em movimento é imprevisível O cotidiano é diversificado de acordo com o ponto de vista e a vida vivida do existente é a cultura a historia é a dinâmica da existência que vai dar um desdobramento singular para a vida de cada um pois é preciso que o pensamento se faça carne carne da existência e em cada homem carne de sua existência Mounier1963 p 23 ou seja é preciso sair de si captar a existência concreta de fora e trazêla para dentro como algo refletido que será evidentemente transformado na vivência de cada um Nas reflexões acerca do homem Max Scheler filósofo vinculado à filosofia dos valores e que centrou seus estudos na ética opondose ao formalismo kantiano confronta três círculos de idéias diferenciadas e portanto inconciliáveis a idéia do homem a partir da tradição judaicocristã sob as justificativas da criação do paraíso as figuras de Adão e Eva isto é a idéia relacionada ao descrito em Gênesis no Antigo Testamento Outra idéia predominante advém da antiguidade clássica para quem o homem tomou consciência de sua situação no mundo mediante a idéia de que é um ser racional pois possui razão um logos o homem somente ele participa de todo o princípio racional 88 A terceira visão é constituída pelos fundamentos da ciência moderna pela qual o homem seria um produto final da evolução do planeta se diferenciado dos animais pelo seu grau de complexidade Scheler vai dizer que esses três círculos de idéias acerca do homem ou seja no sentido teológico antropológico e filosófico não se preocupam um com o outro e parecem sempre não esclarecer a essência humana Essa essência seria o seu lugar singular no universo não somente como ser pensante mas e também compreende uma determinada espécie de intuição nelas se incluindo uma série de atos emocionais Para Scheler a pessoa é concebida a partir da idéia de que é sempre um ser concreto e jamais pode ser considerada como objeto porque o centro do espírito é a pessoa e ela não é nem um ser substancial nem um ser objetivo mas apenas um complexo e uma ordem de atos essencialmente determinado o qual se realiza continuamente a si em si mesmo COSTA1996 p 90 e dessa forma nenhuma pessoa pode ser objeto enquanto pessoa Somente podemos conhecêla pelas vias da liberdade em nós e por nós Podese afirmar de maneira geral que a pessoa em Scheler se manifesta principalmente pelo amor e percepção do outro digase porém não um amor como um dever mas do amor voluntário e livre em que o outro esteja disponível e aberto Ele nos dirá é impossível compreender uma pessoa pela reprodução de seus atos espirituais sem que ela se preste a isso abrindose espontaneamente É que a pessoa pode calarse e ocultarse COSTA 196 p 110 Para Scheler o conhecimento não é somente um ato pessoal é antes de tudo um ato em relação ao outro inclui o outro realizandose pelas vias da percepção que tenho dele e toda a explicação gerada pelo conhecimento é invariavelmente social tendo um caráter extremamente interacional entre elas E isso remete à idéia de pessoa em Mounier pois como afirma o Prof Carlos Mateus da PUCSP em trabalho publicado na internet a relação entre valor e pessoa investigada por Scheler distingue pessoa de indivíduo e cria uma nova visão do caráter ético da pessoa humana como um ser concreto que se define por ser único e irrepetível E acrescenta sua teoria axiológica da pessoa humana veio a exercer influência sobre a noção de personalismo em autores como Paul Landsberg Emmanuel Mounier e Paul Ricoeur e outros23 Indiscutivelmente falar de Scheler é associar seus pensamentos à questão dos valores éticos da pessoa trabalhados por ele Seu ponto de partida inicia pelo questionamento do valor a partir de Kant segundo o qual os valores se processavam apenas pelas vias da razão e dos 23 httpwwwpucspbrmargempdfm16cmpdf 89 sentidos Contrariando essa idéia ainda que admitisse que o conhecimento da verdade se desse pelos caminhos da razão e dos sentidos Scheler amplia essa visão e vai dizer que a busca da verdade se orienta também e principalmente por uma terceira alternativa que é o caráter intuitivo ou emocional das pessoas que as leva a construir valores éticos como acesso à verdade Isso fica mais claro nas palavras do Prof Carlos Mateus Antes dos sentidos e da razão o ser humano sente Tratase de um sentir independente dos sentidos e não condicionado pela razão Essa percepção emocional alcança o que os sentidos não tocam e entende o que a razão não explica Scheler entende que a percepção emocional antecede e condiciona todas as formas e os conteúdos do conhecimento24 No mesmo sentido de pessoa analisado por Scheler temos Paul Louis Landsberg seu discípulo Foi colaborador da Revista Esprit tendo seu pensamento sobre o sentido da ação influenciado largamente Mounier no que diz respeito ao engajamento social como condição de humanização Paul Ricoeur chega a dizer que ele teve uma influência decisiva na Revista Esprit e no Personalismo herdado de seu amigo e mestre Scheler e assim comenta Sua reflexão centrase sobre as linhas mestras da filosofia da pessoa engajamento histórico do homem ato pessoal descoberta dos valores como direções de nossa vida histórica transubjetividade dos valores no coração dos nossos engajamentos concretos Isso significa que ele se situa nos pontos críticos mais difíceis dessa filosofia da pessoa no ponto onde coincidem valor histórico existência pessoal transcendência RICOEUR 1996 p 150 Pois bem indo no mesmo pensamento várias vezes aqui explicitado sobre o qual a pessoa é unicidade singularidade é um ser irrepetível Landsberg dirá que a pessoa não pode ser explicada pelo velho dilema de que tem traços de hereditariedade e sofre influências do meio Esse tipo de posição já foi amplamente debatido tanto pela psicologia filosofia ciências naturais que encontrou certamente justificativas se não definidas pelo menos aproximadas do que sejam os traços de humanidade do homem Entretanto diz Landsberg o indivíduo humano só pode ser apreendido como um todo e esse todo é de tal forma penetrado e formado por esse dado sempre singular que aquilo que é particular enquanto produto de abstração não tem realidade como tal Porque a pessoa 24 httpwwwpucspbrmargempdfm16cmpdf 90 tem algo que foge à explicação biológica e do meio sob o qual vive ela é escreve Landsberg 1968 uma atividade que produz permanentemente um sentido em colaboração e em luta constantes com o destino interior provenientes das profundezas da hereditariedade e sujeito à pressão do meio mas de tal modo que é somente nesse encontro que o destino se torna destino que o meio se torna meio LANDSBERG 1968 p 09 A particularidade do homem reside na sua totalidade ainda que muitas escapem a essa exigência por considerar a pessoa por demais complexa e impenetrável Entretanto Landsberg acredita que a pessoa pode ser apreendida muito mais como processo de personalização do que como uma substância estática e imóvel É por isso que sua singularidade não quer dizer isolamento ao contrário denota que sua singularidade tem uma significação recíproca E chega a dizer É somente por sua singularidade que o homem tem um valor no seio da comunidade LANDSBERG 1968 p10 No entanto o sentido de pessoa não se esgota na sua singularidade mas essa integração só encontra significado real nas relações entre o homem e Deus ou melhor personalidade divina como prefere chamar Landsberg Ele faz uma conjunção entre o sentido da criação e a pessoa a fim de elucidar o conceito cristão de pessoa O autor diz que a cada segundo a criação prossegue seu turno a partir do momento em que Deus o criador dá parte do ser à criação num ato concreto e esta por sua parte ou seja a pessoa tanto pode darse num ato de reciprocidade quanto pode negar sua dependência ontológica de Deus criador Mas somente num ato de humildade a pessoa pode darse a essa realização divina que no fundo é a realização consciente e permanente dessa presença criadora de Deus em nós realização que nos esclarece e nos faz ver que sozinhos não existimos nem somos nada LANDSBERG 1968 p11 E nesse sentido estar aberto à personalização esse ato de ser abertura disponibilidade para o outro se torna uma experiência de quem se lança ao jugo do divino E completa O que há de singular a meu ver é que a pessoa só chega a se conceber ao tomar contato como atividade profunda na qual ela descobre a si mesma como criatura e no mesmo ato entrevê seu criador LANDSBERG 1968 p 111 Outro filósofo que tem uma ampla reflexão sobre a pessoa é Paul Ricoeur Ele não pode ser fechado numa escola ou uma corrente precisa Nascido em Valence Drôme em 1913 numa família de velha tradição protestante perde os seus pais quando era ainda criança 91 e por isso é criado pelos seus avôs Teve grande influência de seu professor Roland Dalbiez um dos primeiros na França a ter escrito sobre Freud a qual deve a sua vocação filosófica O cristianismo a fenomenologia a hermenêutica a psicanálise a lingüística e a história em proporções variáveis contribuíram para a formação do seu pensamento Podese dizer também que Ricoeur sofreu grandes influências de Mounier e Marcel para dizêlo rapidamente ao movimento existencialista cristão e personalista sendo um colaborador de profunda vivência na Revista Esprit Foi amigo de Mounier apesar de algumas divergências religiosas em seu livro História e Verdade 1968 dedica a Mounier algumas páginas para colocar o sentido da pessoa a partir de sua visão personalista Filósofo comprometido com seu modo de pensar e agir tinha uma formação cristã protestante Recebeu o grande prêmio de Filosofia da Academia Francesa Seus escritos têm um nexo constante entre teoria e prática ação e reflexão pois é para a pessoa e suas múltiplas atitudes e em permanente interação que dirigiu seus estudos filosóficos e éticos Com efeito a reflexão a cerca dos diferentes planos da ação humana o conduziu à problemática da pessoa e sua ação como livre e responsável Outrossim sua principal preocupação voltouse para a pessoa em suas diversas dimensões no sentido de concebêla integralmente tanto no sentido de sua existência quanto também de sua transcendência Já em 1983 Ricoeur consagra uma parte de seu livro A Região dos Filósofos a Mounier dentro de uma visão mais crítica motivado principalmente em compreender as reservas e às vezes as recusas das gerações atuais com o termo personalismo pelo fato como observara Buber e agora Ricoeur do termo terminar em ismos e que segundo ele não revela o verdadeiro significado do termo pessoa como utilizado em Mounier Aliás o próprio Mounier já advertira em 1946 no livro O que é Personalismo alguns equívocos sobre o termo e os perigos de confundilos com atitudes contrárias ao sentido da pessoa nos ismos tais como moralismo espiritualismos idealismo etc Assim como Mounier Ricoeur faz alusão à diferença entre indivíduo e pessoa a fim de evitar malentendidos e colocar a pessoa num mundo contraposto ao burguês do qual o indivíduo é o perfil O indivíduo tem a característica do pseudo de impessoalidade tem como base o mundo da aparência do dinheiro do juridicismo A pessoa para Ricoeur é doação e generosidade e se traduz na vocação encarnação e comunhão no entanto a vocação não tem sentido senão para um mundo da meditação a encarnação senão para um mundo de comprometimentos a comunhão para um mundo de despojamentos Ora meditação comprometimento despojamento descrevem uma sociedade que seria uma pessoa de pessoas uma comunidade A pessoa é a 92 figura limite da comunidade verdadeira como o indivíduo o é da nãocivilização burguesa e o faccioso da pseudocivilização fascista RICOEUR 1968 p 143 Cabe agora colocar à luz da influência de Mounier o sentido de pessoa em Ricoeur segundo o qual não se pode falar de pessoa sem o suporte do Personalismo só que procurando a atitude que a caracteriza a atitudepessoa Primeiramente ele coloca que suas discussões sobre a pessoa se concentram na esfera filosófica pois invariavelmente seu significado se inclui em debates jurídicos políticos econômicos e sociais ou seja a pessoa é e sempre será fonte viva de debates porque é ela a pessoa sobrevivente tenaz de todas as críticas e filosofias que tentam subtraíla A pessoa para Ricoeur se instaura na noção de crise a qual a faz caracterizarse como a criteriologia de atitudepessoa e supera dessa forma a dimensão econômica social e cultural A pessoa está o tempo todo vinculado à noção de crise segundo o qual é sua característica essencial avalia Ricoeur Com efeito reconhecerse como pessoa deslocada é o primeiro caminho da atitudepessoa pois aí se coloca na noção de crise o critério do engajamento ou seja o compromisso não é uma propriedade da pessoa mas um critério da pessoa esse critério significa que não tenho outra maneira de discernir uma ordem de valores capaz de exigir uma hierarquia do preferível sem me identificar com a causa que me supere RICOEUR 1968 p 160 Outro critério da crise da pessoaatitude seria a convicção retirada da linguagem hegeliana Ou melhor explicitado nas palavras de Ricoeur Na convicção me arisco e submeto Eu escolho mas não digo eu não posso de outro modo Tomo posição tomo partido e assim reconheço o que maior do que eu mais durável do que eu mais digno do que eu me constitui como devedor insolvente RICOEUR 1968 p 160 Ricoeur identifica nestes dois critérios da atitude pessoa ou seja o engajamento e a convicção alguns corolários O critério do engajamento se relaciona a noção de tempo não um tempo passageiro efêmero de um instante em que por empolgação ou influência me coloco a favor de uma causa que seria a conversão do instante O engajamento é a virtude da duração é 93 uma fidelidade a uma direção escolhida 1996 p 161 implicam sobretudo na identidade com aquilo que passo a aderir É baseado no critério da diferença da alteridade de colocarme perante o outro mesmo sendo seu diferente por mais que possa se instalar um conflito e esse conflito seja capaz de criar procedimentos a fim de tornálos negociáveis A crise engajamento características da pessoaatitude requerem o horizonte de uma visão histórica global segundo Ricoeur ao colocar não creio que possa haver compromisso com uma ordem abstrata de valores sem que se possa pensar essa ordem como tarefa para todos os homens RICOEUR 1968 p 162 Nos escritos de 1983 Ricoeur enfatiza o que ele denominou de uma fenomenologia hermenêutica da pessoa passando por quatro camadas linguagem ação narrativa e vida ética E para ficar mais claro essas camadas ou estratos da constituição ética da pessoa colocamos nas próprias palavras do filósofo Seria melhor dizer o homem falante o homem que age e acrescentarei o homem que sofre o homem narrador e personagem de sua narrativa de vida finalmente o homem responsável RICOEUR 1968 p 164 grifos meus Antes de discutir o que Ricoeur denominou de estratos da constituição da pessoa ele esclarece que primeiramente tem que esboçar as camadas anteriores dessa constituição ao distinguir a ética da moral A moral se refere ao campo das normas das regras das proibições e o campo da ética relacionado ao ethos ou seja três termos que designam a importância ética da pessoa aspiração a uma vida realizada com a para os outros em instituições justas RICOEUR 1968 p164 grifos meus Melhor elucidando primeiro termo aspiração de uma vida realizada que identifica o caráter de anseio e desejo da pessoa e isso reflete na noção de autoestima de si Mas Ricoeur adverte que essa autoestima de si não reconhece nenhum tipo de egoísmo ou solipismo o termo si está aí para prevenir contra a redução a um eu centrado sobre si mesmo Em certo sentido o si ao qual se dirige a estima na expressão estima de si é o termo reflexo de todas as pessoas gramaticais RICOEUR 1968 p165 Ou seja a palavra se inclui em todos os tempos gramaticais sem no entanto prejudicar a sua essência de estar dirigido também para o outro pela intencionalidade e pela iniciativa Portanto a estima de si é a primeira constituição da pessoa enquanto ethos pessoal O segundo termo desta tríade vem da expressão com e para os outros Ricoeur vai chamar essa expressão solicitude o que significa o movimento de si na direção do outro em suas palavras 94 pareceme que a petição ética mais profunda é a reciprocidade que institui o outro como meu semelhante e eu mesmo como o semelhante do outro Sem reciprocidade ou para empregar um conceito caro a Hegel sem reconhecimento a alteridade não seria a de um outro diferente de si mesmo mas a expressão de uma distância indiscernível da ausência Um outro semelhante a mim este é o voto da ética no que diz respeito à relação entre a estima de si e a solicitude RICOEUR 1968 p165 Essas duas dimensões estima de si e com e para os outros designam uma relação face a face onde reconheço o rosto do outro numa relação próxima numa certa intimidade que me coloca diante do outro num certo grau de amizade Mas é preciso dizer que eu não encontro sempre o outro na intimidade em relações próximas e recíprocas Encontro o outro embora face a face só que sem rosto e nisso Ricoeur introduz o conceito de instituição justas pela qual embora não tendo uma relação próxima com o outro eu o respeito o suficiente a ponto de proporcionar uma grandeza ética da justiça Aqui as instituições justas estão totalmente inclinadas à preocupação ética com o outro e por conseguinte à justiça Aqui o próprio Ricoeur faz uma clara convergência entre a dialética de Mounier pessoa e comunidade com estes três termos estima de si solicitude e instituições justas na medida em que embora distinguindo relações pessoais das institucionais tem seu alcance bem articulado com a idéia de cuidar de si o cuidar do outrem e o cuidar das instituições É essa tríade segundo o autor que conduzirá à idéia mais rica sobre a pessoa pois invariavelmente Mounier quis fazer da pessoa e comunidade o ponto fundamental de suas reflexões sobre a existência A idéia de Ricoeur acerca das instituições justas distingue claramente relações interpessoais das relações instituições Enquanto a primeira tem como ponto de partida a amizade a preservação do face a face a presentificação do outro a segunda tem como meta a justiça embora o outro sem rosto mas pleno de direitos Mais adiante Ricoeur trará as filosofias da linguagem para a investigação sobre a pessoa as dividindo em dois planos O primeiro plano é o da semântica trazendo o caráter de singularidade da pessoa e o segundo no plano da pragmática Ricoeur elucida o que é Entendo por pragmática o estudo da linguagem em situações de discurso em que o significado de uma preposição depende do contexto de interlocução RICOEUR 1968 p171 Em outros termos a linguagem faz algo exprime algo tem uma projeção para o outro se desdobra em atos que possuem um significado 95 Mas falar de Ricoeur e de sua inserção no movimento personalista é indiscutivelmente trazer a tona sua reflexão acerca do socius e o próximo uma belíssima e profunda meditação contida nas paginas de História e Verdade 1968 A postura filosófica de Ricoeur sempre foi a procura da verdade que se encontra no rosto do próximo da pessoa aquela pela qual não me aproximo por intermediações externas mas porque a vejo como meu próximo não necessariamente aquele que está perto corporalmente de mim um escolhido mas qualquer um que encontro Sua reflexão iniciase com uma afirmativa contundente Se denominamos sociologia a ciência das relações humanas em grupos organizados não existe sociologia do próximo porque se não existe sociologia do próximo talvez exista uma sociologia a partir da fronteira do próximo afirma ele Seu questionamento em torno disso está apoiado na parábola do Bom Samaritano e de uma profecia bíblica a saber Um homem descia de Jerusalém a Jericó e caiu em meio a salteadores que depois de o terem despojado e moído em pancadas lá se foram deixandoo semimorto Por acaso um sacerdote descia pelo mesmo caminho Do mesmo modo um levita passou pelo lugar Mas o samaritano que ia de viagem chegou perto dele viuo e foi tomado de compaixão por ele São Lucas 1033 Qual dos três te parece haver sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores pergunta Ricoeur 1968 p 99 Ao ser questionado por um visitante quem seria o meu próximo que espécie de companheiro é meu próximo Jesus responde com esta parábola e transforma o questionamento no seguinte qual destes homens comportouse como próximo Por mais que qualquer um seja meu próximo para Ricoeur não existe uma sociologia do próximo uma vez que façome próximo de cada um RICOEUR 1968 p 100 Desta feita o próximo não é uma categoria sociológica muito menos um objeto social mas uma conduta uma atitude um comportamento ao se tornar presença E esse encontro entre o homem vitimizado pela violência com o samaritano converteuse em um paradigma de ação Vai e faz o mesmo A parábola destaca duas categorias sociais representados por um lado pelo sacerdote e pelo levita ambos envolvidos por seu ofício pelo papel social que ocupam que os afasta do outro tornandose indisponíveis para um encontro eles sendo no caso a instituição se fecham ao evento de encontrar o outro seja qual for Por outro lado visualizase a categoria social 96 representada pelo samaritano homem sem um papel social sem mediação de uma instituição e seu gesto é movido pela compaixão pelo outro Ricoeur 1968 ainda destaca uma profecia que revela o sentido de todos os encontros da história pois se coloca como uma verdadeira adesão a causa do outro como igualmente exemplifica na parábola do Bom Samaritano Quando o Filho do homem vier na sua glória E colocar as ovelhas à sua direita e os cabritos à esquerda Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita Vinde benditos de meu Pai Então lhe responderão os justos Senhor quando foi que te vimos com fome e te demos de comer com sede e de demos de beber E o rei responderá Em verdade vós digo o que fizeste a um dos menores desses meus irmãos a mim fizeste Em seguida dirá aos que estiverem a sua esquerdaRICOEUR 1968 p 101 Enquanto a parábola narrava um encontro no presente a profecia expõe um acontecimento futuro mas que desde já pode ser iniciado no presente de cada um Tomar atitudes de solidariedade amor compaixão pelo outro nada mais é do que revelar Cristo nas nossas relações no cotidiano é ver no outro a própria face de Cristo Ao exemplificar as citadas passagens bíblicas Ricoeur não cessa de reportarse ao cotidiano assim dizendo Tendo chegado a este ponto onde ao que parece deve ternos conduzido a veracidade de uma teologia bíblica voltamonos para nós mesmos e nos perguntamos que quer isto dizer para nós aqui e agora em um mundo em que a diferença e a organização dos grupos sociais não cessam de crescer RICOEUR1968 p 102 Então ele chega a conclusão de que vivemos no mundo do socius Mas o que isto quer dizer O Socius é aquele a quem chego por meio de sua função social é uma relação mediata alcança o indivíduo na qualidade disto ou aquilo È a mesma categoria da despersonalização trabalhada por Mounier e a relação do isso vista por Buber Aqui a relação é instrumental e anônima Por outro turno quem é o próximo As relações neste sentido aparecem na perspectiva de que o outro seja quem for é meu próximo me aproximo dele não por algum interesse ou identificação ou ainda impulsionada por uma proximidade seja pessoal parental profissional amorosa política religiosa ou ideológica Minha aproximação com ele é sem qualquer mediação social sem qualquer critério Isso lembra um provérbio bem antigo fazer o bem sem saber a quem quando realizo o encontro com o outro sem sequer saber quem ele 97 é não importa quem ele seja importa que me aproximo numa atitude de generosidade solidariedade amor A filosofia da pessoa em Ricoeur se expressa nas contradições existentes entre o socius e o próximo sendo o próximo uma reflexão verdadeira do sentido de ser pessoa do desprenderse do doarse ao outro de ser com o outro de afastar os papéis que mascaram nossas relações na sociedade na maioria das vezes bloqueadas pela mediação perniciosa das instituições e dos papeis sociais que desempenhamos Quanto às instituições Ricoeur vai dizer que se ela não tiver como sentido final o serviço que presta às pessoas de nada valerá e eu direi de nada poderá contribuir para a personalização da pessoa Aqui cabe colocar o que Ricoeur pensa do sentido da instituição Mas precisamente este sentido final permanece oculto ninguém pode avaliar os benefícios pessoais prodigalizados pelas instituições a caridade não se acha forcosamente nos sítios onde se exibe também se acha escondida no humilde serviço abstrato dos postos da segurança social é muito freqüentemente o sentido oculto do social A mim me parece que o Juízo escatológico significa que seremos julgados por aquilo que tivermos feito às pessoas mesmo sem o saber ao atuar pelo canal das instituições mais abstratas e que o que pesará na balança será o ponto de impacto de nosso amor nas pessoas individualizadas RICOEUR 1968 p 111 Com estas palavras Ricoeur deixa claro que as instituições e as pessoas lá inseridas podem ser por excelência as grandes potencializadoras do evento do encontro entre elas favorecendo uma verdadeira dialética do próximo e do socius Outro pensador que tem como trajetória reflexiva a pessoa como ser existente e possuidora de um viés comunitário espiritual é Martin Buber 18781965 filósofo judeu nascido em Viena Áustria e desde 1938 tornouse professor em Jerusalém Buber diferenciase dos demais filósofos principalmente por utilizar como dimensão primordial de seu pensamento a relação o diálogo na atitude existencial do face a face Além disso segundo ele as pessoas podem apresentar duas atitudes com relação ao mundo a primeira é a relação EuTu de orientação dialógica e a segunda é a relação EuIsso de orientação monológica Em meus estudos não detectei nenhum diálogo ou embate filosófico entre Buber e Mounier muito embora na obra Introdução aos Existencialismos de Mounier ao utilizar a metáfora que chamou de árvore existencialista ele coloque Buber do mesmo lado do Personalismo e representante também do Existencialismo cristão ainda que Buber seja judeu 98 Na obra citada ao traçar tanto uma crítica ao pensamento existencialista e ao mesmo tempo enaltecendo segundo sua visão os caminhos da abordagem de seus temas Mounier faz alusão a Buber em outro momento quando exemplifica a experiência da comunicação Para um Scheler um Buber um Marcel a experiência introduz a uma comunicação dos sujeitos diálogo encontro autêntico no qual não trato o outro como natureza mas como liberdade e mais do que isso colaboro com a sua liberdade como ele colabora com a minha Se o outro não é limite do eu mas uma fonte do eu a descoberta do nós é estritamente contemporânea da experiência pessoal O tu é aquele em que nós nos descobrimos e pelo qual nós nos elevamos surge no seio da imanência como no seio da transcendência Não destrói a intimidade descobrea e educaa O encontro no nós não facilita apenas entre o eu e o tu uma permuta integral cria um universo de experiência que não tinha realidade fora desse encontro MOUNIER 1963 p 162 grifo meu Por outro lado a única referência de Buber pertinente ao Personalismo diz respeito a uma conferência proferida em 1931 antes mesmo de despontar na França o Personalismo cujo portavoz maior foi a Revista Esprit criada em 1932 Quando Buber critica tanto o individualismo quanto o coletivismo como algo questionável diz ele que não vê sentido reclamar a existência do individualismo e assim se refere ao perguntar sobre o personalismo Diria mesmo que o individualismo como todos os ismos é uma teoria inadequada desnecessária e até absurda que não pode superada por qualquer aspiração Por exemplo o ismo em personalismo Que quer dizer Significa que o importante não é o individuo mas a pessoa ou a personalidade Obviamente isso é diferente do individualismo No entanto não é fácil compreenderse o que seja personalidade BUBER 1987 p 106 Nessas palavras de Buber avalio que ele reconhece a importância que a pessoa tem para o personalismo embora critique os ismos contido nas intenções favoráveis ou não as relações do homem com o mundo e igualmente percebe desde já a distinção entre indivíduo e pessoa tão amplamente discutida por Mounier Só que Buber associa a pessoa ao termo da personalidade quando diz que mesmo não sendo fácil compreendêla ao mesmo tempo afirma que é aquilo que diferencia a pessoa humana de um indivíduo humano embora a existência esteja relacionada ao indivíduo Em seu entendimento Pareceme que a diferença essencial quando se acrescenta a 99 personalidade ao indivíduo é a seguinte a pessoa estabelece uma relação autêntica real e total com o mundo e com os outrosBUBER 1987 p93 A pessoa humana no sentido buberiano é antes de tudo e igualmente como pensara Mounier diferente do conceito de indivíduo e por conseguinte seu alcance de pessoa é associado à comunidade tendo como pano de fundo a singularidade do ser pessoa e a projeção de seu ser para o mundo Assim ao diferenciar pessoa de indivíduo assim se refere A categoria do individuo não se refere tampouco ao sujeito ou ao homem mas à singularidade concreta não se refere entretanto ao individuo aí presente mas antes á pessoa que se encontra a si mesma BUBER 2007 p81 Em conferência ministrada em 1931 sob o titulo Indivíduo e Pessoa Massa e Comunidade Buber apresentou as linhas mestras para a sua mais famosa obra Eu e Tu e nesse texto coloca o estatuto filosófico de conceitos como comunidade Ele diz que comunidade e personalidade são conceitos polares definidos um em função do outro Aqui o conceito de personalidade é diferente da visão do conceito de indivíduo em que pese que uma personalidade é assim orientada para o próximo sendo inerentemente antiegoísta e constituise na verdade na única entidade inteiramente capaz de assumir responsabilidade por suas ações 1987 p 29 Por outro lado um indivíduo é pelo contrário dono de uma mera liberdade isto é da ausência de direção e função como a partícula viva de um embrião1987 p29 A personalidade se realiza na relação com o outro Em outros termos dito por Buber ela não é aquilo que por assim dizer jorra para fora do individuo Personalidade é propriamente se posso expressar de modo paradoxal aquilo que existe entre este ser e o mundo e se relaciona com este individuo Assim a vida se estiver relacionada com a existência deste individuo conduz esta pessoa à relação entre este individuo e a existência do mundoBUBER 1987 p 107 Quando Buber fala do homem inevitavelmente suas reflexões passam pela vida cotidiana e aos questionamentos de seu tempo traçando o perfil do homem que procura incessantemente um sentido para sua vida É bom lembrar que estou me referindo à época das turbulências ocasionadas pela 1º e 2º guerras mundiais em que o mundo e principalmente a Europa estavam sob a ameaça de regimes totalitários Estes retiram a chance da pessoa se desenvolver como ser espiritual porque eram escassas suas vias que a levavam à liberdade em que o homem foi de qualquer modo separado em conseqüência dessas catástrofes da vida comunitária 100 Ao refletir sobre isso Buber comenta que este homem perdeu o vínculo relacional com sua comunidade e agora vive tentando encontrar o caminho para sua identidade Nesses termos coloca Compreendi então que sentido tem para um indivíduo ser separado por força de uma catástrofe de um todo social de uma sociedade com evidente valor para nós de um Estado de uma nação ou vale dizer que sentido tem para uma multidão de indivíduos decomporse em elementos constitutivos após uma catástrofe E agora no caso do indivíduo em particular Do estado de vínculo de evidente legalidade passa para a sua liberdade e isolamento individuais experimentado grande angústia procura agora o caminho alguma via para o vinculo para a comunidade para o nãoabandonarsemais Esta é de certo modo a história espiritual do homem da época do pósguerra A história de um homem que foi excluído de um contexto social que lhe era familiar evidenteBUBER 1987 p 104 Para Buber é na relação Eu e Tu que o indivíduo tornase pessoa porque a pessoa não existe fora dessa relação ao contrário de toda forma de individualismo e coletivismo que por vezes o homem está envolvido Pelo individualismo caminha na direção de se autoglorificar em se autocelebrar como indivíduo isolado 1987 p124 e no coletivismo como garantia de viver sem o peso de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo pois tem sempre o coletivo para pensar sobre ele A pessoa começa a perder como fala Buber a própria responsabilidade sobre sua vida uma vez que tudo será feito por ele e o único trabalho é entregarse oferecerse Buber compara essa entrega a uma roda na máquina pois como esta máquina precisa desta roda ela deve entregarse sem responsabilidades Falando do homem como esta roda se refere ao homempeça que teve um ínfimo momento de reflexão mas entrou na máquina estas rodas vivas não foram ajustadas mas entraram o momento surgiu uma só vez a liberdade existiu uma só vez e não mais 1987 p 125 Assim como Mounier Buber fala dos efeitos nocivos do coletivismo mais terrível do que o individualismo porque é algo real e no sentido sociológico e histórico é denominado por ele de massa pois é capaz de levar a uma imensa ação histórica ou a sua ruína Para poder sair de nós próprios ao encontro do outro é preciso sair de si em direção ao outro e isso só é possível através do diálogo só ele pode proporcionar o verdadeiro encontro e tornar o individuo em pessoa E só podemos sair de nós próprios pela via interior ou seja no diálogo não podemos nos perder a nós mesmos quer seja pela interferência ou opinião do outro ao contrário temos que permanecemos em nós para encontrarmos o outro Buber reflete sobre isso e assim coloca 101 Para podermos sair de nós mesmos em direção ao outro é preciso sem dúvida partirmos do nosso próprio interior é preciso ter estado é preciso estar em si mesmo O diálogo entre meros indivíduos é apenas um esboço é somente entre pessoas que ele se realiza Mas por que meios poderia um homem transformarse tão essencialmente de individuo para pessoa senão pelas experiências austeras e ternas do diálogo que lhe ensinam o conteúdo ilimitado do limite BUBER 2007 p 57 Para se chegar ao verdadeiro sentido do homem Buber chegou à categoria do Homem e comohomem para se referir ao entre que acontece no diálogo Ele diz que o diálogo advém de uma esfera que não é nem física nem psicológica embora admita que haja fenômenos físicos provenientes da palavra que é a acústica e respostas psicológicas no diálogo a partir do momento em que cada um dos parceiros compreende o outro é ouvido fala responde silencia Esse significado do diálogo é muito mais do que isso ele denomina de entre este imperativo que flui entre os seres e confirmando isto diz Este diálogo não acontece aqui ou ali em nenhum de nossos órgãos da fala em nossos ouvidos não ocorre sem estes elementos Ao contrário o diálogo como tal acontece na esfera específica do entre que utiliza as circunstâncias espaço temporais e as inclui BUBER 1987 p127 Essa esfera especifica do entre mais uma vez vai ser colocada por ele como um lugar comum entre o eu e o tu como uma espécie de acordo selado entre essas esferas a partir do momento em que ambos querem e podem dialogar com mundo pois a palavra dirá Buber é o fundamento da existência humana a partir de que esta palavraprincÍpio aliase a categoria ontológica do entre zwischen objetivando instaurar o evento diapessoal da relação Buber 2003 42 E mais uma vez coloca O entre o intervalo é o lugar de revelação da palavra proferida pelo ser Esse intervalo existe entre Eu e Tu e entre Eu e Isso Não há conhecimento de um individuo mas esse relacionamento EuIsso fundase em última análise no inter e dia pessoal Há uma conivência ontológica entre Eu e o Tu para o conhecimento do mundo BUBER 2003 p4 grifos meus Martin Buber é um pensador que se caracteriza também por relacionar intimamente reflexão e ação A essência de seu questionamento está na proposta de um tratamento dos problemas reais da existência humana numa perspectiva filosófico antropológica ou seja representa a recuperação do indivíduo enquanto pessoa nas relações sociais e interhumanas com base em experiências concretas do vivido A partir desse pensamento Buber lanças duas orientações autopedagógicas justapostas e expressas na relação do homem com o mundo estaraídohomemnomundo a orientação dialógica EuTu e a orientação monólogica EuIsso 102 A obra principal para a compreensão desse pensamento de Buber é Eu e Tu publicada no ano de 1923 em alemão Essa obra apresentase dividida em três partes fundamentais em direção a análise da questão o que é o homem a o homem em relação à linguagem b o homem em relação à história e c o homem em relação à Deus O principal objetivo de Buber era chegar à compreensão do comportamento do ser do homem para com a história e a esfera religiosa enquanto relações expressivas de seu auto educarse para e com o mundo E estas relações manifestamse numa atitude do tipo EuTu e EuIsso Para Buber a linguagem assume uma dimensão estritamente ontológica porque além de introduzir o homem na existência determina seu modo como existente E esse homem em relação vai apresentar uma dupla atitude expressa por meio das palavrasprincípio EuTu e EuIsso De acordo com a relação estabelecida entre os aspectos do tu e os aspectos do isso com o eu vaise definir se a relação é do tipo dialógica ou monológica O homem ao assumir uma dupla atitude perante o mundo pode instaurar uma atitude caracteristicamente objetiva ou uma atitude de engajamento De acordo com Buber o sentido verdadeiro da existência está na relação dialógica ou seja na atitude de engajamento entre o eu e o tu Para realizar plenamente o seu eu o homem precisa dizer tu ao outro e este dizer tu só se faz com a totalidade é preciso que ele se torne presença para mim Logo o diálogo genuíno só ocorre em clima de plena reciprocidade quando a pessoa experiencia a relação doladodooutro sem perder a sua especificidade própria sem confundirse com o outro sem perder sua singularidade ou seja tendo uma atitude de empatia Em outras palavras eu sinto o que o outro sente sem necessariamente ter vivido o que o outro viveu e mesmo assim tenho a capacidade de compreendêlo de estar com ele ser solidário ouvilo em suas dificuldades e angústias Mas para isso não é necessário que eu o conheça inteiramente basta acolhêlo fitálo com olhar de compreensão Numa relação de intervenção por exemplo entre um assistente social e usuário em que este último chega cansado com fome ofegante suado desesperado em virtude de uma situação social excludente não é necessário o assistente social ter passado fome e limitações de ordem social para que possa sentir o que o outro está sentido basta colocarse em seu lugar a fim de que o diálogo autêntico aconteça Ou seja a relação dialogal é permeada pela empatia quando eu me coloco no lugar do outro sou capaz de sentir o que o outro sente sem necessariamente eu ter vivido o que o outro vive e mesmo assim sou capaz de compreendêlo em sua situação existencial 103 O movimento dialógico ocorre entre pessoas envolvidas e consiste em voltarse paraooutro dirigindolhe a atenção com alma não simplesmente em movimento natural do corpo Assim a dialógica não é apenas o relacionamento dos homens entre si mas é o seu comportamento cujo elemento mais importante é a reciprocidade da ação interior Dessa forma dialogicamente o homem que está em face a mim nunca pode ser o meu objeto nunca posso coisificar sua presença pois eu tenho algo haver com ele talvez eu tenha que realizar algo nele mas talvez eu tenha apenas que aprender algo e só depende do meu aceitar Buber destaca quatro aspectos essenciais e indispensáveis a qualquer relação EuTu que seriam Reciprocidade que indica a existência de uma dupla ação mútua entre os parceiros da relação Presença que é justamente o momento o instante da reciprocidade Imediatez o modo imediato e direto em que essa relação do EuTu e Responsabilidade encontrase onde há possibilidade de resposta criando uma ação recíproca Já a relação monológica realizase na palavra princípio EuIsso onde o homem apresenta uma relação objetivante e alienante pois não há reciprocidade entre o eu e o isso portanto não há diálogo Neste caso o eu se afirma apenas com portador de suas impressões e afirma o mundo como seu objetivo Logo posso afirmar que o homem moderno perdeuse nas amarras de sua individualidade de seu egoísmo de seu isolamento com o próximo o tornando indiferente ao outro e sob o qual o diálogo perde seu sentido aliás a relação com o outro é tão danificada pela indiferença que o diálogo tornase algo não vivencial e perdese na mediada em que não é exercitado pelo outro Num mundo em que os interesses materiais vão sendo substituídos por relações instrumentais frias e calculistas o outro tornase meu objeto utilitário e dessa forma o diálogo é inexistente ou muito pouco exercitado entre as pessoas Nesta perspectiva estarei tendo uma relação objetiva com meu próximo as relações são fugazes ocasionais dura o tempo suficiente de um determinado evento ou por conveniência de trabalho de idéias ideologias coincidentes Nesse caso as relações são efêmeras transitórias se extraindo pouquíssimos ganhos para uma relação duradoura ou verdadeira Aí ocorre jogo de interesses pessoas ou supostamente coletivos mas geralmente caminha para o bem individual particular Desse modo o mundo do EuIsso instaura o reino da transitoriedade e supõe o plano da reflexão porque embora o homem tenha a ilusão de experienciar o mundo como transparente na realidade ele é opaco e acabado cabendo dessa forma ao homem viver o sentimento de distância e ter dele o mundo a experiência Nesse sentido o mundo não participa da experiência simplesmente se deixa experimentar 104 Ao analisar o princípio monológico ou a relação EuIsso podese chegar inicialmente a uma conclusão negativa porém aos poucos percebese que essa relação é fundamental pois diversos aspectos do mundo e do cotidiano podem representar o Isso Mas segundo Buber o homem não pode viver inicialmente unicamente no mundo EuIsso e se viver não é considerado um homem Logo o princípio monológico é primordial mas não é suficiente para o homem em sua existência A pessoa pode e deve superar as seduções do mundo do Isso por simples atos que fazem a diferença e a transportam para um mundo dialógico Exemplo disso é uma pergunta interessante que Buber faz será que o dirigente de uma grande empresa pode praticar uma responsabilidade dialógica E responde Ele pode fazêlo na medida em que dirige a empresa como um conjunto de pessoas dotadas de rostos de nomes de biografias BUBER 2007 p74 Em outras palavras qualquer um pode exercer a livre iniciativa de dialogar com o outro mesmo em situações adversas E ele faz questão de enfatizar mais ainda a atitude do dirigente Ele a exerce quando graças a uma fantasia latente e disciplinada tem a consciência íntima desta multidão de pessoas que naturalmente não pode conhecer individualmente e das quais não pode se lembrar de tal forma que quando uma delas por uma razão ou outra aparece agora realmente enquanto indivíduo no círculo de sua visão e no âmbito da sua decisão ele a percebe não como um número com uma máscara humana mas sem esforço como uma pessoa Ele a exerce quando compreende e trata estas pessoas como pessoas na maioria das vezes necessariamente de uma forma indireta através de um sistema de mediação que varia de acordo com o volume com a espécie e a estrutura da empresa mas também diretamente nos setores que o interessam de uma forma organizacional BUBER 2007 p 74 Nesse sentido na relação dialógica não existe nenhuma forma de preconceito tudo é permitido desde que haja disponibilidade para diálogo Assim o diálogo é extremamente democrático não difere raça cor condição ou classe social idade sexo disparidades ideológicas ou culturas Não existe outro que é mais ou tem mais existem sim pessoas que se doam se disponibilizam estão sintonizadas entre si para a qual tende a relação dialógica vivida intensamente entre as pessoas Ao refletir sobre o diálogo Buber fala ao homem concreto no seu cotidiano não vai buscar nenhuma forma mirabolante ou atípica para exemplificar sua visão de diálogo não vai dizer que o diálogo é precedido por regras exteriores ou por atitudes planejadas entre as pessoas Nem tampouco é privilegio de alguns escolhidos Eis o que Buber vai falar Apresentamse o homem absorvido pelo dever e pela empresa Sim é justamente a ele que me refiro ele na fábrica na loja no escritório nas minas no trator na tipografia o homem Não estou à procura dos homens não os escolho eu aceito os 105 que aí estão é esse que tenho em mente este atrelado ao serviço o que move a roda o condicionado O diálogo não é assunto de luxo intelectual e de luxúria intelectual ele diz respeito à criação à criatura e o homem de quem falo o homem de quem falamos é isto é criatura trivial e insubstituível BUBER 2007 p 71 Vale ressaltar que a diferença básica existente entre a relação EuTu da relação Eu Isso está na noção de totalidade que caracteriza a relação ontológica EuTu não se volta para as coisas e pessoas apenas como seres ou objetos individuais ou sobre as suas conexões causais mas sobre relações de outro tipo estabelecidas entre os homens e os seres que o envolvem no mundo cotidiano no seu universo cultural individual ou social Falar das relações ontológicas e existenciais é reportarmonos inevitavelmente a Gabriel Marcel 18891973 um dos principais representantes do existencialismo cristão Como era filho de diplomata viajava com o pai inúmeras vezes e daí aprendia diversas línguas e culturas Desde muito cedo teve inclinação para a Filosofia tanto é que aos dezoito anos já escrevia sua tese para diplomação em estudos superiores Seu pensamento filosófico foi influenciado por sua história de vida Muito cedo aos 4 anos perdeu mãe e como filho único foi superprotegido pela avó e pela tia que mais tarde casouse com seu pai Apesar de ser criado praticamente sem referências religiosas significativas suas reflexões sobre a realidade e a vida têm um caráter extremamente transcendental a ponto de escrever que no recolhimento não encontramos só o outro porém encontramos também os outros e por meio deles vislumbramos a Deus Durante a 2ª guerra Marcel participou da Cruz Vermelha no trabalho com as famílias que perderam seus entes queridos na guerra Sua missão consistia em comunicar a morte ou o desaparecimento das vítimas da guerra aos parentes sedentos de esperança ou desespero em ter notícias Essa experiência escreveu mais tarde o levou a valorizar a existência concreta Poucos como Marcel escreve Nogare sentiram a necessidade e exaltaram o valor da comunhão interpessoal Ser para Marcel é sercom Contanto que se trate de uma comunhão autêntica de forma que o outro se torne para mim um verdadeiro tu uma presença o que é possível somente pelo amor NOGARE 1985 p 132 E por meio do amor fez ecoar seu pensamento ao expressar O amor traz origem de uma certa posição que não é aquela do se nem aquela do outro enquanto outro é aquela que eu chamaria do tu Isto é pelo amor o outro de mim tornase um tu o outro de mim não é um objeto afastado de mim que trato como minha propriedade o tu é algo em intima relação comigo unido fundido comigo o outro de mim a realidade diversa da minha será verdadeira 106 realidade quando se tornar para mim um tu isto é quando houver intima relação com ela NOGARE 1985 p 132 grifos do autor A vinculação entre o ser e o ter aliás nome de sua mais importante obra distanciam se quando o homem moderno procura na segurança de sua comodidade contraporse à valorização do ser Nisso Marcel distingue duas esferas ou planos o plano do ser e o plano do ter O plano do ter é da objetivação da técnica da alienação do homem diante do mundo coisificado e por conseguinte da angústia e desespero tão bem descritas por um Sartre ou Camus Nesse plano descreve Marcel o homem é degradado a um objeto é possuído pelos domínios externos pela posse das coisas que acaba o escravizando Ao contrário o mundo do ser é o plano da subjetividade das vivências pessoais da existência autêntica Porém Marcel aponta que o mundo do ter é mais próximo da vivência do homem motivado pela razão e pela sociedade Pela razão porque considera tudo sob o ponto de vista do útil e pela sociedade outro entrave à vida do ser principalmente sob o aspecto da técnica presente na sociedade porque está quase que fundada no domínio do ter Nogare 1985 descreve a preocupação de Marcel Mas é sobretudo na técnica que Marcel vê o grande perigo para o homem A técnica filha da razão cientifica em lugar de conferir ao homem um domínio sobre as coisas e facilitar sua realização escravizao e o empobrece espiritualmente até tornálo um autômato uma função ou antes um feixe de funções NOGARE 1985 p 131 E é verdade Marcel refletiu bastante sobre a influência maléfica da técnica e seus impactos negativos para a pessoa pois o uso sistemático e deliberado das técnicas só se faz presença em um mundo onde os valores estão comprometidos com o mundo do ter onde se recusa olhar a pessoa como imagem e semelhança de Deus Ainda que pareça clara esta afirmação de Marcel ele dirá que aí se encontra um duplo perigo principalmente pensado do ponto de vista do existencialismo de Sartre primeiro o homem sendo conduzido a atribuir a si próprio de que é um ser que se faz a si mesmo e não o que se faz ninguém pode favorecêlo nem sequer há dom que possa fazerlhe é radicalmente inapto a receber MARCEL sd p 62 Do outro ponto de vista o homem será levado a considerarse como um refugo de um cosmos aliás impensável como tal de modo que ao mesmo tempo e pelas mesmas razões vêloemos exaltarse e depreciarse desmedidamente MARCEL sd p 62 Apesar de continuadamente criticar o uso da técnica por considerar que há um rebaixamento da pessoa Marcel não é totalmente contrário a elas ou seja ele não condena os 107 fins da técnica e das facilidades advindas dela no entanto ele reflete que quando essas técnicas estão dispostas no seu sentido concreto e prático nas relações com o ser humano as coisas tendem a complicarse e faz um questionamento bem pertinente se o homem pode ser escravo dos hábitos deve poder ser prisioneiro de suas técnicas Questionamento bem procedente e atual esse de Marcel Do uso deliberado da técnica podese chegar a sua idolatria ponto alto do uso e submissão da pessoa à técnica no entanto alguns acontecimentos históricos ainda provocam horrores e indignação nos homens podendo dizer que só assim é de pensar que os homens não estão suficientemente adaptados ao universo da técnica pura e por abominarem certas crueldades e ferocidades cometidas em nome da técnica e do progresso E Marcel enfatiza temos que reconhecer que neste caminho da barbárie mais horrorosa a barbárie apoiada na razão já se levaram bastantes jornadas MARCEL sd p87 Embora sua preocupação repouse no domínio do ter pelo qual o homem de alguma forma é impregnado e isso Marcel foi um contumaz crítico de sua época pois vislumbrou o caminho contrário que leva o homem ao encontro consigo mesmo e com Deus que é a esperança sob a égide do ser e pela qual é afirmação de uma presença no ser de algo invisível poderoso aliado que pode socorrerme na necessidade25 Ao refletir sobre o homem em suas esferas do Ter e Ser Marcel coloca a pessoa em sintonia não apenas com o ser singular mas sobretudo com o ser disponível ao outro favorecendo a verdadeira participação que é disponibilidade amor fidelidade armas poderosas para o pessimismo e a indisponibilidade Quem vive no mundo do ter diz Marcel é propenso ao desespero porque tudo lhe parece como um problema no entanto a esfera do ser é tendente à esperança porque esta se faz presença espontaneamente É fundamental compreender que a noção de pessoa definiuse de maneira muito coincidentes entre os diversos filósofos aqui apresentados muito embora cada um apresente evidentemente reflexões temáticas diferenciadas e uma maneira particular de estruturar a realidade a partir de seus pensamentos incluindo aí estilo metodológico influências diversas e temas abordados 2 2 DIÁLOGO DE MOUNIER COM O MOVIMENTO EXISTENCIALISTA 25 wwwmounierorgpdfsGabrielMarcel 108 Se Kierkegaard foi o iniciador do existencialismo e a sua noção de pessoa remonta à sua singularidade e sua idéia de realidade é sempre atuante longe de qualquer esforço de sistematização Gabriel Marcel foi o mais próximo representante do existencialismo cristão e assim como Mounier assume uma postura de imprevisibilidade diante do real e a pessoa está sempre por fazerse Nogare 1985 p 129 escreve que é em Gabriel Marcel que o princípio característico do existencialismo a existência precede à essência assume o sentido preciso que lhe foi dado desde o início O pressuposto universal do existencialismo de que a existência precede a essência é pois uma característica muito bem definida por Sartre Em sua obra O Existencialismo é um Humanismo ele traça um perfil do existencialismo fazendo inclusive a distinção entre as escolas assim se colocando A maior parte das pessoas que utilizam este termo ficariam bem embaraçadas se o quisessem justificar O que torna o caso complicado é que há duas espécies de existencialismos de um lado os que são cristãos e entre eles incluirei Jaspers e Gabriel Marcel de confissão católica e de outro os existencialistas ateus entre os quais há de incluir Heidegger os existencialistas franceses e a mim próprio O que tem de comum é simplesmente o fato de admitirem que a existência precede a essência ou se quiser temos que partir da subjetividade SARTRE 1987 p 108 E na verdade o que significa a expressão de que existência precede a essência Novamente é Sartre quem coloca significa que o homem primeiramente existe se descobre surge no mundo e que só depois se define Podese dizer que o Existencialismo não é um achado contemporâneo muito embora não fique claro para todos pois geralmente ao nos referir sobre tal filosofia nossas preposições vão imediatamente aos escritos de Kierkegaard Sartre Nietzsche e Heidegger E é verdade mas Mounier dedicou um livro em que figuradamente coloca o desenho de uma árvore para traçar nas palavras dele a árvore existencialista indo às fontes existencialistas lembrando suas fontes remotas É importante agora colocar qual o diálogo de Mounier com o movimento existencialista Para isso colocarei a árvore existencialista a fim de remontar sua história 109 Fig 01Árvore existencialista Fonte Mounier 1963 1 Na raiz Sócrates os Estóicos Santo Agostinho e São Bernardo 2 No tronco por ordem estão Pascoal Maine de Biran e na extensão toda do tronco encontrase Kierkegaard até porque este é considerado o precursos do existencialismo cristão 3 Antes das folhagens no topo do tronco está a Fenomenologia método e vão de pensamento de Husserl pai da fenomenologia o qual teve grande influência nas filosofias existencialistas 4 Nas folhagens do lado esquerdo representando o Existencialismo ateu tem Nietzsche Heidegger e Sartre 5 Do lado direito dos ramos encontrase uma extensão muito maior de filósofos que representam o existencialismo cristão La Berthomiere Blondel Bérgson Péguy Landsberg Scheler K Barth Buber Berdiaff Chestov Soloviev Marcel Jaspers e o próprio Personalismo O existencialismo é uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das idéias e da filosofia das coisas avalia Mounier O que importa para o existencialismo é a 110 existência do homem e por isso apóiase numa grande galeria de filósofos que vão dos antigos e clássicos aos mais modernos A primeira menção ao existencialismo encontrase em Sócrates com a célebre frase Conhecete a ti mesmo onde o homem é estimulado a conhecerse a si mesmo antes de qualquer coisa perante o mundo Continuando com os clássicos temos os estóicos que chamam ao autodomínio São Bernardo e sua luta em nome de um cristianismo de conversão em oposição a sistematização da fé tentada por AbelardoMounier1963 p12 Em Pascal que se ergue contra os que davam demasiada importância às ciências esquecendose do homem e de sua existência vivida Foi Pascal segundo Mounier quem traçou todos os caminhos da abordagem dos temas existencialistas Todavia confere a Kierkegaard como sendo o pai do existencialismo assim como outros o afirmam embora durasse 100 anos para ser traduzido e penetrar na França O precursor francês Maine de Biran foi outro que lutou contra o nivelamento do homem pelas ciências sensualistas do século XVIII O existencialismo vai depararse então em dois ramos um está atrelado à dimensão cristã cujas temáticas voltamse para o resgate do homem na sua eminente dignidade face à natureza da imagem de Deus resgatada e chamada por Cristo Encarnado primado dos problemas da salvação sobre as atividades do saber e da utilidade Mounier1963 p 13 Diante dessas temáticas Mounier pergunta haverá clima ontológico mais propício para responder às exigências existencialistas O Existencialismo fez sua aparição na escola fenomenológica alemã através de Max Scheler discípulo de Husserl e Jaspers que classificou o inacabamento como critério da existência humana nem pode de acordo com Mounier ser classificado como filosofia cristã muito embora alguns de seus pensamentos possuam toda uma atmosfera cristã Destaca também Landsberg nessa linha cristã Por outro lado uma derivante russa pode ser encontrada em Soloviev Chestov e Berdiaeff e advinda do ramo judeu temos Buber De uma teologia dialética temos Karl Barth que introduziu Kierkegaard no pensamento contemporâneo Num outro brotar da mesma fonte temos a obra de Berthomiere e de Blondel cuja defesa do método da imanência por vezes menos feliz muitas vezes mal compreendida não é diferente do eterno apelo à interioridade Mounier 1963 p15 Em Bérgson reconhece um apelo existencialista na medida em que este se ergueu contra a objetivação do homem pelo positivismo do qual Péguy foi o poeta que lutou contra as dominações positivistas 111 O Existencialismo se caracteriza sempre quer seja cristão ou não por uma concepção singularmente dramática do destino do homem porém para o existencialismo cristão a minha contingência tem a sua raiz na contingência original do ato criador gratuito duplicado pela gratuidade e misericórdia da Encarnação e da Redenção Mounier 1963 p51 Já no existencialismo não cristão a contingência da existência nunca assume o caráter do mistério provocador mas de irracionalidade pura e de absurdidade total O homem é um fato nu cego Está aí assim sem razão É o que Heidegger e Sartre chamarão de facticidade Cada um de nós por sua vez se encontra aí e não aqui não o sabemos não há razão é absurdo Quando despertamos para a consciência e para a vida já estamos aí não o pedimos Como se tivéssemos sido lançados por quem por ninguém para quê para nada É este o sentimento da nossa situação original sentimento supremo para lá do qual nada há Mounier 1963 p53 Aqui figura o tema da estranheza que caracteriza o homem moderno assim como a coisificação do homem perante o mundo e as coisas é fator importante para discutir seu distanciamento entre si e o outro e o niilismo existencial O existencialismo não cristão compreende que o homem luta por um fim inatingível Ao contrário o cristão encara esse inacessível como provisório porque será coberto pela graça que a tornará acessível Quando a filosofia cedeu a tentação de tudo sistematizar e racionalizar segundo parâmetros puramente intelectualistas e racionais como anunciara Hegel de que tudo é real é racional tudo que é racional é real iniciouse um outro ciclo na filosofia onde o professor destronou o herói e o santo Mounier 1963 p22 Iniciouse então uma caminhada de destituição O existencialismo refletiu sobre a natureza das relações que une uma existência a outra existência onde o tema do outro aparece como recurso essencial para preencher as relações das pessoas ainda que estas sejam permeadas de indiferença mas o que interessa é uma atitude de acolhimento que sempre fará parte da essencialidade da pessoa pois sua vida está sempre projetada para a relação com o outro Mesmo refletindo sobre os abismos da solidão e da incompreensão o existencialismo cristão apresenta a promessa da reconciliação com Deus eis a principal diferença de visão de mundo entre existencialistas cristãos e não cristãos segundo Mounier Por outro lado Ricoeur vai designar como Filosofia da Existência as reflexões feitas por Mounier sobre o existencialismo e todos os outros autores de inspiração personalista ao dizer que ao invés de Mounier consagrar uma infinidade de reflexões aos existencialismos que 112 exigiria uma verdadeira crítica das fontes ele preferiu pontuar alguns temas diretores comuns ao pensamento existencialista a fim de elucidar estes temas e as suas conexões com o personalismo E mais uma vez Ricoeur afirma que As filosofias da existência procuram todas reconhecer o cognoscente no existente o sujeito no homem 1968 p 159 E para Mounier a condição do existente configura o homem dentro de uma visão fervorosa livre e responsável que enfrenta o destino com lucidez e coragem E o homem para se entregar as capas da tranqüilidade renuncia a sua condição de existente desvirtuando sua lucidez e coragem entregase à comodidade ao egoísmo prefere à tranqüilidade de uma vida monótona repetida a enfrentar os riscos de uma decisão responsável E o que é o existente Mounier vai dizer é um homem que esbarra com mistérios mas que esbarra por assim dizer no interior de si próprio quase era preciso dizer que se embaraça neles e em contrapartida coloca que o inexistente é um homem que não se embaraça com interrogações vive uma pseudotranqüilidade sem interrogarse sobre nada ou na melhor das hipóteses ao se interrogar sobre algo não reflete suas conseqüências vive o momento somente para si Fundamentado na idéia principal de Marcel Mounier vai dizer que a 1ª preocupação existencialista será a de não deixar degenerar os mistérios em problemas em uma dialética complicada que podem ofuscar os caminhos das aventuras ontológicas A partir destas preocupações o método será de agarrar os problemas como problemas do ser da morte do ter e os levar ao que poderíamos chamar de desdobramento por dentro 1968 p40 A filosofia da existência é uma verdadeira reviravolta do ponto de vista da objetivação Assim a filosofia não começa por uma aquisição mas por uma conversão Essa conversão tem algumas dimensões é silêncio intensidade progressão recolhimento citando Marcel Mas esse recolhimento de que fala não pode ser associado ao quietismo acomodação mas exige também que eu retome o meu ser no decorrer da vidaMounier 1963 p41 ou seja faça minhas retomadas na minha caminhada de existente questione meu próprio sentido Esse tema da conversão foi buscado também em Bérgson quando este diz que a filosofia não começa por uma aquisição mas por uma conversão como a conversão religiosa A conversão existencial se processa como um constante combate Ela não é adquirida uma vez para sempre é uma constante tensão 113 Em oposição ao ideal racionalista de objetividade opõemse os filósofos existenciais como concepção militante de inteligência ou seja a inteligência não é neutra Mounier 1963 p43 isto significa dizer que todas as opções já partem de uma experiência vivida Mounier diz que a nossa existência será sempre impura e poderia quase dizerse que a existência é impossível neste mundo como é impossível para Kant o ato da pura boa vontade Pelo simples fato de existirmos somos culpados e contudo a nossa única dignidade é tentar existir Outro ponto abordado por Mounier é a defesa do existencialismo o afastando das sentimentalidades que comumente se associa às filosofias que tratam do cotidiano e que por isso não se enquadram esquematicamente em nenhuma teoria do conhecimento das ciências Assim ele diz É um erro pensar no método existencialista como uma lógica do sentimento ainda que corra o risco de cair numa dessas filosofias emocionais MOUNIER 1963 p 44 Mas o existencialismo se recusa a deixar às categorias racionais o monopólio da revelação do real e digase que não se recusa as dimensões lógicoracionais do conhecimento necessário até para explicar em parte alguns pontos fundamentais do saber cientifico O que Mounier e todos os autores ditos existencialistas vão dizer que não pode haver primazia ou ainda posse do racional sob as expressões do vivido É Ricoeur que dará um veredicto final a partir dessa afirmação A filosofia existencialista deseja uma apreensão nova da objetividade a elaboração de uma nova inteligibilidade e arriscando por vezes a expressão uma nova lógica filosófica Ricoeur 1968 p160 De qualquer modo dirá Mounier o existencialismo se caracteriza sempre quer seja cristão ou não por uma concepção singularmente dramática do destino do homem E todos os equívocos entre existencialistas ou personalistas e materialistas vem destas duas ambivalências a objetividade e a subjetividade Por objetividade compreendese um justo sentimento de que o homem para ser se deve lançar para fora de si para a provação das coisas e para o conhecimento de uma finalidade e é também a mortal objetivação na exterioridade pura Por outro lado a subjetividade é o reconhecimento do existente humano e do que o diferencia do universo dos objetos é também a tentação do sonho e da involução psicológica Mounier 1963 p129 Mounier faz uma observação interessante quando coloca que quando os marxistas materialistas se referem ao existencialismo limitase a ver como único problema a subjetividade mas negam ou desconhecem que a própria subjetividade não está desvinculada do mundo objetivo há uma relação entre esses dois pólos e é justamente no 114 aspecto em que o materialismo científico negava a realidade do subjetivo onde o existencialismo surgiu CAPITULO III A PESSOA COMO DIMENSÃO COMUNITÁRIA 115 Se fosse necessário delinear uma tal utopia descreveríamos uma comunidade onde cada pessoa se realizaria na totalidade de uma vocação continuadamente fecunda e a comunhão do conjunto seria uma resultante viva desses êxitos singulares O lugar de cada um seria aí insubstituível e ao mesmo tempo harmonioso no todo O primeiro laço seria o amor e não qualquer constrangimento qualquer interesse econômico ou vital qualquer aparelho extrínseco Cada pessoa encontraria nos valores comuns transcendentes ao lugar e ao mesmo tempo particular de cada um o laço que as ligaria entre si Mounier 31 INDIVÍDUO E MASSA COMUNIDADE E PESSOA Em seus estudos sobre Mounier Lorezon 1996 destaca dois princípios que ele chama de axiomas para compreender o sentido que Mounier dá a pessoa enquanto ser comunitário Não existe civilização comunitária que não seja fundada sobre uma base de respeito à pessoa Isso não pode ser confundido com um número ou simplesmente com uma massa anônima A pessoa não existe separadamente da comunidade onde ela se encarna onde vive e convive com o outro LOREZON 1996 p 11 O significado da encarnação da pessoa como se projetando para o mundo encontra no livro O Personalismo a clareza necessária para bem compreendêla precisamente quando Mounier opõe o personalismo a qualquer forma de idealismo quando reduz a matéria e o corpo nele se inserindo numa atividade puramente ideal ou quando dissolve o sujeito pessoal num amontoado de relações geométricas e afirma sobre o personalismo Até nas formas mais elementares da minha existência me afirmo como pessoa e nunca sendo fator de despersonalização muito pelo contrário a minha existência encarnada é fator essencial da minha situação pessoal O meu corpo não é um objeto entre muitos outros não é sequer o meu objeto mais próximo como sendo assim se poderia unir à minha experiência de sujeito Efetivamente as duas experiências não são separáveis existir subjetivamente existir corporalmente são uma única e mesma experiência Não posso pensar sem ser nem ser sem o meu corpo MOUNIER 1964 p 51 116 Essa reflexão nos leva a pensar mais uma vez que a pessoa lançase para fora de si mesma e nisso encontra as outras pessoas e o mundo que a mantém ligada com a comunidade E o homem só é pessoa na medida em que se liberta do poder mortificador das massas e das multidões não se deixa enganar por conceitos individualistas e egoístas se doa também para os outros tendo um profundo sentimento de pertença a si mesmo da comunidade na qual vive e solidariedade com as pessoas indistintamente A pessoa se constituiu na e para a comunidade não coletividade onde a pessoa se converte em número e não para o individualismo que retira a capacidade da pessoa se com o outro características de uma sociedade despersonalizada logo incapaz de desenvolverse sob a égide do respeito e do amor O que se reivindica no personalismo é que a Pessoa é um ser concreto e por sua vez relacional e comunitário Assim Mounier a define Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência e independência no seu ser ela alimenta essa subsistência por uma adesão a una hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por uma tomada de posição responsável e uma constante conversão desse modo unifica ela toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo mediante atos criadores a singularidade de sua vocação MOUNIER 1967 p84 Ou seja é na comunidade na relação concreta com os demais onde indiscutivelmente se constitui a pessoa Para o Personalismo um dos conceitos básicos que dão unidade ao seu pensamento são a pessoa e o Amor Ainda que ambos os conceitos sejam refletidos também numa perspectiva liberal e no romanticismo onde tem significados abstratos instrumentais e alienantes descompromissados com a livre iniciativa da pessoa humana é bom esclarecer que tem significados diferentes como os adotados por Mounier Mounier indica dois caminhos para a pessoa sair do individualismo e se abrir à personalização por si comunitária O primeiro ela chama de apoteose da personalidade que oscilam entre níveis mais baixos aos mais altos da agressividade a atos heróicos O outro que não se encontra senão quando se dá e que nos conduz aos mistérios do ser vai caracterizar a figura do santo 1967 p105 Mas entre o caráter individualista e a civilização personalista ele vislumbra formas comunitárias que embora possam concorrer para o advento da personalização da pessoa na comunidade pode afastála de seu intento e conduzila à despersonalização Por isso ele fala que é necessário refletir sobre as condições de uma verdadeira comunidade e seus diferentes graus Antes disso porém tece com clareza a distinção entre comunidade e massa Para ele as massas são resíduos conceituandoas da seguinte forma 117 Despersonalizadas em cada um de seus membros e além disso despersonalizada como todo a massa caracterizase por um misto singular de anarquia e de tirania pela tirania do anônimo de todas a mais vexatória porquanto mascara todas as forças essas sim autenticamente denomináveis que se cobrem da sua impessoalidade É para a massa que tende o mundo dos proletários perdidos na servidão sombria das grandes cidades dos edifícioscasernas dos conformismos políticos da máquina econômica È para a massa que resvala uma democracia liberal e parlamentar esquecida de que a democracia era primitivamente uma reivindicação da pessoa MOUNIER 1967 p 108 A propósito das reflexões em torno do tema em destaque sobre a massa humana oposto ao sentido personalista e mais próximo do sentido coletivista lembro aqui algumas reflexões de Marcel sobre a consciência fanatizada e não o fanatismo como ele prefere usar até porque ele atribuía aos termos terminados em ismos com certa dose pejorativa típica atitude de aglomerações e massas Ele faz uma análise fenomenológica da consciência fanatizada na tentativa de compreendêla tanto em seu caráter subjetivo assim como compreender as razões pelas qual essa atitude fanatizada se alastrou na sociedade Para tanto penetra no terreno metafísico e religioso mesmo porque o fanatismo é essencialmente religioso do ponto de vista de que existe uma espécie de aglutinação ou identidade de diapasão termo preferido de Marcel porque Esta unidade ou esta identidade é sentida como elo exaltante e tudo se passa como se o fanatismo de um se acendesse ao contato do fanatismo do outro Poderia se dizerse ainda que tudo está centrado sobre a consciência hipertensa de um nós outros MARCEL sd p 122 O primeiro ponto discutido por Marcel é que o fanático não se reconhece como tal não se coloca como fanático a idéia lhe parece absurda porque não tem consciência disso tal é seu fanatismo tornandose mais complicado se estiver centrado em um indivíduofoco ou seja em uma pessoa ou que já está morta ou não Essas consciências exultantes em virtude do fanatismo nos levam inevitavelmente à idéia de massa tema desenvolvido por muitos autores Para Marcel a massa definise como um fato psicológico aquém do ponto onde os indivíduos se constituem em grupos Um indivíduo faz parte da massa quando não só o valor que dá a si próprio bom ou mal não assenta em estimativa pessoal mas quando sentindose como toda a gente não sente angustia alguma e pelo contrario se sente a vontade achandose idêntico ao outro MARCEL sd p124 118 É interessante notar que a idéia de massa repousa na pseudoidéia pertença a um grupo movido por uma idéia ou causa A pessoa sentese de tal sorte envolvida com o grupo seja religioso político ou qualquer forma de agremiações que sua vida passa a ser espelhada pelas atitudes e pensamentos do grupo Por mais medíocre e absurda seja a idéia fanatizante de um grupo a pessoa se sente pertencente atrelada a ele não tendo consciência nem mesmo dos aspectos maléficos e perigosos que essa adesão lhe confere Além de que fica absorvida em idéias radicais e cristalizadas que jamais admite colocála a prova ou duvidar de sua veracidade esta totalmente dominante sem sombras de dúvida Mas o espírito crítico está longe a léguas do fanatismo só ele dirá Marcel será capaz de abafar o fanatismo pois seguramente o espírito crítico é antifanático A consciência fanática repudia tudo que possa não gravitar em seu campo de atração Dizendo em outras palavras o fanático somente está voltado como uma consciente cega e obediente para o campo de interesse de seu grupo O fanático é inimigo da verdade porque o que lhe interessa somente é uma verdade por ele construída uma realidade por ele vivida É aqui se coloca o grande problema do fanatismo avesso à idéia de comunidade por mais que exista um nós uma adesão uma pertença A pessoa enquanto ser comunitário comporta a vivência de partilha e comunhão onde a liberdade e dignidade são a mola propulsora da instituição de um espírito comunitário Ora caminhando assim a comunidade encontra seu equilíbrio a comunidade trilha seu destino e constrói história não uma história falseada mas assentada na verdade Mas exatamente a verdade é ausente de todo fanatismo dirá Marcel Mas notese entretanto que toda a falta de verdade não é fanatismo mas podese afirmar que todo o fanatismo não busca a verdade mas esquivase dela e a partir daí iniciam os graves e desastrosos problemas do fanatismo quando se inicia sua ruína e a total desvinculação da dimensão comunitária Muitos exemplos na história da humanidade e sobretudo na atualidade dão a idéia dos aspectos nefastos do fanatismo Quer ao nível religioso capaz de crueldades e atrocidades motivadas pelo poder vingativo que destrói e mata tudo em nome de um poder mascarado pelo ódio e pelo poder econômico quer no nível político pelo qual pessoas e instituições são cooptadas pelo estabelecimento de determinadas ideologias disfarçadas de bem comum mas na verdade são fontes inesgotáveis de cobiça e poder ou qualquer expressão de fanatismo ou seja qualquer atitude que leve ao exagero pode traduzir situações incômodas e levar a atos insanos 119 Assim fanatismo é a obediência obcecada a uma idéia ou causa por mais que parece absurda ou débil chegando a ser exercida até por meio de atos violentos As pessoas aí incluídas são potencialmente consideradas massa sem rosto sem nome apenas indivíduos que marcham como máquinas a serem acionadas pelo botão do poder e da tirania Outro autor que irá abordar o tema da massa contraposto à comunidade é Buber Ele diz que a massa é algo que não é aspira por algo que esta por vir não é algo permanente é carente a define como máquina de grande tensão de intensa energia mas não é um organismo 1987 p112 Ao refletir a relação da massa com o indivíduo ele nota que este se perdeu entre duas coisas o mundo do tu e a si mesmo Mais explicitamente Buber esclarece essa perda e a desvinculação da pessoa com as maravilhas do mundo humano ao se aprisionar as massas Quero dizer que estes homens têm esta dedicação para com a massa mas não estabelecem mais relações com o mundo Não creio que alguns destes homens realmente percebam o que é isso para o mundo esta infinidade na qual se está inserido neste pequeno lugar neste pequeno contexto não creio que se possa realmente experimentar tornarse unido com isso mesmo nas mais longínquas estrelas com os olhos que encontram a luz com o poder da imaginação que procura compreender este corpo mundano como realidade na indescritível interação ao cósmico Creio que o homem que se rendeu ás massas perdeu tudo isso BUBER 1987 p112 grifo meu Pertencer a uma massa é viver na impessoalidade é não considerar a conexão inalienável do tu com o si mesmo e com o mundo Por não se importar com a vida pessoal a massa ignora a pessoalidade desconhece o ser no mundo com os outros é alienação pura numa disposição devotamente cega ao grupo Existe uma ausência de necessidade da vida pessoal as pessoas vão sendo levadas conduzidas para um objetivo comum sim coletivo sim mas não comunitário eis a grande diferença Assim como Mounier Buber considera o homem como sendo reflexo dos seus atos do seu momento histórico onde vive e participa das suas criações e desse modo pensa a pessoa no sentido comunitário de estar com o outro no encontro dialogal coparticipado onde a participação compartilhamento e diálogo são elementos primordiais para a relação acontecer uma vez que a característica fundamental do homem é ser dialogante é estabelecer o encontro com o outro Em relação à questão da comunidade Buber criticando Ferdnand Toennies para quem a comunidade é baseada em laços sanguíneos seguidoras de uma tradição e a comunidade foi substituída pela sociedade como um fator irreversível ele dirá ao contrário que vê nisso algo 120 reversível Para melhor clarificar essa crítica coloco no quadro a seguir uma clara distinção entre comunidade e sociedade estabelecida por Toennies apud BUBER 1987 GEMEINSCHAFT Comunidade GESELLSHFT Sociedade Vontade natural Os indivíduos age conforme a vontade natural A ação é fruto da tradição e dos costumes Liberdade é a correspondência entre o que se deseja com o que pode ser alcançado A ação é resultado de um talento ou vocação Real e orgânica um tipo de vivencia intimam privada possuidora de exclusividade Vontade racional A conduta guiase pela vontade racional O seu objetivo será sempre o lucro e o individuo é um meio ou instrumento para obtenção de tal finalidade escolhas ou opções porquanto apenas algumas são realmente factíveis Agese em virtude de uma obrigação externa Agregado mecânico e artificial Fonte Elaborado pela autora tendo como referência Buber 1987 Ao refletir sobre comunidade Buber critica alguns sociólogos que a concebem como uma forma regulada Para Buber o sentido de comunidade baseada somente em laços sanguíneos são apenas um dos tipos de comunidade que ele denomina de antiga comunidade Buber acredita que mesmo em uma comunidade cuja tônica seja regulada por princípios utilitários pode vir a transformarse em uma nova comunidade baseada na lei intrínseca da vida no principio criativo e em relações emanadas da livreescolha das pessoas e não de ligações consangüíneas 1987 p17 Buber explicita esse novo projeto de comunidade Aquilo a que aspiramos não é regulamentação externa mas formação interna A forma de vida humana em comum não pode ser imposta de fora sobre grupos humanos ativos ela deve emergir do interior em cada tempo e lugar Somente quando o alegre ritmo da vida vencer a regra somente quando a eternamente fluente e variável lei interna da Vida substituir a convenção morta a humanidade estará livre da coerção do vazio e do falso só então encontrará a verdade pois só o que é fértil é verdadeiro A Nova Comunidade quer preparar ativamente o caminho para esta verdade BUBER 1987 p 37 Por saber da configuração utilitária do mundo contraposto ao princípio dialógico Buber reinventa o sentido de uma nova comunidade onde reina o princípio criador onde não 121 terá como base laços de sangue mas laços de liberdade de escolhas pautados pelas dimensões da vida cotidiana em comunidade Nesses termos assim afirma Nesta nova vida renascerá não só a pluricomunidade numa forma ainda mais nova mais nobre e pura mas também e através dela a bicomunidade e a solidão das mais calmas horas de contemplação e de criação recobrará um novo e mais rico colorido Cada um viverá ao mesmo tempo em simesmo e em todos BUBER 1987 p39 Se Buber reafirma muitas vezes o sentido de comunidade como essa união entre pessoas numa perspectiva do inter humano onde relação intercâmbio e comunidade se entrelaçam e o sentido da pessoa é este doarse para o outro sem perder sua individualidade Mounier será o principal interlocutor dessa projeção da pessoa como sendo para o outro se tornando comunidade Mas é Buber que vai falar com clareza a diferença entre comunidade e coletividade Mounier também já alertara para esta diferença colocando o coletivo na vala comum dos individualismos fascismos nazismos comunismos enfim numa visão politicamente localizada do totalitarismo Buber vai trabalhar essa diferença numa perspectiva embora coincidente mas que conduz à confrontação entre o mundo do eu e tu Assim ele se refere A coletividade não é uma ligação é um enfeixamento atados um indivíduo junto ao outro armados em comum equipados em comum de homem para homem só tanta vida quanto necessário para inflamar o passo da marcha BUBER 2007 p66 A comunidade ao contrário é o estar nãomaisumaoladodooutro mas estar umcomooutro de uma multidão de pessoas que embora movimentemse juntas em direção a um objetivo experinciam em todo lugar um dirigirseumaooutro um faceaface dinâmico um fluir do Eu para o Tu a comunidade existe onde a comunidade acontece BUBER 2007 p 66 Para Buber sair do estado coletivo para a dimensão comunitária requer passar de uma atitude do euisso para o eutu em uma autêntica interrelação dos homens na medida em que se torne pessoa dotada de liberdade no entanto ele adverte que 122 Apesar de comunidade ser realmente uma vida comum entre homens livres instituída por eles ela se realiza historicamente como uma aliança aliança pessoal de amor de ações aliança no culto religioso Estas alianças são por sua própria natureza transitórias BUBER 1987 p68 Aqui observo que Buber coloca os elementos constitutivos essenciais para o sentido do eutu a aliança do amor o ato concreto que embala nossa presença no mundo e a projeção desses atos de amor numa perspectiva transcendental espiritual nos quais a comunidade se realiza Além disso aponta ele que todas essas relações na comunidade são transitórias se fazem no embalo histórico de um lugar e época com seu caráter situado e localizado no aqui e agora De volta a reflexão sobre massa na perspectiva de Mounier ao se referir às sociedades de massas ele inicia essa reflexão sendo enfático A despersonalização do mundo moderno e a decadência da idéia comunitária são para nós uma única e mesma coisa 1967 p108 ou seja ambas traduzem o perfil de uma sociedade sem identidade sem rosto onde flutuam opiniões vagas e o conhecimento objetivo Ele identifica portanto diferentes graus de comunidade distinguindo a verdadeira comunidade pessoas de pessoas das pseudo comunidades que não fazem jus à plenitude da vida em comunidade E assim o autor aponta essas comunidades a saber 1 Mundo do se está relacionada à decadência do espírito comunitário numa sociedade sem rosto ou identidade uma sociedade de anônimos onde flutuam indivíduos sem história apoiados num mundo onde reina a indiferença e a impessoalidade Moix 1968 p 150 escreve com precisão o mundo do se O mundo do se é o da irresponsabilidade das idéias vagas das posições neutras da tagarelice do conformismo social e político da mediocridade moral e precisamente é a luta que deve ser empreendida para afastarse do individualismo contra o regime do anonimato que golpeia constantemente a dignidade humana Por outro lado o mundo do se concebe o outro como um dado objetivo onde a vida indiferente ao outro se torna natural E isso Mounier fala que é um pecado central contra a pessoa reduzir o homem a um mero objeto identificandoo mais precisamente sobre suas funções e utilidades é em última instância negar o mundo da pessoa como vocação compromisso e eminente dignidade 2 Sociedade em nósoutros também desprovida de pessoalidade típica de uma sociedade de massas onde o fascismo ou outras formas de delírio coletivo são exemplos porque as pessoas são tragadas como diz Mounier por uma necessidade 123 violenta de se autoafirmar até porque esse modelo de sociedade possui normas regras referências fundamentais que servem como impulso revigorante para fugir às responsabilidades e induz invariavelmente ao conformismo coletivo A utilização do outro se traduz pela necessidade de ser visto conhecido e o outro continua a ser um objeto a ser explorado não tendo importância por seus valores e humanidade mas daquilo que se pode extrair em beneficio de si próprio sequer é em beneficio de outro e muito longe de ser em proveito da comunidade 3 Sociedade do tipo bloco ou a camaradagem ou o companheirismo sem dúvida é mais flexível do que a sociedade em nósoutros porque decorre pelo menos uma vida privada no entanto seus laços são efêmeros demais para animar toda a sua extensão para tocar a alma do grupo no próprio momento em que ela se constitui MOUNIER 1967 p110 É ainda uma comunidade de superfície Ele exemplifica esse tipo de sociedade as formadas por equipe de trabalho um clube desportivo um grupo de jovens 4 Sociedades Vitais embora sejam altamente organizadas são frágeis em espiritualidade e senso crítico Aqui as pessoas são atreladas por laços consangüíneos que as fazem viver uma vida relativamente agradável organizada Os laços são estabelecidos por tradições e comandos préestabelecidos onde nada e ninguém possa ser importunado pois é típico de uma organização rígida e egoísta Nada contribui para personalizar as pessoas ao contrário elas são controladas com rigor vivem segundo Mounier uma espécie de hipnose difusa ou seja se a pessoa pensa pensa de forma segregada pelos interesses da associação ou pelos seus interesses na associação Exemplos desse modo de organização é uma pequena pátria uma família fechada Mounier comenta que essa forma de sociedade propende para uma sociedade fechada egoísta se não for animada do interior por outra comunidade espiritual em que se enxerte 1967 p 112 5 Sociedade Racional está associada ao racionalismo burguês ou ao cientificismo materialista pela qual a razão impessoal é preponderante Aqui vêse a indisponibilidade de despertar o sentido comunitário Essa forma oscila entre dois pontos uma sociedade de espíritos cuja tônica repousa em um pensamento espiritual inspirado por uma linguagem lógica rigorosa assegurando a unanimidade entre os indivíduos e a paz entre as nações porém de tal modo que pode levar a uma máscara de imparcialidade ou a um fanatismo O outro ponto referese às sociedades jurídicas contratuais em que não atendem às pessoas às 124 modalidades das posições que estas assumem à evolução de suas vontades como nem sequer atendem ao conteúdo do contrato a que estão obrigadas MOUNIER 1967 p113 Esse tipo de sociedade traz em si um germe de opressão Essas formas pretensamente comunitárias são nada mais que formas de oprimir a pessoa e tendem a negligenciar o sentido de comunidade fundada na liberdade e dignidade da pessoa Quando Mounier identifica essas diversas formas de comunidade percebese que até a família se não comungar com a partilha solidariedade o amor e respeito para com seus membros pode se tornar uma forma opressora de desenvolver a pessoa e conclui definitivamente a impossibilidade de fundar a comunidade subtraindo a pessoa ainda que a coberto de pretensos valores humanos desumanizados porque despersonalizados MOUNIER 1964 p113 Ao contrário o nós de um grupo é formado por pessoas que se promovem mutuamente plenamente porque estão entrelaçadas em comunhão e compromisso e por isso anuncia Mounier O nós comunitário só se realiza a partir do dia em que cada um dos membros descobriu cada um dos outros como uma pessoa e começa a tratála como tal a compreendêla como tal pois toda a comunidade é uma comunidade de pessoas ou não passa de um número ou de uma força portanto de matéria Espiritual Pessoal MOUNIER 2007 p 71 grifo do autor A comunidade para Mounier seria então uma forma utópica onde será possível a pessoa se realizar na totalidade de uma vocação num viés singular onde O lugar de cada um seria aí insubstituível e ao mesmo tempo harmonioso no todo O primeiro laço seria o amor e não qualquer constrangimento qualquer interesse econômico ou vital qualquer aparelho extrínseco Cada pessoa encontraria nos valores comuns transcendentes ao lugar e ao tempo particular de cada um o laço que as ligaria entre si MOUNIER 1967 p 113 Isso significa dizer que a formação da plenitude comunitária sempre caminha por lugares escorregadios e estreitos sempre é empurrada para um processo não comunitário onde pessoas e instituições são seduzidas por atitudes de comodismo e egoísmo Estas procuram a segurança da certeza investem pesadamente na autopreservação de sua vida procuram afastarse de tudo aquilo que é risco E é verdade viver laços verdadeiros de amor e partilha é romper com o egoísmo conforto opiniões cristalizadas sentimentos polarizados é exporse ao outro colocar sem medo as fragilidades e angústias é se pôr em constante 125 dúvida é um pouco abandonarse em favor do outro é um pouco perderse para se encontrar no outro é um pouco esvaziarse para se deixar preencher pelo outro é ser um pouco distraído e vigilante Distraído porque há que ter um pouco de ingenuidade vigilante porque há que estar atento aos apelos do outro E sem dúvida não existe comunidade perfeita assim como não há ser que se doe totalmente para a comunidade Se assim fosse não existiriam os conflitos e esses são inevitáveis até para a renovação e revitalização da comunidade Neste sentido escreve Moix 1968 p 154 citando Mounier ao dizer que toda a instituição política deve integrar com generosidade uma dupla desconfiança para os indivíduos e grupos Por outra parte se a comunidade visa buscar o bem comum dando garantias de as pessoas se desenvolverem espontaneamente a pessoa tem deveres também que devem ser garantidos para bem viver em comunidade Mounier vai apontar que a pessoa deva sacrificar sua individualidade não aquela de negarse a si própria abandonar seus dons e vocação pois não pode haver comunidade se não for pelo desabrochar da pessoa Sacrificar sua individualidade significa renunciar ao egoísmo e idéias préconcebidas que dificultam as relações interpessoais Baumam 2003 autor contemporâneo já citado neste trabalho e que também mantém um intenso diálogo com as questões atuais em torno da comunidade observa que sentimos falta da comunidade porque nos falta segurança sendo esta uma qualidade fundamental para uma vida feliz Ao continuar a sua reflexão ele indica algumas características da comunidade como um lugar aconchegante e confortável como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva pesada como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado Na comunidade podemos relaxar está seguros dos perigos e dos estranhos podemos confiar uns nos outros todos se amparam ninguém é surpreendido com situações constrangedoras Em comunidade podemos contar com a boa vontade das pessoas sempre alguém estará lá nos esperando nos apoiando nos perdoando E assim Baumam 2003 define comunidade e pergunta quem não gostaria de viver entre pessoas amigáveis e bem intencionadas nas qual pudesse confiar e de cujas palavras e atos pudesse se apoiar De fato a comunidade é um espaço privilegiado de amor e entrega e que segundo Baumam se faz parte de um mundo idealizado e que não está ao nosso alcance faz parte de um paraíso perdido frente aos caos social e pessoal que flutua as nossas relações num mundo líquido e fluído 126 Por outro lado a base do espírito comunitário para Mounier é o amor que interage com todas as formas de ser comunidade e que subsiste a qualquer joguete no qual a pessoa pode vir a ser envolvida pois é dom é comunhão e por isso que Mounier falará em praticamente todas as suas obras e escritos sobre o tema do amor que indiscutivelmente está atrelado ao espírito de adesão e por seu turno ao espírito comunitário Ele vai expressar que existo na medida em que existo para o outro ser é amar E em outro momento afirma Não é um acréscimo intempestivo Sem amor nada existe O amor não é nem consonância nem complacência nem simples agrado Será verdade no tocante à simpatia e as afinidades eletivas pelas quais buscamos no outro uma ressonância de nós mesmos O amor não identifica ao contrario cria a distinção reconhece o outro enquanto outro MOUNIER 2007 p 84 Não se pode confundir amor com suas deformações maléficas à liberdade onde o acordo e a harmonia estão de mãos dadas com a subserviência e a complacência que são típicos do indivíduo medíocre O amor não passa por cima do indivíduo ele desponta para a pessoa que desperta solicita conflitua dialoga discute Mesmo o amor pode por um momento sacudir ou afetar as relações mas depois surge como algo novo revitalizando as relações comunitárias O amor é um tema muito caro à Mounier que chegou a escrever é o amor que tem a razão mas somente a inteligência iluminada pelo amor perceberá sua razão Toda ação é uma ação de presença É preciso amar o mundo é preciso amar os homens quando a gente se doa a um trabalho de manter intercâmbio com eles26 O tema do amor nas relações pessoais e comunitárias é presença sempre atuante nas reflexões de Mounier assim como de muitos outros autores principalmente aqueles que têm como fundamento a inspiração cristã Andreola em artigo da Revista Eletrônica em circulação pela internet27 coloca que em pensadores como Freire e Mounier o tema da esperança amor fraternidade e solidariedade representam categorias epistemológicas e políticas bem definidas a exemplo do perdão trabalhado por Ricoeur frente a um novo ethos para a Europa ou a categoria simpatia refletida por Dalai Lama e diria trabalhada também por Scheler Essas categorias não são consideradas como romantizadas idealizantes fruto de sentimentalismos pueris ou constituintes de atitudes ingênuas e sem vínculos com o real ao 26 A ação Intelectual ou da Influência Bulletin des Amis E Mounier n 4 jan1954 França 27 httpwwwforumpaulofreirecombrRevista Eletrônica Fórum Paulo Freire Ano 1 n 1 2005 127 contrário são efetivamente colocadas como condição fundamental de um pensar reflexivo cuja tônica se volta para construir uma nova humanidade comunitária num projeto personalista e revolucionário sendo o amor o princípio de reciprocidade entre as pessoas Amor e pessoa aparecem intrinsecamente unidos Em sua forma completa o amor não pode não ser pessoal e a pessoa não pode comprenderse fora de uma teia de amor entre os sujeitos O amor é o princípio e o fundamento de qualquer relação De qualquer forma mesmo em autores de épocas diferentes é basilar admitir que a comunidade de fato é esse lugar aconchegante onde esperamos desnudar nossos segredos viver como pessoas e sermos respeitados como tal pois parece que a sociedade em suas macros visões nos impede de sermos vistos nas nossas identidades e privacidades Hoje somos ameaçados por coisas que sequer suponhamos existir não no plano sobrenatural mas materialmente falando mesmo Se as pessoas são fontes potenciais de comunidade elas igualmente e em maior escala vivem a nos surpreender com suas atitudes de aviltamentos ganância competição vingança maldições É delas que temos medo e a partir delas que nos sentimos inseguros roubados em nossa liberdade e sutilmente ameaçados por instituições que desconhecem nosso valor humano As vilanias do cotidiano impedem que os laços de intimidade subsistam nas relações interpessoais restando o estranhamento o receio de entregarse ao outro numa atitude de encontro e intersubjetividade 32 DA PESSOA À COMUNIDADE Mas a experiência de comunidade é um aprendizado do próximo como pessoa e sua relação com minha pessoa já dizia Marcel Não se trata de estar junto somente de pessoas que conhecemos ou que temos intimidade mas pessoas estranhas que mesmo sofrendo um grande processo de despersonalização tem o direito de gozar uma comunhão com o outro O vínculo da pessoa com a comunidade é tão forte e orgânico que se poderia dizer que são pessoas de pessoas sob a qual se erige a verdadeira comunidade porque toda a comunidade aspira erguerse com as pessoas diz Mounier 1964 ainda que as sociedades imperfeitas ou sob pseudoharmonia tendem a cristalizarse em individualidades coletivas diferentes do que é denominado por Mounier de pessoascoletivas sentido verdadeiro da comunidade As outras formas de sociedades são as massas ou sociedades impessoais demonstrando a impossibilidade de fundar a comunidade esquivandose da pessoa em nome de valores pretensamente humanos 128 Mas Mounier 1967 sabe das dificuldades de se erguer uma comunidade fundada em valores éticoscristãos e por conseguinte personalista Tanto é que escreve que as relações comunitárias dentro da realidade humana não são tão simples qualquer comunidade que busque sua harmonia e sua solidez interna e sempre o bem comum de algum modo se chocará com os interesses individuais e é por isso que nenhuma pessoa pode realizarse como ser comunitário numa sociedade política ou econômica A experiência da comunidade é antes e tudo uma experiência de alteridade porque fundada no amor ao próximo se dando a ele como realização da própria pessoa Realizome como pessoa em vistas a entrega ao outro em valores que me arrastam por cima de mim Começo a ser um nós comunitário no dia em que cada uma das pessoas particulares envolvidas na relação se ocuparem do outro de forma de entrega universal sem medida e sem esperar nada em troca Assim como em Mounier 1967 a pessoa se opõe ao indivíduo a sociedade se opõe à comunidade Como já foi dito a comunidade é uma verdadeira pessoas de pessoas e a sociedade é classificada de acordo com os graus também anteriormente comentado Para que a pessoa comece a despontar como dimensão comunitária é necessário deixarse envolver pelo movimento que a leva ao convívio comunitário verdadeiro tanto de expansão quanto de interiorização da vida pessoal porque diz Mounier que não há verdadeira vida comunitária senão pela comunidade de pessoas e todas as outras formas não passam de anonimatos que levam a despersonalização Uma comunidade é uma pessoa nova que se une a pessoa pelo coração profetiza Mounier 1967 p92 Dessa forma as pessoas em comunidade não são ligadas nem por interesses partidários ligas lutas e reivindicações momentâneas sindicatos e outra formas pelas quais se agrupam por interesses pontuais e momentâneos Não que esses agrupamentos não sejam legítimos mas na medida em que cessam as lutas cessamse igualmente os interesses comunitários e estes tendem a esvaziarse tornandose fugazes Nem tampouco a comunidade nasce de impulsos emocionais Ela nasce sim por compromissos de engajamento encarnação vocação e uma multiplicidade de atitudes pessoais que se lançam ao outro e o outro se lança a mim numa dialética indefinida de relações conflitos amizade descontentamento diálogos encontros e desencontros Por outro lado há de se notar que o homem não pode se dar sem reservas inteiramente pois pode correr o risco de alienarse na coletividade Mounier avisara que o homem essencialmente não pertence a coletividade pública ainda que possa comprometerse inteiramente em cada um de seus atos na comunidade mas isso não quer dizer que se perca 129 nos emaranhados de pseudovalores que reduzem a pessoa a estados de subserviência e servidão Mounier vai dizer que a vida pessoal está ligada a certo segredo e que este segredo tem que ser preservado a fim de a pessoa não fique totalmente exposta publicamente esgotável e desgastada pois as pessoas completamente expostas viradas para fora para a exibição não tem segredos não tem densidade nem nada por detrás delas Lêemse como um livro aberto e depressa se esgotam Não tem a experiência dessa profunda distancia ignoram o respeito pelo segredo pelo seu ou pelo dos outros Gostam muito de contar de ouvir contar de fazer alarde e de remexer MOUNIER 1964 p84 Da mesma maneira o pudor tanto físico quanto o pudor dos sentimentos significa que a pessoa é mais do que seu corpo e mais do que suas palavras a que constantemente se expõe Nisso o recolhimento passa a ser fundante dos valores do silêncio e do retiro da pessoa sem que isso resulte numa introspecção absolutamente silenciosa e por isso não comunicável com outras pessoas Aqui o recolhimento adquire ares de sair de si encontrandose para depois encontrar o outro numa distância necessária que favorece saber quem é quem na relação comunitária saber quem e quem na relação interpessoal numa atitude enfim de respeito pelo outro Refletir sobre as dimensões comunitárias da pessoa é desmistificar o privado impedindo que ele seja elevado à posição de defesa contra a vida pública MOUNIER 1964 p 87 Mais também é com a mesma intensidade afastase da prática burguesa da vida privada que multiplicouse em pseudosegredos elevandose à categoria de mediocridade e hipocrisia No entanto o privado do ser existencial não o privado do burguês é exigência concreta da pessoa na sua vocação sempre procurada nunca se encontrada totalmente E essa vocação exprime Mounier se encontra nas possibilidades e limites da realização pessoal num movimento dialético de fora para dentro e viceversa mas inesgotável do ponto de vista que jamais se esgota face às largas expectativas da pessoa ou mais ainda Unindose para se encontrar e a seguir expondose para se enriquecer e se tornar a encontrar depois de novo se unindo no despojamento a vida pessoal sístole e diástole é a procura até à morte duma unidade pressentida desejada e nunca realizada MOUNIER1964 p 91 130 Essa vocação tem um sentido mais pleno para o cristão que crê no envolvente chamamento duma pessoa pois a pessoa tem uma significação tão grande no universo que o lugar por ela ocupado jamais pode ser preenchido por outra pessoa pois em uma comunidade de pessoas cada um se realiza na totalidade de uma vocação continuadamente fecunda e a comunhão do conjunto seria resultante de cada um dos alcances particulares e por isso cada pessoa é insubstituível porque é respeitada com ser singular onde o amor seria o laço de união e não algum contrato ou interesse econômico nem tampouco ligada a alguma instituição extrínseca No momento em que a pessoa desvele sua vocação como ser singular e insubstituível afastando as possibilidades de pretensões diminutas vindas de interesse burguês a pessoa passa a ser gratuidade onde não poderá jamais ser utilizado como instrumento Dirá Mounier que a unidade dum mundo de pessoas só se pode obter na diversidade de vocações e na autenticidade de adesões ainda que seja um caminho mais longo e difícil do que as brutalidades do poder Darse em comunidade significa sobretudo ir ao encontro do outro onde ele está indo sem reservas 33 O COMPROMISSO COMO AÇÃO PESSOAL PARA O DESPONTAR COMUNITÁRIO O ENGAJAMENTO HISTÓRICO Mounier diz que o personalismo como teoria da ação não é seu apêndice é seu capitulo central Desde o princípio é mister afirmar que o personalismo anda pelas largas perspectivas da ação sem a qual todo o esforço pessoal e a ascensão para uma vida comunitária seriam perdidas A ação é tão importante no Personalismo que ele chegar a afirmar faz não interessa o quê desde que tua ação seja intensa MOUNIER 1964 p 153 Ou seja a busca para verdade e para a justiça supõe um esforço pessoal que mesmo sendo desinteressado tem lá o seu valor ainda que o sentido atribuído à ação seja totalmente secundário No entanto é bom afirmar que a ação só é válida a partir do momento em que cada consciência particular amadureça por meio da consciência total de seu tempo Outra forma de encarar a ação é recusandoa nada parecendo importar ou justificar determinadas ações e geralmente leva agrupamentos efêmeros interesses provisórios e 131 ecletismos e mais ainda Conhecemse por uma repugnância visceral pelo compromisso uma impotência para realizar algo MOUNIER 1964 p154 Outros ainda dirão que a ação supõe a não vinculação com qualquer regra sendo inebriados pelos delírios da ação que se traduzirá nas naturezas pobres por uma inquieta e medíocre agitação nas naturezas ricas por uma exaltação da exaltação do poder Mounier1964 154 De qualquer forma a mediocridade e a empolgação não conduzem a ação pelos caminhos da verdade e da justiça Dentre essas pequenas reflexões acerca da ação que faço Mounier 1967 vai propor quatro dimensões da ação as quais devem servir para modificação da realidade exterior que formem as pessoas para viver em comunidade sejam fontes aproximativas entre as pessoas e que por fim enriqueçam o universo de valores A ação contudo deve ser responsável assim como é a liberdade se traduzido num ato ético Assim ele traça um esboço de uma teoria da ação em quatro dimensões 1 No fazer poiein tendo como principal objetivo organizar uma matéria exterior Mounier chama essa ação de econômica porque paira sobre as coisas e diz respeito às forças naturais e produtivas sendo vinculada ao domínio da ciência e a técnica e por isso tem por meta a eficácia Mas como toda a ação humana é preenchida de sentido humano nada disso tem razão de ser se não for fonte de dignidade e comunhão entre as pessoas sob a pena de tornaremse relações humanas coisificadas e meramente instrumentais È por isso que Mounier vai dizer que a revolução não está no plano econômico ou político uma vez que estes mascaram ou ignoram a eminente dignidade da pessoa humana A economia não pode dar respostas definitivas aos problemas humanos a não ser vinculada na esfera do político tendo como meio a ética Ou seja o político tem indiscutivelmente de estar ligado ao rigor da ética ao rigor técnico Nem há privilegio da técnica nem unicamente para a formação interior sobretudo o econômico é pensado nesse vínculo na sua personalização 2 No agir prassein que tem como condição fundamental a formação da pessoa que executa levando em conta suas potencialidades virtudes e sua unidade pessoal Esta zona é chamada ética cuja potência se encontra na autenticidade da ação razão pela qual Mounier afirma que a opção da ética recai sobre o econômico e sobre o plano da técnica E em sua opinião as relações humanas nunca podem ser vistas como relações puramente técnicas Mesmo os meios materiais se tornam meios humanos de ser porque são modificados e transformados pela presença e ação humana tornadose interação Nesse sentido fala Mounier Técnica e ética são dois pólos da inseparável 132 cooperação da presença e da operação num ser que não age senão em proporção com o que é e que não é senão na medida em que faz 1964 p 158 3 Na ação contemplativa ou mais precisamente no teorizar A sua finalidade é chegar à perfeição e universalidade a fim de validar sua ação e transformála em valores válidos para toda a humanidade Essa atividade contemplativa é desinteressada sob o ponto de vista de que não visa à organização das interações entre as coisas e as relações pessoais O contemplativo assume uma ação do tipo profético Essa ação profética assegura a ligação entre o contemplativo e o prático ético econômico como a ação política entre o ético e o econômico MOUNIER 1964 p160 Em outras palavras Mounier quer explicitar que o econômico é apenas um dos aspectos da dimensão da ação não o único e nem o principal A ação humana deve caminhar passo a passo com os valores éticos existindo um élan entre a ação prática o plano político e o econômico tendo como fundamento a ética É por isso que toda ação não deixa de ser um gesto profético 4 A ação é preenchida evidentemente por uma esfera comunitária imprescindível para a humanização do ser pessoal e comunitário devendo ser integral e total no sentido de favorecer a dignidade da pessoa A partir dessas dimensões da ação ou propriamente uma teoria da ação esboçada por Mounier empreendese um vínculo incomensurável entre pensamento e ação em uma intenção clara de conexão entre o contemplativo e o prático Na verdade Mounier sempre reconheceu e deu testemunho de que a ação é movida por um arcabouço contemplativo e vice versa somente não dá primazia de uma sobre a outra mas reconhece que as vivências concretas existenciais e pessoais têm valor fundamental para uma ação comunitária comprometida com humanização da pessoa O compromisso de uma ação responsável indica inevitavelmente reflexões acerca do engajamento pessoal pensada a partir de Landsberg para quem o caráter histórico28 da vida exige o engajamento como condição da humanização Muitas das reflexões sobre o compromisso e o engajamento analisadas em Mounier têm como fundamento o pensamento de Landsberg Este diz que nossa existência humana está de tal modo implicada em um 28 Vale aqui colocar o conceito de história concebida por Mounier Dizer que há uma história não significa somente que coisas se passam ou que memórias retêm fatos É afirmar que o conjunto dos acontecimentos que concernem ao homem a ao universo tem um sentido uma direção e uma significação 1964 Vale dizer que autores como Marcel Landsberg Buber e Ricoeur concebem a história nesta mesma linha de pensamento Mounier também vai dizer que Há uma história porque há uma humanidade 1964 p145 133 destino coletivo que nossa vida particular só pode atingir seu sentido quando participa da história da coletividade daí sendo o sentido de engajamento para ele O engajamento para Landsberg está indissociavelmente atrelado à historicidade responsável porque inevitavelmente nossa vida nos lança para vivermos o momento presente ainda que muitas vezes queiramos passar por cima deles E o que denomina engajamento é o assumir concreto da responsabilidade de uma obra a ser realizada no futuro de uma diretriz definida para o esforço que dirigimos à formação do futuro humano LANDSBERG 1968 p 22 Mais uma vez fica claro porque o engajamento está associado aos círculos históricos de uma vida vivida de modo prospectivo Em outro momento dirá O tempo histórico é o tempo vivido especifico que resulta desta experiência do nós aqui e agora LANDSBERG 1968 p98 Mais propriamente a ação está vinculada ao tempo e ao espaço que por conseguinte faz parte da corporeidade a base física da presença da pessoa no mundo E o engajamento guarda uma contradição até necessária dirá Landsberg a fim de realizarmos um engajamento verdadeiro Essa contradição é a luta entre duas forças O futuro possível a um indivíduo em um momento dado é determinado em grande parte pelas focas coletivas que se mostrarem eficazes na formação e transformação da coletividade contemporânea LANDSBERG 1968 p 23 Como nossa vida está atrelada às condições concretas de nossa existência e mais todos os nossos atos são livres e comprometidos o engajamento por seu turno será igualmente uma adesão livre Mounier já falara isso em diversas ocasiões na sua luta e engajamento social e cristão do qual participava falara em suas reflexões sobre liberdade de adesão e compromisso Landsberg 1968 dirá que o engajamento é um ato total e livre e que não deve se confundir nem por uma reflexão puramente intelectual nem tampouco com a inclusão cega a um grupo mas deve participar na medida em que permaneça livre A pessoa faz a opção de engajarse incorporandose a um grupo pelo fato de ter sido seduzido de querer fazer parte por interesses pessoais ou sentimentalidades advindas da solidão coletiva não deixa de ser o que Landsberg falou em mentira ativa ou seja o não acesso à verdadeira historicidade Assim Landsberg descreve a pessoa engajada O homem engajado permanece livre isto é que se liberta permanentemente pela humanização Quando o encontramos é impossível vermos nele um escravo em marcha forçada ou um desesperado que se destrói Estes perdem dia a dia sua liberdade LANDSBERG 1968 p 25 134 Agir é escolher engajarse é optar pela entrega total desse compromisso e é por isso que a decisão requer afrontamento e coragem de assumir um futuro Não é um ato de adesão interior somente ingênuo e arbitrário Mounier afirma que qualquer organização técnica ou teórica que negue a pessoa de realizar uma opção responsável é veneno mais perigoso do que o desespero Uma vez assumida a estrutura da ação esta passa a ser um consentimento da pessoa de envolverse completamente colocar as mãos na massa como fizera Mounier quando ia para a rua visitava as pessoas falava com elas dialogava quando conheceu as misérias humanas no cárcere e quando viveu concretamente as limitações materiais face a sua adesão pela liberdade Mas não as viveu como uma aventura aliás ele alerta que não podemos confundir comprometerse com aventurarse A pessoa tem que estar consciente das seduções e das espetacularizações de grandes atos e da visibilidade que daí vem Mounier descreve que o permanente perigo da opção como aventura se dá no permanente perigo da cegueira coletiva a ameaça das aparelhagens e dos dogmatismos 1964 p 166 Quando o foco das questões sociais se volta para um assumir autêntico e a pessoa voltase para ser presençacom inevitavelmente o engajamento aparece como pressuposto essencial desse agir Mounier sabia disso e fez do compromisso com o outro sua plataforma de ação fundamentado em Landsberg pensador que traçou as linhas mestras de uma filosofia da pessoa pelas reflexões em torno do engajamento O pensamento de Landsberg gira em torno no quer Ricoeur comentou sobre ele coincide valor histórico existência pessoal e transcendência Tudo isso assentado por uma direção que conduz ao engajamento histórico e por conseguinte comunitário Aliada á idéia de engajamento e compromisso os passos primordiais para se constituir uma verdadeira comunidade estão explicitas tanto no pensamento de Mounier quanto no de Buber As questões relativas à vida social comunitária representaram um dos pontos mais importantes das obras de Buber e Mounier No posfácio obra de Buber Sobre Comunidade Newton A Von Zuben um dos mais expressivos estudiosos das obras de Buber no Brasil diz O protesto lançado por Buber contra a despersonalização o contra a coisificação a que foi submetido o homem moderno através da supremacia do EuIsso em detrimento da autêntica relação serve de certo modo como pano de fundo para tentativa de transformação para verdadeira comunidade BUBER 1987 p 129 135 Contra o esfacelamento das relações paira desde logo a ação dialógica que é o inicio de um espaço onde a pessoa redescobre o comum cria e recria relações autênticas pautadas no respeito no amor em uma relação viva e edificante com o outro A meta da comunidade segundo Buber é a própria comunidade não se faz por cima nem sobre ela se faz com ela daí anulando qualquer possibilidade de conceber o comum de forma unilateral de uma só visada na realidade como algo que acontece pela conversão radical e impessoal a uma única possibilidade de relação Ao contrário a comunidade se faz na existência plural pois é uma pluralidade que deve ser preservada da subordinação a qualquer aparelho unificador Nessa pluralidade as pessoas vêem assegurada a singularidade de sua condição humana BUBER 1987 p 133 A Pluralidade é condição essencial da comunidade29 Sem ela não há chance nenhuma da comunidade aflorar como relação viva e ativa reciprocamente Além disso a comunidade exige um face a face um estarcomooutro um entre nós uma proximidade uma disponibilidade graças àqueles que queriam optar por fazerse com os outros Este processo exige renúncias renunciar ao próprio egoísmo renunciar a uma natureza humana que às vezes nos empurra para a pura interiorização sem se importar com o outro Viver em comunidade é quase que doar sua alma para que floresça viçoso o espírito comunitário e nesse sentido fala Buber citado por Newton Zuben Para que isso ocorra é necessário que os homens e as multidões de homens se despojem de muitas vantagens e privilégios particulares para o bem da comunidade é necessário o inaudito o saber que os homens as multidões queiram a comunidade com toda a força de sua alma BUBER 1987 p134 Isso quer dizer que exigirá das pessoas plena interlocução por meio do diálogo onde cada pessoa confirme a outra em consonância com suas pluralidades e singularidades Esta confirmação não será retirada do indivíduo senão no entredois onde se manifesta a comunidade Retiro das palavras de Buber o sentido comunitário que a meu ver penetram nas largas possibilidades da comunidade como recomeço de um despertar onde o diálogo o inter 29 A pluralidade tem dupla característica igualdade e distinção Igualdade não no sentido de igualdade de nascimento mas igualdade de condição de existência comum da comunidade Tal igualdade vai de par com a distinção vale dizer ela não é redução ao idêntico ao invariável mas paridade fundamental que autoriza a participação da palavra que nos distingue do outro manifestandonos nossa identidade própria BUBER 1987 p133 136 humano e a projeção para absoluto encontram reciprocidade nas relações humanas fazendo as renascer na vitalidade da alma humana A comunidade é união de homens em nome de Deus numa estância viva de sua realização Tal união pode efetivarse somente quando homens se aproximam uns dos outros e se encontram de modo imediato na imediaticidade de seu dar e de seu receber Essa imediacidade existe entre os homens quando são retirados os véus de uma conceitualidade ditada pela procura de proveito véus que não permitem ao individuo manifestarse como pessoa mas como membro de uma espécie como cidadão como membro de uma classe A comunidade pode a partir da relação entre duas ou algumas pessoas tornarse o fundamento da vida em comum de muitas pessoas BUBER 1987 p47 Aqui se evidencia a comunhão e partilha com o Infinito não como algo sobrenatural mas como necessidade humana de estar crescendo em comunidade estar crescendo com o outro respeitando a natureza e sendo intermediado por Deus Essa visão de comunidade antes de fazer parte de divagações teóricas ou abstratas é o ponto de partida de qualquer transformação social Em Buber é transformando a sociedade em comunidade em Mounier com a apresentação de seu projeto societário ou seja a comunidade personalista Ambos vislumbram possibilidades não tecem caminhos definitivos nem permanentes porque sabem que a história da humanidade é constituída de histórias de pessoas em suas micros relações mas que se projetam para a sociedade como todo Eles apontam caminhos tecem discussões despertam as mentes e corações entorpecidas pelo sono dogmático Refletem sobre as relações humanas tão enfraquecidas pelo furor das técnicas mas cheia de possibilidades por laços de amor de carinho e respeito que maravilhosamente embalam as relações entre as pessoas Em 2005 em comemoração ao centenário de nascimento de Mounier Ricoeur proferiu palestra30 em Roma acentuando que o grande problema da humanidade é negar o caráter moral dos laços sociais Assim as formas negativas de comportamentos prevalecem nas relações sociais como humilhação o desprezo a violência em todas suas formas físicas e psicológicas Então a fim de evitar estas ameaças à dignidade humana ele propõe a experiência do reconhecimento efetivo em um mundo pacificado a começar por laços 30Ricoeur interveio por vídeoconferência na primeira jornada do Congresso Internacional dedicado a Emmanuel Mounier no centenário de seu nascimento em 2005 ocorrido de 12 a 14 de janeiro de 2005 na Universidade Pontifícia Salesiana UPS de Roma Disponível em wwwacademusproorg 137 políticos que façam com que as pessoas se tornem cidadãos participantes de uma comunidade Quando os véus caem por terra ou mais precisamente quando os papéis sociais que separam as pessoas se quebram quando a ética advém de um ato de compromisso mais do que simplesmente da aplicação da lei quando a decisão tem um comprometimento humano mas é uma condução divina aí sim se inicia a verdadeira revolução que alcança o homem em seu sentido comunitário 138 CAPITULO IV A PESSOA NA DIMENSÃO TRANSCENDENTAL um homem não pode ser ou permanecer livre senão na medida da sua ligação com o transcendente seja qual for a forma dessa ligação porque é de plena evidência que ela não se reduz necessariamente a modos de prece homologados e canônicos Marcel A revolução será moral ou não será Com estas palavras de Péguy Mounier inicia a longa próspera e incisiva caminhada da Revista Esprit em outubro de 1932 No primeiro número da revista cujo título era Refazer a Renascença ao reconhecer que a pessoa além do caráter social político e comunitário é acima de tudo um ser espiritual transcendental voltada para alguma coisa além dela mesma encontrando em Deus o algo mais para ser completado como pessoa É interessante clarificar o que significa transcendência para Mounier 1971 pois ele diz que a transcendência é uma dimensão fundamental da pessoa Discordando de Sartre e Husserl para quem a transcendência é projeção para frente de um ser que só de si recebe este movimento Mounier vai mostrar que se trata de uma pseudotranscendência ou melhor uma descrição bem ampla da imanência e ao mesmo tempo coloca que no sentido cristão o termo tem uma definição bastante precisa o apelo de Deus a uma comunicação divina Essa é permanente supera as barreiras da historicidade não é limitada pelas experiências da comunicação e encarnação ao contrário leva a sublinhar o que não nasce nem morre o que desgasta os homens e os séculos e para cada um aparece às vezes como a suspensão de toda a dialética o apelo a uma fidelidade absoluta a luz profética MOUNIER 1971 p 47 Mas também considera experiências não cristãs como transcendência a partir do momento em que todo o caminho é aclarado por uma nova luz Evidentemente não foi Mounier que ao dar primazia à pessoa numa junção de corpo e alma reconheceu a pessoa como ser espiritual outros filósofos quer sejam religiosos ou não já apresentavam em seu pensamento o foco à espiritualização Aqui dei ênfase à Mounier além de Buber Ricoeur e Marcel Mounier sempre dirigiu o centro de suas reflexões para o lado espiritual sendo este um foco importante cuja trajetória conduz à pessoa à personalização ou melhor a realização da pessoa é devido à transcendência um esforço constante de superação e de despojamento portanto de renúncia de privação de espiritualização MOUNIER 1967 p95 E posso 139 dizer que o fator que leva à espiritualização é a vocação esta que é descoberta progressiva de um princípio espiritual de vida que não reduz o que integra mas o salva consuma realizandoo do interior É o princípio vivo e criador MOUNIER 1967 93 Mais ainda ele diz que a vocação é um apelo é um chamado silencioso numa língua que passamos a vida inteira traduzindo E esse apelo que é externo fruto de um poder maior vem de Deus E ele repete incisivamente Quando dizemos que o espiritual conduz o mundo não fazemos concessão nenhuma à utopia E quando dizemos espírito dizemos espírito Não um reflexo biológico de justificação ou uma hipótese de estrutura senão uma realidade a que oferecemos nesta adesão total que nos sobrepassa nos penetra nos compromete inteiramente fazendonos ir mais além de nós mesmos MOUNIER 2007 p 40 Para caracterizar a pessoa como ser transcendental Mounier a colocou sob três dimensões a qual as denominou de estruturas do universo pessoal a encarnação a comunicação e a liberdade 41 ENCARNAÇÃO Para o personalismo até nas formas mais elementares de existência nos afirmamos como pessoa não enquanto despersonalizada e sim tendo na existência encarnada o fator primordial da sua condição de pessoa pela qual constitui as estruturas do universo pessoal denominado por Mounier conjuntamente com a comunicação e liberdade Deixo mais claro Mounier denominou de estruturas do universo pessoal 3 três dimensões da pessoa que estando combinadas entre si fazem da pessoa o fator de sua personalização perante o mundo quais sejam a pessoa como existência incorporada ou encarnação a comunicação o ser existindo e sendo com o outro mediados pela comunicação e a liberdade engajada resultante de um ato concreto que requer uma decisão e uma ação Passo agora a explicitar cada uma dessas dimensões A encarnação significa afirmar que a pessoa é corpo exatamente como é espírito aqui as dualidades seculares da separação entre corpo e espírito são rechaçadas e colocadas como a mesma e única realidade porque o homem está mergulhado na natureza desde o começo esta indissociável união está presente no centro do pensamento cristão pois que corpo e espírito fundemse na nossa existência 140 Quando há a primazia de um sobre o outro certamente nos leva a um transtorno de acepção Se por um lado se privilegia somente o espiritual e o cristão fala com desprezo da matéria o faz contra sua própria humanidade e afasta o sentido de Deus Se por outro somente dá importância a matéria vivencia o materialismo no mais sutil desprezo aos eventos que nos ligam ao espiritual Foi antes o desprezo em demasia destas duas formas do homem se apresentar ao mundo que o fizeram mascarar seu verdadeiro sentido humano No Personalismo esse pernicioso dualismo cai por terra porque O homem é um ser natural através de seu corpo faz parte da natureza e o seu corpo segueo por toda a parte MOUNIER 1964 p41 Mas a pessoa não está submetida à natureza como um joguete é antes um ser natural humano porque tem a capacidade de romper com a natureza e transformála com um único gesto Mounier fala da humanidade da pessoa encarnada em sua alma e em seu corpo e aqui faz a grande diferença entre o homem e o animal quando o homem não somente pela consciência reflexiva se afasta do animal senão pela reciprocidade e gestos de amor que o aproxima de Deus inserido no seu sentido de vida vivida refletida preenchida de significados quer sejam de repulsa ao mundo pelo egoísmo quem sejam de aceitação consciente de um Deus Supremo E é verdade só a pessoa pode atribuir significado às coisas do mundo da vida somente ela pode estabelecer laços com Deus dialogar com Ele vivenciar sua fé por meio de atos concretos com o próximo e por meio da oração com Deus Só a pessoa somente ela é capaz de vivenciar situações que a conduzem a atos e ações num refletir constante de seus próprios atos ou ao contrário de se fazer alheio a apelos do outro Só ela possui traços feições e noções que levam ao caminho da liberdade ou a escravidão A aparição desse universo pessoal encarnado e incorporado está preenchida de história de vidas que se subtraem e se submetem pela escravidão de vidas que se somam e se liberam pela liberdade de ser E nisso a união de corpo e alma matéria e espírito caminham juntas não importa em que direção vão mas caminham como que pregadas sem chance de separação Não é por isso entretanto que o personalismo pode ser confundido com qualquer forma de espiritualismo adverte Mounier O personalismo está longe de ser um espiritualismo Pertencelhe em toda a latitude da humanidade concreta qualquer problema humano desde a mais humilde condição às mais elevadas possibilidades espirituais 1964 p 48 E assim continua Mounier o espiritualismo despreza o jugo biológico e econômico muito embora o materialismo pela ordem inversa não o é menos Em qualquer problema 141 prático é preciso assegurar a solução no plano das infraestruturas biológica e econômica se quiserem que sejam viáveis medidas tomadas em outros planos1964 p49 No entanto por mais que os planos materiais denominados de biológico e econômico sejam voltados para solucionar as nossas necessidades mais elementares eles por si só não são suficientes para dar conta das nossas mais profundas dimensões humanas Mounier chega a dizer que o espiritual é também uma infraestrutura e por mais abundante que sejam as dimensões da materialidade ela só poderá desenvolverse numa relação interior à consciência pois não se pode falar de um mundo senão em relação com a consciência que a percebe numa clara adesão à categoria da intencionalidade de E Husserl considerado o pai da fenomenologia Na intencionalidade a consciência está voltada para fora dela mesma para o mundo para as coisas É sempre consciência de alguma coisa e ao mesmo tempo em que se volta para fora reflui interiormente para dentro de si mesma possuindo esse duplo movimento denominado de imanência e transcendência Esta idéia do homem enquanto pessoa criadora aparece sobre duas tendências tendência à despersonalização na qual o homem tende para a indiferença dispersão tornase mera espécie de exemplar repetido e substituindo sua capacidade de criação por hábitos de idéias gerais Já na tendência à personalização a vida aparece como uma acumulação de energia cheia de indeterminação na qual o homem intervém com base nas suas experiências no mundo e com o livre arbítrio que lhe cabe A existência encarnada compreende que existimos subjetivamente e corporeamente Neste sentido não podemos pensar sem ser nem ser sem o nosso corpo por meio do qual nos expomos a nós mesmos e ao mundo Não um corpo que comporta apenas traços físicos ou heranças genéticas sobretudo o corpo que sou eu o corpo que me projeta ao outro na sua expressividade e manifestação de uma interioridade e exterioridade que leva a uma relação com consciência e objetividade Em relação ao vínculo com a natureza o homem muitas vezes não aceita se submeter às ações da natureza de onde veio e por isso se volta para ela de forma a transformála Em um primeiro momento assume a influência do meio natural mas logo em seguida busca a sua transformação e desse modo realiza sua afirmação pessoal que ocorre mediante a destruição de obstáculos Assim passa a negar a natureza como dada e vêla como obra pessoal suporte de toda a personalização No entanto vale ressaltar que se deve dar um sentido a esta ação sobre a natureza 142 O homem não pode se entregar às desilusões de sua própria existência e segregar uma tirania que vem sempre deste e não das coisas É necessário produzir mas não simplesmente visando o primado do econômico e sim a prosperidade humana que só pode ocorrer com a conservação do mundo O mundo já alcançou o sentido profundo do desenvolvimento técnicocientífico sua realidade já é desenvolvida nas mais altas soberanias do virtual do mecânico do nuclear e em conseqüência o fez anônimo uma vez que o homem perdeu a capacidade de caminhar harmoniosamente com a era tecnológica e esta se delineia como que à revelia da pessoa aliada ao monopólio do capital e com a lógica do lucro fatores cruciais pelos quais o homem passa a submeterse ainda que seja beneficiado com todas as maravilhas do progresso científico É por isso que Marcel sd vai dizer que a era da técnica compromete veementemente o movimento de personalização pois torna a pessoa entregue aos caprichos do desenvolvimento não só econômico advindo do controle dos meios tecnológicos mas e principalmente do controle vindo de algo que nem sequer domina e muito pouco conhece Com isso fica mais facilmente manipulável O Personalismo vê nisto a possibilidade do homem um dia invadir o universo e desenvolver o seu reino mas não tentando submeter a natureza aos seus caprichos mas antes de tudo estar com ela ser com ela num movimento de constituição homemnatureza mediados por Deus uma vez que A perfeição do universo pessoal encarnado não é pois a perfeição duma ordem como pretendem todas as filosofias e todas as políticas que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo É perfeição duma liberdade que combate e que combate duramente Por isso subsiste até mesmo nas suas derrotas Entre o otimismo impaciente dos fascismos o caminho próprio do homem está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta Mounier 1964 p 58 A estreita vinculação da pessoa espiritual com a individualidade material reside no fato de que ambas necessitam de condições concretas para se criarem E a criação de vidas dignas onde o primado da pessoa seja respeitado só se dará pela mobilização de uma vida de bemestar e segurança O grande mal do capitalismo burguês não é somente matar os homens o subtraindo de suas possibilidades quer seja pela miséria quer pelo ideal pequenoburguês31 e sim dificultar ou mesmo anular o gosto de ser pessoa 31 Mounier faz uma alusão ao que seja o ideal burguês e o pequenoburguês O burguês satisfeito com a sua segurança e o espírito pequenoburguês inquieto por adquirila não há diferença de natureza mas de escala e de meios Os valores do pequenoburguês são os do rico definhados pela indigência pois que são corroídos pela preocupação da promoção social pelas vaidades 143 Giovanni Papini filósofo e jornalista italiano chega a dizer que a tragédia do homem moderno não é que este vendeu sua alma ao diabo senão ele o diabo nem sequer se interessa em comprála de tão corroída e vivida numa situação de niilismo em que se encontra perdido pelos revezes das trevas e da escuridão quando nem mesmo o demônio e muito menos a própria sociedade encontram respostas e saídas para essa crise que Mounier em sua época décadas de 30 e 40 já anunciava como crise da civilização ou da modernidade em que a pessoa já vivia presa às amarras da opressão em todos os sentidos na sua interioridade e na sua exterioridade Não é sem razão embora mergulhado num profundo pessimismo que o existencialismo não cristão ou ateu de Sartre e Heidegger proclamava a agonia do homem moderno Na questão discutida sobre a existência incorporada a pessoa humana vinculase à relação com a natureza não somente como fator de exteriorização mas mediante relações dialéticas de troca e reciprocidade Ainda que o homem deva conquistar a natureza e dela tirar seu proveito não há uma primazia de uma sobre a outra pois a natureza começa a se humanizar com a ação humana produzindo atividades modeladas às exigências da pessoa pois não é propriedade do homem Mounier fala com severidade sob este aspecto O homem não é criado pra possuir as coisas e exercer sobre elas seu instinto de posse mas em primeiro lugar diz Gênesis para lhes dar nomes isto é para iniciar com elas um diálogo familiar e em seguida as orientar para Deus ao mesmo tempo que ele Suas relações com elas não são de senhor e escravo mas de fraternidade de origem e de destino MOUNIER 1972 76 A relação do homem com a natureza é tão estreita que Mounier chega a dizer que há uma espécie de sacramento natural com gestos de saudação e acolhida Quando São Francisco nomeou o sol e a lua de irmãos não foi para satisfazer sentimentalidades pueris ou insanas foi incentivado por um profundo sentimento familiar que deve conduzir a relação do homem como a natureza Essa primeira dimensão da pessoa como encarnação faznos portanto negar qualquer dualidade corpo e espírito que possa servir de fator de despersonalização da pessoa e favorecer sua cega caminhada por paragens opressoras e disfarçada de verdade Nenhuma ética alicerçada em valores humanos pode desconhecer essa relação e interdependência entre corpo e espírito pois efetivamente as duas experiências não são separáveis existir 144 subjetivamente existir corporalmente são uma única e mesma experiência MOUNIER 1964 p51 42 A COMUNICAÇÃO Outra dimensão inconfundível da pessoa é a comunicação que se volta contra todo o individualismo burguês que marcou a trajetória do homem cuja vivência era de horror e aviltamento da pessoa no período das guerras mundiais e depois marcado por regimes totalitários que imprimiam sua total desvinculação de seus valores essenciais Sem dúvida a comunicação é um dos temas mais discutidos na atualidade não só por sua importância no meio social mas principalmente pela influência que despeja sobre milhões de seres no planeta Por ser o personalismo uma atitude contra o individualismo a dimensão da comunicação tornase imprescindível para o livre exercício da pessoa no mundo pois nossa condição humana é marcada por conflitos que vão se cristalizando na medida em que cessam as familiaridades e laços de fraternidade humana As contradições inerentes à condição de singular e coletivo ou a clássica afirmação de que a minha liberdade acaba quando começa a do outro dão a exata dimensão das constantes e inacabadas guerras na vida em sociedade Muitos filósofos basearam suas reflexões nos reveses da condição humana aliás Mounier prefere chamar condição humana à natureza humana por considerar que este último termo se fixe nos moldes da previsibilidade Particularmente autores existencialistas de ramificação atéia como Heidegger e Sartre traçaram um perfil tenebroso desses conflitos humanos tendo como pressuposto o desejo de possuir e submeter Sartre ao falar do olhar diz que não posso voltarme para o ser do outro sem congelálo roubarlhe seu mundo e bloquear sua liberdade o tornando meramente um objeto paralisar ou mesmo desconhecer a presença do outro É o mesmo de dar somente importância ao olhar que fixa o outro parado e duro O mais profundo olhar é ao contrário do que diz Sartre é perturbador não no sentido de distância e aflição mas o olhar significando acolhimento presença Esse olhar evidentemente não me imobiliza nem me constrange ou me afasta ele me inquieta me leva a questionar Esse mesmo olhar que mortifica o outro pode ser também o olhar de acolhimento Isso fica bem claro nas palavras de Mounier 145 O olhar do outro pode gelarme esquecese que ele pode ser ao contrário como as palavras o dizem tão bem transtorno Isto é que em lugar de imobilizarme numa espécie de morte de mim de mesmo e de fascínio escravo ele me vivifica e em mim suscita disposições desconhecidas MOUNIER 1972 p137 Esse olhar que imobiliza e escraviza certamente é um forte obstáculo à comunicação da pessoa com outra pessoa ou ao contrário quando há uma comunicação verdadeira há um encontro um acolhimento onde o olhar tornase presença e liberdade disponibilidade e caridade pois a pessoa ao voltarse para outra pessoa permite que aconteça o encontro existencial em que ambos estão disponíveis para o outro e a comunicação darseá pelo olhar que penetra e vivifica e pelo diálogo que amplia as possibilidades de comunicação Ao refletir sobre a comunicação Buber nos fala do silêncio que também é comunicação Ele diz que mesmo a mais ardorosa discussão não significa conversação e ao contrário uma conversação não necessita de nenhum som emitido e nenhum gesto para torna se diálogo Ele não fala aqui do silêncio dos amantes que com um único olhar se interpenetram nem tampouco ao místico que encontrando outro ainda que sem proferir uma palavra realizam uma espécie de reflexão da face divina onde então se experimentam reciprocamente Esse encontro que é comunicação mas que é perpassado pelo silêncio ele dá um exemplo Imaginemse dois homens sentados lado a lado em algum lugar solitário do mundo Eles não falam um com o outro não olham um para o outro nem sequer se voltaram um para o outro Eles não se conhecem intimamente um nada sabe sobre a vida do outro conheceramse hoje cedo em suas perambulações Nenhum dos dois pensa neste momento no outro não precisamos saber quais os seus pensamentos Um deles está sentado no banco comum da maneira que obviamente lhe é habitual sereno disposto de uma forma receptiva para tudo que possa acontecer seu ser parece dizer que não é suficiente estar preparado que é preciso também estar realmente aí presente O outro sua atitude não o trai é um homem reservado controlado mas quem o conhece sabe que desde sua infância pesa sobre ele um feitiço que o seu autocontrole é algo mais do que uma atitude que por trás de toda atitude está entrincheirada a impenetrável incapacidade de se comunicar E agora imaginemos que esta seja daquelas horas que conseguem romper as sete tiras de ferro que envolvem o nosso coração o feitiço dissolvese de repente Mas mesmo agora o homem não diz uma palavra não move um dedo E entretanto ele faz alguma coisa A dissolução do feitiço aconteceulhe pouco importa de onde sem sua ação mas eis que este homem faz então libera dentro de si uma reserva sobre a qual somente ele tem poder de ação Sem reservas a comunicação jorra do seu interior e o silencio a leva ao seu vizinho para quem ela era destinada e que a recebe sem reservas como recebe todo o destino autêntico que vem ao seu encontro Ele não poderá contar a ninguém nem a si mesmo o que experienciou O que sabe ele agora do outro Nenhum saber é mais necessário Pois onde a ausência de reserva reinou entre os homens embora sem palavras aconteceu a palavra dialógica de uma forma sacramental BUBER 2007 p 36 146 Para clarificar esse exemplo diria como Buber que o diálogo e a disponibilidade para o outro são perfeitamente aceitáveis sem necessariamente haver a presença dos signos ou seja o som e os gestos muito embora esses sejam condições fundamentais para a comunicação Nesse sentido o diálogo pode transcender esses limites e fazse num acontecimento que é concreto no sentido estrito da palavra totalmente inserido no mundo comum dos homens e na seqüência temporal concreta BUBER 2007 p37 Mounier dirá que acontecimento designa tanto um encontro de pessoas quanto um fato propriamente histórico abrangendo todos os domínios da atividade humana Buber se refere a essa comunicação acrescentando um elemento imprescindível ao sentido do diálogo que é a reciprocidade da ação interior ou seja duas pessoas que estão dialogicamente ligados devem estar voltados umaparaaoutra sem reservas É interessante ressaltar que Mounier na reflexão que faz sobre o sentido da comunicação na obra O Personalismo publicada em 1949 mas os escritos sobre o personalismo já surgem a partir de 1932 com as publicações da Revista Esprit portanto posterior a obra de Buber Eu e Tu de 1922 diz também que é pela experiência interior que a pessoa surge como presença voltada para o mundo e para as outras pessoas como que envoltas numa perspectiva de universalidade ou seja as outras pessoas não a limitam pelo contrário por meio da relação crescem e fazemna ser mais Buber 2007 distingue três maneiras pelas quais podemos perceber o homem que está diante de nós e assim realizarmos nossa comunicação com ele No primeiro caso fazse o papel de observador pelo qual me disponho apenas a observar o outro tentando anotálo Eu o desenho em seus traços detalhadamente para daí tirar sua utilidade Essa observação é típica das ciências positivistas que em tudo quer perceber a utilidade para dela lhe servir como um cientista que observa e manipula os dados objetivos de um fato e um rosto nada mais é do que uma fisionomia os movimentos nada mais são do que gestos expressivos BUBER 2007 p 41 Aqui o outro é simplesmente objeto de minha observação e todas as minhas investidas serão para atender aos meus interesses de observador e digase numa observação planejada que anula a possibilidade de vêlo como pessoa em seus movimentos e gestos em suas subjetividades e afetividades No outro caso o contemplador este é absolutamente distraído Nada lhe interessa que possa descrever o outro Tudo é permitido e livre ele está despreocupado de qualquer coisa não anota e fica à vontade deixando as coisas fluírem naturalmente sua memória não 147 realiza nenhuma fixação sobre as tarefas que lhe colocam diante de si Neste caso ele peca pela total ausência de compromisso sobre o que está observando Porém Buber lembra que O observador e o contemplador tem em comum o fato de os dois terem a mesma posição justamente o desejo de perceber o homem que vive diante dos nossos olhos de nada a mais este homem é para eles um objeto separado deles próprios e das suas vidas pessoais que justamente e apenas por isso pode ser percebido de uma maneira certa BUBER 2007 p 42 E o mundo dos outros não é um jardim de delícias escreve Mounier é constantemente provocação nos impulsiona a ir mais além impondose também como um risco Mounier fala de três espécies de contato com o outro O primeiro suprime toda a possibilidade de contato Certamente pela indisponibilidade do outro e igualmente a minha quando com meu olhar gestos e palavras anulo qualquer possibilidade de contato Essa impossibilidade de contato acontece em todos os níveis de relações quer sejam pessoais ou profissionais Se no primeiro a possibilidade de comunicação é praticamente nula no segundo simplesmente fazse do outro objeto manejável e utilizável conforme seus próprios interesses Aqui é mais grave pois de qualquer forma eu estabeleço uma comunicação e meu encontro com o outro é terrivelmente intencional a fim de manipulálo tornálo uma coisa qualquer o que me interessa é tirar algum proveito da situação o outro só é útil pra mim na medida em que posso alcançar meus objetivos nessa relação previamente planejada e finalmente aquele que tenta reduzir os que o cercam a simples espelho E mesmo nos seus melhores momentos o indivíduo apenas com sua presença dificulta a comunicação MOUNIER 1964 61 ou seja até uma rápida presença pode ser um veneno mortal nas relações entre as pessoas e Para além desta profunda separação a cultura vai desenvolvendo máscaras que pouco a pouco se incrustam até não mais se distinguirem no próprio rosto do indivíduo São um duplo e único meio de nos enganarmos a nós próprios e de enganar os outros de nos instalarmos nos refúgios da impostura para evitar essa zona de verdade que nasce do olhar e de nosso próprio olhar MOUNIER1964 p 61 148 Na outra maneira de perceber o outro na perspectiva buberiana vou ao seu encontro como querendo tomar conhecimento íntimo em que o outro tem algo a me dizer transmite algo a mim E este dizer é diferente da forma de observar e contemplar porque não posso descrevêlo traçar seu perfil detalhar suas feições nada disso me dirá quem é ele Mil fotografias sobrepostas não me dirão quem é o homem coloca Mounier Não posso objetivar este homem porque eu tenho algo a ver com ele eu aqui faço um verdadeiro diálogo com ele estou em relação com sua pessoa de tal forma que estabeleço um laço íntimo com todo o seu ser mas Buber adverte que essa tomada de conhecimento íntimo não precisa ser necessariamente com uma pessoa ela pode se dar com um animal com um objeto uma planta enfim com tudo aquilo que posso estabelecer uma relação dialógica com tudo aquilo que tem algo a ver comigo Nenhuma espécie de fenômeno nenhuma espécie de acontecimento é fundamentalmente excluído do rol das coisas através das quais algo me é dito todas as vezes Nada pode se recusar a servir de recipiente à palavra Os limites da possibilidade do diálogo são os limites de possibilidade da tomada de conhecimento íntimo BUBER 2007 p 43 Ou seja posso manter uma atitude dialogal por exemplo com um animal de estimação quando estabeleço sucessivas relações de afeto e carinho e no qual sou correspondida com uma planta embora pendurada imóvel tem algo a ver comigo eu cuido dela ela responde crescendo viçosa ou com um objeto inanimado uma coisa mas que me acompanha me serve diz algo a respeito de mim é a minha cara Mesmo obstacularizando as relações com o outro a pessoa é por natureza absolutamente comunicável ainda que possa viver na indiferença com o outro portarse como autosuficiente ainda assim nunca perderá sua essencialidade de ser com o outro pois quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros MOUNIER 1964 p 64 O personalismo exprime pois a idéia de que a pessoa não se nutre autonomamente que possuímos aquilo que damos ou aquilo a que damos que não nos salvamos sozinhos nem social nem espiritualmente MOUNIER1964 p65 Nesse sentido a primeira atitude é a criação de uma sociedade impregnada de atitudes pessoais onde os costumes estruturas e até sentimentos estejam fundadas pela pessoa onde seu primado e importância estejam bem clarificados para evitar qualquer erro doutrinário pelo qual a pessoa possa ficar em segundo plano 149 Em suas obras Marcel sd constantemente fala da crise dos valores no mundo atual o que é um empecilho às comunicações entre as pessoas e mais especificamente no que ele denominou o terrível malestar espiritual da humanidade provocado por constantes ataques à dignidade e aos valores humanos Marcel admite no entanto que é considerado perfeitamente normal por exemplo os fatos de carrascos nazistas terem mandado muitas pessoas para os fornos crematórios que tinham rendimento inferior ao mínimo determinado se compreendidos a partir de certos postulados E diz Se pensarmos o homem como máquina é normal e acorde com os princípios da boa economia quando o rendimento for inferior às despesas de conservação e ele já não valer a reparação isto é o hospital muito onerosa para o resultado possível suprimilo como se leva pra sucata um aparelho ou um carro fora de uso quando muito podem recuperar certos elementos capazes de servir como se fez se não me engano no III Reich na guerra como a gordura dos cadáveres MARCELsd p 162 Com essas palavras de Marcel se pode compreender porque o mal a crueldade a tortura e todas as formas de aniquilar com o homem quer seja material ou espiritual encontram justificativas simples e naturais por parte de quem a pratica Observamos atônitos as várias violências pelas quais somos submetidos os absurdos que se praticam no mundo do crime das violências urbanas e cada vez mais vemos horrores estampados a nossa frente Protagonizamos as mais atrozes situações por dentro da normalidade das cidades Não somente as guerras contra os chamados eixos do mal todos os países que se defrontam contra ou disputam armamentos de guerra com os Estados Unidos que se tornaram centros de matanças e chacinas Vêse aqui do nosso lado matanças provocadas pela violência urbana homicídios cruéis mortes no trânsito jovens mergulhados nas drogas e tantas formas de desvalorização do humano praticados por pessoas que julgamos comuns sem necessariamente nos reportarmos aos carrascos nazistas ou fascistas e no entanto elas cometem os mais satânicos atos contra a pessoa porque fatalmente também protagonizaram atos de violência em seus lares e comunidade Estudiosos apontam que a maioria dos estupradores masculinos já foi vítima ou presenciaram estupros na história de suas vidas Muitos relatam que sob seu ponto de vista nada fizeram e que estão injustamente reclusos Isso ilustra que muitos atos bárbaros são cometidos sequer a pessoa tendo consciência de sua crueldade porque viveram histórias de abandono carência violência falta de amor Seus valores foram corroídos pelo desrespeito de si próprios 150 As técnicas de aviltamento de que fala Marcel são próprias aos campos de concentração quando define que são processos intencionais para atacar e destruir em indivíduos de categoria determinada o respeito de si mesmos transformandoos pouco a pouco em resíduo que se considera tal e só pode desesperar não só intelectualmente mas até vitalmente de si próprio MARCEL sd p39 No entanto essas técnicas aludidas por Marcel se encaixam perfeitamente na completa falta de sentido por qual vive a humanidade inelutavelmente atacada por poderes paralelos do mal ora erigido sob a tutela e obstante em conseqüência de poderes econômicos e políticos ora sob a influência de estados psicológicos comprometidos com o ter com a ganância com a usurpação e com a corrupção E no fogo desse combate estão as criaturas humanas fragilizadas e vitimizadas por esses estados de coisas e ao mesmo tempo estas criaturas humanas fortes e impávidas duras com um olhar que não só destrói o outro mas lhes tira toda a chance de recuperar sua humanidade Aqui lembro novamente o que diz Mounier 1964 mesmo um homem degradado não deixa de ser um homem uma pessoa pela qual perpassa sua humanidade vital e inalienável de pessoa embora o mundo contemporâneo com seus contra valores e culturas de alienação em todas as dimensões a empurre para um precipício sombrio e nefasto de destruição de seu ser existencial Mas Marcel adverte mesmo que tudo isso pareça monstruoso e absurdo como o é uma vez que se revela como devastador à dignidade do homem uma reação sentimental em face disso não é suficiente pois as sentimentalidades advindas daí não podem dar lugar a um acontecimento passageiro que logo após cai em desuso ou esquecimento Então se rechaçamos isso como absurdo e cruel como evidentemente a maioria dos seres humanos recusa esse tipo de conduta é porque rejeitamos qualquer forma de aviltamento do homem e não podemos ficar apenas com um sentimento passageiro de reações sentimentais é preciso ir mais além transformar os sentimentos e pensamentos e estes em atos concretos de ação Ao resgatar o sentimento das relações humanas e fazendo delas atos de entrega e engajamento Mounier 1964 dirá que os atos originais inauguram a comunicação e encontram eco na primazia da pessoa 1 Sair pra fora de nós próprios é o ato pelo qual nos deslocamos para o outro nos libertamos de nós próprios para encontrar o outro num caminho autêntico de disponibilidade ou seja na medida em que tento me desapossar de mim mesmo luto contra toda espécie de egoísmo egocentrismo individualismo e nisso tornome 151 disponível ao outro Nisso acontece a comunicação entre as pessoas e as relações tornamse mais acessíveis porque só liberta mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio MOUNIER 1964 p 6 Em outras palavras Mounier acredita que as mudanças primeiramente devem refletir ações interiores que a pessoa para se comunicar com as pessoas deve primeiramente transformarse e num ato íntimo e interior e liberto de si mesmo transformar suas relações com o mundo Peguemos um exemplo de uma intervenção social na qual o profissional de Serviço Social atende uma pessoa vítima de preconceito racional Se ele o profissional não tiver uma visão bem clara sobre essa questão e tiver como opção de valores o preconceito como poderá intervir de maneira que atenda a perspectiva do usuário Como poderá se colocar no lugar do outro se ele intimamente tem preconceitos em relação a essa questão Como a comunicação e o diálogo podem acontecer diante de uma situação em que ele assistente social não se libertou dessas amarras do preconceito Repito o que Mounier fala só liberta o mundo e os homens aqueles que primeiramente se libertou a si próprio 1964 p 78 2 Compreender esse ato de compreensão equivale a dizer que eu tenho que me colocar no ponto de vista do outro para poder entender sua situação Estabelecer relações na adversidade e na diferença e não tentar encontrar sempre pessoas iguais a mim porque é mais fácil manter comunicação com pessoas que pensam agem e têm coincidentes sociais e culturais iguais aos meus Assim a comunicação é teoricamente mais fácil Agora quando encontro pessoas totalmente diferentes daquilo que tenho como referência dada cultural e socialmente falando tenho que empreender maior esforço e é justamente ai que Mounier vai falar nesse ato original de compreender Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim não conhecer o outros apenas com um conhecimento geral o gosto pela psicologia não é interesse pelos outros mas captar com minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser e de ser eu MOUNIER 1964 p66 Ora é perfeitamente possível me colocar no ponto de vista do outro imaginar pelo menos o que sentiria se estivesse em seu lugar como agiria pensaria ou desdobraria determinada situação a partir da perspectiva dele Compreendese que o grande mal das 152 relações interpessoais esbarram nas dificuldades de compreensão do outro quer seja meu próximo ou meu distante partindo sempre de nossos referenciais valorativos e de nossas intencionalidades subjetivas tidas se não como únicas mas verdadeiras E nisso nos deslocamos ao outro com as reservas de nosso ser a tal ponto que somos incapazes de penetrar em seu mundo e sua história acontecendo deste modo as dificuldades de comunicação Por outro lado às vezes se penetra tão intimamente no universo do outro que a relação passa a ser atos de subserviência com a presença do outro e deixome manipular deixando de ser eu mesmo Mounier deixa bem claro que as atitudes de acolhimento e entrega se dão num encontro entre singularidades e por isso não se pode deixar de ser eu e muito menos o outro deixar de ser ele É um encontro e troca sucessivas e dialéticas de pessoas iguais em essência e diferentes em existência 3 Tomar sobre nós assumir o destino os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne esse ato se configura como um ato extremamente cristão aliás Mounier em toda a sua trajetória pessoal filosófica e de ação pautou suas reflexões em atos de generosidade entrega disponibilidade ao outro não importando suas escolhas ideológicas e religiosas Foi assim com o movimento e a Revista Esprit e igualmente suas reflexões sobre o social se estabelecem sem nenhum traço de preconceito O termo sofrer na própria carne significa então colocarse na perspectiva e no ponto de vista do outro a fim de compreendêlo e não esperando nada em troca 4 Dar A força viva do ímpeto pessoal não está nem na reivindicação individualismo pequenoburguês nem na luta de morte existencialismo mas na generosidade e no ato gratuito ou seja numa palavra na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa MOUNIER 1964 p66 Aqui Mounier afirma as reflexões cristãs que devem embalar qualquer forma de comunicação Se me volto para o outro com algum interesse ou como instrumento a minha disposição bloqueio qualquer forma verdadeira de doação pois a pessoa não é fonte de minhas compensações Por outro lado a generosidade em dar atenção ao outro a generosidade em fazerse presença e fazer do outro uma presença viva na relação são atos que segundo Mounier desarmam as recusas porque ai está incluído o valor libertador do perdão e da confiança 5 Ser fiel com razão Mounier coloca que a aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte até porque somos seres se fazendo marcados pela imprevisibilidade do cotidiano Ser fiel significa estar continuadamente se renovando nas relações cuja tônica se estabelece em atos de amor e generosidade pois o amor plenamente realizado é criador de distrinções é reconhecimento e afirmação do outro enquanto outro 153 1964 p68 e não como uma repetição uniforme mas sobretudo no que Mounier chamou de fidelidade criadora32 Se Mounier refletiu sobre as questões que unem a as pessoas num ato criador da comunicação por outro lado não se furtou em questionar em que medida a comunicação pode atuar como fator de despersonalização no que ele chama de obstáculos á comunicação a Mounier fala que sempre existe algo nos outros que foge ao mais total esforço de comunicação uma vez que o diálogo não é imediatamente dado porque nada é definitivo e não posso ter plenamente a certeza que houve uma autêntica comunicação a não ser em casos raros e milagrosos momentos como expressa Mounier em que a certeza da comunicação é mais forte do que todas as análises b Há sempre algo em nós que resiste essencialmente a todo esforço de reciprocidade uma que má vontade MOUNIER 1964 p69 Ainda que sejamos pessoas dia e noite se não estivermos verdadeiramente voltadas para o outro numa atitude de reciprocidade certamente isso pode ser um entrave tremendo à comunicação É o que acontece continuadamente na vida cotidiana muitas coisas dependem apenas da nossa boa vontade para dialogar com o outro não sendo preciso muito esforço ou ao contrário com determinadas pessoas nos sentimos à vontade para dialogar seja porque encontramos eco e sintonia para estabelecer laços de reciprocidade De qualquer forma depende de nós confirmarmos ou não esses atos de reciprocidade c Sendo nossa existência como algo a ser conquistado e sendo a pessoa um projeto por fazerse evidentemente nossas ações e reações diante do outro vão caminhar por uma íngreme estrada do imprevisível Deste modo até nossa existência é como que inerente a uma opacidade irredutível a uma indiscrição que é barreira à livre comunicação MOUNIER 1964 p69 d Outro obstáculo à comunicação segundo Mounier é quando são formados novos grupos quer sejam familiares políticos ou religiosos em que continuadamente estas relações serão totalmente vulneráveis ao egocentrismo e podem suscitar barreiras à comunicação 32 Mounier falava que sua vida se tecia de longas fibras afirmando que a fidelidade era uma das suas dimensões interiores E a fidelidade para ele é criadora Todos aqueles que defendem posições ultrapassadas pelos acontecimentos todos aqueles que se agarram desesperadamente a formas mortas são infiéis A fidelidade é a preferência dada ao espírito sobre a letra a resposta ao imprevisto sempre renascente Em outras palavras fidelidade e imaginação são inseparáveis ainda que a segunda seja subordinada à primeira O absoluto é permanente sua expressão histórica é temporária O sistema é inimigo da fidelidade tanto quanto da imaginação o personalismo é cioso de uma e de outra A fidelidade poderseia dizer é a expressão da virtude da juventude permanência e atualização desta permanência E é por isso que ela precisa de uma presença ativa nos acontecimentos MOIX 1968 p38 154 Se por um lado Mounier coloca os atos originais que fazem renascer a comunicação entre as pessoas por outro coloca os obstáculos que podem servir como entrave a essa comunicação isolando as pessoas e as fazendo permanecer em estado de isolamento aliás na maioria das vezes estamos mais isolados do que cercados por relações que podem nos fazer ser e crescer No que diz Mounier com muita razão em relação a pessoa É avidez de presença mas o mundo inteiro de pessoas está maciçamente ausente A comunicação é mais rara do que a felicidade mais frágil do que a beleza Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas como podemos pois esperála entre um grande número MOUNIER 1964 p70 43 A LIBERDADE E dentre essas atitudes da pessoa que Mounier chamou de estruturas do universo pessoal figura uma característica fundamental que perpassa as demais que é a liberdade Não uma liberdade sinônima de concessões totais e irrestritas mas como uma liberdade em condições Mounier identifica duas formas de liberdade embora mal definidas a liberdade de indiferença liberdade de nada ser de nada desejar de nada fazer não só indeterminismos como indeterminação total 1964 p110 e a outra que é identificada com o indeterminismo físico ou seja é definida a partir do momento em que se tenta provar a liberdade No entanto adverte Mounier a liberdade não se ganha contra os determinismos naturais conquistandose por cima deles mas com eles A liberdade é uma graça a ser conquistada e não como uma condenação anunciada por Sartre É a pessoa que se faz livre depois de ter escolhido ser livre Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade MOUNIER 1964 p112 Ou seja a experiência da liberdade é situada no mundo e na história sendo um caminho que vai se fazendo e refazendo avançando e retrocedendo não é algo definitivo e permanente é a pessoa que vai trilhando seu caminho de liberdade ou não muito embora Mounier diga que as liberdades de ontem influenciem a liberdade de amanhã Em todo caso não é uma manifestação espontânea porque não é absoluta irrestrita e total Aliás a liberdade absoluta é um mito não existe como tal 155 Marcel no livro Os Homens contra o Homem pergunta o que é o homem livre Assim como Mounier suas reflexões são uma crítica a modernidade no que diz respeito ao homem situado no mundo das técnicas e das escravidões políticas nos regimes totalitários Concorda ele também que a liberdade total é um mito porque não se define como independência absoluta de um povo ou país uma vez que vivemos em um mundo em que as interdependências econômicas são inevitáveis e em larga escala A liberdade tem um traço de criação própria e outro traço que advém do mundo Em outras palavras diz Mounier Não sou somente o que faço o mundo não é somente o que quero Sou dado a mim próprio e o mundo antecedeme Sendo esta minha condição há na própria liberdade um peso múltiplo o que lhe vem de mim próprio do meu ser particular que a limita que lhe vem do mundo das necessidades que as constrangem e dos valores que a primem 1964 p113 É verdade portanto que a minha liberdade está conectada à liberdade do outro mas não a ponto de pensar como Bakounine que escreveu Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me rodeiam homens e mulheres forem igualmente livres Só me torno livre através da liberdade dos outros Isso seria demasiadamente desprezar a liberdade pessoal que se desenvolve com os atributos e valores da pessoa na sua singularidade mas também é possível pensar que o sentido da liberdade do outro cria meu próprio sentido de liberdade Mounier fala que tanto a liberdade quanto a alienação são contagiantes ou seja ao exercer uma postura de liberdade com certeza ela influenciará a liberdade dos outros ao meu redor A liberdade por outra parte se faz na condição total da pessoa ou seja ela é fonte viva do ser E somente nessa situação o homem é inteiramente livre e quando o quiser É aquela liberdade da qual um homem mesmo sendo objetivamente e concretamente aprisionado pode ser livre se assim o escolher porém é manifestada nos momentos de grandeza É a liberdade no sentido transcendental que extrapola qualquer condição material que esquecendose das amarras concretas não são entrave à liberdade individual Entretanto a liberdade está estreitamente relacionada às condições materiais embora como afirmei anteriormente pode ocorrer num momento de graça E por outro lado antes de exaltar as liberdades individuais temos que nos voltar para assegurar as liberdades comuns ou seja as liberdades biológicas econômicas sociais e políticas Mounier vai dizer 156 que defender a liberdade sem os apelos das comuns condições de liberdade é nos condenar a tomar posição ao lado das forças do imobilismo A nossa liberdade é liberdade de pessoas situadas e é também liberdade de pessoas valorizadas Não sou livre apenas porque exerço minha espontaneidade tornome livre se der a essa espontaneidade o sentido duma libertação ou seja duma personalização do mundo e de mim próprio MOUNIER 1964 p119 A partir dessa reflexão posso afirmar que antes de exercer a liberdade em mim tenho que amadurecer na minha existência pessoal e coletiva e assim atingir um espírito de liberdade para qual caminham as possibilidades conferidas à liberdade Melhor dizendo a liberdade não é somente manifestação espontânea é antes dirigida ou invocada e por isso a pessoa continuadamente deve empreender esforços para dos conformismos se livrar e entrar na audaciosa experiência da liberdade Ao refletir sobre a liberdade Mounier situa o momento político da Europa e particularmente na França dos anos trinta 30 quando o mundo passava por alienações e ataques constantes as liberdades individuais e políticas advindas de regimes totalitários Nesse sentido denunciava toda espécie de alienação escravidão e violência voltadas contra a pessoa Ele denunciava sobretudo o espírito de escravidão cravado sutilmente na época por meio de regimes políticos e econômicos Esse espírito de escravidão é plantado nas mentes e nos corações dos homens a tal ponto que se perde o gosto da liberdade e não se luta por ela e invariavelmente o homem se torna vulnerável e dócil as formas mais aviltantes de cerceamento da liberdade se deixando cooptar em troca de um mínimo de segurança Isso para aqueles que de alguma forma têm acessibilidade por mínima que seja à participação social Agora os excluídos nem aspiram à liberdade porque dela muito pouco sabem seus atributos e desfrute porque são visivelmente afastados desse espírito de liberdade só aquele que não vê a sua escravidão é escravo mesmo feliz em sua condição 1964 p87 escreve Mounier Se as condições políticoseconômicas afetam criam e provocam todas as formas de alienação não é menos verdade que a liberdade não se deixa abater por esta incansável luta do sonho da liberdade que está igualmente cravada no nosso espírito quando os homens já não sonham com catedrais deixam de saber construir mansardas Quando perdem a paixão da liberdade já não sabem edificar liberdades Não se dá a liberdade aos homens do exterior com facilidades de vida ou com constituições MOUNIER 1964 p121 157 O espírito de liberdade ronda sem cessar nosso caminho afugentando todas as alienações porque é uma batalha que nunca termina mesmo que seja o mais grave violento e absurdo ataque a ela Mesmo as grandes alienações históricas duradouras ou não que por um instante nos deixam sem tréguas destruída uma outra nova surge Toda a vitória da liberdade se vira contra ela própria e atrai novos combates ainda que A maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência a vida material e vegetativa à aventura humana No entanto a revolta em tempo de domesticação a resistência à opressão a recusa face ao aviltamento são privilégios inlienaveis da pessoa humana seu último recurso quando o mundo se levanta contra seu reino MOUNIER 1964 p107 Mas a liberdade é consolidada acima de tudo pela liberdade de escolha e liberdade de adesão muito embora a autonomia por si só não seja suficiente para garantir os sabores da liberdade Mounier fala que concentrar a atenção unicamente sobre o poder de opção é torná la impotente para a própria opção por falta de energia e tornar o homem indisponível pois assegura que aliada à liberdade que é sempre escolha e opção por algo ela deve ser vivido com responsabilidade e com os riscos que daí advém E finalmente esse movimento de liberdade não é somente ruptura explosões de aquisições vitórias e concessões é sobretudo adesão O movimento da liberdade é também repouso permeabilidade disponibilidade Não é somente ruptura e conquista é também e finalmente adesão O homem livre é um homem que o mundo interroga e que responde é o homem responsável A liberdade assim entendida não isola mas une não permite anarquia mas é na verdadeira acepção destas palavras religião devoção Não é o ser da pessoa mas o modo como a pessoa é tudo o que é e éo mais plenamente do que por necessidade MOUNIER 1964 p123 E sobretudo a liberdade é responsável precisa de atos autônomos e singulares para caminhar sozinha Exemplo bem claro disso se dá em várias dimensões da vida cotidiana que exigem escolhas individuais que nos afastam da proteção do coletivo ou da tutela de outras pessoas Exigem que minha ação e iniciativa se fixem no horizonte limitado ou infinito de minhas próprias possibilidades de construir algo novo traçar meu rumo andar com minhas próprias pernas fazer meu próprio caminho Pensar com meu próprio pensamento e agir segundo meus referenciais 158 Há sempre situações que fogem à tutela de outrem em que eu mesmo tenho que optar por mais que as pessoas possam ajudar com opiniões e ponderações E uma vez que opto por isso ou aquilo tenho diante de mim um ato que exige responsabilidade embora necessária mas não condição fundamental para que se cumpra a minha liberdade apesar de que a liberdade deva ser exercida nos liames da responsabilidade Essa responsabilidade é exercida a partir do momento em que se abre horizontes de possibilidades e caminhos diante da minha decisão e eu tão somente eu tenho que assumir um compromisso diante do optado que se torna absolutamente dinâmico porque está em movimento exige consecutivas visadas em torno dos caminhos a percorrer a partir de então Lembro aqui um filme cristão O Quarto Sábio33 Orantes servo do rei o acompanha a vida toda em sua jornada de encontrar o verdadeiro sentido da vida Após 33 anos o rei já velho e desanimado pois ainda não encontrara Jesus anuncia a liberdade de seu servo ainda que fosse livre o tempo todo E ao ganhar a liberdade tão esperada diz o que fazer com minha liberdade ela vai exigir muita responsabilidade E é verdade exige um assumir constante diante de algo que começo a conquistar porque foi fruto de minhas lutas de minhas renúncias do meu caminhar em direção a ela e finalmente quanto a tenho ela tem que expressar necessariamente em atos responsáveis e comprometidos com essa nova realidade longe das amarras da situação da qual era preso A liberdade portanto tem uma esfera material que a situa e determina porém não é tão somente materialidade é sobretudo como diz Marcel um traço de graça chegando a afirmar que a liberdade é inútil e nada vale se não supõe em espírito de humildade estar articulada com a graça E essa a graça não é qualquer acepção abstrata e laiciszada mas da graça do Deus vivo MARCEL sd p224 33 O QUARTO SÁBIO 1985 USA Baseado no clássico de Henry Van Dyke Conta a estória de um sábio Artaban filho de um rei da antiga Pérsia que procura nas sagradas escrituras o significado real da vida e descobre as profecias sobre Jesus o Rei dos Reis Artaban leva consigo três pedras preciosas para oferecer a Messias e inicia então uma jornada através do deserto para encontrarse com outros 3 Reis Magos e com eles ir ao encontro do Rei Jesus Entretanto não chega a tempo de encontrálos Por 33 anos Artaban e Orantes seu servo que o acompanha na jornada procuram por Jesus Sempre que estavam prestes a encontrálo acontecia um imprevisto e eles o perdiam No decorrer de seu caminho usa as pedras para ajudar as pessoas em grandes necessidades ficando sem nada para presentear Jesus quando o encontrasse A estória atinge seu clímax no domingo da Páscoa quando Artaban velho e morrendo encontra O Rei Jesus e compreende finalmente o verdadeiro sentido da vida 159 44 A CRISE ESPIRITUAL NO MUNDO MODERNO Quando reflete sobre a agonia do homem no mundo moderno e sua ausência de liberdade Marcel sd vai admitir que essa crise é metafísica que emerge no mais profundo do ser do homem que nada mais é do que o recurso ao transcendente Aliás esta figura como uma das alternativas mais concretas face ao homem moderno não uma agonia decorrente de acontecimentos exteriores como por exemplo catástrofes naturais mas nas técnicas de aviltamento que consiste segundo Marcel em fazer o indivíduo perder contato consigo mesmo pôlo literalmente fora de si a ponto de poder renegar sinceramente atos a que se dera sem reservas e até acursarse sinceramente de outros que não cometeu MARCEL sd p 19 Para falar da desvalorização do espiritual no mundo moderno Mounier recorre primeiro ao conceito de civilização Este que não se origina no desenvolvimento das técnicas nem tampouco das ideologias dominantes mas é acima de tudo uma resposta metafísica a um apelo metafísico Marcel sd ou seja dentro de uma esfera do eterno em que cada homem é chamado na sua escolha e na sua responsabilidade no que ele chamou de humanismo total que agrega no seu conceito de civilização três níveis ascendentes quais sejam 1 civilização no sentido estrito ao progresso coerente da adaptação biológica e social do homem ao seu corpo e ao seu meio 2 cultura ao alargamento da sua consciência à vontade que adquire no exercício do espírito à sua participação numa certa maneira de reagir e de pensar particular a uma época e a um grupo conquanto tendente ao universal 3 espiritual à descoberta da vida profunda de sua pessoa Mounier afirma peremptoriamente não só a valorização do espiritual sobretudo coloca que não há civilização e culturas humanas que não sejam metafisicamente orientadas em outras palavras Só um trabalho que vise para além do esforço e da produção uma ciência que vise para além da utilidade uma arte que vise para além do deleite e finalmente uma vida pessoal e que cada um se dedique a uma realidade espiritual que o transporte acima de si mesmo são capazes de sacudir o peso de um passado morto e de criar uma ordem verdadeiramente nova MOUNIER 1967 p 15 grifo meu E essa ordem verdadeiramente nova não significa criar um homem novo pois as estruturas históricas são estranhas a cada época e essas estruturas exteriores podem favorecer 160 ou servir de entrave ao surgimento do homem novo mas não criam esse homem novo eles nascem principalmente pelo esforço pessoal E cada momento histórico por sua vez produz forças ideológicas com tal nível de perniciosidade chegando a obscurecer e desfavorecer o florescer da pessoa humana ao qual Mounier vai chamar de espírito burguês Esse espírito burguês que se contrapõe ao princípio de toda espiritualidade se inclui nas conquistas do capitalismo industrial se fazendo devorador da especulação financeira ou mais precisamente do capitalismo financeiro que desconhece medidas e se aventura às mais longínquas localidades transpassando o mundo todo Mounier com seu espírito visionário já antecipava a deslocação do capital e a íntima relação entre este e o burguês como hoje o concebemos ao dizer Estendendose aos cinco continentes o campo das suas conquistas o capitalismo industrial deulhes provisórias possibilidades de aventura Mas quando o capitalismo financeiro inventou a fecundidade automática do dinheiro abriulhes ao mesmo tempo um mundo de facilidade donde toda a tensão vital irá desaparecer As coisas com o seu ritmo as resistências a noção do tempo dissolvemse sob a potência indefinidamente multiplicada produzida não já por um trabalho medido pelas forças naturais mas por um jogo especulativo o do lucro ganho sem qualquer serviço prestado tipo para o qual tende o lucro capitalista MOUNIER 1967 p26 Desse modo quando há a substituição do lucro industrial pelo beneficio da especulação nascem então os valores medíocres na modernidade estes mediados por interesses próprios do pouco esforço e do grande lucro a especulação passa a ser anônima impessoal não se direciona a um determinado lugar ou grupo seu foco passa a ser qualquer possibilidade de ganho contando que se tenha o máximo de segurança E sentado no trono desta segurança está o burguês que foi substituído pelo rico e no altar desta sombria igreja há apenas um deus sorridente e odiosamente simpático o Burguês O homem que perdeu o sentido do Ser que só se move entre coisas e coisas utilizáveis destituídas de mistério O homem que perdeu o amor cristão sem inquietude descrente sem paixão faz soçobrar o universo das virtudes com sua louca corrida para o infinito em torno de um pequeno sistema de tranqüilidade psicológica e social felicidade saúde bom senso equilíbrio doçura de viver conforto MOUNIER 1967 p 28 161 Um grande acontecimento mundial que provocou drásticas mudanças no mundo da economia foi a quebra da bolsa de Nova York o Crack de Wall Street O mundo atônito se curvou à especulação do capital e este acontecimento mas do que uma crise econômica que faz surgir milhões de desempregados e famintos foi para Mounier a falência de toda uma civilização e o incentivou a escrever mais do que isso a polemizar com seu grupo da Esprit a queda da ordem a decadência de um mundo que esquecendose da pessoa a fazendo mero instrumento do capital e das oscilações da vontade do mundo burguês tende a despersonalização da pessoa Essas crises mostraram a fragilidade dos sistemas econômicos que distanciados da realidade e de uma crítica significativa pode levar a atos extremamente sem eficácia na vida social Trabalhase a partir de então com a desordem estabelecida conceito bem desenvolvido por Mounier e pelos integrantes da Revista Esprit Lembro aqui Marcel quando ele fala de crise de valores na modernidade a qual denominou de transvaloração maciça ou seja uma mudança completa do horizonte espiritual Essa crise dos valores é tão arraigada no homem que sua direção se fixa nos rendimentos que pode obter a partir dele mesmo Para exemplificar isso Marcel sd diz que nos Estados Unidos dos anos 40 diziase vulgarmente que o homem valia determinada quantia de dólares exprimindo isso ele conta sobre uma conferência ocorrida em San Diego narrada por Maurice Sachs em que o presidente dizia Minhas senhoras honrome de tervos dado a conhecer os maiores conferencistas atuais quando não tinham valor alto Tivemos M Sinclair Lewis que vale hoje mil dólares quando só custava cem M Dreiser Hoje tenho a honra de apresentar M Sachs que vale somente cem dólares mas em breve esperamolo por ele valerá mil digo por ele porque não seremos nessa altura bastante ricos para têlo aqui MARCEL sd p 156 E Marcel explica que esse tipo de valor fica nas imediações do rendimento e da função onde triunfam as técnicas de aviltamento ou mais quando a pessoa é reduzida ao rendimento que ela pode dar Hoje muito comum ou mais utilizado nos referencias da sociedade onde o princípio do ter continua sendo em maior escala o atributo principal do homem moderno evidentemente muito mais sofisticado sutil e imperceptível Onde o homem comum ficou esquecido quebrouse um certo elo nupcial entre o homem e a vida Essa ruptura teve como conseqüência o rompimento do elo sobrenatural espiritual que carece a maioria do mundo agonizante a aclamar por algo que nem sequer sabe o que é 162 Marcel reflete que a aflição do homem é tão profunda que os divertimentos já não bastam E olha que ele falava na época em que existia apenas o cinema e o rádio como diversão mas que se não atraídos por um princípio superior atuam no sentido do desespero e da morte Em todo o caso isso é apenas um ínfimo exemplo pois o problema fundamental está assentado em termos de amor categoria podese dizer muito bem alinhavada por Marcel Porque o amor em si não é um valor e por outro lado não pode haver valor sem amor MARCEL sd 169 Se o amor ao outro fica esquecido nos labirintos da vida cotidiana tão bem analisados por Marcel Mounier vai dizer que o grande problema do homem moderno é a segurança e o conforto material Vale dizer que Mounier não é contra os aparatos materiais a tranqüilidade fruto do esforço pessoal o bom senso advindo de uma vida incorruptível onde o trabalho a solidariedade seja o princípio criador de toda forma de ser no mundo Suas críticas são dirigidas ao hipócrita que se vale de suas posses para explorar o outro aquele que em tudo se acha proprietário é possuído pelos seus bens corroído pela vaidade mesmo no conforto se sentido triste é atraído pelos bens que possuem em função da vaidade que estes lhes proporcionam pela admiração de outrem Sua única preocupação é chegar E para chegar um meio que erige em valor supremo a economia não a economia do pobre fraca garantia contra um mundo que lhe reserva toda a espécie de infortúnios mas a economia avara cautelosa de uma segurança que avança passo a passo economia exercida sobre a alegria sobre a generosidade sobre a fantasia sobre a bondade a lamentável avareza da sua vida enfadonha e vazia MOUNIER 1967 p 29 Nem tampouco Mounier é contrário ao progresso pois é inegável ele afirma que o problema do sofrimento e do mal é inteiramente deturpado quando a vida do homem inclusive sua vida privada e interior sofre o peso de um regime econômico e social que deixa a liberdade em segundo plano e ignora a realidade material como substrato para as conquista da liberdade por isso ele coloca Ser relutante ao progresso científico ou social sob o pretexto de que ele não resolveria todos os problemas do homem é cobrir com uma má razão uma falta de imaginação ou uma inércia culpada 1967 p213 Até porque o progresso é válido também ao espiritual mas o que não se admite é que os avanços da ciência da técnica e da industrialização possam ficar com a última palavra ou seja não podem dominar unicamente a vida do homem sob o pretexto de que estes mecanismos são a salvação da humanidade Mounier coloca de forma bem clara 163 Eis porque todo o progresso material constitui para nós o fundamento e a condição necessária de forma alguma suficiente de uma vida mais humana de maneira alguma a sua realização ou o seu alimento Uma revolução para a abundância o conforto e a segurança se os seus móbeis não forem mais profundos conduz mais seguramente após as febres da revolta a uma universalização do execrável ideal pequeno burguês do que uma autêntica libertação espiritual MOUNIER 1967 p 73 Dentro da visão de que o espiritual influencia diretamente nossas ações no mundo Mounier vai se contrapor com toda forma de espiritualismo ou moralismo que poderia nos levar a graves erros Coloca o moralista ligado ao homem de espírito burguês que se amesquinha nas dimensões do indivíduo perdido nas generalidades e manchado pela hipocrisia Era por isso que Mounier se opunha tanto aos ideólogos quanto aos políticos estes que zombam da verdade ou do erro e concebem como realidades históricas verdades aparentes e imediatas relegadas ao plano das ideologias Ter como pressuposto valores espirituais e afirmar sua primazia não significa incorrer num erro doutrinário ou moralista O personalismo não é uma doutrina um tratado moral sobre a pessoa mas precisamente o que Mounier criticava era o erro doutrinário ou moralista Ricoeur vai dizer que o Personalismo tem contribuindo para restaurar o prestígio da ética fazendolhe atravessar toda a espessura das técnicas das estruturas sociais das idéias e erguer o peso dos determinismos e das inércias ideológicas 1968 p139 Se Mounier insiste na idéia de que a pessoa é um ser comunitário igualmente suas reflexões o levam à esfera do espiritual como sendo o propulsor de todas as formas de relações humanas por isso vai colocar a primazia do espiritual Mas o que significa primazia do espiritual Primeiro o espírito não se reduz na exaltação das energias vitais ou seja razão força juventude disciplina tensão nacional êxito desportivo e trabalhos públicos Um mundo fustigado por elas tem mais valor que um mundo mecanizado ou amorfo Mas fazer deles valores supremos como o falso espiritualismo fascista é desviar o impulso espiritual sobre as formas mais graves e perigosas Por outro lado o espírito não se reduz à cultura e separada de toda vida interior a cultura pode ser um jogo superficial de um espírito que não se compromete E quando está mais encarnada em uma classe em um tempo em uma nação tanto mais se arrasta a múltiplas impurezas 164 E por fim o espírito não se reduz a liberdade e ainda que o homem passe a vida toda por alcançála luta pela liberdade e os meios para realizarse contra todas as ditaduras espirituais sendo sempre uma conquista do homem Mas essa liberdade não terá sentido tendo em vista uma adesão e somente tem valor se relacionada com a pureza e a profundidade dessa adesão Nesse sentido coloca o espiritual em duas direções enfatizando no primeiro caso sua importância na escala dos valores ou seja primazia do vital sobre o material dos valores da cultura sobre os valores vitais mas primazia sobre todos eles desses valores serem acessíveis a todos na alegria no sofrimento no amor de cada dia valores aos que de acordo com os vocabulários chamaremos de valores de amor bondade de caridade Esta escala se unirá intrinsecamente para alguns de nós na existência de Deus transcendente e a valores cristãos MOUNIER 2007 p 113 No segundo caso Mounier cristaliza o espiritual encarnado na pessoa destinada a viver em uma comunidade total e desse modo quem desenvolve a pessoa nessa mesma medida a prepara para viver em comunidade Por conseguinte viver em comunidade é restabelecer os laços de amor viver em acordo mas precedido por uma revolução espiritual E a revolução do espiritual está presente na medida em que se resgata o que Mounier chamou de técnicas dos meios espirituais Essa revolução não está aliada somente a pensamentos e meditações revolucionárias acima de tudo é luta de homens que se comprometem com a ação Mounier identifica dois meios pelos quais a revolução está vinculada No primeiro a força é eminentemente material como a agressividade e a coerção são por meios violentos regulados pela lei da força e do poder por uma técnica do êxito e parece à princípio bastante tentador porque sua eficácia parece de imediato no entanto é onde se proliferam o mal a violência o ódio como amiúde se presencia nas guerras nas conquistas de terra de território religioso Enfim a glorificação do mal e a da dor que em nada contribuíram para o bem da humanidade pelo contrário trouxeram dor e sofrimento angústia e desilusão para pessoas que são vítimas desses descaminhos da humanidade Se Mounier Marcel Buber falam com tristeza dos males vividos em suas épocas imagina hoje em que as feridas não estão somente abertas mas infectadas por carências matérias gritantes por carência espiritual envolvida por uma crise muito mais profunda e dilacerante que danifica a alma dos sofredores a desesperança de nada alcançar de nada sonhar de nada construir ou na melhor das hipóteses a esperança de não morrer agora o 165 sonho de um pedaço de pão a construção de um ínfimo espaço para descansar seus corpos doloridos e fatigados No segundo caso os meios são puramente espirituais e mesmo sendo presença esforço para a santidade encontro de satisfação não caberia outra alternativa Pergunta Mounier No mundo contemporâneo as coisas se movem invariavelmente por forças materiais que garantem a sustentabilidade da vida material Mas onde se enquadra o espiritual Se reclamamos tanto da violência crueldade insensibilidade e indiferença que cercam nossa realidade e dizemos em alto e bom som que falta espiritualidade entre as pessoas para tornar o mundo melhor qual nossa tarefa diante desta banalização do mal Ou mais qual nossa responsabilidade a fim de tornar nosso mundo liberto desses males contemporâneos Dizer somente que o mundo material por si só se encarrega de satisfazer nossas necessidades seria a mesma coisa que afirmar que o homem é somente corpo que sua materialidade é suficiente para darlhes as condições viventes necessárias tanto para satisfazer suas condições existenciais quanto as suas relações com o outro Entretanto é verdade que suas relações são permeadas por situações que fogem à simples noção da materialidade visualizando fatores internos para explicitar determinada situação Mounier vai dizer que a pessoa é um ser absoluto mas é em relação a toda a realidade material ou social nunca jamais pode ser considerada como meio E pela vontade criadora de Deus ela é um ser absoluto pelo seu modelo e pela perfeição ontológica que é chamada a realizar plenamente além do tempo ela ser o que de mais perfeito existe na natureza perfeição que a vida de graça sobreleva ao infinito E tanto o é que não somente nada na natureza pode prevalecer contra ela mas o próprio Deus tendoa superfinalizado e tronado em potencia como que conatural a Ele se lhe prende por sua Criação por sua Redenção e não pode nem destruíla nem tratála senão como pessoa MOUNIER 1971p43 A pessoa expõese exprimese faz face é rosto A palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prósopon aquele que olha de frente que afronta Mas encontra por vezes um mundo hostil a atitude de oposição e proteção pertence pois a sua própria condição Mounier1964 p 97 Nesse sentido ser pessoal é acima de tudo singularizarse mas não a qualquer preço numa busca desesperada para ser diferente e por isso especial Na verdade a pessoa nunca se repete mesmo quando as faces e gestos dos homens caindo sem cessar na generalidade se copiam desesperadamente à superfície 166 Mesmo o amante quando se entrega por inteiro o artista obcecado por sua obra o santo transportado no amor de Deus não buscam necessariamente singularizarse e suas ações não estão deslocadas de sua vivência pessoal Ao contrário suas ações estão lançadas para eles com eles entregue ao que são para pensar como sãoMounier1964 p98 É por isso que Mounier vai dizer que o personalismo não é uma ética dos grandes homens ou uma aristocracia de um gênero novo pelo qual seleciona prestígios psicológicos ou espirituais extraordinários para se fazer então altaneiro e imbatível A posição nietzschiana do superhomem é um bom exemplo disso mas como se sabe desperta a vaidade humana Se o homem é super porque faz algo de extraordinário em Mounier ele é chamado a atingir o extraordinário no centro da própria vida cotidiana O afrontamento outro importante conceito desenvolvido por Mounier fazse pelas vias da ruptura pelas vias do protesto pois existir é dizer sim é fazer adesões é aceitar a si e ao outro Mas não posso sempre conduzirme pelo sim é preciso também recusar o que significa colocar as coisas em dúvida rever crenças mudar opiniões e certezas criar novos hábitos revitalizar meu centro de certezas até porque Mounier 1964 p100 diz que a ruptura a reviravolta são categorias essências da pessoa ou seja estão presentes em todos os momentos da vida Ao falar sobre as recusas Mounier critica as demasiadas recusas feitas nas obras de certos filósofos como Kierkegaard que recusou tudo Heidegger quando dizia que a existência não é acolhimento mas recusa da morte em Sartre para quem o ser humano é atacado por dentro e o tempo todo por um ser ameaçador que o paralisa condenado até sua liberdade Todas essas formas de paralisar a pessoa a colocam num campo de terror e desesperança num constante estado de alarme e desconfiança de medo e insegurança Ignoram esses autores diz Mounier que atitudes de apaziguamento de acolhimento de dádiva são também constitutivas do nosso ser E a força que impulsiona essa luta é o amor e a força um de seus principais atributos não a força bruta do poder ou da agressividade em que o homem renuncia a si próprio para imitar o choque material mas a força humana simultaneamente interior e eficaz espiritual e manifesta 1964 p103 No entanto ignorar as diversas forças presentes no mundo é agir com hipocrisia pois não há sociedade ordem ou direito que não nasça duma luta de forças não exprima relações de força não viva baseada na força MOUNIER 1964 p103 porém essas forças não são as que matam aniquilam enganam violentam e agridem e sim lutas inerentes presentes na história do homem em favor de sua dignidade pois para Mounier a crise que assolou a Europa 167 na década de 30 ele costumava dizer que era a crise da civilização era uma crise não somente econômica mas principalmente uma crise espiritual Se a pessoa é por natureza adesão e por outro lado afrontamento que se expressa também como ser que rompe quebra o estabelecido o status quo equivale dizer que a pessoa é propriamente revolucionária O que significa ser revolucionário Para Mounier é bem clara sua concepção de revolução coincidindo com sua adesão à luta ao espiritual ao dizer Refazer nosso amor ao mundo com as palavras com os gestos com os costumes que nos rodeiam é tanto como combinar opacidades para criar a luz Não nos satisfaremos com um pouco de boa vontade e de doçura da alma para religar o todo Não é possível construir a verdade com traços de mentira e de ausência Se funde novamente pelo fogo que está penetrado de mentira Uma transfiguração no conjunto de todos nossos valores deve preceder a sua reintegração universal no espírito Isto significa ser revolucionário MOUNIER 2007 p42 168 CAPITULO V A DIMENSÃO POLÍTICOSOCIAL DA PESSOA A política não é um fim último que absorva todos os outros No entanto se a política não é tudo está em tudo Mounier Ora um dos principais mitos políticos que se instituiu no mundo foi o da política como esfera da degradação da vilania da falsidade na qual os fins justificam os meios da sujeição material e espiritual do homem antes que de sua libertação Kátia Mendonça Ao traçar um perfil filosófico antropológico da pessoa Mounier e outros autores que refletem sobre a primazia da pessoa acima de todas as esferas institucionais políticos sociais e econômicas refletindo por seu turno as várias dimensões que essa pessoa comporta em sua vida vivida entretanto privilegiando alguns traços que se complementam entre si mas nunca separados Com isso posso afirmar que quando Mounier fala da pessoa na esfera comunitária ele não a separa da dimensão pessoal social política econômica espiritual Todas essas dimensões estão entrelaçadas ligadas no que ele diz na afirmação do valor absoluto da pessoa humana 1964 no entanto esclarece que esse absoluto está longe de se afirmar que o homem é o absoluto ou confundir com o absoluto do indivíduo biológico ou jurídico È precisamente isto que ele quer dizer a pessoa é um absoluto em comparação com qualquer outra realidade material ou social e com qualquer outra pessoa humana 1967 p 85 Em outras palavras a pessoa não pode ser concebida como parte de um todo como quiseram os positivistas nem tampouco ser utilizada como meio para atingir algo Essa visão está presente em todas as filosofias que imputam a pessoa seu devido valor Buber coloca que a realidade concreta é a única que conhecemos e por isso ela me é oferecida permanentemente e por mais que a priori se possa decompôla em partes distribuir em seus elementos comparar deduzila de fenômenos anteriores Nada disso é suficiente para compreender a realidade em sua plenitude porque ela foge aos fragmentos do momento e aparece parafraseando Buber indivisível incomparável irreduzível ela me olha com o olhar horripilante 2007 p 54 169 Como a pessoa está mergulhada na realidade concreta assim também ela não pode ser matéria de divisão e decomposições e no que diz Mounier cada pessoa tem um preço inestimável e que impossibilita para o todo e sempre a qualquer delas tomar as outras como um meio ou classificálas segundo a hereditariedade o valor e a condição Mas o que significa pensar a pessoa no seu sentido político social Primeiramente quero ressaltar o caráter individual da pessoalidade ou seja afirmar que a pessoa é um ser subjetivo dotada de dimensões individualizadas que o diferem de outros seres humanos e mais inteiramente do animal A sua essência como ser humano é semelhante em parte de outros seres uma vez que possuímos algumas necessidades básicas parecidas que independem da espacialidade e da temporalidade de nosso viver Por exemplo sentimos necessidade de comer dormir descansar ser amado e outras necessidades biopsicossociais inerentes à natureza humana Mas sobretudo o que nos diferencia do animal é o nosso cogito existencial e as especificações de nossa humanidade Mounier cita como exemplo as experiências de Pavlov Estas produzidas em laboratórios e por conseguinte artificiais cujos resultados advindos dessa experiência são mecanicistas Agora a pessoa escapalhe porque só ela tem a capacidade de romper com as amarras de qualquer atitude manipuladora ou treinada próprias do animal que ignora a consciência reflexiva Falar de pessoa é reconhecer como fizera Mounier que não posso classificar definir porque a pessoa é inesgotável e aí o que diferencia fundamentalmente o homem do animal é infinitamente a capacidade que a pessoa tem de amar de ter esperança esperanças que só ela dispõe de acreditar Quando Jean Lacroix diz que não é consciência que cria a pessoa mas é a pessoa que cria a consciência ele lança as bases epistemológicas do Personalismo e nos interdiz a afirmar que a existência é situada no mundo e a pessoa por conseguinte como que dirá Marcel é o nãoinventoriável A aversão à sistematização de que fala Mounier em diversas ocasiões de suas obras se refere portanto a dizer que a pessoa jamais pode equipararse a qualquer forma de esquema método bula ou seja como a existência humana vai se fazendo nas teias imprevisíveis do cotidiano a pessoa passa a ser um projeto a vir a ser sempre se fazendo se constituindo se criando se renovando E por viver em sociedade com os outros estabelecendo laços relacionais com o outro e com o mundo a pessoa passa a ser um ser potencialmente político Embora as reflexões de Mounier tenham se voltado para a pessoa projetandose para a comunidade posso dizer que 170 ela também tem uma perspectiva política Aliás Mounier e seus companheiros da Revista Esprit traçaram um diagnóstico da pessoa humana na modernidade destacando continuadamente o aspecto sóbrio e desesperador da condição humana face principalmente aos regimes totalitários e ao capitalismo e sobretudo lançaram as bases de um projeto de sociedade cuja tônica é centrada na superação de uma sociedade esmagadora para a passagem de uma comunidade propriamente personalista A fim de que a pessoa fosse finalmente valorizada em seu traço de humanidade e caminhasse em direção de sua liberdade política e econômica o movimento personalista e comunitário se firmou a partir do momento em que direcionou suas críticas a desordem estabelecida 51 A DESORDEM ESTABELECIDA Em várias ocasiões e em repetidas vezes contextualizei a crise por qual passava a França nos anos 30 e 40 no que diz respeito às questões políticas e econômicas que colocaram a mostra a crise do homem moderno De um lado o período entre guerras e por outro a bancarrota de Wall Street em 1929 que evidenciava as fragilidades do capitalismo A verdade é que a Revista Esprit compreendeu todas essas crises e colocou sem hipocrisia a gravidade dos problemas que a partir de então o homem começara a protagonizar com mais intensidade colocou as feridas bem expostas a fim de refletir os destinos do homem atolado em um estado de profundo pessimismo que desafiavam o futuro A desordem estabelecida era sentida e concretizada inicialmente pela presença da pobreza sendo esta o ponto de partida da luta empreendida por Mounier que dizia que quem não sentir a miséria como uma presença e uma queimadura em si mesmo fará objeções e falsas polêmicas naquilo que denunciava como aviltante à dignidade da pessoa humana E essa luta contra a miséria foi o ponto inicial de luta contra a desordem estabelecida Ora se há um estado de miséria instalada ela é conseqüência de uma desordem econômica em virtude de um regime desigual concentrador cuja finalidade é o lucro E esse lucro evidentemente para se fazer em abundância tem que passar por várias etapas de exploração do homem sobre o homem e tudo isso apoiado por regimes políticos bem definidos 171 A democracia liberal está entregue à oligarquia dos ricos os altos bancos e a alta indústria se apoderaram dos postos de comando da política da imprensa da opinião da cultura dos representantes do espiritual34 a fim de poderem ditar a todos as vontades de uma classe a democracia capitalista é uma democracia que dá ao homem liberdades cujo uso o capitalismo retira MOUNIER 1968 p59 E em outro momento Mounier vai diagnosticar com mais claridade essa contextualização histórica que explodiu na crise da civilização Em cem anos foram dadas três machadadas nesta civilização demasiado convencida do seu equilíbrio para lá das harmonias econômicas Marx revelava a luta sem tréguas de profundas forças sociais para lá da harmonia psicológica Freud descobria o turbilhão dos instintos finalmente Nietzsche anunciava o niilismo europeu MOUNIER 1964 p173 Mas a desordem não é somente econômica é política sobretudo porque o capital passou a servir aos interesses dos governos e a ditar as normas políticas as pessoas passaram a ser diretamente influenciadas por regimes políticos atrelados ao poderio econômico e essa dupla tornouse quase que imbatível no tocante ao jogo de interesses que embalam os governos Por outro lado a marca da desordem estabelecida evidenciase também no que Mounier chamou de aviltamento dos valores espirituais que serviu para resguardar a desordem Ele critica essa posição e ao mesmo tempo admite que as pessoas foram influenciadas por contravalores que fugiram totalmente ao seu estado natural de caráter porque foram coagidas e cooptadas por essa desordem para proveito dela e o que é pior com sua cumplicidade Passaram a assumir atos que comprometeram sua adesão aos valores espirituais em nome do poder do dinheiro dos valores materiais do lucro e do conforto Preferiram aderir aos valores burgueses a ter que lutar contra eles e toda a sua estruturação no mundo do capital Há outro fator assumido frente à desordem que desvirtua a luta é a posição assumida pelos idealistas para quem a situação temporal e material do homem são desprezíveis Desse modo não atrelam as condições matérias à vida espiritual e no fundo guardam princípios moralizantes que em nada contribuíam para o enfrentamento da crise moral da época Moix cita Mounier para clarificar a posição do filósofo frente ao dilaceramento dos problemas humanos 34 Aqui Mounier critica o cristianismo e os representantes do clero os quais se voltavam para imputar sua soberania aliada ao poder político e econômico 172 É deste dilaceramento que nasce nossa decisão È para sair dele para libertar nosso cristianismo desta espécie de gueto em que tentavam repelir aqueles que organizavam novas formas de civilização para assim reencarnálo em todos os problemas do nosso tempo que nós católicos nos agrupamos em torno da equipe da Esprit MOIX apud MOUNIER 1968 p 60 As desordens econômicas e políticas vivenciadas na época de Mounier associadas à crise dos valores morais e espirituais foram os incômodos cruciais da desordem estabelecida Desordem porque se pautavam em valores que feriam a dignidade humana em todas as dimensões e Estabelecida porque se cristalizava e se instalava na vida das pessoas quer sejam nas micro ou macro relações E mais não somente se incorporava na cotidianidade se alastrava e se reproduzia como se fosse corriqueira deixando o espaço estreito quase invisível para qualquer questionamento ou luta Essa crise é para Mounier de um mal profundo porque a desordem é antes de tudo espiritual O individualismo é a raiz do mal 2007 p28 Mas a equipe de Esprit assim como outras iniciativas populares atreladas ou não as intelectuais estavam atentos a essa desordem estabelecida e não se cansavam de bradar contra os males da civilização ocidental Na crítica à desordem estabelecida são dois os pontos a combater ou seja o capitalismo e o espírito burguês Mounier lembra na Esprit de 1932 exemplar 03 que a raiz profunda do mal é o mundo do dinheiro e fala enfaticamente e com profunda identificação com a época atual Há uma realidade capitalista atual homens reduzidos à paixão do lucro que acumulam ou a ganância do lucro que lhes é recusado os benefícios e o controle da economia concentrada e um reduzido número de poderes que regulam loucamente a produção escravizamna aos caprichos da finança e apoderamse em seu próprio interesse dos governos da imprensa da opinião e da paz dos povos um maquinismo orientado para seus fins em vez de servir à expansão de uma vida mais humana a anarquia o desemprego a miséria Não cansaremos de denunciar incansavelmente aqueles que ainda ignoram isto Na visão de Mounier o regime capitalista é a raiz principal de toda a despersonalização da pessoa pois esmaga suas possibilidades em ser mais e vislumbrar uma vida em que a liberdade seja o pressuposto de sua vida Onde prevalece a ganância e o lucro obtido pela exploração certamente os valores se desvirtuam no silêncio da normalidade Mounier compara o capitalismo a um tirano só que um tirano jamais é capaz de um poder tão universal de aviltar os homens de ponta a ponta da terra como o capitalismo que se alastra por meio da miséria da maioria das injustiças e desigualdades 173 Com isso Mounier já preconizava a globalização do capital nos dias de hoje que com um poder incansável silencioso e de laços dados com a normalidade fazem da vida contemporânea uma via segura de poder e manipulação das pessoas Aí reside a desordem econômica e sobre a qual repousa o princípio do otimismo liberal pelo qual reina a primazia da produção em que o homem está a serviço da economia e o primado do dinheiro em que o capital impera sobre a produção E por sua vez o lucro como conseqüência desses mecanismos intermináveis e variados Ao criticar o capitalismo e suas deslocações ao mundo das pessoas Mounier ateve se sobretudo a critica do esfacelamento espiritual decorrente de tal regime ao declarar O mundo do dinheiro é um mundo sem graça sem humanidade É a negação de tudo que é pessoal seu reino consagra a morte de todos os outros reinos o reino do espírito livre do trabalho honesto e alegre da ação desinteressada da santidade O dinheiro tornouse o único sinal da grandeza e do poder a linguagem de um mundo vazio de espiritualidade o mestre incontestável deste mundo sem alma os corpos e o amor a arte e a indústria o dinheiro devorou toda a matéria Inapreensível e impessoal sustentáculo de sociedades anônimas municinário cego de uma guerra permanente ele conseguiu levar a termo o que não chegou a realizar nem o poder nem a aventura instalar no coração do homem o velho sonho divino da fera a posse selvagem irresistível e impune ao impulso do desejo MOIX apud MOUNIER 1968 p64 Quando Mounier falava das descompensações produzidas pelo capitalismo ele se referia sobretudo à crítica da desordem espiritual advinda do capitalismo como referência principalmente a seu mestre Péquy que em seus escritos atinhase à questão espiritual de sua época E o dinheiro como valor único do capitalismo conduz à diminuição do homem lhe dando facilidades e criando o anonimato entre as trocas Por conseguinte matam as gratuidades e por sua vez matam igualmente a generosidade e o amor porque impõe o cálculo em suas negociações e tudo que vem do dinheiro favorece ao egoísmo ao individualismo ao esbanjamento à abundância sem medida E o excedente produz um homem avesso ao espírito de pobreza o colocando num mundo estreito e impenetrável de poder Seus valores passam a ser movidos pelo status pelo poder pela ostentação do material E nisso se evidencia uma dupla tirania diz Moix O miserável não pensa mais nas transfigurações da sua alma da sua vida do mundo o novo rico se satisfaz com aparência superficial fácil e enganadora Ao mesmo tempo vemos fugir cada dia a liberdade necessária para uma contemplação desinteressada do universo MOIX apud MOUNIER1968 p 65 174 Assim como o capitalismo afasta o homem da gratuidade o faz em proporções grandiosas um anônimo diante de seu trabalho pois desvirtua seu verdadeiro objetivo que é de garantir sua mínima subsistência e de sua família e daí lhes dar uma vida propriamente humana Entretanto o capitalismo o encaminha para um mundo oculto e esmagador hostil e estranho à sua força de trabalho Por isso e em diversas ocasiões Mounier será um contumaz crítico ao regime capitalista e todas as desordens produzidas por tal regime Em relação a crítica ao capitalismo esbraveja também com a mesma severidade sua luta contra o espírito burguês e não simplesmente a burguesia ou a um grupo social especifico mesmo que fosse o rico ou o poderoso Sua luta era por assim dizer contra o espírito mesquinho apegado ao conforto a estreiteza de pensamentos ao egoísmo individualismo à indiferença diante do outro à falta de humanidade e sensibilidade produzidas pela lógica do lucro fácil como diz Moix onde o individualismo é dele a raiz este isolamento teimoso e egoísta o mundo do dinheiro é dele instrumento econômico e social 1968 p73 É contra a hipocrisia que se avizinha ao capitalismo que Mounier não cessa de criticar até com certa ironia principalmente aqueles que julgam possuir a verdade porque trilham os caminhos sociais com justeza pagam seus impostos em dia vão à missa dominical são exemplares perante a sociedade tem seu prestígio assegurado por benesses que concedem aos outros lutam por si e para si não se importando com os outros a não ser fazendo caridade pública a fim de garantir seu mérito social São essas atitudes que se encontram além de um poder constituído pelo capital que o Personalismo insistiu em denunciar Mounier faz uma clara diferença entre o burguês e o cristão a fim de elucidar que o cristão não é um ser moral é um ser espiritual ainda que não despreze suas regras e ao mesmo tempo as concebendo pelo caminho da virtude e da graça Enfim caminho que conduz o cristão ao domínio que passa pela encruzilhada da Cruz Não lhe é retirada a alegria ela é o próprio som de sua vida Mas a felicidade tranqüila não é a alegria A alegria nas lagrimas ou durante o bom tempo uma alegria ardente e velada eis o estado natural do cristão MOUNIER 1971 p 144 O burguês ao contrário é um ser moral porque deles estão desligados uma vida invisível e onde as virtudes se tornam dispositivos onde o amor perfeição e o heroísmo se estabelecem em seu pequeno e restrito universo construídos sobre muralhas impenetráveis 175 capazes de até mesmo burlar os caminhos da lei Porque o burguês diz Mounier freqüenta todos os meios sua moral nasceu de uma classe determinada definida e com isso se sustenta passando pelas hierarquias do poder Visto sob dois axiomas o burguês primeiramente é aquele que perdeu o sentido do Ser Mounier se refere com dureza a esse primeiro axioma O mundo sensível deixou de ter encantos para ele Passeia por entre as coisas Coisas que não lhe falam coisas paralelas e que se classificam Ele tem sempre duas categorias das quais uma só lhe interessa as coisas úteis as coisas insignificantes ou ainda os negócios e o tempo perdido Tempo perdido o amor das coisas e a liturgia do mundo Tempo perdido precisamente porque ele nada tem a perder MOUNIER 1971 p145 O segundo axioma35 já vem em conseqüência do primeiro o burguês é o homem que perdeu o amor E invariavelmente perdeu a fé A fé em Deus nos homens nos acontecimentos Não que não seja crente mas crê segundo Mounier somente o bastante para não se misturar com o povo e suas superstições Seu valor principal está erguido na ordem não uma ordem de marcha uma ordem de comando Seu valor supremo é a ordem que vêm pelas vias da tranqüilidade essa tranqüilidade que afasta com terror tudo que não possa ser planejado seguro esquematizado falado antes avisado com antecedência dada de antemão Até mesmo o bem é previsível e planejado girando em torno da virtude da ordem Dessa tranqüilidade advém sua felicidade mas Mounier diz que tem ares de mediocridade a partir do momento em que está ordenada para a propriedade para a solidez do conforto como aquele que chama pela campainha de mão a chamar o criado É por isso e tão somente que o burguês se afasta do ser ele só tem o ter como referência porque o coloca no prestígio das rodas que convive ou pretende conviver Sua luta é empreendida tendo como meta capital chegar lá onde os poderosos vaidosos e endinheirados ostentam sua riqueza rodeados por seus pares E mais uma vez Mounier vai dizer com ênfase que é contra esse espírito burguês filhos do capitalismo que sua luta se intensifica e classifica o burguês de homem do conforto e adverte 35 Em toda sua trajetória intelectual e social Mounier vai criticar o burguês e o pequeno burguês Diz ele que este não ama porque amar isto é dar até a si mesmo amar perfeitamente só com Deus se aprende e como o burguês perdeu a fé se afastou de todas as possibilidades de amar ao próximo Porque não ama o burguês não tem fé Não crê nos acontecimentos não crê nos homens nas iniciativas não crê nas loucuras MOUNIER 1971 p 145 176 Que ele faça passar seus valores pelos valores cristãos esta vez ele nos pode embromar por todas as outras partes mas não nos impedirá de testemunhar contra sua hipocrisia É grave que homens que tem o mundo em suas mãos e que as vezes se dizem cristãos traiam sua missão de homens Mas que tentem amesquinhar à sua medida valores eternos que eles colocam em cartaz na sua boutique para atrair a clientela que eles cheguem a tornálos odiosos à massa dos homens pelo emprego que deles fazem e aspecto que lhes dão eis o que não permitiremos MOUNIER 1971 p148 E o mundo do burguês está impregnado pela objetivação que é o processo pelo qual as pessoas perdemse na ausência e impessoalidade das coisas Não existe segundo Mounier ataque mais grave ao espiritual do que ser comparado a uma coisa até porque o espiritual é o pessoal voltarse contra o espiritual o fazendo manipulável é o mesmo que voltarse contra a pessoa O espiritual isto é o pessoal é pelo contrário o que jamais pode tornarse objeto Pecado contra o espírito é tratar um ser espiritual como objeto O espiritual isto é o pessoal estamos com essa equação no núcleo da afirmação cristã Ela equivale a esta outra o homem real é o mesmo que o homem pessoal MOUNIER 1972 p75 Se o burguês pouco se importa com as coisas do mundo que não lhe afetam se vive rodeado de confortos abundância material se manipula e se coloca na pequeneza de sua vida privada e intocável no fundo coisifica e é coisificado pelas agruras de sua vida anônima E como se vivesse em mundo encantado longe dos murros da miséria humana das tragédias naturais existenciais morais e sociais Não se exime de ajudar doar para campanhas humanitárias dinheiro objetos agasalhos mas o faz embalado pela competição de quem dá mais pois a quantidade doada é do tamanho da fortuna e do coração do burguês O burguês na atualidade é aquele que está nas primeiras fileiras das causas planetárias humanitárias é aquele que aparece sorridente e comovido por seu engajamento nas luta contra a miséria humana havendo toda uma espetacularização do ato em qualquer doação O burguês passa a ser respeitado admirado seguido O mesmo que luta contra a miséria esbanja alimentos em festas espetaculares o mesmo que chora pelas tragédias é o mesmo que explora manipula corrompe e rouba da boca dos pobres É bem propício aqui aquele dito popular dá com uma mão e tira da outra Não necessariamente o burguês é uma pessoa de grandes posses Parece ser eu disse bem parece ser porque a aparência é o seu ponto forte È aquele que mesmo tendo pouco parece 177 aos olhos dos outros como tendo muito No fundo o burguês é aquele que mesmo escravizando outrem é escravizado pela sua própria sombra Mas diante do caos e da obscuridade da modernidade onde os homens são concebidos somente enquanto mãodeobra produtiva e de caráter utilitário Mounier não fica somente na crítica nas sombras na escuridão que muitas vezes embalam espíritos desanimados e fazem calar os que lutam por um mundo melhor Mounier tem essa característica de ao mesmo tempo ser um feroz crítico dos fatores que julga despersonalizar o homem e ainda assim propor uma alternativa diante desse caos porque é movido pela esperança e assim comenta em sua obra Revolução Personalista e Comunitária Partimos para uma caminhada em que sabemos que jamais estaremos sem ter o que fazer jamais estaremos sem esperança Nossa obra está além do sucesso nossa esperança além das esperanças 1967 p81 E foi assim que na contramão do regime capitalista propõe um projeto de sociedade cujas raízes estão pautadas na pessoa humana que é a sociedade personalista e comunitária colocando a pessoa aberta à sua dimensão social e política Mounier foi o primeiro na França a falar sobre engajamento aliás todo o movimento da Esprit era um chamado ao engajamento das pessoas na vida social e política da cidade suas atitudes estavam entre a ação política e o testemunho profético embora fosse contrário às intervenções politiqueiras a tal ponto de romper com colegas da Esprit que tinham interesses eleitoreiros na época 52 AS ESTRUTURAS DE UM PROJETO PERSONALISTA 521 A educação personalista Ao falar que o idealismo burguês abandonou o social o realismo fascista rejeitou qualquer autoridade que não seja o estado o materialismo marxista entende que as pseudo realidades espirituais não fazem eco nas questões humanas Mounier dita em alto e bom som que a raiz espiritual é o cerne de toda intervenção social e para isso tece as estruturas do regime personalista Ele inicia suas reflexões a partir da educação da pessoa na qual deve favorecer seu despertar como pessoa desde a infância Essa educação não tem por finalidade moldar a pessoa ao conformismo ou qualquer doutrina social ou regime político Nem tampouco fazer cidadãos conscientes ou 178 dóceis ao patriotismo sua missão é a de despertar pessoas capazes de viver e de assumirem posições como pessoas 1967 p133 O princípio da educação personalista rejeita a posição totalitária da escola a qual esteriliza as possibilidades da criança quando a coloca a pensar partir dos outros a agir segundo uma palavra de ordem e a se contentar em viver em um mundo satisfeito e confortável a exemplo do burguês Rejeita qualquer modelo opressor imputado à criança nos primeiros momentos de sua formação e sociabilidade além de seu lar Uma filosofia da educação no seio de uma concepção de democracia eis o objetivo da educação personalista tendo como principal meta despertar pessoas não uma simples fabricação de personagens por adestramento treinamentos quer sejam familiares sociais profissionais ou similares que comumente protagonizamos na sociedade atual Despertar sacudir acordar o homem esse apelo socrático que Mounier estabelece como condição fundamental para a instauração de uma nova civilização em pleno século XX é basilar para o desenvolvimento de seu projeto de sociedade pautada evidentemente na moral personalista36 Nunca como agora as pessoas se deixam levar por papéis previamente dados por treinamentos a fim de se comportarem em sociedade e desta feita encarnarem personagens que coisificam sua subjetividade os tornando sujeitos anônimos e distanciados de seu próprio ser É tamanha tal prática que a as pessoas já não sabem sua identidade sua essência sua maneira particular de ser Nesse modo a pretensão é adestrálas como se adestra um animal mas Mounier adverte que no mundo animal o adestramento é limitado pois que na medida em que o animal se condiciona aos comportamentos desejados cessa seu treinamento e esperase sempre aquele determinado comportamento Mas e a pessoa Há Ela é marcada no que Monier vai dizer pelo princípio da imprevisibilidade que afasta qualquer possibilidade da pessoa se enquadrar Cada um leva sua história de vida sua existência é preenchida de significações que vão sendo vividas na medida em que se abrem e expandem seus laços comunitários e sociais e tudo isso claro determinado por sua cultura e valor Educar uma criança um adolescente um jovem não pode se limitar adaptálos a uma função ou a um papel que mais tarde eles teriam que desempenhar Uma pessoa não pertence 36 Gerard Lurol vai dizer que compreendese que a antropologia personalista enxertada em um realismo espiritual é um combate pelo homem Ela pode dar lugar a engajamentos políticos diferentes de acordo com os lugares as situações as interpretações e para concluir de acordo com as próprias pessoas Esta é a historia por exemplo da equipe da Esprit Ao contrário ela não pode quaisquer que sejam as tendências políticas passar sem uma moral que comporta ao mesmo tempo uma fenomenologia das atitudes morais uma ética e uma estética implicando uma teoria do conhecimento uma filosofia de ação desembocando numa teoria do engajamento enfim uma filosofia da educação e da cultura no seio de uma concepção de democracia 2002 p 214 179 à sua família como um objeto nem ao seu meio social nem ao seu grupo de trabalho nem a sua pátria nem a sua igreja Ninguém nem sob o pretexto de salvaguardar o outro tem o direito de submetêlo as sua tiranias quer sejam conscientes ou inconscientes Ela a pessoa está aí fixada presente ela se forma por meio deles e neles é certo mas ela não está submetida a eles Nenhuma instituição organização nação ou estado tem o direito de se apropriar da pessoa fazendo delas seu domínio privado Pelo contrário eles devem lhe servir fazendoas crescer pois são elas que são feitas para as pessoas e não as pessoas feitas para elas Isso não quer dizer que as instituições nada têm a transmitir ao contrário elas são fundamentais para que haja o pleno exercício da liberdade pessoal e a garantia de cidadania até porque se elas não transmitissem nada nem saberes nem habilidades sem civilidades nem potencializassem o crescimento da pessoa humana a barbárie não estaria muito longe A pessoa não pode ser concebida portanto a um sistema de acomodação assimilação treinamentos mas um lugar de transfiguração ao mais desconhecido dela mesma onde estão implicados seus desejos e suas rejeições seus amores e temores seus ódios seus gênios e suas faltas ou seja todas suas ações e reações diante do imprevisível que são todos igualmente exortação a decifrar e mensagens lançadas a serem entendidas O que se quer é um despertar uma livre adesão do espírito Já dizia Freire que ninguém conscientiza ninguém ninguém educa ninguém mas a pessoa se educa com os outros num processo gradativo de libertação de si mesma e do mundo implicando uma livre adesão que favoreça a pessoa buscar seus próprios caminhos descobrir suas verdades rever seus conceitos e valores se necessários Quando falo da pessoa buscar seus próprios caminhos isso não quer dizer que seja uma busca isolada ou individual trilhada nas amarras da solidão mas uma busca de si mesma com os outros para o outros projetada para além de mim para conhecer a realidade do outro do mundo da vida pois quem mais encontrará em seu caminho que não seja o outro E nesse outro certamente encontrará a transformação de seu ser e do outro mas o outro não como um objeto mas como uma presença Essa luta conjunta nos reporta a reflexão que Marcel faz sobre o ser e ter quando diz Creio pois que quanto mais nos elevamos a realidade quanto mais acedemos a ela tanto mais cessa de ser assimilada a um objeto colocado ante a nós que tateamos e ao mesmo tempo mais nos transformamos efetivamente a nós mesmos MARCEL sd p 156 180 A transformação do ser obtida pelo conhecimento da realidade do outro afasta a possibilidade de estabelecer relações de jugo e poder e ao mesmo tempo lança a pessoa ao seu estado de liberdade favorecendo a livre adesão do espírito O primeiro princípio de uma educação personalista é a de afastar qualquer possibilidade de adaptação ou conformismos ao meio social e ao Estado na medida em que quer resgatar o significado de despertar pessoas para o exercício da liberdade Essa liberdade diz Mounier é conversão à unidade de um fim e de uma fé Se por um lado Mounier afirma que a educação não pode ser totalitária ela não pode deixar de ser total no sentido em que vê a pessoa por inteiro integral como um todo que dispensa fragmentações e separações E nisso afirma que a educação jamais pode ser neutra como querem alguns adeptos de uma educação opressora e baseada em valores impessoais A prática da neutralidade dessa maneira achase concebida numa série de becos sem saída ou a escola que pretenda ser neutra deixa o ensino difusamente impregnarse de alguma doutrina elaborada segundo um espírito dominante hoje a moral burguesa como os seus valores de classe e dinheiro o seu nacionalismo a sua concepção de trabalho da ordem etc ou ela vê a sua neutralidade violada por mestres que são homens convictos que não aceitam viver mutilados e que fazem abertamente ou não conscientemente ou não explicita ou implicitamente proselitismo católico marxista relativista etc Mounier 1967 p 136 Esse tipo de neutralidade fere os princípios fundamentais de uma educação personalista uma vez que esvazia a liberdade e a coloca num lugar comum de abstração favorecendo a indiferença e impessoalidade diante do outro e da existência e não preparando para um compromisso responsável de fé e amor conexões existenciais fundamentais para uma educação baseada em valores Nessa perspectiva a criança deve ser educada como uma pessoa pelas vias da aprendizagem do livre compromisso da aprendizagem de liberdade e por isso não pode ser encontrada como um modelo acabado e moldado pelo Estado o que Mounier critica severamente chegando a dizer que a educação não pode ser monopólio do Estado pois este não tem a mínima consideração pela educação libertadora da criança O ideal seria diz ele que enquanto a criança não atingisse a maioridade ficaria a cargo das comunidades naturais e das famílias espirituais sua educação pois só assim poderia aproximarse do sentido de comunidade amor fé e liberdade E afim de que a educação tenha um nexo dialógico edificante para assegurar a livre iniciativa da pessoa é preciso promover escreve Mounier uma profunda transformação 181 pedagógica da escola com o primado da educação e da educação pessoal sobre a erudição a preparação profissional ou a educação de classes Mounier 1967 p144 É preciso entretanto compreender que não basta olhar a educação somente neste prisma é preciso muito mais além de simples adesões ao poder institucional privado ou pessoal ainda que a educação tenha que ser acompanhada de um esforço institucional sem o qual não seria possível as intervenções dialógicas mas compartilhando uma filosofia e espírito que dê conta da pessoa do educando do professor do gestor e todos que compunham as estruturas orgânicas e pedagógicas da escola No mesmo sentido que Mounier Buber diz que a educação pode ser traduzida numa relação essencialmente do eu e tu porque pode e deve ser uma relação dialógica carregada de afetividade de humanidade porque nesta relação às pessoas se humanizam Ora humanizar a pessoa é tornála coexistente com o outro é dar a possibilidade de educála com o outro afastandoa de ser meramente um objeto que se classifica rotula ensina transmite saber Lembro aqui Marcel sd que dizia que uma das mais prementes tentações do mundo moderno ligase ao prestígio dos números das estatísticas E comumente vemos estampados nas propagandas das políticas de educação não somente mas em todos os segmentos a primazia dos números sendo o principal significado o fator estatístico e técnico como fundamental para o sucesso ou ao contrário o insucesso das escolas e das demandas educacionais Vemonos permanentemente influenciados pela ditadura dos números dos dados estatísticos dos indicadores como se eles fossem capazes por si só de expressar todas as ações humanas ou legitimar se determinada ação é valida ou não No campo da educação é comum as escolas que preparam por exemplo para o processo seletivo de ingresso ao Ensino Superior se tornaram uma autêntica máquina de fazer calouros quando estampam em sua publicidade o número de jovens que conseguem aprovação E quanto maior o número mais eficaz se torna tal escola onde a competitividade é o valor fundamental pelo qual o jovem começa a ser despertado Não estou entrando no mérito de questionar a quem a escola está dirigida e para quem e qual o sentido repassado para as crianças os adolescentes e os jovens pois invariavelmente se colocaria na discussão dos dilemas éticos da escola Mendonça expressa com razão e clareza de suas vivências no campo da educação que o grande desafio da escola hoje é resgatar o sentido da vida Em meio à barbárie e suas múltiplas expressões seja na violência virtual da pornografia infantil na violência sexual contra crianças na prostituição infantil na violência na família entre gêneros na escola etc o desafio à educação hoje é recuperar o sentido da vida MENDONÇA 2008 p 10 Mimeo 182 Trabalhar os valores com fator de mudança no campo da educação é proporcionalmente válido tanto quanto uma postura pedagógica competente que prime pela transformação de seus educandos Os valores segundo Scheler citado por Costa 1996 são intencionalidades das emoções e seus objetos intencionais Desse modo ele diz que há um cosmos objetivo de valores alcançável somente pela via emocional onde a razão é distanciada ou cega ao valor Por exemplo atos como preferir e querer algo amar odiar não são racionais e sim emocionais e desdobramse a priori em conteúdos materiais que não procedem da sensibilidade Esses conteúdos são os valores qualidades dotadas de conteúdo que estão nas coisas mas são independentes tanto delas quanto de outros estados de ânimos subjetivos Essa noção de valor é fundamentada na visão fenomenológica aliás é bom lembrar que Scheler foi discípulo de Husserl e utilizou a fenomenologia para estudar os fenômenos emocionais e suas respectivas intencionalidades que são os valores sem abandonar no entanto às exigências da metafísica clássica No âmbito da moral os valores estão vinculados à experiência ou de uma conduta ou de um individuo sendo estes essenciais para a percepção de determinados valores Para ficar mais claro Costa 1996 diz Por exemplo Sócrates ao acatar a condenação injusta dos magistrados de Atenas colocou com destaque o valor da obediência às leis da pátria São Francisco de Assis através da pobreza mostrou o valor do desprendimento dos bens materiais Mahatma Gandhi com sua resistência pacifica ao domínio inglês mostrou o valor e o poder da nãoviolência Assim através de sucessivas experiências e vivências os valores morais vão sendo descobertos para construir o único referencial universalmente valido para se determinar o que é bom ou mal COSTA1996 p 41 Os valores para Scheler são sempre os mesmos não mudam tem uma essencialidade própria independente do lugar e da época o que muda entretanto é a percepção que temos dele Por isso cada época ou cultura privilegia alguns valores e ignora outros Logo os mundos dos valores estão incorporados à escala dos dados objetivos reais e materiais e são independentes dos sujeitos que os percebem Para Scheler o termo material significa objetivo que tem uma realidade e uma validade independentes do sujeito E educação pautada nos valores são representativos primeiramente na família no inicio da formação da criança Família aqui é entendida como uma expressão de liberdade das 183 pessoas sendo sua missão tutelar a vocação da criança no seu desenvolvimento e envolvimento com o mundo A criança é na visão personalista o miraculoso jardim onde podemos conhecer e preservar o homem antes que ele tenha desaprendido a liberdade a gratuidade e o abandono Cada infância que nos protegemos que fortificamos sem no entanto deixarmos de a despojar das suas puerilidades que conduzimos até a idade adulta é uma pessoa a mais que arrancamos à dominação do espírito burguês e seja em que sociedade for à morte do conformismo É uma fonte que guardamos viva Mounier 1967 p 169 A fim de que haja uma diversidade de uma educação libertadora e pluralista Mounier aponta alternativas que permitem a escola salvarse dos perigos da neutralidade e da ameaça de uma escola pautada em posições totalitárias Porém chama atenção para o problema de que uma educação nas mãos de famílias e comunidade naturais pode correr o risco de se tirar do Estado a educação infantil e colocála nas mãos de dogmatismos particulares e assim criar várias versões de escolas autoritárias Nisso a alternativa apontada por Mounier é bastante atual às exigências de uma educação que prepare pessoas e não meramente profissionais impessoais ou seja de condições impostas à formação dos professores pelo espírito dos concursos pela inspeção que cabe garantir qualquer que seja a doutrina ensinada que ela o seja segundo métodos que respeitem e eduquem a pessoa MOUNIER 1967 p 144 Ao falar da criança falamos por extensão da família que é o meio mais significativo e insubstituível para a formação de pessoas preparadas para viver em comunidade Preparadas no sentido de que elas serão mais sensíveis e dóceis ao espírito de liberdade e do mesmo modo mais resistentes à tentação do espírito burguês com seus grandes tentáculos de manipulação competição hipocrisia e moralismo Na visão personalista a família é o primeiro caminho para que a criança se personalize Enquanto são crianças e adolescentes a família é de fundamental importância para aprendizagem e exercício de valores morais religiosos37 e comportamentos psicológicos saudáveis para gozar de livre expressão 37 Retiro das palavras de Mendonça meu entendimento de religião como concebida por Gandhi não a institucional mas a ligação do homem com o obsoleto e a percepção de sua interpenetração como o todo universal wwwufpabrperegrinosdapaz 184 Nesse sentido Mounier diz uma civilização mais sensível aos valores da pessoa do que as da razão geométrica vê na instituição familiar uma aquisição definitiva o meio humano ótimo para a formação da pessoa 1967 p156 Mas a família pode ao mesmo tempo agir como fator extremamente prejudicial aos seus membros quando parece reproduzir os totalitarismos políticos e as ideologias massacrantes e engendrar conformismos violência agressão comportamentos psicológicos comprometedores e outros valores considerados universalmente prejudiciais à livre expressão da pessoa A família também pode ser considerada somente como uma sociedade comercial regulada por interesses financeiros bem definidos Como bem expressa Mounier sobre a família O amor é determinado nela pelo nível da classe e pelo volume do dote pela fidelidade ao código da consideração e do prestigio os nascimentos pelas exigências do conforto O casamento ora é a transferência de uma conta ou extensão de um negócio ora uma operação publicitária ou uma tábua de salvação MOUNIER 1967 p 160 Mas a família não se reduz a uma transação comercial e nem tampouco a processos puramente biológicos e funcionais ainda que seja um misto desses processos mas não é um grupo acidental de pessoas A família vive numa cidade numa determinada escala de quadros sociais historicamente dadas é afetada e sofre afetações de toda ordem é um espaço de crescimento e presença mas também é ausência de nada ser e nada fazer para a educação de seus membros Para exemplificar bem a concepção de família no prisma de Mounier coloco aqui suas palavras que expressam que a família é um meio espiritual onde renasce a verdadeira comunidade Se ela é um dado histórico é igualmente um fazerse com os outros Esta comunidade de pessoas não é automática nem infalível Ela é um risco a correr um compromisso a fecundar Mas a família só pode ser considerada uma sociedade espiritual sob a condição e sob esta condição somente de tender para ela com todo o seu esforço de nela irradiar já a graça de tal comunidade MOUNIER 1967 p165 Se Mounier coloca a família como alternativa potencial para a educação esta não deve no entanto ser predominante a tal ponto de aprisionar a vocação da criança fazendoa cativa de suas tiranias Uma educação personalista por certo intervém em todas as dimensões do desenvolvimento da criança mas não pode sob esse pretexto se apoderar de seus desígnios e destino As sociedades fechadas são o melhor exemplo de uma educação que almeja uma 185 sociedade formada por guetos por valores limitantes e cristalizados em processos libertários ou anárquicos ou mais ainda em valores radicais construídos sob a margem do aceitável Com razão Mounier vai dizer que para livrar a criança de sociedades fechadas a melhor opção é educála sob estes prismas de escala de importância família escola corpo educativo e por fim o Estado O Estado como se vê figura como o último recurso para a educação da criança pois dirá Mounier que ele é apenas um poder de jurisdição e não pode influenciar diretamente e não unicamente na vida das pessoas Conforme Mounier a vida pessoal nasce da tensão entre dois pólos De um lado a pessoa como individualidade e de outro a pessoa como ser espiritual Essa composição é a condição fundante do ser pessoa e como ela leva todas as especificidades dessa constituição A pessoa é a junção de laços afetivos e tece relações imediatas não precisa de intermediários ela por si só é capaz de estabelecer laços ou não com o outro Mas a pessoa não é somente um feixe de sensações ela supera está vida sensível Para Mounier a sociedade elementar na qual a pessoa vive tem o nome de pátria Ele retirou de Bérgson a idéia pela qual a pessoa ao ter mais disponibilidade para laços sensíveis parece mais ligada a pequenas sociedades 522 Por uma economia para a pessoa Para entendemos a economia voltada para a pessoa é necessário fazermos um resgate da história da ideologia e cultura burguesa Sabese que no século XVIII ocorreu na Inglaterra a Revolução Industrial Esta provocou uma profunda transformação no que diz respeito aos instrumentos e técnicas de trabalho visto que as novas técnicas permitiram um considerável aumento na produção porém essas mudanças só foram benéficas para aqueles que detinham o poder e acabou por explorar os menos favorecidos alienandoos não permitindo que tomassem consciência de sua condição e sua ideologia não permitia sua emancipação Para Mounier essas mudanças sufocaram o organismo da sociedade afirmando que Por falta de distância ou de filosofia a maior das críticas e dos homens de ação tomaram o acidente por um estado normal Proclamar a soberania do econômico sobre a história e regularam a sua ação por esse primado à maneira de um cancerólogo que decidisse que o homem pensa com os seus tumores MOUNIER 1961 p188 186 A revolução industrial foi marcada pelo desenvolvimento da ideologia liberalista individual que se caracteriza por sua crença na liberdade individual como forma de estabelecer uma ordem econômica e política acreditando também que a economia seria capaz de transformar a sociedade Mounier se opunha a essa idéia liberalista pois para ele o econômico não pode resolvese separadamente do político e do espiritual denomina esse fato de acidente histórico que atingiu de maneira maléfica o organismo humano da pessoa e da sociedade dizendo ainda que todas as formas de desordem mesmo espiritual tem uma componente econômica que a domina É precisamente para reabsorver esta monstruosa inflação do econômico na ordem humana que nós devemos urgentemente restituirlhe uma ordem própria a fim de desembaraçar dele todos os problemas que deturpa ainda MOUNIER 1961 p 189 Sabemos que há leis econômicas e processos históricos determinantes mas que não nos impede de deslocálos e até mesmo corrigilos mas não conseguiremos acabar com estes negandoos E necessário enfrentarmos essas idéias enxergando a realidade assim como ela nos é posta e sem deixar o espiritual de lado dando ênfase a moral coletiva e não individual Não se pode esquecer que as iniciativas dos indivíduos se inscrevem nas instituições e suas fraquezas em determinismos Assim optase pela necessidade de uma nova ciência esta que permite um discurso moral que seja posto em destaque a figura do homem desligandoo de suas dependências permitindo que este siga o seu caminho mediante os seus próprios meios Afirmo que o ponto negativo dessa citação é quem nem sempre os seres tomados de razão são dotados de moral coletiva e se tornam ineficazes por não serem apenas ideológicas e sim inseridas em instituições vivas Uma economia de cunho personalista promove a regulamentação e o proveito de acordo com o serviço prestado na produção ou seja a produção de acordo com o consumo e o consumo de acordo com uma ética das necessidades humanas em detrimento da pessoa A pessoa passa a ocupar lugar de destaque e é considerada a mais importante nas relações econômicas pois ela é o primado da organização da economia Dessa forma a economia passa a interagir com os dois lados da atividade econômica o produtor e o consumidor A economia personalista parte dos seguintes conceitos 187 1 parte de uma ética das necessidades dado que a pessoa esta inserida na atividade econômica 2 necessidades elementares de consumo ou de gozo assim destacados a zona do necessário vital estrito quer dizer do mínimo espiritual indispensável para manter a vida física do indivíduo zona dos bens de consumo é que se pode da o sentido supérfluo na medida em que tais necessidades não são estritamente requeridas para a conservação da vida física zona de necessidade de criação puramente pessoal não devem ter outros limites que não sejam as capacidades individuais e a possibilidade da riqueza pública A economia de natureza personalista é uma economia humana que busca as necessidades básicas da pessoa segundo aos códigos convencionais da classe Assim sustentamos a idéia de que se deve primeiro sustentar a condição fundamental do homem a sua condição criadora 3 a economia personalista regulará a sua produção segundo uma estimativa das necessidades reais das pessoas consumidoras Ela já não se dedicará portanto a expressão delas na procura comercial falseada pela raridade dos signos monetários ou pela diminuição do poder de compra e sim pelas necessidades vitais estaticamente calculadas e as necessidades pessoais expressas diretamente pelos consumidores 4 o consumo é uma atividade pessoal deve portanto permanecer livre se não no seu volume que depende da riqueza geral pelo menos na sua atribuição Em economia personalista o consumo não é objeto de um plano autoritário imposto por organismos centrais permanece livre e passa a escolher entre os bens e as categorias de bens para influir mesmo nos preços e impor os seus desejos Assim Mounier cogita que a concepção personalista da produção caracterizase pelo primado dos fatores pessoais sobre os fatores impessoais Daí resulta alterações hierárquicas que terão conseqüências sobre todo sistema econômico São eles 1 Primado do trabalho sobre o capital apresenta dois postulados a o capital não é bem suscetível de fecundidade automática mas apenas uma matéria de troca e um instrumento cômodomas estéril na produção b a economia personalista abole a fecundidade do dinheiro sob todas as formas Rejeita o juro fixo do empréstimo e da renda Elimina toda forma de especulação e reduz as bolsas de valores ou de mercadorias a um papel regulador 2 O capitaldinheiro com o tal não tem nenhum direito sobre o produto do trabalho no qual colabora É aqui necessária uma distinção entre os suprimentos cujo detentor é 188 estranho à empresa e o capital pessoal que participa da vida da empresa pelo trabalho do seu possuidor e pelos riscos Para o personalismo o trabalho não é o valor primeiro do homem portanto não é toda a sua atividade nem sua atividade essencial ávida da inteligência e a vida do amor ultrapassamno em dignidade espiritual Para que o trabalho desenvolva suas riquezas humanas sem que seja posto o sentimento de reivindicação e ressentimento é necessário estabelecer um primado do trabalho sobre o homem total e sobre todas as suas atividades sociais Dessa forma o personalismo afirma o primado do trabalho sobre o capital no seu domínio próprio que é o domínio econômico Mesmo condenando o salário advindo do capitalismo Mounier acaba por não proclamar o imoral princípio geral da remuneração fixa e garantida contra todos os riscos de um trabalho fornecido Ele denuncia a mentira de um regime de fato que não responde a definição teórica do salário capitalista a maioria das vezes inferior ao mínimo pessoal que os artífices principais de lucro social têm o direito de reivindicar com a parte que lhes cabe Por outro lado denuncia um regime em que o salário do trabalho é uma concessão do capital ao trabalho Mas ele conclui que o capital necessita não só do trabalho para alcançar o lucro como também da autoridade de definir e distribuir a remuneração do trabalho Porém isso não significa que o personalismo não pode ser partidário da luta de classes mas não podemos nos deixar enganar e tapar os olhos e sim afirmar que a luta de classes esta ai posta em nossa frente e que ela só acabará com o ataque as suas causas Nessas críticas a economia capitalista ele chega a dizer que não se deve transportar para a economia todas as negatividades da democracia parlamentar O sentido que para ela tem a democracia é bem claro Ela não é o reino do número inorganizado e a negação da autoridade mas a exigência de uma personalização indefinida da humanidade No domínio da produção a exigência democrática assim concebida requer que sejam dadas a todos os trabalhadores condições para exercer ao máximo as prerrogativas da pessoa responsabilidade iniciativa mestria criação e liberdade e no papel que lhe atribuem as suas capacidades e a organização coletiva MOUNIER 1967 p 228 Esse fato não é apenas um protesto negativo contra a submissão do trabalhador ao sistema capitalista e sim uma reivindicação para almejar a emancipação dos trabalhadores em 189 outras palavras a passagem da condição de meros instrumentos de trabalho a condição de associados Percebese que a democracia personalista é contrária a qualquer tipo de autoritarismo que venha a bloquear a autoridade num indivíduo ou numa casta cujo domínio exterior opressivo e incontrolado é um encorajamento a passividade dos administradores Na organização de cunho personalista há responsabilidade em todos os setores e não exclui a verdadeira autoridade a ordem ao mesmo tempo hierárquica e viva onde o comando nasce do mérito pessoal é acima de tudo uma vocação para despertar personalidades e cabe ao seu titular um acréscimo de responsabilidade Ao se afirmar que a economia é animada pelas bases aqui Mounier confirma que uma economia para a pessoa deve partir de sua própria realidade sendo ela artífice e produtora da sua própria história No projeto social e político engendrado pelo personalismo haverá a manutenção da coletivização e da liberdade apoiandose a uma economia autônoma e flexível ao invés de se aproximar às idéias do estadismo A economia centralizadora apresenta com tendência a economia unitária e só admite uma certa pluralidade de setores conforme as sua necessidades de transição Já a economia personalista é cunho pluralista de setores que se realiza entre a coletivização e as exigências da pessoa 523 Por uma democracia personalista A democracia liberal dá uma idéia falsa de liberdade e por isso Mounier criticava a democracia concebida pelos poderosos O seu ponto de partida é que se a pessoa pode ser subordinada convém que sua soberania de sujeito não seja afetada ou se possa reduzir ao máximo a inevitável alienação imposta por sua condição de governada Eis o que é o problema da democracia diz Mounier Ele aponta as várias ambigüidades que efetivamente rondam a democracia tanto concebida como forma de governo quanto um regime de espontaneidade de massas e seu questionamento é como articular a essa forma de governo com a garantia de participação das pessoas sem ferir um e outro pois tanto as democracias permanentes ou os estados totalitários podem ser duas forças tirânicas No que se refere à democracia a soberania popular não pode fundarse na autoridade do número da maioria Então como instalar um estado democrático baseado na maioria e invariavelmente ir ao encontro dos anseios de cada um Mounier assinala que a iniciativa 190 popular pode ser respeitada indiretamente por uma forma de representação em que a sinceridade integral e eficaz parta das vontades dos cidadãos por meio de uma educação política capaz de desempenhar um papel de motivador das expressões sociais que deverá suscitar não um partido único e totalitário que cimente ainda mais os efeitos que lhes eram comuns e que fatalmente conduzirá ao Estado policia mas sim novas estruturas de educação e ação política que correspondam a um novo Estado social Mounier 1964 p 197 Neste sentido azse necessário distinguir a democracia personalista da democracia liberal A democracia liberal é caracterizada pela sua soberania popular que por sua vez se funda no mito da vontade do povo enquanto que a democracia personalista busca a cooperação e igualdade entre as pessoas e sociedade Por não apresentar em seus postulados uma idéia centrada na pessoa a democracia desde sua gênese repugnou duas verdades místicas a da autonomia das consciências e das vontades que quando fosse concebida a sua maneira individualista e liberal testemunhava uma intenção personalista e a mística majoritária que carregara em sua teoria os germes dos regimes autoritários do fascismo e nazismo relativista de uma mesma natureza Para Mounier só há uma definição acerca da democracia ela é no plano político a exigência de uma personalização indefinida da humanidade Com essa definição ele afirma que a democracia não é em si a supremacia do número que é a forma de opressão É a procura de meios políticos destinados a assegurar a todas as pessoas numa cidade o direito ao livre desenvolvimento da responsabilidade No mesmo sentido diferencia autoridade de poder O poder não é apenas uma autoridade sobre o indivíduo é um domínio que pelo seu próprio exercício tende a ameaçar a pessoa A autoridade politicamente tomada é o contrário é uma vocação que a pessoa recebe de Deus ou da missão personalista que excede a sua função social o dever que lhe cabe é o de servir as pessoas Mas não podemos confundir essa noção advinda da antiguidade de que todos os reis tinham como pressuposto de autoridade o poder divino Por essa concepção suas tiranias colocamse a mostra e superavam o reino do estabelecido O caráter personalista restaura a autoridade organiza o poder mas também o limita na medida em que desconfia dele É na verdade um esforço uma técnica que procura apurar em todos os meios sociais a espiritualidade capaz de exercer uma autoridade e ao mesmo tempo garantir a defesa contra a pretensão das elites em virtude do poder que esses exercem sobre as pessoas e ao serviço que elas prestam 191 Nessa concepção de democracia ele referese a um regime voltado para as pequenas nações pois as grandes nações não podem realizála até dissociarem o poder e desistir da idéia de ter para si o lucro conseguido através da exploração de uns sobre os outros È assim pois organizada A cidade pluralista constituise no cimo sobre um conjunto de poderes autônomos poder econômico poder judiciário poder educativo etc MOUNIER 1967 p 276 O Estado visado por Mounier será desprovido de tarefas de organização que não o apóiam as quais ficaram a cargo das grandes comunidades nacionais O Estado é apenas um laço de coordenação e de arbitragem suprema garantia da nação em defesa da pessoa contra as rivalidades ou abusos do poder Assim podese definir o Estado Cada comunidade nacional é regida por um sistema de democracia pesonalista e descentralizada O Estado que se vê sem domínio das pessoas não se reduz ao domínio das coisas nem totalitário nem simplesmente técnico Como seu serviço principal é garantir e ajudar as pessoas o político terá a primazia sobre o técnico Deve pois subsistir um lugar para a representação política das opiniões no sufrágio universal ela regerá as grandes orientações da política do Estado MOUNIER 1967 p 278 E Mounier ao finalizar diz que o testemunho político as obras da cultura e todas as forças que regem a sociedade constituem a grande salvação da pessoa neste emaranhado social e político e assim profetiza Talvez seja longo o caminho que leva à salvação da pessoa mas a salvação não se alcança por qualquer outro caminho 1967 p 318 O caminho para um projeto de sociedade regido por uma inspiração personalista certamente não é o único nem tampouco uma conquista fácil nos tempos contemporâneos no entanto é um caminho apontado com coragem audácia espírito de liberdade e adesão utopia e solidariedade que somente poderá desvelarse como realidade a partir do primado da pessoa 192 REFLEXÕES FINAIS São pois a exigência espiritual tanto quanto a consciência histórica que reclamam uma tomada de posição revolucionária Tratase apenas de trabalhar para determinar no sentido lato do termo uma revolução que respeitará os direitos da pessoa ou melhor na qual a pessoa encarnada será ao mesmo tempo inspiradora e beneficiaria Jean Lacroix Pensar com o filósofo Emmanuel Mounier não é retirarse no isolamento de um gabinete de estudo nem tampouco contemplar a realidade fazendoa como objeto puro e simples de estudo mas é ser impulsionado a percorrer os diversos cenários do mundo pois segundo ele pensar é sobretudo agir A sua reflexão é um combate uma luta que não cessa de alimentarse ao contato dos acontecimentos ao contato com as pessoas inseridas no mundo nada lhe fugindo à observação das pessoas e de seus diálogos éticos O seu pensamento interpela convida a posicionarse refletir sobre o seu tempo sobre as pessoas por isso sua filosofia não é sistemática não pode enquadrarse em nenhuma teoria fechada do conhecimento Sua atitude é comprometerse mas também não se lança num mundo no risco de perderse mas ao contrário encontrarse com outro numa atitude de comunhão de diálogo de disponibilidade dandose generosamente ao outro e intervindo para alterar e transformar qualquer processo que possa obstruir o livre exercício da pessoa humana Ele não cessou de denunciar os totalitarismos combater infatigavelmente a injustiça de dar ao pensamento ares de expressão concreta Mas todo seu combate encontrou forças não somente nele e no mundo no qual viveu Sua força e lutas vinham sobretudo de sua fé em Deus nos homens e na justiça porque tinha esperança que herdou do filósofo Péguy para quem a interioridade espiritual era o pressuposto essencial de qualquer revolução Se com razão Buber dizia que a revolução está na educação Mounier dirá que a revolução virá do espiritual de dentro para fora isto não significa pensar que seja idealista ou espiritualista ele sempre insiste em dizer que a pessoa movimentase e faz presença no mundo considerando sua história sua cotidianeidade o fator cultural ou religioso e político Jean Lacroix 1969 expressa com clareza essa dimensão espiritual concebida por Mounier Assim como a dimensão política implica uma dimensão histórica esta implica uma dimensão espiritual A pessoa e transcendência o que significa que a destruímos se a consideramos apenas como um elemento cósmico ou um momento É preciso ainda compreender que falar em transcendência é antes permitir abertura e opção que dar solução LACROIX 1969 p 44 193 A revolução espiritual quer dizer que germinará primeiramente no coração do homem para então tornarse concreta com dimensões de moralidade capaz de tornar qualquer indivíduo em pessoa e por conseguinte instaurar uma nova ética É essa alternância de movimentos de afirmação e de expansão por um lado de retirada e de meditação por outro que faz de Mounier um filósofo não sistemático mas plenamente coerente de seu compromisso e engajamento político toda a sua filosofia se faz num caráter profético não romantizado ou integralmente interior mas como uma interioridade que se exterioriza em direção as pessoas e ao mundo permitindo marcar os atos com o selo do infinito Mounier pretendeu pensar uma filosofia cristã conscientemente contemporânea em um momento em que o cristianismo e a modernidade estavam em crise em todos os sentidos mas principalmente passando por uma crise moral e espiritual Por isso anuncia com sua filosofia Refaire la Renaisance Refazer a Renascença o viver de um pensamento católico que não pode estar frontalmente contra a modernidade senão que deve mostrar as fragilidades do modelo humanista e individualista herdado do Renascimento O fundamento do pensamento de Mounier e todas as suas discussões acerca da pessoa tinham como intenção instituir o seu projeto personalista comunitário visando um mundo onde o primado da pessoa fosse respeitado Por isso todos os debates tinham como finalidade colocar a pessoa na primazia de todas outras dimensões quer sejam econômica sociais ou políticas Entretanto a pessoa tem essa múltipla dimensão ou seja ao mesmo tempo em que é um ser comunitário aliás essencialmente um ser que se projeta para o outro numa junção inseparavelmente comunitária é um ser transcendental cuja vocação é voltarse para algo além dela mesma numa atitude de amor ao próximo e a Deus e é um ser sóciopolítico pois tem a capacidade de se fazer na e pela comunidade que segundo Mounier se dá no seu projeto de sociedade personalista A fim de apresentar essas múltiplas dimensões da pessoa foi necessário primeiramente ir aos fundamentos do personalismo o desmitisficando do sentido meramente individual e egoísta comumente associado ao personalismo do ponto de vista do senso comum Ao realizar investigações no campo de estudo sobre o personalismo verifiquei que o termo associado ao individualismo devese à visão religiosa em especial na doutrina espírita segundo a qual o líder espiritual personalista é aquele cuja liderança se pauta em ações em torno de si mesmo Por outro lado o termo numa visão política é vinculado à idéia de um líder político que por si só reina independente de seu partido e das adversidades do momento 194 político E por fim na perspectiva psicológica é aliado à idéia de um estado de supervalorização do eu ou mais o que é denominado de egocentrismo exacerbado Se no senso comum o personalismo figura como ponto negativo ao livre exercício da pessoa por outro lado existem inúmeros visões filosóficas tanto do ponto de vista teórico quanto prático que utilizam o termo como concebido por Mounier Vale ressaltar mais ainda que essas visões destacadas no trabalho têm como base de pensar e agir o personalismo como por exemplo os expressivos trabalhos na área da educação de Paulo Freire como também estudos interventivos no campo do Serviço Social e na área jurídica A partir do momento em que essas distorções em torno do personalismo foram dirimidas caminhei para apresentar o personalismo propriamente dito a partir das reflexões de Mounier no seu sentido propriamente filosófico pois não é à toa que Ricoeur chama o personalismo de matriz filosófica Todas as discussões em torno da pessoa e dos inúmeros embates políticos travados por Mounier teve como interlocução significativa as páginas da Revista Esprit seguramente um instrumento de comunicação revelador para o começo de uma revolução espiritual e que serviu para dar visibilidade ao movimento político ético e cristão de Mounier face seu caráter pluralista Portanto a Revista Esprit foi um importante interlocutor dos diálogos combativos de Mounier com a sociedade francesa da época a ponto desses embates influírem na Constituição francesa de 1946 ou mais precisamente no que Mounier deu destaque em relação à pessoa de ser protegida contra os abusos do poder e que todo o poder não controlado tende ao abuso Esta proteção exige um estatuto público da pessoa MOUNIER 1964 p 195 Para que as reflexões em torno da pessoa fossem colocadas em uma discussão propriamente personalista necessário se fez primeiramente traçar um pequeno perfil histórico sobre a noção de pessoa e o indivíduo a fim de diferenciar e tornar conhecida as várias visões que o conceito sofreu ao longo da história mas sobretudo as discussões se dirigiam para pensar a pessoa na modernidade a partir de autores personalistas existencialistas cristãos E nisso constatei que embora a pessoa esteja no centro de todas as discussões ela é em última instância um ser que se eleva ao infinito tendo um diálogo próximo a Deus pois a pessoa é definitivamente um movimento de transpessoalidade voltada para o anúncio de uma comunhão e da valorização de seu ser pessoal e comunitário Como Mounier foi protagonista do movimento existencialista que despontou na Europa ficou evidente sua adesão a este movimento porém ele foi bem claro ao denominar o personalismo como uma filosofia da existência por tratarse de discussões sobre a pessoa como ser existente inserida em sua existência concreta 195 Dentre os autores da filosofia existencialista ele dá especial destaque aos filósofos ligados às reflexões do ponto de vista cristão como Gabriel Marcel Martin Buber Paul Louis Landsberg Max Scheler os quais discuto alguns aspectos de suas filosofias que são coincidentes com os pressupostos e temáticas desenvolvidas por Mounier Aliás convém esclarecer que ao longo das discussões sobre as questões levantadas pelo personalismo como em destaque a temática da pessoa da liberdade da encarnação da comunicação da comunidade do amor das múltiplas dimensões aqui explicitadas ou seja comunitária transcendentalespiritual e sociopolítica e ética é dialogada com os autores citados por apresentarem pontos convergentes por mim desvelados ao longo da pesquisa sob a qual incidiu como objetivo fazer essas interlocuções teóricas de Mounier com os citados autores Todo o trabalho acadêmico tem uma delimitação de assunto e cada autor deste privilegia certos aspectos para dele discorrer em face de magnitude de temáticas conceitos e categorias explicitadas pelo autor eleito para estudo Nas leituras e pesquisas bibliográficas empreendidas ao longo do estudo delimitei alguns aspectos que considerei mais significativos para apresentar e discutir neste estudo embora devo esclarecer as infindáveis e diversificadas discussões de Mounier sobre inúmeras questões sociais políticas econômicas suas discussões com o cristianismo marxismo existencialismo e seus diálogos empreendidos com diversos autores quer sejam por meio de críticas no caso Sartre Nietzsche Heidegger quer seja por meio de seu profundo reconhecimento no que diz respeito às contribuições nas suas discussões sobre a pessoa no caso Gabriel Marcel Paul Louis Landsberg e Max Scheler Paul Ricoeur e Martim Buber aparecem já como aproximações teóricas por mim formuladas no estudo Vale dizer que grande parte dos escritos de Ricoeur e os elementos constitutivos sobre a filosofia da pessoa encontram ressonância no personalismo Minha pretensão foi também de evidenciar a importância do personalismo nos dias atuais na medida em que se clama pela valorização da pessoa humana e se denuncia as fragilidades gritantes contidas nos valores contemporâneos paradoxalmente confrontados com valores que provocam o individualismo o egocentrismo a violência e todas as suas expressões a competitividade a lógica do lucro e a cultura do consumo Esse duradouro confronto encontra resistência justamente nas ações que busquem o diálogo como vivência ética em direção ao outro conceba a pessoa como o mais maravilhoso ser existente no universo e encontre Deus como fonte inesgotável de nossos diálogos pessoais com Ele e com o meu próximo 196 Como se pode perceber o personalismo vai em busca de atingir o cerne das questões que se colocam a pessoa seja quem for encarandoa de maneira concreta interativa interventiva dialogal e ética Em nenhum momento Mounier sugere soluções abstratas e inatingíveis ao contrário aponta caminhos sugere práticas sociais provoca as pessoas a assumirem compromissos polemiza no sentido de despertar pessoas a fim de se engajarem em lutas e busquem a justiça e a paz social Foi assim que sua proposta personalista cuja intenção é colocar a pessoa acima de qualquer estrutura econômica e política permanece até hoje para alguns como uma utopia para outros como uma ilusão mas para mim considero como uma utopia realizável principalmente porque vai ao encontro de uma revolução que nasce de dentro de uma revolução que resignifica os valores humanos fundamentais para a construção de uma moralidade ética do respeito ao outro seja qual for como meu próximo e principalmente sob á égide do amor que nos une a Deus e nos entrelaça com toda a humanidade por isso a revolução terá que ter a pessoa como primazia na sua materialidade e espiritualidade E finalizo aqui com as palavras de Ricoeur proferidas em comemoração ao centenário do nascimento de Mounier em 2005 A revolução ou será moral ou não o será continuou citando Só quem se deixa revolucionar por Deus será capaz de revolucionar o mundo O mal escuro da não comunicação de hoje que gera violência opressão e desagregação só será superado por comunidades de pessoas maduras que transformem a história em um canteiro no qual se preparem os materiais preciosos para a construção do Reino 38 Ao longo do trabalho discuti algumas questões que considerei mais importantes para traduzir o pensamento de Mounier e toda sua trajetória filosófica e política no entanto deve ficar claro a amplitude riqueza e atualidade de seu pensamento que evidentemente não se esgotam nesta pesquisa e nas questões por mim levantadas mas são reflexões que põem em evidência a necessidade de estudos mais aprofundados no campo das ciências sociais e suas articulações teóricas e práticas que possam impulsionar ações significativas no campo social 38 Ver mais sobre esta palestra em wwwacademusprobr 197 REFERÊNCIAS ADORNO Theodor W Minima moralia reflexões a partir da vida danificada 2ed São Paulo Editora Ática 1993 HORKHEIMER Temas básicos de sociologia São Paulo Ed Cultrix 1956 ALMEIDA Anna Augusta O Serviço Social num caminhar fenomenológico Revista de Pesquisa Social ANPESS CBESSIS Rio de Janeiro 1980a Possibilidades e limites da teoria do serviço social 2 ed Rio de Janeiro Martins Fontes 1980b ANDREOLA Balduino Fórum Paulo Freire Revista Eletrônica Rio de Janeiro n 1 2005 BACELLI Carlos Alberto O espírito de Chico Xavier São Paulo Editora Vitória Ltda 2004 BARROS Alberto da Rocha Que é fascismo Rio de Janeiro Laemmert 1969 BAUMAN Zygmunt Comunidade a busca por segurança no mundo atual Rio de Janeiro Jorge Zahar 2003 BUBER Martin Do diálogo e do dialógico Tradução de Marta E de S Queiroz e Regina Weinberg São Paulo Perspectiva 2007 Sobre comunidadeSão Paulo Editora Perspectiva 1987 Eu e Tu Trad do alemão e introdução e notas por Newton Aquiles Von Zuben 6ª edição São Paulo Ed Centauro 2003 BURKE Cormac Personalismo e individualismo Roma studi cattolici n 396 II 1994 Campanário São Paulo Ed Loyola 1996 CAMUS Albert O estrangeiro Tradução de A Quadros Lisboa Ed Livros do Brasil sd COSTA José Silveira Max Scheler o personalismo ético São Paulo Ed Moderna 1996 DÍAZ Carlos Hernández Mi encuentro con el Personalismo comunitarioEd Mounier Madrid 2006 DOMENACH JeanMarie et all Presença de Mounier Tradução de Maria Lucia Tominaga São Paulo Duas Cidades 1969 198 DUMONT Louis O individualismo uma perspectiva antropológica da sociedade moderna Rio de Janeiro Rocco 1993 FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda Novo Aurélio Século XXI o dicionário da língua portuguesa 3 ed rev e amp Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 FREIRE Paulo Educação como prática da liberdade São Paulo Paz e Terra 2007 Pedagogia da esperança São Paulo Paz e Terra 1994 GADOTTI Moacir Um legado de esperança São Paulo Cortez 2001 GIL Antonio Carlos Como elaborar projetos de pesquisa 4 ed São Paulo Ed Atlas 2002 Métodos e técnicas de pesquisa social 5 ed São Paulo Ed Atlas 1999 HELLER Agnes O cotidiano e a história 4 ed Tradução de Carlos Nelson Coutinho Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 HUSMAN Denis VERGEZ André História dos filósofos São Paulo Paz e Terra 1982 JARDIM George Ardilles da Silva O individualismo na cultura moderna Revista de Ciências Sociais Rio de Janeiro n 7 2005 LANDSBERG Paul Louis O sentido da ação Tradução de Maria Helena Kuhner Rio de Janeiro Paz e Terra 1968 Problemas del personalismoTrad Carlos Díaz Madrid Salamanca 2006 LOREZON Alino Atualidade do pensamento de Mounier 2 ed rev e amp Rio Grande do Sul Ed UNIJUI 1996 LUROL Gerard O Personalismo In Dicionário de ética e Filosofia Moral Vol I Org Monique SperberCanto RS UNISINOS 2003 MARCEL Gabriel Os homens contra o homem Portugal Tipografia Modesta sd Ser y Tener 2ª edición revisada Trad Ana Maria Sánchez Madrid Caparrós Editores 2003 MARITAIN Jacques O humanismo integral Tradução de Afrânio Coutinho 4 ed São Paulo Dominus 1962 MARTINS Joel e FARINHA Fernanda S Temas fundamentais de fenomenologia São Paulo Ed Moraes 1984 MENDONÇA KML Buber e adorno Deus e o Diabo nos pequenos detalhes Caminhos Sociológicos na Amazônia Belém Universitária 2002 A Salvação pelo Espetáculo o mito político do herói no Brasil Novo Rio de Janeiro EdTopbooks2002 199 Apontamentos sobre ética imaginário e política p04BelémPa 2008 Entre a Dor e a Esperança Educação para o Diálogo em Martin Buber Texto Mimeo 2008 Por Novas Relações na Esfera Pública Ética e NãoViolência In Daniel Chaves de BritoWilson Jose Barp Org Reflexões Sobre Políticas de Segurança Pública 1 Ed BelemPará Editora Universitaria Ufpa 2005 MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Tradução de Frei Marcelo L Simões Rio de Janeiro Paz e Terra 1968 MOUNIER Emmanuel A esperança dos desesperados MalrauxCamusSartre Bernanos Tradução de Naumi Vasconcelos Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 El compromisso de la accion Selección traducción y notas de Julián Blas de la Rosa y Juan Luis Pintos Madrid Fundacion Emmanuel Mounier 2007 Introdução aos existencialismos Tradução de João Bernard da Costa São Paulo Livraria Duas Cidades 1963 Manifesto ao serviço do personalismo Tradução de Antonio Ramos Lisboa Morais 1967 O compromisso da fé Tradução de Frei Eliseu Lopes São Paulo Duas Cidades 1971 O personalismo Lisboa Martins Fontes Lisboa 1964 Quando a cristandade morre Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Mounier em Esprit Colección Esprit Madrid Caparrós editores SL 1997 NETTO José Paulo Ditadura e Serviço Social Análise do Serviço Social no Brasil Pós 64 São Paulo Cortez Editora 1990 NOGARE Pedro Dalle Humanismos e AntiHumnanismos Introdução à Antropologia Filosófica 9ª Edição revista e ampliada Rio de Janeiro Editora Vozes 1985 NUNES Benedito Filosofia Contemporânea São Paulo Editora Edusp 1967 PINI Giorgi Mussolini Capelli Bolonha Editor XII Edição 1962 RICOEUR Paul A região dos filósofos Tradução de Marcelo Perine e Nicolas Nyimi Campanário São Paulo Ed Loyola 1996 História e verdade Tradução de FA Ribeiro Rio de Janeiro Companhia Editora Forense 1968 200 SANTO TOMAS DE AQUINO Coleção Os Pensadores Trad de Luiz João Baraúna São Paulo Abril Cultural 1973 SARTRE Jean Paul O Existencialismo é um Humanismo Trad Vergílio Ferreira 4ª edição São Paulo Livraria Martins Fontes 1970 SEN Amartya Desenvolvimento como liberdade São Paulo Companhia das letras 2000 SCHELER Max O Personalismo Ético São Paulo Trad José Silveira da Costa São Paulo 1996 SEVERINO Antonio Joaquim Pessoa e existência iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier São Paulo Cortez Editora 1983 TORRES Carlos Alberto Estudos freireanos Buenos Aires Quirquincho 1995 VELHO Gilberto Individualismo e cultura notas para uma antropologia contemporânea 7 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 2004 1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ Antonio Glauton Varela Rocha AS NOÇÕES DE PESSOA E VIDA PESSOAL EM EMMANUEL MOUNIER Fundamentos de sua proposta de sociabilidade e de sua crítica ao processo de despersonalização FortalezaCe 2011 2 Antonio Glauton Varela Rocha AS NOÇÕES DE PESSOA E VIDA PESSOAL EM EMMANUEL MOUNIER Fundamentos de sua proposta de sociabilidade e de sua crítica ao processo de despersonalização Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Filosofia Orientador Manfredo Araújo de Oliveira FortalezaCe 2011 3 Antonio Glauton Varela Rocha AS NOÇÕES DE PESSOA E VIDA PESSOAL EM EMMANUEL MOUNIER Fundamentos de sua proposta de sociabilidade e de sua crítica ao processo de despersonalização Dissertação apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Filosofia Orientador Manfredo Araújo de Oliveira Aprovado em Prof Dr Manfredo Araújo de Oliveira UFC Orientador Prof Dr Evanildo Costeski UFC Examinador Profa Dra Ursula Anne Matthias FCRS Examinadora FortalezaCe 2011 4 5 Ao Pe Zeferino Kapanda in memoriam Seu estilo provocador em sala de aula me estimulava a melhorar sempre minha argumentação para poder debater com ele Antes que eu percebesse já estava imbuído do espírito filosófico 6 AGRADECIMENTOS Especialmente a Deus por mais esta conquista em meus estudos e por tudo que me concedeu recentemente em especial minha primeira filha a Maria Clara A minha amada esposa Danielle pela paciência e pelo esforço a mais nos cuidados de nossa filha para que eu pudesse ter mais tempo para escrever Aos meus pais a quem devo o que sou e com quem sempre pude contar Sempre serão nomes fundamentais a lembrar em todas as minhas conquistas À Capes pelo imprescindível apoio à minha pesquisa Ao grande amigo Deyvid Kardec pela ajuda fundamental nos últimos detalhes da redação e da confecção das versões da dissertação Ao professor Odílio Foi o primeiro a confiar e ajudar em minha pesquisa Os diálogos feitos muitas vezes marcado pela discordância de opiniões em sala de aula ou nas correspondências durante a bolsa de pesquisa e a monografia foram de muito estímulo para a minha pesquisa Ao professor Evanildo Costeski pela disponibilidade em participar de minha banca examinadora e por toda a ajuda neste processo final da defesa À professora Ursula Mathias pela disponibilidade em participar de minha banca examinadora e pelo estímulo que me deu quando ainda dava os primeiros passos no caminho da filosofia Em especial ao professor Manfredo Oliveira pelo cuidado com que revisou meus textos e pelas sugestões especialmente nas temáticas em que meu domínio de conteúdo é mais limitado Sua grande bagagem de conhecimento aliada a sua disponibilidade para debater francamente com um mero iniciante na pesquisa deramme a segurança de estar no caminho certo em minha escrita 7 É a pessoa que se faz livre depois de ter escolhido ser livre Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade Emmanuel Mounier 8 RESUMO O pensamento de Emmanuel Mounier se desenvolveu como uma síntese entre as exigências metafísicas da constituição de uma noção de pessoa e as exigências existências próprias da imprevisibilidade e do paradoxo que comumente marca a vida pessoal Estas preocupações de ordem conceitual a partir das quais Mounier irá desenvolver sua antropologia somamse às preocupações de ordem material isto é Mounier buscará sempre pensar a pessoa inserida em seu contexto social e perceber como as influências deste âmbito interferem no desenvolvimento da vida pessoal Portanto podemos dizer que o pensamento de Mounier é melhor compreendido quando buscamos perceber as interligações entre as preocupações de ordem antropológica e de ordem política presentes em sua filosofia Para Mounier a pessoa não é definível uma vez que não é um objeto No entanto possui dimensões pessoais que são como pistas para adentrarmos o universo pessoal São estas dimensões a encarnação a comunicação e a vocação que se tornam a referência para o existir propriamente humano e este existir que Mounier chama de vida pessoal se torna a referência para compreensão da comunidade personalista Para Mounier a noção de pessoa só se completa com a noção de comunidade na realidade são noções complementares formadoras de um binômio que se opõe tanto ao individualismo e ao coletivismo Para Mounier a comunidade personalista é um ideal um modelo que não possui realização alcançável neste mundo mas deve ser o modelo para as nossas ações em busca de uma sociabilidade compatível com a dignidade humana É justamente tendo em vista o modelo de comunidade personalista e a capacidade que cada organização política possui de viabilizar a vida pessoal que Mounier distinguirá sistemas políticos ou econômicos em personalizantes ou despersonalizantes Daí emerge sua crítica aos diversos totalitarismos e ao capitalismo assim como sua proposta de sociabilidade compatível com a dignidade pessoal Palavraschaves Pessoa comunidade vida pessoal personalização despersonalização 9 ABSTRACT The thought of Emmanuel Mounier had developed as a synthesis between the metaphysical exigency of the constitution of the concept of person and the existencial requirements of its own unpredictability and paradox which generally mark the personal life These concerns of conceptual order from which Mounier will develop his anthropology add up to the concerns of material order that is Mounier will always try to think the person placed into his social context and realize how the influences of this sphere interfere on personal lifes development Therefore we can say the thought of Mounier is better understood when we try to perceive the interconnections between the anthropological and political concerns presented in his philosophy To Mounier the person cant be defined for it is not an object However it possesses personal dimensions that are like traces to penetrate into the personal universe These are the dimensions incarnation communication and vocation which become reference to the properly human exist and such exist that Mounier calls personal life becomes the reference to the personalist community understanding To Mounier the notion of person is only completed with the notion of community in fact they are complemented ideas former of a binomial opposed both to individualism and coletivism To Mounier the personalist community its an ideal a model that do not perform an achievable realization in this world but must be anyway a model to our actions in search for a sociability compatible with human dignity It is precisely in view of the personalist community model and the capacity that each political organization has to make the personal life that Mounier shall distinguish the political and economic systems in personalizers and depersonalizers Hence emerges his critics to the various totalitarianism and the capitalism as well as his proposal of a sociability compatible with the personal dignity Key words Person community personal life personalization depersonalization 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO I Contexto histórico e influências filosóficas 11 Contexto histórico 12 Influências de correntes de pensamento 121 O Espiritualismo Cristão e o neotomismo de Maritain 1211 Jacques Chevalier 1212 Jacques Maritain 1213 Charles Péguy 122 O Existencialismo e o Marxismo 123 O Anarquismo 124 O Cristianismo 1241 A gênese da noção de pessoa e sua relação com o personalismo mounieriano CAPÍTULO II A antropologia mounieriana e sua noção de espírito 21 Mounier era espiritualista 22 A categoria de espírito em Mounier 23 Dimensões da pessoa 231 A Encarnação 232 A Comunicação 233 A Vocação 24 A Vida Pessoal 241 Vida Pessoal e Vocação 242 Vida Pessoal e Comunicação 243 Vida Pessoal e Encarnação 244 Vida pessoal e Espírito 245 Considerações finais sobre a vida pessoal CAPÍTULO III Crítica de Mounier às estruturas sufocantes da vida pessoal 31 As Civilizações fascistas e nacionalsocialistas 32 O Marxismo 33 O Capitalismo 331 Crítica do ponto de vista ético 332 Crítica do ponto de vista estrutural 3321 O individualismo CAPÍTULO IV Proposta de Mounier para uma sociabilidade compatível com a vida pessoal 41 A revolução em seu aspecto moralespiritual 411 O papel da educação no processo de personalização 42 A revolução em seu aspecto técnicoestrutural 421 Os Graus da Comunidade 4211 A Massa 4212 Sociedade emnósoutros 4213 Sociedades Vitais 4214 Sociedades Racionais 4215 A Comunidade Personalista 422 Princípios de uma filosofia política personalista CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA p 10 p 15 p 15 p 19 p 19 p 20 p 20 p 21 p 22 p 26 p 27 p 28 p 34 p 35 p 38 p 42 p 43 p 46 p 53 p 54 p 57 p 59 p 63 p 66 p 70 p 72 p 73 p 76 p 85 p 87 p 90 p 93 p 97 p 97 p 102 p 107 p 108 p 108 p 109 p 110 p 111 p 113 p 115 p 123 p 127 11 INTRODUÇÃO O modo como Emmanuel pensou a noção de pessoa nos permite dizer que sua antropologia considera questão do homem singular e a questão das relações que este tece em seu contexto social como igualmente fundamentais Ou seja a pessoa é considerada tanto a partir do ângulo da singularidade como do ângulo das relações sociais conseqüência de sua inserção num meio comunitário Portanto seria um reducionismo considerar que pensamento de Emmanuel Mounier é basicamente uma filosofia do desenvolvimento individual do homem como pessoa a efetivação da vida pessoal no âmbito singular A insistência de Mounier sobre a necessidade de intervenção nas estruturas sociais nos mostra que seu pensamento nos leva a transpor as fronteiras da pessoa em sua singularidade Por outro lado o grande destaque dado à noções como vida interior e decisão pessoal no pensamento de Mounier nos permite perceber que seria também um equívoco reduzir sua filosofia a uma proposta política de reforma social mudança das estruturas sociais Como dito estes dois aspectos são igualmente fundamentais na obra de Mounier A partir desta característica do seu pensamento podemos compreender o plano geral desta pesquisa como uma explicitação das noções de pessoa e vida pessoal no pensamento de Mounier e como estas noções influenciam em sua proposta no campo da filosofia política A partir do que Mounier entende pela noção de pessoa e de uma vida compatível com as dimensões pessoais explicitamos a sua visão política em sua crítica aos sistemas despersonalizantes e em sua proposta propriamente dita de sociabilidade compatível com a dignidade humana Apresento as noções de pessoa e de vida pessoal como o primeiro momento ou a base do plano geral acima citado Tratase de uma questão didática para mostrar de modo mais ordenado o desenvolvimento do pensamento de Mounier no entanto na ordem real dos acontecimentos podemos dizer que o contato com a realidade concreta da sociedade foi o primeiro momento da formação do pensamento de Mounier Foi no contato com a miséria que em Mounier surge a inquietação que gerou sua proposta filosófica O pensamento de Mounier representa um olhar especialmente atento à dignidade da pessoa justamente num cenário políticoeconômico no qual a pessoa se encontra ainda mais esquecida Foi a preocupação com esse esquecimento talvez mais visível na época de Mounier embora não necessariamente mais presente do que hoje que o fez decidirse por um caminho sem volta não apenas conhecer a pessoa mas lutar por ela Sua busca incessante por criar condições de discussão e de ação em prol do reconhecimento concreto da dignidade pessoal o afastou da carreira acadêmica mas não só isso o afastou da visão de mundo que era própria do ambiente 12 acadêmico francês de sua época Essa decisão gerou uma filosofia mais engajada e até certo ponto um pouco descompromissada com os rigores exigidos pelos filósofos de profissão Por isso não podemos esperar em Mounier uma filosofia acabada muito delimitada Seu pensamento estava sempre em formação e nem sempre estava isento de algumas imprecisões mas isso não o impediu de lançarse no desafio de encarar uma crise de civilização de frente pois para ele o engajamento não precisava esperar as condições ideais nos âmbitos teórico e prático para se efetivar Isso não quer dizer que Mounier não tinha uma base teórica para sua ação Ao afirmar que não combatemos o mito conservador da segurança para cairmos no mito cego da aventura1 expressava sua busca pelo equilíbrio entre a teoria e a ação Se podemos dizer que especialmente nos inícios de seu engajamento a prática se mostrava mais urgente nunca o foi de modo a suprimir a necessidade de reflexão Esprit foi exemplo desse equilíbrio Alguns anos antes de sua fundação e alguns depois foram dedicados à solidificação do compromisso teórico da revista pois somente esse alicerce poderia permitir uma real capacidade de influência no meio social De certo que o início não foi fácil mas com o tempo a revista alargou sua influência não só na França mas em toda a Europa e em países de outros continentes como Canadá Argentina México entre outros Esprit reuniu pensadores de diversas tradições mas unidos por um tema comum a pessoa Esse tema foi sem dúvida o lema da vida de Mounier mas vinha sempre fazendo referência a outro tema a comunidade A antropologia de Mounier assunto do segundo capítulo de nossa dissertação não parte da noção de indivíduo mas da pessoa Certamente são bases bem diferentes 2 na primeira base a separação é elemento chave de tal antropologia na 1 MOUNIER E O Personalismo p 176 2 Na obra Manifesto ao Serviço do Personalismo Mounier faz uma diferenciação entre pessoa e indivíduo Tal diferenciação é presente em Charles Péguy em J Maritain em N Berdiaeff e em outros autores do círculo de debates de Mounier Tratase de uma tese compartilhada nestes grupos e que servia como embasamento teórico da crítica aos totalitarismos e ao capitalismo pois para eles em ambos o homem não era compreendido a partir do aspecto pessoal Tratase de uma distinção comumente presente entre os vários comentadores de Mounier mas para mim esta distinção se insere na obra de Mounier não como um desenvolvimento de sua antropologia mas como uma influência de seu posicionamento político É uma distinção que pouco se concilia com a própria visão da pessoa em Mounier pois o modo como em tal distinção a associação da relação indivíduopessoa com a relação matériaespírito se desenvolve acaba apresentando o material e o espiritual quase como contrapostos um aspecto sendo negativo e o outro sendo positivo Nada mais contrário à antropologia de Mounier em que o aspecto corpóreo da pessoa é constantemente valorizado Na minha leitura Mounier não se deu conta de todas as implicações do modo como esta diferenciação era trabalhada no círculo de debates a que ele pertencia Essa diferenciação estará presente mesmo nas últimas obras de Mounier mas uma comparação com as primeiras obras mostra como o ranço de dualismo que ela possui é sensivelmente fragilizado e é justamente na parte final de seu desenvolvimento filosófico que a preocupação com a delimitação de uma antropologia personalista se torna mais latente talvez se essa preocupação fosse presente com a mesma intensidade desde o início de sua obra Mounier tivesse percebido mais claramente o dualismo presente em tal diferenciação A leitura de modo mais amplo da obra de Mounier me permite a formação da opinião de que esse aspecto específico da tematização da pessoa em Mounier não faz parte do desenvolvimento natural da antropologia mounieriana sendo muito mais um apêndice inserido equivocadamente por motivações políticas Por esse motivo não tratarei em meu 13 segunda base a relação ganha destaque3 Para Mounier o nome Personalismo Comunitário com o qual se distinguia o tipo de personalismo ao qual ele pertencia chegava a ser um pleonasmo pois para ele ao se pensar a pessoa já temos que pensar a noção da relação e do lugar dessa pessoa numa comunidade No entanto Mounier não pensava este binômio pessoa comunidade como uma relação harmoniosa e baseada na linda boa vontade de cada um Mounier faz questão de nos lembrar de que mais são os dias consagrados à guerra do que os consagrados à paz Isso nos remete à dura realidade de que são muitos os obstáculos que se interpõem à formação de comunidades sólidas e fecundas Se a comunicação pode ser considerada como uma das dimensões pessoais4 a encarnação também pode e isso nos traz muitas consequências Enquanto ser encarnado o homem é também ser histórico ser de instintos e de vontades que nem sempre se harmonizam com as perspectivas do seu vizinho Este cenário das relações concretas nem sempre é tão lógico e amigável e com certeza traz muitos obstáculos à comunicação Mas nem por isso a encarnação deve ser encarada como uma condição maldita da pessoa um castigo para o espírito muito pelo contrário Mounier diz que não é pela negação da materialidade que a pessoa deve buscar a formação da comunidade Tal condição traz obstáculos mas também apoio à pessoa É antes de tudo o corpo que viabiliza a ascensão do espírito segundo Mounier Por isso para Mounier é imprescindível pensar a sociabilidade que cative a pessoa não apenas no aspecto racional mas em sua paixão é por isso que quando se fala da educação das crianças não se pede uma educação simplesmente para a razão mas também que valorize a agressividade natural da pessoa que se identifica muito mais com uma força mobilizadora do que com a violência Para Mounier a pessoa só se realiza quando se efetiva em suas dimensões pessoais e essa situação nos remete à terceira dimensão de pessoa segundo Mounier a vocação Para ele há na pessoa uma tensão que a impulsiona a sempre ser mais Essa tensão dependendo de nossas escolhas pessoais pode ser polarizada de modo positivo ou negativo neste último caso um exemplo é o egoísmo em que o ser mais poder ser confundido com o ter mais no primeiro caso a pessoa se volta para um processo cada vez mais amplo de personalização A vocação nos remete à condição humana de ser sempre um ser voltado para além de si para o trabalho de tal diferenciação no entanto é importante dizer que essa diferenciação é legítima o problema é como ela era tratada pela corrente de crítica social ao qual Mounier se vinculou O que é importante destacar dessa diferenciação é que uma antropologia que tem por base a pessoa e não o indivíduo está muito mais aberta ao aspecto comunitário da vida humana 3 No segundo capítulo tratarseá o tema da comunicação como uma das dimensões da pessoa Nesse momento poderemos ver com mais detalhes porque para Mounier quando falamos da pessoa devemos associála à noção de relação 4 MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 46 14 ser mais A vocação se realiza quanto mais a pessoa se efetiva como tal Veremos ainda no segundo capítulo que para Mounier existe uma vida mais propriamente humana e que o critério para identificála é a referência às dimensões pessoais é o que Mounier chamava de vida pessoal Por sua vez a vida pessoal será o critério utilizado por ele para classificar a estrutura políticoeconômica de uma determinada sociedade como personalizante ou despersonalizante No terceiro capítulo veremos modelos de sociabilidade que segundo Mounier não viabilizam a vida pessoal Essa questão nos remete ao fato de que a vida pessoal não depende exclusivamente das decisões da pessoa pois para ele a estrutura social também exerce um papel importante no processo de personalização Segundo o filósofo não se trata apenas de perguntar sobre os valores que uma pessoa preserva mas também por exemplo se antes disso essa mesma pessoa está passando pela angústia de não ter o pão cotidiano5 Para Mounier qualquer forma de Estado deve atentar para as necessidades elementares da pessoa do contrário não tem razão de existir e além disso deve permitir às pessoas a possibilidade de buscarem a satisfação de necessidades mais elevadas Nesse contexto a crítica de Mounier se destina tanto aos sistemas totalitários como à democracia burguesa aliada ao capitalismo No primeiro caso porque acabam menosprezando o valor do homem singular nesse ponto Mounier irá criticar o Fascismo o Nazismo e o Comunismo ressaltese que para Mounier este último está num patamar menos negativo que os dois primeiros no segundo caso porque enfraquece a dimensão comunitária da pessoa devido à sua ênfase no individualismo e por causa de uma concessão de direitos no plano político que se anula quando se chega ao plano econômico6 Para Mounier esse quadro só pode ser mudado a partir de uma mudança radical da sociedade tanto em seu nível estrutural como no âmbito dos valores foi o que ele chamou de revolução personalista e comunitária No quarto e último capítulo deste texto veremos um pouco da proposta de Mounier sobre uma revolução social nesses dois âmbitos Veremos de modo mais detalhado a visão de Mounier sobre o tema da comunidade e a partir de um modelo ideal na prática inalcançável explicitaremos o modelo de sociabilidade que segundo Mounier aproximase mais de uma organização social à medida da pessoa É uma proposta que deve muito ao Marxismo e ao Anarquismo especialmente no que diz respeito ao apreço pelo modelo federalista Esse modelo que é marcado pelo pluralismo respeita muito 5 Não se quer dizer que quem passa fome está dispensado de respeitar todo e qualquer valor o que se está querendo dizer é que se a pessoa não sabe nem se ao fim do dia terá alimento para si ou para sua família quando o tem será muito mais difícil despertar para a importância dos valores 6 Mounier está se referindo à prática desses regimes A teoria democrática liberal prevê igualdade no âmbito político e econômico certamente mas a prática mostra como essa teoria é ilusória 15 mais o valor das comunidades intermediárias da sociedade do que o modelo de um Estado soberano e centralizado É um modelo que se adequa muito mais à visão mounieriana da pessoa que seria naturalmente inserida em comunidades naturais e que com o passar do tempo realizase e se desenvolve na pertença a outras comunidades livremente escolhidas No entanto a influência anarquista e marxista não o leva a adotar um antiestatismo o Estado para ele é um instrumento necessário deve ser um Estado pluralista a serviço da pessoa O pensamento de Mounier nasce de sua profunda percepção da injustiça que é a miséria este batismo de fogo que inquietou seu coração e representava para ele a mais profunda denúncia da hipocrisia de uma organização social que se dizia igualitária Mounier elaborou também uma denúncia filosófica uma vez que nem todos consideravam a existência da miséria como suficiente para perceber a fragilidade de tal sistema A profunda desordem da sociedade era sustentada e legitimada pelo próprio sistema social o que Mounier chamou de desordem ou injustiça estabelecida Esse quadro foi o fruto amargo da marca deixada pelo espírito burguês tanto no âmbito das pessoas como no das instituições As próximas páginas se destinam a explicitar o pensamento de Mounier como uma volta ao valor inviolável da pessoa e uma reflexão sobre a vida pessoal a vida em que a pessoa se realiza em suas dimensões veremos como sua concepção de vida pessoal irá marcar suas críticas no âmbito político determinará os limites da ação estatal e será a referência para uma proposta de sociabilidade que respeite o desenvolvimento da pessoa em suas dimensões 16 CAPÍTULO I Contexto histórico e influências filosóficas A tese de que as influências históricas e teóricas são importantes para a compreensão do pensamento de qualquer autor é opinião comum para a maioria dos pesquisadores mas no caso de Emmanuel Mounier essa tese parece se aplicar com ainda mais intensidade como afirma Fernando Vela Lopez se nenhuma criação intelectual é alheia às vicissitudes pessoais de seu autor mais fortemente se adverte este nexo em quem fez do acontecimento seu mestre interior7 Neste capítulo introdutório buscaremos situar a formação do pensamento de Mounier a partir de sua reação e resposta aos conturbados anos do início do século XX especialmente os anos 30 e delimitar as influências de alguns autores e através destes de algumas correntes de pensamento que marcaram profundamente a sua proposta filosófica diante da crise de seu tempo 11 Contexto histórico Nascido em 1905 na cidade de Grenoble até a sua morte prematura em 1950 Mounier atravessou um feixe da história extremamente conturbado Se até 1914 a promessa de progresso e conforto que seriam advindos das ciências ainda produzia empolgação em muitos o ano de 1918 marca o golpe final à ilusão lançada pelo Positivismo Duas Guerras Mundiais e o início da Guerra fria a ascensão do Nazismo e do Fascismo a Revolução Russa e o surgimento do Comunismo a crise de 29 com o crash de Wall Street foram fatos que mexeram profundamente com a sociedade de sua época Tais fatos em cada caso em maior ou menor grau eram reflexos da desorientação de uma sociedade profundamente mergulhada em uma crise de estruturas e segundo Mounier também de espírito Mas por hora antes de expor o diagnóstico de Mounier sobre a crise é mais importante falar da postura que ele teve diante dela É importante destacar que ele não se engajou sozinho no diagnóstico e no combate aos efeitos da crise de seu tempo ele faz parte de um grupo de jovens pensadores que depois seria a base para a criação da revista e do movimento Esprit Esse grupo depois chamado por Loubet de Bayle de os não conformistas dos anos 308 posicionavase diante da crise tendo em vista uma dupla necessidade reflexão e ação Atualmente não pelos mesmos motivos de outros tempos muitos autores negam que seja 7 LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 23 8 Cf CUGINI Paolo Emmanuel Mounier e a experiência da Revista Esprit p 4 17 papel da filosofia dar soluções para as crises e problemas do nosso tempo Embora essa posição deva ser respeitada na época de Mounier os que olhavam para o mundo achavam igualmente necessário sujar as mãos ou seja a reflexão deveria ser o primeiro passo fundamento para o surgimento de propostas mesmo que não fechadas e de ações Em seu tempo o diagnóstico de que as estruturas políticas e econômicas já tinham esgotado as suas possibilidades não era mais suficiente os jovens eram sedentos de algo mais de mudança de propostas mais do que de diagnósticos Por isso é por essa perspectiva que Mounier deve ser entendido mesmo que não se concorde com a busca de resoluções Mounier não pode ser censurado por buscar respostas Sem ter em vista esses elementos uma crítica a essa busca por soluções se tornaria anacrônica e injusta A década de 30 fora sem dúvida um período conturbado um período de grande contestação da crise diagnosticada um momento crucial para aqueles que queriam fazer algo diante do quadro sociopolítico nada animador que foi o início do século XX Nessa década foi muito comum a fragilidade das jovens democracias ou mesmo de nações mais antigas que cederam facilmente lugar a regimes totalitários que assolaram a Europa na primeira metade do século XX Assim nos casos mais conhecidos vemos a ascensão de Salazar em Portugal Franco na Espanha Hitler na Alemanha Stalin na Rússia mas também foi o caso da Polônia do Marechal Pilsodsky da Turquia de Mustafá Kemal da Grécia do General Metaxas da Iugoslávia do Rei Alessandro I da Ditadura Comunista de Bela Kun na Hungria da Áustria do Monsenhor Seipel e do Chanceler Dollfus9 Pe Paolo Cugini afirma que na alvorada dos anos 30 nasce uma maneira de fazer cultura mais atenta às problemáticas sociais10 É nesse contexto que começam a surgir vários movimentos como Jeune Droite e Ordre Nouveau Numa carta a Jéromine Martinaggi Mounier diz Durante as férias de natal de 1929 se cristaliza em mim uma convicção que um ciclo de criação francesa estava fechando que tinham coisas pra pensar que não se podiam escrever em nenhum outro lugar e que a nós outros pianistas de 25 anos faltava um piano11 A revista Esprit que teve sua primeira publicação em primeiro de outubro de 1932 foi o piano que antes faltava O objetivo era fazer de Esprit um centro de ideias que se espalhassem depois para fora das fronteiras de Paris Essa intenção se materializou na formação de vários grupos de estudo divididos por temas em que em cada qual estudiosos e especialistas colaborariam Esses 9 CUGINI Paolo Emmanuel Mounier e a experiência da Revista Esprit p 2 10 Ibidem p 4 11 MOUNIER Emmanuel Recueils posthumes correspondance Ouvres IV p 476477 18 grupos deveriam estar em profunda colaboração Com o tempo esse modelo deu origem à formação dos grupos Esprit funcionavam paralelo ao trabalho da revista que conseguiram rápida difusão em toda a França e também em outros países Bélgica Canadá Egito Espanha Inglaterra Holanda Itália Suíça e Argentina Mas a formação da revista não foi simples À medida que as discussões iam se aprofundando e mais e mais colaboradores atendiam ao convite de Mounier foise delimitando a formação de três posições distintas no grupo uma de Deléage aquela de Mounier e aquela de Maritain12 O primeiro era da opinião de que se devia formar uma plataforma comum de temas com mútuo acordo para que isso pudesse favorecer o máximo entendimento entre os colaboradores Mounier não concordava com essa proposta pois tratavase de uma modalidade de ação atenta a acolher as matizes comuns mais do que buscar choques e soluções novas13 o que segundo Mounier não seria muito eficiente para buscar uma alternativa ao sistema vigente Essa sua posição está clara numa carta destinada ao padre Plaquevent em 1932 Temos radicalmente rejeitado aquilo que chamam o método do menor denominador comum Este método tem somente a aparência de abertura enquanto limita e promove tudo através de fronteiras e determinações aonde ninguém reconhece o próprio campo14 Jacques Maritain por outro lado achava a posição de Mounier um tanto perigosa por entender que tal atitude levaria Esprit a uma neutralidade que trairia sua inspiração original Para ele era preciso que Mounier optasse por conduzir a revista por um viés católico uma vez que eram católicos grande parte dos seus colaboradores15 Maritain parece não ter compreendido que para Mounier o abandono da neutralidade não precisava ser sinalizado dando uma confessionalidade à revista Mounier esperava e exigia que os colaboradores de Esprit fossem capazes de levar em frente com empenho e coragem um confronto fecundo entre eles próprios era esse confronto que permitiria a colaboração de diversas propostas num objetivo comum sem no entanto a necessidade de se fragilizar a identidade de cada um Por fim as posições de Deléage Maritain e Mounier acabaram por não se 12 CUGINI Paolo Emmanuel Mounier e a experiência da Revista Esprit p 7 13 Ibidem p 7 14 Mounier in Ibidem p 7 15 Cf Ibidem p 8 19 conciliar sendo a de Mounier a que prevaleceu e a que formou a orientação da revista em nascimento16 A circular que fazia a apresentação da revista em 08 de julho de 1931 já esboçava a intenção do grupo Buscar as estruturas de uma cidade à medida do homem enriquecida na medida da justiça e das exigências presentes é uma das nossas próximas tarefas17 A revista representou para muitos uma terceira opção uma vez que o grupo demonstrava a não aceitação tanto do capitalismo como do Marxismo Esprit se empenhou por lançar à sociedade de seu tempo a necessidade da redescoberta da pessoa humana e a redescoberta da comunidade como um valor essencial18 Esse esforço teve de se confrontar não apenas contra os adversários teóricos e contra a indiferença de grande parte da sociedade mas contra os poderes políticos como foi o caso da perseguição à revista durante o Regime de Vichy19 que gerou o fechamento da revista em 1941 reaberta em 1944 e foi responsável pelas prisões de Mounier acusado de resistência ao regime Esse contexto de crise de insatisfação das juventudes e principalmente de busca por uma saída de tal situação marcará profundamente as escolhas de Mounier quanto às propostas teóricas que ele aos poucos iria conhecer A sensação de que a crise não era apenas de um problema parcial mas envolvia questões muito mais amplas levouo à atitude de escuta e reflexão crítica dos vários posicionamentos com os quais se deparou Agora passaremos a nos deter um pouco mais sobre as correntes filosóficas que de um modo ou de outro contribuíram para a formação da filosofia personalista de Mounier 16 Os problemas não cessaram mesmo depois da fundação da revista Deléage e Izard à época redator chefe de Esprit entram em litígio com Mounier por serem partidários de um movimento que partisse imediatamente para uma ação política Mounier representava os que defendiam uma maturação mais lenta das reflexões para que as ações futuras fossem mais frutíferas e decidem formar o movimento Troisiéme Force O movimento pretendia fazer primeiro a revolução material e coletivista junto dos comunistas para depois lançar numa revolução personalista Mas como previa Mounier para quem um movimento político que não partisse de bases doutrinais ou ideológicas bem fundamentadas será muito frágil o grupo não durou muito tempo desaparece um ano depois absorvido pelo grupo front Social de Begery 17 CUGINI Paolo Emmanuel Mounier e a experiência da Revista Esprit p 6 18 VILAÇA Antônio Carlos Mounier a valorização da pessoa Revista Filosófica Brasileira p 136 19 O Regime de Vichy foi o Estado francês dos anos 19401944 o qual era um governo fantoche da influência Nazista opondose às Forças Livres Francesas baseadas inicialmente em Londres e depois em Argel Foi estabelecido após a França ter se rendido à Alemanha em 1940 na verdade o norte da França na Segunda Guerra Mundial Recebeu o seu nome da capital do governo a cidade de Vichy a sudeste de Paris 20 12 Influências de correntes de pensamento Uma das principais características de Mounier era sua abertura ao diálogo e à escuta das propostas dos mais diversos interlocutores Para ele não importava quem falava mas o que esse alguém falava pois eram os argumentos antes das inclinações intelectuais que importavam a Mounier em qualquer debate Essa postura levou muitos opositores ou leitores apressados a enxergar nele um ecletismo superficial Ledo engano Mounier não gostava de superficialidades aprendeu com Jacques Chevalier a ler as obras aos poucos e a meditar profundamente antes de dar continuidade à leitura20 O resultado foi uma postura que contrastava com as condenações ou exaltações apressadas muito comuns em sua época Para ele não fazia sentido a rejeição antecipada de uma corrente de pensamento ou de um autor devido a uma rejeição da massa ou à existência de alguns elementos problemáticos em suas propostas Por isso ele soube como poucos reconhecer os méritos inclusive de pensadores dos quais foi duro crítico destes Nietzsche e Marx são os maiores exemplos Mas Mounier não apenas reunia propostas e as repetia antes devemos falar de uma assimilação criativa Em seguida veremos em maiores detalhes algumas destas correntes e destes autores os quais considero fundamentais na formação do pensamento de Mounier 121 O Espiritualismo Cristão e o neotomismo de Maritain Uma forte influência na formação do pensamento de Mounier foi o Espiritualismo seja ele de inspiração cristã ou não Também o Neotomismo de Maritain trouxe importantes contribuições para o pensamento do filósofo Destacamse nessas correntes autores que não apenas ofereceram um conteúdo teórico a Mounier mas foram as suas primeiras referências no universo filosófico deixando contribuições inegavelmente importantes no processo de formação da sua proposta personalista 20 Cf LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 46 21 1211 Jacques Chevalier A primeira influência filosófica significativa no pensamento de Mounier foi a de Jacques Chevalier com quem inicia seus estudos filosóficos ainda em Grenoble sua cidade natal a partir de 1924 Chevalier tinha um filosofar clássico buscava conciliar Bergson e Descartes se bem que parece que sua aspiração mais profunda seria alcançar um platonismo cristão 21 Esse contato de certo fará amadurecer aos poucos a sua análise da crise da sociedade em sua época e o fará adentrar na perspectiva filosófica aberta por Bergson nos últimos anos A marca dos ensinamentos de Chevalier estará para sempre presente no pensamento de Mounier mas a relação entre os dois não teve a mesma constância As escolhas de Mounier quanto ao seu futuro acadêmico e principalmente quanto à orientação que ele deu para a revista Esprit foram motivos de estremecimento da relação entre mestre e discípulo Uma reaproximação mais efetiva aconteceu bem depois já um pouco antes da morte prematura de Mounier em 1950 1212 Jacques Maritain O segundo passo da formação filosófica de Mounier se deu em Paris em 1928 onde iniciou seu doutorado abandonandoo depois em nome da sua busca por uma filosofia mais engajada com os problemas humanos Lá Mounier fará parte de círculos importantes de discussão e entrará em contato com grandes pensadores Destes Jacques Maritain será um dos principais nomes a deixar sua influência no pensamento de Mounier Como Chevalier Maritain era muito próximo ao pensamento de Bérgson e além disso outro ponto de aproximação com Mounier era o semelhante olhar sobre a crise da civilização burguesa Para além desses pontos iniciais de aproximação podemos destacar que as principais contribuições de Maritain para a formação do pensamento foram três a A orientação sobre uma necessária releitura de Charles Péguy b Animoulhe a empreender a criação da revista Esprit c Reaproximação com o tomismo 22 S Agostinho sempre teve um lugar de maior apreço para Mounier do que S Tomás e consequentemente também o platonismo em relação ao aristotelismo Desagradavalhe o viés 21 LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 46 22 Cf Ibidem p 50 22 muito sistêmico e por demais fechado desse tipo de filosofia 23 veremos à frente que este será um ponto de aproximação de Mounier com o Existencialismo especialmente o tomismo Mas com Maritain Mounier tornouse mais receptivo a algumas categorias da metafísica tradicional muito embora alguns comentadores afirmem que de S Tomás Mounier absorveu mais incisivamente apenas alguns aspectos da sua filosofia social24 Apesar das inegáveis contribuições de Maritain para a formação do pensamento de Mounier havia muitas diferenças entre ambos Maritain se preocupava com a desconfiança de Mounier em relação à sistemização pois via nessa postura o perigo de uma progressiva desintelectualização de Esprit Mais um sentido de prudência do que uma crítica efetiva era a vigilância que matinha sobre o uso do termo revolução em Esprit e sobre o ativismo apressado de alguns grupos próximos à revista Mounier por outro lado tinha uma visão distinta sobre a democracia e a relação entre o Cristianismo e a Práxis política Mounier rechaça abertamente o intento de fazer uma nova cristandade Seu empenho é uma nova civilização concebida em moldes não confessionais com alternativas distintas ao que se vem chamando o humanismo cristão 25 Mas não é apenas uma divergência de visão política o que difere nos dois é principalmente um enfoque filosófico e metodológico bem diverso O método de filosofar de Mounier é muito distinto ao de Maritain Quando Maritain se ocupa dos conceitos de indivíduo e de pessoa começa por definilos ontologicamente para depois extrair as consequências Mounier opera pelo caminho inverso começa observando ao homem em sua condição concreta para lentamente elevarse logo às alturas metafísicas e deduzir regras de conduta O clássico hic et nunc é enriquecido e completado o homem é um euaquiagoraassimentre estes homenscom este passado26 1213 Charles Péguy Já nos estudos com Chevalier Mounier foi apresentado ao pensamento de Charles Péguy mas foi com Maritain que essa aproximação foi mais incentivada e efetivada Esse contato foi decisivo para Mounier Para o filósofo em Péguy se encontra um pensamento livre dos esquemas universitários comprometido com a ação histórica Esse será um tipo de pensamento que 23 Cf LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 50 24 Cf Ibidem p 50 25 Ibidem p 51 26 AZOLA J M ZUMALDE I in Idem Ibidem p 51 23 falará muito à geração de Mounier e foi a partir dessa percepção do pensamento de Péguy que Mounier entenderá necessário romper com a carreira universitária para então dedicarse integralmente à causa da pessoa O impulso para esse rompimento pode ser considerado um primeiro aspecto da influência de Péguy no pensamento de Mounier Se por um lado em Maritain Mounier encontrou o apoio para lançarse no projeto de Esprit em Péguy ele encontra a inspiração sobre a orientação da revista Mounier não queria para o desagrado de Maritain dar um caráter confessional à revista queria tornála um espaço de mútua colaboração entre pensadores de diversas vertentes religiosos ou não sem que isso exigisse uma perda da identidade e da especificidade de cada pensador e foi no exemplo de Péguy que Mounier percebeu que esse objetivo não era um sonho utópico uma vez que ele fundara também uma revista Cahiers de la Quinzaine27 e nela esse tipo de colaboração foi muito fecunda Um terceiro ponto de colaboração de Péguy na formação do pensamento de Mounier foi a necessidade de inserção no real28 Essa questão já é perceptível no primeiro ponto que destacamos como influência de Péguy no pensamento de Mounier mas aqui vemos um aprofundamento pois chegamos à relação entre o espiritual e o material29 questão que para Mounier é fundamental Deixarse atravessar pelo acontecimento lévénement revivêlo pela memória não se contentando com o objetivismo do historiador que o considera à distância eis as recomendações colhidas nos escritos de Péguy às quais Mounier foi particularmente receptivo Tanto no caso de um como de outro a atenção ao que acontece e a disponibilidade que o acontecimento requer remetem a uma injunção central para ambos a necessidade da encarnação O espiritual e o carnal são inseparáveis O espiritual precisa se incorporar se não quer permanecer inoperante ineficaz Em outras palavras pensar e agir não devem ser dissociados30 Chegouse a dizer que quase todos os grandes temas do personalismo mounieriano estão antecipados na obra do autor dos Cahiers de la Quinzaine De fato muito são os pontos 27 Péguy fundou essa revista no intuito de tratar o Socialismo em suas raízes originárias comprometido especialmente com a questão da justiça Para Péguy os grupos socialistas estavam cada vez pensando menos na justiça e se enveredando na busca pelo poder e a revista Cahiers de la Quinzaine representava para ele uma oportunidade de pensar maneiras de evitar que o Socialismo se esgotasse nesse desvio esse esforço para ele era um dever de consciência para com a sociedade e para consigo Cf KANKINDI Antoinette La relacion entre política y ética en Charles Péguy Cuadernos Empresa y Humanismo p 24 28 Sobre a influência de Péguy no pensamento de Mounier nesses três aspectos ver VILLELAPETIT Maria da Penha Emmanuel Mounier um pensamento em ação Revista Síntese p152156 29 Mounier descobre em Péguy um pensamento que se quer ao serviço dos homens e que fez sua a ideia bergsoniana de que o espiritual deve comprometerse com o temporal para ser fecundo Maritain in LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 68 30 VILLELAPETIT Maria da Penha Emmanuel Mounier um pensamento em ação Revista Síntese p155156 24 de contato entre esses dois autores Além dos três aos quais demos mais destaque podemos citar a visão da liberdade como uma conquista progressiva31 a inquietação em relação ao problema da miséria material e moral32 a diferenciação entre miséria e pobreza33 a percepção da crise da sociedade como uma crise de valores embora para Mounier a crise não se esgote nesse aspecto34 além de uma correlação entre a crítica de Péguy ao que ele chamou de mundo moderno e a crítica de Mounier à desordem estabelecida35 Entretanto nem mesmo Péguy foi isento de críticas por parte de Mounier e aqui podemos destacar alguns pontos de discordâncias entre os autores Mounier foi o mais flexível na crítica do mundo moderno abrindo maiores espaços para evidenciar os seus méritos não cairá numa defesa nacionalista aos moldes de Péguy e corrigirá o mestre numa de suas mais célebres frases enquanto para Péguy a revolução material será moral ou não será para Mounier é preciso acrescentar a essa sentença o seu inverso a revolução moral será material ou não será Só a unidade dessas duas exigências poderia responder a uma crise que não é apenas parcial mas uma crise global de civilização 122 O Existencialismo e o Marxismo A percepção de que a crise da sociedade não era apenas parcial levara Mounier a pensar sobre a necessidade de uma proposta filosófica que percebesse o homem em sua integralidade como um ser de interioridade e exterioridade Era preciso um olhar que integrasse a singularidade humana e ao mesmo tempo reconhecesse o que está além deste homem singular e aqui tocamos na questão da relação do homem com os outros com o mundo e as instituições Nesse ponto Mounier reconhece que o Existencialismo e o Marxismo representaram uma influência significativa Sobre estas tentativas mais especificamente personalistas às quais depois de 1932 a revista Esprit dá continuidade o movimento de renovação existencialista e o movimento de renovação marxista exercem duas pressões laterais O primeiro contribuiu em larga escala para renovar problemas 31 Cf Cf KANKINDI Antoinette La relacion entre política y ética en Charles Péguy Cuadernos Empresa y Humanismo p 44 32 Ibidem p 45 33 Cf Ibidem p 45 34 Cf Ibidem p 46 35 Cf Ibidem p 6667 Goguel afirma na obra O Pensamento Político de Mounier que em seus começos à crítica de Mounier à desordem estabecida é mais influenciada por Péguy do que por Marx Cf GOGUEL F in LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 69 25 personalistas a liberdade a interioridade a comunicação o sentido da história O segundo incita todo o pensamento contemporâneo a libertarse das mistificações idealistas a partir da comum condição dos homens e a ligar a mais alta filosofia aos problemas da cidade moderna36 Sobre a influência do Existencialismo podemos dizer que um primeiro elemento que foi acolhido por Mounier foi a desconfiança sobre os perigos da sistematização no filosofar problema que já fora enunciado por Péguy Mounier compartilha com essa corrente de pensamento diversos temas como a angústia humana especialmente devido à sua finitude decorrente de sua historicidade Este ser que se angustia que é situado num mundo que lhe antecede em existência e significações que é único e pessoal é muito mais do que os aspectos enumerados pelos sistemas Em suma compartilha com o Existencialismo a preocupação com o homem concreto e seus problemas37 Há de se ressaltar que Mounier se aproximará efetivamente do Existencialismo cristão especialmente Gabriel Marcel além do Existencialismo de Karl Jarpers Do Existencialismo ateu acolherá questões pontuais além das questões que são comuns à vertente cristã desse pensamento mas fará críticas mais severas especialmente a Sartre em que vê a negação de um dos principais pontos que o Existencialismo põe em destaque no cenário do debate filosófico a comunicação A questão do outro e a historicidade foram temas que sempre moveram a filosofia de Mounier São questões que ele entreviu no diálogo com o Existencialismo e que também tivera oportunidade de abordar no contato com o Marxismo embora numa perspectiva diferente Péguy que sempre esteve envolto num contexto socialista pode ser considerado a primeira referência substancial para Mounier sobre essa corrente mas certamente é no diálogo com Nicolai Berdiaeff que Mounier irá conhecer mais e amadurecer sua postura em relação ao Marxismo Berdiaeff era russo conheceu de perto o desenvolvimento da revolução soviética e participou ativamente do processo de reviravolta política em seu país Atraialhe no Marxismo seu pensamento concreto e a seriedade intelectual com que aborda as questões38 Mas não demorou muito a perceber as contradições que o partido comunista enxertava na revolução tão rápidas quanto essa percepção são as perseguições que Berdiaeff sofrerá por insistir em criticar o partido Depois de rápida prisão em 1920 exilase em Berlim onde conhece M Scheler e depois vai para Paris Em Paris entra em contato com J Maritain e com Mounier e 36 MOUNIER E O Personalismo p 3334 37 LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 62 38 Ibidem p 52 26 junto com esses e outros pensadores reunirseá para círculos de debates especialmente na casa de Maritain ou do próprio Berdiaeff Esse contato foi importante para Mounier enquanto lhe permitiu conhecer mais concretamente a experiência comunista russa e amadurecer a percepção do caráter ambíguo do Marxismo Essa ambiguidade mistura de pontos positivos e negativos é perigosa mas Mounier a enfrenta porque vê no Marxismo um compromisso com a emancipação humana Veremos no terceiro capítulo que para Mounier essa emancipação é um tanto quanto unilateral mas foi muito importante para suprir parte do descaso que as filosofias de seu tempo tinham para com os problemas humanos por isso ele se esforçou tanto em toda a sua vida por travar um diálogo franco e frutífero com os marxistas39 Para Mounier tanto o Existencialismo como o Marxismo foram filosofias que contribuíram para minar o idealismo e o abstracionismo impessoal de que a filosofia vinha há muito tempo tornandose refém Fizeram isso em perspectivas diferentes mas que de certo modo completavamse por isso para Mounier os rumos de distanciamento que as duas correntes tomaram precisavam ser amenizados por um modo de filosofia que fosse capaz de conciliar Kierkegaard e Marx Parece que aquilo a que se podia chamar a revolução socrática do século XIX ou seja o assalto contra todas as forças modernas de despersonalização do homem se separou em dois ramos um deles através de Kierkegaard chama o homem moderno deslumbrado pela descoberta e exploração do mundo à consciência da sua subjetividade e da sua liberdade o outro através de Marx denuncia as mistificações a que o conduzem estruturas sociais enxertadas na sua condição material e lembralhe que o seu destino não depende somente do seu coração mas das suas mãos Lamentável separação Com o correr dos tempos a separação entre as duas linhas mais se acentuou e a missão da nossa época é talvez não a de as reunir naquilo em que elas não poderão jamais encontrarse mas sim de ultrapassar suas divergências para uma unidade de que se exilaram 40 39 Por causa dessa busca Mounier foi alvo de muitas críticas e suspeitas seja do meio eclesiástico ou mesmo entre seus interlocutores mais próximos como Jacques Maritain para quem o diálogo com os comunistas não era possível ao menos numa perspectiva de conciliação com o Cristianismo Sem ficar alheio a essas críticas sempre disposto a explicitar sua posição sobre a questão Mounier buscou até o fim de sua vida essa aproximação sempre revisitando as obras de Marx os manuscritos econômicofilosóficos de Marx foi sua última leitura como atesta o livro aberto ao lado de sua cama onde morreu na madrugada de 22 de março de 1950 de infarto 40 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 3031 27 123 O Anarquismo Outra leitura que foi de fundamental importância para a formação do pensamento de Mounier é a dos anarquistas clássicos como Proudhon e Bakunin Em muitos aspectos da crítica de Mounier à desordem estabelecida Mounier está mais próximo do Anarquismo do que do Marxismo especialmente do Marxismo na leitura do Socialismo real Numa síntese rápida podemos enumerar os principais pontos do diálogo anarco personalista 1 A exaltação da liberdade humana 2 A crítica da democracia burguesa como instrumento de manutenção de interesses de alguns e nesse ponto Mounier entendia que o Anarquismo era ainda mais lúcido do que o Marxismo porque não apenas denunciava a incoerência de tal democracia mas evidenciava os perigos futuros de tal organização41 3 A defesa de um princípio federativo42 que Mounier acolhera como a base da democracia personalista Por outro lado as divergências também existiram Eram dificuldades quanto à relação entre Anarquismo e Cristianismo43 no campo da antropologia e no campo da proposta política Entre as principais distinções estava a perspectiva de uma transcendência humana que excluía Deus herança de Feuerbach uma confiança na liberdade humana a ponto de crer na autoorganização da sociedade e a proposta de superação total do Estado A primeira questão é uma dificuldade Apesar das diferenças que não podem ser ignoradas o diálogo entre Mounier e o Anarquismo não pode ser esquecido especialmente no tocante à questão do federalismo uma vez que como veremos no último capítulo será um tema de fundamental importância para a 41 Um Proudhon e um Bakunin têm sido aqui mais clarividentes que Marx eles o têm explicitamente anunciado tanto sob sua forma trabalhadora como sob sua forma burguesa Toda democracia de massa está na perspectiva do fascismo ela o prepara COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 556 42 O federalismo era para os anarquistas um modo de superação do individualismo e de enfraquecimento da centralização política Para Proudhon ele representava a chave para libertação da pessoa tanto no nível político como no nível econômico o federalismo político que equilibra o Estado a partir do interior e o federalismo econômico que une e integra a sociedade planejada a qual se assenta por sua vez em uma propriedade federalizada a propriedade mutualista que pertence simultaneamente ao conjunto sociedade econômica a cada uma das empresas e a cada trabalhador GURVITCH Georges Dialética e Sociologia p 108 Proudhon buscava a realização de um ideal social preciso a libertação do homem dos grupos e da sociedade inteira de todas as suas servidões mediante o estabelecimento de uma estrutura pluralista e federalista onde a democracia política e a democracia industrial limitamse e se completam e onde o direito triunfa sobre o poder e sobre todas as outras regulamentações sociais GURVITCH Georges Dialética e Sociologia p 113114 43 Questão importante para Mounier não apenas porque ele era um cristão praticante mas também para referenciar o grau de colaboração entre os diversos pensadores que debatiam nos círculos da revista Esprit uma vez que a revista não era confessional mas era preciso haver um mínimo de consenso nas propostas feitas em nome da revista e não fazia sentido propostas radicalmente opostas representarem a mesma voz da revista 28 proposta mounieriana de uma sociabilidade compatível com a dignidade humana e a vida pessoal 124 O Cristianismo Mounier era cristão católico praticante e essa situação marcou sua perspectiva filosófica especialmente no que se refere à esperança sobre o potencial positivo da pessoa e em relação a alguns valores que ele considera importantes na sociedade A própria importância que ele dá para uma perspectiva axiológica embora não seja atitude exclusiva de pensadores abertos à religião nasce de sua base cristã Seu objetivo não é reformular a sociedade a partir dos valores cristãos atitude mais próxima de Maritain que em seu humanismo integral propõe abertamente uma nova cristandade mas certamente o Cristianismo influencia sua visão dos valores Sobre a esperança no potencial positivo da pessoa é bom destacar que para Mounier tratase de fato de um potencial como tal pode se efetivar ou não Sua postura é a de um otimismo trágico ou seja uma esperança concreta mas consciente das limitações humanas Essa consciência porém não o impede de apostar na pessoa daí que sua proposta de reformulação social passa necessariamente pela resposta humana a uma série de compromissos principalmente o compromisso de ser pessoa Essa postura é certamente arriscada mas o risco não era grande problema para Mounier que recebeu primeiro de Péguy e depois do diálogo com Paul Louis Landsberg a certeza de que só podemos nos engajar em projetos incertos impuros por assim dizer pois nunca nos será dada a certeza plena de que nossa ação na sociedade é plenamente legítima Justamente por ter de passar pela pessoa é que a reformulação nunca será perfeita pois não há nem comunidades perfeitas só se o caso fosse o contrário poderíamos exigir uma postura plenamente pessoal da pessoa nem pessoas perfeitas isso não implica que não possa haver um progresso quanto a respostas positivas por parte das pessoas que viabilizem um processo de aperfeiçoamento progressivo que não é o mesmo que contínuo da sociedade Um outro ponto de presença de referências cristãs no pensamento de Mounier é o modo como ele entende o tema da comunidade Para ele a noção de comunidade está intimamente relacionada com a sua noção de pessoa que como veremos faz referência ao modo como esse conceito foi cunhado no Cristianismo embora com algumas distinções O modo peculiar de reciprocidade com que Mounier concebe as pessoas no contexto da 29 comunidade ideal comunidade personalista possui sinais de referência à teologia do Corpo Místico presentes nas cartas paulinas O valor que Mounier reconhece na dimensão corporal recebe também influência do Cristianismo Mounier gostava de lembrar que as manifestações de desprezo pelo corpo existentes na história do cristianismo se desenvolveram muito mais por uma recepção do pensamento grego e em especial do platonismo44 se tal recepção foi correta ou não tratase de outro debate do que pelos princípios cristãos Na verdade para Mounier o cristão que fala com desprezo do corpo e da matéria o faz contra sua mais central tradição 45 tendo em vista que o Cristianismo é a religião do Deus Encarnado e que a teologia medieval insistia que quanto maior for a transcendência no ascender à Deus maior é o reconhecimento e a dependência da imanência pois é através da matéria nunca sem ela que o espírito pode realizar o processo de transcendência Os temas que acima indiquei mostram a presença de uma inegável inspiração cristã em muitos aspectos do pensamento de Mounier mas o tema de maior importância nessa relação entre a filosofia de Mounier e o pensamento cristão é sem dúvida o tema da pessoa Em seguida mostraremos um pouco da origem da palavra pessoa o modo como ela ganha em robustez a partir de sua explicitação na filosofia medieval e como essa perspectiva dialoga com o personalismo de Mounier 1241 A gênese da noção de pessoa e sua relação com o personalismo mounieriano O pensamento e a ação de Mounier sempre tiveram a pessoa como a referência principal Sua compreensão sobre a pessoa é intimamente ligada à noção de comunidade dada a importância que ele destina ao tema da relação É uma perspectiva que nasce de um contexto de luta contra o individualismo e de rejeição a uma filosofia de cunho idealista que segundo Mounier era alheia à realidade concreta do homem A pessoa que esse tipo de filosofia acreditava explicável e encaixada facilmente num sistema que a tudo abarcava é bem diferente da pessoa segundo a compreensão de Mounier para quem ela estaria muito além de qualquer definição Essa postura na qual Mounier mostrouse em profundo diálogo com o Existencialismo especialmente de Kierkegaard e de Gabriel Marcel encontra eco em sua 44 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 27 45 Ibidem p 41 30 convicção de que não se podia dar uma definição plena da pessoa resumindo suas explicitações mais diretas sobre o tema ao que ele chamou de aproximações e não definições Essa rejeição da sistematização influenciou em sua recepção da metafísica clássica e medieval Teria ao que parece se distanciado definitivamente do Tomismo não fosse a influência de J Maritain o grande nome do Neotomismo recente46 Mas a recepção de alguns elementos dessa perspectiva metafísica não se deve apenas à influência de Maritain Segundo Antônio Joaquim Severino contribuiu também para essa recepção o fato de Mounier não ter até sua prematura morte encontrado uma solução para justificar os dados 46 É salutar explicar melhor a crítica de Mounier em relação à sistematização na filosofia uma vez que a referência a essa crítica é feita com certa constância Ao que me parece é possível identificar um sentido mais amplo e um mais específico para essa crítica Neste último caso a crítica se volta para as tentativas de formação de sistemas filosóficos completos e aqui a crítica a Hegel é latente especialmente quando Mounier comenta o pensamento de Kierkegaard No primeiro sentido mais amplo Mounier não quer atingir o projeto de sistema filosófico mas um tipo de filosofia que pretende alcançar a realidade através de conceitos e definições fechadas Só nesse sentido podemos entender a inclusão do Tomismo na crítica de Mounier à sistematização uma vez que S Tomás não pretendeu fazer um sistema ao modo de Spinoza e Hegel por exemplo A crítica não parece se dirigir diretamente a S Tomás em si mas ao tipo de filosofia que o Tomismo representa a metafísica clássica É importante lembrar que na época de Mounier a principal voz da metafísica clássica era o Tomismo seja pelo estímulo dado pelo papa Leão XIII na encíclica Aeterni Patris em 1879 seja pela repercussão do humanismo integral de J Maritain renomado neotomista da época Para Mounier a metafísica clássica não dá conta de certas peculiaridades da pessoa e S Tomás que é também fruto de um tempo em que não havia muitas alternativas a esse modo de pensar a natureza humana não escapa de uma definição fechada da pessoa Quando se fala da rejeição de Mounier ao sistemático e associa essa crítica ao Tomismo a referência é a crítica de uma definição fechada da pessoa e não a uma crítica de uma filosofia do sistema A postura de Mounier estava em conformidade com a recusa do Existencialismo em deixar às categorias racionais o monopólio da revelação do real MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 44 entretanto essa posição não pode ser confundida com uma defesa do irracionalismo Cf SEVERINO Antonio Joaquim Pessoa e Existência p 146 Mounier sabia muito bem que o pensamento precisa de uma estrutura lógica que o configure como argumento Mounier argumentou que suas propostas não eram soltas tinham a base de um contexto mais amplo a filosofia personalista Sua posição sobre a questão fica clara logo no início de O Personalismo O personalismo é uma filosofia não é apenas uma atitude É uma filosofia não é um sistema Não foge à sistematização Porquanto o pensamento precisa de ordem conceitos lógica esquemas unificantes Porque define estruturas o personalismo é uma filosofia e não apenas uma atitude Mas sendo a existência de pessoas livres e criadoras a sua afirmação central introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva MOUNIER E O Personalismo p 1617 Antonio Joaquim Severino afirma que em Mounier observase a presença significativa de uma metafísica coerente em sua evolução desde os primeiros escritos até seus últimos livros SEVERINO Antonio Joaquim Pessoa e Existência p 22 mas que não é tão fácil perceber isso porque Mounier não se apegou a um esquema universitário estruturado aos moldes dos rigores acadêmicos sua decepção com o ensino oferecido pela Sorbonne segundo Mounier completamente apartado da realidade e dos sofrimentos da pessoa com certeza influenciou suas ressalvas a esse tipo de filosofia Candide Moix um dos principais comentadores de Mounier nos oferece um comentário bastante elucidado sobre o modo de fazer filosofia em Mounier Tal obra de Mounier não se dirige aos impacientes ávidos de fórmulas em estilo mordaz que iludem e passam ao lado do real Mounier jamais se apressa em concluir hesita em definir no entanto estava longe de optar pelo ecletismo fácil Se tinha horror ao sistema a direção do seu pensamento é sólida e nitidamente demarcada Filósofo certamente mas me parece preferível chamálo de pensador Não encontramos nele este rigor seco do homem que crê ter deslindado todos os problemas resolvido todas as questões à força de fórmulas ou de sábias habilidades especulativas Nesse sentido podemos dizer que Mounier não era filósofo Os filósofos de profissão reprovamlhe as imprecisões e a falta de definições dogmáticas esquecem que o pensamento de Mounier esteve sempre em vias de elaboração que seu personalismo está sempre a ser repensado Teórico sim o foi mas com a preocupação de ficar no concreto de servir ao homem e de nunca brincar com as ideias Seu pensamento ele próprio o disse é um pensamento combativo MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 380 31 permanentes do ser humano o que representa um dos dois polos de sua percepção da pessoa como permanência aberta sem o recurso à perspectiva da metafísica clássica47 Para entendermos melhor essa herança ou presença de elementos implícitos da metafísica clássica na concepção mounieriana da pessoa será importante explicitar um pouco o processo histórico e teórico da formação desse conceito É preciso dizer que o conceito de pessoa não teve sempre o peso ontológico que hoje apresenta Houve todo um processo de formação do termo desde a antiguidade e somente no período medieval irá ganhar verdadeira robustez e importância A palavra pessoa tem origem na palavra grega πρόσωπον prósôpon48 que originalmente significa máscara e com o tempo passou a representar também o personagem que usa a máscara Pessoa era portanto uma personagem representada no teatro algo que se apresenta aos outros Posteriormente os estoicos fizeram uso da palavra pessoa com enfoque mais filosófico para se referir à função ou papel que o indivíduo por desígnio divino desempenhava em sociedade49 Evidenciase assim uma tonalidade marcadamente social para o termo No entanto embora tais significações para o conceito de pessoa trouxessem em si uma inegável referência ao tema da relação o que é sumamente importante para o personalismo ainda está muito distante do que Mounier e o personalismo entenderam por pessoa pois essa segundo tal definição não representava o que o indivíduo era de fato no caso da compressão de pessoa como máscara ou representava apenas a função social da pessoa no caso do uso estoico do termo evidenciandose apenas um aspecto da pessoalidade No direito romano por sua vez o termo pessoa era usado com significado apenas de um status a condição jurídicosocial de homem50 Será apenas com a filosofia cristã medieval que o termo vai encontrar real importância e desenvolvimento O termo pessoa se desenvolve no Cristianismo a partir das disputas trinitárias e cristológicas dos séculos II a VI51 De início o objetivo explícito quanto ao emprego do termo dizia respeito à compreensão de Deus52 o homem entrava nesse debate a partir da parte humana desse contexto Jesus Cristo e sua dupla natureza humana e divina Com o 47 Cf SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 147 48 Cf VILLA Mariano Moreno org Dicionário de Pensamento Contemporâneo p 594 49 Cf FAITANIN Paulo Acepção teológica de pessoa em Tomás de Aquino Aquinate n3 2006 p 50 50 Cf ARAÚJO Alexandre Madruga da Costa O conceito de pessoa na metafísica tomista como fundamento ontológico das relações jurídicas Aquinate n 13 2010 p 4 Ver também TALCIANI Hernán Corral El concepto juridico de persona una propuesta de reconstrución unitária p 302303 51 MOUNIER E O Personalismo p 27 52 Cf VILLA Mariano Moreno org Dicionário de Pensamento Contemporâneo p 594 32 tempo as implicações de tais debates fariam referência também ao humano aos filhos de Deus Esses filhos eram todos os homens portanto para o Cristianismo não havia distinção entre escravo e livre homem e mulher pois todos compartilhavam o mesmo chamado e a mesma filiação53 É o primeiro grande impulso que se dá para o conceito de dignidade humana A grande questão para os padres da Igreja era que para se usar o termo pessoa aplicandoo a Deus seria preciso rever seu significado Em vez de πρόσωπον prósôpon termo que expressara algo externo ao indivíduo os medievais ligaram o termo pessoa ao termo também grego ύπόστασις hypostasis54 que faz referência a substrato e a algo que existe por si55 O termo pessoa ganha então um caráter substancialista56 A pessoa como substância é o que fica para além das características mutáveis e passageiras mas também é unidade uma vez que como substrato reúne os aspectos essenciais e acidentais ou seja é algo completo57 Entender a pessoa como substância é também compreendêla como incomunicável indivíduo distinto não participado por outro único e como subsistente existente por si sem necessidade de outro para nele existir58 No caso do homem esta subsistência era qualificada pela autopertença a consciência de si e da consequente liberdade59 não seria apenas uma peça de um sistema como uma pedra ou uma planta O conceito de racionalidade era então crucial Na realidade só enquanto racional a substância poderia ser chamada de pessoa A definição de pessoa que reunia esses elementos e que ficou mais conhecida à época foi a de Boécio substância individual de natureza racional60 Para o personalismo essa perspectiva tem o mérito de configurar o termo pessoa como a realidade essencial do homem mas ao centrarse no aspecto da incomunicabilidade e da unidade completude acaba perdendo o enfoque relacional que antes o termo possuía 53 Cf VILLA Mariano Moreno org Dicionário de Pensamento Contemporâneo p 595586 54 Tarefa que não foi tão simples pois o termo era usado pelos gregos com referência às coisas a qualquer substância individual Segundo Xavier Zuribe foram os padres capadócios que fizeram o primeiro grande esforço para aplicar o termo à pessoa Cf Xavier Zuribe in CORTÁZAR Blanca Castilia y Consideraciones en torno a la noción de persona p 156157 55 Cf FAITANIN Paulo Acepção teológica de pessoa em Tomás de Aquino Aquinate n3 2006 p 53 56 Cf SILVEIRA Carlos Roberto da O Humanismo personalista de Emmanuel Mounier e a repercussão no Brasil p 74 57 Cf ARAÚJO Alexandre Madruga da Costa O conceito de pessoa na metafísica tomista como fundamento ontológico das relações jurídicas Aquinate n 13 2010 p 89 58 Cf RODRÍGUEZ José Luis Fernández El objeto de la metafísica en la tradición aristotélica p 8889 59 A pessoa é portanto a substância que goza de sua inteira individualidade e que é inteiramente pertencente a si mesma HUGON Pe Édouard Os princípios da filosofia de São Tomás de Aquino p 62 60 Persona est naturae rationalis individua substantia BOÉCIO De duabus naturis et una persona Christi PL 64 cap III N 1343 D 33 De fato a definição boeciana foi a que prevaleceu ganhando força após ter sido aceita por S Tomás61 embora com algumas alterações S Tomás incorporou alguns elementos da definição de Ricardo de São Vitor62 e com isso o conceito de pessoa perdeu muito em seu aspecto de relação A modernidade não sanaria esse problema pois o que nela prevaleceu foi o aspecto racional da pessoa do qual o penso logo existo de Descartes foi um dos principais emblemas A questão começa a mudar na contemporaneidade A intencionalidade da consciência em Husserl e a situação do Dasein como sercom em Heidegger apontavam para uma interessante conclusão o pensar e o existir são marcados pela relação E esses são apenas alguns exemplos contemporâneos de como o conceito de relação começa a ocupar um lugar de destaque no cenário filosófico Mounier aponta muitos nomes que contribuíram para esse processo desde Maine de Biran C Péguy os pensadores da filosofia dialógica Max Scheler o Existencialismo em que a temática do outro ganha grande destaque na corrente inversa dessa proposta estaria Sartre até é claro o personalismo63 Em Mounier essa ênfase na importância da relação evidenciará que a legítima valorização do aspecto relacional na antiguidade se mostra ainda limitado Para Mounier e o personalismo a relação é também um aspecto essencial da pessoa não é só acidente Surge então um grande desafio para o personalismo a partir de um contexto substancialista reunir na pessoa tanto o aspecto da incomunicabilidade unidade interna e distinção do externo como o da máxima comunicabilidade como abertura ao outro64 O termo pessoa em Mounier é portanto marcado também pela influência cristã em seu pensamento As contribuições dadas pela metafísica medieval se mostram fundamentais para entendermos sua referência à pessoa como um absoluto No entanto veremos que a essa influência somase a sensibilidade de Mounier ao aspecto singular e existencial do homem 61 Cf Sth I q30 a 4 62 Cf De Trinitate IV 2224 São Tomás de Aquino não adota a definição de Ricardo de São Victor existência incomunicável própria da natureza divina pois em Deus não se dariam três existências incomunicáveis mas sim uma existência realizada em três relações Assim prefere designar pessoa por subsistência melhorando a definição de Boécio e incorporando nela algo da definição de Ricardo de São Victor Além do mais a ideia de subsistência embora de modo analógico pode ser aplicada tanto às pessoas humanas quanto às pessoas divinas sendo que naquelas designa a substância enquanto nestas designa as relações distintas numa mesma substância Enquanto no homem as relações são acidentais em Deus elas são a própria essência divina ARAÚJO Alexandre Madruga da Costa O conceito de pessoa na metafísica tomista como fundamento ontológico das relações jurídicas Aquinate n 13 2010 p 1314 63 Cf MOUNIER E O Personalismo p 37 64 Junto a esta azarosa andadura metafísica habría que destacar las dos dimensiones más importantes de la persona que son aparentemente incompatibles 1 su irrepetibilidad que los clásicos denominaban incomunicabilidad y 2 su apertura y relación con los demás es decir su máxima comunicabilidad a través de la inteligencia y de la libertad que posibilitan el conocimiento y el amor CORTÁZAR Blanca Castilia y Consideraciones en torno a la noción de persona p 158159 34 concreto sem o qual o conceito de pessoa não ganha raízes ficando sempre como algo intelectivo sem referência efetiva ao homem real e a seus problemas concretos A busca de um equilíbrio entre essas duas perspectivas sempre marcou o pensamento de Mounier sobre a pessoa e é isto o que buscaremos tratar no próximo capítulo em que nos propomos a explicitar mais detalhadamente qual a visão de Mounier sobre a pessoa e também sobre o que ele chamou de vida pessoal 35 CAPÍTULO II A antropologia mounieriana e sua noção de espírito Quando Mounier disse ser necessário refazer o renascimento65 queria dizer que a crise de seu tempo encontraria solução na passagem de uma revolução em prol do indivíduo para uma revolução de cunho personalista e comunitária O objetivo não era modesto Uma civilização nova um homem novo66 Mas antes de pensar uma civilização uma nova estruturação políticoeconônica para a sociedade Mounier pensou na pessoa Toda a construção de suas propostas no âmbito da política da economia e da ética está alicerçada na defesa da pessoa e numa concepção específica de pessoa em suma numa antropologia Ao falar do que seria uma proposta personalista Mounier afirma Chamamos de personalista a toda doutrina a toda civilização que afirme o primado da pessoa humana sobre as necessidades materiais e sobre os sistemas coletivos que sustentam o seu desenvolvimento67 Essa afirmação nos mostra que além de conhecer e conceituar a pessoa sua filosofia visa ao cuidado à luta pela pessoa e já nos oferece as primeiras luzes sobre a antropologia mounieriana A partir da afirmação acima o que podemos perceber é que para Mounier uma visão integral do humano não pode se limitar ao seu aspecto material No seguinte trecho da obra O Personalismo vemos reforçada essa percepção a solução biológica ou econômica dum problema humano por mais perto que esteja das nossas necessidades elementares é incompleta e frágil se não forem tomadas em linha de conta as mais profundas dimensões do homem68 É importante notar que Mounier não afirma que apontar uma solução biológica ou econômica para um problema humano é algo errado ele disse apenas que é incompleto e frágil Disso concluímos que para Mounier o aspecto materialestrutural não é algo à parte da reflexão sobre o homem e sua vida mas para ele os problemas humanos e a realidade do homem não se esgotam nesses aspectos É preciso também levar em conta as mais profundas dimensões do homem Ainda na obra O Personalismo Mounier acena para o espírito como essa dimensão mais profunda do homem69 Veremos mais à frente que Mounier não pretende dar uma definição rigorosa sobre a pessoa mas aponta conceitos que podem nos dar uma aproximação sobre o universo pessoal tratase das três dimensões da pessoa encarnação comunicação e vocação Entretanto 65 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 19 66 Ibidem p 18 67 Ibidem p 9 68 Idem O Personalismo p 49 69 Cf Ibidem p 49 Ver também Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p15 36 devido à já destacada condição que Mounier reserva ao espírito no universo pessoal sou impelido a fazer uma reflexão mais detalhada sobre essa noção em seu pensamento e sobre a relação dessa noção com as citadas dimensões pessoais de modo a explicitar as marcas do tema do espírito na sua antropologia Consciente dos possíveis malentendidos que podem surgir devido à importância que Mounier reservou à noção de espírito julguei ser importante partir de alguns esclarecimentos sobre a compreensão de Mounier a respeito do tema 21 Mounier era espiritualista Para entendermos a antropologia mounieriana é preciso entender primeiro a importância que Mounier dava à noção de espírito no entanto uma leitura apressada de sua obra pode nos deixar inicialmente confusos sobre a sua posição em relação ao tema Por um lado é notória a influência de autores espiritualistas na formação do seu pensamento e isso se faz sentir especialmente quando Mounier defende o primado do espiritual 70 Por outro lado Mounier era um duro crítico do Espiritualismo como também do Materialismo em sua análise da crise de seu tempo e por isso alertava para um erro cometido por muitos que devia ser evitado que era confundir o personalismo com os espiritualismos e idealismos tradicionais 71 A questão fica mais clara quando percebemos que o problema não é tanto com o espiritualismo mas com certas vertentes dessa corrente Mounier fala algumas vezes de espiritualismos desvirtuados72 ou de pseudoespiritualismos o que nos leva a crer que existe para ele uma vertente coerente desse pensamento Certamente Mounier não colocaria Bérgson Maine de Biran e Péguy no grupo dos pseudoespiritualistas especialmente o último de quem recebeu o maior impacto deste tipo de pensamento e com quem aprendeu a necessidade da busca de um espiritualismo encarnado Nesse sentido e também na afirmação de um estatuto próprio ao espírito rompendo com o reducionismo naturalista do positivismo e mesmo na afirmação de um primado do espiritual com certeza Mounier pode ser considerado um filósofo espiritualista Porém em relação ao tema corpoespírito e nas soluções apontadas por essa corrente para a crise de seu tempo Mounier se distancia em alguns pontos desse pensamento Alguns espiritualismos negligenciam completamente o sentido do corpo na vida humana e para esses Mounier não cede complacência Outros 70 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 13 Ver também JEANMARIE Domenach Mounier sugún Mounier p 49 71 Cf MOUNIER Emmanuel Qué es el Personalismo p 147 72 Cf Ibidem p 95 37 reconhecem o corpo como um lugar de destaque mas não o colocam no mesmo patamar que o espírito na constituição do ser humano mesmo estes apesar de reconhecerem a importância do corpo e da matéria são alvos da crítica de Mounier Para os espiritualismos em geral não há problema nesta frase o homem é espírito e possui corpo Mounier a reformularia da seguinte forma o homem é espírito e é corpo A hierarquia nesses princípios só é aceita por Mounier no tocante ao grau de expressabilidade do que é o ser humano ou seja para Mounier um deles expressa mais especificamente o que é o ser humano sendo ele o elemento diferenciador em relação aos outros seres no caso o espírito mas não há hierarquia quanto ao grau de constituição do ser humano ou seja para ele os dois são igualmente constituintes do homem73 Mounier diz que o personalismo está longe de ser um Espiritualismo74 o motivo e o sentido desse distanciamento já o expomos acima e o próprio Mounier o explica Pertencelhe ao personalismo em toda a latitude da humanidade concreta qualquer problema humano desde a mais humilde condição material às mais elevadas possibilidades espirituais75 Esse trecho deixa claro que quando ele afirma que a pessoa é o volume total do homem76 não limita a abrangência desse volume ao espírito mas está se referindo a tudo o que compõe o homem seja nos seus instintos paixões razão ou liberdade Para não dar margem a nenhum malentendido é preciso deixar claro o sentido das expressões mais humilde condição material e mais elevadas possibilidades espirituais O binômio que melhor explica a relação dessas duas expressões não é ruimbom mas o elementarcomplexo Com isso quero dizer que para Mounier a condição material oferece à pessoa o seu suporte básico e aqui as possibilidades são mais ou menos as mesmas de qualquer outro ser vivo O espírito por sua vez potencializa essas possibilidades ampliando assim o horizonte da existência humana para possibilidades mais elevadas Mas Mounier não retira da materialidade a participação nesse processo de ampliação do horizonte da existência humana mesmo nesse processo o espírito não está sozinho77 Para Mounier os instintos e as paixões são uma mola para o espírito além de não deixarem que o homem reduzido a puro 73 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 39 74 Ibidem p 47 75 Ibidem p 48 76 Idem Révolution Personnaliste et Communautaire p 44 77 É o homem inteiro espiritual e carnal que na vida pessoal transcende os fenômenos particulares expressão da solidariedade organopsíquica é o homem inteiro espiritual e carnal que no extremo de si mesmo enraízase na força vital prolongamento nele da vida animal Mounier in SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 48 38 espírito percase numa abstração desligada do mundo É isso o que Mounier afirma nesse trecho Devese abandonar a ideia de que o instinto seja necessariamente um fator de perturbação Ele é um amigo impetuoso e perigoso mas se sua influência é quase sempre misteriosa todavia ela não é radicalmente má É ele que orienta o pensamento individual e a cultura coletiva para seus objetivos elementares É ele que dá ao clã pessoal carne e sangue é por ele que a mais alta atividade do espírito mantém uma robustez que a desvia de divagações e de sistemas A verdade também é uma paixão Quando o instinto se enfraquece por detrás dela o pensamento se torna vazio 78 E ainda O espiritual sem suas amarras não é mais do que um balão a pairar sobre este mundo brutal para o vigiar e por vezes distraílo Espírito completamente vazio ligeiro e egoísta razão orgulhosa e peremptória cega ao mistério das exigências reais jogo sutil e complicado da inteligência assim se criou uma raça de homens surda ao sofrimento dos homens insensível à rudeza dos destinos Esses belos espíritos temem a realidade viva em que veem uma potência do mal que abala os seus calmos jogos ideológicos Não é somente uma limitação voluntária da vida do espírito a uma casta minoritária e privilegiada que é deste modo consolidada Não é apenas o seu estiolamento no preciosismo no pitoresco na dispersão enciclopédica É um desmoronamento maciço da cultura é a esterilização da própria vida espiritual 79 Mounier não podia ter sido mais claro a defesa do primado do espiritual não pode ser feita desligandoo do material afastar o espírito da matéria acarreta a esterilização do espírito a perda de fecundidade da própria vida espiritual O equilíbrio dos dois princípios eleva a pessoa já o desequilíbrio a rebaixa No desequilíbrio a matéria pode representar um caminho para a simples adaptação e uma busca cega por segurança levando o próprio espírito a criar mecanismos para criar inércia tranquila é esse processo que Mounier observa no capitalismo e na civilização fruto do espírito burguês80 Por outro lado Mounier fazendo referência ao texto bíblico recordanos que os maiores males que Cristo aponta eram nascidos no espírito humano e não a partir do corpo81 Portanto ambos os princípios podem ser base de alienações se a pessoa os tratar sem o equilíbrio necessário Em síntese a matéria oferece ao homem a condição básica de todo ser vivo o espírito amplia as possibilidades dessa condição mas nesse processo não exclui a participação da matéria pois ela é a base para a consciência e para toda a vida do espírito82 É justamente por isso que Mounier não aceitava que certos 78 MOUNIER Emmanuel Traité du Caractère Ouvres II p 609 79 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 3132 80 Ibidem p 26 81 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 41 82 Cf Ibidem p 51 39 espiritualismos negassem as determinações que a matéria impõe à pessoa pois fazendo isso ao invés de exaltar a condição espiritual acabava na verdade limitando as possibilidades do espírito Diante disso se podemos dizer que Mounier pode ser chamado de espiritualista com certeza é de um tipo bem diferente dos espiritualismos desencarnados83 tão comuns em sua época e na nossa Explicada a relação de Mounier com essa corrente de pensamento passamos a delinear mais especificamente o que Mounier entende ao falar da categoria de espírito 22 A categoria de espírito em Mounier Falar sobre o espírito em Mounier não será uma tarefa muito simples pois apesar de se tratar de uma noção basilar em seu pensamento perpassando todas as suas principais obras não é uma noção suficientemente tematizada por ele ao menos de modo direto A tentativa que aqui farei para lançar alguma luz sobre a questão será um exercício de trazer à tona uma ideia que sirva de alicerce para o seu pensamento sempre presente em suas principais propostas mas geralmente de forma implícita Como não há em Mounier obras dedicadas exclusivamente a essa noção nem partes substanciais que a evidenciem explicitamente adotarei uma leitura holística para esse exercício de interpretação buscando uma compreensão sobre a questão a partir da análise de trechos pertinentes situandoos no todo do pensamento de Mounier como tentativa de explicitar essa noção e apontála como base da fundamentação de um personalismo comunitário No modo corrente de composição de uma dissertação de mestrado não podemos partir inicialmente do todo pois se faz necessário construir um argumento parte por parte Desse modo os pontos destacados nas próximas linhas sobre o espírito serão mesmo apenas linhas orientadoras de pensamento uma aproximação necessária mas ainda não suficientemente evidenciada Utilizaremos essas linhas orientadoras como chave de uma leitura fundamental para entendermos outros pontos 83 Quando Mounier fala de espiritualismo desencarnado está se referindo a uma forma de visão de mundo e de compreensão da pessoa em que a materialidadecorporeidade é um aspecto secundário ou até seria apenas uma mera aparência ou desdobramento do espírito Para essa corrente de pensamento os problemas sociais de cunho estrutural políticoeconômico não têm muita relevância Os problemas humanos dessa natureza acabam ficando sempre em segundo plano importando apenas o papel dos valores e do desenvolvimento espiritual da pessoa Desse tipo de espiritualismo Mounier irá se distanciar radicalmente como vemos neste trecho de O Personalismo Os modernos espiritualismos dividem o mundo e o homem em duas substâncias independentes a matéria e o espírito Umas vezes aceitam como fato consumado a independência das duas substâncias e deixando a matéria entregue às suas fatalidades próprias Outras vezes negam qualquer realidade ao mundo material que consideram simples aparência do espírito Desde o início que um tal esquema é desfeito pelo realismo personalista MOUNIER E O Personalismo p 39 40 importantes do pensamento de Mounier como as três dimensões da pessoa o seu conceito de vida pessoal o exame e a crítica do processo de despersonalização e a sua proposta de sociabilidade mas ao mesmo tempo apenas quando adentrarmos especificamente nestes pontos é que o esboço da noção de espírito que à frente faremos irá aos poucos ganhando seus contornos finais De início é importante recordar que em Mounier não há uma hierarquia entre corpo e espírito no tocante à qualidade de constituintes do ser humano ambos o são igualmente Mas há sim uma hierarquia quanto ao grau de expressabilidade do ser do homem ou seja um dos princípios expressa mais do que o outro aquilo que é próprio e diferenciador do ser humano e esse princípio é o espírito É por esse princípio que o homem deixa a sua marca e especificidade e se realiza numa existência autenticamente pessoal84 Ser o elemento que representa o específico do ser humano é uma primeira característica que devemos identificar para entendermos o que é o espírito para Mounier Na obra O Personalismo Mounier afirma que a vida pessoal é o modo especificamente humano de existir Para Mounier a vida sozinha não é suficiente para dar ao homem a sua plenitude essa ideia se faz sentir mais claramente quando Mounier faz eco à distinção entre o viver e o existir feita por Gabriel Marcel85 A opção pelo segundo termo evidencia que para o filósofo a existência humana não se reduz à simples vida nos seus aspectos biológicos O homem só consegue atingir uma via de plenificação a via da vida pessoal quando consegue transcender a materialidade que lhe é inerente e isso ele o faz a partir da capacidade de reflexão sobre o mundo que o envolve de adentrar num mundo de significações86 e de liberdade ao dizer sim ou não aos apelos que o cercam A sede dessas realidades que o faz transcender está justamente no espírito Essa transcendência de que Mounier fala não é a negação da materialidade Já vimos como Mounier preza a união entre corpo e espírito isso é tão forte no seu pensamento que quando se fala de espírito em sua obra já se subtende que o corpo está presente que o corpo segue o espírito não para atrapalhálo mas como realidade nunca distante que representa limites sim mas que é também como já dito a base das possibilidades do espírito É preciso fazer uma observação para deixar clara a posição de Mounier Quando notamos que na antropologia mounieriana corpo e espírito formam uma unidade tão substancial ao ponto de mesmo nas ações mais altas do espírito o corpo também ter influência alguns poderiam 84 Veremos na continuidade do capítulo o que se trata esta existência autenticamente humana a vida pessoal 85 Cf MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 103 86 Cf SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 135 41 acenar para um problema oposto ao que há pouco enfrentamos daqui se poderia pensar que no fundo seu pensamento se trata ainda de um materialismo em que o espírito não seria de fato uma realidade distinta da matéria Na realidade não se trata disso Na filosofia de Mounier a condição material é uma condição necessária para a ação do espírito por isso ela não pode ser negligenciada mas não é uma condição suficiente ou seja a matéria sozinha não basta para fazer o que o espírito faz Portanto estamos falando de uma unidade completamente passível de diferenciações são princípios que no homem são intimamente ligados mas que preservam suas especificidades Nesse caso não se trata de um espírito puro pois há uma dependência mesmo que não radical ou intrínseca em relação à matéria Mas isso não representa um problema pois Mounier está falando do homem e a este não se aplica a noção de espírito puro que seria aplicável em última análise somente a Deus Isso não é uma novidade já os escolásticos tinham essa consciência87 Fica ainda mais claro que a fala de Mounier sobre a transcendência não é uma negação da materialidade a partir de um exemplo que ele mesmo usou para falar da transcendência humana a invenção do avião Esse é um exemplo de como a pessoa imersa nas determinações da matéria ao mesmo tempo é capaz de transcendêla ou seja não é escrava de suas determinações Para voar o homem não podia simplesmente negar que a força da gravidade o segura junto ao chão e se lançar do alto de um penhasco para num passe de mágica superar suas determinações isso sim seria negar a materialidade Na verdade é bem o contrário o que deve acontecer No exemplo dado foi preciso além de se reconhecer como envolto por tal determinação não poder voar refletir para conhecer muito bem as próprias determinações como elas funcionam quais os efeitos no corpo humano para depois usar outras determinações naturais no caso a necessária mudança de velocidade do ar quando cortado por uma superfície curva num lado e reta no outro o que acontece na asa do avião e a consequente mudança da ação de forças sobre esta superfície para alcançar o que parecia impossível voar É desse modo que o homem transcende a natureza e se configura como ser capaz de transformação e criação inclusive da própria existência a partir de escolhas Aqui entendemos porque para Mounier a pessoa não é apenas um dado algo pronto a partir de uma essência fixada tem sim uma estrutura que lhe norteia direções mas também é aquilo que se faz esta é a síntese da expressão muito usada por Mounier para falar da pessoa permanência aberta No entanto apesar de não haver negação da matéria é bom 87 Cf MORA J Ferrater Dicionário de Filosofia p 888 42 lembrar que nesse processo de ascensão e autocriação mais que a matéria é o espírito que age88 Este primeiro momento de reflexão sobre o tema do espírito em Mounier nos permite dizer que Mounier concebe o espírito por vezes como subjetividade percepção reforçada quando num contexto de fala sobre a relação corpoespírito Mounier afirma que no homem existir corporalmente e existir subjetivamente são uma mesma experiência89 Mounier usa o termo subjetividade como um termo mais amplo e que engloba as noções de consciência e autoconsciência e se concretiza na existência da pessoa como sujeito É uma existência que implica liberdade autonomia tanto no sentido de que o sujeito tem um papel ativo em relação aos objetos como no sentido de que esta existência permite à pessoa um distanciamento das coisas distanciamento que permite à reflexão sobre o mundo sobre si e permite a transformação do que se conhece Entendido deste modo o espírito humano se configura como a chave da transcendência humana caminho para a realização da vida pessoal e por conseguinte da formação de autenticas comunidades No entanto é preciso destacar que Mounier entende a consciência com algumas peculiaridades em relação aos modernos Segundo Antonio Joaquim Severino para Mounier a razão e a reflexão só têm sentido completo e integral enquanto etapas prévias da ação Isto significa que a consciência é uma consciência engajada comprometida situada e seu pretenso caráter de imparcialidade e de objetividade descomprometida é passível de ilusões e de suspeitas 90 Esta visão da consciência se insere na visão mounieriana da pessoa como imanente e transcendente A consciência representa um elemento da transcendência humana mas confirma a imanência da pessoa enquanto ela própria a consciência não foge à imanência tanto pelo fato de sua referência à ação como pela influência dos vários condicionamentos físicos e históricos que marcam o processo do conhecimento Podemos também perceber tal concepção de Mounier sobre a consciência e sobre o sujeito cognoscente no seguinte trecho o espírito que conhece não é espelho neutro ou fábrica de conceitos que se interpusessem no seio da personalidade total é existente indissoluvelmente ligado a um corpo e a uma história chamado por um destino engajado inserido nesta situação por todos os seus atos e portanto também por seus 88 Embora a matéria sempre esteja presente na ação do espírito não estamos falando aqui de uma ação da matéria sobre ela mesma mas de uma iniciativa espiritual 89 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 51 90 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 61 43 atos de conhecimento Exatamente porque o homem é o ser que está sempre engajado o engajamento do sujeito que conhece longe de servir de obstáculo é meio indispensável para um conhecimento verdadeiro 91 O que está em jogo não é tanto a capacidade de conhecimento dos objetos e de percepção da própria condição de sujeito mas as implicações de tal capacidade do espírito na vida humana Tal situação do existir humano viabilizada pelo espírito abre a pessoa para um mundo de significações e para a possibilidade de posicionarse valorativamente a respeito deste mundo Deste modo além dos aspectos da consciência e da liberdade o ser espiritual se traduz numa vida espiritual através do aspecto axiológico da vida humana isto é através da adesão a valores específicos capazes de animar o engajamento pessoal Daí a grande importância que o aspecto moral terá no processo de revolução da sociedade no modo como Mounier a concebe 23 Dimensões da pessoa Era de se esperar que uma filosofia que se arroga o nome de personalismo começasse sua teoria a partir de uma definição da pessoa Mounier é consciente dessa expectativa mas por fidelidade à sua própria concepção de pessoa afirma que definila não é possível Mounier diz que nós só podemos descrever objetos e a pessoa é justamente aquilo que nunca pode ser tratado como objeto92 sendo assim propor uma definição rigorosa da pessoa representaria uma contradição na base de seu pensamento No entanto para Mounier isso não significa que nós não possamos ter nenhum acesso ou conhecimento sobre o ser pessoal93 Ele nos dá o que seria uma tentativa de definição da pessoa Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência e de independência no seu ser ela alimenta essa subsistência por sua adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por uma tomada de posição responsável e uma constante conversão ela unifica assim toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo por força de atos criadores a singularidade de sua vocação 94 91 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p138 92 Ibidem p 1718 93 Ibidem p 19 94 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 84 44 Mounier queria manter a sua concepção de pessoa como permanência aberta como um equilíbrio que superasse tanto o essencialismo como o existencialismo Por mais que desconfiasse da metafísica tradicional não teve como evitar o acolhimento de alguns de seus elementos para manter a consistência do elemento da permanência na expressão citada95 mas nessa definição há espaço igualmente para elementos de criatividade no fazerse pessoa de modo que a sua perspectiva da pessoa como permanência aberta segue preservada Segundo Paul Ricoeur vemos nessa definição a coexistência de uma ontologia da subsistência uma referência a uma ordem hierárquica de valores e um agudo sentido da singularidade e da criatividade96 Pelos motivos acima citados e pela ressalva do próprio Mounier97 o que vimos acima não é propriamente uma definição rigorosa por mais rigorosa que possa parecer as definições que tentamos fazer da pessoa no contexto da antropologia mounieriana não significam mais que aproximações No decorrer deste tópico tentaremos evidenciar o que faz parte desta estrutura básica quais as pistas apontadas por Mounier para adentrarmos no universo pessoal Reconhecemos o ser da pessoa pelas marcas que ela deixa por onde passa e as principais marcas são a encarnação a comunicação e a vocação É sobre essas três dimensões que trataremos em seguida 231 A Encarnação No momento em que Mounier fala sobre o tema da encarnação vemos de modo mais claro uma apresentação do personalismo como uma proposta de realismo integral em que Mounier irá rejeitar o monismo de cunho espiritualista ou materialista e o dualismo que separa radicalmente corpo e espírito como leituras do mundo e especialmente da pessoa A proposta do realismo integral é a de pensar a pessoa como uma unidade real e não apenas aparente entre seus princípios constitutivos no entanto essa unidade não significa a negação das especificidades de cada princípio ou a assimilaçãoredução de um princípio pelo outro A pessoa é corpo e espírito sem deixar de possuir suas especificidades esses dois princípios são imbricados de modo que o desprezo de um deles acarreta um inevitável rebaixamento da 95 Certamente a proximidade e a amizade com J Maritain o influenciaram a ter uma visão mais complacente com o Tomismo e a Metafísica tradicional 96 RICOEUR Paul A Região dos Filósofos p 157 97 Por muito cerrada que pretenda ser não se pode tomar esta designação por uma verdadeira definição Sendo a pessoa com efeito a própria presença do homem a sua característica última ela não é suscetível de definição rigorosa MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 84 45 pessoa Veremos mais à frente como tal concepção de homem trará consequências para o discurso de Mounier nos campos da ética e da política É justamente porque Mounier busca a construção de uma filosofia que tenha alcance na vida das pessoas não apenas conheça a pessoa mas lute por ela98 especialmente que aponte para uma mudança na sociedade que ele procurará pensar a pessoa em toda a sua concretude sem deixar margens a reducionismos o que fragilizaria pela base seu projeto de uma nova sociabilidade Reconhecer a encarnação da pessoa é um passo fundamental nesse processo Para Mounier é inegável que a pessoa está imersa na natureza seu corpo é testemunha constante de sua real pertença à natureza e sua influência na vida da pessoa não pode ser desprezada O meu feitio e a minha maneira de pensar são amoldados pelo clima a geografia a minha situação à face do globo a minha hereditariedade e talvez até pela ação maciça dos raios cósmicos Para além destas influências temos ainda posteriores determinações psicológicas e coletivas Nada há em mim que não esteja imbuído de terra e de sangue 99 Essa pertença à natureza não é encarada como algo trágico100 como o fazem certos espiritualismos Para Mounier essa inserção na natureza não representa uma queda para ele a natureza em nada contribui para o mal do homem101 Mas não é só isso a encarnação não pode ser simplesmente considerada como algo indiferente apenas como algo que não faz mal à pessoa Segundo Mounier a matéria não pode ser considerada como um fator de despersonalização muito pelo contrário a minha existência encarnada é fator essencial da minha situação pessoal102 Não posso pensar sem ser nem ser sem o meu corpo através dele me exponho a mim próprio ao mundo aos outros através dele escapo à solidão dum pensamento que mais não seria que pensamento do meu pensamento Recusandose a entregarme a mim próprio inteiramente transparente lançame sem cessar para fora de mim na problemática do mundo e nas lutas do homem Através das solicitudes dos sentidos lançame no espaço através do seu envelhecimento ensiname o tempo através de sua morte lançame na 98 Cf MOUNIER Emmanuel Traité du Caractère Ouvres II p 7 99 Idem O Personalismo p 40 100 Ver estudo de Juan Manuel Burgos sobre o personalismo em que afirma que Mounier tinha clareza que esa carne non es algo accidental al estilo platônico sino uma dimensión esencial del hombre el modo en que se manifiesta su espíritu y su medio de comunicación El hombre es un ser en el que la carne sus sentidos sus instintos su materia sus tedencias forma parte inseparable de su ser BURGOS Juan Manuel El Personalismo p 6061 101 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 41 102 Ibidem p 51 46 eternidade A sua servidão pesanos mas ao mesmo tempo é base para qualquer consciência e para toda vida espiritual 103 Em suma a negação da condição material ao contrário do que os pseudoespiritualistas afirmam não é uma solução viável na verdade impossibilita o surgimento de uma vida pessoal Portanto o corpo não é nem algo mal nem meramente algo indiferente à pessoa é uma condição essencial de sua existência e base para a vida pessoal De tal modo podemos dizer que sem a correta valorização do corpo nunca poderemos almejar uma vida propriamente humana E qual seria a razão dessa defesa do corpo Certamente que Mounier queria afastar todo e qualquer resquício de malentendidos em relação ao seu pensamento e às propostas da revista e movimento Esprit delimitando a posição do personalismo frente a outras posições como o Espiritualismo e o Materialismo Mas esse esclarecimento visava de modo especial à construção de uma base sólida para as estratégias de ação personalista pois se sua intenção era intervir na sociedade por sua vez formada de pessoas era necessário definir a visão que o grupo tinha da pessoa em todas as suas dimensões A base de uma reformulação coerente da sociedade tinha de ser uma concepção também coerente da pessoa que para Mounier não podia ser dualista Mas Mounier não parou na valorização do corpo e da materialidade Seu discurso sobre o tema buscava sim dá um justo valor para a condição humana mas para ele uma correta compreensão sobre a materialidade passa pelo reconhecimento de que ela não esgota o sentido da existência humana Por isso Mounier pergunta Será o homem somente um ser natural Será inteiramente um joguete da natureza104 não É a resposta de Mounier O homem está sim mergulhado na natureza mas ao mesmo tempo a transcende Ele se diferencia dos outros seres naturais apenas naturais singularizandose por uma dupla capacidade de romper com a natureza Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar105 Aqui vemos emergir a condição espiritual da pessoa que lhe permite uma liberdade criadora baseada não na negação dos determinismos mas na afirmação de que a pessoa não é escravizada por eles Essa posição como já acenamos traz importantes consequências no modo como Mounier concebe o trato dos problemas humanos e a ação em prol de uma nova sociabilidade mais à frente explicitaremos esta questão com mais detalhes Se o homem é um ser natural e 103 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 51 104 Ibidem p 42 105 Ibidem p 43 47 tem seu comportamento influenciado por sua situação biológica e econômica106 é preciso estar atento às explicações feitas a partir do instinto e da economia como em Freud e Marx para entendermos os fenômenos humanos Vejamos o que diz Mounier Uma criança é anormalmente preguiçosa ou indolente examinemselhes as glândulas antes de nos zangarmos com ela Um país revoltase pensese nos salários antes de falar em materialismo107 Entretanto esse é o primeiro momento é preciso também ter em vista os valores as estruturas e as vicissitudes do universo pessoal108 pois esse universo só se completa quando a materialidade se soma à dimensão espiritual Sendo assim as soluções para os problemas humanos seja de cunho puramente biológicomaterialista ou puramente espiritualistamoralista são igualmente incompletas pois desprezam ao menos um dos princípios constituintes da pessoa Para Mounier não se trata de escolher um ou outro mas a verdade que une os dois para aquém da sua separação109 A proposta do personalismo mounieriano é inicialmente a indicação de uma síntese dialética das duas soluções citadas em prol do surgimento de uma concepção de homem e de sociabilidade capaz de fomentar a revolução necessária uma revolução personalista e comunitária ao mesmo tempo estrutural e espiritual Como vimos a transcendência humana se manifesta como não redução da pessoa à natureza mas esse não é o único modo ela também se manifesta como saída de si no encontro com o outro Esse modo específico da transcendência humana é o fundamento para a comunidade Nesse momento entendemos porque a revolução que Mounier propõe não é apenas pessoal mas também comunitária110 Esse segundo momento da transcendência se realiza na segunda dimensão pessoal descrita por Mounier que será tema das próximas linhas deste trabalho a comunicação 232 A Comunicação Mounier reconhece a pessoa como um ser de relações a pessoa é pois situada naturalmente num mundo que lhe antecede rodeada por outras pessoas e inserida em 106 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 47 107 Ibidem p 49 108 Ibidem p 48 109 Ibidem p 49 110 Tratase de uma distinção apenas por motivos didáticos pois para Mounier a pessoa e a comunidade estão em profunda ligação de modo que ele considera até um pleonasmo descrever o personalismo que ele propõe como personalismo comunitário Cf Ibidem p 64 48 comunidades naturais que são a base para o seu desenvolvimento pessoal A experiência fundamental da pessoa não seria a separação o isolamento mas a comunicação111 Pensar a pessoa como um indivíduo isolado atomizado sem laços é uma radicalização de uma teoria individualista da pessoa teoria surgida à época do Renascimento e que se transformou no embasamento teórico perfeito para as pretensões de grupos sociais que almejavam uma reviravolta no sistema social da época112 Era um contexto de supervalorização do sujeito e consequentemente do indivíduo contexto esse que perdia forças já no alvorecer do século XX quando muitos autores passaram a questionar essa independência e esse poder tão absolutos do sujeito113 O homem contemporâneo se reconhece cada vez mais dependente de um contexto social não apenas devido a uma escolha sua ou por imposição de outrem mas por sua própria situação existencial É nessa posição que situamos o pensamento de Mounier um pensamento que compreende a relação de sociabilidade não apenas como fruto de interesse contrato social mas como reflexo da própria condição humana Sendo assim se queremos entender o que Mounier compreendia por pessoa precisamos nos debruçar sobre a noção de comunicação enquanto dimensão que abre a pessoa ao outro Dizer que a pessoa é um ser em relação não significa dizer simultaneamente que a comunicação é automática É preciso lembrar que para Mounier a pessoa pode sempre escolher seus caminhos e pode se quiser escolher o caminho inverso ao da comunicação Em tal caso podemos perguntar se isso representa uma ação pessoal Segundo a perspectiva personalista não representa no máximo é uma ação feita dentro das possibilidades humanas mas nesse rol de possibilidades temos os mais diversos caminhos inclusive agir como se fosse uma coisa e não podemos dizer que nesse caso teríamos uma ação pessoal só pelo fato de ter sido feita por uma pessoa pois ela nunca será um objeto mesmo que queira se comportar como tal Mounier tem a clareza de que uma vida segundo as dimensões pessoais depende de uma série de escolhas e adesões pessoais feitas livremente Ele tinha ciência da existência de vários obstáculos à comunicação e que portanto não há garantias de que se realize uma comunicação plena entre as pessoas114 Ele estava atento aos críticos da possibilidade da comunicação entre as pessoas e soube reconhecer o mérito de suas análises mas também apontou os limites dessa crítica Emblemática é a sua análise da posição de Sartre como crítico da comunicação do tipo sujeitosujeito Segundo Mounier a 111 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 59 112 Tratase do antagonismo entre a burguesia e o sistema organicista vigente no século XVIII Trataremos com mais cuidado do surgimento e desenvolvimento desta ideia na parte deste trabalho em que será explicitada a crítica de Mounier ao individualismo 113 MOUNIER Emmanuel Qué es el Personalismo p 166 114 Cf Idem O Personalismo p 69 49 infelicidade da comunicação vai assumir com Sartre toda a sua amplitude115 Para ele era importante confrontarse com a análise sartriana para visualizarmos melhor o problema da possibilidade da comunicação Por isso é salutar destacar alguns trechos da fala de Mounier sobre a tese de Sartre e depois de sua posterior crítica Sartre convidanos aqui a uma capital mudança de atitude Pensamos sempre no outro como naquele que eu vejo Ora ele é também aquele que me vê Vejo o outroobjeto mas ao mesmo tempo sou visto pelo outrosujeito ou seja como um objeto Experimento a experiência de servistocomoobjeto em experiências como a vergonha a timidez o embaraço E não posso ser um objeto para um objeto mas apenas para um sujeito Originalmente o outro é assim aquele que me olha O olhar do outro constituime pois em objeto dentro do seu campo O outro é para mim um sistema ligado de experiências fora do alcance do qual me represento como um objeto entre outros É pois a negação radical da minha experiência de sujeito 116 Mounier destaca que Sartre não apenas identifica o olhar do outro como o que me torna objeto mas o que me apanha e me rouba Mas o outro não me torna apenas num objeto mas num objeto despojado e possuído Fui visto fui apanhado são sinônimos e sinônimos de fui roubado Que se passa com efeito quando um outro entra no meu campo Entra com seu olhar com seu ponto de vista e tudo se passa como se no mesmo momento em que os desenrola ante mim o meu universo se desintegrasse simultaneamente como se os objetos que o compõem embora mantendose imóveis deslizassem para esta perspectiva estranha Assim o surto do outro longe de me trazer uma promessa apenas semeia morte e danação o inferno são os outros 117 Partido de uma concepção husserliana da intencionalidade Sartre concebe a consciência sempre consciência de algo como constantemente voltada para fora de si para os objetos para o exterior É pois segundo a conclusão de Sartre consciência vazia sem vida interior O conhecimento que dela brota anula o conhecido é tentativa de afirmação de si a partir da anulação do outro118 Um semelhante modo de conceber a consciência e o objeto e suas mútuas relações vem cercear pela raiz toda possibilidade de comunicação na esfera intersubjetiva119 115 MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 141 116 Ibidem p 142143 117 Ibidem p 143145 118 Ver sobre essa questão a análise feita por Antonio Colaço Martins na obra Metafísica e Ética da pessoa p 8590 119 MARTINS Antonio Colaço Metafísica e Ética da Pessoa p 86 50 Segundo Mounier Sartre percebe que o processo que torna o eu um objeto é um processo reversível120 A resposta ao ser que me olha e que me rouba o universo não pode ser outra que a mesma busca por objetivação Essa reviravolta tem no pudor a primeira etapa em que posso me esconder e me esquivar A segunda etapa é o ataque propriamente dito que se converte em minha melhor defesa121 É roubando o seu universo atingindoo em sua liberdade que me afirmo como sujeito e fujo ao seu olhar perturbante É o conflito que marca a relação entre os desejantes à condição de sujeito A nossa relação nunca é segura enquanto o outro nos rodeia todos conhecemos a irritação que nos dão esses pequenos acidentes mecânicos em que duas peças solidárias se avariam consertamos uma a outra imobilizase Despregamos a segunda a primeira volta a imobilizarse Esta é no esquema de Sartre a história da nossa desgraça com o outro 122 Essa é a tese sartriana sobre a relação de comunicação entre as pessoas Antes de expor a objeção feita por Mounier a esse esquema é preciso esclarecer que quando Mounier critica Sartre não é para dizer que a sua tese é completamente carente de sentido Como dito anteriormente Mounier tinha plena consciência de que existem muitos obstáculos à realização da comunicação e se o mundo do outro não é jardim de delícias123 se existem altos e baixos nas relações entre as pessoas nesses baixos a análise sartriana é perfeitamente cabível O próprio fato de reconhecer que existem altos e baixos na relação de comunicação entre as pessoas mostra que Mounier encontra o problema da análise de Sartre não na perspectiva negativa que ele apresenta a respeito da comunicação mas no fato de ele absolutizar essa perspectiva pois não existiria apenas uma perspectiva a analisar nas relações entre as pessoas Se Sartre tivesse intitulado este capítulo da sua obra muito simplesmente e como se duma obra de medicina se tratasse Estudo ontológico de uma grifo nosso estrutura do serparaoutrem só nos competiria saudar nesta notável análise uma das atitudes dominantes que assumimos em relação aos outros Mas recusamola por ela se pretender única e excluir qualquer outra experiência possível por ela se apresentar como a descrição ne varietur do serparaoutrem Se retomarmos agora a distinção entre o autêntico e o inautêntico diremos que a descrição sartriana é precisamente a do serparaoutrem inautêntico 124 120 MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 145 121 Ibidem p 146 122 Ibidem p 150 123 Idem O Personalismo p 60 124 Idem Introdução aos Existencialismos p 150151 51 Mounier afirma que se o olhar tem a função útil de fixar ele não se reduz a isso assim como a própria pessoa não se reduz às suas funções125 A concepção de Sartre sobre o olhar nos evoca o homem como um perseguido um paranoico um ser para quem se empobreceu a substância do mundo ao mesmo tempo que doentiamente se exacerbou a consciência de si A consciência empobrecida que tem do ser dálhe o sentimento que todo aquele que nele toma parte lhe toma sua parte126 Numa tal concepção do olhar e da consciência o outro só poder ser visto como perigo iminente e o que o rodeia é sempre uma ameaça espreitando os seus caminhos Mas para Mounier não é só o olhar que pode me fixar em objeto antes a atitude da própria pessoa pode ser mais fundamental nesse processo Está implícito na análise sartriana do olhar o mundo da possessividade Se sobre mim próprio cerro a curvatura egocêntrica se me torno proprietário de mim próprio desenvolvo em mim uma opacidade que em seguida desenvolvo contra os outros127 Na obra O Personalismo Mounier alerta para o fato de que a solidão tão alardeada como um dado da condição humana é na maioria dos casos obra nossa128 e também no caso do olhar exposto na análise de Sartre segundo Mounier estamos diante de uma obra de escolhas às vezes livres outras vezes não muito mais do que diante da condição humana assim é num projeto prévio de indisponibilidade que alcanço o outro como objeto e é na mesma disposição que me reduzo a recebêlo como invasor129 Como Sartre Mounier também percebe que o processo pode ser revertido mas diferente dele compreende que a mudança é possível não apenas quanto aos polos de dominação mas na própria atitude da pessoa em relação a si mesma e aos outros Se por um lado o olhar que petrifica e rouba o outro é fruto de uma postura de indisponibilidade por outro lado tudo muda completamente se me coloco em relação a mim próprio e ao outro numa atitude de disponibilidade Deixo de pensar em mim próprio como seraproteger130 Essa mudança possibilita uma nova maneira de ver o olhar e não estamos falando de um olhar complacente ou bondoso mas sim e principalmente do olhar que afronta Se temos uma concepção diferente do outro tal olhar me inquieta não porque me rouba mas porque me põe em questão sua simples presença é capaz de me deslocar de por em xeque minhas convicções perturbame porque me obriga a sair da estabilidade131 Numa tal experiência o 125 Cf MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 152 126 Ibidem p 153 127 Ibidem p 155 128 Cf Idem O Personalismo p 70 129 Idem Introdução aos Existencialismos p 156 130 Ibidem p 156157 131 Ibidem p 158 52 olhar longe de imobilizar colocame em movimento e isso é necessário para a renovação e a criação e pode colaborar para o crescimento pessoal Se nem todo movimento é bom a pura estagnação acaba por envelhecer e esfriar mesmo o que há de melhor na pessoa Não só o olhar generoso dos outros nos anima mas também se estiver eu que o recebo em estado de disponibilidade me anima o olhar hostil cioso ou indiferente O outro é assim o cooperador da minha mais íntima vida espiritual e podese dizer com Gabriel Marcel que por consequência a vida espiritual é o conjunto de ações pelas quais tendemos a reduzir em nós a margem de indisponibilidade 132 Aqui entramos num outro plano da discussão ou ao menos voltamos à afirmação inicial sobre o tema para Mounier a comunicação não é apenas possível mas é fonte de crescimento da vida pessoal133 O outro não é limite mas fonte do eu de modo que o nós precede o eu ou pelo menos acompanhao134 Se recordarmos as etapas percorridas para neste trabalho explicitarmos o tema da comunicação perceberemos que a pessoa segundo Mounier encontra seu ambiente de realização na comunidade Vejamos 1 A pessoa é rodeada inserida em comunidades naturais desde o nascimento diante de outros 2 A relação que tenho com esses outros não necessita ser de indiferença temor ou conflito embora possa ser 3 A comunicação é possível e não apenas isso ela pode ser edificadora A conclusão de Mounier não podia ser outra senão esta a pessoa não se realiza a não ser na comunidade O vínculo entre pessoa e comunidades é um ponto fundamental na obra de Mounier Só mais à frente trataremos da concepção mounieriana de comunidade quais os graus que ela possui e dentro desses graus qual pode ser considerado o momento da comunidade personalista Por hora é importante precisar melhor a relação pessoacomunicaçãocomunidade Na obra O Personalismo Mounier afirma que é diante do outro que o eu ganha seus primeiros contornos essa é a experiência da primeira infância e nessa experiência a pessoa já se revela como um movimento para o outro a criança de seis a doze meses saindo da vida vegetativa descobrese nos outros aprende nas atitudes que a visão dos outros lhe ensina Só mais tarde à roda do terceiro ano via a primeira vaga de egocentrismo reflexo135 A comunicação com uma outra pessoa se revela como a primeira e a mais fundamental experiência de uma consciência que começa a acordar Situada e rodeada encarnada desde o 132 MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 158159 133 Cf MARTINS Antonio Colaço Metafísica e Ética da Pessoa p 94 134 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 64 135 Ibidem p 63 53 nascimento em comunidades que lhe antecedem e se constituem como a base de seu crescimento a pessoa é essencialmente voltada para outrem de modo que é a comunicação e não o conflito a sua condição própria Eis porque Mounier critica qualquer forma de organização social modelo econômico ou proposta política que não reconheça a pessoa em sua situação peculiar de relação Onde a comunicação se enfraquece o mesmo destino é compartilhado pela pessoa136 Esse primeiro momento da formação do eu em que a experiência da comunicação se mostra desde o limiar da consciência dáse no contexto da família que é a comunidade natural mais basilar137 À medida que cresce a pessoa receberá de modo mais presente a influência de outras comunidades naturais que a envolvem Esse é o ambiente que permite o desenvolvimento pessoal nas várias etapas de sua vida mas ao mesmo tempo o ambiente comunitário deve ser alimentado pelas próprias pessoas Comunidade e pessoa são ligadas intimamente de modo que seus caminhos são interdependentes138 É preciso por um lado pensar na formação de comunidades cada vez mais autênticas para que possibilitem o crescimento pessoal das pessoas em todas as suas dimensões por outro lado é preciso pensar no papel da pessoa na formação dessas comunidades A comunicação começa a partir do reconhecimento do sentido do outro ou seja quando se respeita a especificidade do outro Mounier reconhece que a base de uma tal comunicação é o amor 139 O amor permite à pessoa reconhecer a dignidade do outro e a coloca na perspectiva do encontro e do diálogo e por ser amor é criador de distinções e não de simples assimilação do outro como um espelho um reflexo meu Porém Mounier faz um importante alerta Para que se realize a comunicação a pessoa deve sair de si tornarse disponível ao outro colocarse no seu ponto de vista compreendêlo mas nunca deixar de ser si mesma o que não seria mais amor mas fraqueza140 Aqui percebemos que não podemos confundir a transcendência representada pela comunicação com uma pura exteriorização na qual diluo meu próprio ser Por isso a pessoa necessita de um movimento oposto mas não contraditório que a complementa a interiorização É o momento de conversão de forças em que alimento minha unidade reconheço minha singularidade e minha vocação Sobre esse tema deternosemos no próximo tópico de nosso trabalho 136 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 64 137 Ibidem p 186190 138 Como essa relação não é a de uma harmonia ao modo leibniziano Cf Ibidem p 5758 está sujeita a estremecimentos e aqui para Mounier o Estado pode ter um papel decisivo especialmente reconhecendo a condição comunitária da pessoa e por consequência o valor e o papel das comunidades naturais 139 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 68 140 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 146 54 233 A Vocação A terceira dimensão pessoal de que Mounier nos fala é a vocação Antes de descrever o que Mounier entendia por vocação é salutar esclarecer quais os sentidos que se afastam do que ele pensou ao escolher essa palavra para falar dessa dimensão pessoal Ele mesmo nos faz uma ressalva sobre o uso comum do termo Esta palavra está gasta pelo uso que correntemente se faz dela O que se chama uma vocação profissional pode entrar como todo contributo do meu destino no desígnio geral de minha vocação Mas então ela aí toma um sentido totalmente outro que não essa feliz adaptação de minhas aptidões que ela significa na boca das pessoas 141 Mounier queria evitar possíveis confusões quanto ao seu emprego da palavra vocação Com esse termo não queria se referir ao que se chama vocação profissional ou às aptidões pessoais142 essas realidades de algum modo participam da vocação de cada pessoa mas não esgotam seu sentido E não esgotam em primeiro lugar porque são realidades mais ou menos generalizáveis e a vocação no sentido em que Mounier a entende jamais é generalizável toda vocação é inimitável143 E aqui encontramos um primeiro sentido para aquilo que Mounier entendia por vocação a singularidade Para Mounier toda pessoa tem uma significação tal que o lugar que ocupa no universo das pessoas não pode ser preenchido por outra qualquer144 A pessoa é única e o é assim por sua vocação irrepetível De tal modo Mounier só fala de vocação num sentido geral em um momento quando diz que ela é uma dimensão da pessoa nos outros casos ele sempre fala da vocação de uma pessoa daquela pessoa de minha vocação Mas singularidade ou unicidade ainda não são termos suficientes para expressar o que Mounier tinha em mente De fato a vocação faz referência à singularidade da pessoa um dos passos para efetivar a vocação é deixar de ser anônimo ou seja passar a identificarse diferenciarse mas se é verdade que a pessoa é singular é verdade também que a vocação é 141 MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 169 142 Ver também o estudo de Xosé Manuel Domínguez Prieto Miembro del Instituto E Mounier De todas formas cuando se habla comunmente de vocación se suele entender ante todo como profesión o dedicación a la que uno se siente inclinado o con la que se está ilusionado o para la que está bien dotado Así se habla cotidianamente de la vocación de médico de profesor de enfermería de músico y de otras profesiones que exigen una entrega que suele ir más allá de los límites de un horario laboral Quedémonos por ahora con esta exigencia de totalidad Porque también se da en otra acepción vulgar del término vocación aquella que se aplica a aquellos que optan por consagrar su vida a la religión PRIETO Xosé Manuel Dominguez Vocación y crecimiento de la persona Revista Acontecimiento p 33 143 MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 169 144 Idem O Personalismo p 9293 55 singularidade por acréscimo145 É preciso aprofundar mais o sentido que Mounier buscava expressar quando colocou a vocação como dimensão da pessoa para desse modo entendermos porque ele resolveu escolher essa palavra apesar de considerála gasta por outros usos Talvez autenticidade seja uma palavra que se aproxime mais do sentido que Mounier procurava de fato o ser si mesmo é elemento crucial quando falamos dessa dimensão pessoal mas Mounier queria uma palavra que fosse além que fosse ainda mais rica em significado nesse sentido a palavra vocação se mostrava a mais adequada É preciso descobrir dentro de nós sob o amontoado das dispersões o próprio desejo de procurar essa unidade viva de longamente escutar as sugestões que ela nos murmura de a experimentar no esforço e na penumbra sem nunca estarmos absolutamente seguros de a possuir o que mais do que qualquer outra coisa se assemelha a um chamamento silencioso numa língua que passamos a vida a traduzir Eis porque a palavra vocação lhe é mais adequada do que qualquer outra 146 Reunindo os sentidos das palavras singularidade e autenticidade o termo vocação acrescenta também o sentido de chamado à plenitude e busca de realização pessoal Para Mounier um cristão entenderá claramente essa característica uma vez que crê em um envolvente chamado de uma Pessoa Deus mas para além de qualquer crença esse sentido da palavra vocação expressa que há na pessoa uma espécie de sede de plenitude147 um impulso para ir sempre além Normalmente sempre queremos melhorar crescer em vários aspectos da nossa vida no aspecto profissional no amor em nossas qualidades físicas ou morais e isso expressa de algum modo esse movimento de ir sempre mais além mas o sentido último o que de fato pode levar à realização da pessoa é o movimento para se tornar de fato pessoa ser pessoa em plenitude148 Por mais geral que essa compreensão de vocação possa parecer perderá essa aparência se lembrarmos que para Mounier a pessoa é irrepetível e de tal modo esse ser pessoa em plenitude possui sim traços compartilhados por todos mas em cada pessoa tratase de um projeto diferente Se voltarmos à primeira citação sobre o tema escrita um pouco acima nota 145 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 93 146 Idem O Personalismo p 92 147 Xosé Manuel Domínguez Prieto faz uma boa comparação para explicar esse sentido da vocação El dinamismo básico de la persona es la aspiración a existir en cierto modo semejante a la aspiración de perfección de toda substancia en Aristóteles PRIETO Xosé Manuel Dominguez Vocación y crecimiento de la persona Revista Acontecimiento p 33 148 Recientemente desde la perspectiva personalista mounieriana Domíngues Prieto nos ha recordado la conclusión que se há de adoptar admitiendo un concepto personalista de la vocación es una llamada particular a la plenitud es decir que la vocación primariamente es vocación a ser persona em plenitud VALLEJO José Manuel Bautista Sobre la Idea de acción en el personalismo mounieriano ser antes que hacer Revista de Ciencias Sociales p 91 56 141 veremos que Mounier usa a palavra destino ao falar de vocação O caminho que já percorremos até aqui num aprofundamento sobre a antropologia mounieriana já é suficiente para nos proteger da armadilha de pensar que em Mounier esse termo foi aplicado com qualquer alusão a algum tipo de determinismo afinal de contas uma das principais notas da transcendência da pessoa é a liberdade Há aqui mais o sentido de uma teleologia uma tendência a um fim e ao mesmo tempo uma indicação a um caminho a ser percorrido A vocação pessoal projeto e destino encontra em cada pessoa um modo específico de concretização ela não é como uma ideia já toda feita que eu só precisasse decifrar e realizar O seu último traço só me será dado pelo ato de minha morte149 A busca de uma vocação nunca seguramente conhecida singularmente num projeto que sempre me pede mais um passo ir além expressa mais um sentido da vocação no pensamento de Mounier manifestação do dinamismo pessoal Se eu não possuo plenamente as coordenadas do caminho destino que tenho que seguir se meu desejo íntimo é sempre ser mais em plenitude ir além é o movimento e não a estagnação que caracteriza a minha vocação Veremos mais á frente que esse movimento não significa pura exteriorização pois a pessoa se realiza num duplo movimento de interioridade e exterioridade150 24 A Vida Pessoal Até aqui estudamos as estruturas básicas do universo pessoal segundo Mounier destacando a concepção do autor sobre o espírito e o que ele chama de dimensões pessoais Nosso trabalho significou até o momento uma tentativa de aprofundar a compreensão que Mounier tinha sobre a pessoa Mas essa tentativa estaria incompleta se se resumisse às explicitações conceituais a respeito da condição humana O próprio Mounier insiste que a pessoa se revela através de uma experiência decisiva proposta à liberdade de cada um da experiência progressiva de uma vida a vida pessoal151 Por isso nosso trabalho passará a explicitar que modo de vida e existência é este que para Mounier é o modo especificamente humano de existir152 149 MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 170 150 Idem O Personalismo p 94 151 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 84 152 Idem O Personalismo p 21 57 A existência pessoal não nasce pronta com a vida153 não basta uma vida potencializada com as estruturas pessoais se tal condição não é posta em movimento A vida pessoal não é uma experiência de privilegiados mas uma conquista oferecida a todos154 Essa conquista se efetiva a partir de escolhas e essa importância fundamental dedicada à escolha nos remete a outros elementos importantes no processo de conquista da vida pessoal a consciência capaz de conhecimento e julgamento a liberdade que qualifica a opção no status de real escolha não há escolha propriamente dita ao menos não uma escolha pessoal se não há liberdade e adesão convicta e a ação que é o que concretiza e dá carne às escolhas Para Mounier a ação está perfeitamente ligada às mais altas atividades espirituais155 É pela ação que a pessoa desabrocha156 Essa ação sustentada pela liberdade pode seguir os mais variados caminhos mas se a pessoa possui estruturas básicas dimensões que marcam sua constituição é razoável entender que as ações personalizantes próprias de uma vida pessoal são justamente as que possuem tais estruturas como paradigmas De tal forma podemos assim definir a vida pessoal é um modo de vida que se configura através de escolhas conscientes e livres que desembocam num agir pautado pelas dimensões pessoais ou ainda é o modo especificamente humano de existir que realiza atualiza a pessoa em todas as suas dimensões Esse vínculo entre a vida pessoal e as dimensões pessoais se torna ainda mais claro quando Mounier comenta os exercícios necessários à formação da pessoa Os três exercícios essenciais à formação da pessoa são a meditação à procura de sua vocação o engajamento reconhecimento de sua encarnação o despojamento iniciação do dom de si e à vida nos outros Se a pessoa falhar em um deles ela decai 157 O surgimento da vida pessoal depende de como ou quando concretizamos as dimensões próprias da nossa constituição pessoal é uma vida segundo tais estruturas A partir desse ponto iremos voltar ao tema do espírito e das três dimensões pessoais mas a partir de outra perspectiva não mais para definir tais temas mas para apontar os passos e atitudes necessárias para a efetivação de cada dimensão Por necessidade didática trataremos esse 153 Cf MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 105 154 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 85 155 Cf Idem O Personalismo p 151 156 Cf Ibidem p 151 157 Les trois exercices essentiels de la formation de la personne sont donc la méditation à la recherche de sa vocation lengagement reconnaissance de son incarnation le dépouillement initiation au don de soi et à la vie en autrui Que la personne manque à lun deux elle déchoit Idem Révolution Personnaliste et Communautaire p 44 58 processo de efetivação a partir da perspectiva de cada dimensão cada uma por vez porém como a pessoa é uma unidade não basta pensar tais dimensões em separado ou escolher uma para efetivar A vida pessoal depende do desenvolvimento integral da pessoa em todas as suas dimensões 241 Vida pessoal e Vocação Para Mounier o primeiro ato da minha iniciação à vida pessoal é a tomada de consciência da minha vida anônima158 Isso quer dizer que a vida pessoal começa pelo reconhecimento de todas as situações em que nossa vida não passa de indiferenciação E não estamos falando exclusivamente das massificações oriundas de regimes políticos nacionalistas ou de outras situações limites No nosso cotidiano existem inúmeras situações em que nos diluímos num on despersonalizado em um nós sem rosto no qual a responsabilidade se dissipa no mundo do se e num mundo em que todos fazem e pensam de um modo e nós somos réplicas desse modelo Quem nunca julgou uma pessoa sem conhecêla realmente quando tudo o que se sabia era o que se dizia Algumas pessoas talvez não tenham passado por essa situação mas quem sabe possam ter tido a experiência de escolher uma profissão só porque todos diziam que é boa tem boa compensação financeira ou porque os pais sonharam com tal escolha quando na verdade elas não tinham aptidão para tal profissão Poderíamos ficar citando muitos outros exemplos que expressariam o que ocorre nesses acima descritos a singularidade da pessoa é enfraquecida e também enfraquecida é a nossa capacidade de nos posicionarmos autonomamente Nesses casos a vida pessoal não emerge A pessoa é uma unidade que compartilha certas características basilares mas essa igualdade ou unidade não significa identidade159 Sua subsistência não acarreta apenas uma independência psicofísica mas é caracterizada e qualificada através de um modo de ser diferenciado uma vocação irrepetível que torna a pessoa única no modo de acolher e de afrontar o que a rodeia Se agirmos segundo tal condição o que representa o passo complementar para a iniciação à vida pessoal em continuação ao primeiro que como já foi dito é a tomada de consciência da vida anônima a vida pessoal é fomentada ao menos numa de suas faces 158 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 109 159 Cf Idem O Personalismo p 77 59 O exercício correspondente à dimensão da vocação é segundo Mounier a meditação Esse exercício evoca a noção de vida interior ou de subjetividade mas Mounier é cauteloso no uso dessas palavras para expressar a busca e o desenvolvimento da vocação por elas darem margem a malentendidos devido à vinculação a outros usos e sentidos Para Mounier descobrir a vocação e alimentála não significa fecharse em si mesmo numa vida interior que se bastaria a si mesma No entanto o recolhimento nesse território íntimo é fundamental à pessoa Há pessoas que se perdem num puro exteriorizarse perdem as vias do privado tornamse pessoas sem segredos e com isso fragilizam a elas e ao seu convívio social Como no movimento de uma bola de neve elas vão se perdendo cada vez mais passo a passo não se voltam sobre si não se conhecem não se possuem O recolhimento é sim necessário mas não pode cair no perigo inverso à pura exteriorização perderse num solipsismo que mascara uma realidade abstrata Por isso Mounier prefere usar a expressão conversão e forças para se referir ao recolhimento pessoal pois a pessoa só recua para depois saltar melhor160 Interiorização e exteriorização são assim movimentos complementares que dão equilíbrio à pessoa Vida interior e vida exterior são igualmente indispensáveis à pessoa Mas o que seria esta vida interior e a vida exterior Em linhas gerais podemos entender de dois modos A vida interior é inicialmente o reino do espírito sede da consciência e da liberdade por sua vez a vida exterior seria a materialidade que além de compor a pessoa acaba por envolvêla161 Numa outra perspectiva a vida interior é a intimidade o reduto interior que demarca a singularidade de cada vocação e a vida exterior seria o mundo dos outros portanto o âmbito da comunicação e da comunidade162 Nas duas perspectivas percebermos como a pessoa não pode parar em apenas um lugar nem pode se comportar como puro espírito nem unicamente como animal não pode resumir sua vida a um perene e egocêntrico voltarse sobre si nem perderse na comunidade como se fosse uma parte anônima nesse caso nem falaríamos de comunidade mas de massa ou de coletividade A pessoa se realiza realmente nesse duplo movimento certa pulsação que marcará a sua vida pessoal pelo equilíbrio Mounier nos indica a necessidade de nos voltar para nosso interior à escuta deste chamamento que passamos uma vida inteira a decifrar a vocação Eis porque a meditação é o primeiro passo dessa busca Mas ao nos lembrar de que é preciso sair da interioridade 160 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 82 161 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 162 162 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 81 60 para alimentar a interioridade163 lembranos também do perigo de nos instalarmos numa determinada situação o que negaria a dinamicidade que é marca da vida pessoal 242 Vida Pessoal e Comunicação A busca da vocação e a consequente tomada de consciência da própria singularidade afastam a pessoa do nós despersonalizado massificado mas a abertura concreta para o nós comunitário só começa quando a pessoa desperta para a dimensão comunitária através de uma tomada de consciência da minha vida indiferente164 A relação dessas duas dimensões como base para a realização da vida pessoal evidencia como para Mounier a pessoa se realiza nesse movimento contínuo de interiorização e de exteriorização e evidencia também que o desenvolvimento singular de cada pessoa está diretamente ligado ao desenvolvimento da capacidade que a pessoa tem de se comunicar e formar comunidade com os outros Pessoa e comunidade são pois realidades que devem ser pensadas sempre em relação Para Mounier a pessoa não se encontra senão quando se dá165 ou seja quando se torna disponível quando se comunica e se expõe numa postura de acolhimento e não de fechamento sobre si Essa ideia está presente em seu pensamento também porque ele era cristão e como tal concede um lugar privilegiado à generosidade e ao despojamento no processo de formação da comunidade no entanto não se trata apenas de uma influência de sua perspectiva religiosa Mounier reconhecia na pessoa uma ligação originária por certos laços naturais ao âmbito comunitário A pessoa já é antes de qualquer busca individualista enraizada em comunidades naturais e como tal não se realiza numa postura de concentração de posses fechamento em si Não é necessária uma postura religiosa para reconhecer essa imersão da pessoa numa comunidade seja familiar linguística geográfica cultural podendo variar a compreensão do grau e a profundidade dos enraizamentos comunitários Portanto a pessoa se realiza numa postura de quem vê o outro como um semelhante como um coautor de uma comunidade de pessoas e não como uma ameaça permanente sobre as próprias posses Assim podemos perceber que para Mounier a comunidade é o ambiente natural da pessoa e 163 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 95 164 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 109 165 Cf Ibidem p 105 61 o ambiente que ela é chamada a formar com as outras pessoas que a rodeiam166 mas o próprio Mounier alerta que ela a comunidade não pode tomar decisões que competem apenas à pessoa É sempre a pessoa que decide seus passos ao menos deve ser A liberdade não se encontra de todo pronta é a pessoa quem deve tornarse livre por suas próprias escolhas e atitudes167 a singularidade também precisa ser concretamente assumida na vida da pessoa e assim dáse também com todas as peculiaridades que formam a existência pessoal com a vida comunitária não é diferente A vida comunitária não surge se for fruto de uma imposição uma vez que a pessoa não pode pois receber de fora nem a liberdade espiritual nem a comunidade168 é uma vida que surge em primeiro lugar169 a partir da escolha decisão e ação da pessoa Mounier descreve alguns passos e atitudes importantes para o surgimento da vida comunitária são atitudes que concretizam a dimensão pessoal da comunicação e viabilizam o surgimento da vida pessoal em mais uma de suas faces 1º Sair para fora de si próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si própria de se desapossar de se descentrar para se tornar disponível aos outros Só liberta o mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio Os antigos falavam de luta contra o amorpróprio nós chamamoslhe hoje egocentrismo narcisismo individualismo 2º Compreender Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento 3º Tomar sobre nós assumir o destino dos outros sofrer na própria carne 4º Dar A Força viva do ímpeto pessoal está na generosidade e no ato gratuito ou seja numa palavra na dádiva Contra a fileira cerrada dos instintos dos interesses dos raciocínios ela a generosidade é em todo sentido da palavra perturbante Desarma as recusas oferecendo aos outros um valor aos seus próprios olhos elevado exatamente no momento em que eles esperariam ser expulsos como coisa indesejável 5º Ser fiel A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte As dedicações pessoais amor e amizade só podem ser perfeitas na continuidade Essa continuidade não é uma repetição uniforme mas um contínuo renovamento 170 166 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 64 167 Cf Ibidem p 112 168 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 103104 169 Digo em primeiro lugar porque a decisão pessoal é o primeiro momento da vida pessoal mas isso não é suficiente Mais uma vez podemos falar de causas necessárias e causas suficientes Nesse processo de formação da comunidade da vida pessoal de um modo geral existem duas principais causas necessárias a decisão a ação de pessoas autênticas e a intervenção do poder público especialmente o Estado como facilitador das vias pessoais buscadas pelas pessoas Não há nesse caso uma que seja também causa suficiente mas há sim uma hierarquia pois a decisão pessoal é mais determinante nesse processo Há uma hierarquia mas não há exclusão do outro fator veremos mais à frente neste estudo como para Mounier o Estado pode sim ter um papel fundamental na formação da comunidade tanto como um facilitador quanto como um obstáculo 170 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 6567 62 A pessoa não é só um ser que vive é um ser existente portanto um ser que vive que pensa que se angustia que se distancia que é livre para o bem e para o mal que escolhe e que faz Esses são alguns dos atributos e das perspectivas do existente que emerge para além da pura vida Por existir de tal modo é que a pessoa é capaz de se distanciar dos fatos e de si mesma para julgar e se posicionar É nessa capacidade que a pessoa consegue se descentrar sair de si mesma e reconhecer que não está só Esse reconhecimento deve se concretizar em atitudes específicas para que o reconhecimento do estarcomoutros se efetive de fato numa existência comunitária Para Mounier uma dessas atitudes é o despojamento Essa atitude é central para Mounier e para o personalismo em geral porque coloca a pessoa numa atitude de liberdade O homem que vive fechado considerando o outro como a ameaça de seu mundo particular é um possuidor que mal sabe que não possui a si próprio pois é antes propriedade de seus próprios bens Como então pensar em refazer a sociedade e libertar as pessoas se cada um não consegue ser livre de si mesmo Se não é capaz de ser antes de ter A criação de um mundo de pessoas se constitui então como uma luta contra o individualismo a substituição do egocentrismo pela atitude de disponibilidade e o despojamento Esse é um passo fundamental que deve preparar a pessoa para a capacidade da generosidade rompendo com a reinvindicação que isola e escraviza a pessoa E então capaz de se reconhecer junto a outros numa atitude de generosidade a pessoa pode se confrontar com o outro reconhecendoo em sua singularidade Esse é o passo da compreensão em que existe o esforço para reconhecer que o nosso ponto de vista não é o único e isso se dá na escuta e na busca por compreender o ponto de vista do outro Desse modo nossa convivência com as outras pessoas não se resumirá na busca por cópias de nós mesmos Não mais submeto meu reconhecimento do valor dos outros à condição de partilharem todas as minhas opiniões Em suma a formação da comunidade passa pelo choque necessário de posições diversas que naturalmente podem surgir tendo em vista a singularidade de cada pessoa É preciso reconhecer que essas atitudes são exercícios que podem levar uma vida inteira para se desenvolver pois não são automáticas ou fáceis Mais do que o êxito completo nessa busca o que Mounier almeja é que ao menos as pessoas assumam a postura de busca por tal desenvolvimento nas relações com os seus semelhantes Mounier é o primeiro a avisar que no mundo das relações concretas das pessoas não é possível encontrar tamanha harmonia talvez sim em proporções e grupos menores A cidade harmoniosa cantada por seu mestre Péguy nunca fez parte como caminho viável dos seus projetos para a revolução 63 personalista e comunitária171 Mounier fala sim de propostas ideais é nesse contexto que ele fará uma descrição ideal da comunidade personalista172 também nesse mesmo contexto ele fala da exigência de liberdade espiritual de despojamento e do amor como o elemento que une as pessoas em comunidade Mas se fala de propostas ideais é justamente por saber da realidade concreta do ser humano173 pois se já é difícil conseguir mudanças pessoais e sociais justamente porque nem todos se comprometem numa ação para tal propósito ainda mais difícil ficaria a empresa se determinássemos os limites do desenvolvimento humano como pessoa A posição de Mounier como ele mesmo fala muitas vezes é a de um otimismo trágico174 ou seja confia no ser humano e eleva a expectativa sobre ele para além do que muitos poderiam apontar mas é ao mesmo tempo consciente dos inúmeros obstáculos que se levantam por vezes são levantados pela própria pessoa contra a personalização e a formação da comunidade É consciente de que a perfeição absoluta não é deste mundo175 mas ao não determinar o limite até onde a pessoa pode chegar no seu desenvolvimento pessoal acaba abrindo horizontes mais largos ao ser humano que não teria desculpas para estagnar Para Mounier corremos mais riscos se limitarmos a nossa ambição do que se a elevarmos um pouco acima das nossas possibilidades176 Pelo que vimos acima podemos dizer que Mounier é um utópico ele mesmo admite reconhecer a importância da utopia Eu acredito na utopia não aquela na qual a gente se evade mas naquela em que nos projetamos com uma vontade de ferro Cedo ou tarde esta força produz o seu fruto177 Por outro lado vemos que o tipo de utopia de que Mounier fala é bem diferente daquele em que alguns poderiam pensar A utopia não pode ser uma crença cega e alienante aquela que evade e fragiliza mesmo as mais belas intenções mas uma confiança consciente dos obstáculos capaz de mover o corpo o espírito as escolhas e as ações A utopia em Mounier aponta para a paixão para a vontade de ferro sem a qual os planos mais elaborados não podem ganhar realidade E assim percebemos que vida pessoal é 171 Cf JEANMARIE Domenach Mounier sugún Mounier p 183 172 Esse será um assunto central no quarto e último capítulo deste texto 173 O sentido do homem pessoal implica o sentido da existência e o sentido da história Isto equivale a dizer que o ideal personalista é um ideal histórico concreto que nunca contemporiza com o mal ou com o erro mas se concilia com a realidade histórica sempre impura em que as pessoas vivas estão inseridas para dela extrair de cada vez segundo as épocas e os lugares o máximo de realização MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p128 174 Cf SOUZA Luiz Alberto Goméz A Dimensão Política do Pensamento de Emmanuel Mounier in BINGEMER Maria Clara Lucchetti Testemunhas do Século XX Mounier Weil e Silone p 62 175 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 163 176 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 18 177 Idem Recueils posthumes correspondance Oeuvres vol IV p 828 64 um projeto que precisa dos seus enraizamentos naturais uma via que necessariamente precisa passar pela encarnação 243 Vida Pessoal e Encarnação A vida pessoal como reconhecimento da encarnação possui muitas facetas no pensamento de Mounier Um sentido que expressa esse reconhecimento é sem dúvida uma vida que não ignora a inserção e pertença do homem ao meio natural e isso passa pela valorização das implicações dessa condição como a valorização dos instintos e das paixões Mounier é decisivo na afirmação de que não há instinto mau mas mau uso dos instintos178 Paradigmática para a compreensão dessa questão é a defesa que Mounier faz da agressividade Para ele esse é um típico instinto que muita vezes é sufocado nos sistemas educativos segundo ele próprio muito frequentemente nos institutos cristãos o que representa um grande mau para as crianças179 Essa defesa não se confunde com apologia da violência principalmente quando essa evolui de atos de violência para estados de violência mas se trata de um elogio e reconhecimento da força como um princípio fundamental no desenvolvimento da vida pessoal como aquilo que capacita a pessoa para o afrontamento180 e para posicionamentos e convicções cada vez mais firmes e decisivos Nesse sentido podemos também destacar a importância que Mounier dá à paixão dentro da vida pessoal inclusive ligada à atividade espiritual A vida pessoal se configura como reconhecimento da encarnação também na conscientização necessária sobre a situação histórica da pessoa Isso implica o reconhecimento da influência do meio cultural e de toda a gama de preconceitos que nos envolve a partir de tal condição para a formação da pessoa Mas isso não representa uma total sujeição do homem à história Mounier recorda que um personalismo sabe bem que o homem não é determinado pelo seu meio mas não ignora por outro lado que é condicionado por ele181 Esse meio a que Mounier se refere se aplica aos elementos físicos biológicos econômicos e também ao contexto histórico e se é claro para Mounier que tais elementos condicionam a pessoa também é claro que tais condicionamentos não representam um 178 Cf MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 158 179 Cf Ibidem p 157158 180 Sobre a noção de afrontamento ver Idem O Personalismo p 97108 Capítulo IV 181 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 190 65 determinismo Desse modo a história que em parte faz o homem por ele também é feita para Mounier a história é uma cocriação de homens livres182 Valorização dos instintos conscientização da situação histórica nessas atitudes já podemos ver como a vida pessoal se configura como reconhecimento da encarnação mas sem dúvida para Mounier esse reconhecimento é mais concreto a partir do engajamento Poderíamos dizer que ele engloba as outras duas formas atitudes citadas acima e vai além O engajamento representa para o filósofo a encarnação da encarnação183 O engajamento é uma exigência essencial da vida pessoal184 é até a mais imediata das exigências185 Se a ação é um tema tão central no pensamento de Mounier é natural que ele não considere a vida pessoal como fruto da vida de um homem que é mero expectador da história e dos acontecimentos que o rodeiam Encarnado num contexto específico filho de uma história que lhe antecede e o acolhe o homem precisa darse conta dos fatos que o rodeiam reconhecer na sua liberdade a inseparável responsabilidade que sempre lhe é implicada e que aponta para o compromisso humano diante dos outros outros que não são inimigos mas semelhantes próximos iguais em dignidade O acontecimento deve ser nosso mestre interior186 dizia Mounier os apelos da história especialmente enquanto fazem sofrer a carne do homem na injustiça não podem passar despercebidos à pessoa No entanto o caminho de resposta a essa exigência do engajamento não está isento de armadilhas e Mounier alerta para alguns perigos que devemos evitar quando decidimos pela ação engajada Em primeiro lugar é preciso entender que engajamento não é mero recrutamento um jogarse num apelo externo muitas vezes acolhido sem a devida resposta interior e sem a convicção interior O engajamento é resposta a um apelo da vida concreta não uma resposta cega como se a pessoa fosse arrastada por uma onda um impulso e nada mais Tratase de uma resposta pessoal marcada pelo binômio liberdaderesponsabilidade movida por um espírito que é atento à paixão que é impulso que lhe dá o vigor necessário para um comprometimento concreto Se o motivo da ação não é um impulso cego fica mais fácil julgar nosso próprio agir e o valor do nosso engajamento e isso é importante para Mounier porque o êxito do nosso engajamento passa pelo reconhecimento de seu caráter relativo187 Por isso é importante sempre rever as ações por em questão nossas escolhas e decisões para que não caiamos no erro de absolutizar nossos engajamentos É justamente a partir da 182 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 145 183 Cf MARTINS Antonio Colaço Metafísica e Ética da Pessoa p 60 184 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 176 185 Cf MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 71 186 Mounier in LOREZON Alino A Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier p 6 187 Cf MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 81 66 consciência que temos das fragilidades impurezas por trás das causas dos nossos engajamentos que conseguimos nos manter longe do fanatismo e num estado de vigilância crítica188 Mas se nossos engajamentos não são absolutos o que nos garante que estaremos engajados numa causa justa Eis a questão não há segurança Não se trata de trocar o mito conservador da segurança pelo mito cego da aventura189 mas Mounier não tem dúvidas de que a sede desesperada pela segurança a qualquer custo é na verdade uma máscara para o imobilismo Quando fala da vocação Mounier insiste sobre a constante busca da pessoa num movimento que não cessa até a morte quando fala de propostas ideais e de utopia busca igualmente tirar a pessoa do imobilismo ao falar do engajamento não poderia ser diferente assim para ele a falta de segurança sobre a correção dos nossos julgamentos sobre se nossos engajamentos são os mais justos não é motivo para não agirmos Enquanto neste mundo não podemos agir senão sob causas impuras ou seja incertas e duvidosas190 esperar que a pureza das causas seja estabelecida para então agir é temerário e se revela um imobilismo e uma falta de reconhecimento da condição humana É isso o que ele quer dizer quando nos alerta sobre a tentação de uma filosofia sedenta por segurança e pela pureza abstrata Será tentada a esperar para se lançar na ação por causas perfeitas e meios irrepreensíveis O que equivale a uma renúncia à ação O absoluto não é deste mundo e não é comensurável a este mundo Só nos podemos comprometer em combates discutíveis e em causas imperfeitas Recusar por um tal motivo o compromisso engajamento é recusar a condição humana 191 No trecho a seguir Mounier repreende ainda mais severamente tal comportamento inclusive no meio cristão ele próprio era cristão e o denuncia como uma máscara do imobilismo Esta pressa impaciente dos desejos de certa perfeição cristã que pode ser imaginada mas não pode ser praticada e da qual muitos tiram lições mas ninguém transforma em ações é até oposta ao dever cristão a mínima execução é mais útil que os grandes desejos das coisas afastadas do nosso poder Nós às vezes nos divertimos tanto em ser bons anjos que deixamos de ser bons homens ou boas mulheres E o que será esse desejo angélico senão a melhor astúcia do instinto de imobilidade 192 188 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 165 189 Cf Ibidem p 176 190 Cf Idem Qué es el Personalismo p 4647 191 Idem O Personalismo p 163 192 Idem O Compromisso da Fé p 7374 67 Para Mounier não somente nunca podemos conhecer situações ideais mas a maior parte das vezes não escolhemos os pontos de partida que mais solicitavam a nossa ação193 Essa é a nossa situação e não podemos fugir do caráter relativo e ambíguo das nossas causas Mas como não podemos fugir da ação é preciso assumir o risco O importante é que nosso engajamento seja imbuído do necessário equilíbrio194 entre a coragem a força e a revisão crítica de tal modo o engajamento comporta uma fé e um dom mas uma fé perpetuamente em revisão É um ato viril e nunca um entusiasmo infantil Se seu coração é quente sua cabeça é fria Do contrário não fale mais de engajamento mas de delírio195 244 Vida pessoal e Espírito Vimos até aqui que para Mounier o imobilismo é um dos principais inimigos da vida pessoal Quando trabalhamos a relação das dimensões da pessoa e a vida pessoal assim como a postura que favorece a efetivação das mesmas notamos que o imobilismo é rejeitado veementemente seja no movimento necessário de saída de si e o encontro com outrem dimensão da comunicação seja na exigência de engajamento que se sobrepõe à insegurança de causas relativas dimensão da encarnação seja pela busca incessante de uma vocação que passamos toda a vida a decifrar dimensão da vocação Isso se deve ao fato de Mounier considerar que a pessoa é um ser feito para se superar ir além De tal modo a transcendência humana se mostra como um dos traços fundamentais da vida pessoal E nesse ponto podemos perceber a estreita relação entre o espírito e a vida pessoal pois a transcendência humana se origina de duas características que o espírito concede à pessoa a consciência e a liberdade Essas são as duas grandes marcas da transcendentalidade humana e elas transfigurarão toda a existência pessoal196 Além de elaborar uma concepção sobre tais conceitos Mounier reconhece exigências ligadas à consciência e à liberdade ao menos enquanto relacionadas a uma vida especificamente humana Mounier reconhece o papel do conhecimento como contributo importante da consciência para a transcendentalidade humana isso se vê claramente quando ele nos recorda 193 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 164 194 O sucesso da ação pertence àquele que junta o máximo de audácia ao máximo de preparação Idem Traité du Caractère Ouvres II p 426 195 Mounier in MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 179 196 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 72 68 em O Personalismo que só o homem conhece o universo que o absorve197 e vê nessa capacidade uma face de sua transcendência Além do conhecimento dos objetos Mounier nos recorda também da capacidade que a consciência nos dá de nos reconhecermos como sujeitos desse conhecimento e como sujeitos autônomos198 mas se Mounier parasse nisso em nada se diferenciaria da postura já inaugurada na modernidade Para Mounier é preciso inserir a consciência no conjunto global da existência pessoal199 e isso passa pelo reconhecimento de que tentar isolar o ser da pessoa apenas na sua caracterização como ser cognoscente é possível apenas numa abstração por isso Mounier afirma Eis a omissão capital o pecado original do racionalismo Esqueceu ele que o espírito cognoscente é um espírito existente e que o é não em virtude de uma qualquer lógica imanente mas de uma decisão pessoal e criadora200 Para Mounier o conhecimento como representação é apenas uma das formas possíveis de minha consciência privilegiar apenas esse sentido é um erro Segundo o autor não há consciência neutra e isso porque reconhece o seu caráter intencional A consciência já é previamente engajada situada num contexto que não cessa de deixar suas marcas É nessa condição de ser antes um espírito existente que o espírito cognoscente se efetiva ela a consciência não é um vago reflexo das coisas à superfície de nossa sensibilidade ela é iniciativa de ação e de ação intensa201 A pessoa é espírito existente por sua própria condição mas também por uma decisão A consciência se insere nessa escolha não meramente como representação como o olhar do espírito colocado perante o mundo202 como seu objeto de espetáculo203 mas enquanto se configura como consciência engajada como etapas prévias e intensificantes da apreciação da ação204 A partir dessa perspectiva Mounier reconhece o sentido integral da consciência Outra perspectiva da relação do espírito com a vida pessoal se dá a partir da liberdade Mounier é ciente de que ele não é o único a exaltála é ciente também de que tantos quantos são os seus defensores são as diferentes percepções sobre a liberdade Segundo Mounier essa confusão de percepções se dá porque cada vez que a isolamos da estrutura total da pessoa exilamos a liberdade para alguma aberração205 Num capítulo específico sobre a liberdade na 197 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 60 198 Cf Ibidem p 6061 199 Ibidem p 61 200 MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 2223 201 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 61 202 MOUNIER Emmanuel Introdução aos Existencialismos p 30 203 Ibidem p 30 204 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 61 205 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 109 69 obra O Personalismo intitulado liberdade sob condições Mounier nos faz referência à noção de natureza humana Para ele essa é uma noção confusa e que precisa ser purificada mas à medida que tal noção é entendida numa perspectiva personalista podemos fazer uma analogia das implicações de tal conceito sobre a existência pessoal e com as implicações sobre a liberdade quando esta é compreendida na estrutura total da pessoa A noção de natureza é uma noção confusa que é preciso purificar Mas exprime que a existência ao mesmo tempo que é manifestação espontânea é também espessura densidade ao mesmo tempo que é criação é dado Não sou somente o que faço o mundo não é somente o que quero Sou dado a mim próprio e o mundo antecedeme Sendo esta a minha condição há na própria liberdade um peso múltiplo o que vem de mim próprio do meu ser particular que a limita o que vem do mundo das necessidades que a constrangem e dos valores que a primem 206 Para Mounier não se pode confundir a liberdade com uma pura espontaneidade pensar numa liberdade absoluta é apegarse a um mito207 A liberdade está presente na vida da pessoa de um outro modo tudo o que diz respeito à pessoa não se desenvolve numa liberdade pura mas ante mil solicitações e pressões de todo o gênero208 Ser livre para Mounier é inicialmente aceitar essa condição de limitação assim como os obstáculos que a pessoa e junto com ela a sua liberdade está sujeita é o primeiro passo não o único a pessoa precisa se apoiar nessa condição e daí partir para um contínuo processo de transcendência de superação209 Porém isso para Mounier não representa um problema na verdade esses condicionamentos e limitações são a condição de possibilidade para uma liberdade plenamente humana uma vez que para ele a liberdade tal como o corpo só progride perante obstáculos210 E essa imagem é realmente muito sugestiva imaginemos a situação de um astronauta que se perdesse acidentalmente de uma estação espacial e ficasse à deriva no espaço No tempo que lhe restasse não poderia fazer muita coisa para voltar à nave pois a falta de gravidade que poderia nos trazer a imagem de uma total liberdade dependendo da situação vai dificultar ou até mesmo impedir o controle dos seus movimentos Nessa situação também não há o impulso que é possível somente numa realidade em que existe atrito As mesmas forças que condicionam fisicamente o homem são as que podem esmagálo e as que permitem o seu movimento desde os mais simples aos mais complexos 206 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 113 207 Cf Ibidem p 113 208 Ibidem p 203 209 Cf Ibidem p 116 210 Ibidem p 116 70 Para Mounier a liberdade humana se dá unicamente sob condições mas isso não a diminui pois ocorre justamente o contrário Cada novo determinismo que os sábios descobrem é mais uma nota na gama da nossa liberdade Enquanto se desconheceram as leis da aerodinâmica os homens sonhavam voar quando o sonho se inseriu num feixe de necessidades voaram 211 Mas se a liberdade humana não é absoluta não é tampouco uma condenação Como poderia dizer que a liberdade é minha se não a posso recusar212 Fazendo referência a Gabriel Marcel Mounier nos recorda que o homem livre é o homem que pode prometer e o homem que pode trair213 Essa traição nos remete à possibilidade sempre existente da escolha do mal e à possibilidade que cada pessoa tem de não agir como sujeito livre e responsável é uma traição primeiramente para consigo mesmo e depois para com os outros que podem depender da minha decisão livre e responsável Obviamente que a possibilidade da traição é sempre presente e se não fosse não falaríamos de um contexto humano mas quando falamos de vida pessoal e de uma existência autenticamente humana a liberdade deve ser vivida para além da traição Para Mounier a liberdade que nos alcança num nível ontológico deve ser completada no nível existencial daí que só se pode falar de uma pessoa realmente livre quando ela escolhe ser livre A pessoa não encontrará a liberdade dada e constituída nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade214 Mounier reconhece que a conquista de uma liberdade espiritual consciente dos perigos de alienação que envolve o ser humano não é fruto de uma bela história do desenvolvimento da pessoa sozinha no reduto da sua consciência e de sólidas reflexões É claro que é preciso dá às pessoas uma base social e política que lhes facilite as vias Não basta proclamar a liberdade nas constituições ou nos discursos é preciso assegurar comuns condições de liberdade215 temos de nos preocupar com as liberdades tanto como com a liberdade216 Mas esse é só o primeiro passo Assim como a revolução espiritual deveria ser 211 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 44 212 Cf Ibidem p 113 213 Ibidem p 114 214 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 112 215 Veremos de modo mais detalhado um pouco à frente quando tratarmos da crítica de Mounier ao capitalismo que para Mounier um dos principais erros da estratégia liberal foi exatamente imaginar que todos já partiam de uma condição comum de liberdade 216 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 116117 Com a expressão as liberdades Mounier se refere às liberdades jurídicas e políticas direitos que se podem garantir à pessoa 71 necessariamente precedida de uma revolução estrutural material uma postura de liberdade deve ser precedida de uma defesa política das liberdades mas em nenhum dos dois casos o primeiro passo é garantia do segundo esse sempre depende da decisão pessoal que não é somente um ato de escolha mas adesão livre e convicta Não se dá a liberdade aos homens do exterior com facilidades de vida ou com constituições adormecem nas suas liberdades e acordam escravos As liberdades não são mais do que possibilidades conferidas ao espírito de liberdade 217 É preciso saber também que as liberdades não são coisa alguma sem o espírito de liberdade pelo qual a pessoa está atenta a lutar contra as formas e alienação218 É por essa postura que a pessoa se posiciona e se diferencia da massa reconhece sua condição de agente e sua responsabilidade e também reconhece as limitações os obstáculos e os perigos de alienação que sempre se antepõem à sua liberdade Desse modo a decisão pela liberdade nunca será uma escolha fácil a batalha da liberdade não termina219 245 Considerações finais sobre a vida pessoal De modo resumido podemos dizer que a vida pessoal é manifestação da efetivação das dimensões da pessoa encarnação comunicação e vocação e manifestação da vida espiritual O espírito elemento específico não exclusivo da pessoa é a chave de leitura para entendermos a forma como as dimensões pessoais precisam se efetivar de modo a formarem a vida pessoal No exame que fizemos sobre esse processo de realização da pessoa em suas dimensões já afirmamos que a transcendência é um elemento fundamental da vida pessoal e consequentemente o imobilismo é uma das principais alienações a serem evitadas É justamente o espírito que dá ao homem as principais notas de sua transcendentalidade a consciência e a liberdade trazendolhe um horizonte mais amplo de modo que para o homem há sempre a possibilidade de ir além por sobre a vida há para ele uma outra existência a conquistar220 217 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 120121 218 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 169 219 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 120 220 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 62 72 Por tudo isso que acima resumimos fica fácil perceber que a vida pessoal é intimamente ligada à vida espiritual e assim também fica fácil entender porque Mounier chegou a falar de despersonalização e de desespiritualização como palavras equivalentes221 Uma leitura atenta sobre o que foi dito nesse trabalho sobre a noção de espírito no pensamento de Mounier é suficiente para afastar as possíveis polêmicas que tal afirmação poderia causar Basta lembrar que quando falamos de espírito no pensamento de Mounier já temos de trazer de modo implícito toda a presença da corporeidade humana Espírito e corpo são indissociáveis na antropologia mounieriana Tal visão de espírito nos faz perceber que a vida pessoal como o movimento de transcendência e de superação não significa afastamento da realidade material da vida humana De tal modo a vida pessoal é uma transcendência que se realiza na imanência sem nunca negála Assim percebemos que o motivo da revolução personalista e comunitária que é a busca e a proposta original de Mounier deve ser indissociavelmente estruturalmaterial e espiritual Embora aqui exista sim uma hierarquia pois a revolução espiritual é a meta final ambas são indispensáveis sendo a reforma estrutural ainda mais urgente222 É verdade que uma mudança estrutural não é garantia de efetivação da vida pessoal em cada pessoa mas nem por isso ela deixa de ser necessária pelo contrário é fundamental Por isso nos dois últimos capítulos desse trabalho tratarei mais especificamente das implicações sociopolíticas que emergem da visão de Mounier sobre a pessoa e sobre a vida pessoal Trabalharei inicialmente a crítica de Mounier ao sistema vigente em sua época que ele classificou como desordem estabelecida e no último capítulo buscarei evidenciar qual a proposta de sociabilidade que Mounier defende e porque ela facilita a emergência da vida pessoal 221 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 77 222 Idem Qué es el Personalismo p 2123 Ver também MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 91 73 CAPÍTULO III Crítica de Mounier às estruturas sufocantes da vida pessoal A filosofia de Mounier nasce do seu olhar sobre a pessoa no mundo e nesse olhar de início o que mais o marcou profundamente foi a marca da miséria Essa que Mounier chamou de inferno na terra223 foi o peso que fixou para sempre o pensamento de Mounier na realidade e o preservou de uma filosofia temerariamente apartada da situação concreta do homem Por isso podemos dizer que a sua preocupação teórica em relação à pessoa apesar de fundamental não esgota a extensão do personalismo mounieriano Sua antropologia se volta para o aspecto político sempre em vista de uma reforma estrutural que associada a uma reforma de valores possa viabilizar uma sociedade que reconheça a pessoa em seu valor e dignidade A parte final do último capítulo versava sobre a vida pessoal Falamos que esse é o modo especificamente humano de existência e que se trata de um modo de vida que deve ser escolhido livremente No entanto tal tomada de decisão está envolvida num contexto mais amplo do que normalmente pensamos É preciso ter em mente que por trás dessa escolha está em questão a capacidade singular de buscar uma vida qualificada e também o contexto concreto da vida daquela pessoa Para Mounier a estrutura sociopolítica exercer sim influência sobre a necessária decisão a respeito de uma vida mais propriamente humana o que Mounier chamou de vida pessoal Se não é o elemento determinante é de certo um elemento indispensável Mas a estrutura sociopolítica pode influenciar positivamente ou negativamente Neste capítulo mostraremos quais os modelos de organização social que segundo Mounier dificultam a vida pessoal ou até a combatem Aqui entramos nas análises que Mounier fazia dos diversos sistemas políticos Como dito essas análises têm como pano de fundo a sua antropologia de modo que tais sistemas são analisados segundo a contribuição que dão ao processo de personalização ou ao contrário segundo o impulso que dão ao processo de despersonalização Uma das principais obras de Mounier em que podemos ver de modo mais explícito o seu pensamento político é o Manifesto ao Serviço do Personalismo Nessa obra Mounier fala que é comum a tentativa de agrupar sob uma mesma espécie o Fascismo o NacionalSocialismo e o Marxismo e isso não se dá completamente sem razão uma vez que existe um objetivo comum entre eles que lhes dá certa unidade 223 Mounier in LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p80 74 Do ponto de vista das exigências da pessoa humana que é quem julga em última instância as incompatibilidades mais profundas entre estas concepções desaparecem com efeito sob a sua pretensão comum de submeter as pessoas livres e o seu destino singular à discrição de um poder temporal centralizado 224 Mas apesar da existência de um sentido profundo que os une a submissão da pessoa num esquecimento ou indiferença à sua liberdade a um poder centralizado não se pode negligenciar as suas diferenças por isso a análise de Mounier se volta para cada sistema em separado Sua crítica é dividida em duas partes A primeira parte é uma crítica exclusiva ao capitalismo pois para ele é sem dúvida o principal opositor da vida pessoal Na segunda parte Mounier comenta inicialmente o Fascismo e o Nazismo e em separado fala do Marxismo não por acaso ele o separa dos dois primeiros Nas páginas seguintes irei comentar esses mesmos temas mas na ordem inversa das partes Iniciamos portanto com o Fascismo o Nazismo e o Marxismo finalizando com a crítica ao capitalismo Essas considerações serão muito importantes para entendermos melhor os aspectos que terão de ser superados quando Mounier propuser a construção de uma nova sociabilidade que deverá se constituir como uma comunidade personalista 31 As Civilizações fascistas e NacionalSocialistas Mounier começa a sua análise sobre o Fascismo distinguindo dois sentidos com os quais se costuma entender tal termo No sentido estrito o termo Fascismo qualifica o regime que se implantou na Itália em 1922 e só ele225 Num sentido mais amplo o termo é empregado para designar o seguinte fenômeno Num país esgotado ou desiludido ou pelo menos possuído de um forte sentimento de inferioridade produzse uma colisão entre um proletariado desesperado tanto no plano econômico como no plano ideológico e as classes médias dominadas pela angústia perante a proletarização Uma ideologia cristaliza mercê do poder intuitivo de um chefe servese ela ao mesmo tempo do arsenal histórico das virtudes desprotegidas honestidade reconciliação nacional patriotismo sacrifício a uma causa dedicação a um homem afirmação revolucionária que arrasta os mais jovens e os mais exaltados 226 224 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 38 225 Ibidem p 39 226 Ibidem p 3940 75 Mounier tem o cuidado de especificar os dois sentidos pois sob esse termo ele quer abrigar o sentido de um estilo de vida de um tipo de homem um tipo de sociedade227 muito mais do que a definição de um regime específico Um primeiro aspecto que Mounier destaca no Fascismo é uma oposição entre o primado da força e o primado do espiritual É uma concepção que se volta para o valor da ação Para Mounier há inicialmente um aspecto positivo nessa postura pois representa uma negação do racionalismo burguês colocando o homem diante da necessidade de tomada de posição e de dedicação para além da simples análise do mundo sem se dar conta das próprias responsabilidades228 Mas para Mounier tratase de uma verdade que o Fascismo entende de modo confuso Desde cedo o jovem fascista é levado a desconfiar de toda participação da inteligência no comportamento ativo e a repelir em nome do realismo toda a jurisdição sobre a política dos valores universais do espírito229 de tal modo essa legítima reação contra o racionalismo burguês acaba prejudicada por uma confusão desnecessária entre o racionalismo frente à inteligência e à espiritualidade É preciso também reconhecer que existe no ímpeto fascista um verdadeiro impulso espiritual que move tais homens no ardor de ter encontrado um sentido para a vida No entanto se é verdade que uma exaltação dirigida presente nesse regime desperta apesar de tudo em algumas regiões profundas do homem um desejo insaciado de comunhão de serviço de fidelidade tanto mais cruel é ver estes impulsos submetidos a uma nova opressão da pessoa230 Isso se dá porque tais valores que em si são legítimos são submetidos a uma visão de homem e a um estilo de vida decadentes de tal modo os valores são distorcidos e acabam voltandose contra a própria pessoa Por isso Mounier vai encontrar no Fascismo um latente antipersonalismo Mounier também destaca no Fascismo um antiindividualismo De início parece algo muito positivo inclusive parece estar em sintonia com o personalismo mas a análise desse ponto exige um pouco mais de prudência Para Mounier ainda aqui poderíamos regozijarnos com a reação se ela não comprometesse do mesmo passo as garantias inalienáveis da pessoa humana e com a pretensão de restaurar a comunidade social não a estabelecesse sobre a opressão231 Vemos ainda mais claro como a pessoa é atacada em sua singularidade quando lemos a Carta do Trabalho que segundo Mounier é a Declaração dos Direitos no 227 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 40 228 Cf Ibidem p 41 229 Ibidem p 42 230 Ibidem p 46 231 Ibidem p 46 76 Fascismo Italiano em seu art 1º Lá vemos tanto a subordinação do indivíduo à Nação como a identificação da Nação com o Estado232 A pessoa em sua singularidade acaba perdendo o sentido próprio enquanto deve submeterse a uma pertença ao Estado Sob o pretexto da busca pelo bem da Nação o Fascismo acaba por se configurar como um radical antipersonalismo O individualismo nietzscheano que se afirma em certas palavras do Sr Mussolini a complacência do fascismo a princípio pelo liberalismo econômico não nos convencem O antipersonalismo do fascismo italiano é radical O indivíduo vive na Nação de que é um elemento infinitesimal e passageiro e de cujos fins ele deve se considerar o órgão e instrumento Gino Arias Não somente desprezível a pessoa é o inimigo o mal É aqui que se manifesta o profundo pessimismo acerca do homem que está na base do fascismo como de todas as doutrinas totalitárias desde Maquiavel e Hobbes o indivíduo tende inevitavelmente para o atomismo e o egoísmo quer dizer para o estado de guerra à insegurança e à desordem Só o artifício da razão engrenado numa hábil mecânica das paixões dirão os latinos ou só a afirmação incondicional da força pública dirão os germanos podem engendrar a ordem civil que refreia o mal e organiza o caos e para reprimir em vez de um mínimo de governo segundo a exigência liberal inspirada pelo otimismo rousseauniano o que o indivíduo precisa é de um máximo de governo Esta ordem civil é indiscutível porque só ela é humana e espiritual Ela é mesmo divina porque o Estado na literatura fascista afirmase muitas vezes como uma Igreja mais do que uma Igreja uma vez que ele não reconhece realidade às pessoas ou aos grupos intermediários senão como integrados em sua própria substância 233 No NacionalSocialismo não temos mais tão presente a mística do Estado pelo menos não explicitamente não há uma exposição direta da submissão do indivíduo ao Estado de modo que um cidadão do regime nazista ficaria escandalizado se lhe afirmassem que ele vivia sob uma ditadura um fascista por sua vez se orgulharia de pertencer a uma ditadura A realidade primeira a substância mística aqui já não é o Estado mas a comunidade do povo o Volkstum nacionalidade234 Sob as referências da terra do sangue e da comunidade do povo buscase uma mística das origens puras desse povo Mas apesar das diferenças destacadas Mounier reconhece nesses sistemas uma opressão semelhante à pessoa Sistemas bem distantes da visão que Mounier defendia de comunidade equivalendo ao que Mounier chamava de sociedade do nósoutros assunto que trataremos no capítulo seguinte na abordagem sobre os graus da sociabilidade em relação à comunidade personalista em que a pessoa tinha a independência e a iniciativa negadas ou constrangidas 232 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 47 233 Ibidem p 4849 234 Ibidem p 50 77 sob a sombra de um regime235 e ao fim de um processo de assimilação a um todo que não é um nós personalizado as pessoas desembaraçavamse de suas responsabilidades vontades da própria consciência colocandoas nas mãos de um salvador que julgará em lugar deles deliberará em lugar deles agirá em lugar deles236 Se é verdade que nem todos eram instrumentos passivos nesse cenário é fato que as reações eram exceções A coletividade engloba a pessoa e a despersonaliza em vez de ascendêla a pessoa é espoliada já o era na desordem no capitalismo éo agora por uma ordem imposta Mudouse de estilo não de plano 237 32 O Marxismo Apesar de Mounier considerar o Marxismo como uma teoria que representa em certos elementos um espaço de despersonalização certamente não o considera no mesmo grau quando ele observa no Fascismo e no Nazismo e também no capitalismo como veremos enquanto destes Mounier nada esperava certamente no Marxismo Mounier via sementes de serviço à humanidade e por isso esperava superar certos problemas de ordem filosófica a fim de conseguir um diálogo mais amplo entre os personalistas e os marxistas Por isso Mounier sempre afirmou a necessidade de não se cair num antimarxismo ingênuo que cai por terra ante as primeiras leituras de Marx A superficialidade dessas críticas rasteiras acaba por confundir algumas questões O antimarxismo confunde comumente uma série de realidades que nem sempre se encontram reunidas e que muitas vezes divergem o movimento proletário a sua sistematização no pensamento de Marx a deturpação deste pensamento pelo marxismo que corre às ruas a corrupção em segundo grau deste marxismo vulgar pelas exposições ilustres reveladoras de incompetência ou de má fé que deles fazem os seus adversários o comunismo russo o que nele é comunista e o que é russo enfim a direção dada ao comunismo por novas equipes e dirigentes 238 Mounier entendia que a essência do cristianismo oferece um diálogo mais aberto aos materialistas contemporâneos entendase aqui especialmente os marxistas do que as 235 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 54 236 Ibidem p 54 237 Ibidem p 54 238 Ibidem p 56 78 sutilezas e as evasões idealistas239 e aqui se reforça o fato de que Mounier realmente era avesso aos pseudoespiritualismos espiritualismos sem vida e que se aproximava do Marxismo enquanto este apontava para a necessidade de pensar o mundo em suas relações concretas para além das abstrações idealistas Parte da teoria da alienação em Marx a alienação do trabalhador que vê seu produto como algo estranho a si próprio e do possuidor que é possuído por suas posses é profundamente elogiada por Mounier tanto que ele identifica aqui um dos pontos em que o Marxismo mais se aproxima do personalismo240 Atrailhe a aspiração marxista de desalienar ao homem devolvendolhe a propriedade de sua vida de seu trabalho de sua atividade criadora e o exercício da responsabilidade não gozada solitariamente mas comprometida numa aventura audaz de transformação da história para devolver ao homem o protagonismo do qual foi expulso 241 Segundo Mounier o objeto imediato desse processo de desalienação é a subversão do capitalismo e o estabelecimento de uma nova infraestrutura econômica242 Mas a partir desse passo como se deveria pensar o problema do homem singular do homem como pessoa a partir do Marxismo243 Mounier reconhece que Marx e o marxismo primitivo não foram tão insensíveis a essa questão como se costuma acusálos o marxismo sempre apontou como fim último da revolução a libertação do indivíduo o reino da liberdade e o desaparecimento do Estado Estas fórmulas com efeito muito mais vivas e orgânicas no marxismo primitivo do que nos defensores de uma ditadura provisória que já dura desde a vinte anos testemunham que o problema da pessoa foi entrevisto por ele ao passo que um fascista consequente se recusa a pôlo 244 De fato para Mounier o problema do homem singular não foi completamente esquecido por Marx e o marxismo primitivo o que já é um avanço em relação ao Fascismo 239 MOUNIER Emmanuel Que és el Personalimo p 108 240 Parece que num momento do seu pensamento Marx tenha ficado tão próximo quanto possível de uma dialética personalista em sua análise da alienação Alienação do trabalhador em um trabalho estranho do burguês nas posses que o possuem do consumidor em um mundo de mercadorias desumanizadas pela avaliação comercial a nosso ver tantas formas de despersonalização quer dizer de uma desespiritualização progressiva que substitui um mundo de liberdades vivas por um mundo de objetos Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 7677 241 LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 106 242 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 63 243 As críticas que Mounier destina ao Marxismo são dirigidas menos a Marx do que aos marxistas Não podemos ignorar importantes críticas de Mounier à visão de Marx sobre o homem mas de modo geral a sua preocupação maior era um enfrentamento honesto com os comunistas para Mounier o fenômeno do comunismo tinha um peso muito grande na Europa para ser tratado com indiferença ou com superficialidade e com os teóricos marxistas de sua época 244 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 6364 79 no qual a questão nem mesmo é posta O problemático é que ele foi apenas entrevisto pois foi tratado como um problema de segunda ordem passível de adiamento Na citação que vemos acima fica claro que para Mounier o Comunismo real especificamente o que foi efetivado na Rússia entendeu menos ainda a questão e acabou por distorcer essa fórmula numa ditadura provisória que já durava mais de 20 anos É justamente dessa perspectiva do Marxismo que ficou conhecido como marxismo ortodoxo especialmente na figura dos leninistas que Mounier irá se afastar com mais intensidade e a ela dirigir suas mais severas críticas245 Não é difícil entender o porquê da intensidade dessas críticas Um socialismo que se centra na esfera do Estado e degenera seus revolucionários numa burocracia que detém a posse dos meios de produção no lugar do povo e engendra uma nova opressão sobre a pessoa representa para Mounier a forma mais dura da contribuição para o processo de despersonalização que se pode observar no universo marxista Mas voltando à questão do adiamento do problema do homem singular diante de um Henri Lefebvre que afirmara que durante cinquenta anos os problemas do homem não se porão246 Mounier responde que não há tempo a esperar é preciso desde já centrar toda a revolução no valor da pessoa Esse adiamento foi pretexto para o totalitarismo comunista à época de Mounier porém já em Marx representava problemas De tal modo vemos que para Mounier esse processo de despersonalização não está presente somente no Socialismo real Por mais que Marx não apontasse para tamanhas concessões que o Socialismo real deu ao Estado em outras palavras o endeusamento do Estado tal adiamento nos remete inicialmente ao questionamento sobre o problema da possibilidade de se educar para a liberdade numa ditadura mesmo que provisória e também nos remete ao fato não menos problemático de que não era da pessoa que Marx partia em sua proposta de revolução Por tudo isso o fato de Marx não ter excluído o homem singular de seu projeto filosófico não impediu Mounier de apontar sérios problemas antropológicos que estão na base do Marxismo A existência do homem pessoal está para o Marxismo inteiramente enraizada na infraestrutura econômica do seu meio e do seu tempo247 A base material rege todo o universo do homem uma vez que a matéria é o princípio constitutivo de tudo Mas ao menos em Marx o materialismo marxista não é tão reducionista quanto aos temas da autoconsciência da liberdade da linguagem realidades humanas mais complexas do que as demais atividades ou características físicas do homem essas são na realidade as 245 LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 107 109 246 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 58 247 Ibidem p 61 80 características pelas quais segundo Marx o homem encontra sua especificidade em relação aos outros animais248 A ressalva de Marx seria a de que essas atividades ou características fossem apenas aspectos mais complexos da matéria ou seja não existe outro princípio ao qual elas sejam atribuídas e que na verdade foi o costume idealista de romper com as amarras do mundo concreto que acabou gerando a convicção de que tais atividades e características seriam atribuídas ao espírito A base de tal sistema é a realidade materialeconômica essa é a infraestrutura que determina as demais realidades humanas as diversas superestruturas sociais a política o direito a arte a religião entre outros249 Mounier reconhece que em Marx essa relação não é de pura passividade pois A interação da infraestrutura econômica e da superestrutura ideológica filosofia moral religiões direito etc não é em sentido único Marx e Engels várias vezes afirmaram que os reflexos ideológicos a que nós chamamos o espiritual conquanto não tenham realidade própria e sejam apenas produto dos processos econômicos reagem todavia por seu turno sobre esses processos materiais 250 Mas apesar disso não se pode negar que no fim das contas o fator determinante é a infraestrutura as condições materiais da produção social objetivas são determinantes em última instância251 Por mais rodeios que se queira fazer no pensamento de Marx o primado do econômico é o ponto chave para todas as questões que envolvem o homem Diante desse quadro Mounier aponta qual é para o Marxismo o motor essencial da história é o trabalho infalível da razão científica prolongada pelo esforço industrial para tornar o homem segundo o ideal cartesiano mestre e senhor da natureza252 Mounier apresenta claramente esse projeto e ideal de Marx e diante de tal explicação podemos nos surpreender crendo que Marx foi muito ingênuo ou que Mounier exagerou em sua crítica Mas isso acontece porque esquecemos que a maturação histórica dos fatos nos permite julgar com mais clareza certos acontecimentos passados porém enquanto eles estão acontecendo nem sempre é tão fácil fazer um bom discernimento sobre as influências que nos atingem ou sobre os fatos que temos de julgar Hoje parece a quase todos que a visão de uma razão científica 248 Cf VAZ Henrique de Lima Antropologia Filosófica p 119 249 Cf AGUIAR Odílio Alves OLIVEIRA Manfredo Araújo de NETTO Luiz Felipe Orgs Filosofia Política Contemporânea p 26 250 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 5960 251 Ibidem p 65 Ver também AGUIAR Odílio Alves OLIVEIRA Manfredo Araújo de NETTO Luiz Felipe Orgs Filosofia Política Contemporânea p 27 252 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 66 81 onipotente e garantidora do progresso incessante é bastante limitada mas no século XIX era difícil para Marx como para a maioria dos pensadores ficar imune à confiança positivista nos poderes da razão e da ciência253 Por isso para o Marxismo A imperfeição das condições econômicas é a única fonte do mal entre os homens e no próprio homem Desenvolvamos a ciência organizemos o trabalho Graça operária da salvação coletiva e pouco a pouco irão sendo debeladas a miséria a doença o ódio e talvez a morte A insuficiência das condições materiais de vida é o único obstáculo ao desenvolvimento do Homem Novo 254 Daí que à época de Mounier para os marxistas não restava outra convicção sobre a crise da sociedade crise econômica clássica crise de estrutura Opera sobre a economia o enfermo se restabelecerá255 É uma posição natural para um sistema materialista sistema que como acenamos acima sofre forte influência de um contexto histórico positivista256 Mas o fato de haver explicação para tal convicção não significa necessariamente que há também justificação fundamento Segundo Mounier o Marxismo acertou quando falava da urgência de uma transformação econômica mas errou ao supervalorizar os valores econômicos Não podemos deixar de dar razão ao marxismo quando afirma um certo primado do econômico Geralmente só despreza o econômico aqueles que deixaram de ser perseguidos pela neurose do pão cotidiano Em vez de argumentos um passeio pelos subúrbios talvez fosse preferível para os convencer Na ainda tão primária fase da história em que vivemos as necessidades os hábitos os interesses e preocupações econômicas determinam maciçamente os comportamentos e opiniões dos homens Daqui não resulta que os valores econômicos sejam exclusivos ou sequer superiores a outros o primado do econômico é uma desordem de que urge libertarmonos 257 Para Mounier a lacuna essencial do marxismo é a de ter desconhecido a realidade íntima do homem a da vida pessoal258 A inserção do homem na história é para o Marxismo uma questão fundamental e Mounier não discorda no entanto para Mounier essa visão não estava aberta para outras realidades humanas em especial para a interioridade e 253 Cf EAGLETON Terry Marx e a Liberdade p 12 254 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 6667 255 Idem Que és el Personalimo p 20 256 Ainda sobre a influência positivista no Marxismo ver O humanismo marxista aparece com efeito como a filosofia última de uma era histórica que viveu sob o signo das ciências físicomatemáticas do racionalismo particular e estreitíssimo que delas se originou da forma industrial inumana centralizada que encarna provisoriamente a suas aplicações técnicas A assimilação freqüente nos espíritos marxistas do espiritual do eterno ou do individual ao biológico é significativa desse preconceito de base Ibidem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 67 257 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 179180 258 Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 76 82 acabou por gerar no Marxismo uma visão unilateral do homem De tal modo o Marxismo buscou a solução biológicoeconômica para os problemas humanos mas como a realidade humana não se esgota nesses aspectos essa solução é invariavelmente frágil se desvinculada das mais profundas dimensões do homem Mounier questiona ao Marxismo sobre o papel da pessoa no projeto revolucionário que ele almeja O erro dos matemáticos escrevia Engels foi o de crerem que um indivíduo pode realizar por sua própria conta o que unicamente pode ser feito por toda a humanidade no seu desenvolvimento contínuo Nós propagamos que o erro do fascismo e do marxismo é o de crer que a nação ou o Estado ou a Humanidade pode e deve assumir no seu desenvolvimento coletivo o que só cada pessoa pode e deve assumir no seu desenvolvimento pessoal 259 Por isso segundo Mounier por trás do projeto marxista da construção de um homem novo e antes uma sociedade nova há um pessimismo radical em relação à pessoa disfarçado de otimismo pelo homem coletivo260 Esse projeto do Marxismo nasce da sua visão sobre a alienação Por mais que Mounier elogie muitos aspectos dessa teoria não deixa de denunciar que há aqui o pressuposto de que o despertar humano de sua condição de expropriado não é possível a partir do homem singular este precisa ser visto como parte da massa a verdadeira instância firme sólida e criadora a massa acaba sendo entendida como o instrumento de formação da pessoa261 Mounier como dizia Jean Lacroix não caminhou do personalismo à pessoa mas da pessoa para o personalismo262 desse modo querer construir toda uma nova civilização para depois pensar no homem novo seria para Mounier inverter a ordem das mudanças necessárias263 Justamente por essa necessidade de se ter a pessoa como o ponto de partida Mounier insistia que o Marxismo não tem direito mesmo a pretexto de 259 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 97 260 Cf Ibidem p 77 261 Cf Ibidem p 77 262 Jean Lacroix Esprit dezembro 1950 p 841 Mounier Educador in MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 131 263 É salutar esclarecer que quando Mounier afirma que a pessoa é o ponto de partida não está dizendo que seria necessário esperar que a reforma espiritual estivesse pronta para então se pensar nas mudanças estruturais veremos esta discussão com mais detalhes no capítulo seguinte Para Mounier a reforma das estruturas políticas e econômicas deve ser o primeiro passo prático da revolução mas sempre tendo por base a referência da pessoa como um absoluto Ou seja as reformas mais urgentes no âmbito estrutural devem ser buscadas de modo urgente mas se logo no início de tais reformas o absoluto da dignidade pessoal já está fincado no projeto da revolução almejada não se corre o risco de adiar para um futuro incerto tais questões e o mais importante a pessoa será respeitada em todos os passos da revolução Claro que algumas mudanças no âmbito moral especialmente no que se refere à educação devem ser efetivadas junto às primeiras iniciativas e serão paulatinamente reforçadas à medida que o ordenamento social seja reconfigurado num contexto de mais justiça social 83 criar o homem novo de aviltar o homem presente264 Esse aviltamento degeneração da pessoa é visível tanto na teoria marxista quando esta desconfia da liberdade da responsabilidade e da capacidade de cada pessoa de assumir seu destino e junto com isso desconfia de que tal passo leve ao progresso humano no aspecto comunitário como na prática marxista quando sob o pretexto de uma necessária ditadura provisória a vida das pessoas sofre o peso de um regime econômico e social que apenas deixa à liberdade um mínimo de exercício265 Para Mounier a revolução deve ser personalista e comunitária e deve também unir a busca pela mudança das estruturas à busca pela mudança do homem mas essa busca não deve partir de um adiamento da questão do homem singular266 Eis um ponto decisivo de distanciamento entre o personalismo mounieriano e o Marxismo O trabalho revolucionário profundo não se resume então a despertar no homem oprimido a consciência da sua opressão impelindoo assim para o ódio e para a reivindicação exclusivas após uma nova evasão de si é mostrarlhe primeiro como fim último desta revolta a aceitação de uma responsabilidade e a vontade de uma superação sem o que todos os aparelhos não passarão de bons instrumentos nas mãos de maus operários e educálo desde logo grifo nosso para uma ação responsável e livre em vez de dissolver a sua energia humana numa boa consciência coletiva e na esperança mesmo exteriormente ativa do milagre das condições materiais Ao lado das oposições doutrinais este desde logo é a principal divergência tática que nos separa dos melhores dos marxistas 267 Vemos então que apesar de o personalismo de Mounier e o Marxismo possuírem pontos comuns esses não são suficientes para tornarem as suas diferenças apenas aspectos superficiais Marx dizia que o homem é um ser natural mas é um ser natural humano268 com isso quer dizer que é um ser inserido na natureza mas com especificidades em relação aos demais animais como a autoconsciência e a linguagem Se lembrarmos todo o desenvolvimento do pensamento de Mounier sobre o tema da encarnação à primeira vista poderemos concluir que a visão de homem nos dois autores é muito semelhante porém ao nos determos sobre a análise marxista da crise social e sua proposta de revolução análise e proposta que não dão ênfase à questão da interioridade e do homem singular no nível que 264 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 252 265 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 72 266 Sobre essa posição de Mounier num artigo sobre a filosofia personalista Paul Ricoeur observa Com o que contam os marxistas para fazer o homem novo Com o efeito futuro das mudanças econômicas políticas e não com a atração exercida desde agora pelos valores pessoais sobre os homens revolucionários Só uma revolução material enraizada num despertar personalista teria um sentido e uma oportunidade Paul Ricoeur Esprit dezembro 1950 p 871 Uma filosofia Personalista in MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 252 267 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 7475 268 Idem O Personalismo p 43 84 Mounier entende ser necessário veremos que o fato de Mounier atribuir os elementos especificadores da pessoa a um outro princípio constitutivo do humano o espírito em Marx esses elementos especificadores são classificados como características mais elevadas da matéria representa diferenças não simplesmente superáveis e que de fato culminarão em análises e propostas de soluções bem diferentes Para Mounier o espiritual também é uma infraestrutura 269 e isso se faz certamente muito presente em sua visão de mudança social Mounier defende uma intervenção no campo estrutural e moral ou seja é preciso mudar a estrutura econômica e atingir também a base dos valores e não se trata de tal questão com uma calculadora não se pode reduzir o problema a uma questão de economia Mounier não esquece que em muitos casos a questão material é mais urgente seria hipocrisia censurar um homem por não exaltar os valores pessoais quando ele se aflige pela falta do pão cotidiano Fora alguns casos de heroísmo não se pode pensar em ver nos homens a busca pelos valores antes de terem ao menos o mínimo para a sua sustentação biológica a comida e a moradia por exemplo270 Mas depois desse passo a revolução material deve ser animada desde logo por valores pessoais271 Pelo mesmo motivo que Mounier discordou de Peguy quando este dizia que a revolução deveria ser moral ou não seria discordava dos marxistas quando estes reduziam a revolução almejada a uma mudança estrutural Para Mounier a necessidade de se compreender o homem como uma unidade fundamental entre matéria e espírito deveria estar sempre presente na teoria e na prática em prol de qualquer solução que se buscasse para sanar os problemas da sociedade Por isso quando se falava da crise de seu tempo era preciso pensar sobre o modo de vida272 o posicionamento que a cada homem seria proposto não adiantando muito garantir condições justas e dignas de vida se o jeito de viver 269 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 49 270 Cf Ibidem p 49 271 Nesse contexto a pedagogia se torna um tema central não apenas na revolução mas na continuidade da sociabilidade que se segue Não se trata de uma pedagogia dogmática com aspectos curriculares pré determinados mas de uma pedagogia que observasse sim certas linhas orientadoras que ajudasse não a moldar mas em despertar pessoas livres responsáveis criadoras e que assumissem seu papel na sociedade como seres autônomos é sempre bom lembrar que quando se fala de autonomia em Mounier não se está falando de individualismo e não como parte de uma massa uniformizante Esse tema assim como o tema dos valores será tratado com mais detalhes no próximo capítulo 272 Quando se fala de modo de vida não se está querendo falar de um comportamento cultural específico que se sobreponha aos outros mas de um modo de vida compatível com as dimensões básicas da pessoa É um conceito geral que pode abarcar as mais diversas manifestações de sociabilidade e culturas humanas encontrando limite em sua abertura somente a partir do momento em que a dignidade da pessoa é ameaçada Esse ponto é sem dúvida polêmico uma vez que os adeptos de uma filosofia desconfiada de qualquer tipo de perspectiva de uma natureza humana podem afirmar que em nome de uma pretensa natureza humana podemse legitimar sistemas opressores e exclusivistas Mas como nada garante que uma perspectiva que retira a natureza humana do vocabulário filosófico previna o surgimento de sistemas opressores se não há uma perspectiva a ser seguida qualquer perspectiva pode ser justificada inclusive as mais opressoras especialmente se estiver amparada pela mão pesada do poder a colocação das duas posições no debate é legítima Mounier fez uma escolha clara que não foi a da neutralidade 85 escolhido continuasse a ser o da mediocridade pois não duraria muito tempo para que esse jeito de viver nos levasse ao ponto inicial com os mesmos problemas de ordem econômica A atividade industrial e científica do homem não é pois inútil mesmo ao espiritual Mas que ela domine inteiramente a vida do homem e constitua a sua única metafísica isso é que não podemos admitir Basta olharmos em torno de nós para nos darmos conta de que o desaparecimento da angústia primitiva o acesso a melhores condições de vida não acarretam infalivelmente a libertação do homem mas mais comumente talvez o seu emburguesamento e a sua degradação espiritual Eis porque todo o progresso material constitui para nós o fundamento e a condição necessária mas de forma alguma suficiente de uma vida mais humana e de maneira alguma a sua realização ou o seu alimento Uma revolução para a abundância o conforto e a segurança se os móbeis não forem mais profundos conduz mais seguramente após as febres da revolta a uma universalização do execrável ideal pequenoburguês do que a uma autêntica libertação espiritual 273 Mounier reconhece que existem alguns marxistas que almejam a uma renovação espiritual do homem mas a confusão sobre o espiritual que está na base do marxismo sempre os leva para soluções unicamente estruturais na perspectiva de Mounier o problema continua pois ele não acreditava que de um arranque puramente econômico possam sair outros valores além do conforto e do poder 274 Essa confusão sobre o espiritual mina a proposta marxista de revolução275 Para Mounier tal confusão se deve primeiramente devido a um contexto histórico fortemente influenciado pelo positivismo como já foi dito acima mas também por culpa das omissões do cristianismo de sua época Mounier sempre denunciou a complacência de grande parte dos cristãos com a desordem capitalista276 e ao 273 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 73 274 Ibidem p 74 275 Nos volvimos pues hacia los marxistas y les dijimos Por más sutil que sea vuestro materialismo por más dialéctico y por más alejado del materialismo vulgar del cual los defendeis mientras quede un materialismo ése que afirmais se mutila al hombre y se compromete la revolución MOUNIER Emmanuel Que és el Personalimo p 21 276 Mounier várias vezes criticou a postura de boa parte dos cristãos por viverem uma fé muito desligada da realidade concreta alheia aos sofrimentos dos que padeciam nas dificuldades materiais além de não estarem atentos ao diálogo necessário com a modernidade Dessa crítica não isentou a Igreja Católica apesar de ser um católico praticante Essa crítica está presente especialmente nas obras O Afrontamento Cristão em que enfrenta as críticas de Nietzsche ao Cristianismo e Quando a Cristandade Morre Essa postura gerou inicialmente uma reação eclesiástica negativa mas posteriormente a Igreja Católica reconheceu os méritos das denúncias de Mounier Dolores Conesa Lareo aponta que esse reconhecimento se fez sentir claramente em alguns documentos do Concílio Vaticano II especialmente na Gaudium et Spes El Concilio explica que el centro de la dignidad de la persona es la conciencia moral pero que esta se encuentra ante normas objetivas de moralidad Habrá que ver hasta qué punto el personalismo francés influyó en esta nueva perspectiva de la moral conciliar Mons Delhaye atestigua que Haubtmann redactó la primera parte de la Gaudium et spes inspirado por el personalismo de Lacroix y Mounier Además según Delhaye esta influencia del personalismo mantiene vigente la definición de persona de Boeccio rationalis naturae individua substantia Para Gaudium et spes como para Nédoncelle Mounier Lavelle y Le Senne la persona ya es una realidad objetiva LAREO Dolores Conesa Persona Vocación y amor en el pensamiento de Louis Lavelle p 228229 86 lado disso via como a concepção do espiritual era propagada por eles num molde de abstração e idealismos que não sem certa razão alguns autores como Nietzsche e Feuerbach a análise deste influenciou decisivamente a posição de Marx analisaram o cristianismo como uma religião de fracos e iludidos Isso não implica dizer que para Mounier o cristianismo seja o que eles pensaram que fosse por isso ele enfrentou tais posicionamentos nas obras referidas e em toda sua obra em geral Apesar de se explicar tal confusão não deixa de se tratar de uma confusão O aspecto materialeconômico é portanto importante mas não suficiente para Mounier não há revolução material fecunda cujas raízes não sejam espirituais277 Por isso podemos dizer que o personalismo mounieriano reconhece os méritos do Marxismo inclusive certa dívida em relação às ideias de Marx mas isso não apaga suas importantes e decisivas distinções o próprio Mounier explicita isso muito claramente Nossa filosofia que deve parte de sua saúde às águas marxistas não recebeu contudo dele o batismo Mesmo que ela recubra muitas perspectivas do marxismo outros são os seus fundamentos e daí tudo se modifica278 33 O Capitalismo Depois da exposição há pouco feita sobre os regimes nazifascista e o comunista junto da teoria marxista como sistemas agentes do processo de despersonalização passamos agora à exposição do sistema em que para Mounier vemos da forma mais sistemática e decisiva a realização desse processo o capitalismo Deste os outros sistemas são considerados como filhos bastardos279 que ensaiam uma reação contrária mas em nenhum momento renegam sua herança materialista e de indiferença contra a pessoa Os outros regimes analisados são sem dúvida desafios que devem ser enfrentados mas o capitalismo é um adversário maior muito mais perigoso e ainda mais impessoal um poder anônimo com o qual nem podemos enfrentar olhando nos olhos Para Mounier a capacidade destrutiva de qualquer sistema o capitalista o fascista o nazista e o comunista todos negadores da pessoa é igual só mudando os requintes Para Mounier nunca houve maior desprestígio em tentar um diálogo com um fascista ou um nazista com um rifle na mão do que com um 277 MOUNIER Emmanuel Manifesto a Serviço do Personalismo p 74 278 Idem O Compromisso da Fé p 193 279 Cf COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 563 87 capitalista que decide irresponsavelmente a vida de centenas de milhares de pessoas com um telefonema do seu gabinete Na verdade haveria mais contato humano em relação ao fascista e o nazista nem que seja com base no ódio e em relação aos eventos dos quais eles se colocam claramente como responsáveis do que com o ser anônimo acima de qualquer suspeita que e o capitalista imita Notamos então apenas uma diferença específica do pai o capitalismo em relação aos seus filhos os filhos se apresentam uniformizados passíveis de identificação 280 É importante salientar também que para Mounier seria preciso compreender o capitalismo não apenas como um sistema econômico também o é isso é claro mas numa visão de conjunto podese compreender o capitalismo como uma cultura de base burguesa e individualista281 Com isso ele quer alertar para o fato de que é preciso compreender o capitalismo do ponto de vista técnico mas também do ponto de vista ético282 No contexto capitalista estão envolvidos uma série de valores que o perpassam e isso traz importantes implicações para o modo como se compreende a pessoa em sua dignidade Mounier aponta o capitalismo não apenas como um sistema despersonalizador mostra também que os malefícios que dele advêm podem ser bem maiores do que se pensa pois a desordem que ele proporciona não é apenas de ordem estrutural mas também da ordem dos valores Concentração superequipamento desemprego técnico superprodução são falhas técnicas do sistema capitalista É pois enquanto sistema sobre estes diversos pontos que ele deve ser criticado como fazem por exemplo Marx ou Proudhon Sem dúvida nos dados mesmos do sistema entram elementos metafísicos e morais assim o desconhecimento pelo otimismo liberal da corrupção do ser humano Mas o capitalismo porta uma segunda série de consequências expropriação dos móbeis humanos pela preocupação exclusiva do lucro ruptura entre as classes opressão miséria destruidora de vidas e da vida interior a injustiça social codificada e considerada Por estas consequências o capitalismo cai diretamente sob um julgamento moral 283 Uma crítica ao capitalismo que não leve em conta conjuntamente esses dois aspectos será sempre incompleta por isso Mounier afirma decisivamente que o capitalismo não cai unicamente sob um julgamento técnico e nem somente sob um julgamento moral mas sob um e o outro284 Em seguida iremos apresentar a crítica de Mounier ao capitalismo a partir do 280 COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 556557 281 Cf LOPEZ Fenando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 83 282 Cf Ibidem p 82 283 MOUNIER Emmanuel Révolution Personnaliste et Communautaire p 220 284 Le capitalisme ne tombe pas seulement sous un jugement technique Marx ni seulement sous un jugement moral une épuration suffirait alors mais à la fois sous lun et sous lautre MOUNIER Emmanuel Révolution Personnaliste et Communautaire p 117 88 ponto de vista ético e do ponto de vista técnico em que veremos uma forte influência de Marx influência que o próprio Mounier reconhece textualmente285 331 Crítica do ponto de vista ético Para um filósofo que entende o ser como anterior ao fazer e o agir humano como algo mais que um simples ato mecânico286 um sistema que reduz as pessoas a meros instrumentos a uma engrenagem do processo lucrativo só pode ser compreendido como um sistema despersonalizador Lembremos que para Mounier cada homem já é pessoa pela natureza que conserva mas deve ainda se fazer pessoa por suas escolhas e atos esta é a sua vocação primordial Essa condição unifica as pessoas por uma vocação comum mas também as singulariza pois cabe a cada um com base em suas decisões livres e responsáveis tornarse pessoa e além do mais este fazerse é único em cada um não há receita pronta ou um caminho predeterminado apesar das pistas que apontam minimamente um caminho de personalização Com certeza o processo de descoberta e realização dessa vocação não é facilitado num contexto em que a pessoa só é solicitada como instrumento No Manifesto ao Serviço do Personalismo Mounier cita uma sugestiva frase de Taylor Não se vos pede que penseis há outras pessoas que são pagas para isso287 e com tal frase quer mostrar a face instrumentalista do capitalismo Quantas pessoas são pagas para pensar Certamente a minoria pois a maioria deve vender seu trabalho pelo menor preço possível e estar plenamente a serviço do lucro capitalista o movente último das ações humanas nesse sistema Nesse ponto há um problema estrutural e moral A questão moral não surge apenas pela escancarada injustiça na relação entre o capitalista e o trabalhador mas também pela redução da pessoa à condição de instrumento a partir de um processo de nivelamento massificação e coisificação a serviço do lucro há aqui para Mounier uma raiz a concepção do trabalho que o reduz a puro instrumento transformado em mercadoria A pessoa é conduzida a uma vida em que não há espaço para o processo de personalização num ritmo de trabalho sempre maior pois se o valor do seu trabalho é defasado o trabalhador tem de trabalhar cada vez mais para conseguir sua subsistência e num trabalho que é o mais 285 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 180181 286 Cf Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 302 Sobre este tema ver também Revista de Ciencias Sociales Universidad de Costa Rica VALLEJO José Manuel Bautista Sobre la Idea de acción en el personalismo mounieriano ser antes que hacer V 1 nº 95 2000 p 8796 287 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 200 89 impessoal possível288 no qual o trabalhador não se reconhece no produto de seu trabalho e é conduzido a focar quase que exclusivamente suas necessidades de subsistência material Essas são necessidades reais da pessoa sim mas se a pessoa se perde num contexto em que seus maiores esforços se resumem na busca por comida e condições de reprodução biológica em que se distinguiria o homem em relação a qualquer outro animal E até que ponto esse movimento se dá por decisão pessoal Nesta pergunta vemos o maior problema pois o que se constata a partir das análises de Mounier é que esse processo de despersonalização é conduzido manipulado não por um líder maquiavélico mas por um sistema anônimo a ditadura do dinheiro sem rosto porém com um poder nunca antes visto de criar as condições para sua manutenção a redução das pessoas ou a seres ávidos pelo conforto e a segurança do lucro aqui ricos e pobres chegam a se encontrar ao menos no desejo comum ou a instrumentos da engrenagem que mantêm a abundância de poucos Claro que nem tudo se resume a esse quadro a resistência da força pessoal liberta consideravelmente289 algumas pessoas do ideal burguês e do processo de massificação nivelante é por isso que há esperança de uma mudança O problema que se enfrenta nesse sistema não é apenas de desequilíbrio monetário tanto o pobre como o rico são definhados como pessoa por isso para Mounier o mal mais pernicioso do regime capitalista e burguês não está em levar os homens à morte mas em sufocar na maior parte dos homens quer pela miséria quer pelo ideal pequenoburguês a possibilidade e o gosto de ser pessoa290 E o mais grave é que o capitalismo não gera essa situação gratuitamente o sistema capitalista depende desse ideal pequeno de homem para existir e se desenvolver De um lado gera despossuídos que por sua vez ou são animados pelo espírito de busca do lucro embora seja só um sonho distante ou nem são animados por valor algum bom ou mau pois uma vez atingidos pelo processo de instrumentalização e coisificação que acima expomos ao qual se junta à situação de miséria em que muitos são 288 Antes isto se dava pelo fato da maioria dos empregos que se concedia à maioria das pessoas especialmente os mais pobres era de caráter mecânico instrumental sem dúvida foi a realidade que motivou a crítica de Marx e também marcava fortemente a época de Mounier Hoje esta realidade também é válida mas deve ser acrescida ao fato de que a realização pessoal no trabalho é cada vez mais rara e até desestimulada pois acima do trabalho por vocação se impõe a todos a qualificação profissional submetida a capacidade que uma determinada profissão tem de gerar mais imediatamente o maior montante possível de dinheiro inclusive pelo estímulo que se recebe da própria família 289 Digo consideravelmente porque Mounier não nutria uma visão romântica sobre nossa inserção na sociedade Por mais que tenhamos consciência dos perigos e malefícios deste sistema há sempre em nós um pouco mais ou um pouco menos do espírito burguês Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 73 Negar esta influência seria negar a condição histórica e encarnada da pessoa e Mounier está muito distante de negar esta condição O que importa é manterse em busca constante de personalização de modo que o ideal burguês tenha cada vez menos espaço em nossas vidas 290 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 89 90 conduzidos antes de se preocuparem com valores têm primeiro que lidar com a preocupação com a própria subsistência do outro lado gera possuidores sedentos de conforto e segurança que na verdade são possuídos por seus bens e os impulsiona a busca incansável do aumento do lucro ao nível suficiente para manter o seu ninho de segurança uma medida que na prática não possui limite Obviamente esse é um esquema extremo não se quer defender que no contexto do capitalismo não existam pessoas em etapas intermediárias entre esses dois momentos Mas o que vemos a partir do personalismo mounieriano é que o capitalismo será sempre mais robusto e fiel à sua natureza quanto mais se aproximar desse cenário ou seja quanto mais gerar excluídos e degradados Além de colocar a pessoa numa condição de coisainstrumento e muitas vezes na miséria condição em que a pessoa dificilmente se perceberá como sujeito e como detentora de uma vocação em que muito mais que preocuparse com a busca de uma vida pessoal vimos acima que a pessoa terá de preocuparse com a manutenção de sua vida biológica a degradação da pessoa e consequentemente também da sociedade dentro do regime capitalista se deu especialmente a partir da propagação de um estilo de vida que Mounier chamou de espírito burguês Esse é o principal motor do processo de despersonalização que engendrou a crise que ele denunciava crise que se instalou graças a um quadro de civilização formado por pessoas que são educadas para não quererem viver como pessoas e por governos que não as tratam como tais Com essa designação Mounier não pretende atacar uma classe específica o que está em questão é um espírito um estilo de vida291 Esse nome se deve às origens de tal estilo de vida292 pois é a partir da emancipação burguesa frente à aparelhagem social à época do Renascimento que ganha ímpeto o espírito burguês293 Uma emancipação que se deu originalmente com motivos e ações iniciais legítimas mas que acabou se degenerando num modo de vida acomodado desde o momento que se apegou às seguranças conquistadas Para Mounier esse espírito é o principal fator no processo de despersonalização que gerou um ideal pequeno de ser humano marcante na sociedade de seu tempo Ao se referir a esse ideal e ao homem que concretiza esse ideal para Mounier infelizmente o número de homens que dá materialidade a esse ideal não é pequeno Mounier afirma que a maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na 291 le bourgeois nest pas la définition dune classe mais dun esprit Pour savoir si lon est touché point nest besoin donc de consulter le niveau de son revenu mais seulement dentrer en examen de conscience MOUNIER Emmanuel Révolution Personnaliste et Communautaire p 100 292 Cf Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 27 293 Ibidem p 27 91 independência a vida material e vegetativa à aventura humana294 Esse tipo de homem é o burguês O nome burguês como já foi dito cabelhe apenas devido às suas origens portanto sob hipótese alguma faz distinção de classes segundo Mounier o espírito burguês pode animar qualquer pessoa desde o mais rico até o mais pobre e todos nós já fomos em maior ou menor grau atingidos por ele295 O burguês é o fruto de uma sociedade que se baseia no individualismo o centrarse em si é a sua atitude principal Adormecido na segurança que lhe gera o conforto seu valor principal é a ordem ordem como sinônimo de tranquilidade O burguês é um homem que tem medo Medo desse dia imprevisível que virá amanhã ao encontro de suas previsões medo do rosto mutável dos homens296 Por meio do individualismo na busca de autopreservação e por sede de segurança a sociedade burguesa degenerou a pessoa através de um processo de despersonalização degenerando conjuntamente também o ideal comunitário Criou o homem do conforto reduzido à sua função a uma peça de engrenagem297 mera massa de manipulação Citando Bernanos Mounier fala da postura típica que explica o homem criado por essa sociedade entendemolo por seu fruto podre que se espalhou com a modernidade a mediocridade Segundo Mounier a mais forte lição de Bernanos também foi a de mostrar que em nossa época de nivelamento e de simplicidade democrática o domínio de predileção satânica é a mediocridade298 332 Crítica do ponto de vista estrutural Um aspecto com o qual podemos iniciar a crítica do capitalismo do ponto de vista estrutural é a questão da instrumentalização da pessoa Esse ponto expõe claramente o profundo desequilíbrio no tratamento das pessoas o capitalista enquanto detentor dos meios de produção e o trabalhador dentro do sistema capitalista O preço pago pelo trabalho é sempre defasado pois só assim haverá crescimento do lucro de modo que o trabalhador é sempre expropriado e dessa forma o trabalhador não é mais que uma matériaprima a se comprar pelo melhor preço Para Mounier a economia capitalista tende a organizarse de um 294 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 107 295 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 73 296 MOUNIER Emmanuel O Compromisso da Fé p 146 297 Cf Ibidem p 52 298 Idem A Esperança dos desesperados p 159 92 modo inteiramente independente da pessoa para um fim quantitativo impessoal e exclusivo o lucro299 A pessoa em suas necessidades humanas reais se resume a um pequeno ponto ao lado do sistema um ponto desconhecido e em relação ao qual se pode ser indiferente mas segundo os defensores do capitalismo o sistema estaria pelo menos a serviço do consumidor Em tese a produção impulsionada em quantidade e qualidade e guiada pela racionalização cria as necessidades os salários criariam o poder de compra e de tal modo o sistema entra em movimento Mas Mounier questiona Serviço do consumidor Que serviço Não mas o cliente fonte de vendas logo de lucro300 O que ele quer dizer é que não é o consumo humano que importa ao capitalista mas unicamente as vendas não importa o que seja consumido e em que escala o consumo estimulado atenda às necessidades humanas contanto que garanta o lucro301 O serviço de Ford é o serviço prestado pelo criador ao gado com que ele enriquece Mesmo que o circuito de Ford conhecesse uma circulação sem falhas não seria uma produção que giraria em torno do homem mas o homem em torno da produção e esta em torno do lucro302 Para Mounier no capitalismo a pessoa está submetida a um consumo que por seu turno está submetido à produção que por sua vez está ao serviço do lucro especulativo303 Seria necessário inverter essa hierarquia Numa economia de cunho personalista o lucro é regulado de acordo com o serviço prestado na produção a produção de acordo com o consumo que por sua vez deveria estar em acordo com uma ética das necessidades humanas numa perspectiva total da pessoa304 299 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 203 300 Cf Ibidem p 209 301 Aqui não estamos nos referindo a todas as participações individuais nesse processo De modo geral o capitalista é uma pessoa que busca crescer num aspecto importante da vida o econômico não é o único mas é sim importante e que não pode ser satanizado simplesmente por isso Não são nem boas nem más pessoas por isso simplesmente querem independência financeira buscamna muitas vezes por motivos nobres como para dar boas condições de educação e vida digna aos filhos Mas é preciso lembrar que quando falamos de capitalismo não nos referimos a personagens individualizados ele mesmo como sistema anônimo sem a tutela de um representante obriganos a tratálo de modo generalizado e dessa perspectiva a ordem que o move é a do quadro que acima descrevemos um quadro que é necessariamente o da exploração Mesmo que individualmente um capitalista jamais queira explora seus empregados esse desejo nunca poderá se realizar pois a ordem capitalista é sempre injusta ou seja querendo ou não o capitalista sempre está a serviço da desordem estabelecida e ainda querendo ou não está envolto pelos valores plantados por essa desordem e sempre estará sujeito a ser completamente envolvido por eles Ressaltese apenas que nesse aspecto estar envolto nos valores da desordem estabelecida o capitalista não está sozinho pois todos nós em maior ou menor grau somos atingidos pelo espírito burguês 302 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 209210 303 Ibidem p 212 304 Cf Ibidem p 212213 93 Segundo Mounier um outro problema estrutural grave do capitalismo é a ilusão vendida a respeito da liberdade de concorrência e da seleção dos melhores pela iniciativa individual305 Muito distante do cenário utopicamente pintado pelos ideólogos liberais não há no mundo real do capitalismo uma corrida pelo crescimento em igualdade de condições em que os mais criativos são premiados Esse belo ideal se esfacela diante de uma realidade que previamente predispõe uns ao prêmio e muitos à miséria e em que a iniciativa tão defendida é geralmente concedida somente àqueles que no sistema já são senhores306 Na realidade não basta criatividade e força de vontade pois o potencial de atuação e crescimento dentro desse sistema depende muito de onde se parte de modo que muitas vezes os mais criativos e aptos não conseguem a prosperidade que outros tantos nem tão dedicados conseguem pois não contaram com as mesmas oportunidades que esses últimos Claro que existem exceções mas esses são feitos admiráveis de pessoas que superam esse esquema excludente pela força pessoal e galgam maiores espaços não se trata de nenhuma forma da regra do sistema Na maior parte dos casos as principais oportunidades já estão divididas entre poucos afortunados e dessas mãos não saem Na verdade o problema não é tanto a questão da desigualdade de oportunidades em si pois Mounier sabia muito bem que os seres humanos são desiguais em seus talentos307 portanto é natural que desenvolvam atividades diferentes e que tenham posturas diferentes por isso é também natural que consigam êxitos diferentes ou seja alguns podem ser mais bemsucedidos que os outros o que garantirá oportunidades diferentes para si e para a própria descendência Isso é algo presente em todas as sociedades O problema é quando a desigualdade atinge os direitos ou seja quando as oportunidades mais básicas não são dadas a todos ou quando o próprio sistema faz com que uns tenham mais oportunidades do que outros mesmo que não tenha tanto talento ou força de vontade E é isso que acontece na ordem normal do capitalismo as diferenças são sempre mais acentuadas não só nos talentos o que é uma condição natural independente de sistemas políticos ou econômicos mas também nos direitos Isso parece uma contradição pois o liberalismo em seu nascimento declarava e se diz ainda defensor de direitos fundamentais Parece e é de fato uma contradição fruto de uma defesa dos direitos que se deu e se dá apenas abstratamente Para Mounier em conformidade com Marx o homem que politicamente começou a tornarse sujeito com a democracia liberal mantevese geralmente objeto no plano da sua existência 305 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 210 306 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 68 307 COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 748 94 econômica308 e desse modo esse tornarse sujeito politicamente é apenas ilusório pois os dois aspectos são interdependentes309 Não adianta dizer que há igualdade politicamente se economicamente as pessoas são conduzidas a disparidades cada vez maiores Segundo Mounier esse é o caminho natural do capitalismo Não foi como o pretende para sua defesa o liberalismo econômico uma intrusão exterior de medidas antiliberais que desviou a concorrência do início para um regime de concentração e de monopólios privados Foi o próprio pendor do sistema O capital segundo as leis da sua estrutura tende infalivelmente à acumulação e em seguida à concentração de poder 310 Esse cenário que se formou a partir da conjunção do liberalismo político e econômico democracia burguesa e capitalismo mostrase uma ordem às avessas o que Mounier chamou de desordem estabelecida Na base dessa desordem está a ideologia do individualismo Imbuído dessa ideologia o capitalismo corrói a sociedade na qual se instala e a sociabilidade que aí se forma será sempre injusta Dada à ênfase que Mounier destina ao individualismo como inimigo do personalismo esse tema merece um pouco mais de atenção Nas próximas linhas veremos como o individualismo se configura como uma base nada propícia para o surgimento de uma sociabilidade justa 3321 O individualismo Vimos acima que para Mounier é possível compreender o capitalismo como uma técnica industrial e uma ordem jurídica mas não só junto com isso é também uma ética Desse modo a desordem que ele proporciona não é apenas de ordem estrutural mas também da ordem dos valores O capitalismo não apenas tem um apreço mas depende dos valores individualistas e os propaga Tais valores animam as técnicas capitalistas e como fruto 308 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 181 309 Esse quadro aponta para o processo de submissão do político ao econômico denunciado por Mounier Nesse trecho Mounier evidencia as consequências políticas desse processo A democracia liberal está entregue à oligarquia dos ricos os altos bancos e a alta indústria se apoderam dos postos de comando da política da imprensa da opinião da cultura dos representantes do espiritual a fim de poderem ditar a todos as vontades de uma classe a democracia capitalista é uma democracia que dá ao homem liberdades cujo uso o capitalismo retira Nela o Estado político não representa homens e partidos porém massas de pessoas livres indiferenciadas desenganadas que votam não importa como e submetemse à dominação dos poderes capitalistas que pela imprensa e pelo Parlamento alimentam o círculo desse aviltamento Mounier in RUEDELL Aloísio Lições Políticas para a América Latina um estudo do pensamento político de E Mounier p 54 310 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 210211 95 temos de um lado o desenvolvimento crescente apesar de não contínuo311 do capitalismo e de outro o definhamento da pessoa na concepção atomizante do indivíduo O que estava por trás do surgimento do individualismo em todos os seus âmbitos era a formulação de uma nova visão de homem Foi fruto de uma luta legítima e gerou uma real emancipação do homem pois ao menos defendeu certos direitos que antes eram ignorados Apesar de reconhecer elementos positivos no individualismo nascente especialmente na defesa da dignidade humana como um valor inviolável Mounier não hesita em dizer que esse individualismo não demorou a se desviar para uma visão muito estreita de indivíduo Ele trazia um problema de base a visão atomista do homem Essa visão trouxe graves consequências quando se buscou fundar uma sociabilidade a partir dessa antropologia A crítica de Mounier ao individualismo se torna mais explícita ao analisarmos a própria definição que ele dá a esse fenômeno Vejamos o que ele diz O individualismo é um sistema de costumes de sentimentos de ideias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitude de isolamento e de defesa Foi o individualismo que constituiu a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX O homem abstrato sem vínculos e nem comunidades naturais deus supremo no centro de uma liberdade sem direção e sem medida sempre pronta a olhar os outros com desconfianças calculismo ou reivindicações em relações aos outros ao lado de instituições reduzidas a assegurar a convivência mútua dos egoísmos Ou o seu melhor rendimento pelas associações viradas para o lucro eis a forma de civilização que vemos agonizar sem dúvida uma das mais pobres que a história já conheceu É a própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário 312 Uma primeira característica que Mounier destaca no individualismo é o organizar o indivíduo partindo de uma atitude de isolamento e de defesa O homem passa a ser entendido como um átomo porquanto completamente independente além disso detentor de direitos advindos de uma dignidade intrínseca à sua natureza doutrina dos direitos naturais O indivíduo concebido desse modo tem uma dignidade que é alheia a qualquer fator externo Ele precisava ser concebido assim porque se dependesse de algo externo para ter dignidade poderia se legitimar um poder que lhe fosse naturalmente superior e era justamente contra a ideia de um poder natural acima dos indivíduos que lutavam os revolucionários burgueses Daí fica claro por que essa visão de homem foi fundamental para contrapor ao organicismo 311 O destino autodestrutivo do capitalismo já foi evidenciado teoricamente na crítica de Marx e na prática vemos as crises dos anos 30 do século passado e a recente dois anos como evidências de que sem a forte intervenção estatal a crise capitalista pode ser sem volta De tal modo por mais que o capitalismo tenha conseguido êxito em seu crescimento sua própria tendência à autoextinção impede que seja um crescimento completamente contínuo 312 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 6162 96 um modelo que não submetesse os indivíduos ao Estado O problema é que desse modo o homem não é concebido como independente apenas do Estado mas também completamente independente dos outros indivíduos pois como vimos a dignidade do indivíduo seria alheia a qualquer elemento externo e aqui se inclui tudo o que está para além do eu A partir desse ponto formamse as outras características que vemos na definição mounieriana do individualismo a visão de um homem abstrato assim o é porque somente numa abstração podemos conceber um homem sem vínculos não inserido em comunidades naturais detentor de uma liberdade suprema e sem limites Se Maquiavel estava certo ao dizer que a história é modelo e pode nos ensinar muitas coisas não podemos ser indiferentes a um fato que ela vem nos mostrando o individualismo metódico que beirava a um solipsismo radical usado pelos burgueses revolucionários que serviu bem como instrumento teórico contra o regime absolutista mas não serve para organizar a vida social A sociedade moderna é fruto da tentativa burguesa de fundar uma sociabilidade a partir do individualismo isso no plano político e especialmente no plano econômico313 A teoria da mão invisível da qual falava Adam Smith é um bom exemplo dessa tentativa e também exemplifica claramente o que já falamos anteriormente sobre a independência do indivíduo em relação ao Estado e aos outros indivíduos Segundo essa teoria garantir a liberdade para buscar os interesses individuais passava a ser uma obrigação do Estado independência do indivíduo em relação ao Estado e nessa busca não era necessário se preocupar com os outros indivíduos independência dos indivíduos em relação aos outros indivíduos pois uma espécie de mão invisível se encarregaria de assegurar uma ordem entre os interesses de modo que os interesses seriam satisfeitos e todos seriam beneficiados e desse modo o individualismo seria capaz de gerar uma sociabilidade saudável Para Mounier essas pretensões do liberalismo burguês eram ilusórias e apenas mascaravam um egoísmo racionalizado se me permitem extrapolar a clássica distinção tocquevilleana entre egoísmo e individualismo314 Se como dito acima por um lado é verdade que o individualismo serviu de base para uma luta legítima contra um regime que 313 Digo especialmente econômico porque desde cedo os burgueses conceberam um sistema onde o econômico tem o primado em relação ao político este é um dos pilares do liberalismo econômico através da implementação do capitalismo 314 O individualismo é a expressão recente originária de uma nova ideia Nossos pais só conheciam o egoísmo Este é um amor exagerado e apaixonado de si mesmo que leva o homem a fazer tudo depender de si mesmo e preferirse a tudo mais O individualismo é um sentimento refletido e pacífico que predispõe cada cidadão a isolarse da massa dos seus semelhantes e a retirarse à parte com a família e os amigos de tal modo que após criar dessa maneira uma sociedade para o uso próprio abandona prazerosamente a sociedade a si mesma O egoísmo nasce de um instinto cego o individualismo procede de um juízo errôneo mais do que de um sentimento depravado Suas fontes são os efeitos do espírito tanto como os vícios do coração TOCQUEVILLE in LORENZON Alino A Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier p79 97 esmagava a pessoa por outro lado para Mounier também é verdade que os burgueses se fecharam numa visão de indivíduo que trazia em si sementes de decadência o isolamento e o egoísmo315 Por isso sua definição sobre o individualismo segue com a afirmação de que o homem do individualismo em sua liberdade suprema sempre olha os outros com desconfiança calculismo e reivindicação e as instituições individualistas se reduzem a assegurar a convivência mútua dos egoísmos316 Segundo Mounier essa visão de homem e essas instituições estão fadadas ao fracasso na missão de fundar uma sociabilidade porque como vimos a concepção atomizante do homem não seria mais que uma abstração É importante destacar que um ordenamento social que se pautasse nessa concepção de homem não seria legítimo pois o Estado não é de per si legítimo para tanto precisa responder às exigências específicas da dignidade da pessoa Para Mounier nem todas as formas de Estado respondem a essas exigências No capítulo subsequente serão tratados os contextos sociopolíticos do processo de personalização em que veremos o que Mounier compreende por comunidade personalista qual seria o ordenamento social que mais se aproximaria de tal cenário e que portanto seria mais capaz de responder às exigências da dignidade da pessoa 315 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 24 316 Idem O Personalismo p 6162 98 CAPÍTULO IV Proposta de Mounier para uma sociabilidade compatível com a vida pessoal Nos capítulos precedentes vimos que a revolução que Mounier intenta fomentar é de cunho estrutural certamente mas também de cunho moral ou seja ele também quer atingir a ordem dos valores recuperar o sentido do ser pessoa sentido perdido segundo ele num ideal pequeno de ser humano a partir da ideologia individualista e da degeneração do espírito burguês Com isso não busca apenas atingir um aspecto da sociedade através da eleição de um problema isolado mas propor um enfrentamento que abarcasse as questões globais de uma civilização pois a crise era segundo ele dessa ordem e não apenas um problema parcial Veremos adiante que uma transformação estrutural é completamente urgente ela é sem dúvida o primeiro passo para as transformações mais profundas Mas antes de abordarmos especificamente a questão econômica e política da revolução personalista e comunitária vamos tratar da questão dos valores até porque para Mounier não há revolução material fecunda cujas raízes não sejam espirituais317 41 A revolução em seu aspecto moralespiritual Ainda antes de fundar a revista Esprit Mounier afirmava sabemos por demais que a felicidade não basta para sermos felizes318 Essa felicidade a que Mounier se refere como sendo insuficiente para sermos felizes tem um sentido bem específico Mounier está se referindo a um desejo por uma paz morna o desejo de conforto e de segurança material e aqui se ligam especialmente às necessidades de ordem biológica e que por aí fica entendida nesses termos a busca incessante pela felicidade é a base da degeneração do espírito burguês sobre a pessoa e a sociedade A referência a essa meta acaba se tornando um valor supremo uma valorização anormal e perigosa segundo Mounier primeiro porque essas questões são vistas de modo corrompido dentro do âmbito do espírito burguês e segundo porque apesar de se tratarem de valores importantes não esgotam o corpo das necessidades humanas e nem de longe são suficientes para o desenvolvimento da pessoa em sua vocação singular 317 MOUNIER Emmanuel Manifesto a Serviço do Personalismo p 74 318 Mounier in MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 93 99 A importância excepcional e é necessário dizêlo anormal que assumem hoje os valores biológicos a saúde a vida e econômicos a utilização a organização nasce do fato de tais valores valores que ameaçados abalam o organismo humano se encontrarem presentemente comprometidos Não é preciso dar demasiado valor ao seu nível É preciso que o homem saia regra geral da miséria fisiológica e social para ascender a valores superiores é preciso denunciar o farisaísmo dos que lhe censuram o abandono dos valores quando lhe não dão os meios para deles se aproximarem Mas o valor supremo não pode ser a perfeita organização dos valores vitais e econômicos a que geralmente se dá o nome de felicidade 319 Mounier irá repudiar essa sede de felicidade e a denunciará como sede do imobilismo Toda ação e criatividade movidas para esse fim são na verdade os plenos motores da estagnação É isso a que Mounier se refere quando diz que o capitalismo acaba degenerando a técnica numa criação à serviço de uma inércia tranquila Não está dizendo que os capitalistas são inertes que não são criativos mas que essa criatividade está a serviço de um ideal de paz tranquila320 É essa inércia que aprisiona a pessoa no apego aos valores burgueses definha a pessoa e como consequência enfraquece o ideal comunitário Para Mounier o progresso material não é mais que uma etapa e deve favorecer o progresso espiritual da pessoa saindo assim da inércia tranquila em que a pessoa é jogada a partir do espírito burguês Segundo Mounier o fito da revolução econômica é precisamente permitir a todos felicidade bastante para se habilitarem à escolha de algo melhor que a felicidade321 ou seja permitir que todos tenham uma base material justa que lhes favoreça o sustento uma mínima segurança vital e certo grau de possibilidades materiais para que possam progredir pelas próprias pernas mas isso deve ser concedido para que todos estejam em condições de perceberem que sua realização como pessoa está muito além dessa segurança material Nesse ponto tornase crucial a importância que Mounier destina em sua obra para a adesão livre a uma série de valores como fator fundamental no processo de personalização322 Embora Mounier elenque alguns valores como fundamentais e alguns já os tratamos especialmente no segundo capítulo no momento em que falamos sobre a vida pessoal não se trata de maneira alguma de uma lista extensiva pois o universo pessoal é muito amplo para 319 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 135 320 Embebida nas vias da facilidade uma civilização já não cria para suscitar novas criações as suas próprias criações fabricam cada vez mais inércia tranqüila Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 26 321 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 95 322 Não existimos definitivamente senão no momento em que constituímos um círculo interior de valores ou de dedicações acerca dos quais sabemos que mesmo a ameaça da morte nada conseguiria contra eles É porque desarmam estas fortificações interiores que as técnicas modernas de embrutecimento as facilidades do dinheiro as resignações burguesas e as intimidações partidárias são mais mortais que as armas de fogo MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do personalismo p 134 100 querermos aprisionar num só laço a quantidade fixa dos valores que dele emanam por isso Mounier não absolutiza uma lista Podemos lembrar alguns valores que já discutimos no presente texto como a importância da liberdade a responsabilidade a criação e o compromisso no entanto o contexto que estamos discutindo nos pede a tematização de um valor muito importante no pensamento de Mounier e que até então não mencionamos a pobreza323 É preciso de início lembrar que com o termo Mounier está se referindo a um valor e não a uma condição socioeconômica A sua crítica ao capitalismo deixa clara sua posição sobre o modo como tantas pessoas são relegadas a uma condição social em que não possuem nem o básico para a própria subsistência mas quando se remete a essa situação normalmente se refere à questão da miséria Essa questão é sem dúvida um tema importante na crítica de Mounier à desordem estabelecida um tema que ele não trata apenas como uma condição social mas como fator de denúncia de um sistema opressor Para Mounier a miséria não representa apenas a designação de uma categoria marginal social mas o sinal visível para qualquer um que queira ver de um apelo nos cantos e nas ruas e da mentira da civilização burguesa A miséria é para o personalismo o desmentido dos pseudovalores burgueses e o grito ininterrupto na consciência de cada um que funciona como o termômetro que mede o nível de nossa participação na sua manutenção 324 323 É preciso destacar que essa importância que Mounier dá à pobreza como um valor e espírito devese em grande parte à influência do cristianismo em seu pensamento Católico praticante e sem nunca negar tal situação Mounier sabia distinguir muito bem os conceitos filosóficos e teológicos com os quais lidava mas não hesitou em aplicar alguns conceitos de origem cristã ao seu pensamento filosófico quando entendeu ser salutar Para citarmos um outro exemplo a própria noção de pessoa foi tratada por Mounier com claras notas advindas do meio cristão No caso da pobreza vemos a influência de uma perspectiva de ascese e conversão O tema se encaixa perfeitamente no contexto de nossa atual discussão uma vez que permite como dissemos o enfrentamento do espírito burguês a sede de felicidade e a distorção da relação do possuidor e as posses tratase de uma deturpação da noção de posse O tema é certamente polêmico especialmente por causa da resistência que existe nos meios acadêmicos às referências de ordem religiosa no âmbito da filosofia mas para Mounier isso não era um problema se ele não hesitava em recorrer a autores claramente críticos da religião como Nietzsche e Marx porque hesitaria em recorrer às contribuições do contexto cristão Afinal de contas o que importa num argumento e numa proposta qualquer é o conteúdo em si e não a origem ideológica da proposta A não aceitação do tema da pobreza como pertinente filosoficamente apenas por rejeição de temas religiosos se torna duplamente equivocada uma vez que o tema não é tratado num viés teológico por Mounier e também porque num cenário mundial em que a questão da sustentabilidade se tornou uma questão central o tema da pobreza no modo como Mounier o abordou é de extrema importância uma vez que qualquer mudança substancial na crise ambiental e em relação ao desenvolvimento sustentável passa necessariamente por uma mudança concreta e profunda no modo de vida das pessoas no modo de se portar diante do mundo planeta e certamente isso passa pela capacidade de desprendimento e de menos avareza Se o ritmo de crescimento especialmente um crescimento impulsionado por coisas supérfluas se mantiver inalterado dificilmente haverá uma reviravolta para nossa crise Diante desse cenário chega a ser ingenuidade o não reconhecimento da pobreza como um valor indispensável em nossos tempos 324 COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 385386 101 Certamente o termo pobreza mesmo não identificado simplesmente a uma condição social pode implicar em alguns casos alguma privação material ou uma vida mais modesta mas aqui há uma grande diferença em relação à miséria Enquanto na miséria essa privação muito mais rigorosa é via de regra imposta por um sistema opressor na pobreza certa privação aliada a uma vida mais simples é uma escolha Podemos então traçar um paralelo entre a concepção de Mounier sobre o espírito burguês e sua concepção de pobreza como valor Assim como com o termo burguês Mounier não se referia tanto a uma classe social325 mas a um espírito um estilo de vida com o termo pobreza não está se referindo exatamente a uma condição social mas também a um espírito326 mas especificamente a um espírito de simplicidade e desprendimento desapego Tratase de um valor fundamental como ponto de contraposição a uma série de valores propagados pela ordem vigente a segurança material o conforto a avareza e a submissão da pessoa e da própria economia ao valor impessoal e soberano do capitalismo o lucro Nesse cenário propor a pobreza como valor fundamental é um ponto chave para a inversão necessária da ordem vigente a desordem estabelecida No plano da ética individual pensamos que uma certa pobreza é o estatuto econômico ideal da pessoa por pobreza não entendemos um ascetismo indiscreto ou algum avareza envergonhada mas uma desconfiança pelo peso das amarras um gosto pela simplicidade um estado de disponibilidade e de ligeireza leveza que não exclui nem a magnificência nem a generosidade nem mesmo um importante movimento de riqueza se for um movimento garantido contra a avareza 327 E ainda Quando afirmamos que o homem se salvará pela pobreza não queremos hipocritamente perpetuar a miséria a degradante miséria Apenas queremos com isso dizer que uma vez vencida a miséria cada um deve ser livre e desimpedido de apegos e tranquilidade compete a cada um conhecer as suas forças e sua medida própria 328 A citação acima deixa claro inicialmente o entendimento da pobreza com um valor e um espírito modo de vida Tal movimento de disponibilidade deve ser fruto de uma escolha livre da pessoa Essa escolha é proposta a todos independentemente da classe social e do montante de suas posses pois para Mounier não é o grau de riqueza material que determina o processo que acima descrevemos a riqueza material não seria um obstáculo para a escolha 325 MOUNIER Emmanuel Révolution Personnaliste et Communautaire p 100 326 Cf COSTA Daniel da A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História Ensaio sobre a construção do conceito de Dignidade Humana no personalismo de Emmanuel Mounier p 386387 327 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do personalismo p 216 328 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 94 102 da pobreza como um valor ou espírito desde que essa riqueza não seja acompanhada pela avareza329 Para Mounier é o despojamento interior o desapego indispensável à verdadeira posse que distingue pobres e ricos mais seguramente do que as diferenças de fortunas330 Ignorandose o sentido da pobreza a própria reforma estrutural estaria em risco pois sem este espírito de pobreza as facilidades materiais não libertam o homem emburguesamno degradamno331 Se a revolução deve sempre partir da pessoa pensar apenas em garantir aos homens certo grau de progresso econômico sem pensar junto a relação entre a pessoa e suas posses seria um problema grave O problema da propriedade no regime capitalista não está apenas na distribuição mas na inversão da relação possuidorposses pois a degradação do espírito burguês transforma o possuidor numa posse de seus próprios bens Tal situação alimenta tanto o problema da concentração de recursos como o definhamento da pessoa frente a sua vocação pessoal Assim como a desordem estruturaleconômica não nasceu espontaneamente de um simples aparato técnico colocado em movimento por um economista ou por um governante mas de uma cultura melhor dizendo de um espírito ou de um modo de vida adotado pelos homens de uma época e que até hoje nos atinge e nos move A mudança na desordem 329 É importante destacar que quando Mounier fala de pobreza não está falando de um preceito ou voto religioso que segundo ele pode ser vivido de modo legítimo quando fruto de uma escolha livre e de um chamado particular nem muito menos de uma deturpação desse preceito religioso que seria o desprezo pelo mundo e o consequente desinteresse pelas posses um tipo de espiritualismo desencarnado A questão de fundo que aqui está em jogo não é o sentido teológico do termo que em resumo seria a capacidade de desapego e renúncia como sinal do reconhecimento de Deus como o único Senhor e de confiança na providência divina mas a questão da propriedade Mounier foi um duro crítico da visão capitalista da propriedade no entanto não considera que ela é sempre um roubo Proudhon e com isso polemiza com os anarquistas Mounier trabalhar o tema da propriedade especialmente nas obras Revolution Personnaliste et Communautaire e De la propriété capitaliste à la propriété humaine Nessas obras fala das várias etapas da degradação da posse humana e defende a propriedade como uma exigência da vida pessoal porém lembra que quando ele fala de propriedade não está se referindo à mesma compreensão de propriedade que têm os capitalistas Assim como o individualismo criou uma deturpação do homem ao definilo como indivíduo pois enquanto pessoa o homem possui uma dimensão comunitária que não deve nunca ser esquecida quando se entende a propriedade a partir da perspectiva do indivíduo haverá também uma deturpação pois a função social da propriedade não é lembrada O sentido da propriedade é sua finalidade humana e como a pessoa é síntese de singularidade e coletividade a propriedade só cumprirá tal finalidade quando for pensada a partir de uma dupla função pessoal e comunitária Cf RUEDELL Aloisio Lições para a América Latina Um estudo do pensamento político de E Mounier p 79 Se por um lado podemos dizer que para Mounier nem toda riqueza é ilegítima por outro lado certamente consideramos que a riqueza configurada como mera acumulação do supérfluo e ostentação de prestígio degradação da propriedade que Mounier chama de propriedadeconsideração é necessariamente injusta pois essa detenção do supérfluo em geral representa a supressão do necessário vital do outro Cf RUEDELL Aloisio Lições para a América Latina Um estudo do pensamento político de E Mounier p 81 A pobreza enquanto estilo de vida é crucial nesse contexto pois evita que a pessoa se torne escrava de suas posses permite um sentido justo da propriedade no plano do homem singular sem que se perca o sentido de sua função social 330 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 93 331 Ibidem p 93 103 estrutural em prol de uma sociedade mais justa não nascerá simplesmente de mecanismos implantados na economia ou nos governos é preciso também que tal mobilização parta das próprias pessoas a partir de um modo de vida livremente escolhido e posto em movimento a partir de ações concretas Em suma não é só de números e estatísticas que falamos mas também de valores tratase de uma revolução como já dissemos algumas vezes por um lado estrutural e por outro também moral Para Mounier uma revolução nesses termos passa necessariamente pelo aspecto pedagógico A educação se torna assim um fator indispensável para o processo de personalização A revolução necessária só se encaminha para uma solução real da crise de civilização quando se apoia numa mudança de mentalidade dos sujeitos Educação e revolução se implicam mutuamente para que aquela não seja um simples ajuste das pessoas a uma situação dada ou o desinteresse espiritualista das condições por transformar e para que esta não seja uma simples mudança no externo da história na qual as aspirações e exigências da pessoa são novamente burladas 332 411 O papel da educação no processo de personalização A importância que Mounier destinou ao tema da educação foi tão significativa que muitos autores consideraram o personalismo como sendo antes de tudo um projeto pedagógico Para Ricoeur por exemplo a obra de Mounier deve ser compreendida como um grande ensaio educativo uma pedagogia da vida comunitária destinada à renovação da pessoa333 Para Mounier a educação tem de visar à pessoa na sua integralidade não apenas em uma das facetas de sua vida como a função a desempenhar na sociedade profissão deve também estar aberta à historicidade essencial do ser humano o que acarreta o contato e a referência à realidade concreta das pessoas Não era esse tipo de educação que Mounier via se desenvolvendo em seu tempo e sua insatisfação com esse cenário se mostra em primeiro lugar no seu desencanto com o academicismo abstrato da Sorbonne desencanto que o levou a abandonar o doutorado e uma carreira acadêmica promissora em busca do exercício de uma filosofia mais sensível à realidade da pessoa Mounier de fato foi um grande crítico dos sistemas educativos de sua época como podemos perceber nos trechos a seguir 332 LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 200 333 Cf Ibidem p 201 104 A educação que hoje em dia é distribuída prepara o pior possível para uma tal cultura da ação A universidade distribui uma ciência formativa que conduz ao dogmatismo ideológico ou por reação à ironia estéril Os educadores espirituais conduzem na maior parte dos casos a formação para o escrúpulo ou para o caso de consciência em vez de a encaminharem para o culto da decisão É todo um clima a modificar se não quisermos ver mais os nossos intelectuais a dar exemplo da cegueira e os mais conscienciosos da covardia 334 Podese dizer da nossa educação que ela era em larga escala um massacre dos inocentes desconhecendo a personalidade da criança como tal impondolhe um resumo das perspectivas do adulto as desigualdades sociais forjadas pelos adultos substituindo o discernimento dos caracteres e das vocações pelo formalismo autoritário do saber 335 Para Mounier o fim da educação não consiste em fazer mas em despertar pessoas Por definição uma pessoa suscitase por apelos não se fabrica domesticando336 Há aqui um tom socrático e isso não é por acaso Já foi dito que Mounier é o mais socrático dos pensadores do século XX337 Ele não deixou um sistema pronto mas apontou para certa maneira de pensar e agir de relacionar as ideias e a vida concreta e mais que formar seguidores quis fomentar apelos que atingissem as pessoas e as fizessem despertar por elas mesmas A educação não pode partir de outra perspectiva sua missão é a de despertar pessoas capazes de viver e de assumirem posições como pessoas338 Essa busca por suscitar no educando uma capacidade de se posicionar diante do mundo de crescer na liberdade e na responsabilidade Mounier a demonstrou não apenas nas páginas de sua vasta obra mas no exercício de seu trabalho como educador como se pode notar nesse testemunho da senhora Duhameaux na época aluna de Mounier quando ele era professor no Liceu de SaintOmer na França Contrariamente aos outros professores que procuravam fazer reinar silêncio numa classe turbulenta ele não suportava a nossa calma e nos estimulava a falar Ele gostava das interrupções das questões das objeções ele queria que fôssemos mais ativos 339 Esse testemunho nos remete ao fato de que uma educação que prime por certos valores prévios no caso a liberdade a responsabilidade a iniciativa a autoposse a criticidade para citar alguns não precisa ser dogmática e impositiva Primeiro porque o foco em tais valores 334 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 167 335 Ibidem p 200 336 Ibidem p 200 337 ROCHA Acílio da Silva Estanqueiro Personalismo e Europeísmo pessoa cultura Europa p 184 338 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 133 339 LORENZON Alino A atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier p 64 105 já é um grande passo para extirpar qualquer sombra de postura dogmática e impositiva e segundo porque a forma como Mounier buscava apontar para tais valores longe de ser uma domesticação era um exercício de criticidade Mais do que falar e jogar conceitos preferia ouvir os alunos e incentivavaos a dar sua contribuição na sala de aula e desse modo os preparava para sair da passividade e para o reconhecimento da responsabilidade de darem sua contribuição em muitas outras situações que iriam encontrar na vida De certo que para um professor é bem mais fácil apenas dar suas aulas com exposição de conteúdos ao invés de buscar despertar no educando a capacidade de reconhecer sua responsabilidade de participação e cooperação primeiro na sala de aula depois no alémmuros do colégio e futuramente para além da segurança da sua casa Certamente é mais fácil mas também é bem mais distante de uma educação personalista Quis ressaltar essa questão devido às possíveis críticas à tentativa que Mounier faz de não separar instrução e educação no processo educativo Para Mounier uma escola não pode se limitar a oferecer instrução conhecimentos livrescos disfarçados de cultura Quem faz a separação desses dois conceitos o faz em nome de uma pretensa defesa da neutralidade neutralidade essa que coloca na escola o dever de oferecer os diversos conhecimentos teóricos as matérias e na família ou responsáveis o dever de educar segundo seus princípios íntimos Essa defesa é ingênua por um lado pois a escola nunca deixará de ser um local onde se formam opiniões de um modo ou de outro uma influência chega aos alunos através do estilo ou das falas dos professores por exemplo A questão não é querer excluir da escola o papel de influenciar na educação e na recepção de valores mas evitar que esse processo se torne um fomento de sectarismo ou de recrutamento partidário Por outro lado tal defesa esquece que nem todas as famílias possuem todos os meios e o tempo necessário para oferecer ao educando uma educação contínua e consistente340 De tal modo é preciso ver nesse processo um trabalho em conjunto o processo educativo não é somente um esforço de instrução individual da infância e da juventude mas um trabalho paciente dos pais e dos mestres para verdadeiramente suscitar e despertar uma pessoa341 A educação portanto não precisa nem deve ser neutra Numa cidade que o tome o personalismo por base nenhuma escola pode justificar ou cobrir a exploração do homem pelo homem a prevalência do conformismo social ou da razão de Estado a desigualdade moral e cívica das raças ou das classes superioridade na vida privada ou pública da mentira sobre 340 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 134 341 LORENZON Alino A atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier p 65 106 a verdade do instinto sobre o amor e o desinteresse É neste sentido que nós dizemos que a escola laica ela mesma não pode ser não deve ser educativamente neutra Neutra éo ela somente nesta perspectiva na medida em que não propõe nem mesmo implicitamente preferência por nenhum sistema de valores objetivos para lá desta formação da pessoa 342 Com o que foi dito até aqui não se está querendo dizer que Mounier retira do processo educativo o ensino de conhecimentos técnicos destinados ao desempenho das mais variadas profissões na sociedade Mounier em nenhum momento busca negar que a posse de uma profissão é necessária a esse mínimo de liberdade material sem a qual toda vida pessoal é sufocada porém a preparação profissional a formação técnica e funcional não poderiam ser o centro ou a mola real da obra educativa343 O que é necessário é uma profunda reestruturação dos sistemas educativos de modo a elaborarem seus programas baseados na pessoa em sua integralidade e não apenas pensando em oferecerlhe condições técnicas para exercerem uma função social ou uma educação voltada para tornar o educando capaz de se conformar com a situação vigente O fundo do problema pensa ele Mounier é que as instituições educativas se orientam mais que a suscitar pessoas a satisfazer umas necessidades sociais a qualificação para o exercício de tal e qual papel e em definitivo a criar um cidadão adaptado aos moldes e pautas vigentes 344 No entanto se a escola tem um papel fundamental no processo educativo não podemos dizer por outro lado que nela se esgote o problema da educação a escola é um instrumento educador entre outros abusase e errase quando se quer fazer dela o principal instrumento345 Mounier diz que a educação é uma aprendizagem da liberdade346 e que nesse processo a criança está sob a tutela de uma autoridade Para Mounier essa autoridade não é originalmente o Estado e sim as comunidades naturais nas quais a criança está inserida por nascimento e nesse contexto a prioridade está na família347 para ajudar ou substituir na falta da família há também o corpo educativo348 No entanto esta prerrogativa da família não é incondicional 342 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 137 343 Ibidem p 133 344 LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 207 345 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 201 346 Cf Idem Manifesto ao Serviço do Personalismo p 139 347 Cf Ibidem p 140 348 Quando Mounier fala de corpos educativos não fala simplesmente de instituições de educação mas de corpos educativos inseridos nos diversos grupos da sociedade Mounier defende a existência de corpos educativos que nasçam a partir das especificidades de cada grupo na sociedade Não se trata de formar uma escola excludente em relação a quem não faça parte do grupo em cada comunidade local mas de formar escolas que saibam 107 Não se deve interpretar injustamente a prerrogativa da família Prerrogativa da família em relação ao Estado mas não um direito arbitrário e incondicionado da família ao domínio sobre a pessoa da criança Esta prerrogativa está subordinada antes de tudo o mais ao bem da criança e em seguida ao bem comum da cidade Ela não deve fazernos esquecer da incompetência a indiferença ou o egoísmo de muitas famílias Aqui o Estado pode e deve desempenhar com a ajuda dos corpos educativos um duplo papel de proteção da pessoa e de organizador do bem comum 349 Por fim é preciso ainda destacar sobre o tema da educação quer seja exercida na escola ou no seio familiar que é preciso distanciar a educação de dois perigos graves Em primeiro lugar é preciso lembrar que não se pode entender a educação no âmbito personalista apenas como processo de transformação interior De fato essa perspectiva tem de estar presente numa pedagogia de inspiração personalista mas ela deve sempre estar atrelada à perspectiva de uma transformação externa a revolução estrutural da sociedade Muitos leitores querem ver na obra de Mounier apenas o processo de valorização da transformação moral e o papel dos valores mas acabam traindo profundamente o pensamento de Mounier quando desligam essas questões do necessário compromisso social sem esse compromisso não estamos falando de uma educação de inspiração personalista350 Em segundo lugar mas ainda insistindo na questão da exterioridade devemos lembrar que se por um lado é verdade que a educação é um processo de libertação e emancipação por outro lado não pode ser compreendida apenas como emancipação do indivíduo Educar o homem é provocar nele o encontro com a comunidade351 Sem essa preocupação cairíamos no mesmo erro dos renascentistas passaram por um processo de libertação do homem em relação a um sistema opressor mas acabaram presos às amarras do individualismo352 Se a educação é um processo que deve ter em vista a pessoa em sua integralidade não poderia então esquecer seu aspecto comunitário Numa perspectiva personalista portanto a educação só personaliza quando é educação para a comunhão353 Tendo feito essas considerações sobre a importância dos valores e o papel da educação no processo de personalização alguém poderia chegar à conclusão de que Mounier desejava valorizar as especificidades de cada comunidade fomentando a riqueza advinda da pluralidade própria de toda sociedade No entanto o Estado precisa colaborar para que estas iniciativas não percam seu foco de personalização perdendose no sectarismo Um recurso que o Estado deve utilizar é a viabilização da comunicação e o intercâmbio entre os diversos grupos de modo que eles percebam sim o valor da especificidade mas também não esqueçam de reconhecer o valor e a dignidade própria dos outros grupos e comunidades 349 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 140 350 Cf LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 203 351 Ibidem p 206 352 Cf Ibidem p 206 353 Ibidem p 206 108 primeiramente completar a revolução moral para só então pensar em buscar a revolução estrutural da sociedade354 Mas essa conclusão não poderia estar mais distante da proposta de Mounier Para ele não se pode esperar que todos os homens consintam em se tornar pessoas para construir a cidade Não se pode esperar que a revolução espiritual esteja terminada nos corações para empreender as revoluções institucionais355 Lembremos mais uma vez para Mounier a revolução personalista e comunitária deveria ser ao mesmo tempo espiritual e estrutural Para o filósofo as mudanças estruturais têm ainda mais urgência o que não implica dizer que devam ser empreendidas em separado da mudança interior da pessoa É preciso desde já buscar mudanças estruturais mas a referência à pessoa deve desde o começo estar presente por isso para Mounier não se pode aceitar uma ditadura provisória ou uma protelação do pensar sobre os problemas mais profundos do universo pessoal Uma mudança estrutural que tenha desde o início em sua base a referência à pessoa em seu aspecto espiritual favorecerá mais facilmente este segundo aspecto da revolução e quanto mais se propicia o desenvolvimento pessoal mais surgem homens capazes de reconhecer a necessidade de transformações estruturais em prol de uma sociedade mais justa Diante disso na sequência do capítulo iremos trabalhar mais especificamente a revolução personalista em seu aspecto estrutural e como ela se relaciona e fomenta o desenvolvimento da vida pessoal 42 A revolução em seu aspecto técnicoestrutural Mounier tinha clareza de que a revolução moral podia e devia ser facilitada pela revolução estrutural O processo de personalização passa necessariamente pelo posicionamento de um Estado que trate as pessoas em toda a sua dignidade e integralidade Mas qual era a referência que Mounier tinha de comunidade ao propor as mudanças estruturais necessárias que viessem a favorecer o desenvolvimento da vida pessoal É importante dizer que assim como no caso do conceito de pessoa Mounier não dá uma definição definitiva e fechada do termo comunidade muito embora faça como veremos mais à frente uma descrição de um modelo ideal de comunidade 354 Processo inverso seria o de Marx em que seria preciso primeiro garantir as mudanças políticoeconômicas para então pensar na pessoa em seu desenvolvimento pessoal 355 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 116 109 421 Os Graus da Comunidade Sua fala sobre a comunidade se encontra de modo mais evidente num comentário que ele faz sobre os graus da comunidade comentário que está presente nas obras O Personalismo p 7380 Manifesto ao Serviço do Personalismo p 108119 e Revolução Personalista e Comunitária p 4963 através das quais ele analisa algumas formas de agrupamentos humanos em relação ao grau de vida comunitária Em seguida veremos uma exposição mais detalhada de cada um desses graus da comunidade 4211 A massa Quando Mounier fala de massificação referese a um estado de aglomeração sem vínculos estáveis em que reina antes de tudo o anonimato Não se trata propriamente de um grau da comunidade mas exatamente sua antípoda a decadência total da comunidade Mounier quer partir deste vácuo comunitário exatamente para indicar que não basta uma reunião de pessoas para se falar de comunidade356 À medida que a análise vai se aprofundando Mounier identifica nos outros tipos de agrupamentos os novos elementos que os elevam a patamares superiores ao da simples massa sem entretanto esquecer de apontar como tais agrupamentos se distanciam de uma perspectiva mais elevada de comunidade A massa é portanto o ponto mais distante que se pode ficar da vida comunitária precisamente porque toda comunidade se constrói tendo por base o respeito à integralidade da pessoa357 o aglomerado massificado tão destituído de vida pessoal que é distanciase da comunidade personalista Assim Mounier descreve a massa A despersonalização do mundo moderno e a decadência da ideia comunitária são para nós uma única e mesma coisa Tanto uma como a outra vêm a dar no mesmo subproduto de humanidade a sociedade sem rosto feita de homens sem rosto o mundo do se onde flutuam entre indivíduos sem caráter as ideias gerais e as opiniões vagas o mundo das posições neutras e do conhecimento objetivo É deste mundo reino do dizse e do fazse que procedem as massas aglomerados humanos sacudidos por vezes de movimentos violentos mas sem responsabilidade diferenciada As massas são resíduos não são pontos de partida Despersonalizada em cada um dos seus 356 Cf LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 178 357 LORENZON Alino A Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier p 11 110 membros e além disso despersonalizada como todo a massa caracterizase por um misto singular de anarquia e de tirania pela tirana do anônimo 358 Uma primeira característica desses aglomerados é a negação da especifidade pessoal é a isso que Mounier se refere quando fala de mundo do se Sem decisões pessoais sem o reconhecimento das próprias responsabilidades a massa se submete ao anonimato sob a qual as pessoas são conduzidas ou se conduzem ao esquecimento do viver como pessoas Seguindo o princípio de que a fala sobre a pessoa não se refere apenas ao indivíduo mas pressupõe sua relação com o outro entrevemos então outra característica da massa além de ser uma degradação da pessoa é uma degradação das relações interpessoais Por isso Mounier afirma que o primeiro passo de minha iniciação à vida comunitária é a tomada de consciência da minha vida indiferente359 Esse mundo do se nasce de posicionamentos menos conscientes de cada pessoa mas outras vezes tem origem no tratamento que as instituições e os governos dirigem às pessoas 360 Para Mounier esse tipo de tratamento degradante é típico do mundo moderno O mundo moderno é esse esmorecimento coletivo essa despersonalização massiva Todo um vocabulário impersonalista tem consagrado esta carência Ése objetivo ése neutro têmse ideias gerais ou opiniões Sobretudo ése indiferente ainda quando a aparência seja do contrário As ideias as ações os caracteres se degradam numa espécie de protoplasma humano dissolvendose na massa 361 4212 Sociedade emnósoutros Nesta etapa encontramos o primeiro grau da comunidade São agrupamentos que ainda não estão muito distantes da massa podemos dizer que são as primeiras células vivas que embora ainda indiferenciadas têm a individualidade de uma membrana que as cerca362 As pessoas aqui ainda são indiferenciadas isso é não vivem segundo sua especificidade e singularidade mundo do se mas não são mais tão indiferentes aos outros 358 MOUNIER Emmanuel Manifesto a Serviço do Personalismo p 108 359 Ibidem p 109 360 LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 177 361 Le monde moderne cest cet affaissement collectif cette dépersonnalisation massive On est objectif on est neutre on a des idées générales ou des opinions On est surtout indifférent même quand lapparence est contraire Les idées les actions les caractères se dégradent dans une sorte de protoplasme humain à se dissoudre dans la masse MOUNIER Emmanuel Révolution Personnaliste et Communautaire p 4950 362 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 87 111 pois já existe uma consciência da própria coletividade há algo que as une e que lhes permite certa percepção de diferenciação ao menos em relação aos outros grupos As massas são por vezes tomadas por uma violenta necessidade de autoafirmação e transformamse no que nós já chamamos sociedades em nós outros Exemplo um público uma sociedade fascista uma classe militante um partido vivo um bloco ou uma frente de batalha Temos aqui o primeiro grau da comunidade O mundo do se era desprovido de qualquer delineamento o mundo do nósoutros possui referências hábitos entusiasmos definidos O mundo do se era destituído e vontade comum o mundo do nós outros tem fronteiras e dentro delas erguese com vigor O mundo do se é o mundo do nãoterales e da indiferença o mundo do nósoutros temperase na abnegação consentida e muitas vezes heroica pela causa comum 363 Mounier alerta para o uso do pronome nós na designação desse grau de comunidade para ele nesse nós afirmado com tanta veemência não há o compromisso pessoal de liberdade responsável As comodidades do conformismo coletivo acabam se tornando a solução para a angústia da escolha e da decisão é também uma excelente forma de se sentir vitorioso quando o conjunto tem êxito e por outro lado lançar sobre esse conjunto as responsabilidades sobre os erros cometidos364 O exemplo mais paradigmático desse tipo de sociedade Mounier encontra no fascismo Diante do que vimos acima percebemos porque é preciso ter cuidado nas análises mesmo de certos aspectos elogiáveis da sociedade fascista um exemplo seria a capacidade de entrega por uma causa comum nesse caso Mounier faz a ressalva de que nessa entrega a pessoa não se reveste de toda a sua dignidade de modo que tal lampejo de lucidez acaba se revertendo contra a pessoa365 4213 Sociedades Vitais O próximo patamar dos graus da comunidade é ocupado pelas sociedades vitais Essas são inferiores às sociedades emnósoutros em impulso espiritual mas superiores em organização366 uma vez que são mais individualizadas e possuem o lugar de cada pessoa minimamente delimitado com a divisão de funções Em resumo são as associações de interesses em que as funções se distribuem367 363 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 109110 364 Cf Ibidem p 110 365 Cf Ibidem p 110 366 Cf Ibidem p 111 367 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 151 112 Mounier adverte que a individualização presente nessas sociedades advém principalmente das funções e as funções coordenam não unem fundamentalmente368 O modo como essa individualização e a capacidade de coordenação estão presentes nesses grupos os tornam muitos mais propensos ao egoísmo do que à personalização Uma comunidade de necessidades ou interesses esconde debaixo de provisórios entendimentos a discórdia porquanto contrariamente ao que pensam os moralistas liberais a prática da associação não é capaz nunca de arrancar definitivamente o interesse ao seu valor egocêntrico 369 A família pode ser considerada um exemplo desse tipo de sociedade quando seus laços afetivos não são mais que os de sangue A referência à família nesse tipo de sociedade não é à toa é um alerta para as possibilidades de degradação desse meio que deve ser um dos ambientes mais favoráveis à formação da pessoa Para Mounier uma família que só conhece os laços de sangue tornase facilmente um ninho de víboras370 nesse caso são meras associações e não verdadeiras comunidades espirituais371 4214 Sociedades Racionais Um outro grau da comunidade é o que Mounier chamou de sociedade racional372 Foi uma tentativa de conter as tensões sociais e de fomentar a harmonia social através de uma perspectiva positivista e cientificista que se firmou a partir do século XVIII Surgiu num contexto em que a razão expandia seu reinado nos diversos âmbitos e se mostrava como a solução plena dos problemas humanos inclusive no plano político Assim Mounier a descrevia 368 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 74 369 Ibidem p 74 370 Ibidem p 74 371 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 151 372 A crítica de Mounier a esse tipo de organização social pode dar margem à interpretação do pensamento de Mounier como sendo irracionalista uma vez que tal organização é chamada por ele de sociedade racional Para não cairmos nessa interpretação equivocada é importante salientar que Mounier está falando de uma razão científica num contexto de positivismo Mounier não se opôs ao Estado à ciência ou ao direito essas mediações são segundo Mounier necessárias O que Mounier critica é uma determinada visão que se tinha sobre essas medições No que diz respeito a este grau da comunidade Mounier critica a perspectiva positivista de que racionalidade científica irá resolver todos os problemas humanos critica também como ligada a tal ideal a ideia de que o contrato e o formalismo jurídico são suficientes para gerar uma sociabilidade justa e harmônica 113 O século XVIII pensou que a única solução para escapar às paixões das sociedades irracionais estava numa sociedade racional fundada no acordo dos espíritos num pensamento impessoal e no acordo dos comportamentos numa ordem jurídica formal Pensavam que assim caminhariam para a paz universal através da instrução obrigatória da organização industrial ou do reinado do direito 373 Mounier apontou os equívocos dessa concepção devidos especialmente à confiança exacerbada na instrução separada da educação e no direito formalista A experiência devia mostrar que o saber não transforma os corações que o direito formal pode acobertar ordens rebeldes que a organização e a ideologia quando desprezam o absoluto pessoal transformamse como a paixão em polícia crueldade e guerra 374 Há de se destacar a crítica ao espírito positivista e mecanicista dessa proposta assim como a crítica ao modelo de educação centrada apenas na instrução e a tentativa de supressão dos conflitos num direito formal e abstrato Para Mounier nenhuma dessas perspectivas dá conta da pessoa concreta que em sociedade não foi feita para formar uma harmonia contínua sendo imbuída muito mais por uma tensão sempre pronta a romperse375 Essa tensão obviamente pode debandar para um excesso passível de penas e um controle coercitivo legítimo mas não podem ser a priori concebidas como um mal a ser extirpado Para Mounier esta tensão é fonte de vida Os regimes totalitários que pensam eliminála ignoram os recursos explosivos que existem no coração do homem e que um dia se voltarão contra eles376 O recurso ao contrato como uma das principais bases dessa sociedade também se mostra ilusório enquanto se esquece da desigualdade recorrente entre os contratantes377 e que longe de pôr dois homens em verdadeira comunhão ao invés disso estabelece dois egoísmos dois interesses duas desconfianças duas astúcias e os une em uma paz armada378 Mounier não estava negando a legitimidade e o valor do direito do contrato da instrução Tais mediações têm sua importância e necessidades reconhecidas mas não escapam às indicações das suas limitações e a consequente conclusão de que não são suficientes para assegurar uma comunidade pessoal379 Assim se verifica definitivamente a impossibilidade 373 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 75 374 MOUNIER in MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 151152 375 Cf MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 116 376 Ibidem p 116 377 Cf Idem Révolution Personnaliste et Communautaire p 202 Ver também LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 185 378 Mounier in VILLA M M org Dicionário de Pensamento Contemporâneo p 125 379 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 76 114 de fundar a comunidade esquivandose da pessoa ainda que a coberto de pretensos valores humanos desumanizados porque despersonalizados380 4215 A Comunidade Personalista Chegamos enfim à análise do último grau da comunidade aquele que Mounier chama propriamente de comunidade e não de sociedade É um modelo em que pessoa e comunidade se implicam e se fortalecem381 Se fosse necessário delinear uma tal utopia descreveríamos uma comunidade onde cada pessoa se realizaria na totalidade de uma vocação continuamente fecunda e a comunhão do conjunto seria resultante viva desses êxitos singulares O lugar de cada um seria aí insubstituível e ao mesmo tempo harmonioso no todo O primeiro laço seria o amor e não qualquer constrangimento qualquer interesse econômico ou vital qualquer aparelho intrínseco Cada pessoa encontraria nos valores comuns transcendentes ao lugar e ao tempo particular de cada um o laço que as ligaria entre si Seria perfeitamente perigoso supor este esquema historicamente realizável Mas é ele que deve orientar o ideal comunitário de um regime personalista 382 Mas como dito acima esse é um modelo um ideal E se para seu mestre Péguy esse ideal era um sonho a ser perseguido para Mounier esta comunidade não é deste mundo Muito mais do que para descrever o que seria sua perspectiva de comunidade real essa imagem serve para evidenciar as limitações das realizações históricas da perspectiva comunitária383 Para Mounier inclusive seria até perigoso considerar esse modelo plenamente realizável na história cautela reforçada também em outros trechos de sua obra não acreditamos para amanhã nem o fim do mundo nem o paraíso terrestre Cremos no duro parto de uma etapa decisiva da história384 Mas por outro lado Mounier achava que era um mau sinal quando nos acostumamos a ver homens reduzidos apenas à mediocridade mais que um mau sinal era perigoso pois em tal condição eles se tornam suscetíveis às mais variadas formas de manipulação e dominação385 Por isso ao invés de estipular um patamar determinado e fixálo como o ponto 380 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 113 381 Cf LOPEZ Fernando Vela Persona Poder Educacion Una lectura de E Mounier p 186 382 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p113114 383 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 152 384 Texto radiofônico em 1947 in SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 117 385Cf MOUNIER Emmanuel A Esperança dos Desesperados p 166 115 máximo ao qual a pessoa pode chegar no processo de personalização e formação de vida comunitária o que segundo ele era uma postura muito mais prenhe de estagnação do que de um suposto realismo preferiu apontar para metas maiores como linhas de orientação para a ação para ele corremos mais riscos se limitarmos a nossa ambição do que se a elevarmos um pouco acima das nossas possibilidades de alcance386 A unidade dum mundo de pessoas só se pode obter na diversidade de vocações e na autenticidade de adesões É um caminho mais difícil e mais longo do que as brutalidades do poder Seria utópico pensar que podemos sempre empregálo Mas pelo menos deve inspirar as linhas diretas da nossa ação O totalitarismo é a impaciência dos poderosos 387 O que deve se destacar desse modelo muito mais um ideal diretivo do que um projeto a ser realizado historicamente é a definição de que o nós comunitário só é possível quando cada um de seus membros descobre no outro uma pessoa e o trata como tal388 Tal valorização da pessoa não pode ser confundida com um novo rasgo de individualismo justamente porque a conscientização da própria dignidade de pessoa é acompanhada da conscientização da dignidade do outro É em suma a conscientização também de uma unidade das pessoas unidade que não é de identidade uma vez que por definição a pessoa é aquilo que não pode ser repetido Foi justamente esse viés ao mesmo tempo pessoal e comunitário que permitiu que a conscientização de uma unidade das pessoas pelas ideologias coletivistas descambasse para uma degradação da dignidade pessoal e até mesmo para o totalitarismo Semelhante estrutura de uma submissão da parte em relação ao todo não pode regular uma sociedade de pessoas espirituais cada uma tendo seu fim em si própria e simultaneamente no todo introduziria um totalitarismo de organização que encontrávamos em certas sociedades primitivas comunistas na velha acepção do termo e que não poderia deixar de estabelecer uma pura tecnocracia A organização só é viável para as pessoas e no campo de estruturas dum universo de pessoas Senão em vez de libertar o homem faria surgir um novo estado natural reinado das massas reinado da engrenagem e seus dirigentes nas mãos das quais a pessoa fosse simples joguete O totalitarismo escolheu bem o seu nome não se totalitariza um mundo de pessoas 389 Cabe então a pergunta sobre que forma histórica do ideal comunitário e da vida estatal pode ser considerada dentro da perspectiva personalista como a mais viável para 386 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 18 387 Idem O Personalismo p 93 388 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e Existência p 24 389 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 80 116 efetivar uma sociabilidade que se paute pelo valor primordial da pessoa sem cair no individualismo e sem descambar para o coletivismo Essa revolução estrutural que para Mounier nunca estará plenamente acabada também inacabada sempre será a revolução espiritual mas que nem por isso deve ser negligenciada possui sim em seu pensamento delineamentos específicos que se alinham com propostas realizadas ou em tentativa de realização seria melhor dizer historicamente Tratase de uma proposta de pluralismo político claramente influenciado pelo federalismo e pela teoria do direito social de Georges Gurvitch 422 Princípios de uma filosofia política personalista Como ordenar a sociabilidade humana Antes de responder a essa pergunta é preciso deternos um pouco em outra questão é necessário ordenar a sociabilidade humana através do Estado O que está por trás dessa pergunta é o problema da legitimidade do exercício de poder de uma pessoa sobre a outra esse era um problema que Mounier considerava crucial390 Afinal de contas a existência do Estado é legítima É preciso apelar para uma estrutura estatal para criar a ordem social Uma visão otimista da dimensão relacional humana irá responder negativamente a essa questão pois só seria necessário eliminar os elementos que atrapalham a efetivação dessa sociabilidade elementos que não seriam naturais então os homens poderiam finalmente viver em harmonia Mounier afirma que os anarquistas são exemplos dessa posição pois para eles a afirmação sem peias do indivíduo bastaria para fazer surgir espontaneamente uma ordem coletiva Ao contrário o poder é fatalmente corruptor e opressivo seja qual for a sua estrutura391 para Mounier nesse ponto a tese liberal não é diferente Essa posição seguramente não é compartilhada por Mounier Embora ele afirme que a comunicação é a experiência fundamental da pessoa a pessoa é de per si voltada para o outro numa sociabilidade que lhe é natural e sempre possível o próprio Mounier nos lembra que o mundo dos outros não é um jardim de delícias392 e na realidade desde o princípio da história que são mais os dias consagrados à guerra do que os consagrados à paz393 Para Mounier a possibilidade do conflito é sempre presente na vida 390 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 194 391 Ibidem p 194 392 Ibidem p 60 393 Ibidem p 59 117 das pessoas394 e sem um último recurso para arbitrar esses conflitos as pessoas cairiam na anarquia esse último recurso é o Estado através do direito positivo Pessoas e sociedades pela força dissolvente do individualismo e pelo peso das necessidades materiais sucumbiriam à anarquia se elas fossem deixadas à deriva O otimismo do individualismo liberal e o utopismo anarquista apoiamse num conhecimento simplista da pessoa É necessário um último recurso para arbitrar os conflitos das pessoas e dos indivíduos entre si este último recurso é a jurisdição do Estado 395 Nem por isso a posição de Mounier pode ser confundida com a dos que substituem o otimismo do indivíduo pelo otimismo do poder Estes últimos dão ao Estado um lugar de destaque que como veremos não se pode encontrar na obra de Mounier Como dito acima o problema da legitimação do poder das pessoas sobre as pessoas é crucial o que legitima que uma pessoa ou um grupo de pessoas governe as outras se naturalmente todo ser humano é igual em dignidade a qualquer outro ser humano Esse poder exercido através de uma estrutura estatal é necessário mediante a possibilidade sempre presente dos conflitos entre as pessoas mas não é legítimo sob todas as formas A pessoa deve ser protegida contra todos os abusos do poder todo poder não controlado tende para o abuso Esta proteção exige um estatuto público da pessoa e uma limitação constitucional dos poderes do Estado396 Para Mounier o Estado existe para o homem não o homem para o Estado397 O Estado só é legítimo quando for pautado por um Estatuto fundamental da pessoa ou seja por um direito positivo que reconheça a dignidade pessoal398 Para Mounier o direito é a garantia institucional da pessoa399 Diante disso a relação entre Estado e direito positivo se mostra de suma importância no pensamento de Mounier E para ambos Estado e direito positivo a referência à dignidade da pessoa é 394 Cf MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 153 395 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 260 396 Ibidem p 195 397 Ibidem p 194 398 Para Mounier o Estado deve reconhecer certo número de direitos das pessoas e das comunidades O uso do termo reconhecer aponta para duas questões 1 O Estado é o guarda não o criador dos direitos Cf MOUNIER Emmanuel Fautil refaire la Déclaration des Droits p 6 seu papel não é criálos mas reconhecêlos 2 Esse reconhecimento é a positivação de tais direitos De certo que Mounier admite a existência de direitos pessoais anteriores ao Estado no entanto é bom salientar que ele normalmente não se refere a eles com a usual expressão direitos naturais ao invés usa uma expressão equivalente exigências pessoais Tais exigências decorrem da dignidade inalienável da pessoa Por isso quando Mounier usa o termo direito geralmente está se referindo somente a um tipo o direito positivo Daqui se conclui que quando afirmamos que para Mounier o direito deve ter como referência a dignidade da pessoa e as exigências dela decorrentes estamos afirmando em outras palavras que para ele o direito positivo deve ter como referência o direito natural 399 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 194 118 indispensável Para Mounier o direito institucionalizado não deve ser pensado simplesmente com conotações formalistas como em Kelsen não está em jogo apenas a legalidade mas principalmente a legitimidade O direito precisa apontar para um conteúdo para um fundamento decisivo o valor da pessoa Na obra O Personalismo ele afirma que o Estado é a objetivação forte do direito que nasce espontaneamente da vida dos agrupamentos organizados400 uma afirmação que carrega uma forte influência que ele textualmente indica Georges Gurvitch Gurvitch pensa num direito espontâneo que privilegia fortemente sua origem na sociedade e seus grupos em detrimento de um direito formalista instrumento abstrato do aparelho estatal Ele desenvolve uma teoria do pluralismo jurídico e social401 que tem fortes pontos de contato com o Anarquismo de Proudhon402 Mounier vai se afastar de uma perspectiva antiestatal radical mas vai aceitar especialmente o pluralismo defendido por Gurvitch O pluralismo políticoeconômico será apresentado como uma proposta alternativa à sociabilidade que se buscou edificar em bases individualistas403 Para Mounier o individualismo não pode dar conta de fundar uma sociabilidade porque não dá conta da real condição da pessoa A noção de independência no individualismo é tão radical que além de representar a liberdade em relação ao Estado representa também uma cisão em relação aos outros indivíduos A respeito dessa compreensão Mounier 400 MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 194 401 Por pluralismo jurídico social entendemos um modo de pensar o direito para além do formalismo positivista que identifica Estado e direito Nessa outra concepção o direito não é um mero epifenômeno do Estado e depende muito mais das relações concretas das pessoas nos diversos grupos sociais do que do aparelho estatal Ideias que contrariam a perspectiva monista do direito já estão presentes em Durkheim Leon Duguit Hauriou e Eugen Erlich Podemse observar algumas discordâncias nesses autores sobre o papel e a importância do Estado em relação ao direito mas todos eles sem distinção reconhecem que o direito não pode ser compreendido como uma mera manifestação epifenomênica do Estado O direito ao longo da história tem se caracterizado por seus íntimos vínculos com a solidariedade entre pessoas e grupos sociais grande parte destes autônomos em relação ao ente estatal Cf ALBUQUERQUE Newton de Menezes Complexidade Social Pluralismo Jurídico e Unidade Política da Soberania no Estado democrático p 4162 Georges Gurvitch será responsável por grande contribuição sobre o tema especialmente sobre o direito espontâneo Assim como no direito também no Estado são os grupos sociais que devem ter a preponderância Mounier foi muito influenciado por essas ideias 402 É diretamente de Proudhon que deriva a teoria do Pluralismo jurídico e social de Georges Gurvitch que com a afirmação de um direito social contraposto ao direito do Estado descobre a própria conclusão da Declaração dos direitos sociais 1945 verdadeira e autêntica summula de uma concepção pluralista da sociedade global Segundo ela o homem deve ser considerado não como um ser abstrato mas nas multiformes atividades sociais em que participa e por conseguinte como produtor como consumidor e como cidadão a toda a atividade há de corresponder uma forma de associação funcional que não pode ser impedida de buscar seus próprios fins dentro da sociedade nacional que como tal é suprafuncional e tem por incumbência coordenar e não dominar BOBBIO Norberto Dicionário de Política p 930931 403 O direito vivo sob o impulso das doutrinas de Gurvitch Morin Máxime Leroy etc têm definido há alguns anos em oposição ao direito individualista que domina nossa história as noções fecundas de pessoas coletivas complexas de totalidades morais extraestatais síntese de personalidade e universalidade em que as pessoas que o compõem não são um subproduto da coletividade Um direito social nasceu Estes juristas não ocultam sua clara filiação proudhoniana MOUNIER Emmanuel Comunismo Anarquia Personalismo p 99 119 reconhece que quando o individualismo se refere à relação entre os indivíduos e o Estado tem ao menos uma boa conclusão de fato o Estado não tem um poder natural sobre os indivíduos mas no que tange às relações entre os próprios indivíduos essa independência seria bem mais limitada Não é novidade para o pensamento mounieriano que cada um possui um valor individual e não depende dos outros para ter valor mas essa dignidade não implica que os outros sejam realidades diante das quais possamos portarnos de modo indiferente O indivíduo abstrato do individualismo é um átomo mas o indivíduo real possui enrraizamentos vivos que são o lugar de sua formação do seu crescimento em que se encontra o seu horizonte de sentido404 Esses enraizamentos não podem ser negligenciados quando se busca um ordenamento social Tentar falar da pessoa sem situála em seu contexto natural as comunidades é um erro grave que se torna desastroso quando se passa a querer fundar uma sociabilidade com essa abstração da pessoa Para Mounier é muito problemático querer fundar uma sociedade com tal concepção de homem pois a sociedade não é apenas uma justaposição de seres isolados independentes soberanamente livres proprietários ciumentos dos seus direitos405 ou ao menos não deveria ser Daí se entende que para Mounier nenhum tipo de sociabilidade pode se desviar da condição social da pessoa e para tanto tem de entendêla como uma totalidade a pessoa como volume total do homem e não apenas como um átomo visão do homem para o individualismo Para superar essa abstração Mounier recorre a alguns elementos do pluralismo político406 defendido por Gurvitch o que dá um tom claramente federalista à filosofia política mounieriana Para Mounier é fundamental uma descentralização do poder nos Estados Montesquieu já falara e Mounier repete que o poder sempre tende para o abuso407 O próprio Montesquieu propôs alternativas para evitar o abuso do poder através de mecanismos de limitação Todos conhecem a famosa tese da separação dos poderes essa seria a limitação vertical do poder estatal408 sem dúvida essa é a contribuição montesquiana mais conhecida Mas Montesquieu não ofereceu apenas essa proposta de limitação do poder estatal Menos conhecida é a chamada limitação horizontal do poder Tratase da doutrina dos corpos intermédios Esse mecanismo pressupõe uma estruturação pluralista da sociedade pois 404 A expressão não é de Mounier é de Gadamer mas indica muito bem o sentido que quero expressar aqui 405 MOIX Candide O Pensamento de Emmanuel Mounier p 144 406 O pluralismo afirma que para defender as pessoas dos desmandos de um poder central o poder deve ser fragmentado em vários grupos e esses grupos devem ser os mais plurais possíveis para que se evite o monopólio do poder por parte de um grupo O Estado manteria sua unidade a partir da permanência de um poder central mas que não tivesse poderes sobre todos os assuntos da nação mas somente os de interesses estritamente comuns como a segurança e certa normatividade que coibisse o rivalismo entre os grupos 407 Cf MOUNIER Emmanuel O Personalismo p 195 408 BOBBIO Norberto Org Dicionário de Política p 929 120 pressupõe a existência de outros focos de poder ou ao menos certos espaços de autonomia entre o poder central e os indivíduos Para Montesquieu essa era a grande diferença que separava a monarquia da tirania pois na monarquia entre o rei e o povo existiam corpos intermédios que faziam a ligação entre os extremos Os teóricos do pluralismo moderno obviamente não falaram dos mesmos corpos intermédios presentes na fala de Montesquieu a nobreza e o clero mas adotaram a ideia da existência de grupos ou formações sociais intermediárias entre o poder central e os indivíduos Claro que ainda hoje esse modelo entra em choque com a perspectiva comumente aceita de organização política na modernidade pois nessa proposta o conceito de soberania deveria ser repensado ao menos em seu aspecto interno A soberania é um conceito chave para o Estado moderno e seu objetivo é garantir a unidade do Estado pela exclusividade do poder num âmbito central por mais que se aceite certas autonomias mínimas e pela extinção de poderes locais e intermediários entre esse poder central e os indivíduos A perspectiva política de Mounier é diferente Na obra Manifesto ao Serviço do Personalismo isso se torna muito claro especialmente num comentário feito sobre o estatismo em que ele afirma que a doença que corrói o Estado formase dentro das próprias democracias Desde o dia em que elas despojaram o indivíduo de todos os seus enraizamentos vivos de todo os poderes próximos desde o dia em que proclamaram que entre o Estado e o indivíduo não há nada lei de Chapelier que não se deveria deixar que os indivíduos associaremse segundo os seus pretensos interesses comuns ibid abriuse a via para os Estados totalitários A centralização estende pouco a pouco o seu poder com a ajuda do racionalismo ao qual repugna toda a diversidade viva o estatismo democrático desliza em direção ao estado totalitário como o rio para o mar 409 Fica claro que para Mounier é um grande problema querer extinguir as mediações entre o Estado e os indivíduos Essas mediações são duplamente importantes para as pessoas e para as comunidades pois de início contribuem para evitar o abuso de poder de um Estado centralizado e contribuem também enquanto se configuram como espaços de preservação e fomento da diversidade própria aos vários grupos em qualquer sociedade Justamente porque a pessoa é única e irrepetível os grupos que ela forma não são homogêneos Essa especificidade das comunidades locais certamente implica o surgimento de tensões iminentes e para Mounier elas não devem ser anuladas são tensões criadoras que favorecem o 409 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 256 121 dinamismo em relação ao estático410 Convém aqui lembrar Heráclito quando afirma que o que se opõe coopera e desta luta de contrários procede a mais bela harmonia411 podemos dizer que o personalismo mounieriano está imbuído fortemente dessa intuição412 E aqui vemos como Mounier é exigente quanto aos critérios de legitimação do Estado Ele só é legítimo se se pauta por um direito positivo que reconheça a dignidade da pessoa e esse reconhecimento deve incluir uma visão da real dimensão da pessoa Por isso Mounier propõe o pluralismo como alternativa de ordenamento político uma vez que se trata de uma proposta atenta aos enraizamentos comunitários das pessoas rompendo com uma visão unilateral da pessoa simplesmente como indivíduo Para Mounier o poder do Estado é limitado na base não somente pela autoridade da pessoa espiritual mas pelos poderes espontâneos e habituais de todas as sociedades naturais que compõem a nação413 O Estado não é uma comunidade natural como a família e a nação é um instrumento artificial necessário mas apesar de necessário é subordinado pois a sua legitimidade está em estar a serviço das pessoas e das comunidades O Estado deve reconhecer o valor da pessoa e isso passa pelo reconhecimento do valor das comunidades e dos grupos em que as pessoas estão inseridas A nação é o abraço que reúne este fervilhar espontâneo de sociedades diversas que rodeiam as pessoas sob a unidade viva de uma tradição histórica e de uma cultura particularizada na sua expressão mas virtualmente universal Ela é como se vê uma realidade mista e não cristalizada na base receptáculo de uma multiplicidade e sociedades que não lhe cabe digerir mas sim manter vigorosas 414 Quando falamos de nação estamos falando de uma comunidade espiritual contexto universalizado que subjaz às várias comunidades locais assim como a família é a comunidade espiritual que oferece o primeiro contexto de universalização para as pessoas singulares Ao Estado como já foi dito não cabe a denominação de comunidade ele é um instrumento que diante da nação e de sua variedade de comunidade não pode sufocálas além disso precisa facilitar o desenvolvimento das mesmas pois assim vai colaborar diretamente com o desenvolvimento de cada pessoa que as compõe No entanto é preciso lembrar que essa valorização da comunidade não a torna um absoluto A comunidade tem um papel a cumprir 410 ROCHA Acílio da Silva Estanqueiro Personalismo e Europeísmo pessoa cultura Europa p 186 411 Essa harmonia dialética nada tem a ver com o harmonia abstrata do direito formalista que dissolve ou suprime as diferenças 412 Cf ROCHA Acílio da Silva Estanqueiro Personalismo e Europeísmo Pessoa cultura Europa p 186 413 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 260 414 Ibidem p 258259 122 ela deve ser um espaço de realização da pessoa415 É preciso evitar que as possíveis tensões entre as comunidades não descambem para a tentativa de anulação ou de subordinação de uma ou de umas sobre as outras nem ainda que uma comunidade subordine e reduza em dignidade as pessoas que a compõe Se a comunidade se fecha em si mesma acaba traindo seu objetivo e aqui o Estado pode intervir com coação se necessário416 o Estado é pois um instrumento ao serviço das sociedades e através destas contra estas se preciso for ao serviço das pessoas417 Ao Estado resta um campo bem delimitado Ele precisa reconhecer a dignidade da pessoa e garantir as condições necessárias para uma vida digna Em Mounier isso se traduz por exemplo na obrigação de garantir trabalho a cada pessoa pois é através dele que a pessoa pode conseguir o sustento e se realizar O salário deve atender às exigências básicas vitais da pessoa Sob tal perspectiva podemos afirmar que para Mounier um Estado que permite a miséria e a fome perde toda a legitimidade Mas além dessas necessidades a estrutura estatal deve permitir que a pessoa consiga se realizar também em outro patamar de necessidades as de criação A pessoa não se resume ao aspecto biológico portanto as preocupações estatais a respeito da pessoa não podem ser apenas as necessidades dessa ordem O Estado precisa reconhecer a pessoa na sua dupla dimensão individual e comunitária pois é na comunidade que a pessoa se realiza Num Estado em que as comunidades são reconhecidas em seu valor e no seu papel fundamental a pessoa acaba também sendo valorizada e tem mais possibilidades de desenvolver suas potencialidades Por isso podemos dizer que Mounier não é um antiestatista não se trata de acabar com o Estado mas de repensálo Concluímos então que na visão mounieriana o Estado precisa estar a serviço de uma sociedade pluralista418 precisa fomentar o desenvolvimento das diversas comunidades de modo que se configure como uma alternativa à visão individualista imposta pela modernidade uma vez que seria capaz de 415 Uma civilização personalista é uma civilização cujas estruturas e espírito estão orientados para a realização da pessoa As coletividades naturais são aqui reconhecidas na sua realidade e na sua finalidade própria diferente da simples soma dos interesses individuais e superior aos interesses do indivíduo Elas têm todavia fim último pôr cada pessoa em estado de poder viver como pessoa quer dizer em estado de poder atingir um máximo de iniciativa de responsabilidade de vida espiritual Ibidem p 83 416 Vêse agora de que maneira nós somos antiestatistas Reduzimos consideravelmente o espaço e o poder do Estado mas onde ele for competente o seu poder de jurisdição deve dispor pelo contrário de todos os recursos da lei incluso o do constrangimento MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo p 264 417 Ibidem p 259 418 Pode o Estado renunciar à sua unidade A exigência personalista julgou por vezes dever exprimirse pela reivindicação dum Estado pluralista de poderes divididos e afrontados para mutuamente se defenderem de abusos Mas a fórmula pode parecer contraditória seria preciso antes falar dum Estado articulado ao serviço duma sociedade pluralista Idem O Personalismo p 199 123 reconhecer a pessoa em sua real dimensão como já foi dito acima um ser ao mesmo tempo individual e comunitário 124 CONCLUSÃO O tema da pessoa é até certo ponto já bastante discutido A defesa da pessoa é um tema praticamente universal e sobre o qual cada um de nós tem alguma coisa a falar Entretanto penso que o que Mounier nos oferece de diferente é uma profunda capacidade de falar da pessoa a partir de suas angústias de suas esperanças de sua finitude e ao mesmo tempo compreendêla em seus aspectos universais Em seu pensamento o papel das escolhas é fundamental para compreendermos a constituição da pessoa e exatamente por isso uma definição rigorosa não pode abarcar a condição peculiar da pessoa uma vez que as escolhas pessoais e o posicionarse da pessoa diante do mundo abrem o espaço de toda uma vida para a definição do que é ser pessoa É isso que Mounier queria dizer quando afirmava que muito mais do que conceitos o que nos dá uma compreensão melhor sobre o que é a pessoa é uma experiência proposta a cada um durante toda uma vida a vida pessoal No entanto muitos entusiastas com as filosofias da existência esquecem que o que forma a pessoa não é só o que nós escolhemos mas de igual forma o que nós não escolhemos A cultura em que estamos inseridos a língua que falamos o país em que nascemos a família onde crescemos o modo como somos educados ou deseducados tudo isto também influencia decisivamente sobre o que somos e sobre quem nos tornamos Para Mounier as dimensões pessoais estão no rol dos elementos que nós não escolhemos e que são decisivos para dizer o que é a pessoa por isso que para ele a noção de natureza humana não deve ser abandonada como tem sido em grande parte da filosofia contemporânea apesar de afirmar que há necessidade de uma revisão sobre o tema Diante do que acima foi dito podemos afirmar que em Mounier as perguntas pelo lugar do finito no absoluto ou pelo lugar do absoluto no finito atravessam de igual modo a sua visão da pessoa como uma permanência aberta e nos defrontam com um ser muito mais complexo do que pensam os existencialistas ou os essencialistas O espírito é para Mounier uma categoria fundamental da pessoa e que circunscreve a existência humana neste contexto complexo contexto de fronteira onde se entrecruzam no homem o finito e o infinito É ele que em última instância especifica a pessoa porquanto é como ser espiritual que o ser humano se distingue dos outros seres Entretanto o modo como Mounier compreende o espírito mostrar como a transcendência humana não implica o esquecimento ou diminuição da imanência da pessoa Tivemos a oportunidade de perceber durante o desenvolvimento deste trabalho que para Mounier o espírito só se realiza em suas potencialidades com e a partir da materialidade A corporeidade dá ainda à pessoa a marca da historicidade Esta marca nunca pode ser negligenciada ela atinge 125 fundamentalmente o espírito humano de modo que é sempre a partir de um contexto histórico de significações compartilhado que o espírito se efetivará na vida humana A visão peculiar de Mounier em relação ao espírito humano nos permite vislumbrar a vida pessoal como o desenrolar do encontro entre a transcendência e a imanência De tal modo a pessoa é vista em sua realidade integral não apenas em um de seus aspectos e sua proposta de revolução social se mostra muito mais condizente com a dignidade e as necessidades da pessoa Mounier não se dedicou a pensar uma sociedade em prol da dignidade da pessoa por considerála como algo a mais do que ela é Nem superhomens nem subhomens apenas homens é o que somos dizia ele A pessoa é este ser que mente que ama que trai que compartilha digna de nosso medo e de nossa esperança Esse ser possui uma vocação segundo Mounier desenvolverse em suas dimensões e tornarse pessoa pelos atos além do dado que já lhe faz pessoa sua essência E essa vocação nada nem ninguém têm o direito de tolher O pensamento de Mounier se mostra uma inspiração salutar num momento em que a pessoa é ameaçada no que já é pela violência cotidiana pelos regimes políticos que não reconhecem na prática sua dignidade pela intolerância dos fundamentalismos pela capacidade autodestrutiva de sua inteligência dominadora da natureza entre outros e no que pode se tornar pela pertença a uma sociedade que ignora a vida pessoal O pensamento de Mounier nos ajuda a superar as visões unilaterais Isso se faz mais presente na sua visão sobre a pessoa Sua percepção da pessoa como um ser que é em igual nível corpo e espírito que possui simultaneamente a dimensão da singularidade e a dimensão comunitária e um ser que é ao mesmo tempo dado e tarefa oferecenos uma importante chave de leitura para compreendermos a crise que assolava a sociedade de seu tempo e também a crise da nossa sociedade Enquanto continuarmos a ver a pessoa a partir de apenas um de seus aspectos continuaremos a pensar uma economia destrutiva uma política míope e uma educação alienante Pudemos ver no desenrolar desse estudo como uma visão limitada do homem a visão individualista fragilizou pela base toda a construção do edifício econômico político e cultural durante os últimos séculos e gerou o que Mounier chamou de desordem estabelecida Temos agora a oportunidade de olhar a pessoa em sua integralidade e vislumbrar ao menos a imagem de como pode ser possível a construção de uma sociedade em que a pessoa possa se desenvolver em suas dimensões A construção em si é um segundo passo depende mais de nossas escolhas do que de nossas leituras Outro elemento que considero muito importante em Mounier é sua visão da pessoa como um ser em constante superação Numa sociedade em que o conforto é o grande objeto de desejo em que o esforço precisa ser sempre minimizado e o fácil é a mola mestra das 126 novas criações é muito bom escutar uma voz que nos pede para irmos além que precisamos nos superar A questão que coloco não é a de jogar fora tudo o que nossa sociedade construiu Eu não sou hipócrita para dizer que não gosto de um controle remoto de geladeira e de um computador que me permite corrigir meu texto quantas vezes quiser ao contrário da máquina de escrever mas é inegável que fica difícil encontrar lugar para a vida de verdade numa sociedade que quer a todo custo vender a ideia de que o sofrimento e o esforço não fazem parte da nossa vida O problema não é só quererem vender o problema principal é que tem muita gente que compra A luta constante de Mounier contra o imobilismo aponta um modo de vida de profunda renovação e de criação que passa pelas incertezas pelas angústias pela esperança em suma que passa pela vida real Penso que essa proposta de Mounier tem muito a nos dizer em nossos dias Ligada à questão acima citada está o destaque feito por Mounier sobre a pobreza Mounier dizia que uma subjetividade pura não é possível ela está sempre envolvida por um contexto histórico e material que evidenciam suas dependências por muito tempo negadas A pessoa é uma interioridade que precisa de uma exterioridade precisa de espaço para desenvolverse de modo que o ter é fundamental para o ser embora este de modo algum se reduza ao ter O ter para Mounier é uma exigência ontológica Esta afirmação parece contraditória considerando que Mounier pode ser inserido dentro da tradição socialista se a consideramos de modo mais amplo ou seja se não consideramos que apenas o marxismo representa o socialismo mas é justamente devido à importância que Mounier destina ao tema da pobreza que o tema da propriedade é compreendido dentro do personalismo de modo muito diverso do como o compreenderam os teóricos capitalistas A pobreza como um estilo de vida onde a pessoa não se torna posse de seus próprios bens é condição sem a qual a propriedade irá se de deturpar Este estilo de vida que Mounier salienta pode ser compreendido como uma vida simples Um posicionarse diante das coisas que se traduz mais por um espírito de liberdade do que pelo número de posses ou seja o que importa no fim das contas não é a quantidade de bens que temos mas qual a nossa situação diante deles O tema da pobreza é fundamental para a crítica de Mounier ao espírito burguês e tem muito a dizer à uma sociedade tão refém do consumismo como a nossa uma sociedade que praticamente esgota o sentido da existência humana na busca pelo conforto e pela segurança Mounier não é um filósofo de pensamento acabado Dizem que essa é sua maior fraqueza e sua maior força e eu concordo Deixou mais pistas do que receitas prontas Sua visão de política não nos dá um itinerário pronto e talvez tenha sido em alguns momentos 127 muito otimista o mesmo se pode dizer de suas expectativas em relação à pessoa Mas ele tinha esse direito Se a pessoa não é nem anjo nem demônio não está destinada só ao bem ou só ao mal Se Mounier optou por um projeto de revolução pessoal e comunitária que vislumbra um ideal para alguns inalcançável o fez porque não achou salutar fixarmos uma meta pois se não sabemos o máximo que podemos chegar há sempre espaço para irmos além do que fomos ontem Talvez eu seja mais pessimista que Mounier Penso que já perdemos tempo demais Mas isso não me impede de reconhecer junto de Mounier que a pessoa tem sempre a capacidade de se reerguer As pistas deixadas por Mounier nos oferecem uma boa base para trilharmos um novo itinerário Crise ambiental injustiça social corrupção desafios não faltam Se optarmos pela efetivação do nosso ser pessoal estaremos mais preparados para enfrentálos 128 BIBLIOGRAFIA OBRAS DE MOUNIER MOUNIER Emmanuel A Esperança dos Desesperados Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Comunismo Anarquia Personalismo Madri Zero 1973 Fautil refaire la Déclaration des Droits 1944 Disponível em httpclassiquesuqaccaclassiquesMounierEmmanueldeclarationdesdroitsdeclaration desdroitshtml Acesso em 08 Out 2009 Introdução aos Existencialismos São Paulo Duas Cidades 1963 O Compromisso da Fé São Paulo Duas Cidades 1971 O Personalismo São Paulo Martins Fontes 1976 Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 Qué es el Personalismo Buenos Aires Ediciones Critério 1956 Recueils Posthumes Correspondance Œuvres IV Paris Édition du Seuil 1963 Révolution personnaliste et communautaire Paris Éditions du Seuil 1966 Traité du Caractère Œuvres II Paris 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this publication at httpswwwresearchgatenetpublication325868016 BREVES REFLEXÕES SOBRE O PERSONALISMO EM EMMANUEL MOUNIER Article in Revista Temas em Educação June 2018 DOI 1022478ufpb235970032017v26n132513 CITATIONS 0 READS 307 2 authors Lélio Favacho Braga Secretaria de Estado de Educação do Pará 1 PUBLICATION 0 CITATIONS SEE PROFILE Antonio Joaquim Severino Universidade Nove de Julho 84 PUBLICATIONS 2703 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Antonio Joaquim Severino on 08 March 2021 The user has requested enhancement of the downloaded file BREVES REFLEXÕES SOBRE O PERSONALISMO EM EMMANUEL MOUNIER BRIEF REFLECTIONS ON PERSONALISM IN EMMANUEL MOUNIER Lélio Favacho Braga1 Antônio Joaquim Severino2 RESUMO Este ensaio de cunho bibliográfico e teórico traz uma breve reflexão sobre o personalismo em Emmanuel Mounier O objetivo é de buscar o sentido que as pessoas atribuem ao pensamento desse autor como um sercomooutro e a noção de comunidade como uma estrutura social mais adequada para o ser humano efetivar sua natureza relacional Das posições personalistas concluise que a liberdade e a responsabilidade são vistas como necessárias para o sujeito não ser objetificado em seu existir real considerando que a pessoa é alguém no mundo e na relação com o outro constrói sua história É da ruptura dessa relação que decorrem os contrassensos da humanidade a alienação e a miséria material do ser humano Como o personalismo não é somente uma explicação teórica da condição existencial mas também uma vontade sobre o homem nasce daí a exigência do compromisso prático com vistas a desalienar o ser humano em Mounier Palavraschave Emmanuel Mounier Personalismo Pessoa Construção Humana 1 INTRODUÇÃO O personalismo de Mounier ficou conhecido em meados do Século XX em um contexto histórico desenhado pelas consequências da crise econômica de 1929 e do processo de ascensão do nazismo em 1933 O momento conturbado da década de 30 apontava a existência de uma crise densa na sociedade da época Nesse contexto o Personalismo mounierista é apresentado na Revista Esprit fundada no ano de 1932 quando Mounier publicou seus primeiros escritos A Revista Esprit era um excelente espaço para outros estudiosos manifestarem seus posicionamentos e reflexões Foi criada para tratar das questões voltadas para a consciência e a dignidade humana frente aos impactos concretos da realidade histórica do momento O Personalismo se apresenta 1 Doutorando em Educação Área de concentração em Teorias Políticas e Culturas em Educação pela Universidade Nove de Julho UNINOVESP sob a orientação do Prof Dr Antônio Joaquim Severino Email leliofavachogmailcom 2 Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC Brasil Professor titular aposentado de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo USP Brasil ora atuando como docente colaborador Professor contratado da Universidade Nove de Julho UNINOVESP Brasil onde integra o corpo docente do Programa de PósGraduação em Educação e lidera o Grupo de Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação GRUPEFE Email ajsevuolcombr Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 87 como proposta de uma filosofia de ação comprometida não só em interpretar essa realidade mas sobretudo em transformála Mounier 1972 vê o outro como pessoa e isso significa compreender o valor absoluto do que seja o ser humano em função do qual devem ser pensados todos os fins da organização política O Personalismo expressa significativo potencial tanto como filosofia quanto como pedagogia política qualificandose simultaneamente como instrumento de análise dessa realidade e como roteiro de ação transformadora SEVERINO 2009 p04 Devido à presença do ser humano no mundo ele passa por transformações causadas por sua interação social a qual consiste em transformar o outro e a si mesmo 2 O PERSONALISMO DE MOUNIER De acordo com Mounier 1972 em qualquer questão é necessário distinguir os dados vis dos dados nobres em consonância com a procura de uma perspectiva maior Devese procurar a liberdade inclusive no que tange às próprias convicções quando descobertas como equivocados no transcorrer de alguma análise Em razão disso é necessário libertarse de doutrinas que direcionem o olhar do homem ainda que isso exprima uma disposição distinta em relação à antiga compreensão para continuar a ser fiel ao próprio espírito Outra perspectiva é de que uma revolução qualquer não efetiva automaticamente a resolução da crise pela qual passa a sociedade ocidental do Século XX No pensamento emancipador do filósofo isso só aconteceria se enveredasse por uma significativa e integral revisão dos valores e mudança nas estruturas sociais e nas camadas dirigentes Que o apelo utópico que se põe no horizonte para o pensamento emancipador é o de transformar criaturas naturais em pessoas e de transformar as sociedades reificadas em comunidades de cidadãos livres capazes de tomar seu destino histórico nas próprias mãos Cabe a todos aqueles que lidam com o conhecimento não construir sistemas de significantes abstratos mas de contribuir com um pensamento criativo e crítico para a leitura da opacidade social e histórica lançando esclarecimento para sua superação tendo sempre em vista a emancipação da sociedade pela emancipação das pessoas no seu interior A idéia que me parece muito forte no personalismo mounierista é a razão de ser do conhecimento o que lhe dá sua legitimação é seu intransigente compromisso com a construção da cidadania entendida como aquela qualidade de vida que permita a todos existir concretamente fruindo efetivamente de todas as condições objetivas e subjetivas que constituem a própria infra estrutura de nossa existência real SEVERINO 2009 p0405 Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 88 No ensaio intitulado O personalismo e a revolução do Século XX Mounier 1972 assevera que o personalismo teria que se desenvolver inicialmente obedecendo às seguintes linhas de ação a Autonomia em relação aos partidos políticos todavia sem tomar para si um caráter anárquico ou apolítico Para isso seria imprescindível analisar todos os aspectos envolvidos na prática social de modo que a opção e as ações pessoais se inserissem em um processo coletivo b As atividades e os meios de concretização precisariam ter demarcados os limites de maneira rigorosa pois só afirmar os princípios não significa consistir em vigor absurdo ou mágico A filosofia personalista tem um diferencial no sentido de que apela para o engajamento Ela engaja um engajamento Para ela o filósofo tem que ser simultaneamente profeta e pedagogo respondendo pela denúncia pelo anúncio e pelo encaminhamento de propostas de ação histórica Não endossa o silêncio dos intelectuais seja ele o silêncio da omissão ou não Cobra necessária militância intelectual não só pela análise fria e neutra mas também pela crítica e pela proposta Dos intelectuais se espera um necessário compromisso político e que tenha discernimento competente e combatente Essa fecundidade do Personalismo deriva de sua abrangência unificadora de sua capacidade de fundarse numa concepção integral da condição humana superando tanto os reducionismos como os dualismos ontológicos que sempre marcaram a filosofia SEVERINO 2009 p04 A Filosofia de Mounier entende o homem sempre preocupado com o sentido de seu próprio existir e toda a sua história mostra o esforço para desvendálo Podese dizer que em muitos aspectos o homem ainda é uma incógnita a ser descoberta A natureza nada mais nos dá nada mais entrega ao nosso conhecimento racional do que um feixe infinitamente complicado de determinações às quais não chegamos além dos sistemas que formulamos para assegurar nossa marcha MOUNIER 2004 p 31 Isso quer dizer que a pessoa não é apenas corpo ela é reflexão escapa a qualquer determinismo e ultrapassa as fronteiras da natureza A transcendentalidade do homem sobre a natureza na qual está originalmente inserido vem de sua capacidade distintiva de só ele conhecêla e transformála de sua exclusiva capacidade de amor de liberdade capacidade de superar o rígido determinismo que regula a natureza SEVERINO 1974 p 54 Mounier também trata das inquietações humanas na obra O Personalismo em que ele esclarece que o homem não se define porquanto só os objetos são definíveis ou seja o homem está muito distante de ser um objeto tampouco um ser que pode ser definido Nesse sentido o Personalismo mounierista é uma filosofia da pessoa livre Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 89 criadora aberta a descobertas e a mudanças Mil fotografias sobrepostas não nos dão um homem que anda que pensa e que quer MOUNIER 2004 p15 A tal experiência ninguém pode ser condicionado nem constrangido Aqueles mais integralmente a realizam vão atraindo outros à sua roda despertam os que dormem e assim de apelo em apelo a humanidade vaise libertando do pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece Quem se recusa a escutar esse apelo e a comprometerse na experiência de uma vida pessoal perde o seu sentido como se perde a sensibilidade de um órgão que já não funciona MOUNIER 2004 16 Para Mounier 2004 há um dualismo na existência criadora que em determinado momento tende à despersonalização em que o ser humano se esconde dos seus impulsos criativos e dos seus desejos e em outro ao movimento de personalização buscando se realizar como pessoa em um crescimento de construção humana transformadora O homem é corpo exatamente como é espírito é integralmente corpo e é integralmente espírito Dos seus mais primários instintos comer reproduzirse é capaz de passar a artes sutis a culinária a arte de amar MOUNIER 2004 p 29 Corpo e espírito estão no pensamento de Mounier formando uma das estruturas da pessoa suas existências integradas Uma experiência rica que o mundo se insere exprimese por incessante criação de situações de regras de instituições Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza Não sendo um objeto visível também não é resíduo interno qualquer substância escondida por detrás dos nossos comportamentos princípio abstrato de nossos concretos gestos se o fosse seria ainda por qualquer forma um objeto ou um fantasma de objeto É uma atividade vivida de auto criação de comunicação e de adesão que em ato como movimento de personalização alcançamos e conhecemos MOUNIER 2004 16 Monier 2004 enuncia que a interioridade e a exterioridade existem para manter o equilíbrio no plano do ter e do ser pois do contrário os laços das relações interpessoais seriam desfeitos o que levaria a pessoa ao estado de angústia As relações entre a pessoa e a natureza não são pois relações de pura exteriorização mas relações dialéticas de permuta e ascensão MOUNIER 2004 p38 Com isso reconhecese a indivisibilidade humana ou seja o ser humano é completo capaz de transcender a natureza de ir além o que causa o movimento de personalização contra as amarras que limitam o refletir emancipado Sobre isso Mounier 2004 3241 assevera Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 90 O homem é um ser natural mas é ser natural humano E exatamente o homem singularizase por uma dupla capacidade de romper com a natureza Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele pode transformar ele o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais E o que é infinitamente mais é capaz de amar A perfeição do universo pessoal encarnado não é pois a perfeição de uma ordem como pretendem todas as filosofias e todas as políticas que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo É perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente Por isso subsiste até mesmo nas suas derrotas o caminho próprio do homem está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta De acordo com o pensador o ser humano está mergulhado na natureza e é parte dela todavia está acima dela em um aparente paradoxo Os determinismos existem mas não são absolutos Não chegam a romper o curso do destino do homem Cada um deles lhe traz uma nova promessa de liberdade MOUNIER apud MOIX 1968 p135 Na verdade a pessoa é dona de uma dimensão que não está reduzida à matéria É só observar os espantos causados pela liberdade criadora do ser humano aos condicionamentos determinantes A liberdade é um movimento de um dinamismo simultâneo e essencialmente forte e frágil Por sua impetuosidade original e quase que prometéica consegue despertar e arrancar os espíritos levados e entorpecidos pelas situações que os alienam SEVERINO 1983 p 71 Nessa liberdade por exemplo estão os elementos de uma educação que transforma o ser humano pelo fato de não alienar pois o tempo todo está sendo construída fazendo frente aos determinismos dando o aporte para o pensamento livre em relação às amarras ideológicas nocivas ao bem comum Nesse proceder o apoderamento de sua consciência acontece no grau de compreensão como sujeito histórico capaz de transformar sua realidade na concretude da vida Consciência e liberdade as duas grandes marcas da transcendentalidade humana É graças a elas que toma forma a personalidade humana e elas transfigurarão toda a existência pessoal SEVERINO 1983 p 72 Convém observar que o termo apoderarse e suas derivações como apoderamento são empregados neste estudo no sentido de a criatura humana proverse de saberes para apreender entendimento e compreensão os elementos que abarcam a realidade concreta Em seu comentário sobre o pensamento de Mounier Severino observa que a existência pessoal continuará sendo uma contínua e plena manifestação da bidimensionalidade do homem Um ser imanente à natureza mas simultaneamente transcendendoa SEVERINO 1983 p 72 Nesse sentido as relações interpessoais Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 91 ocorrem por meio da comunicação que é um processo facilitador das relações Isso implica o ato de se comunicar inicialmente de forma intrapessoal buscando o diálogo consigo mesmo momento necessário para mergulhar em si na tentativa de se conhecer Num segundo momento a comunicação é feita de forma interpessoal em que o diálogo com o outro promove uma experiência de universalidade ou seja expande a comunicação Quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe percome profundamente eu próprio todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros tornome também estranho a mim mesmo alienado Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar MOUNIER 2004 p46 Segundo Mounier a comunicação é uma das dimensões mais importantes para o ser humano porque é por meio dela que o homem estabelece relações consigo com os outros homens e com o ambiente experiencia a realidade com o outro e se percebe como um ser que existe a partir do outro A comunicação consiste na face da doação através da qual a generosidade dissolve a opacidade e anula a solidão da pessoa mesmo quando ela nada recebe em troca MOUNIER 2004 p47 3 CONSTRUÇÃO HUMANA EM MOUNIER Refletir sobre a pessoa no âmbito do pensamento de Mounier implica considerar a incompletude do ser humano e que suas dimensões não se desprendem do ser inacabado que o homem é Para destacar mais particularmente essas dimensões é preciso fazer um desmembramento metodológico delas ainda que sucintamente como por exemplo a dimensão pessoal da comunicação fundamental no pensamento do referido autor para se entender o modo como sua antropologia personalista compreende a construção da humanidade no humano Vários pensadores assinalam para a debilidade da tese de que o ser humano é construtor de sentidos na concretude da vida Essa é uma das características mais marcantes da contemporaneidade porquanto consiste em reinventar a dimensão da intersubjetividade Entre elas várias aconteceram no domínio da teoria do conhecimento especificamente sobre questões referentes à linguagem Mounier desata a referida perspectiva e revertea para o campo éticopolítico assinalando as limitações e os riscos da propositura individualista Sobre o individualismo Mounier o define como Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 92 um sistema de costumes de sentimentos de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e defesa Foi uma ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX Homem abstrato sem vínculos nem comunidades naturais deus supremo no centro duma liberdade sem direção nem medida sempre pronto a olhar os outros com desconfiança cálculo ou reivindicações MOUNIER 2004 p 4445 O individualismo é uma proposta que se contrapõe a um sistema organicista que não reconhece a existência individual da pessoa e enfatiza o todo sem levar em consideração a parte É para a massa que resvala uma democracia liberal e parlamentar esquecida de que a democracia era primitivamente uma reivindicação da pessoa MOUNIER 1967 p 108 Despersonalizadas em cada um de seus membros e além disso despersonalizada como todo a massa caracterizase por um misto singular de anarquia e de tirania pela tirania do anônimo de todas a mais vexatória porquanto mascara todas as forças essas sim autenticamente denomináveis que se cobrem da sua impessoalidade É para a massa que tende o mundo dos proletários perdidos na servidão sombria das grandes cidades dos edifícioscasernas dos conformismos políticos da máquina econômica MOUNIER 1967 p 108 Para Mounier 2004 o homem existe como construtor de sua história razão porque também pode construir sua liberdade Essa construção deve ser feita em coletividade já que o homem é aquele que consegue interrogar e responder e responsável por unir o sujeito na coletividade Ele tem a potencialidade de criar possibilidades de fazer escolhas em seu cotidiano Portanto para Mounier 2004 108 o homem de ação realizado é aquele que vive no seu íntimo esta dupla polaridade percorre agitandose o caminho que vai de um a outro combate a um tempo para assegurar a autonomia e regular a força de cada um a outro Ao conceber a pessoa como essa permanência aberta Mounier decodifica bem a condição do homem sujeito responsável pela construção da história como garantindo uma medida comum e universal que une todos os homens ao mesmo tempo em que reconhece sua encarnação empírica As estruturas mediante as quais o Personalismo descreve o universo pessoal abrangem simultaneamente o absoluto de sua transcendentalidade tanto quando o relativo da imanência instaurada por sua encarnação no mundo material Todo o pensamento de Mounier articulase em torno dessa intuição básica de natureza antropológica qual seja a da apreensão da pessoa humana que se realiza como uma unidade dialética de imanência e de transcendência SEVERINO 2009 p04 Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 93 Inferese que o Personalismo mounierista é uma Filosofia de ação por não conceber uma distância entre teoria e prática Contrariamente nosso autor defende que a teoria e a prática devem caminhar juntas Assim pensando ele dirige um novo olhar ao estudo do homem ao conceber as questões humanistas no processo de personalização da pessoa e do coletivo Mounier 2004 não direciona sua filosofia para os mais altos graus do intelecto já que envereda seu pensamento na concretude da vida para a vida real e emancipada Refletir sobre a pessoa em Mounier é falar da construção humana que está em um processo de ida e vinda de encontrar em si as possibilidades que a vida oferece o que implica estar aberto para isso Isso significa procurar maneiras de se encontrar de não se fechar em si mesmo buscando perspectivas de mudanças para se personalizar Mounier 2004 p17 entende que só muito lentamente é que a consciência se vai libertando do mineral da planta ou do animal que em nós pesam MOUNIER 1967 p 21 O ser humano não se desenvolve somente no plano da consciência mas em toda a sua grandeza no plano do esforço humano para humanizar a humanidade MOUNIER 1967 p 21 Sob o ponto de vista de Mounier a vida é modelada por meio das ações e das inquietudes da realidade concreta que no limite é capaz de determinar as ações humanas Nesse processo abrese a possibilidade de o ser humano passar a ser o arquiteto de sua história ao determinar suas ações de forma consciente e livre de amarras ideológicas massacrantes no entrelaçar da vida como a invasão das propagandas midiáticas de cunho econômico ou político entre outros que levam sorrateiramente a mente humana à acomodação e ao consumo naturalizados por ideologias nocivas ao desenvolvimento de atitudes emancipadas Para Mounier a pessoa se institui por meio da e para a comunidade porquanto é fruto dela Comentando o pensamento de Mounier Moix refere A comunidade não nasce de pessoas que se apagam mas que se promovem plenamente O nós comunitário só se realiza a partir do dia em que cada um dos membros descobriu cada um dos outros como uma Pessoa e começa a tratála como tal a compreendêla como tal Impossível fundar uma comunidade esquivandose da pessoa MOIX 1968 p152 Segundo Mounier 2004 é na relação com os semelhantes que o ser humano se concretiza como pessoa ou seja a pessoa é construída na comunidade No mundo comunitário a ação é traçada na convivência com outras consciências na concretude da Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 94 vida Mounier 2004 concebe que a primeira ação da pessoa deve ser de criar com os semelhantes em comunidade onde as culturas as estruturas os sentimentos e até instituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas sociedade de que apenas começamos a entrever e a esboçar os costumes Fundase numa série de atos originais que não têm equivalente em mais parte nenhuma no universo MOUNIER 2004 p46 47 1º Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si própria de se desapossar de se descentrar para se tornar disponível aos outros Só liberta o mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio 2º Compreender Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim não conhecer os outros apenas com um conhecimento geral mas captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser eu e de ser eu 3º Tomar sobre nós assumir o destino os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne 4º Dar A força viva do ímpeto pessoal não está nem na reivindicação nem na luta de morte mas na generosidade e na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa A economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo 5º Ser fiel A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte As dedicações pessoais amor amizade só podem ser perfeitas na continuidade Essa continuidade não é uma exibição uma repetição uniforme mas um contínuo renovamento A fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora MOUNIER 2004 p4748 4 REFLEXÕES FINAIS De acordo com o que foi abordado sobre o Personalismo em Mounier 2004 intuise que o autor entende que as ações originais possibilitam o ressurgimento da comunicação no convívio das pessoas Mas aparecem entraves que afastam a possibilidade de que haja essa comunicação É a avidez de presença mas o mundo inteiro de pessoas está maciçamente ausente MOUNIER 2004 p50 Os entraves abrem possibilidades para o isolamento que em muitos casos resulta em um ser humano que ainda que esteja em meio a relações elas não o fazem ser e muito menos crescer A comunicação é mais rara do que a felicidade mais frágil do que a beleza Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas como podemos pois esperála entre um grande número MOUNIER 2004 p50 De acordo com os aspectos destacados sobre esse rico pensamento entendese que a comunicação interpessoal é uma experiência fundamental do homem como Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 95 espécie Sob esse ponto de vista as pessoas e a comunidade não se separam As pessoas se compreendem por meio da comunidade que está acima da sociedade Pensar com Mounier 2004 trouxe a percepção de que os contrassensos na humanidade são resultados da alienação do ser humano De acordo com esse pensador 2004 a miséria material decorre da alienação humana o que se configura como desalienação do indivíduo Com base nesse pressuposto o personalismo mounierista se aproxima das posições de fundo do marxismo e se contrapõe ao capitalismo quando separa a pessoa da máquina Nesse sentido a existência humana vale mais do que a ideia capitalista de imprescindibilidade do labor a despeito do trabalho consistir em satisfação e efetivação da labuta Considerando essas premissas sinteticamente apresentadas é possível vislumbrar a relevância que o personalismo atribui à educação para construir as pessoas e a civilização humana Isso se justifica porque só será possível fundar a comunidade com pessoas solidamente constituídas porquanto o amadurecimento da comunidade é vinculado ao desabrochar das pessoas A educação é fundamentalmente o aprendizado da comunidade em que a aprendizagem do eu se faz simultaneamente com a aprendizagem do tu Podese afirmar que a comunidade pessoal perfeita é historicamente uma imagem limite um horizonte que se deve manter em vista É inalcançável devido à própria contingência do existir preço da encarnação As nossas serão sempre comunidades imperfeitas Mas eis aí uma utopia fecunda para o combate ao individualismo egoísta e ao coletivismo impessoal E a educação basicamente é mediação concreta para instaurar a solidariedade malha que se tece quando o outro é reconhecido como parceiro do eu Cf SEVERINO 2001 Na condição de prática especificamente voltada para os sujeitos humanos em construção para os quais se desenvolve uma ação de intervenção seu compromisso fundamental é com o respeito radical à sua dignidade Com efeito a legitimidade da educação pressupõe necessariamente sua eticidade Esse compromisso ético da educação que se estende ao exercício profissional dos educadores por assim dizer acirrase nas coordenadas históricosociais em que nos encontramos porque as forças de dominação de degradação de opressão e de alienação se consolidaram nas estruturas sociais econômicas e culturais As condições de trabalho ainda são muito degradantes as relações de poder muito opressivas e a vivência cultural precária e alienante A distribuição dos bens naturais dos bens políticos e dos bens simbólicos é muito Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 96 desigual Em outras palavras as condições atuais de existência da humanidade traduzidas pela efetivação de suas mediações objetivas são extremamente injustas e desumanizadoras ABSTRACT This essay of a bibliographical and theoretical nature develops a brief reflection on personalism in Emmanuel Mounier The aim is to seek the meaning that people have attributed to the thought of this author as a beingwiththeother and the notion of community as a social structure more adequate for the human being to effect hisher relational nature From personalistic positions it is concluded that freedom and responsibility are seen as necessary for the subject not to be objectified in hisher real existence considering that the person consists of one in the world and in the relationship with the other builds hisher history It is from the rupture of this relationship that the contradictions of humanity the alienation and the material misery of the human being take place As personalism is not only a theoretical explanation of the existential condition but also a will over man there arises the demand of the practical commitment with a view to the disalienation of the human being in Mounier Keywords Emmanuel Mounier Personalism Person Human construction REFERÊNCIAS MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Tradução de Frei Marcelo L Simões Rio de Janeiro Paz e Terra p 135 152 1968 MOUNIER Emmanuel O Personalismo Trad Vinícius Eduardo Alves São Paulo Centauro p 1516 17 29 31 32 38 41 44 45 46 47 2004 A esperança dos desesperados Malraux Camus Sartre Bernanos trad Naumi Vasconcelos Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Manifesto ao serviço do personalismo Tradução de Antônio Ramos Lisboa Morais p21 108 1967 SEVERINO Antônio Joaquim Humanismo personalismo e os desafios sociais da educação contemporânea v 18 n 36 janabr Cuiabá Revista Educação Públicap0405 2009 Pessoa e existência iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier São Paulo Cortez Editora p71 72 1983 A antropologia personalista de Emmanuel Mounier São Paulo Saraiva p54 1974 Educação sujeito e história São Paulo Olho dÁgua 2001 View publication stats 0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO Patrícia Costa e Silva RACIONALIDADE TÉCNICA E FORMAÇÃO UM ESTUDO A PARTIR DO PERSONALISMO DE MOUNIER Goiânia GO 2015 1 Ficha catalográfica elaborada automaticamente com os dados fornecidos peloa autora sob orientação do SibiUFG COSTA E SILVA PATRÍCIA RACIONALIDADE TÉCNICA E FORMAÇÃO UM ESTUDO A PARTIR DO PERSONALISMO DE MOUNIER manuscrito PATRÍCIA COSTA E SILVA 2015 190 f Orientador Prof Dr ADÃO JOSÉ PEIXOTO Tese Doutorado Universidade Federal de Goiás Faculdade de Educação FE Programa de PósGraduação em Educação Goiânia 2015 Bibliografia 1 PERSONALISMO 2 PESSOA 3 EDUCAÇÃO 4 TÉCNICA I PEIXOTO ADÃO JOSÉ orient II Título 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO Patrícia Costa e Silva RACIONALIDADE TÉCNICA E FORMAÇÃO UM ESTUDO A PARTIR DO PERSONALISMO DE MOUNIER Tese apresentada à banca examinadora do Programa de Pós Graduação em Educação PPGE da Faculdade de Educação FE Universidade Federal de Goiás UFG como exigência parcial para obtenção do título de Doutora em Educação sob orientação do professor Dr Adão José Peixoto Goiânia GO 2015 3 TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS TEDE NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor autorizo a Universidade Federal de Goiás UFG a disponibilizar gratuitamente por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações BDTDUFG sem ressarcimento dos direitos autorais de acordo com a Lei nº 961098 o documento conforme permissões assinaladas abaixo para fins de leitura impressão eou download a título de divulgação da produção científica brasileira a partir desta data 1 Identificação do material bibliográfico Dissertação x Tese 2 Identificação da Tese ou Dissertação Autor a Patrícia Costa e Silva Email costabrasilexporthotmailcom Seu email pode ser disponibilizado na página Sim x Não Vínculo empregatício do autor Professora Agência de fomento Sigla País Brasil UF GO CNPJ Título Racionalidade técnica e formação Um estudo a partir do personalismo de Mounier Palavraschave Personalismo Pessoa Educação técnica Título em outra língua Technical rationality and formation A study based on Mouniers personalism Palavraschave em outra língua Personalism Person Education Technique Área de concentração Cultura e Processos Educacionais Data defesa 28082015 Programa de PósGraduação Educação Orientador a Adão José Peixoto Email peixotoufghotmailcom Coorientador a Email Necessita do CPF quando não constar no SisPG 3 Informações de acesso ao documento Concorda com a liberação total do documento x SIM NÃO1 Havendo concordância com a disponibilização eletrônica tornase imprescindível o envio dos arquivos em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações garante aos autores que os arquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertações antes de sua disponibilização receberão procedimentos de segurança criptografia para não permitir cópia e extração de conteúdo permitindo apenas impressão fraca usando o padrão do Acrobat Assinatura do a autor a Data 1 Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de embargo PATRÍCIA COSTA E SILVA RACIONALIDADE TÉCNICA E FORMAÇÃO UM ESTUDO A PARTIR DO PERSONALISMO DE MOUNIER Tese defendida no Curso de Doutorado em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás para a obtenção do grau de Doutora em Educação aprovada em 28 de agosto de 2015 pela Banca Examinadora constituída pelos professores Prof Dr Adão José Peixoto Orientador UFG Presidente da Banca Prof Dr Alino Lorenzon UERJ Prof Dr Pedro Adalberto Gomes de Oliveira Neto UFG Profª Drª Lúcia de Fátima Ribeiro PUC GO Profª Drª Rita Márcia Magalhães Furtado UFG 5 Para Lara e Donna que me fizeram compreender que nas mais íntimas e profundas comunicações as palavras são desnecessárias 6 AGRADECIMENTOS Há três ingredientes indispensáveis para uma vida pessoal e social saudáveis todos caracterizam condição de transcendência sem os quais estaríamos mais na condição de autômatos ou coisas que verdadeiramente de pessoas A compaixão a generosidade e a gratidão Sem o primeiro que reflete o amor não somos como diria Mounier Sem o segundo não edificamos mas sem o terceiro não desvelamos uma vez que denuncia o desconhecimento de que na verdade toda obra acabada resulta de um conjunto de causas e de cooperações sem as quais ela não existiria na forma como se apresenta Por tais razões agradeço a Deus autor e consumador desses ingredientes pelas maravilhas da criação das quais faço parte e por compartilhar conosco deste poder criador que gerou esta pesquisa Agradeço à minha família de modo geral a meus pais Sílvio e Edsonina pelo rico legado que me deram ao meu irmão Stephano à minha filha Lara em especial que muito suportou minhas ausências neste processo tão solitário de pesquisa Agradeço aos colegas de curso companheiros destas batalhas acadêmicas e que de alguma forma colaboraram ou ao menos compartilharam comigo uma parte desta caminhada Denise Curado Kelly Bianca Mônica Albernaz Larissa Leão Agradeço aos professores do curso que em muito contribuíram para a formulação de muitas ideias nesta tese Sílvia Zanolla Anita Resende João e Jadir Ildeu Coelho Wanderson Alves Pedro Adalberto Rita de Cássia e Wanderley J Ferreira Jr Agradeço aos amigos colegas e profissionais que deram sua parcela de participação Luiza Luiz Gustavo pai e filho Elizângela Diógenes Varlene João Lucas Tiago Cláudio Mateus Maria Maura Joaquim Gisela Viviane Vera Vilma Neusa Luzia Alessandra Elena Érica Dalva e Juliano Ao meu orientador professor Adão José Peixoto pela paciência e empenho que possibilitaram a execução deste trabalho Agradeço por fim aos membros da banca professores Alino Lorenzon Rita Márcia Furtado Lúcia de Fátima Ribeiro Pedro Adalberto Gomes Diane Valdez e Eduardo Gusmão de Quadros 7 Creio que sou impermeável para sempre ao veneno da Sorbonne Estou no molhado como diria Peguy É sutil porém é perigoso a mim entender sobretudo para aqueles que não têm sido suficientemente sacudidos pela vida ou que não se tem oferecido suficientemente a ela para ter outra preocupação que o desenvolvimento e acrescento universitário de sua inteligência Decididamente sou incapaz de ter a atitude objetiva destes jovens que se situam ante os problemas como ante uma peça de anatomia e ante sua carreira como um mecanismo que se deve subir metodicamente até um ponto determinado nada como o sofrimento para reconciliarse com as coisas e com a vida mesma Esta é uma verdade da experiência cristã creio que a mais dura de compreender de fora E creio que é isto o que lhes falta sobretudo a estas almas seguras de professores o sacrifício aceito ou a prova que é um sacrifício arrancado A mesma noção a noção concreta da miséria humana como sua verdadeira grandeza não conhecem o hospital além do recinto de sua comissão de higiene MOUNIER 1988 p489490 8 RESUMO O domínio da razão técnica que não reflete sobre seus pressupostos mas apenas quantifica planifica e calcula tem direcionado a educação para a manutenção das estruturas do capitalismo promovendo a demissão da pessoa reduzindoa a um instrumento dos dispositivos técnicos a ser utilizado e manipulado com êxito no mercado Em detrimento do desenvolvimento de suas potencialidades o homem tem sido objetificado na condição de material estatístico de produtividade e eficiência subordinado a leis mercadológicas pautadas no individualismo e na competição Na perspectiva do personalismo de Mounier a educação a partir das diretrizes pedagógicas oriundas do Iluminismo com sua racionalidade técnica e utilitarista visa apenas perpetuar o espírito burguês voltado apenas para a visão individualista de riqueza e prestígio social As reflexões de Mounier colocam em questão essa racionalidade técnica que por objetivar uma otimização eficaz de todos os campos do saber e do fazer humanos em busca do desenfreado progresso técnico que é absolutamente impessoal acabou por reduzir a percepção da realidade fragmentandoa e promovendo uma visão dualista não só do mundo mas também do conhecimento e do próprio homem Pelo fato de a pessoa não ser a finalidade última destes avanços não tem se promovido paralelamente uma intensificação de sua vida espiritual Nessa perspectiva a educação também tem deixado de ser um poder espiritual decisivo na constituição de um verdadeiro universo de pessoas ocupandose em demasia com a formação técnica de especialistas negligenciando seu papel essencial que é o de ser uma arte de ensinar a elaborar o raciocínio com visão global e crítica Por identificar saber com poder a educação oriunda dos ideais do capitalismo busca dar a conhecer para que não se possa pensar A partir da perspectiva da intencionalidade fenomenológica Mounier busca a superação das dicotomias provocadas por essa razão técnica e da educação que dela adveio como entre sujeitoobjeto homemmundo corpoalma que para o autor são polos indissociáveis que formam uma unidade dialética Mounier enfatiza pela via do realismo integral os complexos condicionantes das categorias do universo pessoal que identificam a pessoa enquanto ser integral singular ser presente e inesgotável um mistério um euaquiagora permanência aberta não objetável e insubstituível irredutível às previsibilidades objetificantes dos rigores lógicos estatísticos e técnicos Sua proposta de educação voltase para o despertar da tridimensionalidade do ser pessoal pautada no infindo diálogo entre recolhimento ruptura e transcendência mediado por uma liberdade não solitária mas solidária visando à formação integral da pessoa 9 Comprometida com sua autenticidade e independência a partir do exercício de suas singulares vocações a educação personalista de Mounier por propor o desenvolvimento da vida interior no seio da vida comunitária possibilitará ações engajadas responsáveis por uma prática social emancipadora no contexto da comunicação e no interesse da comunidade Elucidamos nessa pesquisa que de fato há uma essência utilitarista na técnica que se encaminha para o aperfeiçoamento avaliados pelo êxito dos resultados quantitativos Contudo acreditamos com Mounier que uma mudança no interior do homem quanto aos valores que norteiam a civilização técnica outras direções serão possíveis para o desenvolvimento técnico Se por um lado a autonomia e o artificialismo da técnica têm retirado a autonomia criatividade e espontaneidade do homem para Mounier o domínio desta razão não é total pois a técnica resta apenas um instrumento que pode vir a ser utilizado em benefício do homem contudo a era da técnica ameaça o movimento de personalização uma vez que tem servido a um regime desumano de modo impessoal Nesse contexto a educação personalista propõe uma reestruturação dos valores que permeiam o universo do conhecimento das vocações e das relações humanas que hoje são técnicos com ênfase na personalização da pessoa que prevalecerá por toda sua vida Palavraschave Personalismo Pessoa Razão Educação Técnica 10 ABSTRACT The mastership of technical reason which does not reflect on their assumptions but only quantifies flatten and estimates has directed the education to maintain the structures of the capitalism promoting the dismissal of the person reducing their to an instrument of technical devices to be handled and used successfully in the marketplace To the detriment of developing their potential men have been objectified in the condition of statistical material of productivity and efficiency subject to marketing laws ruled on individualism and competition Based on Mouniers personalistic perspective education from pedagogical guidelines derived from the Enlightenment with its technical and utilitarian rationality aims only perpetuate the bourgeois spirit dedicated only to the individualistic view of wealth and social prestige Mouniers reflections question this technical rationality that aim for an effective optimization of all fields of knowledge and to humans in search of unbridled technical progress which is absolutely impersonal eventually reducing the perception of reality tearing it apart and promoting a dualistic view not only of the world but also of knowledge and man itself Because the person is not the ultimate purpose of these advances they have not promoted alongside an intensification of spiritual life In this perspective education has also ceased to be a decisive spiritual power in the constitution of a true universe of people taking up too much with the technical training of specialists neglecting that their essential role is to be an art of teaching to prepare reasoning with global and critical view By identifying knowledge with power the education originated from the ideals of capitalism seeks to inform to make people cant think From the perspective of phenomenological intentionality Mounier seeks to overcome the dichotomies caused by this technical reason and education that it stemmed as between subject object man world body soul which for the author are inseparable poles that form a dialectical unity Mounier emphasize by the full realism the complex conditions of the categories of personal universe that identify a person as integral unique present and inexhaustible been a mystery a meherenow stay open unobjectionable and irreplaceable irreducible to objectifying predictabilities logical statistical and technical rigors His education proposal back to the awakening of the threedimensionality of the personal based on the endless dialogue between gathering rupture and transcendence mediated by a non solitary freedom but solidarity aiming at the integral formation of the person Committed to its authenticity and independence by the exercise of their individual 11 vocations personalist education Mounier proposing the framing of the inner life within the community life enable engaged actions responsible for an emancipatory social practice in the context of communication and community interest We explain in this research that there is indeed a utilitarian essence in the technique which is heading for improvement evaluated by success of the quantitative results However we believe with Mounier that a change inside the man and the values that guide the technical civilization other directions are possible for technical development On the one hand autonomy and the artificiality of technique has taken the autonomy creativity and spontaneity of man but for Mounier the domain of this reason is not total because the technique remains just a tool that might be used for the benefit of man however technical age threatens the customization movement since it has served an inhuman regime so impersonal In this context the personalist education proposes a restructuring of values that permeate the universe of knowledge talent and of human relationships which today are technicians with an emphasis on customization of the person that will predominate throughout his life Keywords Personalism Person Education reason Technique 12 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS PPGE Programa de PósGraduação em Educação FE Faculdade de Educação UFG Universidade Federal de Goiás 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO I 29 INDIVÍDUO PESSOA E SOCIEDADE FACE À RAZÃO TECNICISTA 29 11 Da tékhne grega à racionalidade técnica 29 12 Técnica e ciência na modernidade 32 13 Da hegemonia do cogito à intencionalidade fenomenológica e personalista 37 14 A emergência do indivíduo e a desconstrução dos princípios da razão moderna e do sujeito pensante Marx Nietzsche e Freud 41 141 Individualismo liberal e coletivismo democrático as fachadas do totalitarismo técnico 46 15 Da crise do sujeito da sociedade e da razão moderna a demissão da pessoa 49 16 Dos princípios da razão técnica servo ou senhor salvador ou anticristo 53 161 Os imperativos técnicos A posição de Ellul e Heidegger 54 1611 O homem estatístico 58 162 A técnica como instrumento A posição de Mounier 62 1621 A absorção da técnica pela economia 69 163 Uma outra via de comunicação entre a técnica e o homem 74 CAPÍTULO II 78 O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER SOB A PERSPECTIVA DA PESSOA E DA COMUNIDADE 78 21 Do indivíduo à pessoa da pessoa ao personalismo 78 22 A antropologia personalista do dado ao desafio 82 23 Sistema e Existência a inesgotável concretude do ser e sua prioridade sobre o conhecimento 86 24 Personalismo e Existencialismo o desarrazoamento da razão deificada 87 25 O mistério da condição humana contra a determinação objetiva 94 26 A aventura pessoal contra os determinismos técnicos 100 27 A metafísica realista personalista e as categorias do universo pessoal 106 271 A existência incorporada e a transcendência na perspectiva do realismo integral contra o dualismo do autômato 108 272 A conversão interior e a dialética entre recolhimento e ruptura no embate contra a objetificação do homem 112 273 Disponibilidade e comunicação Os antídotos contra o isolamento técnico 117 274 Engajamento e Afrontamento o combate contra o aviltamento técnico 120 275 Da liberdade solitária do individualismo liberal à liberdade solidária do personalismo 122 28 Do pessoal ao transpessoal a comunidade de pessoas 124 CAPÍTULO III 131 14 A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA RAZÃO TÉCNICA FACE À EDUCAÇÃO PERSONALISTA 131 31 Educação da paidéia à sociedade do conhecimento Da razão de domínio 133 32 A racionalidade técnica na educação brasileira 137 33 A educação personalista como contraponto à objetificação técnica do homem 144 34 A educação personalista o desenvolvimento da vida interior no seio da vida comunitária 147 341 A educação no aprimoramento do caráter e no respeito às singulares diferenças pela não abstração ou impessoalidade técnica 149 342 Uma Educação popular com relevância prática e comunitária 151 343 O processo do conhecimento e o lugar da formação da pessoa na educação personalista 154 344 A perspectiva do engajamento na educação para o combate 156 345 A vocação pessoal face à especialização técnica 159 346 O papel da família do Estado da escola e do corpo educativo na educação personalista 161 347 Os infortúnios do adestramento da educação autoritária 164 348 Educação física e intelectual A contra face da dualidade na educação dualismo cognitivo 166 349 A ética personalista na educação 167 35 Desespero otimista pessimismo ativo ou otimismo trágico 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS 173 BIBLIOGRAFIA 184 15 INTRODUÇÃO Eis o que devemos recusar a odiosa polidez deste mundo que coage a viver no seu ritmo e segundo suas leis MOUNIER in DOMENACH LACROIX GUISSARD 1969 p 11 A racionalidade técnica na busca de uma dominação plena através da política da cultura da educação da mídia ou qualquer outro meio passível de intervenção tem destituído a pessoa do seu potencial crítico e de resistência Os valores e ideais inerentes a essa racionalidade técnica têm dificultado a promoção de uma existência humanizada relegando a grande massa a uma subserviência passiva condescendente e reprodutora dos seus objetivos de controle Dos seus pressupostos edificaramse sociedades hiperracionalizadas e com elas organizações tecnocráticas de controle e coerção que só acentuaram a reificação e aviltamento da pessoa Neste processo de controle de todas as esferas da existência humana a educação tem ocupado papel de destaque A pedagogia por exemplo de arte de ensinar tem se transformado num aparato técnico e num conjunto de estratégias de ensinoaprendizagem que tem comprometido o próprio conhecimento substituído por um conjunto de informações e por um acúmulo de saberes racionalistas e cientificistas carentes de uma dimensão humanizadora porém úteis para a boa condução dos novos ideais técnicos A razão moderna tal como foi delimitada pelos ideais Iluministas do século XVIII em sua busca por um pleno domínio da natureza e do mundo humano não expressa uma real preocupação com a formação da pessoa priorizando atender aos interesses do capital e aos princípios do conhecimento cientificista que objetifica homens e coisas pela uniformização das diferenças e pelo cálculo O Esclarecimento ADORNO e HORKHEIMER 1985 se por um lado contribuiu para desmitificar a realidade destituindoa de antigos dogmas por outro criou novas utopias como a crença na ciência e na técnica como condição de uma nova e feliz inserção do homem no mundo Os ideais iluministas promoveram de fato obscurantismo reduzindo a razão humana a seu potencial meramente instrumental e manipulador Paradoxalmente ao tentar realizar seus ideais de emancipação do homem realizou o seu contrário enfatizou muito os meios esquecendose que ela é também e fundamentalmente uma faculdade de fins Em decorrência um malestar foi gerado pela crescente desconfiança e suspeita com relação aos 16 ideais Iluministas e positivistas que fizeram da ciência o lugar da verdade e o único meio para a redenção humana tendo em vista um progresso supostamente infinito Muitos acreditaram que a técnica promoveria uma sociedade harmônica equilibrada e feliz onde os homens produziriam e consumiriam tranquilamente conforme as ideologias burguesas que buscavam responder pelo imperativo do lucro e do conforto a todas as inquietações sociais Contudo houve um despertar generalizado diante da precipitação das sociedades mais desenvolvidas na guerra e na destruição demonstrando que a técnica além do conforto que proporciona representa sobretudo poderio ELLUL 2003 p 424 O homem acabou dividido entre as benesses e os males que a razão técnica pode ensejar Resultante desses ideais de domínio técnico vivenciamos uma série de barbáries dentre elas duas guerras mundiais e o extermínio industrial de milhões de pessoas nos campos nazistas de concentração Tais acontecimentos ao lado do totalitarismo fascista crescente na Europa geraram estupefação no espírito daqueles que não sucumbiram à indiferença ou ao otimismo cego quanto ao progresso Do inconformismo compartilhado surge o questionamento se realmente se poderia falar de fato em progresso na história Emmanuel Mounier foi uma testemunha indignada dessa época visto que vivenciou todo esse drama na Europa e o consequente clima de desânimo banalização da vida e negação da pessoa dele decorrentes Para Mounier a época dos campos de concentração viu edificar a organização fria racional científica e cotidiana do aviltamento do homem Mounier que foi breve em sua existência carnal se eternizou a partir do seu legado problematizador Homem experimentado nos sofrimentos porém os enfrentou com grandeza de espírito e resignação cristã segundo o autor caminhos necessários ao aperfeiçoamento e à superação no que tange a questões de transcendência Mounier afirmava não haver elevação sem luta perdas dilaceramentos e despojamentos Aprendeu a beber das fontes mais secretas e profundas das experiências do deserto existencial pelo qual peregrinou grande parte da sua vida Em uma carta em 04 de setembro de 1939 escreve sua receita de resistência e perseverança à sua mãe Paulette Mounier É preciso transformar em alegria tudo que a felicidade nos recusa MOUNIER 1988 p 721 No contexto das suas vivências pessoais Mounier se depara com uma civilização nova técnica e com um homem novo desintegrado em sua totalidade e inteiramente reconstruído para atender às suas demandas e vontade de potência Intervenções técnicas 17 estratégicas foram se concentrando paulatinamente nas mãos de um Estado totalitário como a educação A autonomia do homem foi sendo retirada para que pudesse imperar a autonomia da máquina também totalitária ELLUL 2003 Para Mounier a sociedade moderna inteira encontrase em crise que não é só de ordem social política ou econômica mas de valores uma crise de civilização situada nas estruturas de base da existência humana conforme Andreola 1985 Atento aos acontecimentos Mounier nos convida a refletir sobre os avanços técnicos e científicos da nossa época destituídos de valor para o autor quando não têm como fim o próprio homem O objetivo das suas análises segundo Andreola 1985 p 45 é alertar contra a opressão e a destruição do homem e denunciar a miséria da civilização moderna fruto do que Mounier interpretou como sendo uma desordem estabelecida Inerentes a essa desordem encontramse de um lado a ditadura capitalista e o poder das sociedades anônimas como os bancos e as empresas internacionais que para Mounier são os verdadeiros Leviatãs deste século e de outro o comprometimento do cristianismo com o mundo burguês que nasceu e se desenvolveu contra o espírito cristão ANDREOLA 1985 p 152 Essa crise de civilização tem afastado o homem de si mesmo e do mundo bem como tem comprometido a sua absoluta condição de pessoa enquanto um projeto inacabado e em permanente construção ser integral porém singular e insubstituível consciente e engajado nas causas do mundo circundante Em contrapartida o homem tem sido transformado em um mero material estatístico padronizado egocêntrico que busca o conforto e conduz suas ações com base numa orientação mercantil FROMM 1983 Esse homem vem se constituindo historicamente na condição de indivíduo expurgado dos ideais comunitários e liames sociais Os novos dispositivos e organizações técnicas têm promovido uma acelerada objetificação nas relações sociais políticas e econômicas no contexto atual muito mais preocupada com a otimização do sistema o aumento de lucros que no bemestar verdadeiro das pessoas Por obra de uma crescente corrosão da subjetividade a condição humana passa a contar pouco diante da regulação hegemônica das instituições elaboradas por essa 2 Ressaltamos que uma espiritualidade cristã esclarecida permeia todo o pensamento de Mounier SEVERINO 1974 p 8 que a reconhece como sua contínua fonte de inspiração MOUNIER 1961b p 75 18 racionalidade técnica Por perderem de vista o próprio homem fazem do sujeito apenas objeto A razão que antes prometera emancipar e libertar o homem dos determinismos e acasos reduzidos a uma dimensão instrumental ADORNO HORKHEIMER 1985 técnica tem contribuído para a sua gradativa utilização e manipulação pelos interesses capitalistas resvalandoo cada vez mais para um mundo sem profundidade para a superfície e para a instantaneidade A razão técnica enquanto inteligência instrumentalizada tem promovido uma existência vazia e inautêntica Seu maior triunfo operacional a máquina ainda que proporcione conforto e potencialize o esforço do homem em sua objetividade o despersonaliza relegao ao papel de um mero instrumento de produção subserviente e sem autonomia crítica Segundo Mounier 2004 p 69 a era da técnica fará correr os maiores perigos ao movimento de personalização O indivíduo se sente cada vez menos senhor do seu meio que por seu lado se desenvolve e se organiza fora da sua alçada a uma velocidade cada vez maior as máquinas as massas os poderes a administração o universo e suas forças apresentamse lhe cada vez mais uma generalização da ameaça enquanto ele procurava nelas uma generalização de proteção MOUNIER 2004 p 69 Por outro lado a ciência com sua crença no mundo objetivamente dado promoveu uma compreensão reduzida da realidade degradouse do mundo do espírito fragmentandose numa multiplicidade de disciplinas a serviço das profissões e das exigências do mercado produzindo um mundo destituído de mundo e também um homem desumano A positividade da técnica e da ciência fizeram do homem um ser perdido no mundo e no esquecimento de si mesmo um desterrado Sob a lógica da produção tudo se coloca a serviço do fazer da funcionalização como condição de sua validade científica Possui valor o que pode ser medido quantificado previsto e estruturado de forma objetiva neutra e operacional como resultado prático útil e imediato aos problemas apresentados pela nova realidade social Os princípios dessa racionalização extremada de controle e planificação dos quais decorrem na atualidade novas formas de gestão e organização burocráticas tendo em vista potencializar os alcances dos interesses econômicos em um mundo cada vez mais acirrado pela competitividade e controlado pelo cálculo têm gerado profundas confusões na educação 19 visto se tratar de um setor que dada a sua própria especificidade não é tão facilmente redutível a essas ferramentas organizacionais Uma série de mecanismos de controle da educação muitas vezes regulada de fora da atividade por pessoas que desconhecem a prática da sala de aula e a partir de um instrumental de gestão tecnicista com ênfase na eficácia eficiência e produtividade negligencia inúmeros aspectos importantes que a regem FREITAS 2012 Sua tarefa de formar seres críticos e não fragmentados capazes de resistência contra toda forma de alienação e afirmatividade ADORNO 1995 foi relegada a um plano inferior quando não inexistente A educação no capitalismo tem se tornado uma mercadoria subordinada às exigências mercadológicas cada vez mais expressa em instituições técnicas e formadoras unicamente do homo faber Dessa forma deixa de ser um poder espiritual decisivo na constituição de um verdadeiro universo de pessoas Disseminada por instituições que têm as leis de mercado como condição ela acaba convertendo pessoas em material humano a ser preparado para render o máximo no processo de produção ou descartado por inadaptação ou incompetência Essa educação objetificante prepara especialistas fragmentados visando apenas à ascensão social perpetuadora dos ideais burgueses de riqueza e competição deixando de cumprir sua tarefa essencial que é a de formar pessoas críticas solidárias e éticas Prioriza a formação de técnicos que servirão à continuidade do sistema e da sua miséria não só financeira mas também social e intelectual Segundo Ellul 2003 a artificialidade e a autonomia da técnica tendem a excluir toda criatividade espontaneidade e capacidade de escolha do homem eliminando cada vez mais sua liberdade diante das organizações técnicas Mounier por sua vez também reconhece os embaraços promovidos pela civilização técnica ao desenvolvimento da autonomia do homem e se questiona sobre os rumos do progresso técnico no que tange à sua emancipação Mounier identifica a utilização da técnica pela economia capitalista com a finalidade de aumentar o seu potencial lucrativo como a fonte dos grandes males que assolam o progresso por enfatizar o desenvolvimento material em detrimento do crescimento espiritual do homem Por outro lado também reconhece que a própria técnica traz consigo elementos que contribuem para o que ele entende como sendo a demissão da pessoa 20 Todavia se a razão técnica com seu objetivo de manipulação utilitarista das coisas e pessoas aponta um diagnóstico da nossa época Mounier se mantêm otimista quanto à possibilidade dessa mesma racionalidade conduzir o desenvolvimento técnico no sentido do aprimoramento da condição espiritual do homem para consigo mesmo e no tocante às suas relações sociais Sua crença fundamentase na perspectiva de uma revolução personalista e comunitária transformadora da visão do homem da educação e do conhecimento científico e técnico a partir de uma total ruptura com os valores predominantes na sociedade burguesa Esse otimismo de Mounier engendrou as inquietações que deram origem a essa pesquisa uma vez que aparenta negligenciar alguns aspectos que são inerentes à própria lógica de dominação oriunda da racionalidade técnica que busca o êxito e o aperfeiçoamento constante e ininterrupto em todas as suas formas de manifestação Nesse sentido buscamos questionar a partir das perspectivas de Mounier se o domínio da técnica sobre o homem hoje seria total ou não e como a educação que hoje tem servido para atender às demandas sociais originadas dessa racionalidade técnica pode contribuir para uma efetiva emancipação da pessoa Se por um lado para Mounier a racionalidade técnica tem contribuído para a objetificação do mundo e o consequente aviltamento do homem procuramos avaliar a possibilidade de um bom uso de uma técnica que emerge dessa mesma racionalidade e em que sentido a partir de Mounier a educação poderia contribuir para a construção de um homem novo que por sua vez contribuiria para a construção de uma civilização nova De outra parte procuramos avaliar o alcance dessa razão instrumental diante das estruturas singulares que caracterizam o universo da pessoa nos questionando pelo tipo de sujeito que emerge dos mecanismos de coerção das forças dos dispositivos técnicos e como com efeito poderia ser resgatada pela via dessa mesma razão utilizada outramente a pessoa autêntica e livre comprometida com uma prática educacional e social emancipadoras Procuramos avaliar a atual posição da pessoa aviltada pelo domínio da razão técnica e suas possibilidades de libertação a despeito de todos os mecanismos de organização e dominação social Avaliando as perspectivas de Mounier nos interrogamos pela possibilidade diante dessa razão instrumental imperante no contexto atual de uma relação não objetificante entre pessoas autênticas e livres em uma sociedade emancipadora A partir das análises do autor 21 avaliamos sua proposta personalista de resgatar uma vivência e convivência entre pessoas autônomas diante de um contexto mediado pelos dispositivos técnicos A partir dos ideais formativos de Mounier nos propusemos a analisar as contradições e implicações dessa racionalidade técnica aplicada a uma educação mercantilizada objetificante e reprodutora dos interesses do grande capital muitas vezes ideologicamente ocultados por seus discursos pseudodemocratizantes em detrimento de uma efetiva formação da pessoa Como contraponto procuramos apontar as alternativas que Mounier propõe quanto à formação da pessoa pelas vias da educação como tarefa inicial viabilizadora de toda e qualquer edificação ou transformação no ser pessoal e nas estruturas sociais Mounier não vê a técnica como um tirano devorador e implacável como Ellul Pelo contrário para Mounier a dominação ainda que de fato ocorra e cresça vertiginosamente não é total Mounier acredita assim na capacidade do homem de fazer escolhas como a de lutar pela sua liberdade e se contrapor a todo ideal imperialista da técnica como também a vê como possibilidade de ser uma grande aliada no desenvolvimento dos ideais mais sublimes da humanidade Por acreditar no uso da técnica para o progresso não só da ciência mas do próprio homem Mounier afirma Andreola 1985 p 107 não se posiciona contra o progresso técnico mas contra a coisificação do homem pela máquina contra a impessoalidade das coisas e o esquecimento dos homens dispersos em uma distância isolante pautada na negação do outro O objetivo pedagógico de Mounier é resgatar a pessoa em sua inteireza em uma proposta de educação como técnica de restauração do homem integral não de redução de suas potencialidades Sendo assim a dimensão formativa do personalismo de Mounier faz face a essa razão técnica no que ela tem direcionado as políticas e práticas educacionais para a manutenção das estruturas do capitalismo e da objetificação e anulação da singularidade própria do sujeito Mounier intenta conduzir a educação como um meio de transformação do homem viabilizadora da construção de uma comunidade de pessoas Suas observações quanto à formação da pessoa têm em vista estimulála e resgatála em sua autenticidade e independência bem como despertála para a descoberta e para o exercício de sua singular vocação através do realce da unidade dialética das estruturas inalienáveis do seu ser pessoal Uma pessoa livre e consciente poderá promover ações engajadas e responsáveis no interesse da comunidade 22 Mounier propõe a reconstrução não só dos valores que norteiam a percepção moderna de mundo mas também do próprio homem Segundo o autor para reconstruir o homem só uma nova Renascença e refazêla será a sua grande proposta Nesse processo uma tarefa deve se colocar acima de todo regime que obstaculiza a promoção da pessoa a primazia do espiritual sobre todas as áreas que envolvem a sua vida sobre o político sobre o econômico sobre a técnica MOUNIER 1961b p 11 O ideal de progresso para Mounier não são o conforto a segurança ou ainda a felicidade nem tem o autor a ilusão de que a política possa promover a recondução do homem ao paraíso O político pode ser urgente ele é subordinado O último ponto que nós visamos não é a felicidade o conforto a prosperidade da cidade mas o desenvolvimento espiritual do homem Se nós perseguimos o bem político não é na ilusão que ele vai lhe assegurar uma vida sem riscos sem sofrimentos e sem sedes3 MOUNIER 1961b p 15 A postura de Mounier nos remete à percepção de que não podemos sucumbir ao domínio da técnica que a serviço do capital tem mecanizado as relações enquanto tem coisificado os homens esquecendoos como sujeitos do processo histórico pessoal e social O personalismo de Mounier proclama que o ser humano não deve ser concebido como mera massa de manobra reprodutora dos valores interesses e ideais mercadológicos dominantes Nesse sentido o projeto de Mounier implica a construção global de um novo homem bem como de uma sociedade e civilização novas a partir de uma intencionalidade pedagógica Mounier não se ocupa com a construção de um sistema filosófico mas com a edificação de um sistema pedagógico engajado como um conjunto de estratégias e ações práticas orientadas sobretudo para os problemas mais urgentes do nosso tempo a partir da ação de existências incorporadas e reais totalmente distintas dos homens preconizados como universais abstratos pelos frios ideais da letra revolucionária iluminista A experiência da miserabilidade humana e a luta contra o materialismo e o individualismo que surgiram a partir dos ideais do capitalismo estão na base do pensamento de Mounier e encontramse na proposta da Revolução personalista e comunitária Para o autor uma verdadeira revolução não pode ser apenas exterior ela inicia seu processo no homem interior Uma pedagogia alicerçada em profundas escavações interiores necessárias à formação de um ser integral e elevado possibilitará sua transcendência bem como mudanças 3 Le politique peut être urgent il est subordonné Le dernier point que nous visons ce nest pas le bonheur le confort la prospérité de la cité mais lépanouissement spirituel de lhomme Si nous poursuivons le bien politique ce nest pas dans lillusion quil va lui assurer une vie sans risques sans souffrances et sans soifs MOUNIER 1961 b p 15 23 no contexto exterior O personalismo é a pedagogia do homem total contra a desordem estabelecida Contudo a libertação efetiva do homem exige que o poder conferido à técnica promova paralelamente uma intensificação da sua vida espiritual a partir do crescimento do seu nível moral Mounier adverte que para que a técnica possa servir à melhoria das condições de vida do homem sem dominálo controlálo ou objetificálo ela deve ser orientada por valores transcendentes aos do capital É com ênfase nesses valores que a proposta pedagógica de Mounier se constitui visando à afirmação da pessoa acima de toda situação que possa promover seu aviltamento Como uma tese é mais uma obra humana que intelectual já dissera Mounier 1988 p 495 compartilhamos com o autor o desgosto pelo clima árido frio impessoal e desengajado da academia que se mantêm muito distante da existência concreta dos homens Assim a escolha do tema da pesquisa se justifica por razões que excedem as intelectuais como a crise de valores da nossa época que também inspirou os questionamentos do movimento personalista Nesse sentido a presente pesquisa procurou empreender a partir da visão personalista de Mounier uma incursão aos problemas mais imediatos e urgentes que a racionalidade técnica tem acarretado para a constituição do ser pessoal na educação na atualidade Em contrapartida buscou avaliar as possibilidades e vias para uma transformação se não dos valores que conduzem os ideais do domínio técnico na educação ao menos e inicialmente da pessoa enquanto sujeito do conhecimento em prol de sua efetiva elevação a partir dos princípios formativos do personalismo Na persecução desses fins adotamos o método fenomenológico existencial uma vez que o próprio pensamento de Mounier apresenta esse tipo de orientação ao primar pelo humano contra o formalismo do rigor lógico de todo sistema Debater o fenômeno da pessoa e da sociedade foi tarefa assumida pelo movimento fenomenológico em diferentes perspectivas A fenomenologia personalista de Mounier por sua vez denuncia e tenta corrigir os desvios dessa razão instrumental A partir da ideia de intencionalidade o personalismo de Mounier empreende uma metafísica da pessoa humana buscando elaborar uma descrição 24 do universo pessoal Em sua preocupação com a existência busca a presença dos fenômenos anteriores às ideias que os retratam respeitando a pluralidade cultural e as diferenças Em Introdução aos existencialismos Mounier explicita sua posição fenomenológica ao abordar o seremsituação de Jaspers que coloca em questão não apenas as ambivalências inerentes à existência pessoal mas também a objetividade do conhecimento científico e técnico Não escolhi o meu lugar no combate Não sei sequer ao certo qual o significado do combate E contudo este é o meu lugar esta é a minha situação O mundo em que ela me insere não é o mundo mas o meu mundo a um tempo mundo captado e mundo agido Se para o sábio existe um mundo objecto sabemos que não é esse o mundo da experiência Para o existente é impossível colocarse como que fora do mundo para o abraçar na sua totalidade como dado exterior O que tomo pelo mundo objectivo mais não é que um compromisso entre diversas visões do mundo entre elas a científica e a minha O meu mundo é sempre solidário do meu ponto de vista Descubroo orientandome nele E o que é a verdade para o mundo no seu conjunto éo para a minha situação particular que mais não é do que o mundo para mim Não sou espectador A minha situação não é um concurso de circunstâncias objectivas que possa exprimirse em esquemas claros Estou na minha situação antes de a elucidar e de me elucidar com ela e o mundo conosco Nem sequer é visão objectiva ultrapassa a consciência que dela posso tomar arrastame para a frente de mim próprio e das minhas representações4 MOUNIER 1962 p 71 O central na fenomenologia é a preocupação com o homem que não pode ser tratado numa perspectiva de objetividade neutralidade ou comprovação empírica O mundoobjeto do sábio não é o mundo da experiência afirma Mounier O existente não se coloca fora do mundo para abarcar sua totalidade como um dado exterior MOUNIER 1962 p 71 Continua o autor que não podemos desconhecer quando se fala do mundo o seu caráter 4 Je nai pas choisi ma place au combat Je ne sais même pas au juste la signification du combat Et cependant cette situation est mienne elle est ma situation Le monde où elle minsère nest pas le monde mas mon monde à la fois monde perçu et monde agi Il y a bien pour le savant un monde objet Mais ce nest pas le monde de lexpérience Il est impossible à lexistant de se mettre comme hors du monde pour lembrasser dans sa totalité comme un donné extérieur Ce que je prends pour le monde objectif nest quun compromis entre différentes visions du monde dont la scientifique et la mienne Mon monde est toujours solidaire de mon point de vue Je le découvre en morientant en lui Ce qui est vrai du monde dans son ensemble lest de ma situation particulière qui nest autre que le monde pour moi Je nen suis pas le spectateur Elle nest pas un concours de circonstances objectives que je pourrais exprimer en shèmes clairs Je suis dans ma situation avant de lélucider et de mélucider avec elle et le monde avec nous Elle nest pas non plus vision subjective elle déborde toujours la conscience que jen puis prendre mentraîne en avant de moi et de mes représentations MOUNIER 1962 p 71 25 humano O objeto é objeto para o homem Ibidem p 76 Nesse sentido não há nem expectador nem objeto imparcial no mundo Mediados pela fenomenologia e pela dialética métodos abertos de conhecimento que capacitam a apreensão dessa realidade histórica contraditória tanto o existencialismo quanto o personalismo buscam a análise da experiência vivencial desse sujeito do conhecimento A filosofia existencial é essencialmente dialética pois se desenrola no composto do desenvolvimento histórico e da relação transcendente da pessoa MOUNIER 1962 p 33 o que caracteriza sua autenticidade Conforme Severino 1990 p 25 a postura epistemológica de Mounier já representava uma reorientação do próprio logos da fenomenologia existencial radicalizando a afirmação de que a pessoa é inacessível à razão à diferença de todos os demais seres objetos da ciência positiva ou da filosofia racionalista O método existencial de aproximação da verdade também é dialético afirma Mounier pelo seu dever de aceitar os túneis do nãosaber 1962 p 121 Conforme o autor Só um pensamento dialético pode exprimir esta mistura de ser e de não ser de saber e de não saber que é o mundo do ser transcendente5 MOUNIER 1962 p 133 O método dialético invalida toda pretensão de objetividade e previsibilidade advogada pelos ideais técnicos O homem permanece um mistério inacessível a qualquer determinação objetiva e objetificante Para Lacroix a dialética primeira se dá no diálogo do sistema e da existência O método dialético substitui o método lógico com suas categorias por categorias históricas promovendo a descoberta progressiva do espírito humano que se conhece pouco a pouco construindose através de suas contradições LACROIX 1962 p 6264 Assim mediante essas perspectivas metodológicas a tese que se defende aqui parte da fragilidade da paradoxal postura de Mounier em acreditar que diante da possibilidade de um uso benéfico da técnica em prol do desenvolvimento do homem a intencionalidade advinda dessa racionalidade técnica e condutora das organizações sociais dela decorrentes como a educação seria a grande responsável pelo aviltamento da pessoa e pela crescente perda de sua autonomia que ainda que não seja total tem dificultado todo processo de comunicação e transcendência eliminando aos poucos qualquer tentativa de ruptura O otimismo de Mounier parece desconsiderar problemas que são inerentes à própria técnica conforme tem apontado autores como Martin Heidegger ou Jacques Ellul 5 Seule une pensée dialectique peut exprimer ce mélange dêtre et de néant de savoir et de nonsavoir quest le monde de lêtre transcendant MOUNIER 1962 p 133 26 Logo buscamos questionar esta crença otimista de Mounier por acreditarmos ser inerente à própria razão e sua consequente racionalização o processo de objetificação e aviltamento Ainda que Mounier responsabilize o homem pela má direção da utilização da técnica acreditamos que outros elementos que lhe são intrínsecos devem ser considerados como o fato de ser a essência da técnica de dominação diante de uma razão que é em si mesma controladora e planificadora Se de uma perspectiva fenomenológica o objeto o é para o homem não havendo nem sujeito nem objeto imparcial no mundo a técnica em si mesma também não pode ser imparcial ou neutra A própria razão da constituição da técnica já contém intencionalmente elementos que pendem à uma busca de aperfeiçoamento crescente e ininterrupto tendem à busca matematizável por eficácia eficiência e êxito que se encontram no projeto cartesiano e que está na fonte da dominação moderna conforme constata Ellul 2003 Mounier acredita que a técnica é passível de ser utilizada como instrumento de libertação do homem dado certa autonomia que ainda lhe é preservada Porém ao que parece um outro mundo constituído com outros valores seria necessário como palco de suas realizações o que nos leva a crer que no que tange à situação presente a autonomia da técnica tem de fato dificultado a autonomia do homem Contudo a despeito do quanto de independência ou não restaria ao homem hoje Mounier encontra no resgate do ser pessoal uma via para a restauração da sua emancipação por ser apenas a pessoa capaz de resistir a toda forma de degradação o que será viabilizado pela educação personalista Por estas razões a tese busca avaliar a pessoa que emerge desta nova lógica de domínio da técnica resultante de uma razão baseada no cálculo e na objetificação do mundo e do homem da qual a educação também é herdeira Nesse sentido busca avaliar a contribuição da educação humanizadora de Mounier como contraponto a esta educação burguesa Diante do atual contexto onde o homem tem se tornado refém dos próprios aparatos que ele mesmo criou para sua comodidade vivendo na contradição entre produtividade e destruição dominação e progresso prazer e infelicidade Mounier propõe uma reformulação da formação da pessoa visando resgatar seus valores inalienáveis ainda que um outro contexto social e político sem negociações com o sistema capitalista seja necessário como campo de efetivação plena desses valores Logo no primeiro capítulo buscamos analisar numa perspectiva mounieriana a questão da técnica na modernidade e suas implicações no processo de objetificação do homem e dos ideais científicos que acabaram por promover o que Mounier chama de crise da civilização que desembocou na demissão da pessoa Esta crise é decorrente do 27 conhecimento originado a partir da razão moderna cartesiana que acabou cingindo fragmentando não só a compreensão da realidade diante dos ideais capitalistas de domínio da natureza e do homem mas também a existência encarnada do próprio sujeito do conhecimento abrindo as vias para que a intencionalidade técnica pudesse operar Alguns pressupostos teóricos da crítica de Mounier à razão moderna como a emergência do indivíduo e do individualismo algumas mudanças de ordem política e econômica assim como as suas influências na formação da visão de mundo hoje imperante foram analisados Por fim no primeiro capítulo buscamos avaliar na racionalidade técnica alguns problemas inerentes à essência da técnica seus rumos e desafios Questionamos sobre o papel do homem na civilização técnica suas limitações bem como suas potencialidades Em diálogo com as perspectivas de Jacques Ellul e Martin Heidegger procuramos analisar a partir de Mounier o quanto de autonomia é ainda possível para o homem diante da crescente autonomia da técnica No segundo capítulo da pesquisa diante da visão mounieriana do domínio da razão técnica e dos excessos do individualismo no plano moral buscamos explicitar os aspectos fundamentais do personalismo de Mounier a partir da noção de pessoa considerando sua tridimensionalidade existencial bem como dos ideais de comunidade expressos em grande parte das suas obras Neste capítulo buscamos avaliar a partir das estruturas do universo pessoal segundo Mounier as possibilidades de transcendência da pessoa diante do mundo técnico circundante Neste capítulo abordamos os pressupostos teóricos da antropologia personalista de Mounier a questão da condição existencial da pessoa enquanto um mistério inacessível bem como dos limites do conhecimento No terceiro e último capítulo da pesquisa por sua vez procuramos apontar a partir do diagnóstico dos sistemas oriundos da razão técnica inclusive no plano educacional alguns desafios e tarefas que se apresentam à educação na era da técnica cuja essência seria determinada por princípios tais como funcionalização automação burocratização eficácia quantificação eficiência e êxito avaliados unicamente pelos resultados que negligenciam aspectos do processo educacional que muitas vezes escapam a toda capacidade investigativa Neste último capítulo fizemos uma abordagem a partir de Mounier das debilidades no plano educacional em que tais sistemas tecnificantes redundaram e o quanto eles têm servido a um maior e crescente aviltamento da pessoa Como contraponto a esta 28 educação tecnicista no capítulo procuramos analisar as propostas educacionais de Mounier que visam contribuir para o resgate do sentido mais absoluto de ser pessoa pela via de seu processo de formação a partir do estímulo ao exercício das categorias inalienáveis do ser pessoal explicitadas no capítulo anterior 29 CAPÍTULO I INDIVÍDUO PESSOA E SOCIEDADE FACE À RAZÃO TECNICISTA Deus bem poderia ter criado um ser maravilhoso todo constituído como um belo autômato Mas sendo Ele mesmo Liberdade ao mesmo tempo que Sabedoria um ser feito à sua imagem deveria escolher livremente ser ou não ser esta maravilha A árvore escolhida para o teste desta escolha era a da ciência do bem e do mal A seiva que nutre ao mesmo tempo o bem e o mal estava no paraíso A procura do saber e do poder não são logo malditos Sem dúvida eram proibidos até que o homem em seu livre crescimento fosse suficientemente maduro para não mais fazer um uso mortal Ele não soube esperar MOUNIER 1959 p 24 11 Da tékhne grega à racionalidade técnica A razão enquanto faculdade intelectiva eminentemente humana desde seu despertar diferenciador do mito na Grécia Antiga passando pelo Renascimento com a reorientação da concepção de ciência e de sociedade até nossos dias vem se manifestando de forma cada vez mais desarrazoada As ações predadoras no planeta e no interior do próprio homem vêm suscitando a necessidade de se repensar os valores e ações que tem norteado o progresso levantando a questão da autonomia ou subserviência do homem diante dos dispositivos e direcionamentos técnicos que ele mesmo criou Mounier acredita na autonomia do homem diante da técnica que tem a possibilidade de permanecer substancialmente como um instrumento em suas mãos a despeito de sua má utilização histórica Essa posição contudo nos remete à indagação quanto à possibilidade de uma utilização da técnica para fins contrários talvez à sua própria razão de ser à sua essência de dominação O pensamento de Mounier se contrapõe a várias outras perspectivas que veem a técnica como essencialmente calculadora Para Heidegger e Ellul por se apoiar fundamentalmente no projeto de matematização da ciência inaugurado por Descartes a técnica moderna traz em sua própria natureza perceptível em sua história procedimentos e resultados uma lógica de dominação 30 Heidegger vê a técnica como um princípio determinante de nossa época o que não permite compreendêla apenas pelos seus efeitos sem alcançar sua essência O autor critica a limitada perspectiva antropológicoinstrumental da técnica que a concebe como um meio como um instrumento a serviço do homem por acreditar que ela não esgota todas as suas possibilidades Para Heidegger a técnica é de fato um instrumento a serviço do homem porém de sua subjetividade ávida em dominar e controlar a totalidade dos entes obedecendo a um único imperativo o da vontade de vontade que busca intensificar a si mesma HEIDEGGER 1997 p 53 Nessa concepção não está implícita a ideia de um controle da técnica por parte do homem mas pelo contrário a fúria da técnica obriga a natureza a se lhe sujeitar num processo infinito de dominação onde o próprio homem passa a ser também seu objeto Ellul 2003 alerta para o fato de que ao se pensar na técnica exclusivamente como um meio ou instrumento o homem permanece independente e autônomo mas pelo fato da técnica haver penetrado todos os campos sociais e o próprio homem ela acabou por convertê lo em um objeto ELLUL 2003 p 1011 Todavia historicamente a técnica nem sempre exerceu este papel de dominação plena e irrefreável Assim como a ideia de formação do homem foi desvirtuada do seu sentido original aos moldes da paidéia grega voltaremos à questão no último capítulo desta pesquisa a técnica tal como a conhecemos hoje não tem o mesmo sentido que tinha para os filósofos gregos da antiguidade Heidegger 1997 afirma que nas origens do pensamento grego o Ser não era conhecido mas experienciado como uma presença misturada com as coisas presentificadas Do ponto de vista ontológico a experiência do ser entre os gregos se difere da experiência do ser entre os modernos Para os présocráticos o ser simplesmente é Em sua manifestação pura e espontânea as coisas se dispõem tal como se manifestam Nesse sentido estando o homem nivelado com a verdade sua razão é apta para apreendêla pois logos physis polis cosmos encontramse todos em comunhão formando uma totalidade regida pelas mesmas leis Tékhne no sentido grego não se traduz por técnica no sentido atual Desde os tempos mais antigos até o de Platão a palavra tékhne segue ao lado da palavra epistéme que significam ter um bom conhecimento uma boa compreensão de algo Os gregos nivelavam tékhne e physis apesar de serem conceitos distintos Eles apreendem na tékhne uma relação essencial com a physis em sua totalidade enquanto aquilo que é capaz de se desvelar por si 31 mesmo Nesse sentido conforme Ferreira Jr a tékhne tratavase de um produzir enquanto passagem do ocultamento do ser para o desocultamento um trazêlo à frente à presença no sentido de poíesis 2012 p 113 No diálogo Protágoras Platão 1987 diferencia tékhne e tyche Porque a tyche diz respeito à sorte ao que o homem não controla deve ser eliminada pela tékhne que proporciona um certo domínio sobre as contingências e a satisfação de necessidades e produção através de uma aplicação deliberada da inteligência humana Conforme Castoriadis 1993 o termo técnica no seu sentido grego tecnikon designa o que pertence à tékhne que remonta ao antigo verbo grego teucho que significa fabricar produzir construir Aqui referese ao método à produção ou ao fazer eficaz CASTORIADIS 1993 p 236 Nos gregos a tékhne é capacidade para produzir utensílios e obras de arte conduz à aparição coisas que a natureza seria incapaz de produzir mas isto não implica uma atitude arrogante e de agressão à physis Pelo contrário a tékhne procura entrar em harmonia com o desocultamento constitutivo da physis Já a técnica moderna é uma incessante provocação generalizada da physis Para Heidegger o poder desafiador da técnica moderna incita ou força toda a existência a se dedicar ao planejamento e cálculo de tudo o que invalida a ideia do homem como sujeito da técnica e senhor da natureza Para Heidegger a essência da técnica moderna está no que ele chamou de Gestell no sentido de armação arrazoamento instalação que procura submeter ao cálculo e à planificação todas as coisas FERREIRA JR 2012 p 120121 Técnica hoje significa uma ciência aplicada e preocupada com a eficácia baseada em um pensamento experimental que opera sobre objetos materiais Esta aplicabilidade estendeu se à manipulação do homem e se faz presente nos princípios organizacionais de seus interesses inclusive na educação Orientase para esquemas mecânicos visando transformar conscientemente a natureza e o homem objetivando controle Para Heidegger a técnica não se limita a um meio ou instrumento ela é também um modo de desabrigar o ser é alétheia que traz em si um telos uma finalidade para a qual um objeto foi construído HEIDEGGER 1997 p 53 O desabrigar imperante na técnica moderna para o autor não tem um sentido de poíesis no sentido de trazer à presença levar à frente o ser que é inerente à própria physis mas é um desafiar que estabelece para a natureza a exigência de fornecerse para ser utilizada pelo homem HEIDEGGER 1997 p 57 A técnica moderna não é mais uma 32 contemplação e um cultivo harmonioso da natureza mas um ataque violento que obriga tudo o que há a se revelar como algo disponível a uma vontade de poder insaciável FERREIRA JR 2012 p 16 Ellul 2003 recorda que os gregos foram os primeiros a ter uma atividade científica coerente mas dissociavam ciência e técnica Por desprezarem as necessidades materiais consideravam a investigação técnica indigna da inteligência enfatizando o exercício da razão mais abstrata como o único digno de ser conservado Tal perspectiva grega para Ellul 2003 obedece a um conjunto de razões bem precisas como o descrédito para com o trabalho manual em razão da escravidão bem como a suspeita quanto à desmedida da atividade técnica para o homem que se choca com a preocupação grega com o equilíbrio e a harmonia ELLUL 2003 p 3234 Para Ellul 2003 é necessário diferenciar técnica e ciência Historicamente a técnica precede a ciência Enquanto a ciência é ocidental a técnica é oriental e se desenvolve quase destituída de fundamento científico orientada totalmente para a aplicação ELLUL 2003 p 1112 Como uma aplicação da ciência experimental adaptada à vida prática a técnica é um fenômeno universal uma consequência da universalidade da ciência da qual é dependente ELLUL 2003 p 135 12 Técnica e ciência na modernidade As raízes da razão moderna e de toda cultura ocidental encontramse nas tentativas dos primeiros pensadores gregos préSocráticos de estabelecer uma compreensão racional dos mistérios da natureza porém a racionalidade instaurada pela Revolução Científica do século XVII inaugura um novo modo do homem pensar o mundo e a si mesmo Pensadores renascentistas defendem a ideia de que a observação a experimentação as hipóteses lógico racionais os cálculos matemáticos e os princípios geométricos são os instrumentos fundamentais para a compreensão dos fenômenos naturais Para esta percepção contribuíram o projeto matemático da ciência da Natureza de Galileu a ideia baconiana do conhecimento como síntese entre observação experimentação e razão teórica e as elaborações acerca da origem e das formas da soberania política fundamentadas na perspectiva de um direito natural anterior e superior ao civil CHAUÍ1984 p 82 Valorizase a capacidade da razão humana para conhecer e transformar a realidade natural e política e a confiança numa ciência ativa ou prática em oposição ao saber puramente 33 contemplativo ou teorético como era para os gregos HUSSERL 2006 derivando no interesse pelo desenvolvimento das técnicas A metafísica da subjetividade do filósofo francês René Descartes 1999 inaugura a hegemonia do sujeito pensante res cogitans como senhor e controlador da natureza gerando a crença no poder absoluto da razão humana em manipular todos os setores do saber e da sociedade A experiência da dúvida universal pretende se constituir como um método capaz de desembaraçar radicalmente a tradição os preconceitos os hábitos e a opinião pessoal Da radicalização da dúvida de sua hiperbolização emerge a evidência do Cogito a afirmação de um sujeito consciente de seu objeto conteúdo de pensamento e de si mesmo O sujeito cartesiano com seu olhar objetificante ocupa o lugar central no conhecimento Ele sobrevoa a realidade vista agora como um mecanismo apreciável matematicamente Com Descartes tudo o que existe fora do ego humano passa a ser objeto de representação de sua subjetividade Só é real o que pode ser representado conforme os princípios imanentes deste sujeito supostamente neutro e impessoal Numa perspectiva matematizável Descartes pretendia distinguir o verdadeiro do falso a partir de um método que fosse fecundo a todos os ramos do saber Na parte II do Discurso do Método ele apresenta a regra de não aceitar nada que não seja claro e evidente DESCARTES 1999 p 49 Tais ideais verificamse no projeto iluminista de estender a crítica da razão a todos os campos do conhecimento humano A dúvida metódica cartesiana e a emergência da evidência do Cogito inauguraram não apenas uma ordem para as ideias da qual se deduz a existência de Deus e do mundo exterior mas fundamentaram o pensamento moderno na busca pela objetividade do conhecimento6 assim como geraram uma visão dualista da realidade à qual Mounier se oporá veementemente O homem foi dividido entre espírito e matéria sendo também separado da natureza De um lado foi colocada a coisa pensante a res cogitans a razão e de outro a 6 Esse vasto desenvolvimento desemboca em Kant 17241804 que elabora uma crítica como ato de um sujeito transcendental que irá determinar os limites princípios e o território da Razão humana no campo do conhecimento da ética da política e da religião A consciência do filósofo consciência universal intersubjetiva é a consciência do Sujeito humano suporte da universalidade da Razão e das condições a priori do conhecimento Hegel consagra esse ponto de vista A consciência idolatra sua realização no Espírito como Saber Absoluto Hegel tenta superar o dualismo kantiano entre fenômeno e coisa em si entre o presente e o dever ser reconciliando esses momentos no interior do Saber Absoluto onde se identificam o em si e o parasi Para além da dúvida metódica o Cogito cartesiano tornou certo de si mesmo e de seu objeto na medida em que retomou o itinerário exposto na Fenomenologia do Espírito que conduz o espírito da consciência imediata do aqui e agora ao ingresso no Saber Absoluto onde desde o mais distante de si o Espírito encontrase na posse de si mesmo Hegel prepara as recusas das Ilusões do Sujeito Pensante e do monopólio do absoluto presentes nas obras de Marx 18181883 Freud 18561939 e Nietzsche 18441900 34 coisa extensa a res extensa o mundo do espaço o mundo material Esta visão dualista e linear da realidade para os modernos vem substituir a visão grega que é cíclica e não dissocia natureza physis e razão logos o conhecimento e o homem Somado a essa perspectiva matematizável de Descartes de controle da realidade o programa do Iluminismo vem promover a ideia de um contínuo progresso do intelecto humano banindo a magia do mundo e substituindo a imaginação pela ciência experimental por isso técnica fundamentada na ação A partir desse projeto tanto a natureza quanto a tradição devem ser submetidas ao poder de análise e de síntese da razão humana única fonte da verdade e autoridade Buscase portanto a defesa do conhecimento científico em sua dimensão técnica como instrumento de transformação do mundo e da melhoria progressiva das condições materiais da humanidade mas que acabaram por negligenciar o seu crescimento espiritual Logo o nascimento da razão moderna se dá a partir de cisões e dicotomias entre mente e corpo sujeito e objeto ciência e mundo da vida homem e natureza entre outras responsáveis pela degradação das condições de vida no planeta e pela alienação do homem no mundo da produção fazendo dele a primeira matériaprima da fúria da técnica Para Mounier 1961b Descartes está nas fontes do divórcio entre o homem e a natureza que ensejou a perspectiva imperante no universo técnico considerando apenas a objetividade da realidade enquanto negligencia o sujeito que a compõe e lhe dá significado A perspectiva do cálculo acabou por sucumbir o próprio homem aos aparatos por ele mesmo criados Relegado a uma posição inferior pelo domínio da técnica o homem agora esquecido necessita repensar a si mesmo e ao mundo que ele mesmo criou Escreve o autor a propósito de Descartes Nós sabemos como ele cortou a matéria do espírito varreu dela todos os apelos e todos os ecos que o uniam ao homem como este universo que respondia a nossa voz que nós tocávamos com a mão e do coração mesmo o artesão acaricia sua obra inacabada do seu pensamento ele a livrou vacante ao poder das matemáticas Da estufa do mundo elas não guardaram que a superfície mensurável e os jogos codificados pálida cidade de números sobre uma paisagem sem fundo sem pátina sem história sem alma O mundo o tomava como uma pureza e uma firmeza desconhecidas Mas o homem estava ausente e não encontrava que a ausência O universo estava redobrado e o espírito boiava desamparado sobre este caos mecânico embaixo um mundo máquina que representa só a técnica acima uma superestrutura espiritual tão radicalmente estranha a ele que ela não tardará a parecer ineficaz e supérflua Portanto demitido de seu ser o espírito tinha ainda acesso à cidade nova pelo cálculo7 MOUNIER 1961b p 25 7 On sait comment il a coupé la matière de lesprit balayé delle tous les appels et tous les échos qui lunissaient à lhomme comment cet univers qui répondait à notre voix que lon touchait de la main et du coeur comme lartisan caresse son ouvrage gonflé de sa pensée il la livré vacant à la puissance des mathématiques De 35 Assim a razão moderna surge movida pelo ideal de uma dominação técnica da natureza via ciência ávida por controlar a natureza e o homem Sua plenitude se consumaria na busca de maior produtividade e eficiência ideal mecanicista e determinista que concebe a natureza como um autômato enquanto reduz a complexidade da realidade a determinadas leis simples Um de seus graves erros na perspectiva de Mounier foi o de atribuir ao comportamento humano as mesmas relações invariáveis de causa e efeito que presidem as leis da natureza ignorando a especificidade do homem como ser predominantemente histórico e cultural ao mesmo tempo único imprevisível e irredutível a fórmulas prontas Todavia a razão que anima os ideais iluministas é a de Locke e Newton Locke como empirista é crítico do inatismo cartesiano das ideias Para o autor sendo a alma uma tábula rasa o conhecimento começa com a experiência sensível LOCKE 1978 p 145163 O paradigma newtoniano parte da observação dos fenômenos para descobrir as forças que os animam e as relações matemáticas que os unem fazendo desse universo um Cosmos e não um Caos Conforme Chauí 1986 um grande impulso ao crescimento dos ideais empiristas se dá com Francis Bacon que no Novo Organum I 24 nos lega a máxima de que saber é poder Segundo Chauí 1986 desse adágio originarseá o homem moderno que na qualidade de sujeito do conhecimento e da ação é movido pelo desejo de dominação prática sobre a totalidade do real fundada numa ideia de objetividade que a torna susceptível de domínio controle previsão e manipulação CHAUÍ 1986 p 62 O saber contemplativo e desinteressado deve ser superado pelo saber instrumental pelo método indutivo a partir da observação e da experiência Os ideais empiristas se consolidam a partir de meados do século XIX na Europa com o triunfo do Positivismo e sua visão redentora da ciência e da sociedade através do domínio da razão técnica sobre todas as áreas do conhecimento humano Descobertas científicas curas de doenças e a ideia de progresso humano e social irrefreável levaram à crença de que a ciência resolveria todos os problemas da humanidade Consolidase o primado da ciência sobre todas as áreas do saber cujo método o das ciências naturais física létoffe du monde eles nont gardé que la surface mesurable et les jeux chiffrés pâle cité de nombres sur un paysage sans fond sans patine sans histoire sans âme Le monde en prenait comme une pureté et une fermeté inconnues Mais lhomme en était absent et ny trouvait que labsence Lunivers était dédoublé et lesprit flottait désemparé sur ce chaos mécanique en bas un mondemachine que relève de la seule technique au dessus une superstructure spirituelle si radicalement étrangère à lui quelle ne tardera pas à apparaître inefficace et superflue MOUNIER 1961 b p 25 36 química biologia deveria ser aplicado também às ciências humanas a partir da observação e da experimentação Auguste Comte cujo pensamento apresenta forte aspecto empirista é um grande representante desse movimento e o fundamenta a partir da percepção de que o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade passam necessariamente por três estados evolutivos cujo último estado o positivo ou científico retrata a maturidade do espírito humano Esses estados para Comte são tão latentes que assumiriam mesmo diante de sua imutabilidade a forma de lei COMTE 1973 p 910 Assim a reorganização intelectual e moral necessária à nova ordem e condição para o progresso deveria se basear no conhecimento positivo e na consequente resignação às leis naturais que regem a sociedade DIAS 1990 p 2829 Inaugurase a era da ciência experimental técnica e utilitária à qual Comte confere um caráter absoluto Em resumo ciência daí previdência previdência daí ação tal é a fórmula muito simples que exprime duma maneira exata a relação geral da ciência e da arte tomando essas duas expressões em sua acepção total COMTE 1973 p 29 É a ciência que deve oferecer ao homem as armas para o domínio da natureza estando condenada qualquer pesquisa científica cuja utilidade não seja evidente Neste sentido a concepção comteana além de cientificista é também tecnicista baseada no modelo da ciência aplicada a partir da relação causa e efeito Esse entusiasmo quanto a ciência ser o único conhecimento válido afetou fortemente as ciências humanas que para serem reconhecidas como ciências deveriam usar métodos semelhantes aos das ciências da natureza O homem passa a ser analisado a partir do mesmo espírito cientificista imperante nas ciências da natureza e submetido aos seus modelos de verdade de modo objetivo neutro operacional o que acabou por desconhecêlo e objetificálo A razão moderna e a doutrina cartesiana do sujeito pensante encontraram seu coroamento em Hegel em sua exposição da experiência que a consciência faz consigo mesma desde a certeza sensível até se tornar Espírito absoluto na plena posse de si no saber absoluto Com a ideia da prioridade do pensamento em relação à realidade de Hegel é o sujeito em suas experiências quem institui a verdade do objeto apreendido pelo método dialético A tarefa do pensamento é pois a de problematizar o dado o já estabelecido Decorrente de todas estas transformações no desenvolvimento da razão humana a técnica apesar de ser a ciência aplicada nos acontecimentos históricos atuais tem superado a ciência que convertida em meio em estratégias para a ação já não se concebe sem seu 37 resultado O utilitarismo científico adquire a partir da técnica uma força tal que já não pode existir investigação desinteressada à maneira dos gregos ELLUL 2003 p 1415 Diante dessa razão que prioriza produtividade e eficiência o homem sentese cada vez mais estranho num mundo que ele acredita dominar 13 Da hegemonia do cogito à intencionalidade fenomenológica e personalista sendo os recursos da pessoa indefinidos nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza MOUNIER 2004 p16 O determinismo newtoniano na visão moderna de mundo correspondendo às perspectivas da Revolução Industrial e do capitalismo mudou radicalmente as bases técnicas e econômicas da sociedade A essência da razão moderna com sua crença no triunfalismo da ciência submete o mundo a um esquema teórico universal a partir de aplicações de leis gerais como instrumento de controle e dominação Associado à previsibilidade permitiu até certo ponto um maior controle sobre a natureza Seu ideal de progresso ganhou força com o movimento positivista passando a reprimir qualquer tipo de cognição que não fosse regida pela causalidade e pelo determinismo Contudo o século XX mostrou que o conhecimento científico é sempre instável um oceano de possibilidades horizontes de verdades que revelam algo mas não o todo A verdade científica numa perspectiva fenomenológica é apenas uma das formas com que as coisas se apresentam Husserl 2006 constatou que a ciência e a técnica bem como a própria filosofia passavam por uma crise de sentido Por não esclarecerem seus fundamentos pressupostos e condições de possibilidades estavam alheias ao mundo da vida preocupadas apenas com o mundo objetivado do cálculo Conforme Husserl 2006 a ciência moderna com sua crença no mundo objetivamente dado opera por sua naturalização reduzindo o conhecimento da realidade Reduz a res cogitans à res extensa a noções matemáticas tendo a exatidão como princípio Mesmo as ciências humanas para o autor falam do sujeito como objeto objetivandoo tornandoo fato coisa entre outras Husserl aponta o esquecimento do sujeito pela ciência o que veio abrir os veios para o domínio da técnica para sua autonomia em detrimento da autonomia do homem que vai se transformando em seu instrumento Husserl 2006 critica então a crença no progresso triunfalista da ciência afirmando a complexidade da realidade denunciando a simplicidade advogada pelos positivistas O contraponto do autor é a tomada de consciência da subjetividade ponto central da 38 fenomenologia que torna possível uma nova realidade teorética Esta possui como cerne de análise não o mundo já constituído mas o mundo constituinte da consciência que para o autor operaria uma total transformação na tarefa do conhecimento HUSSERL 2006 p 50 Para Husserl a crise da humanidade europeia tem sua origem num transvio da racionalidade grega a partir de uma interpretação estreita e limitada que gerou um super racionalismo sob o padrão das ciências matemáticas da natureza Como consequência o naturalismo e o objetivismo passam a mediar a compreensão da subjetividade que o autor buscará resgatar a partir da conexão entre racionalidade e vida Ibidem p 3751 A ciência matemática da natureza afirma Husserl é uma ótima técnica para se fazer induções mas relativa diante de seus métodos e teorias que negligenciam inclusive o papel do próprio sujeito do conhecimento Enquanto realização ela é um triunfo do espírito humano No que respeita porém à racionalidade dos seus métodos e teorias ela é uma realização completamente relativa Pressupõe já uma abordagem ao nível do fundamental que carece ela própria de uma efectiva racionalidade Na medida em que o mundo circundante intuitivo este mundo simplesmente subjectivo é esquecido na temática científica é também esquecido o próprio sujeito que trabalha e o cientista não se torna nunca um tema HUSSERL 2006 p 46 Segundo Husserl o resultado do desenvolvimento técnico consequente das ciências exatas na modernidade promoveu uma verdadeira revolução no domínio técnico sobre a natureza mas ao qual não se seguiu uma contrapartida no conhecimento e no desenvolvimento do espírito que é uma realidade objetivamente fundada no mundo e na corporalidade Pelo contrário criou uma atitude dualista fragmentada A razão técnica isolou se do mundo criando um malestar que é para Husserl 2006 p 45 de método negligenciando a subjetividade que deveria compor a ciência Inaugurouse assim uma nova racionalidade a razão técnica e objetivista que se tornou hegemônica priorizando a quantificação e a formalização do saber Neste sentido as ciências e a filosofia precisam ser refundadas numa volta ao seu sentido originário grego clássico que enquanto ciência universal se interessava pelo todo Devem retornar à razão crítica e humanizadora a partir do retorno às coisas mesmas ao mundo da vida Em Husserl a tarefa própria da fenomenologia não é explicar ou analisar os fenômenos mas retornar a eles mesmos a partir de nossas próprias visões e experiências sem as quais os símbolos da ciência não possuem nenhum significado Em consonância com Husserl afirma MerleauPonty que tudo o que sabemos a respeito do mundo ou da própria ciência o sabemos pela intersecção que estabelecemos com eles pela experiência da qual 39 somos a fonte absoluta percorrendo a realidade com nosso próprio olhar HUSSERL 2006 p 48 MERLEAUPONTY 2006 p 23 Na perspectiva fenomenológica de Husserl o eu não é uma coisa isolada no mundo ao lado de outras coisas num mundo previamente dado nem as pessoas se encontram separadas umas das outras mas prevalece um íntimo ser unsnosoutros e ser unsparaos outros HUSSERL 2006 p 49 Husserl promove uma discussão acirrada entre racionalismo e empirismo e critica a cisão sujeitoobjeto conhecimentomundo pensamentoação própria da visão dicotômica positivista a partir da categoria da intencionalidade Na fenomenologia o objeto deixa de ser inerte para se constituir como objeto para a minha consciência que não é separada do mundo Nesse sentido não existem dados brutos a cognição se dá na relação entre o observador e a coisa observada cujo sentido é dinâmico histórico uma vez que a realidade humana é inesgotável e as vivências são intencionais Aquele que filosofa dirá procede a partir de seu próprio eu HUSSERL 2006 p 49 O interesse da fenomenologia não é o mundo que existe mas o modo como o conhecimento do mundo se dá para cada pessoa o que nos permite compreender a realidade para além de sua empiricidade e imediatez uma realidade que está na própria existência Conforme MerleauPonty 2006 p 10 afirmar que a consciência é intencional é afirmar que ela só é consciência do mundo porque o revela como estranho e paradoxal O cogito husserliano diferentemente do cartesiano não substitui o mundo pela significação do mundo se reconhece como aquele que pensa a partir desse mundo da vida que está aí no qual ele é protagonista como sernomundo O cogito fenomenológico não reduz a existência à consciência dela leva em conta minha encarnação na natureza e sua situação histórica MERLEAUPONTY 2006 p 9 Lembra Husserl que a natureza não é alheia ao espírito de quem a observa Para o autor é um contrasenso alicerçar as Ciências do Espírito nas Ciências da Natureza com a pretensão de tornálas exatas uma vez que qualquer ciência é uma realização espiritual que reflete a visão dos cientistas seus naturais colaboradores HUSSERL 2006 p1516 Para MerleauPonty 2006 p 1314 a consciência é consciência inicialmente de si depois de algo Ligase a uma perspectiva teleológica a partir de uma experiência intersubjetiva Perceber um objeto é intencionálo é tornálo significativo O cogito fenomenológico não é o do conhecimento impessoal Conforme MerleauPonty 2006 p 14 O mundo não é aquilo que eu penso mas aquilo que vivo estou aberto ao mundo comunico me indubitavelmente com ele mas não o possuo ele é inesgotável Numa perspectiva 40 fenomenológica também o conhecimento não tem a pretensão de alcançar a verdade Tratase apenas de assumir que tudo são possibilidades num salto para a vida autêntica O personalismo de Mounier fundamentase nesta perspectiva fenomenológica Admite que a ciência moderna que redundou nos ideais de domínio técnico sobre o homem e a natureza trouxe uma crise de sentido que deve ser urgentemente avaliada Por haver negligenciado o espiritual do homem alheouo do mundo da vida humana e concreta reduzindo tanto a dimensão da realidade quanto as possibilidades cognitivas e ativas do próprio sujeito do conhecimento Mounier denuncia que a objetividade da ciência foi reduzindo a percepção da amplitude do ser pessoal enquanto foi obstaculizando o desenvolvimento de suas potencialidades Faz notória a necessidade do resgate de sua autonomia pelas vias de um contínuo processo de personalização A fim de reunir a pessoa numa perspectiva de integralidade busca romper com as dicotomias e objetificações operadas pela razão positivista Será esta perspectiva fenomenológica de Mounier que o afastará das concepções deterministas que veem esta racionalidade técnica como imperante e intransponível em nossa realidade atual Para Mounier 1962 p 18 a transparência do cogito é uma ilusão que engloba um elemento de obscuridade inelucidável pois o ato mesmo do pensamento é um mistério que não é inteiramente claro ao espírito Por isso acrescenta Severino 1974 devemos abandonar a pretensão de nos colocarmos diante do mundo como que diante de um espetáculo Como o homem e o mundo são opacos a consciência pessoal não pode ignorar os complexos condicionantes SEVERINO 1974 p 3839 Neste sentido a objetificação da realidade e do próprio homem advinda da hegemonia da racionalidade do cogito cartesiano e da consequente pretensão matematizável de controle e domínio do real que ensejou o domínio técnico é colocada em causa Conforme Mounier nossa civilização padece de uma crise de valores originada do afastamento da ciência do mundo da vida humana e concreta Contudo essa crise de valores também é fruto de uma crise de crenças resultante da decadência maciça e quase contemporânea não só do racionalismo mas também do próprio cristianismo as duas grandes religiões do mundo moderno na linguagem do autor Enquanto por um lado alguns criam na infalibilidade ilimitada da razão sustentada pela ciência por outro do desvirtuamento da crença em Deus os ideais capitalistas adentraram no seio da Igreja MOUNIER 1959 p 17 Construiuse assim uma ciência sem parâmetros éticos gerando um medo que tem aniquilado com o homem e com o mundo MOUNIER 1962 p 16 41 Para o autor Se priva da metade da compreensão da história quem pretende interpretar a idade das guerras mundiais e das febres totalitárias sem fazer referência à crise europeia do cristianismo a morte de Deus em muitos psiquismos assim como à intemperança da consciência organizada e extrovertida no curso dos últimos séculos técnica industrial racionalismo das ideias claras crescimento unilateral das ciências da matéria refinamentos da análise sentimental intelectualismo da fé desenvolvimento do espírito utilitário do enriquecimento da economia etc8 MOUNIER 1971 p 569 Numa perspectiva fenomenológica Mounier coloca a questão do conhecimento e do sujeito enquanto pessoa e como ser da educação Mounier não vê a pessoa como um puro instrumento passivo da ciência e da técnica Para o autor diante de qualquer dispositivo técnico ela ainda é protagonista de uma relação que depende da sua participação cognitiva num processo de interação intencional e consciente do qual não pode ser apenas vítima ou um joguete A educação personalista em contraste com esta perspectiva matematizante e objetificante operada pelos ideais dessa razão técnica que não singulariza a pessoa mas a coloca como um mero número diante de uma massa amorfa e acrítica leva em consideração suas particularidades que ainda que menosprezadas pela prática formativa atual são reais e devem ser estimuladas e trabalhadas no sentido de um despertar para a autonomia e para a liberdade transformadoras da visão de mundo dominante em prol da constituição de uma comunidade de pessoas Cabenos questionar contudo o quanto de autonomia resta para o homem diante da força com que tem operado esta racionalidade o quanto o homem é servo ou pode ser de fato senhor da técnica 14 A emergência do indivíduo e a desconstrução dos princípios da razão moderna e do sujeito pensante Marx Nietzsche e Freud Da prerrogativa cartesiana das possibilidades do conhecimento como atributo da humanidade deuse a transformação do sujeito do conhecimento no indivíduo burguês fruto do Estado Liberal Este sujeito emerge da razão instrumentalizada que veio prometendo emancipar mas ao se converter em ciência como sustentáculo da organização técnico 8 Se priva de la mitad de la comprensión de la historia quien pretenda interpretar la edad de las guerras mundiales y de las fiebres totalitarias sin hacer referencia a la crisis europea del cristianismo la muerte de Dios en muchos psiquismos así como a la intemperancia de la conciencia organizada y extravertida en el curso de los dos últimos siglos técnica industrial racionalismo de las ideas claras crecimiento unilateral de las ciencias de la materia refinamientos del análisis sentimental intelectualismo de la fe desenvolvimiento del espíritu utilitario del enriquecimiento de la economía etc MOUNIER 1971 p 569 42 industrial transformouse ela própria em mito do qual havia pretendido libertar ADORNO HORKHEIMER 1985 Em decorrência as condições e possibilidades do saber passam a exigir mediações não mais apenas de ordem cognitiva O conhecimento agora é concebido como sendo sempre parcelar e processual por isso incompleto A questão ontológica própria da Antiguidade e da Idade Média que se perguntava pelo o que é ou quem é o ser passa na Idade Moderna a ser gnosiológica metodológica teoria do saber do como é possível conhecer MORENTE 1979 p 5963 A questão agora é a de se conhecer o sujeito que conhece que não é só o do cogito do abstrato do conhecimento mas do sentimento da angústia sujeito real concreto e inesgotável Tratase de se perguntar pelo próprio homem enquanto um objeto da mesma ordem epistêmica do sujeito conhecedor irrecortável histórico nebuloso e incompleto Buscarseá portanto uma ruptura uma ultrapassagem para um novo modelo de se pensar o homem Novas formas de racionalidades e experiências préreflexivas do real sugeridas por pensadores como Nietzsche Marx Freud e pelos novos paradigmas das ciências contemporâneas colocam em questão um outro sujeito do saber e do conhecimento não tão objetificável como preconizaram os ideais de controle técnico Marx Freud e Nietzsche questionaram a hegemonia do sujeito pensante ao propor o enraizamento da razão na vida no desejo no trabalho e no mundo Sentir emoções desejos agir comunicarse produzir ideias e obras de arte são algumas das múltiplas atividades da existência humana Por outro lado a partir desses pensadores observase a inconveniência e mesmo a impossibilidade de se dividir o homem à maneira cartesiana entre um interior e um exterior entre mente res cogitans e corpo res extensa Cada um desses autores por caminhos diversos postula os limites da razão e sua dependência às camadas existenciais pré cognitivas e préreflexivas inconscientes instintivas simbólicas Conforme Mounier a postura desses autores lança três golpes de reprovação a essa civilização excessivamente segura do seu equilíbrio Marx revela que não há harmonia na economia e aponta a luta sem tréguas das forças sociais Freud desmascara a harmonia psicológica e revela a voracidade dos instintos enquanto Nietzsche denuncia a decadência da moral e anuncia o niilismo europeu MOUNIER 2004 p 116 A partir desses autores passouse a reconhecer o caráter histórico e finito da razão bem como que a apreensão racional do mundo alimentase de experiências originárias irredutíveis aos conceitos e princípios lógicos Agora o Penso não leva à evidência do Existo Assim a razão moderna 43 após a crise do seu projeto de domínio absoluto do real apresentase como uma razão que avalia interpreta e que acima de tudo sabe que algo sempre permanecerá não dito e impensável em todo dito e pensado Marx observa que a dúvida cartesiana na realidade não questiona radicalmente todas as opiniões anteriores e preconceitos do senso comum Na verdade o Sujeito Pensante é um homem de espírito velado por todo tipo de pressuposição ideológica Para Marx Descartes age como se o homem se identificasse apenas à consciência de si e não como um indivíduo datado histórico tendo que satisfazer suas necessidades materiais mediante o trabalho Não é a consciência de um sujeito puro que determina a vida mas é a vida que determina a sua consciência dirão Marx e Engels 2008 p 1920 Contudo para Marx uma vez supridas as necessidades econômicas dos indivíduos as restantes se resolveriam por consequência e acréscimo Contra Marx Mounier dirá ser uma ilusão acreditar que o fim da miséria material marcará a libertação definitiva do homem pois o econômico não pode se solucionar separadamente do político e do espiritual aos quais ele está intrinsecamente subordinado Logo é uma ilusão acreditar que o fim da miséria material marcará a libertação definitiva do homem MOUNIER 1961a p 99 pois os problemas humanos não datam só da crise econômica e a proteção contra a tirania econômica pode gerar outras fontes de dominação piores ainda Por outro lado o próprio marxismo para Mounier 1961a além de deslocar a comunidade não coloca o problema do homem singular e livre do ponto de vista das exigências da pessoa humana que seria submetida em seu destino singular à disposição de um poder temporal centralizado e à dominação espiritual pelas atividades técnicas da Nação Para Mounier 1961a p 22 tratase apenas de uma nova teocracia às avessas Permanece com efeito na base do marxismo uma negação fundamental do espiritual como realidade autônoma primeira e criadora Esta recusa toma duas formas Primeiro o marxismo rejeita a existência de verdades eternas e de valores transcendentes ao indivíduo ao espaço e ao tempo ou seja ele rejeita essencialmente por seu postulado primeiro não somente o cristianismo e a crença em Deus mas toda forma de realismo espiritual Ele não vê na realidade espiritual que reflexos ideológicos pelo menos um estado segundo o ser Em segundo lugar ele não dá lugar em sua visão ou em sua organização do mundo a esta forma última da existência espiritual que é a pessoa e a seus valores próprios a liberdade e o amor9 MOUNIER 1961a p 3536 9 Il reste en effet à la base du marxisme une négation fondamentale du spirituel comme réalité autonome première et créatrice Ce refus prend deux formes Dabord le marxisme rejette lexistence de vérités éternelles et de valeurs transcendantes à lindividu à lespace et au temps cestàdire quil rejette essentiellement par son 44 Nietzsche por sua vez propõe a superação da hegemonia da razão a partir da ideia de uma transvaloração de todos os valores e de uma mudança de perspectiva com relação ao conhecimento da verdade Para o autor os grandes ideais da humanidade são sintomas de decadência que justificam o domínio dos que negam a existência em função de um outro mundo Para Nietzsche a razão o intelecto e a consciência apenas servem para preservar uma existência medíocre Para além do humano e da ilusão da boa consciência e seus valores Nietzsche conclama a atingir o sobrehumano o vitorioso o forte o alémdohomem Ele entende que o homem não passa de uma experiência que muitas vezes malogra na superação de si pela impotência de se propor grandes alvos O superhomem projeto da obra Assim falou Zaratustra foi criado como expressão da preocupação de Nietzsche com o homem total cujo inimigo é a fragmentação do conhecimento e a petrificação da experiência A crítica de Nietzsche aos espíritos sistemáticos visa ao caráter dogmático que acredita na posse integral de uma verdade absoluta NIETZSCHE 1999 p 364 Para Nietzsche a vida sempre ultrapassa os limites que o conhecimento lhe impõe Em Humano demasiado humano encontramos a ideia do viraser que revela não existir fatos eternos nem verdades absolutas Por conseguinte o que se precisa agora é do filosofar histórico e da virtude de se contentar com este fato NIETZSCHE 2000 p 16 Nietzsche também critica os valores supremos de nossa civilização como a moral a religião a metafísica a cultura as ciências Coloca sob suspeita tudo o que até hoje se venerou e amou como o Bem o Belo e a Verdade tidas para o autor como sintomas de decadência fraqueza e aviltamento do que há de nobre e forte no homem A filosofia teria uma tarefa especial para Nietzsche a educação superior da humanidade o que exigiria uma transvaloração uma inversão de todos os valores até então consagrados Essa educação não visa à melhoria das massas mas ao aperfeiçoamento de um tipo novo de homem que esteja para além do bem e do mal Mounier recorda que Nietzsche foi o primeiro a denunciar os prejuízos intolerantes e segundas intenções obcecadas que se ocultavam por trás do sectarismo da objetividade científica ou filosófica Também para Mounier o afã de tranquilidade que a razão técnica apregoa não é mais que o reverso da ansiedade vital Para o autor são os espíritos esgotados postulat premier non seulement le christianisme et la croyance en Dieu mais toute forme de réalisme spirituel Il ne voit dans la réalité spirituelle que reflets idéologiques à tout le moins un état second de lêtre En second lieu il ne fait nulle place dans sa vision ou dans son organisation du monde à cette forme dernière de lexistence spirituelle quest la personne et à ses valeurs propres la liberté et lamour MOUNIER 1961 a p 3536 45 e decadentes que buscam a verdade que não conduz a nada Armamse de prejuízos predileções e parcialidades préconcebidas porque não querem empenharse na aventura inquietante de uma verdade viva único caminho que conduz às realidades ocultas cuja presença nos intranquiliza e nos incita ao combate Assim para o autor como o é para Nietzsche o escrúpulo científico é frequentemente um pseudônimo honroso da covardia intelectual MOUNIER 1971 p 611 Já para a psicanálise os diferentes sujeitos não têm identidade única de forma determinista Seus desenvolvimentos são resultantes de todo um histórico particular de vida onde interagem elementos objetivos e subjetivos Em Psicologia de grupo e a análise do ego Freud afirma que os fenômenos inconscientes desempenham papel inteiramente preponderante na vida orgânica e nas operações da inteligência FREUD 2006b p 8485 A grandeza de Freud para Mounier 1971 consiste em ter sido o primeiro a proclamar que em última análise toda psicologia desemboca em uma singularidade dramática porque a existência psicológica é uma vida constituída não por abstrações verbais ou fisiológicas senão por acontecimentos entrelaçados cujo ator é uma pessoa concreta Por esse prisma não há um só de nossos tics ou de nossos esquecimentos que não se vincule igualmente que os atos conscientemente motivados às estruturas mais íntimas de nossa história e de nossas disposições pessoais10 MOUNIER 1971 p 34 Contudo Mounier 1971 critica em Freud os determinismos consolidados e as forças inflexíveis do ser como um joguete de um passado inexorável e ameaçador Para Mounier as forças que operam nas experiências psíquicas particulares não são dadas de antemão os próprios indivíduos as põe O Eu não somente é um mediador crítico com a realidade mas é reação contra o dado vontade de afirmação e de poder capacidade de sacrifício MOUNIER 1971 p 53 Mounier recorda que todo fato psicológico é um acontecimento em primeira pessoa e inseparável de uma história de uma afirmação de uma significação e de uma valorização pessoais Para o autor a explicação psicológica não se esgota como a explicação física no nexo causal no estabelecimento de relações objetivas comprovadas de fora entre elementos ou funções É essencialmente uma compreensão ou seja a interpretação pessoal pelo observador de uma significação pessoal MOUNIER 1971 p 43 10 no hay uno solo de nuestros tics o de nuestros olvidos que no se vincule al igual que los actos conscientemente motivados a las estructuras más íntimas de nuestra historia y de nuestras disposiciones personales MOUNIER 1971 p 34 46 Buscavase antes de Freud a pura representação da personalidade desligada do corpo do ambiente O grande mérito do pai da psicanálise para Mounier 1971 foi o de nos alertar que o eu é antes vivido e só depois contemplado sendo por isso contra as psicologias idealistas e materialistas Ele dirá que sendo a existência manifesta em primeira pessoa mesmo a mais mental das sínteses não extrairá jamais comprovações a partir da objetivação sistemática da vida psicológica em terceira pessoa Ibidem p 514 Das críticas desses autores novas formas de se ver o mundo e o homem fizeramse necessárias A racionalidade moderna já não mais respondia às inquietações humanas Conforme Moix 1968 p 142 a busca pela felicidade oriunda desta razão técnica não triunfou sobre a animalidade do homem não conseguiu neutralizar as paixões Desagregaram se lentamente as bases deste edifício até ruílo por completo 141 Individualismo liberal e coletivismo democrático as fachadas do totalitarismo técnico Outras questões estão na fonte das inquietações de Mounier além das críticas desses autores supracitados pois não só a racionalidade moderna ruiu como outros graves problemas humanos sobrevieram Para Mounier 1971 o mal é mais profundo visto que o mundo moderno construiuse inteiramente contra a pessoa humana De um lado o individualismo do mundo capitalista cujo produto mais refinado é o espírito pequenoburguês veio romper com os liames sociais e de outro o fascismo e o comunismo geraram sérias tiranias coletivas MOIX 1968 p 122 Para Mounier todos esses totalitarismos o personalismo visa combater O individualismo tem suas fontes no postulado fundamental das doutrinas do Contrato Social instrumento do racionalismo político cuja ideia é de que a sociedade não é um fenômeno natural mas uma criação artificial e voluntária de um indivíduo autônomo livre e capaz de determinar os rumos dos acontecimentos sociais econômicos e políticos Esta ideia adveio das transformações da visão central que o homem tinha de si na Idade Média e do desenvolvimento econômico em fins desse período que faz emergir uma nova classe social a burguesia comercial e com ela toda uma sustentação teórica baseada na ideia de que a sociedade não seria um fenômeno natural mas estabelecida por um pacto entre livres contratantes com o objetivo de atender aos seus interesses individuais Nesse sentido as doutrinas do Contrato Social repousam sobre um princípio individualista é preciso conhecer o indivíduo para conhecer a sociedade Elas buscam no 47 indivíduo na ideia de uma natureza humana perene e universal o fundamento da sociedade do Estado e da autoridade política angariando a possibilidade de mudar o homem que exerce o poder e o direito de mudar o sistema Nessa perspectiva a autoridade civil é concebida como uma delegação dos poderes do povo ao governante dentro de certas condições às quais ele se obriga sob pena de perder sua legitimidade Segundo Locke 1978 134 a única vantagem que os homens objetivaram ao renunciar à sua independência natural para formar as sociedades civis foi de assegurar o gozo de seus direitos individuais e naturais Portanto o individualismo é a base do liberalismo Foi a concepção individualista da sociedade onde primeiro existe o indivíduo particular depois o Estado como instituição com poderes diminuídos capaz de lhe assegurar certos direitos que permitiram à burguesia estabelecerse como classe dominante Contudo os princípios que regem as democracias liberais que se seguiram a esta nova perspectiva política exprimem uma antinomia conceitual pois a liberdade e a igualdade não coadunam entre si BOBBIO 1988 Enquanto o princípio da liberdade gera antagonismos competividade o ideal igualitário visa a um certo nivelamento do grupo social inclusive nas oportunidades Logo não se pode obter um sem limitar o outro Assim estão em causa uma liberdade e uma igualdade apenas formais não substanciais apenas teóricas ideológicas que pouca ou nenhuma relação teriam com a prática MARX ENGELS 2008 No que diz respeito à ideia de povo conforme Bobbio 1992 p 119120 tratase apenas de uma abstração frequentemente utilizada para encobrir realidades muito diversas Como o povo não é corpo coletivo também a ideia de maioria é apenas o resultado de uma soma puramente aritmética Também para Mounier 1961a a democracia liberal que repousa sobre o postulado da soberania popular se funda sobre o mito que ainda que seja mito continua atuante da vontade do povo A questão de quem ou o que é o povo e seu conjunto permanece MOUNIER 1961a p 139 Assim sob a máscara de sistemas democráticos se esconde um totalitarismo soft Mounier concorda com Rousseau 1978 p 190 quanto ao fato de que o povo só se exprime em democracias diretas mas que se tornaram impossíveis pela constituição das grandes nações MOUNIER 1961a p 139 Ainda para Mounier a ideia de povo de cidadãos representa apenas a degradação quantitativa da soberania da vontade da maioria supremacia do número logo da força que se forma numa sorte de hipnose de loucura coletiva imposta por uma imprensa dirigida para a massa conduzindo seus gostos e opiniões Segundo Mounier 1961a p 139141 perdese a soberania da vontade da maioria nas armadilhas da indústria eleitoral 48 Na perspectiva de Jacques Ellul 2003 foi esse individualismo que propiciou o progresso técnico sendo mais intenso na Inglaterra a partir do desenvolvimento do capitalismo industrial posterior ao mercantil pela relação entre êxito econômico e necessidades científicas ELLUL 2003 p 60 Por obra da Revolução de 1789 desencadeou se uma luta sistemática contra todos os grupos naturais família corporações ordens religiosas e outros com o pretexto de defender o indivíduo isolado Criouse uma sociedade atomizada na qual o indivíduo é a única magnitude sociológica Porém ao invés de garantir a liberdade provocou a pior das escravidões gerando a plasticidade social necessária para o desenvolvimento da técnica Segundo Ellul 2003 a ruptura dos grupos sociais permitiu migrações do campo para a cidade no século XIX que deram origem à concentração humana que exige a técnica moderna possível unicamente diante de um indivíduo isolado e que já não pode resistir à pressão do poder econômico com sua redução e violência legando ao Estado a autoridade suprema e todopoderosa O fenômeno técnico inicia a partir desta desagregação social sua aplicação a todos os campos em busca da adesão generalizada constituindo o que o autor chama de intenção técnica clara ELLUL 2003 p 5758 Todavia o desenvolvimento da sociedade industrial não diminuiu as funções do Estado como acreditavam os liberais mas aumentouas incomensuravelmente Diante da insatisfação generalizada manifesta sobretudo com a Revolução Industrial na Inglaterra do século XIX onde o social desaba em uma crise sem precedentes houve a necessidade da intervenção do Estado que foi se tornando cada vez mais assistencialista Por sua faceta assistencialista conforme Ellul 2003 as ideias de liberalismo e democracia são só fachadas do Estado técnico que é totalitário Nele não há lugar para o laissezfaire do liberalismo ele é intervencionista e acumula em si todas as técnicas em todas as atividades que absorvem a vida inteira do homem como a educação a economia ou a propaganda o que só aumenta o seu poder Para Ellul 2003 p 205 a técnica é antidemocrática e antiliberal Embora Mounier 2004 reconheça os méritos da Revolução Francesa por haver promovido uma libertação política e social tais emancipações foram limitadas pelo seu contexto individualista que oportunizouse e rapidamente se desenvolveu na fase ascendente do capitalismo O Estado liberal cristalizouo nos seus códigos e instituições lançando as massas na escravidão social econômica e política O indivíduo foi então arrastado para o isolamento sem escolha senão entre a solidão desesperada e a dispersão do desejo ainda que 49 o mito técnico houvesse promovido a crença na possibilidade de uma maior comunicação entre os homens Recuado perante novas angústias e temendo as imprudências do desejo o mundo do pequeno burguês recalcao por detrás de uma aparência de medíocres satisfações instaura o reino do individualismo cauteloso Na mesma época o brusco e repentino surto da técnica rompe as fronteiras do indivíduo e os seus espaços fechados e instala em todos os campos os grandes espaços e as relações coletivas MOUNIER 2004 p 2324 O indivíduo na visão personalista é o homem burguês egocêntrico que estabelece relações apenas no monólogo sem comunicação ou sentimento pelo outro O universo técnico ao contrário de romper com esse individualismo o tem agigantado cada vez mais colocando entre as pessoas uma distância quase intransponível Se por um lado a técnica estendeu o contato entre os homens por outro tem dificultado uma comunicação substancial entre eles tornandoa muitas vezes trivial superficial impessoal como ocorre de modo geral nas redes sociais Sua função como entretenimento visa quebrar o silêncio necessário à interiorização do homem buscando eliminar a angústia que leva necessariamente à reflexão e inquietação libertadoras ELLUL 2003 p 381382 que para Mounier são imprescindíveis na dialética constitutiva do ser pessoal Assim para Mounier 2004 esse individualismo que decorre da sociedade burguesa ocidental com suas ideias e instituições entre os séculos XVIII e XIX apregoou atitudes de isolamento e de defesa Gerou o homem abstrato e desconfiado sem vínculos com o próximo deus supremo no centro de uma liberdade sem direção nem medida bem como gerou instituições voltadas para o lucro a partir da instalação desses egoísmos Essa forma de civilização que passa a se organizar é uma das mais pobres que a história jamais conheceu MOUNIER 2004 p 4445 15 Da crise do sujeito da sociedade e da razão moderna a demissão da pessoa O burguês é na alma um homem que tem medo Medo das lutas medo deste amanhã imprevisível que virá contra suas previsões medo da face mutável dos homens medo de tudo o que não possui A vida do burguês é orientada para a felicidade O burguês ignora a cruz que o menor dos miseráveis o menor dos revoltados experimenta cada dia Eis o homem que nasceu na idade do conforto11 MOUNIER 1961b p 212213 11 Le bourgeois est dans lâme un homme qui a peur Peur des luttes peur de ce jour imprévisible qui viendra demain à la reencontre de ses prévisions peur du visage changeant des hommes peur de tout ce quil ne possède pas La vie du bourgeois est ordeonnée au bonheur Le bourgeois ignore la Croix que le moindre 50 Decorrente dos ideais individualistas que ensejaram o desenvolvimento das técnicas na sociedade moderna emerge um sujeito historicamente constituído na condição de indivíduo pulverizado alienado reificado e fragmentado pelo próprio domínio desta razão técnica Surge o homem do conforto que se crê onipotente mas que não passa de um ser cada vez mais fragilizado e controlado diante do ideal de concretização de uma sociedade que se pauta pela busca incessante de lucro e domínio sobre todas as áreas do saber e do fazer humanos Vimos reproduzir na esfera filosófica o que se passou na esfera econômica o conhecimento de instrumento de transformação se tornar instrumento de produção O pensamento é colocado não mais ao lado do homem mas exclusivamente ao lado das coisas como um meio de classificálas e utilizálas MOUNIER 1962 p12 Em decorrência estabelecese um mercado de saberes no qual a educação se torna apenas mais um produto a ser vendido com êxito e de forma rápida no mercado de diplomas e certificações para um clientelismo cada vez mais vasto e diversificado BOURDIEU 1998 a p 59 Demitido da condição de pessoa o homem perde sua autonomia e é convertido em massa acrítica de manobra no indivíduo burguês que se refugia no sistema no hábito cotidiano no universo do imediato e na segurança das facilidades materiais que obstruem o mistério do ser MOUNIER 1962 p 15 Para Mounier o mundo burguês estabelece uma civilização do haver e do lucro promovendo uma desordem pessoal econômica e social que se reveste de uma ordem apenas aparente mas que é completamente destituída de valores espirituais quando não dissimulada por valores espirituais sem sentido ou por um cristianismo que pouco a pouco foi se identificando com seus ideais MOUNIER apud DOMENACH LACROIX GUISSARD 1969 p73 Para Mounier esse mundo desencarnado formulou uma linguagem que lhe é própria a do dinheiro deificandoo e impondolhe o seu culto Relegou ao esquecimento os valores humanos mais profundos e duráveis agora entediantes diante desse galope de estatísticas e incoerentes com a presteza a eficiência e o êxito que exigem a nova ordem técnica MOUNIER 1961b p 26 Tratase de um tipo de humanidade complementa Moix 1968 p 78 vazia de sentido do ser e do amor votada à felicidade envernizada de polidez de bom humor e de cultura miséreux que le moindre révolté expérimente chaque jour Voilà lhomme qui est né avec lâge du confort MOUNIER 1961b p 212213 51 Berdiaeff 1948 em seu artigo O homem na civilização técnica preceitua que como consequência do avanço da indústria técnica despontou uma moral muito longínqua da fraternidade entre os homens que cultua a força e a competitividade Nesse tipo de civilização pautada no descaso para com a vida humana a luta e a competição tornamse uma das fontes de apreciações morais evidenciando o enorme papel que exercem os esportes O culto da força e do poder se desenvolve cada vez mais Nós vivemos em uma época onde adoramos a força e não a justiça e a verdade Podemos dizer que jamais observamos uma tal indiferença a propósito da verdade Donde a assustadora baixa do preço da vida humana que avaliamos apenas segundo sua produtividade a facilidade da violência exercida sobre o homem e do assassinato A guerra nos habituou a isto Nós assistimos a uma ruptura com a moral evangélica suplantada por uma moral da produção Esta moral técnica da produção é impiedosa para com os fracos ela desenvolve a inveja o orgulho ela substitui o amor evangélico para com o próximo pela exaltação de si mesmo 12 BERDIAEFF 1948 p86 Heidegger compara este mundo burguês com uma ditadura do impessoal responsável por um certo complexo de manada que se formou na covarde expectativa do rebanho Para Sartre tratase do mundo resignado e revoltante dos salauds homens de máfé que preferem se eximir de suas responsabilidades a usar de forma construtiva sua liberdade Para Mounier é o mundo da indiferença e da preocupação vazio e desolante MOUNIER 1962 p 15 Esse espírito burguês se cercou de sistemas a fim de assegurar seus valores e interesses visando à tranquilidade em detrimento do futuro e da aventura com seus riscos e ameaças Para Mounier esses sistemas conspiram todos para eliminar a angústia que flui infalivelmente das profundezas inquietantes do ser MOUNIER 1962 p 1516 Os princípios e fundamentos dessa razão técnica ao reduzir as diferenças e complexidades inerentes à realidade em fórmulas conceitos unidades de medida acabam por promover estratificações classificações e separações também entre os homens As pessoas são convertidas em massa de manobra de uma tecnocracia que subordina o bemestar humano o respeito à própria vida e à natureza às leis mercadológicas 12 Le culte de la force et du pouvoir se développe de plus en plus Nous vivons à une époque où lon adore la force et non la justice et la vérité On peut même dire quon a jamais observé une telle indifférence à légard de la vérité doù leffrayante baisse du prix de la vie humaine que lon névalue qui selon sa productivité la facilité de la violence exercée sur lhomme et de lassassinat La guerre nous a habitués a cela On assiste a une rupture avec la morale évangélique supplantée par une morale de la production Cette morale technique de la production est impitoyable envers les faibles elle développe lenvie lorgueil elle remplace lamour évangélique envers le prochain par lexaltation de soimême BERDIAEFF 1948 p 86 52 A razão técnica exercerá o papel de afastar a pessoa de seu interior entretêla com seus dispositivos forjála através de uma educação aviltante a fim de objetificála para a consecução dos seus fins de dominação plena eliminando aos poucos toda possibilidade de reflexão e libertação Mas seria esta nova situação histórica do homem uma fatalidade instransponível ou apenas uma passagem para uma nova forma de existir e conduzir seu futuro Essas mudanças não levariam consequentemente à melhoria das condições do homem no planeta e das suas relações a partir do seu desenvolvimento espiritual profundo quem sabe pelas vias de uma educação transformadora como cria Mounier Ou pelo contrário pouco restaria de autonomia para o homem diante destas novas construções objetificantes Mounier reconhece que os homens buscaram nessa nova ordem de conhecimento a satisfação de interesses imediatos e úteis que acabaram por submergir a vida íntima do espírito Dessa feita a estreita visão apenas quantificadora e utilitarista do mundo própria da perspectiva técnicopositivista ao introduzir seus costumes acabou por estreitar também a alma humana legandoa a uma análise rasa das estruturas mecânicas com vias a um controle industrial Dirá Mounier 1961b p 26 Como o homem se nutre por seu conhecimento toda sua alma se estreitou a esta visão mesquinha do mundo Não há mais consideração que por aquilo que cai sob a medida A grandeza é um certo número de zeros à direita renda tiragem oferta O tempo que é a paciência e a esperança do mundo ele o anexa a esta perspectiva pela apologia da velocidade13 Dáse o naufrágio de um ar de civilização que nasce no fim da Idade Média mas que é consolidada e minada ao mesmo tempo pela Idade Industrial capitalista em suas estruturas liberal em sua ideologia burguesa em sua ética14 MOUNIER 1961a p 10 Conforme Mounier o mundo moderno a civilização burguesa e individualista é contra a pessoa que lhe inspira mais uma ameaça que uma verdadeira segurança O indivíduo se sente cada vez menos senhor do seu meio que por seu lado se desenvolve e se organiza fora da sua alçada a uma velocidade cada vez maior as máquinas as massas os poderes a administração o universo e suas forças apresentamse lhe cada vez mais uma generalização da ameaça enquanto ele procurava nelas uma generalização de proteção 2004 69 13 Comme lhomme se nourrit de sa connaissance toute son âme sest rétrécie à cette vision mesquine du monde Il na plus de considération que pour ce qui tombe sous la mesure La grandeur cest un certain nombre de zéros sur la droite rente tirage enchère Le temps qui est la patience et lespérance du monde il lannexe à cette perspective par lapologie de la vitesse MOUNIER 1961b p 26 14 capitaliste dans ses structures libérale dans son idéologie bourgeoise dans son éthique MOUNIER 1961 a p 10 53 Todavia para Mounier esta não seria a condição última do homem O autor sempre procurou reafirmar a crença inalienável na pessoa humana mesmo consciente da situação degradada da civilização ocidental Diante dos fracassos da Razão Moderna em realizar sua promessa de uma sociedade justa fraterna e feliz muitos decidiram atacála e desqualificála como utopia Mounier recusou tal postura e partiu para a busca de uma alternativa para a realização dos ideais iluministas como a individualidade a autonomia e a democracia afirmando sua crença também no progresso técnico O autor recorre à noção de Personalismo e lança as bases para uma visão mais engajada do homem na sua comunidade e história Contudo cabenos questionar se esta mesma razão emergente dos ideais de dominação de uma burguesia em ascensão pode de fato efetivar esses valores na vida concreta do homem e da sociedade uma vez que eles talvez tenham apenas lhe servido como ideologias necessárias para sua tomada e consolidação no poder Contudo ainda que tenha havido uma instrumentalização dessa racionalidade Mounier encontrará nos pressupostos do personalismo alternativas para a concretização dos ideais iluministas fundamentados agora mais em valores que primam pelo progresso espiritual do homem e da comunidade que pelo seu conhecimento ou pelo seu desenvolvimento material 16 Dos princípios da razão técnica servo ou senhor salvador ou anticristo O domínio da razão moderna sobre todas as áreas do conhecimento e esferas da ação humana em sua dimensão instrumental fracassou na promessa de libertar o homem dos determinismos naturais e realizar o sonho de uma sociedade justa fraterna e igualitária Por se fixar muito nos meios modelos e recursos técnicocientíficos que criou para manipular e controlar o real essa razão esqueceu a finalidade e os valores que deveriam norteála para uma efetiva melhoria da vida humana sobre a terra não levando em conta o próprio homem Ao submeter o mundo a um esquema teórico universal a partir da aplicação de leis gerais como instrumento de controle e dominação a ciência deixou de ser esperança de reconciliação das contradições que dilaceram a existência humana para se tornar uma ameaça real à sua própria sobrevivência O diagnóstico da nossa época aponta que a técnica enquanto ciência aplicada obscurece não só a essência pensante do homem mas também o próprio mundo enquanto o destrói A racionalização cercada por dispositivos instrumentais de controle postos em ação por predadores obstinados saquearam os tesouros do mundo natural cuja corrosão continua convertendo a individualidade e a liberdade do homem em sua aflição O homem cria suas próprias prisões 54 A fim de avaliarmos o quanto restaria ao homem de autonomia diante deste arsenal de dominação tão solidamente edificado devemos analisar se o perigo representado pelo desenvolvimento técnico em nossa geração estaria no avanço das máquinas nas descobertas científicas e nos aparatos tecnológicos ou na própria racionalidade técnica que tem se impregnado em todos os espaços da vida humana inclusive os mais íntimos e pessoais tornandose a nova razão de ser do homem no mundo O que nos leva ao questionamento sobre a possibilidade de uma essência não instrumental e não utilitarista da técnica moderna Heidegger e Ellul consideram a técnica como um fenômeno autônomo que tem sua própria lógica de organização e que independe por completo da ação do homem Mounier por sua vez acredita que o homem é um ser de escolhas não totalmente determinado por forças exteriores à sua vontade ainda que bastante condicionado por elas Sua perspectiva cristã o faz ver além da tendência dos rumos do desenvolvimento técnico A questão que permanece é se seria a técnica um instrumento nas mãos do homem ou um dispositivo autônomo que acaba por conduzir a sua vida e seu destino 161 Os imperativos técnicos A posição de Ellul e Heidegger Ainda que a técnica seja apenas um meio ou um conjunto de meios para a consecução das atividades do homem na realidade moderna é fato que os meios têm se tornado mais importantes que os fins Maquiavel já o havia declarado na condução da técnica política A técnica conforme Ellul enquanto ciência experimental busca pelo cálculo dos resultados o meio absolutamente superior aos outros levando em conta o seu fim que é a eficácia ELLUL 2003 p 2226 medida pelo maior rendimento possível Para a consecução desSe fim dirá Ellul o melhor procedimento não é escolha humana mas se elege por si mesmo pelo resultado que promove independente da vontade do homem ou dos males que possa vir a provocar Isto acontece porque a técnica tem sua própria lógica de funcionalidade que é contábil e procura dar a conhecer apenas o que é cifrável a fim de evitar supostas arbitrariedades e subjetividades por juízos éticos ainda que o autor reconheça que há todo um campo de efeitos da técnica não mensuráveis Para Ellul a técnica traduz o afã humano para dominar as coisas através da razão fazer contábil o que é subconsciente e quantitativo o que é qualitativo colocando ordem no que antes era caos O sábio antes desinteressado adquire consciência da necessidade prática e orienta sua investigação para a descoberta científica com aplicação técnica Tudo deve ser racionalizado ao extremo 55 Nesse sentido para Ellul a ciência é serva da técnica mas sua aplicação em sentido utilitário só ocorrerá no século XX resultante de uma conjunção de fatores como o êxito das suas experiências o crescimento demográfico a aptidão do meio econômico a plasticidade do meio social interior e a aparição de uma clara intenção técnica ELLUL 2003 p 4953 Essas transformações geraram o que Ellul chama de fenômeno técnico prevalecente hoje que é o resultado de toda uma concepção de vida de homem de civilização e de inteligência que busca a racionalização a unificação e a clarificação do conhecimento em todas as áreas Estes princípios serão prosseguidos em todos os âmbitos inclusive no que tange ao controle do homem de cujos meios se encontra a educação De outra parte conforme Ellul 2003 p 86 a técnica possui um auto crescimento que já não depende da eleição do homem que se torna apenas um aparato registrador dos seus efeitos Nesse sentido o homem também não é responsável pelo progresso da técnica pois ela se engendra por si mesma Cada nova força técnica permite que apareçam outras bem como cada procedimento técnico pode se aplicar a outros campos diferentes daquele para o qual foi inventado cujo alcance e consequências futuras são impossíveis de se prever Assim a natureza dos problemas tornase secundária diante dos métodos e técnicas empregados que têm um alcance geral ELLUL 2003 p 9394 Nesse auto crescimento dirá Ellul a técnica faz um chamamento à técnica e seu desenvolvimento em proporções geométricas coloca sempre novos problemas que são eminentemente técnicos e que só podem ser resolvidos pela intervenção técnica Para o autor os inconvenientes dos problemas atuais exigirão novos e urgentes progressos diante dos quais o homem vai perdendo sua autonomia Nesse processo nem o executor é importante já que dele são exigidas apenas qualidades técnicas e não uma inteligência especial Assim no mundo fragmentário da técnica o que constitui o vínculo entre as ações fragmentárias dos homens o que coordena e racionaliza não é o homem mas as leis internas da técnica ELLUL 2003 p 9899 Para Ellul 2003 a técnica não persegue um fim determinado nem um plano que se realize progressivamente mas evolui de maneira puramente casual e impensada onde a combinação dos elementos precedentes proporciona os novos elementos técnicos diante de uma ordem de fenômenos cegos para o porvir presidida pela casualidade integral Portanto darlhe uma orientação seria negar a ela mesma arrebatandolhe sua natureza e força próprias Ibidem p 102103 Para Ellul 2003 a autonomia que é própria da técnica totalitária retira a autonomia do homem 56 O fenômeno técnico para Ellul 2003 constitui uma massa indivisível Não é o homem que decide o sentido das investigações técnicas que não podem ser orientadas por razões não técnicas como a moral com relação à qual ela é autônoma Pelo contrário a técnica tende a criar uma moral completamente independente Nesse contexto o homem é condicionado a utilizar as técnicas segundo regras técnicas ou não utilizálas em absoluto Não é possível para Ellul uma conversão do homem diante da racionalidade técnica pois o máximo que se obteria seria a exclusão de bons técnicos Assim como técnica e ciência não são sinônimos também técnica e máquina se diferenciam Muitos cometem algumas confusões quanto à significação e papel que desempenham tanto que abordam a história da técnica como se esta fosse a história da máquina Para Ellul costumase confundilas pelo fato de ser a máquina a forma mais evidente e impressionante da técnica quando é apenas uma de suas manifestações sua forma primitiva e histórica A máquina produz diversos usos mas só um é o uso da técnica o melhor meio para obter o melhor resultado possível seu melhor rendimento Conforme Ellul querer subordinar a máquina a um ideal seria a pior das mistificações Para o autor a técnica em si mesma e não o seu uso conduz inevitavelmente a um certo número de sofrimentos e pragas inerentes ao seu próprio mecanismo que de modo algum podem ser separados dela Ibidem p 101110 Segundo Ellul a técnica se aplica hoje a campos que têm pouco da extensão da máquina pois ela assume a totalidade das atividades do homem e não somente sua atividade produtora Como instrumento característico do século XIX pela mecanização que lhe é própria a técnica tende a transformar em máquina tudo o que ainda não o é inclusive tem esta pretensão sobre o próprio homem uma vez que estende a ele sua lógica operacional objetificandoo fragmentandoo e coisificandoo Em todas as situações em que se encontre um poder técnico este procura de maneira inconsciente eliminar tudo o que não pode assimilar ELLUL 2003 p 78 Ainda segundo Ellul como a máquina é antissocial a técnica a integra na sociedade construindolhe um mundo necessário ao mesmo tempo que clarifica ordena e racionaliza todos os elementos da realidade Assim a técnica é totalmente distinta da máquina tendo se tornado autônoma ELLUL 2003 p 10 Quando pensamos na técnica exclusivamente representada pela máquina afirma Ellul o homem permanece independente diante desse objeto mecânico Mas quando a técnica penetra todos os campos alheios à máquina inclusive o próprio homem que se converte para ela em um objeto a técnica deixa de ser o objeto para o homem e se transforma em sua 57 própria substância que progressivamente se integra nele e pouco a pouco o absorve ELLUL 2003 p 1011 Esse estado de ânimo é caracterizado por um esforço de superação rigorosa entre o que é e o que deveria ser ELLUL 2003 p 165 Heidegger por sua vez também denuncia que o pensamento que impera na era da técnica prendese unicamente à organização e planificação das coisas transformadas em objetos não admitindo outra coisa do que o enumerável Para Heidegger 1979a o poder técnico da ciência está a serviço do fazer da funcionalização e da produção para o agenciamento do sistema Estando esse poder diluído em funções tudo se torna categorias relacionais mensuráveis e calculáveis e o conhecimento apenas um knowhow Para o autor o homem ao longo da sua história e principalmente a partir da Idade Moderna busca disponibilizar tudo no mundo como objeto para seus cálculos Sua vontade é um sujeitar todas as coisas ao seu domínio tanto o mundo natural quanto o humano A força que organiza essas sujeições é somente uma vontade de potência cujo único objetivo seria seu próprio engrandecimento mediante o poder provocador da técnica fundamentado por uma metafísica humanista subjetivista e niilista HEIDEGGER 1979a p 49 Para Heidegger a técnica apresenta um perigo para a ideia de progresso que não está nem em seus produtos como computadores ou inteligência artificial nem em sua utilização mas em sua essência e na essência do conhecimento científico que impõem ao homem e às coisas um modo específico de serem convertidos em objetos disponíveis para o cálculo e para a manipulação HEIDEGGER 1958 O espírito é pois transformado em inteligência instrumental Desde o início do Século XX observa Heidegger 1979a a existência começou a deslizar para um mundo sem profundidade nivelando todas as coisas na superfície A dimensão dominante tornouse a da extensão e do número Doravante capacidade quer dizer o exercício de uma rotina suscetível de ser aprendida por todos conforme certo esforço Nessa planificação e uniformização da técnica vigora o equivalente que se manifesta na forma de um desvirtuamento do espírito HEIDEGGER 1979a p 7172 O Espírito se degenera em Inteligência instrumental em uma mera habilidade ou perícia no exame no cálculo e na avaliação das coisas com o objetivo de transformálas reproduzilas e distribuílas em massa A ciência que emerge dessa degradação do mundo do Espírito fragmentase numa multiplicidade de disciplinas a serviço das profissões HEIDEGGER 1979a A educação atual tem confirmado essa nova condição que tem operado no mundo científico ou do conhecimento que só valida o que é objetificável útil e que traz resultado 58 prático para os homens As ciências humanas nesse caso ficam relegadas a um plano totalmente inferior 1611 O homem estatístico Diante desses desenvolvimentos e desencantos técnicos emerge uma nova posição do homem em uma realidade agora edificada com bases estritamente materiais científicas comprováveis e utilizáveis que objetiva melhorar as condições da sua existência temporal e com base no aperfeiçoamento dos seus instrumentos Contudo segundo Ellul 2003 p 309 o homem moderno se encontra em meio às técnicas na mesma situação em que se encontrava o homem préhistórico em meio à natureza meio do qual extrai o necessário para viver porém que lhe põe totalmente em perigo Separado da natureza liberado das contrições físicas o homem se torna escravo das contrições abstratas Ibidem p 327 Para Ellul 2003 a universalidade da técnica oriunda da universalidade da ciência promoveu também a universalidade de um novo tipo de homem sempre semelhante aos demais Destituído das diferenças individuais e de toda subjetividade esse novo homem foi diluído na massa enquanto foi sendo eliminado o comunitário Uma nova linguagem foi introduzida também universal que todos compreendem mas que impede que os homens efetivamente se entendam por encerrar cada indivíduo a preocuparse somente com o que lhe concerne promovendo uma tácita fraternidade entre aqueles que compartilham das mesmas ocupações ELLUL 2003 p 136137 Por operar por meio de abstrações de modo impessoal a técnica além de massificar o homem o individualiza promovendo dissociações que o separam do mundo dos outros e de si mesmo reduzindo o corpo social a uma coleção de indivíduos Conforme Ellul 2003 a técnica se torna uma ponte tendida entre a realidade e o homem abstrato como meio de apreensão dessa realidade e de ação sobre ela que torna possível desprezar qualquer diferença individual Ibidem p 136 Essa massificação psicológica do homem serve à sua utilização e integração na média grupal Por meio de uma unificação buscase neutralizar ou eliminar as correntes de antagonismos inclusive as individualidades aberrantes e todo germe de ruptura Ibidem p 411412 Por ser um instrumento de massas que se baseia na média a técnica impessoal não se aplica a casos individuais e não faz acepção de pessoas Ibidem p 289290 Ainda segundo Ellul 2003 a técnica dissocia para proceder com facilidade reconstruindo imediatamente Ela separa os elementos do homem para sintetizar o homem 59 abstrato Obedece à lei da especialização porque é científica A educação nesse sentido acaba por não só se vitimar desse aparato de controle como também lhe dá continuidade preparando esse homem abstrato porque fragmentado para se adaptar em um mercado que terá como base e finalidade sua própria perpetuação de domínio Serão os especialistas que atuarão cada qual em sua medida no homem agora fragmentado A dissociação do homem começa pela aplicação mensurada de uma modalidade técnica Dispersado deslocado o homem se converte em uma multiplicidade de peças individualizadas ou em uma multidão de especialistas fragmentados também no conhecimento da realidade Os técnicos buscarão reintegrar o homem dualizado fragmentado mas o farão por meios técnicos Nesse processo só um remédio técnico poderá sanar qualquer dificuldade técnica visando tornar imperceptível o seu efeito Esse é o sentido de que a técnica se engendra a si mesma Chegase à unidade do homem integrandoo por completo na corrente que provocou sua desagregação o que o torna um joguete que impulsiona sem cessar o ardor dos técnicos Ibidem p 413415 Alegando reintegrar o homem à sua unidade a técnica não pode promover que sua unidade abstrata visto que sua ação concreta o rompe em fragmentos dissociando pensamento e ação fazendo do homem encarnado e inteiro um ser dual ELLUL 2003 Deste modo afirma Ellul porque nenhuma das técnicas se aplica ao homem íntegro o técnico se lava as mãos e declara que o homem permanece incólume e íntegro nesta aventura 15 ELLUL 2003 p 392 Agora despersonalizado pela impessoalidade da técnica o que o homem fazia espontaneamente é analisado em todos os seus aspectos O objeto o modo a duração a quantidade o resultado tudo em todas as ações e em todos os sentimentos do homem é contabilizado esquematizado e racionalizado Se cria um tipo que verdadeiramente é o único normal16 ELLUL 2003 p 397 É assim que o homem se converte em material estatístico homem abstrato fragmentado em muitas peças nas quais intervirão os especialistas descomprometidos com 15 De este modo porque ninguna de las técnicas se aplica al hombre íntegro el técnico se lava las manos y declara que el hombre permanece indemne e íntegro en esta aventura ELLUL 2003 p 392 16 El objeto el modo la duración la cantidad el resultado todo en todas las acciones y en todos los sentimientos del hombre es contabilizado esquematizado e racionalizado Se crea un tipo que verdaderamente es el único normal ELLUL 2003 p 397 60 qualquer tipo de lesão à sua integralidade já que esta não lhes compete e nem colocam em questão a possibilidade da sua existência A estatística não é dialética não promove o diálogo sendo então pura constatação quantitativa Conforme Ellul 2003 p 400 foram alguns exemplares desse homem estatístico que os campos nazistas se limitaram a exterminar por não serem dotados de nenhuma singular importância Generalizado o homem é adaptado à massa para sua própria utilização Buscase sua adesão consentida sua integração aos valores que norteiam o mundo técnico Além de eliminar toda espontaneidade o homem é reduzido em sua capacidade crítica Conforme Le Bon 1855 apud FREUD 2012 b p 87 em meio ao grupo o homem assume um caráter médio e perde toda sua distinção A massificação que a técnica provoca visa retirar do homem sua autonomia que lhe impedirá de eleger o seu destino O homem se tornará induzível e responderá a um comportamento global de onde a técnica extrairá sua ação conduzindoo a se alinhar com ela retirandolhe tudo o que for pessoal Só a técnica pode ser autônoma não o homem Não se trata de suprimir o homem mas de conduzilo de forma a não experimentar os sentimentos e reações que seriam nele pessoais pois não há técnica possível em um homem livre ELLUL 2003 p 143145 A massificação do homem buscará impor a ordem necessária ao progresso do industrialismo ELLUL 2003 por isso se busca a planificação racional dos meios necessários para a manutenção das condições favoráveis à ação técnica O homem que o plano contempla deve ser integrado à sociedade aderir aos seus valores espontaneamente não por alguma coação o que permitirá maior eficácia e êxito técnicos Ibidem p 181 Como o homem técnico é aquele que analisa e prevê não pode suportar o indeterminado nem a iniciativa que perturba a ordem e o rigor Ibidem p 300 Nesse sentido a ação técnica será dirigida por uma determinada concepção de homem específica que deprecia sua vida interior em proveito da sua vida sociológica que deprecia sua vida intelectual e moral em benefício da sua vida material Por isso os meios de ação sobre o homem devem responder aos critérios de generalidade objetividade e permanência Ibidem p 340343 As forças impessoais da técnica se dirigem contra a pessoa Criase o homem abstrato o ser superior Homem e buscase trabalhar para esta entidade humana não para este ou aquele outro homem em particular Para a técnica de nada serve proclamar o caráter 61 sagrado ou a parte inalienável pessoal ou o valor supremo do homem por isso rompeo em diversos fragmentos como foi fragmentada a própria realidade Ibidem p 390395 Conforme Ellul 2003 o homem tem vivido ante a máquina uma atmosfera anti humana distanciamento da natureza aglomeração nas grandes cidades falta de espaço de tempo Essa situação degradante tem ocorrido também nas ideias e nos relacionamentos entre os homens onde os valores duráveis têm se diluído em contatos superficiais e utilitaristas A técnica como um princípio da nossa época tem determinado todas as formas do homem se relacionar com o mundo circundante e até consigo mesmo muitas vezes promovendo a ausência de si pela corrosão da sua subjetividade e da sua vida interior dispersa na exterioridade das comunicações superficiais e indiferentes Uma das razões destes alheamentos pode estar no fato de que não há diálogo entre o homem e os dispositivos técnicos A linguagem da máquina é de pura informação e ordenação não de comunicação De outra parte o espírito crítico vai se dissolvendo Suas causas são múltiplas dentre elas para Ellul 2003 p 371 contribui o papel que exerce a indústria do entretenimento e da distração que também objetiva no homem o esquecimento de si e dos seus problemas Assim a máquina não só transforma o cotidiano do homem mas também seu espírito quando não o destitui dele O mundo técnico despersonaliza com impressão de liberdade ao mesmo tempo em que acentua a separação entre os homens destruindo o diálogo e a comunicação em prol do monólogo perpétuo das máquinas A técnica confina o homem na solidão e no isolamento ao mesmo tempo que lhe promete segurança ELLUL 2003 p 382 Esse mundo técnico pelo discurso da competência que gera competitividade caminha contra a fraternidade preconizada pelo mundo cristão e é nessa fraternidade que se apoia Mounier a fim de recompor o homem em sua integralidade liberdade e autonomia enquanto pessoa que deve tomar em suas mãos as rédeas do seu destino mesmo em meio a tantos obstáculos aviltantes Contudo diante da redução do homem a seu potencial estatístico a partir do diagnóstico da nossa época Mounier enfatiza que não é esta seria a condição última e fatal do homem mas ainda lhe resta a possibilidade de ver sua autonomia resgatada mesmo em meio a tantos dispositivos aplicados para seu aviltamento e dispersão 62 162 A técnica como instrumento A posição de Mounier Mounier reconhece o quanto a racionalidade técnica tem objetificado o homem e suas relações Contudo o grande problema da técnica para o autor se encontra na lógica operacional que a conduz como instrumento a favor ou contra a própria pessoa Mounier afirma que esse impasse não diz respeito à técnica em si mas devese a uma técnica que tem constrangido os homens que foram separados da pessoa e unidos às forças impessoais do meio Isso gerou uma má utilização da técnica em prol de objetivos alheios aos valores mais sublimes da pessoa Mounier denuncia a redução das potencialidades do homem diante de um mundo que tem se servido da técnica e das suas instituições no processo de edificação e manutenção do seu aviltamento A esse homem separado de toda transcendência foi legado apenas a adaptação biológica e social que se chama felicidade e uma redução moral à aquisição puramente individual de segurança MOUNIER 1961a apud MOIX 1968 p 75 A civilização técnica efetivamente forjou um novo modo do homem de ser no mundo facilitoulhe os passos e aprimoroulhe os caminhos porém também o tem destituído do controle do seu destino Perdido em meio a um novo estado que escapa ao seu domínio ele já não tem mais se reconhecido em sua singular identidade como pessoa enquanto ao mesmo tempo tem sustentado instituições perpetuadoras dessas deformidades constituídas e dos seus sistemas dos quais se faz partícipe a educação Conforme Mounier ainda que se por um lado a ciência e a técnica tenham contribuído para aperfeiçoar e facilitar a vida do homem isoladamente e em coletividade por outro o mau uso que se tem feito delas tem levado apenas ao aperfeiçoamento da técnica de seu aviltamento em uma sociedade que negligenciando os seus valores mais profundos tem estimulado a força a competitividade e o poder Nesse sentido para Mounier o mal da técnica vem do mau uso do homem pelo qual ela não é responsável 1948 p 242 Conforme o autor como a técnica também se tornou escrava destes ideais despersonalizantes não podemos lhe imputar a responsabilidade pelo seu assujeitamento MOUNIER 1961a p 105 Em decorrência contrariamente ao pensamento de Ellul os problemas técnicos devem ser tratados como tais segundo Mounier e não com o que ele denomina de moralismo raso uma vez que para o autor 1961a p 100101 não há um só problema humano solúvel pela técnica já que esta é vazia de alma e dada a objetividade da sua 63 linguagem que em nada coincide com os valores espirituais que requerem outras abordagens distintas do utilitarismo da sua racionalidade Mounier reconhece a inegável eficácia da racionalização técnica no que diz respeito ao desenvolvimento da tecnologia mas acredita que uma ciência fragmentada jamais poderá promover um despertar do Espírito pois é deste que a própria ciência necessita A questão a ser colocada na perspectiva de Mounier é da possibilidade de se promover a autonomia do homem pelo desenvolvimento do seu ser espiritual mesmo diante da força da técnica Mounier acredita que sim e que isso é obra de educação a despeito de toda objetificação do homem já provocada pela técnica e pelos ideais que a coordenam como os econômicos Uma das razões que justificam esse entusiasta otimismo de Mounier é que diferentemente de Heidegger para quem a natureza será condicionada pelo homem para lhe servir de forma a lhe render o máximo de proveito com o mínimo de despesas HEIDEGGER 1997 p 5758 para Mounier a natureza se oferece para ser recriada pelo homem É através da técnica que o homem a transforma e a personaliza MOIX 1968 p 357 Mounier ainda acrescenta que ao personalizar a natureza o homem não apenas a humaniza como em Marx 1993 p 67 mas também a diviniza recebendo desse feito sua parcela de participação na divindade MOUNIER 1948 p 258 Para Mounier a técnica é simplesmente a extensão potência e velocidade da força do homem e a máquina uma extensão do seu corpo no corpo do mundo MOUNIER 1959 apud MOIX 1968 p 358 A máquina representa o crescimento considerável ainda que artificial do corpo do homem que extrapola seus músculos e nervos Por ser o produto direto de uma inteligência nova a matemática nascida ou despertada no Ocidente após um longo eclipse em direção ao início dos tempos modernos a máquina tem sofrido algumas objeções ou maldições MOUNIER 1948 p 248253 Mounier por vezes parece assimilar técnica e máquina por outras as diferenciam bem apontando como maquinismo ou tecnicismo essa racionalidade técnica que se trata da abstração matemática que se estendeu a outros fatores além das máquinas como os organizacionais Assim enfatizamos que a máquina não representaria grandes ameaças para o homem segundo o autor mas sim essa inteligência matemática e utilitária que estaria nas fontes da corrosão da subjetividade do homem e do seu aviltamento bem como da gradativa destruição do próprio mundo que tem se tornado a cada dia mais desumano e impessoal 64 Ellul considera equivocada essa comparação que faz Mounier da máquina ao corpo humano Para o autor além da técnica e da máquina terem finalidades distintas a técnica que buscará sempre o melhor resultado e o maior rendimento tem duas características que lhe são intrínsecas uma é a racionalidade que reduz ao mecanismo e à lógica tudo o que pertence à espontaneidade e ao irracional ELLUL 2003 p 8485 Outra característica é a artificialidade que como arte e artifício se opõe à natureza Logo os meios de que o homem dispõe em função da técnica como as máquinas para Ellul são meios artificiais não um prolongamento do corpo humano o que não lhe permite entrar em simbiose com ele pois ambos obedecem a imperativos e ordenamentos diferentes O que é artificial não permite nenhum juízo sendo simples constatação Nesse sentido o mundo criado pela técnica também se torna artificial ELLUL 2003 p 8485 Para Mounier 1959 p 22 a questão foi que nossa civilização técnica com suas engenhosidades se desenvolveu mais velozmente que nossa capacidade de assimilação dificultando o crescimento espiritual do homem Nesse processo a mecanização das operações acabou por exigir a mecanização das almas Ibidem p 41 Consequentemente o homem deixou de conter pelo espírito o que não pôde mais dominar pela mão MOUNIER 1959 p 23 Assim em nossa civilização técnica nos tornamos como aprendizes de feiticeiro sem controle sobre as consequências das nossas invenções O homem europeu é antes engajado em uma situação onde se encontraria um viajante ao lado de um motorista subitamente morto lançado em alta velocidade sobre uma máquina que ele não sabe conduzir Ele perdeu o controle do universo que ele formou e ele quer se lançar loucamente rumo aos acontecimentos que ele não mais domina17 MOUNIER 1959 p 19 Em Refazer a Renascença Mounier 1959 afirma que com o nascimento da máquina ainda que o mundo tenha se tornado cada dia mais difícil de compreender tornouse menos difícil de manusear mas reconhece que a máquina caminhou a passos precipitados para o conforto universal o que acabou por colocar novos problemas para o homem Moix 1968 p 356358 reitera que se a máquina trouxe para o homem novos poderes veio acompanhada de imensas angústias Jamais houve tanta insegurança quanto a que sentimos em decorrência das muitas descobertas científicas e invenções técnicas Nesse contexto as 17 Lhomme européen est plutôt engagé dans la situation où se trouverait notre voyageur à cotê dun chauffeur mort subitment lancé à pleine vitesse sur une machine quil ne sais pas conduire Il a perdu les manettes de lunivers quil a formé et il le voit dériver follement vers des événements quil ne maîtrise plus MOUNIER 1959 p 19 65 perspectivas e as noções fundamentais do homem se recolocam constantemente em jogo a um ritmo acelerado Contudo a abordagem de Mounier aponta que o problema não se encontra na máquina em si mas na razão que a anima e nos novos valores que suscita pautados em uma nova concepção de homem e de mundo inerentes à racionalidade técnica Por tais razões Mounier afirma que os paradoxais descaminhos que envolvem os progressos científicos e técnicos são inevitáveis Ainda que jogando luzes sobre as trevas acabam por colocar inevitavelmente novos problemas novas ameaças e novos mistérios no mínimo na mesma proporção com que os resolve MOUNIER 1948 p 247 As dificuldades apresentadas por essa nova racionalidade segundo Mounier não se encontram em sua essência mas no descompasso do espírito que não caminhou no mesmo ritmo que a técnica Em lugar de se apoiar no crescimento das forças técnicas para se lançar mais longe o homem optou pela solução mais fácil que foi utilizálas apenas para aumentar suas comodidades e para se esconder no conforto MOUNIER 1961b p 25 Para intensificar a decadência desse quadro enquanto a máquina produziu um novo tipo de homem o do conforto impessoal a indústria moderna desenvolveu uma riqueza mecânica que se multiplica e se adquire sem esforço distribuindo prazeres automáticos MOUNIER 1971 p 523 Siegfried corrobora com a visão de Mounier de que ao crescimento desmedido do maquinismo deveria ter correspondido um crescimento adequado de poder intelectual e moral capaz de dominálo Porém o que houve foi a mecanização do material humano resultante de uma humanidade degradada que perdeu o controle de si antes de tudo ao buscar manipular os poderes do universo Mounier assim como o fez Ellul 2003 também enfatiza a impessoalidade do conhecimento científico e acrescenta que ela desconsidera as singularidades próprias da pessoa e a possibilidade do impensável diante da complexidade da realidade que oculta grande parte de mistério Também para Mounier essa racionalidade técnica imperante no contexto atual objetifica o mundo e os homens a fim de melhor administrálos Como consequência promove uma redução na capacidade do homem de percepção do todo que o tem levado ao esquecimento de si mesmo e ao isolamento dos outros Nesse sentido para o autor o grande ideal do mundo técnico foi o de substituir a incerteza do homem pela precisão da máquina 66 A máquina não favorece somente o esquecimento dos homens multiplicando entre homem e homem a distância isolante Produz a abstração do espírito e da impessoalidade das coisas ela habitua a formas prontas e pobres de sensibilidade de pensamento de experiência Ser para uma máquina é se identificar a uma fórmula mecânica complexa mas rigorosa que aniquila a existência tenta reduzir a existência humana a um esquema da mesma natureza e de negar tudo o que lhe resiste os fatores individuais irredutíveis as sutis mutações espirituais os encadeamentos não racionais as experiências não sistematizáveis como o amor a piedade a angústia o perdão a esperança a admiração18 MOUNIER 1959 p 59 Conforme Mounier ainda que os avanços técnicos sejam irrefreáveis o que é humano como amores inteligência ascetismo moral ou civilizações jamais pode crescer com um movimento contínuo de acumulação indefinida Somente os avanços técnicos e científicos concernentes às forças materiais seguem essa progressão linear e ainda assim se tratam mais dos produtos desse avanço técnico que da sua história viva para o autor formada por uma sucessão de eclipses e recomeços MOUNIER 1971 p 277 Nesse sentido conforme Mounier 1959 a técnica só pode romper com a vida sob a direção do espírito humano Dirá Spoerri que uma ordem se desfaz sempre por dentro e não por um inimigo exterior Não é o demônio da técnica que um belo dia deixou mal esta pobre moral É a moral que perdendo o contato com seu centro criador perdeu ao mesmo tempo seu poder ordenador19 SPOERRI 1948 p 154 Conforme lembra Berdiaeff em sua palestra O homem na civilização técnica o homem moderno quis experimentar a liberdade e a autonomia do conhecimento em todas as esferas da vida individual e social inclusive técnica porém sem subordinar a lei que age no interior de cada esfera particular a nenhum centro espiritual unificador Nesse sentido a tecnicização por não querer se submeter a nenhum princípio espiritual contribuiu consideravelmente para o enfraquecimento da espiritualidade no homem Em decorrência o próprio homem fragmentado tornouse escravo dessas esferas autônomas e separadas condutoras à perda da integralidade e à manifestação de pretensões totalitárias in SIEGFRIED 1948 p 9193 Dessa liberdade dirá Berdiaeff 1948 p 9192 18 La machine ne favorise pas seulement loubli des hommes en multipliant entre lhomme et lhomme la distance isolante Produit de labstraction de lesprit et de limpersonnalité des choses elle habitue a des formes toutes faites et pauvres de sensibilité de pensée dexpérience Être pour une machine cest sidentifier à une formule mécanique complexe mais rigoreuse qui en épuise lexistence Il est tenttant de réduire lexistence à un schèma de même nature et de nier tout ce que lui resiste les facteurs individuels irreductibles les subtiles mutations spirituelles les enchaînements non rationnels les expériences non sistematisables comme lamour la pitié langoisse le pardon lespoir ladmiration MOUNIER 1959 p59 19 Ce nest pas le démon de la technique qui un beau jour a mis a mal cette pauvre morale Cest la morale qui perdant le contact avec son centre créateur a perdu au même temps sa puissance ordennatrice SPOERRI 1948 p 154 67 São as ciências a política a economia que se tornaram livres mas não o homem que caiu sob o poder das esferas separadas livres e não obedecendo que às suas próprias leis É sobre este terreno que surgem ao fim das contas o cientificismo não idêntico à ciência e o racionalismo no conhecimento o maquiavelismo na política o capitalismo na economia o nacionalismo na vida dos povos todas estas esferas recusando a se submeter a um princípio superior espiritual ou moral qualquer É este terreno igualmente que dá nascimento ao poder da técnica esta técnica que se desenvolve desmedidamente e que vive segundo sua lei desumana20 Nesse sentido para Mounier o progresso não se limita apenas ao das ciências das máquinas e da organização do homem sobre a terra como acreditam muitos O autor entende que o progresso requer também um melhoramento das disposições interiores do próprio homem O progresso técnico muitas vezes tem sacrificado a presente geração com vias a promessas futuras quando para o autor só há progresso para o homem quando há crescimento de ser de felicidade de justiça MOUNIER in SIEGFRIED 1948 p 234 No que diz respeito ao desenvolvimento técnico conforme Mounier 1971 os homens do século XX ficaram estarrecidos diante da onipresença do novo corpo técnico que constituíram detentor de uma objetividade que poderia leválos ao esquecimento ou esmagamento de si mesmos Para Mounier 2004 p 3940 a técnica pode fazer esquecer mais do que nenhuma outra força os homens que compromete que por vezes esmaga perfeitamente objetiva inteiramente explicável faz perder o hábito da intimidade do segredo do inexprimível dá aos imbecis meios inesperados e acima disto divertenos fazendonos esquecer as suas crueldades Entregue ao seu peso cego é uma poderosa força de despersonalização Mas não o é senão desligada do movimento que a suscita como instrumento de libertação do homem das servidões naturais e de reconquista da natureza A era da técnica fará correr os maiores perigos ao movimento de personalização O universo técnico é uma das ameaças mais diretas à constituição de um universo de pessoas A máquina pelo seu poder de abstração é uma terrível força de despersonalização por desconsiderar que a fraqueza possa ter razão por repudiar o ritmo caprichoso e incalculável da duração por negligenciar a fecundidade da lentidão diante da precipitação ou a fantasia diante da pontualidade MOUNIER 1959 p 5960 20 Ce sont les sciences la politique léconomie la technique qui sont devenus libres mais non lhomme qui est tombée sous le pouvoir des sphères séparés libres et nobéissant quà leur propres lois Ce sur ce terrain que surgirent en fin des comptes le scientisme non identique à la Science et le rationalisme dans la connaissance le machiavelisme dans la politique le capitalisme dans léconomie le nationalisme dans la vie des peuples Toutes ces sphères refusant se soumettre à un principe supérieur spirituel ou moral quelconque Cest ce terrain également que donna naissance à la puissance de la technique que se développa démesurément et qui vit selon sa loi inhumaine BERDIAEFF 1948 p 9192 68 Todavia a técnica traz em si uma tensão irresolúvel Se por um lado não podemos nos fixar nessa adaptação automatizante que nos oprime por outro não podemos negar todo o potencial técnico Se por um lado a técnica se mostrou como uma poderosa força de despersonalização por outro pelo contrário poderá ser instrumento de libertação do homem dependendo dos fins para os quais servir Como o homem é um ser de liberdade e escolhas responsáveis a ele apenas é legada a escolha que fará do seu uso liberada unicamente a seus recursos a civilização técnica é um mecanismo para fabricar robôs e não um procedimento para forjar deuses Toca ao homem decidir se quer ser um deus e que classe de deuses ou se se nega a isto As trilhas da felicidade se por felicidade se entende o supor adaptado no qual se adormece o melhor dos homens no melhor dos mundos não são então caminhos para o homem21 MOUNIER 1971 p 337 Segundo Mounier 1948 p 234235 só é progresso aquele que liberta o homem mas o homem necessita se tornar o autor da sua própria libertação pela liberdade da sua escolha O desenvolvimento das ciências e das técnicas pode contribuir para essa libertação se revestir de luz os problemas que transcendem a técnica e retomar suas terras a despeito da sua incompetência de visão MOUNIER 1961a p 10422 No entanto nada impediria à técnica impulsionar também o estudo das relações espirituais sociais e sobretudo pessoais humanizandoas ainda mais MOUNIER 1961a p 104 Segundo Mounier toda apreensão quanto ao desenvolvimento técnico advém do temor do artificial que é comum ao homem Então seria rejeitar toda confiança quanto ao seu proveito no futuro do homem acreditar que a máquina jamais será outra coisa que mero instrumento de alienação Se por um lado o uso que o homem tem feito da técnica não tem correspondido às suas máximas potencialidades quais sejam as de servir em benefício do crescimento não só material mas também moral e espiritual do próprio homem por outro lado a técnica tem sido muito útil para lhe facilitar a vida e somos nós que fazemos dela a figura do anticristo Para Mounier 1948 p 256 o fato da técnica ter sido captada no meio da 21 liberada únicamente a sus recursos la civilización técnica es un mecanismo para fabricar robots y no un procedimiento para forjar dioses Le toca al hombre decidir si quiere ser un dios y qué clase de dios o si se niega a ello Los senderos de la felicidad si por felicidad se entiende el sopor adaptado en el que se adormece el mejor de los hombres en el mejor de los mundos no son entonces caminos para el hombre MOUNIER 1971 p 337 22 Para Moix 1968 p 357 o otimismo de Mounier o levava a crer que a técnica marcaria talvez o fim do trabalho opressor e fosse instrumento dessa libertação do homem porém a partir de uma produção modelada segundo as exigências da pessoa seu valor mais elevado 69 rota por forças demoníacas só atesta sua destinação sobrenatural que é a de ser utilizada em benefício do próprio homem Para Moix a máquina não é totalmente inumana Ela é menos abstrata que pensamos bem como a uniformização que ela provoca não é absoluta Sendo assim seu poder de despersonalização não é ilimitado O automatismo pode servir também para libertar o espírito uma vez que a máquina desenvolve o sentido do rigor e da responsabilidade MOIX 1968 p 359 Conforme Moix não só o antipolitismo e o anticoletivismo mas também o antitecnicismo erigidos em sistema acabam em erros piores que os que pretendiam combater 1968 p 155 Para Mounier o personalismo precisa ser cauteloso tanto com as ideologias progressistas quanto com as antiprogressistas O homem não é automaticamente purificado pelo progresso da civilização material ele se serve dele segundo sua dupla natureza e segundo as condições sociais que ele tolera para o bem e para o mal Mas o personalismo também não se compraz pelos ideólogos antiprogressistas A técnica que é o lugar mesmo do progresso indefinido é indevidamente que nós ampliamos a noção de progresso ilimitado fora de seu campo Seu domínio é muito mais vasto e suas formas muito mais variadas que a exploração das forças materiais pelas ciências físicomatemáticas ela tem seu lugar até à vida espiritual Por todos os lados onde ela se desenvolve lhe revém este papel capital de organizar ao esforço humano sua economia de forças ou de caminho e um aumento de eficácia A condição de permanecer a serviço da pessoa ela a libera constantemente pela base de sua atividade da complicação da sorte do desperdício do espaço e da duração Ela dá ao homem coletivamente os mesmos serviços que lhe dá o hábito individualmente Ela é portanto para ele se ele a controla uma potente possibilidade de liberação23 MOUNIER 1961a p 103104 1621 A absorção da técnica pela economia Ainda que o entusiasmo de Mounier prevaleça quanto ao fato de a técnica representar apenas um instrumento ou conjunto de procedimentos para atingir determinados fins postos pelo homem o autor reconhece que a técnica apresenta um problema elementar que foi o de 23 lhomme nest pas automatiquement purifié par le progrès de la civilisation matérielle il sen sert selon sa double nature et selon les conditions sociales quil tolère pour le bien et pour le mal Mais le personnalisme na aucune complaisance non plus pour les idéologies antiprogressistes La technique est le lieu même du progrès indéfini cest indûment quon a étendu la notion de progrès illimité en dehors de son champ Son domaine est beaucoup plus vaste et ses formes beaucoup plus variées que lexploitation des forces matérielles par les sciences physicomathématiques elle a sa place jusque dans la vie spirituelle Partout où elle se développe lui revient ce rôle capital dorganiser à leffort humain une économie de forces ou de chemin et une augmentation defficacité A condition de rester au service de la personne elle la libère constamment par la base de son activité de la complication du hasard du gaspillage de lespace et de la durée Elle rend à lhomme collectivement les mêmes services que lui rend lhabitude individuellement Elle est donc pour lui sil la maîtrise une puissante possibilité de libération MOUNIER 1961ª p 103104 70 ter se reduzido ao maquinismo desde seus primeiros avanços Tratase de uma abstração teórica da técnica que nasce e tem sua essência nos ideais econômicos da razão burguesa que mata a alma e prolifera a miséria imobilizando o homem e a vida MOUNIER 1961a p 24 Contudo Mounier não reprova a abstração na técnica moderna mas o fato de essa abstração ter apenas se desenvolvido sob sua forma físicomatemática sob a supremacia dos valores contabilizáveis logo do dinheiro e sob um racionalismo estreito MOUNIER 1961a p 104 Para Siegfried a técnica em princípio é apenas uma arte racionalizada um método que comporta um conjunto de regras e de procedimentos estabelecidos racionalmente e confirmados experimentalmente a fim de realizar um objetivo Tratase portanto de uma prática fundada sobre a ciência logo de uma ação dependente do conhecimento a quem deve seus progressos SIEGFRIED 1948 p 712 Nesse sentido a técnica em si mesma não representa nenhum perigo para o homem Contudo segundo Siegfried 1948 um optimum se estabeleceu a partir do surgimento desta inteligência matemática e operacional resultante de uma cooperação harmônica entre o saber o individualismo e a potência técnica industrial Nessa operação a concepção maquiavélica do Estado moderno na qual os fins justificam os meios levou à instrumentalização do próprio indivíduo convertendoo posteriormente em servo da máquina que em sua origem foi feita para lhe servir Decorre da evolução dos métodos de produção industrial que não trabalha a favor de todos os que a praticam uma visão utilitarista e objetificante do homem Adotada pelo aparelho social somada aos ideais produtivistas essa visão mantêm o homem muitas vezes no rol de puro instrumento reduzindoo ao estado de mero objeto da engrenagem MOIX 1968 p205 Para Siegfried 1948 p 14 se retira cada vez mais do executante último reduzido quase sempre ao papel de uma peça da máquina é o estadomaior que concebe é a organização que implementa é o controle que vigia e o operário se vê em muitos casos privado de toda personalidade no trabalho24 Mounier 1961a por sua vez também afirma que os malefícios da civilização técnica fazem parte da organização econômica e social às quais ela serviu desde seus primeiros progressos sobretudo ao sistema capitalista Ao mesmo tempo que objetivou a 24 se retire de plus en plus de léxecutant ultime réduit souvant au rôle dune pièce de la machine cest létatmajor qui conçoit cest lorganisation qui met en oeuvre cest le contrôle qui surveille et louvrier se voit dans trop de cas privé de toute personnalité dans le travail SIEGFRIED 1948 p 14 71 potencialização dos lucros construiu a partir do Taylorismo e da divisão social do trabalho uma organização produtiva que repousa sobre o desprezo para com o trabalhador Por tais razões Mounier desconfia que os anátemas lançados contra a máquina encontramse no antigo desprezo pelo trabalho especialmente o manual Nesse caso a técnica foi colocada a serviço de uma ordem mecânica de classe na qual o trabalhador foi considerado como um simples instrumento da eficácia da produção MOUNIER 1961a p 105 Para Mounier 1961a o antimaquinismo se constituiu como mito burguês estranho ao operário para quem a máquina é familiar MOIX 1968 p 355 Logo foi a visão capitalista do mundo para Mounier que promoveu uma certa acentuação do tecnicismo em detrimento do próprio homem O pensamento técnico se habituou a restringir o real ao objeto sensível o valor à utilidade a inteligência à fabricação a ação à tática MOUNIER 1961a p 105 Moix sintetiza os únicos três fatores de rendimento que a máquina conhece a força a velocidade e a regularidade Esses fatores se tornaram a própria lei que rege a mística das organizações e que tem invadido até mesmo a espontaneidade das horas o que muito incomodava Mounier pois têm adentrado até mesmo na própria educação 1968 p 359 Por outro lado Mounier 1961a salienta que o progresso técnico além de ter promovido uma ordem jurídica e moral específicas foi um possibilitador do capitalismo que passou a utilizar a máquina como meio para realizar com eficácia a grande produção A exploração direta das riquezas naturais pelo trabalho do homem foi substituída por uma acumulação de bens intermediários como máquinas e crédito que permitiu com uma economia de forças crescentes uma eficácia produtiva cada vez maior Do capital técnico constituiuse o desenvolvimento da produção especializada e mecânica gerando o maquinismo enquanto abstração puramente teórica e organizacional que pôs no uso da ciência como meio de racionalização ao extremo a lógica produtiva objetivando maiores rendimentos MOUNIER 1961a p 103 Assim técnica e capitalismo passam a se complementar reciprocamente em uma dialética infinda que tem perdurado até hoje A racionalidade técnica trabalha no aprimoramento das máquinas e nos dispositivos de controle o que permite um maior êxito e rendimentos uma maior produção de bens e um maior acúmulo de capital que potencializados intensificam cada vez mais a técnica e sua racionalidade triunfante que buscará o aperfeiçoamento contínuo 72 Nesse sentido a técnica que deveria estar a serviço do homem acaba se colocando contra ele Aliada ao capitalismo que subordina tudo ao lucro arrogou direitos ilimitados não só sobre as coisas mas também sobre as pessoas explorando um mundo vazio de humanidade MOIX 1968 p 67 Sua racionalidade elabora mecanismos de controle e coerção que retiram cada vez mais a comunicação entre o homem e a natureza e entre os homens Logo é por servir ao capitalismo que a racionalidade técnica tem instrumentalizado o homem anulandoo como pessoa Por tais razões toda desordem hoje até a espiritual tem um composto e até mesmo um dominante econômico MOUNIER 1961a p 99 Por outro lado Mounier 1961a reconhece que devemos dar à máquina sua verdadeira extensão sendo errôneo concentrar a alienação somente sobre o capitalismo como o fez Marx Esse perigo também é inerente à própria técnica Nesse aspecto Mounier concorda com Ellul e Heidegger para os quais a técnica apresenta em si mesma perigos que lhe são próprios por fazerem parte da sua essência Contudo Mounier acredita que o homem é um ser apenas condicionado pelo meio e não determinado por ele por isso é capaz de escolhas Ele se mantém entusiasta quanto à retomada do homem sobre os meios que ele mesmo criou A máquina só poderá relegálo ao anonimato se ele não a dirigir MOIX 1968 p 359 Um nefasto uso que tem sido feito da técnica dirá Moix é sua utilização na indústria bélica à qual ela deve seus maiores progressos O fato de a máquina estar atrelada à guerra justifica em muito a oposição à técnica uma vez que a liga à destruição e ao aviltamento Ibidem p 356 Assim para Mounier o que é preciso reprovar à civilização técnica não é ser ela inumana em si é não estar ainda humanizada e servir a um regime inumano in MOIX 1968 p 357358 O perigo constante do progresso técnico conforme Mounier é que ele não é jamais neutro Todavia se ele pode ir ao pior é precisamente porque ele é devotado ao melhor MOUNIER1948 p 247 As conquistas da ciência e da técnica podem conduzir ao resgate da integridade do homem e à sua maturidade ANDREOLA 1985 p 79 Todavia conforme Ellul 2003 não há que se fazer distinção entre os diversos elementos da técnica a fim de se conservar os bons e se evitar os maus como fez Mounier Para Ellul não é possível distinguir entre a técnica e o uso que dela se faz como afirma o autor optar pela produção de remédios e não de gases asfixiantes de energia e não de bomba atômica usar aviões para o comércio e não para a guerra pois seus elementos estão ontologicamente unidos e seu uso é inseparável do seu ser 73 Nesse sentido para o autor 2003 p 53 o progresso é apenas um mito resultante do otimismo compartilhado entre os homens a partir do século XVIII devido às melhorias oriundas da exploração dos recursos naturais e da aplicação das descobertas científicas que para os investigadores da época resultariam não só em felicidade mas também em justiça para todos À medida porém que a técnica foi dessacralizando o mundo foi lhe retirando todo mistério ao pôr tudo às claras objetivando tornar tudo técnico eliminando todo valor espiritual É visto como mistério apenas o que não foi tecnificado Assim o homem também tecnificado já não se constitui como mistério mas como algo a ser manipulado e controlado pelas forças da razão técnica Nesse sentido a técnica foi se convertendo em mito no próprio mistério essencial Ainda segundo Ellul hoje podemos duvidar de tudo até mesmo da existência de Deus menos do progresso técnico A técnica foi se tornando sagrada porque sem ela o homem foi se sentindo pobre só e nu ELLUL 2003 p 147150 Para o autor a técnica satisfaz plenamente a vontade mágica de possessão domínio e utilização dispensando qualquer alusão a potências espirituais uma vez que aos olhos carnais o emprego das máquinas proporciona melhores resultados Ibidem p 425 Para Ellul não é o capitalismo que cria esse mundo visto que é apenas um aspecto dessa desordem senão a própria máquina que tende para as formas mais agudas da exploração humana ELLUL 2003 p 89 Entretanto ele observa que o desenvolvimento das técnicas está na origem da absorção pelo econômico de todas as atividades sociais Ibidem p 163 Diante dessa interseção entre técnica e economia que já é manifesta e perdura há séculos Mounier se questiona pelas possibilidades da pessoa resgatar e manter uma certa autonomia e domínio na direção da sua própria história Para Mounier a pessoa é o mistério essencial a máquina é simplesmente objetiva e impessoal Nesse sentido toda intenção de mecanização seja do homem ou da educação jamais obterá sucesso incontestável ainda que possa trazer grandes embaraços para o movimento de personalização Mounier portanto não se posiciona contra a técnica em si mas contra a objetificação do homem pela racionalização técnica matematizante e utilitarista que não operou a favor do seu desenvolvimento espiritual em consonância com o desenvolvimento material Para Mounier não será frustrando o espírito técnico o que nos libertará dos transtornos por ele causados Ainda que o capitalismo tenha usufruído dessa racionalização 74 técnica para os seus próprios interesses de impulso industrial a própria ordem econômica deverá em seu governo ideal estar centralizada na pessoa Nesse caso uma mudança na organização econômica se faz premente diante de qualquer modificação na ordem técnica mas ela não será possível se não se começar pelo resgate da vida pessoal pois só a pessoa pode se opor à tecnocracia A pessoa não deve portanto procurar seu assento econômico atrás da civilização técnica mas à frente Alargar e diversificar a técnica à amplitude do homem a liberar da organização econômica e social do capitalismo velar enfim para que ela não absorva ou não deforme a vida pessoal tal é a única via razoável fora das utopias reacionárias e das utopias tecnocráticas25 MOUNIER 1961a p 106 Como unidade espiritual o homem deve sempre ser considerado como um fim superior aos meios que emprega Ainda que uma mudança na ordem econômica pareça ou mesmo se trate de uma utopia e a despeito dos valores que norteiam nossa civilização técnica hoje Mounier acredita na possibilidade do resgate da pessoa como princípio espiritual a animar toda civilização Com base nesse princípio os técnicos devem orientar o maquinismo e a organização contra a centralização e o gigantismo industrial em expansão MOUNIER 1961a p 106 Os caminhos para esta mudança de rota dos fins técnicos Mounier oferece a partir do processo de personalização da pessoa e da comunidade através de uma Revolução personalista e comunitária favorecida pela educação 163 Uma outra via de comunicação entre a técnica e o homem Mounier parece reduzir às máquinas toda a essência do potencial técnico aparentando cometer o equívoco que aponta Ellul de não identificar a máquina apenas como uma das manifestações da racionalidade técnica Contudo não são as máquinas que o inquietam mas as ideias e ideais que estão por trás delas e as têm conduzido contra a pessoa como a inteligência matemática que gerou uma abstração puramente teórica e organizacional da técnica Segundo Mounier os produtos dos avanços técnicos desvirtuaram a técnica da sua finalidade inicial que era a de servir ao homem o que acabou conduzindoa à busca do conforto e ao comodismo somados à sua utilização pela economia capitalista a fim de potencializála Ainda que a razão matemática que ensejou o domínio técnico seja anterior à 25 La personne ne doit donc pas chercher son assise économique en arrière de la civilisation technique mais en avant Élargir et diversifier la technique à lamplitude de lhomme la libérer de lorganisation économique et sociale du capitalisme veiller enfin à ce quelle nabsorbe pas ou ne déforme pas la vie personnelle telle est la seule voie raisonnable hors des utopies réactionnaires et des utopies technocratiques MOUNIER 1961 a p 106 75 sua utilização pela economia o grande problema para Mounier 1961 a foi a acentuação desta abstração da racionalidade técnica para obter mais lucro pela economia capitalista que tem servido a fins desumanos Essa situação paradoxal entre técnica e economia nos provoca algumas inquietações Nos questionamos como essa racionalização pode ser maléfica e o uso da técnica vir a ser benéfico já que seu uso foi desde o princípio condicionado pelas próprias perspectivas que o engendraram como a busca de domínio pleno da natureza que acabou se estendendo sobre os homens Se foi para um maior acúmulo de capital por parte de uma burguesia que se colocou desde então como a grande condutora dos rumos do desenvolvimento técnico que ele teria servido desde seus primórdios logo a otimista abordagem que faz Mounier quanto à possibilidade do progresso técnico se voltar para o benefício do próprio homem ao contrário do que tem ocorrido em muitos aspectos implicaria de alguma forma em um maior controle sobre a economia Ainda que Mounier elucide que dos primeiros progressos dessa razão técnica surgiram os males que nos assolam sua verdadeira fonte parece se encontrar em sua própria essência como acreditam Heidegger e Ellul De certa forma esse otimismo de Mounier em acreditar em um uso comedido direcionado de algo que é em si mesmo técnico e que persegue o êxito e a eficácia em todas as suas finalidades é parcialmente ingênuo É também paradoxal conceber a partir do princípio operante na razão técnica como afirmou Ellul um uso diferente do seu ser que seria o de buscar o melhor meio para o melhor resultado e maiores rendimentos em todas as situações ou como afirmou Heidegger que busca disponibilizar tudo e todos como objeto para os seus cálculos e para a otimização do sistema Logo como o progresso técnico possibilitou o capitalismo bem como o potencializou para seus fins lucrativos vêse que desde o início da racionalidade técnica do projeto de matematização da natureza já estava implícito seu potencial de dominação irrefreável Do capital técnico buscouse não só um aumento da produção tendo em vista o lucro mas também uma forma de racionalização extremada de todos os projetos do homem MOUNIER 1961 a p 103 Seja por uma vontade de vontade que busca apenas seu próprio engrandecimento como o disse Heidegger seja pela busca irrefreável de êxito em tudo como o afirmou Ellul o que ocorreu de fato foi uma forte aliança entre o homem e os novos dispositivos técnicos que permitiu desenvolver um potencial de crescimento jamais antes experimentado O homem viuse no papel de Deus todo onipotente e onisciente capaz de controlar agora a ordem dos 76 acontecimentos naturais e humanos O que o homem não percebeu foi que se tornou vítima do seu próprio veneno e isso Mounier bem reconheceu De todos os males engendrados pelo desenvolvimento desta racionalidade técnica o maior de todos foi o fato de que todos os avanços técnicos historicamente só afastaram os homens uns dos outros e os levaram a uma distração incessante ao isolamento e ao esquecimento de si mesmos Não só a natureza tem se voltado contra o homem mas do seu interior passou a fluir apenas um vazio desconcertante e assustador Como diz Mounier o homem se encontra terrivelmente desamparado e só em um mundo que ele acredita dominar mas do qual já perdeu a capacidade de controle A objetificação do homem e do mundo pela precisão da ciência e da técnica impessoais e abstratas vem anulando toda forma de subjetividade relegando aos mecanismos desta racionalidade técnica soluções parciais urgentes e momentâneas não só aumentando a distância isolante entre os homens mas também retirandolhes a capacidade de resistência ou revolta As verdadeiras causas dos problemas não são sequer abordadas falseiamse os grandes males que assolam a humanidade já silente e resignada diante deles como se fossem intocáveis Em 1960 Lacroix afirmou ainda desconhecer para onde iria o impulso das conquistas científicas Mounier 1961a por sua vez também afirmou não poder prever as implicações futuras da técnica Como o personalismo ambos ainda se encontravam na fase da infância Porém muitos fatos históricos já apontavam para uma nefasta utilização desta potência nas mãos do homem como a racionalização fria e científica dos experimentos do nazifascismo do qual ambos foram testemunhas Assim ainda que Mounier acredite que um bom uso que o homem possa fazer da técnica venha afirmála como escrava os princípios que regem esta racionalidade têm demonstrado pelos fatos que não Todavia o grande problema colocado pela técnica na perspectiva de Mounier a despeito de todo paradoxo pertinente à sua essência ou constituição diante do qual o homem se colocaria na condição de senhor ou servo é que devemos voltar nossa atenção para a lógica operacional que a conduz como instrumento a favor ou contra a pessoa Para o autor só na condição de pessoa será possível para o homem retomar a direção dos impulsos técnicos e conduzilos também para o seu desenvolvimento espiritual e essa é a grande questão com a qual devemos hoje nos ocupar Para Mounier há uma via de acesso para o homem a uma existência autêntica e humanizadora inversamente proporcional às suas construções seus projetos ou mesmo aos males já provocados por suas criações Este caminho se encontra nas substanciais relações 77 humanas e no interior do homem e diz respeito à sua característica mais intrínseca e inalienável que é o seu ser pessoal a despeito de todas as corrosões já provocadas exteriormente e em sua subjetividade Contrariando todo fatalismo quanto às irrefreáveis e impessoais direções do desenvolvimento técnico o homem não é um autômato vitimado de suas próprias invenções ele é um ser que possui livrearbítrio capacidade de escolhas racionais Seu entendimento ainda não foi totalmente entorpecido pelas ideologias dominantes Conforme Mounier há escolhas que se fazem diante de qualquer circunstância ainda que suas motivações sejam condicionadas Nesse sentido diante não só dos dispositivos técnicos mas da própria razão que os coordena parte do homem para Mounier permanece incólume e diz respeito à sua mais profunda e misteriosa singularidade impassível de objetificação Como a pessoa é única e singular ela não é passível de manipulações objetificantes totalmente eficazes logo a dominação para Mounier não é total Por ser o homem um ser de liberdade e imprevisibilidade Mounier buscou no personalismo e nas categorias do universo pessoal a afirmação da pessoa como um absoluto irredutível a toda forma de objetificação Se o domínio técnico já se estabeleceu sobre o indivíduo somente a pessoa pode retomar o controle dos dispositivos que operam para o seu aviltamento Nesse processo a educação personalista será um caminho por excelência para o resgate e condução do ser pessoal único que pode se opor a toda tecnocracia e recusar toda forma de sujeição ou diminuição das suas potencialidades Enquanto uma permanência aberta a pessoa é fonte de criação e pode reivindicar a autonomia sobre os meios que ela mesma criou Ela está em uma relação dialógica com o meio e não é só fruto dos determinismos Esta será a grande luta do personalismo de Mounier se colocar contra a consideração objetivista do homem promovida pela razão técnica Através do personalismo Mounier buscará mostrar que a pessoa é um ser transcendente ao mesmo tempo que situado historicamente Nesse sentido ela tem sido não só negligenciada mas absolutamente desconhecida em sua essência pela tradição científica e técnica MOUNIER 1988 p 417 Se a razão técnica buscou afastar a pessoa do seu interior e das outras pessoas operando a partir de uma educação aviltante a fim de objetificála para a consecução dos seus fins de dominação plena para Mounier isso não é uma fatalidade instransponível mas apenas uma passagem para uma nova forma de existir e conduzir os rumos do desenvolvimento O autor encontra nos pressupostos do personalismo alternativas para a concretização do progresso espiritual do homem e da comunidade 78 CAPÍTULO II O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER SOB A PERSPECTIVA DA PESSOA E DA COMUNIDADE Os filósofos como os sábios esvaziaram o mundo da presença do homem Por uma espécie de demissão fundamental a qual necessitaria de uma análise ética eles construíram a ficção de um mundo que não é mundo diante de ninguém pura objetividade sem sujeito para a constatar Eles se empregaram então em compreender o mundo como um sistema de puras essências quer dizer de puros possíveis que se tornaria em resumo totalmente indiferente ao fato deles existirem ou não26 MOUNIER 1962 p 13 21 Do indivíduo à pessoa da pessoa ao personalismo Dos pressupostos liberais na economia do racionalismo na política e da racionalidade técnica na ciência moderna decorreram princípios organizacionais de regulamentação da vida social que operam pela lógica da pura abstração Apoiados mais em métodos com base em resultados apreciados quantitativamente afetaram profundamente o próprio homem Vimos emergir o indivíduo burguês afetado em sua dignidade e singularidade outrora preconizadas pelo projeto iluminista e subjugado pelo imperativo do capital O respeito pela pessoa foi substituído por um egoísmo que foi dificultando a solidariedade entre os homens gerando uma sociedade dividida injusta e infeliz Destes novos valores e ideais surge o homem abstrato desconfiado sem vínculo com os semelhantes bem como instituições conduzidas a assegurar a instalação dos seus interesses individualistas voltados para o lucro O individualismo se constitui como o alicerce não só do liberalismo mas também do domínio técnico sobre o homem Mounier assinala a separação entre a técnica e a pessoa que 2626 Il semble en effet que les philosophes se soient ingéniés en accord avec les savants à vider le monde de la présence de lhomme Par une sorte de démission fondamentale dont il faudrait peutêtre tenter une analyse éthique ils ont construit la fiction dun monde qui nest monde devant personne pure objectivité sans sujet pour le constater Ils se sont alors employés à développer le monde comme un système de pures essences cestà dire de purs possibles dont il devenait somme toute indifférent quils existassent ou quils nexistassent pas MOUNIER 1962 p 13 79 unida às forças impessoais do meio acabou se servindo mal do que poderia ter sido seu grande triunfo Estando a técnica nas fontes da corrosão da subjetividade do homem cujo crescimento espiritual não ocorreu no mesmo ritmo a razão que a anima acabou obstruindo o mistério do ser pessoal Conforme Mounier o individualismo estaria na raiz de todos os males que assolam o homem uma vez que é um sistema de costumes de sentimentos de ideias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e de defesa Foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX Homem abstrato sem vínculos nem comunidades naturais deus supremo no centro de uma liberdade sem direção nem medida sempre pronto a olhar os outros com desconfiança cálculo ou reivindicações instituições reduzidas a assegurar a instalação de todos estes egoísmos ou o seu melhor rendimento pelas associações voltadas para o lucro eis a forma de civilização que vemos agonizar sem dúvida uma das mais pobres que a história jamais conheceu É a própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário 2004 p 4445 O indivíduo perdeu o sentido da humanidade de algo maior do que o próprio eu enaltecendo os próprios interesses negligenciando o outro o grupo a própria autenticidade Essa pretensa autonomia individualista do sujeito na sociedade burguesa capitalista implicou em seu aniquilamento bem como do social Quanto mais alienado voltado para si mesmo mais foi reforçado na forma de indivíduo Atomizados o controle desses indivíduos isolados tornase mais fácil e eficaz Esse isolamento entretanto é contrário à condição primitivamente mais gregária do homem Como bem avalia Marx quanto mais se avançou na história mais isolados os indivíduos se tornaram 1999 p 26 Foram as alienações imperantes projeto de dominação da burguesia que levaram o indivíduo a isolarse cada vez mais num processo de separação de si e do mundo sempre mais efetivas fazendoo perder sua referência ao coletivo dificultando sua emancipação Mounier assinala que o individualismo não é somente uma moral é também a metafísica da solidão integral Permanece como valor a afirmação brutal de si afirmação de conquista e de reivindicações O homem perde o gosto de acolher e o desejo de dar Erigese um humanismo que é apenas uma máscara civilizada de instinto de poder MOUNIER 1961 b p 2829 Contudo para Mounier a técnica só pode romper com a vida sob a direção do espírito uma vez que o homem é um ser de escolhas responsáveis que se constitui no aqui e agora diante dos sempre novos desafios da vida Nessa perspectiva o homem não é 80 totalmente determinado pelo meio mesmo que seja condicionado por ele O homem pode retomar os meios que ele mesmo criou desde que permaneça a finalidade última de todas as suas criações Ainda que as forças resultantes da técnica tenham criado atitudes de isolamento defesa e objetificação do homem Mounier permanece otimista por acreditar que a pessoa ainda poderá ser resgatada em meio a estes dispositivos e esta será sua grande ocupação As motivações personalistas no pensamento de Mounier foram as de salvaguardar a pessoa humana da totalidade anômica construída na figura do indivíduo burguês enquanto centro egoísta de direitos privados LACROIX 1969 p 58 Mounier empreende contribuir para a promoção do resgate da pessoa a partir das categorias do universo pessoal buscando retomar a percepção da sua inteireza e originalidade de maneira diversa das deformações que a figura do indivíduo lhe impregnou sugerindo inclusive transformações nos meios que contribuem para sua emancipação como a educação O personalismo é uma atitude reativa de defesa contra toda atitude negadora da pessoa como centro inalienável e insubstituível Afirma o valor absoluto do ser humano como pessoa quando comparada com qualquer outra pessoa ou qualquer realidade material e social Foi o contraataque de cunho ético e político utilizado por Mounier aos desgastes econômicos e espirituais decorrentes do individualismo iluminista que com seus pressupostos organizacionais técnicoobjetificantes tendem a aniquilar a subjetividade das pessoas como os laços de solidariedade que as uniriam de fato Por outro lado a crítica de Mounier manifestase também contra o coletivismo que reduz a pessoa a uma mera unidade numérica submersa na massa acrítica e manipulável pelo controle técnico Estes fatores levam à despersonalização por sucumbir a pessoa à dissolução em um todo abstrato quando ela não é parte de um todo mas é um todo com o todo com o outro e com a comunidade Mounier chama personalista toda doutrina toda civilização que afirmam o primado da pessoa humana sobre as necessidades materiais e sobre os aparelhos coletivos que sustentam seu desenvolvimento27 MOUNIER 1961 a p 7 Esta perspectiva visa transcender não só o mundo capitalista burguês decadente erigido com base no individualismo mas também o comunismo o fascismo e toda forma de totalitarismo inclusive das organizações técnicas Em uma comunidade de pessoas não há lugar para o totalitarismo da organização 27 toute doctrine toute civilisation affirmant le primat de la personne humaine sur les nécessités matérielles et sur les appareils collectifs qui soutiennent son développement MOUNIER 1961 a p7 81 A organização só é viável para as pessoas e no campo de estruturas de um universo de pessoas Senão em vez de libertar o homem faria nascer um novo estado natural reinado das massas reinado da engrenagem e seus dirigentes nas mãos dos quais a pessoa seria simples joguete O totalitarismo escolheu bem o seu nome não se totalitariza um mundo de pessoas MOUNIER 2004 p 56 Conforme Mounier pessoal quer dizer que a pessoa jamais deve ser tratada como um objeto seja pelo Estado pela economia ou pela técnica enquanto princípio organizacional das suas instituições Para Mounier o mais alto fim de toda organização inclusive da produção econômica deve ser a instauração de um mundo de pessoas A primeira tarefa do personalismo foi civilizadora fundamentada em um novo humanismo em contraposição ao humanismo burguês por ser este individualista e enaltecedor de egoísmos e agressividades Na perspectiva do personalismo o homem só se humaniza quando rompe com os pressupostos individualistas sua antítese e o seu maior adversário A preocupação personalista é descentrar o indivíduo de si mesmo para o colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa Para Mounier a pessoa só cresce na medida em que se purifica da excessiva ocupação consigo mesma e se torna disponível para os outros a partir da criação conjunta de uma sociedade de pessoas expressa em suas estruturas costumes sentimentos e até instituições Ibidem p 4546 Para Mounier devemos distinguir a pessoa do indivíduo Enquanto o indivíduo é a difusão da pessoa na superfície de sua vida a flutuação entre diversas personagens de espírito reivindicador egocêntrico e avarento a pessoa ao contrário é escolha domínio e conquista de si Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma forma de subsistência e independência em seu ser ela entretém esta subsistência por sua adesão a uma hierarquia de valores livremente adaptados assimilados e vividos por um engajamento responsável e uma constante conversão ela unifica assim toda sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo a golpes de atos criadores a singularidade de sua vocação28 MOUNIER 1961 a p 46 A crença na autonomia da pessoa enquanto ser aqui e agora impassível de manipulação e objetificação plena leva Mounier a reivindicar sua autoridade sobre os meios aos quais ela tem servido mas que deveriam lhe servir como a técnica A pessoa 28 Une personne est un être spirituel constitué comme tel par une manière de subsistance et dindépendance dans son être ele entretient cette subsistance par son adhésion à une hiérarchie de valeurs librement adoptées assimilées et vécues par un engagement responsable et une constante conversion elle unifie ainsi toute son activité dans la liberté et développe par surcroît à coups dactes créateurs la singularité de sa vocation MOUNIER 1961 a p 46 82 independente e crítica capaz de escolhas é que poderá retomar as rédeas dos rumos do progresso técnico 22 A antropologia personalista do dado ao desafio A filosofia personalista resulta da existência engajada e transformadora de Emmanuel Mounier que reclama por uma nova civilização pautada em existências incorporadas e comprometidas com a sociedade Ela afirma a pessoa como um projeto inacabado que tende para a sua plena realização evitandose o risco de lhe promover uma definição engessada e rígida dado que esta não é objeto Tratase de uma filosofia porque define estruturas mas por se guiar pelo princípio da imprevisibilidade tanto na abordagem do homem como da realidade ou do próprio conhecimento ela não se condensa em um sistema MOUNIER 2004 p 14 Domenach aborda o personalismo como uma filosofia que caminha que propõe mais do que define à semelhança de Mounier sempre aberto ao diálogo Esprit fev1936 apud MOIX 1968 p 181 O personalismo não se trata de um sistema fechado de um corpo de doutrinas estabelecido de uma vez por todas mas é uma aventura aberta voltada mais para o futuro que para o passado por opor à rigidez do sistema a dupla exigência do rigor e da flexibilidade MOIX 1968 p 181 Com a expressão permanência aberta Mounier não elimina por completo a noção de uma essência humana enquanto indica que as escolhas e ações possuem papel fundamental para a formação da pessoa Em manifesto contra toda forma de opressão Mounier funda a Revista Esprit em 1932 e com ela anuncia a necessidade de uma Revolução Personalista e Comunitária Intelectual engajado e comprometido com os problemas da sua época Mounier não se limita a criticar a crise europeia mas se ocupa também em propor soluções para resolvêla Polêmica e provocadora a revista se apresenta como obra de educação política e se posiciona contra todo determinismo que governaria a história Para os adeptos da revista teoria e prática caminham juntas e este foi o espírito que perdurou durante toda a sua existência O nome Esprit já denota o valor primordial da revista que é o espiritual acima do econômico político social técnico ou qualquer outro Amadurecida em meio a grandes conflitos políticos como a guerra da Espanha da Frente popular de Munich e de Vichy o cerne essencial da revista Esprit é anunciar o Personalismo e seu potencial de promover efetivas transformações não só sociais mas também no próprio homem ANDREOLA 1985 p 8190 83 A filosofia personalista de Mounier se posiciona pela não massificação do homem sua não diluição em um modelo ou exemplar comum e substituível reduzido à sua função produtora e reprodutora do social enquanto uma peça da engrenagem técnica e objetificante Para Mounier além de se tratar de uma pesquisa iniciante é no plural em personalismos que se deveria falar uma vez que reúne filosofias diferentes mas que têm o mesmo espírito com relação à pessoa e contra as civilizações que a degradam MOUNIER 1961 a p 7 Segundo Mounier 2004 o primeiro ato de uma vida pessoal é a tomada de consciência da vida anônima que Heidegger chamou de mundo do man29 Este mundo retrata a consciência sonolenta as opiniões vagas o conformismo social e político a mediocridade moral da multidão e das organizações irresponsáveis que pela lógica da técnica tem cerceado por todos os meios a capacidade crítica e de resistência das pessoas A vida pessoal reclama por uma revolta contra a degradação que os ideais técnicos com suas instituições assegurantes e perpetuadoras dos seus propósitos como a educação representam O impersonalismo das estruturas é ameaçador empobrece a relação pessoal converte os homens em massa colocandoos na condição de matéria ou instrumento para melhor negálos como pessoas O homem perdese na universalidade do conceito e tornase um material estatístico exemplar comum previsível e substituível enquanto anulase como pessoa esta que por definição é o que não pode ser repetida MOUNIER 2004 p 5155 Conforme Severino com os pressupostos lançados pelo personalismo Mounier participa das reflexões da filosofia contemporânea que buscam um acerto de contas com o projeto do essencialismo metafísico clássico bem como com o projeto iluminista da modernidade que ensejou os ideais de domínio técnico O personalismo buscará superar o pretenso objetivismo das ciências positivas que inclusive atingiu e comprometeu o âmago das próprias ciências humanas como também superar o subjetivismo idealista de toda expressão metafísica da filosofia ocidental SEVERINO 1990 p 26 Para ele o personalismo assim como o existencialismo também será uma exigência e um apelo contra o desconhecimento do homem pela filosofia tradicional SEVERINO 1974 p 93 29 Impessoal Das Man O pronome Man na língua alemã exprime uma impessoalidade diferenciada pois diz que ocorreu uma despersonificação de pessoas Corresponde ao português a gente cantase falase comentase O impessoal é o quem do Dasein na sua medianidade cotidiana aquilo que determina seu modo de ser antes de tudo e na maioria das vezes Heidegger aponta a exigência de sairmos do abafamento e do anonimato de uma existência que não assume plenamente suas possibilidades mais autênticas O que Ser e Tempo parece nos mostrar é que em meio à turba à multidão e afundados nas evidências e preconceitos do senso comum e da ciência não podemos encontrar nem a verdade nem a nós mesmos Assim para Heidegger a conquista de uma existência autêntica deve tomar como ponto de partida a banalidade da existência cotidiana inautêntica na qual pensamos sentimos e agimos sob a ditadura de um sujeito que não é ninguém mas que ao mesmo tempo é todo mundo o impessoal Das man que nos tira a responsabilidade de nos colocarmos em questão em cada uma de nossas escolhas FERREIRA JR 2012 84 Por estar centralizado na existência do homem Severino 1974 conceitua o personalismo como essencialmente antropológico Enquanto a antropologia busca o sentido da existência humana em suas mais variadas formas de manifestação costumes crenças hábitos mito ciência religião diferentes aspectos físicos e culturais a antropologia personalista de Mounier trata do auto constituirse do ser humano como pessoa como uma experiência singular porém também situada em sua imersão histórica enquanto ser no mundo Essa antropologia situa a pessoa enquanto atividade vívida de autocriação comunicação e adesão Visa refazer a Renascença colocando o homem como centralidade de fato e não como um ser objetificável e manipulável pelos interesses dominantes do capital e da técnica que permitiram a potencialização dos rendimentos da burguesia comercial e em seguida industrial SEVERINO 1974 p 2932 Mounier busca através do personalismo enfatizar sua condição essencial de pessoa enquanto um mistério vivo e irredutível a qualquer previsibilidade numa perspectiva absolutamente desvinculada de qualquer forma de manipulação ou sistematização aviltantes Mounier foi um precursor dos esforços na busca de uma reflexão filosófica sobre o homem Ele aborda a pessoa como um mistério inacessível à razão da qual só se pode aproximar por um engajamento pessoal na aventura total da existência Logo a pessoa é inalcançável e irredutível tanto pela ciência positivista ou pela filosofia racionalista quanto pelos ideais técnicos que pretendem sistematizála Estes reducionismos racionalistas oprimem o homem ao destruir a autonomia de sua singularidade SEVERINO 1990 p 27 As reflexões de Mounier buscam superar todo reducionismo explicativo da pessoa que é unidade dialética inserida na complementaridade e na reciprocidade dos movimentos de interiorização e exteriorização que a constituem de fato ainda que os ideais tecnificantes e objetificantes a tenham mergulhado na pura exterioridade A antropologia personalista de Mounier expressa o esforço de sintetizar a perspectiva estruturalessencialista do homem e sua perspectiva históricoexistencialista enquanto ser dado e enquanto uma tarefa um projeto de ser caracterizada pela exigência da ação SEVERINO 1990 p 2527 Este novo projeto antropológico para Severino pautase na imagem do homem sob novos paradigmas livre tanto do mecanismo da máquina natural quanto da máquina artificial da essência técnica oriunda do voluntarismo do cogito racional Busca apreender as condições da existência do homem no mundo da cultura Nesse sentido tratase de uma ruptura radical com o projeto moderno da razão iluminista tanto em suas expressões filosóficas como na sua realização científica SEVERINO 1990 p 27 85 A nova antropologia personalista busca uma superação das três maiores forças que aprisionam a subjetividade a filosofia a ciência e a religião que acabaram por esvaziar o ser do homem A filosofia pela universalização dos princípios unificadores lógicoracionais que respondem a uma lei geral e necessária A ciência em especial as ciências humanas que com seus fundamentos naturalistas e positivistas tratam o homem como coisa a ser tecnicamente manipulada cujo resultado dessa aplicação técnica das conclusões científicas no mundo humano é sua racionalização que se traduz em institucionalização em burocratização em tecnocratização numa lógica sistematizadora que agrada os técnicos A religião enfim por retirar do homem sua autonomia alienandoo ao domínio despótico dos ídolos SEVERINO 1990 p 2728 Nesse sentido Mounier é partícipe da atual tendência filosófica em promover uma teoria da produção de uma subjetividade mais abrangente que não apenas considera sua singularidade mas também os desejos paixões e outras formas de sensibilidade e liberdade que transcendem o sujeito lógicoracional Como consequência diante da difícil tarefa de conciliar o ser como dado e o ser como projeto Mounier integra em sua antropologia uma referência ao transcendental religioso à teologia cristã como pressupostos de toda sua constituição teórica comprometida com a metafísica essencialista SEVERINO 1990 p 28 30 Para a antropologia personalista a pessoa é concebida como uma permanência aberta que se estrutura como uma essência não de forma fixa e imutável mas como fonte viva do ser e também como criação construída pela ação responsável tornandose naquilo que ela mesma se faz Afirma Severino o homem não é só fruto do meio do dado ele se constitui na relação dialógica entre os determinismos imanência e suas escolhas transcendência A exigência da ação está vinculada às exigências da personalização que se insere numa ética da responsabilidade cujo destino se dará pela dialética constante entre condicionamentos e valores SEVERINO 1990 p 27 Tal perspectiva segundo Severino considera exaurida a fecundidade do iluminismo do positivismo da ciência e da técnica incapazes que foram de realizar as promessas de libertação do homem que afinal acabou sendo transformado em simples objeto de manipulação por todos os mecanismos institucionais da sociedade 1990 p 27 86 23 Sistema e Existência a inesgotável concretude do ser e sua prioridade sobre o conhecimento O mundo objetal enfeitiçou o homem que em troca soube transformálo num feixe de ideias e conceitos dissolventes num mundo de pontos infinitos e indiferentes O mistério do ser a plenitude e a densidade da existência não têm mais seu lugar neste universo pretensamente exaustivo de explicitação SEVERINO 1974 p 38 Os ideais técnicos promoveram a fragmentação não só da realidade que é em si um todo interligado mas atingiu também o conhecimento e o próprio homem criando um falso dualismo entre corpo e alma como se este também não fosse um ser que conhece com seu ser inteiro enquanto razão e carne juntos MOUNIER 1971 p 676 Conforme o autor antes deste dualismo inaugurado por Descartes predominava a acertada crença de que a realidade do homem e do mundo era uma totalidade espíritomatéria indissociável Mounier reconhece as glórias iniciais do dualismo cartesiano que nos desembaraçou a seu tempo de um verbalismo confuso uma vez que esta perspectiva do todo dificultava a análise das partes e era um empecilho para o desenvolvimento da ciência moderna que foi possível a partir de uma perspectiva puramente mecanicista da realidade MOUNIER 1961 b p 416 Todavia a sistematização que se segue justamente a partir do preciso momento em que Descartes renunciava a este dualismo acabou envenenando todos os valores modernos da civilização MOUNIER 1971 p 109 Dessa posição cartesiana decorreu uma longa tradição idealista que não estabelece uma relação muito estreita e vivencial com os objetos de seu pensamento comprometendo o conhecimento do objeto ao buscar segurança frente ao desconhecido fechando o espírito em uma falsa criação de si mesmo e do mundo asseguradas unicamente pelo correto uso do método Para Mounier É uma sorte de rito mágico pelo qual nós pensamos nos assegurar contra o nada o desconhecido a inquietude Uma compensação que nós damos contra o incômodo de um pensamento móvel e insatisfeito O que nós chamamos o objeto não é portanto uma realidade que nos chama e nos enriquece mas uma projeção de nosso medo e nosso desejo de conforto na satisfação que nós nos oferecemos finalmente um obstáculo à vida aventureira e livre do espírito O pensamento é a ele mesmo seu próprio objeto ele não encontra nada se termina em limites provisórios ele é imanência pura Não há portanto verdade nada de grandes escolhas absolutas basta ao espírito funcionar bem seguindo certas regras constitutivas e aliás maleáveis de concordar com ele mesmo30 MOUNIER 1961 b p 34 30 Cest une sorte de rite magique par lequel nous pensons nous assurer contre le néant linconnaissable linquiétude Une compensation que nous donnons à la gene dune pensée mobile et insatisfaite Ce quon 87 Assim o mundo foi abandonado pelo homem moderno que reduziuo à categoria de coisa espaço e movimento uma máquina frente a qual ele não passa de um espectador desvinculado indiferente à sua marcha sem finalidade MOUNIER in Feu la chrétienté p 100 Responsabilidades do pensamento cristão apud MOIX 1968 p 137 Esses fatos geraram o domínio técnico que passou a ser o objetivo de um homem agora perseguido pelo desejo de poder irrefreável diante das novas possibilidades que se abriam à sua frente Contudo esse homem sobretudo no século XX passou a se sentir perdido e só jogado no absurdo sem sentido ou razão em um universo cada vez mais massacrante e insignificante MOUNIER 1959 p 17 A nova condição do homem agora diluído na massa e transformado em apenas um aparato numérico destes novos dispositivos técnicos que primam pela eficácia e pelo êxito gerou a inquietude existencialista e personalista A busca da autenticidade diante desta aparente ordem e segurança recoloca em questão o sentido da existência a fim de restituir um significado a toda atividade mecânica orientada por uma lógica mercantil A questão da existência no contexto filosófico contemporâneo é uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia das coisas MOUNIER 1962 p5 Estas filosofias tidas como do nada segundo Moix surgem como um antídoto contra o otimismo ingênuo do idealismo MOIX 1968 p 204 cuja inquietude busca impedir nossa permanência na pureza das posições filosóficas MOUNIER 1959 p 18 24 Personalismo e Existencialismo o desarrazoamento da razão deificada Mounier 1962 retrata o personalismo como um dos ramos da árvore existencialista Por explorar a existência e os existentes o existencialismo assinala o despertar personalista na reflexão contemporânea caracterizando a estreita solidariedade entre suas preocupações MOUNIER 1962 p 55 Acrescenta Moix que o personalismo renovou os temas do existencialismo colocandoos no centro da sua filosofia 1968 p 199 Ambos apontam o trágico da condição humana e também não aceitam que somente a razão possa explicar e appelle lobjet nest donc pas une réalité qui nos appelle et nous enrichit mais une projection de notre peur et notre désir de confort une satisfaction que nous nous offrons finalement un obstacle à la vie aventureuse et libre de lesprit La pensée est à ellemême son propre objet elle ne rencontre rien se termine à ses limites provisoires ele est immanence pure Il ny a donc pas de vérité pas de grands choix absolus il suffit à lesprit de fonctionner bien suivant certaines règles constitutives et dailleurs malléables de saccorder avec luimême MOUNIER 1961 b p 34 88 conhecer o homem que precisa antes existir para só depois conhecer SEVERINO 1974 p 93 Tanto para o personalismo quanto para o existencialismo o prioritário é o sujeito do conhecimento a pessoa humana a existência sobre a consciência Esta existência submetese à facticidade à temporalidade à contingência ao confronto com o outro ela se constrói superandose transcendendose SEVERINO 1974 p XIV Como duas filosofias existenciais o Personalismo e o Existencialismo começam não por uma aquisição de conhecimentos gerais mas por uma conversão uma metanoia uma mudança total de percepção e de caminho MOIX 1968 p 200 Ela é primeiro atitude no conhecedor para só depois se dar o conhecimento Conforme Mounier esta conversão não é definitiva deve ser retomada sempre MOUNIER 1962 p 25 Ambas se pautam na primazia do existente em uma exigência de autenticidade e em uma vigilância contínua sobre a máfé MOUNIER 1988 p 410411 Os protestos existencialistas se dirigem contra a consideração objetivista do homem promovida pela racionalidade técnica moderna Neste contexto o personalismo de Mounier para Peixoto faz parte da longa tradição existencialista por opor ao autômato dos técnicos o homem situado e interior que se expõe mas que é também secreto PEIXOTO 2009 p 39 ideia comum tanto a existencialistas quanto a personalistas Para ambos o homem é um ser situado inseparável do mundo por isso deve vigiar para não objetivarse no mundo e ser por ele absorvido como um objeto passivo mas deve assumir suas responsabilidades e sua carga a cada instante MOUNIER 1988 p 412413 Para o existencialista nós não somos objetos estáticos congeláveis e recortáveis aos moldes positivistas ou ainda subjugáveis e manipuláveis por forças deterministas irreversíveis como a de uma essência técnica mas somos centro de liberdade e escolha que dá sentido às coisas capazes de construir nosso próprio destino Em A esperança dos desesperados Mounier descreve o cerne do protesto existencialista que transcende toda organização utilitária em prol da liberdade e da vida autêntica Eu não sou uma coisa um ser objetivo que se conhece ao pôlo na mesa de observação como uma peça de anatomia um móvel impessoal arrastado pelo rio da natureza e determinado em seu trajeto pela fatalidade desta Sou um existente quer dizer um ser que surge na ordem determinada das coisas como uma novidade absoluta como um centro de iniciativa de afirmação e de liberdade Um ser que certamente não está ausente ou separado do mundo porém que transcende o mundo por seu poder criador e deve escapar constantemente do atolamento das coisas para guardar a flexibilidade elástica 89 de sua existência primeira Em certo sentido eu sou inclusive aquele por quem existe o mundo 31 MOUNIER 1988 p 411 Nossa tradição dualista e técnica produziu não só o imperialismo do objeto mas também o desconhecimento do existente humano no que tange à sua interioridade liberdade e espiritualidade MOUNIER 1988 p 417 Por isso o personalismo e o existencialismo não começam por uma teoria do conhecimento que trataria do homem como um objeto ou como um ser impessoal 1968 p 199 A essência é o complemento da existência e não o contrário MOUNIER 1962 p 120 A prioridade da existência sobre a essência decorre de uma nova posição gnosiológica pautada na luta contra o sistema e na afirmação personalista da existência livre e criadora da pessoa SEVERINO 1974 p 93 Todo conhecimento impessoal que dissolve em sua representação todas as coisas e seres não dá conta da existência ou dos mistérios do ser Seu objetivo último é eliminar a dúvida e a inquietude e reduzir a totalidade do conhecimento a um saber LACROIX 1960 p 61 O conhecimento do personalismo se difere totalmente da impessoalidade do saber técnicocientífico Dirá Lacroix O saber científico vale para todos porque ele é em nós a obra do que há de mais impessoal do que é comum a todos a razão É a impessoalidade da ciência que faz sua objetividade ou seja sua universalidade o único conhecimento válido é o conhecimento objetivo porque há nele ao menos de direito uma capacidade de universalização indefinida O personalismo ao contrário pretende que o que chamamos erroneamente a impessoalidade do conhecimento verdadeiro não é que a mais alta conquista e o topo do personalismo que todo conhecimento mesmo o mais científico é na realidade obra da pessoa todo inteira e que ele o deve ser Toda a questão é então de saber se é a impessoalidade ou a pessoalidade que faz o conhecimento autêntico32 LACROIX 1960 p 9697 31 Yo no soy una cosa un ser objetivo que se conoce al ponerlo en la mesa de observación como una pieza de anatomía un móvil impersonal arrastrado por el río de la naturaleza y determinado en su trayecto por la fatalidad de ésta Soy un existente es decir un ser que surge en el orden determinado de las cosas como una novedad absoluta como un centro de iniciativa de afirmación y de libertad Un ser que ciertamente no está ausente o separado del mundo pero que transciende el mundo por su poder creador y debe escapar constantemente del enviscamiento de las cosas para guardar la flexibilidad elástica de su existencia primera En cierto sentido yo soy incluso aquél por quien existe el mundo MOUNIER 1988 p 411 32 Le savoir scientifique vaut pour tous parce quil est en nous loeuvre de ce quil y a de plus impersonnel de ce qui est commun à tous la raison Cest limpersonnalité de la Science qui fait son objectivité cestàdire son universalité la seule connaissance valable est la connaissance objective parce quil y a en elle au moins en droit une capacité duniversalisation indéfinie Le personnalisme au contraire prétend que ce quon appelle à tort limpersonnalité de la connaissance vraie nest que la plus haute conquête et le sommet de la personnalité que toute connaissance même la plus scientifique est em réalité loeuvre de la personne tout entière et quelle doit lêtre Toute la question est donc de savoir si cest limpersonnalité ou la personnalité qui fait la connaissance authentique LACROIX 1960 p 9697 90 Para Mounier Hegel foi o verdadeiro arquiteto desta catedral definitiva do sistema por afirmar que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real 1962 p 13 1961 a p 15 Idealistas ou materialistas para o autor os sistemas tendem todos a descarregar o indivíduo do peso de suas responsabilidades a jogálos sobre os aparelhos as ideologias ou aos mitos impessoais MOUNIER 1962 p 102 Assim em oposição à impessoalidade do sistema há a realidade da vida individual com sua irredutibilidade e sentimentos concretos pessoais e profundos Por isso em lugar de uma filosofia do sistema e da verdade o existencialismo propõe uma filosofia do encontro e do evento que tem um sentido histórico contingente único e intraduzível LACROIX 1960 p 60 Uma filosofia humana traduz uma consciência inquieta e ininterrupta cujo caráter é próximo da dúvida Adversário das receitas prontas o personalismo é consciente da complexidade do homem do mundo e das coisas por isso quer apreender a verdade sob seus ângulos os mais diversos pela busca de uma nova lógica contra a lógica clássica impessoal que impera no domínio técnico que tudo reduz à condição de objeto MOIX 1968 p182183 MOUNIER 2004 p 9394 A primeira preocupação de um pensamento existencial é o de não deixar os mistérios degenerar em problemas O existente é opaco singular espontâneo imprevisível e infatigável Sua vida é antes vivida não claramente conhecida é mais vivencial que teórica mais intuitiva que dedutiva Como a pessoa não é objeto de conhecimento também não pode ser de manipulação SEVERINO 1974 p 3234 A pessoa é pura presença e a consciência de sua inserção impedirá a imobilização nas posições adquiridas por obra de uma mediatização dialética oposta à imediatização massiva da técnica MOUNIER 1962 p 1327 A impotência da razão é outro aspecto da condição trágica do homem para o existencialismo donde sua desconfiança com relação a todo sistema e todos os seus aparelhos que sufocam a espontaneidade como a técnica que não suporta o imprevisível Tanto o existencialismo quanto o personalismo se recusam deixar às categorias racionais o monopólio da revelação do real Para ambos o importante não é tanto a verdade mas a atitude do conhecedor33 MOUNIER 1962 p 1725 Assim a razão não é o único meio para o conhecimento pois entre o conhecimento e a existência o diálogo é infinito LACROIX 1960 p 7475 33 limportant nest pas tellement la vérité que lattitude du connaissant MOUNIER 1962 p 17 91 Nesse contexto dirá Mounier a clareza proposta por Descartes e a consequente busca de previsão plena dos ideais técnicos são inalcançáveis uma vez que há muitos obstáculos à razão Segundo o autor a realidade não é tão mensurável como almejam os técnicos é incontabilizável Enquanto um inesgotável concreto tudo o que se pode acumular de saber a respeito do ser é sempre quantidade ínfima em relação ao que se ignora MOUNIER 1962 p 1819 Conforme Mounier o erro fundamental do racionalismo foi o de esquecer que o espírito cognoscente é um espírito existente que fala a outros existentes e que não procura uma verdade impessoal e indiferente a todos mas sua verdade uma verdade que responda a suas aspirações e o prive de seus problemas MOUNIER 1962 p 14 Verdade aqui é adesão verdade vivida não uma hábil construção de palavras ela é crença mais que certeza MOIX 1968 p 219 O fundamento do personalismo é que todo sistema filosófico é pessoal e o conhecimento é a mais profunda expressão da pessoa LACROIX 1960 p 69 Dirá Mounier Não há logo verdade de todos nem verdade para todos nem fora da história verdade de todos os tempos A filosofia da existência só pode esclarecer casos individuais descrever situações descontínuas sem que jamais estas investigações excedam o uso do aro da existência onde elas foram suscitadas A filosofia deve renunciar à extensão tentação da ideia tradicional de verdade pela estreiteza profunda à organização para a incursão Ela não me conduz assim jamais à verdade mas à minha verdade de existente à procura da significação da existência através da minha própria existência Desta verdade eu não posso sair dominála de fora para compará la a outras Liberada por ela no coração de mim mesmo eu resto por isso englobado nela ela não é verdade despertar e vida que para mim somente Não é que ela me fecha sobre mim mesmo Ela cria direção ao outro ela doa um eco Ela não é exposição ela é invocação34 1962 p 116 Para Mounier o que Descartes de fato funda ao colocar o problema da verdade como uma questão de método é uma pretensão da consciência O problema da verdade deve sempre circular entre a interiorização e a exteriorização a objetivação e a subjetivação o particular e o universal a partir de um método existencial dialético MOUNIER 1962 p 113121 uma vez que o homem é um seremsituação MOUNIER 1971 p 66 Nesse aspecto para Mounier a razão o intelecto não é o triunfo ou o coroamento da humanidade 34 Il ny a donc pas de vérité de tous ni de vérité pour tous ni hors de lhistoire de vérité de tous les temps La Philosophie de lexistence ne peut quéclaircir des cas individuels décrire des situations discontinues sans que jamais ces investigations dépassent en portée laire dexistence où elles ont été suscitées La philosophie doit renoncer à lextension tentation de lidée traditionnelle de vérité pour létroitesse profonde à lorganisation pour lincursion Elle ne me conduit ainsi jamais à la vérité mais à ma vérité dexistant à la recherche de la signification de lexistence à travers ma propre existence Cette vérité je ne puis en sortir la dominer du dehors pour la comparer à dautres Libéré par elle au coeur de moimême je reste cependant englobé en elle elle nest vérité éveil et vie que pour moi seul Ce nest pas quelle me ferme sur moi Elle crie vers lautre elle appelle un écho Elle nest pas exposition elle est invocation MOUNIER 1962 p 116 92 mas uma espécie de enfermidade estranha e perniciosa que trabalha na contracorrente do impulso vital MOUNIER 1971 p 667668 Lacroix entretanto reconhece o valor de Descartes como precursor do personalismo A ascese da dúvida é a condição primeira de toda afirmação personalista e de todo conhecimento onde o espírito que antes vivia confusamente no mundo impessoal das aparências e das opiniões de origem sensível ou social como dos valores que permeiam o mundo técnico se apreende como pessoa como Eu LACROIX 1960 p 82 O erro de Descartes conforme Mounier nos apresenta no Tratado do Caráter foi não ter levado a dúvida à carne da pessoa e havêla introduzido unicamente para eliminar a incerteza que se estanca e nos imobiliza ao longo do caminho envenenando cada passo do entendimento MOUNIER 1971 p 678 O primeiro passo da filosofia então não se dá em vista do conhecimento mas do apelo ao homem em sua qualidade de existente Assim é necessário então que o pensamento se faça carne e em cada homem carne da sua existência Assim não é a morte que é uma questão filosófica mas o fato de que eu morro Antes de sermos pensantes somos homens e enquanto tais damos ao mundo sua significação que nos une a ele MOUNIER 1962 p 14 16 Segundo Lacroix a inteligência não é somente a faculdade de explicar o mundo mas de se explicar com ele 1960 p 105106 Mounier cita Claudel para quem conhecer é conascer em francês conaître que vem de conaissance connaîtreconnaissance ou seja nascer com Para Mounier o que a razão capta é apenas o eu fenomênico ou o sujeito consciente tal como aparece empiricamente a si mesmo único que pode ser descrito e esmiuçado MOUNIER 1971 p 515 Estas considerações trazem uma implicação totalmente diferenciada da visão técnico objetificante do homem que o vê como um impessoal abstrato submerso na indiferenciação da massa na universalidade dos conceitos passível de manipulação também por projetos pedagógicos que vêm sustentar e perpetuar não só este sistema mas também a opressão e aniquilação da pessoa que é na verdade singular inimitável e insubstituível Em A esperança dos desesperados ao abordar o universo de Camus Mounier dirá que o mundo não é tão racional nem irracional mas simplesmente desarrazoado Ao querer todos os consolos da claridade o homem acaba por deificar sua razão MOUNIER 1988 p 369 Para Mounier tudo que é humano é ao mesmo tempo sombra e luz MOUNIER 1971 p 669 A vida do espírito para Mounier é inconclusiva porque toda conclusão reflete uma 93 parada da inteligência assim como também o conhecimento nunca é completo mas encerra uma inquietude problematizante sempre em ação 1961 b p 69 Ao conhecimento está reservado um destino trágico Se de um lado há a verdade como absoluto de outro lado na realidade há verdades parciais truncadas sempre discutidas muitas vezes traídas Quem serve à verdade vive no dilaceramento MOUNIER 1971 p 669682 O pensamento personalista é dialético fundamentado na tensão dos contrários e na ambivalência das situações MOUNIER 2004 p 94 Assim a assistematização tornouse o problema das indagações da nova época da qual participa Mounier cuja preocupação era a de não dar por encerradas as reflexões acerca da realidade dado a inesgotabilidade do pensamento e as contradições inerentes à cultura e à civilização SEVERINO 1974 p 32 A preocupação com a totalidade dos filósofos sistemáticos será para os existencialistas substituída pela preocupação com a intensidade no plano do vivido ou da autenticidade no plano do refletido MOUNIER 1962 p 21 Na linha destas novas tendências epistemológicas Mounier por sua vez não se posiciona como um sistematizador desengajado de qualquer circunstância histórica Pelo contrário ele recusa o espírito artificial da vida intelectual desligado de todo contexto humano Como o filosofar não pode ser uma especialidade abstrata distante da vida Mounier parte de uma existência engajada e situada SEVERINO 1974 p XIII Assim como o homem só conhece com seu ser inteiro também o pensamento não se dissocia da ação MOUNIER 1971 p 676 Todavia no que tange ao existencialismo Mounier se opõe a qualquer corrente que recusa ao homem toda essência afirmando a existência de um mundo interior além do eu puramente fenomênico MOIX 1968 p 201217 Por outro lado Mounier também não aceita a ideia de alguns existencialistas de que cada homem nada mais é além do que ele faz o que significaria eliminar a humanidade a história e a própria comunidade MOUNIER 2004 p 55 Também no existencialismo de Sartre a pessoa não ocupa um lugar central como no personalismo MOUNIER 1988 p 425 Afirma Severino 1974 que do existencialismo o Personalismo se difere também por retirarlhe a perspectiva do absurdo que conduz ao desespero dado a facticidade das coisas A fé cristã de Mounier é a fonte de seu consolo na esperança da vida com um sentido Conforme Peixoto é por apresentar o homem numa perspectiva cristã que o personalismo de Mounier supera o sentido trágico do vazio do nada que está presente na visão existencialista PEIXOTO 2009 p 39 Afirma Mounier Aquele que tem a fé não conhece jamais o 94 abandono absoluto da consciência absurda35 Entretanto prossegue nem por isso nele são eliminados a angústia criadora e os combates da noite36 in SIEGFRIED et all 1948 p 238 37 Ricoeur por sua vez ressalta as diferenças entre o caráter crítico e especulativo do existencialismo e o caráter ativo e prospectivo do personalismo Conforme Moix para o autor pessoa e existência não se identificam exatamente de um lado uma preocupação ético política uma intenção pedagógica em ligação com uma crise de civilização de outro uma reflexão crítica e ontológica em tensão com uma tradição filosófica clássica Esprit dez1950 p 887 Uma filosofia personalista apud MOIX 1968 p 222 De fato o personalismo de Mounier tem a preocupação de se comprometer ética e politicamente com a transformação não só da consciência do homem mas também da própria realidade social política e econômica na qual ele está inserido como condição para a sua libertação e desenvolvimento enquanto pessoa A crítica especulativa é apenas uma etapa preliminar para a ação O engajamento a mais severa disciplina do caráter é a condição da pessoa historicamente e subjetivamente situada Para o autor o pensamento autêntico é intermediário ativo entre duas ações MOUNIER 1971 p 676 A intenção pedagógica de Mounier é a de formar a pessoa para a vida civilizada nova pessoa e nova civilização onde os valores humanos são prioritários com relação aos técnicos e mecânicos 25 O mistério da condição humana contra a determinação objetiva o mistério do ser a plenitude e a densidade da existência não têm mais lugar neste universo pretensamente exaustivo de explicitação SEVERINO 1974 p 38 Na busca do domínio da totalidade do real sob a influência racionalista tornamonos seres de definição A própria tradição da razão filosófica que objetiva a realidade externa e interna como passíveis de definição e sistematização racional só valida o que dela advém 35 Celui qui a la foi ne connaît jamais la déréliction absolue de la conscience absurde MOUNIER 1948 p 238 36 langoisse créatrice et les combats dans la nuit ibidem 37 Moix elucida o parentesco entre personalismo e existencialismo quanto ao sentido dramático da existência humana da encarnação do engajamento e da transcendência quanto à importância atribuída ao problema do outro e da conversão pessoal mas lembra também o que os separam a confusão frequente que faz o primeiro entre o trágico e o desespero o fracasso total da comunicação e a impossibilidade de fundar a comunidade a interioridade mal compreendida que assinala uma volta ao individualismo a negação da natureza humana a negação da História a ideia de uma liberdade sem limites e por vezes sem finalidade a dissolução da verdade na subjetividade a desconfiança excessiva da razão o niilismo filosófico e sobretudo a recusa sistemática da objetividade que termina na recusa das mediações da ciência da técnica da organização e marca uma volta ao idealismo MOIX 1968 p 222 95 Entretanto se em Descartes a radicalização da dúvida levou à certeza do cogito em Mounier pela imanência devemos ir além do cogito fora do ato cognitivo para o que se revela dentro de nós enquanto sujeitos viventes que pela transcendência aceita também a dúvida e a incerteza Para Mounier não se pode ignorar o fato de que nem tudo enquadrase na categoria das coisas claramente acessíveis à nossa percepção objetiva Há questões que por sua peculiar condição não se dão a conhecer através do simples esforço racional mas estão envoltas em mistério Conforme o autor o mistério é o problema no qual não só estamos comprometidos mas no qual estamos em questão MOUNIER 1962 p 23 Dentre as questões que jamais poderão ser desvendadas ou definidas está a pessoa humana em sua totalidade por causa de sua múltipla constituição Apesar de imanente é também transcendente por isso indefinível Com as coisas envoltas em mistério devemos considerar seu apelo à não objetivação Diferentemente da máquina que por sua característica objetiva tem suas funções definidas o ser humano transcende a capacidade investigativa Ainda que se possa investigálo não se pode definilo Nesse sentido o ideal técnico ao tratar o homem como máquina buscando objetificálo e reduzilo a fórmulas simples jamais logrará o êxito completo pretendido O que é em si mesmo complexo e misterioso é impassível de definição e de controle objetivo pleno e eficaz Algo sempre escapará do alcance de toda determinação objetiva do homem Só na superficialidade de seu ser o homem é passível de controle e manipulação objetificantes ou seja dentro de certos limites Ter o sentido do mistério para Mounier é saber que a ideia clara ainda que seja importante contra toda confusão ou falso misticismo é apenas o momento onde eu resumo materialmente as coisas para meu uso ou para apoiar meus saltos Contudo a explicação espiritual segue os caminhos mais obscuros mais misteriosos e mais difíceis onde o esforço é a regra que condena todo conforto espiritual O mistério não vale por sua obscuridade mas por apontar para uma realidade mais rica que as clarezas mais imediatas MOUNIER 1961 b p 37 É nesse sentido que Mounier manifesta sua crença na técnica porém apenas enquanto instrumento para um maior salto do homem a caminho de uma existência mais elevada A razão que anima os ideais técnicos deve ser reavaliada mas a técnica mesmo que tanto simplifica a vida do homem é louvável apenas na medida em que contribui para o desenvolvimento de sua autenticidade e transcendência a partir de uma interiorização e 96 superação na aceitação de sua intangibilidade e plena posse de si mesmo pela via de sua unicidade e singular vocação A objetificação do homem pela racionalidade técnica afastou a pessoa do mundo real e concreto reduzindoa à pura exterioridade e materialidade o que não condiz com a sua verdadeira realidade Ainda que tenha prevalecido como tática organizacional opera sempre pela anulação do sujeito enaltecendo um mundo totalmente destituído do homem que precisa agora retornar a ele e retomálo O concreto para Mounier é a presença em face isolada mas ao mesmo tempo misturada com quem a percebe à qual lhe dá acolhimento MOUNIER 1961 b p 3839 Na perspectiva de um Realismo humano Mounier buscará restabelecer uma ponte entre a pessoa e o mundo manifesta na condição da existência objetivada historicamente onde para se conhecer é preciso primeiro existir SEVERINO 1974 p 31 Sendo o homem também aquilo que ele próprio se faz que se constrói ser sempre formado durante a experiência da vida Mounier prefere falar de condição humana em vez de natureza humana a fim de não desintegrar o ser de sua totalidade pois que a ideia de natureza humana universal comum a todos os homens é estática imutável determinista A ideia de natureza humana é cabível para os ideais de domínio técnico mas não abarca a totalidade do real nem a complexidade da pessoa pelo contrário ela é redutora das suas potencialidades que encontrase num movimento de personalização enquanto ser relacional e transcendente A condição de transformação do indivíduo em pessoa se dá a partir de uma dupla transcendência do mundo e de si mesmo A ideia de condição humana não define o homem estaticamente uma vez que este é um ser que se constrói Ela abarca o absoluto do homem que é a sua totalidade na história visando resgatar a dignidade da pessoa contra os totalitarismos e individualismos forjados pela mentalidade técnica Para Severino uma noção fixista e estática de uma natureza humana negligencia os mais ricos elementos constitutivos da pessoa 1974 p 3233 Dirá Peixoto que para Mounier pensar a pessoa como um absoluto é pensála não como um objeto um meio como o é pela objetificação dos interesses técnicos mas como um ser integral dotado de dignidade intrínseca e de capacidades de conhecimento decisão e responsabilidades que não são dadas mas construídas nas relações que o homem mantém consigo com os outros com Deus com o meio natural e social PEIXOTO 2009 p 3135 No Tratado do caráter na tentativa de responder às possibilidades de se ter acesso aos mistérios do ser pessoal Mounier afirma que o homem é um ser dramático e não um 97 autômato uma promessa que ultrapassa o plano do conhecimento ou da previsão técnica e que é composto pela totalidade de seu destino MOUNIER 1971 p 13 Suas contradições e ambivalências testemunham em favor de sua estrutura complexa Ibidem p 38 A percepção fenomenológica de Mounier revela que o produto de uma razão essencialmente dialética só pode ser perspectival e provisório diz Severino 1974 p 37 Segundo Mounier a pessoa encarnada é designada pelos psicólogos alemães com a expressão composta e indissociável de um euaquiagora justamente pela impossibilidade de se colocar o eu como abstração de suas condições de existência espacial e temporal MOUNIER 1971 p 284 A pessoa não é só um dado mas também projeto sua história é elemento inseparável de sua compreensão Será por sua ação responsável sempre a fazerse e a refazerse que a pessoa se tornará naquilo que ela se fizer SEVERINO 1974 p 5057 O homem do personalismo a pessoa é uma liberdade criadora e responsável MOUNIER 2004 p 14 uma conquista pessoal incessante em constante processo de personalização Nisto ele pode romper com as muitas servidões conformismos e adesões cegas que marcam sua existência SEVERINO 1974 p 71 Para Mounier só a pessoa e não o homem abstrato pode intervir na sua história e afirmar sua personalidade se revoltar contra a domesticação resistir à opressão recusar o aviltamento MOUNIER 2004 p 83 Porque a pessoa não é objeto um meio mas um fim em si mesma afirma Severino ela jamais poderá ser substituída pela técnica 1974 p 71 O ser é muito mais do que aquilo que se define é um complexo de possibilidades Segundo Mounier os ideais técnicos não podem jamais alcançar a precisão que pretendem uma vez que ainda que as forças impessoais objetivem dar um certo elo às diferentes personalidades isto será apenas massa para modelar pois dotada de liberdade criadora será a decisão da pessoa que imporá sua forma A opção sempre é assumida a partir dos valores escolhidos pelo ser pessoal MOUNIER 1971 p 55 O personalismo não fixa os traços do caráter em uma atemporalidade objetiva e indiferente mas os submetem ao passado vivo e às opções de valor da pessoa Conforme o autor só quem tem sobre o homem um desígnio de porvir está qualificado para decifrar os mistérios do homem vivente A pessoa não é uma arquitetura imóvel vive persevera e se exige de contínuo Sua estrutura é na verdade mais semelhante a um desenvolvimento musical que a uma arquitetura porque não pode ser imaginada fora do tempo É inseparável de um presente pessoal e é por isso que toda iniciativa psicológica encerra com uma eleição uma afirmação e um compromisso é inseparável de um passado pessoal e é por isso que não se pode compreender a uma situação psicológica independentemente da 98 história do sujeito e é inseparável de um porvir pessoal e é por isso que o presente de uma conduta depositário do passado que o prepara só recebe seu sentido em última instância do porvir que se assina quer dizer dos valores que aceita38 MOUNIER 1971 p 49 A atividade pessoal são apenas teias de possibilidades que reclamam decisões É por ser livre que a pessoa é obscura e não um sistema de noções claras mas fonte de imprevisibilidade e criação Para Mounier É subtraindose ao conhecimento objetivo que me obriga para intimar com ela a despojarme da câmera fotográfica do turista e a correr em sua companhia um destino aventureiro 39 MOUNIER 1971 p 6667 Em Revolução personalista e comunitária Mounier afirma que a pessoa não é o indivíduo difundido na superfície de sua vida como uma imagem imprecisa e mutante onde se sobrepõem as diferentes personagens entre as quais ela caminha se distrai e foge para sua fortaleza de segurança e de egoísmo Mas pelo contrário a pessoa se opõe ao indivíduo porque ela é controle escolha formação conquista de si MOUNIER 1961 b p 4243 Para o personalismo o modo pessoal de existir é a mais alta forma de existência Este objetivo ultrapassa o plano da consciência individual e se aventura para a humanização da humanidade Conforme Mounier a pessoa É a única realidade que conhecemos e que simultaneamente construímos de dentro Sempre presente nunca se nos oferece 2004 p 15 Conforme Mounier O homem anônimo do individualismo sem passado sem liames sem família sem meio sem vocação é um símbolo matemático todo preparado para jogos desumanos É de se perguntar se sua mais exata realização não é o proletário do séc XX perdido na servidão disforme dos rebanhos humanos das grandes cidades dos imóveiscasernas dos partidos cegos da máquina administrativa e da máquina econômica imperturbável do capitalismo quando ele se deixou submergir ao superávit pela mediocridade pequeno burguesa em lugar de tomar consciência de sua miséria e de sua revolta40 MOUNIER 1961 b p 58 38 La persona no es una arquitectura inmóvil vive persevera y se exige de continuo Su estructura es en verdad más semejante a un desarrollo musical que a una arquitectura porque no puede ser imaginada fuera del tiempo Es inseparable de un presente personal y es por ello que toda iniciativa psicológica encierra con una elección una afirmación y un compromiso es inseparable de un pasado personal y es por ello que no se puede compreender a una situación psicológica independientemente de la historia del sujeto y es inseparable de un porvenir personal y es por ello que el presente de una conducta depositario del pasado que lo prepara sólo recibe su sentido en última instancia del porvenir que se asigna es decir de los valores que acepta MOUNIER 1971 p 49 39 Es substrayéndose al conocimiento objetivo que me obliga para intimar con ella a despojarme de la cámara fotográfica del turista y a correr en su compañía un destino aventurado Ibidem p 66 40 Lhomme anonyme de lindividualisme sans passé sans attache sans famille sans milieu sans vocation est un symbole mathématique tout préparé pour des jeux inhumains Cest à se demander si sa plus exacte réalisation nest pas le prolétaire do XXe siècle perdu dans la servitude sans visage des troupeaux humains des grandes villes des immeublescasernes des partis aveugles de la machine administrative et de la machine économique imperturbable du capitalisme quando il sest laissé submerger au surplus par la médiocrité petite bourgeoise au lieu de prendre conscience de sa misère et de sa révolte MOUNIER 1961 b p 58 99 Para Mounier diante de um indivíduo inexprimível só há ciência bem como uma educação do geral e para o geral cujo único conhecimento possível é de ordem genérica MOUNIER 1971 p 37 O capitalismo sobreveio a este nãoser com suas ideias e educação prontas MOUNIER 1961 b p 44 Nesse sentido conclui no Tratado do Caráter quanto aos tipos caracterológicos serem realidades de ordem estatística não valendo em sua descrição completa para todos os sujeitos de uma categoria considerados individualmente senão para um termo médio seguindo a linha do saber comum MOUNIER 1971 p 39 Mounier afirma que o ser psíquico por ser singular não pode fixarse em modelos da tipologia e negligenciar as possibilidades da pessoa vivente Toda tipologia reducionista só é possível para o alcance do domínio técnico com suas opressões Assim a vida psicológica se parece a uma paisagem de areia agitada por ventos diversos41 Ibidem p 40 Pelas razões precedentes Mounier buscará orientações elementares do caráter captadas em sua existência intencional MOUNIER 1971 p 40 Mounier compartilha com Nietzsche da ideia de que o homem é feito para superar se Sua ascensão enquanto pessoa criadora se dá através da luta entre a tendência para a despersonalização pautada na indiferença no nivelamento na reprodução e repetição que abatem seus impulsos e o processo de personalização que exige o livre arbítrio Afirma Mounier O homem só se mantém em pé transbordando constantemente o dado sobrepondo se aos hábitos sobrepujando o adquirido42 MOUNIER 1971 p 568 Para Mounier viver como uma pessoa é passar continuamente da objetivação e naturalização da vida espiritual seja do exterior ao interior pelo mecânico o biológico o social o psicológico o código moral ou técnico à realidade existencial do sujeito pautada pela inquietude insegurança e pelo sofrimento A experiência fundamental que nós temos desta realidade pessoal é a de um destino rasgado de um destino trágico como dissemos de uma situação limite A inquietude a mobilidade não são valores em si Mas à força de desconcertar nossos arranjos nossas prudências nossas trapaças elas nos revelam que para nosso tormento nossas mãos não têm nenhum remédio que nós não encontraremos a tranquilidade nem na abundância dos desejos contraditórios nem mesmo em um ordenamento que só nos jogará mais avante O sacrifício o risco a insegurança o sofrimento a desmedida são o destino inelutável de uma vida pessoal Nós reconhecemos os nossos no que eles o sentido do mistério quer dizer do profundo das coisas dos homens e da linguagem que os aproxima43 MOUNIER 1961 a p 5253 41 La vida psicológica se parece a un paisaje de arena agitado por vientos diversos MOUNIER 1971 p 40 42 El hombre sólo se mantiene en pie desbordando constantemente de lo dado sobreponiéndose a los hábitos sobrepujando lo adquirido ibidem p 568 43 Lexpérience fondamentale que nous avons de cette réalité personnelle est celle dun destin déchiré dun destin tragique comme on la dit dune situationlimite Linquiétude la mobilité ne sont pas des valeurs en soi 100 Entretanto a limitação do conhecimento do existente não nos leva a afirmar a impotência radical da razão Mounier esforçouse por romper com o divórcio do idealismo e do realismo MOIX 1968 p 40 mas devemos reconhecer que a matéria não é estranha à consciência só podemos falar do mundo se o relacionarmos com uma consciência que o percebe MOIX 1968 p 136 A questão é que para Mounier só o conhecimento do racionalista que fica fora do objeto não enriquece a percepção do ser humano nem é sempre favorável ao conhecimento que está ligado a uma participação íntima pelo conhecedor na vida do objeto MOUNIER 1962 p 25 Para Mounier contra o ideal racionalista técnico de objetividade e de imparcialidade os filósofos existencialistas opõem uma concepção militante da inteligência que não é neutra Ibidem p 25 O universo não é pura exterioridade bem como a relação da pessoa com o mundo é dialética Cada vez mais a ciência e a reflexão nos apresentam um mundo que não pode absterse do homem e um homem que não pode absterse do mundo MOUNIER 2004 p 2930 26 A aventura pessoal contra os determinismos técnicos Conforme Ellul 2003 a raiz da desordem individualista não é criação do liberalismo capitalista mas devese à própria técnica que tende à quantificação e à exploração Como a investigação técnica é de ordem abstrata condicionada pelo cálculo da eficiência só como representante de uma tendência abstrata foi permitido ao indivíduo participar das suas criações As massas voltadas para interesses pessoais como o de conforto aderiram aos ideais técnicos A partir de uma ampla unificação os divergentes interesses entre Estado e indivíduos burguesia e classe operária se convergiram e se uniram para glorificála 2003 p 6680 Em decorrência o homem já não se situa em relação com outros homens senão com relação à técnica que deixa de ser apenas um fenômeno intelectual e espiritual para se tornar eminentemente um fenômeno sociológico 2003 p 307308 O progresso técnico é o grande responsável por fazer desaparecer o amálgama de atitudes de costumes e de instituições sociais que constituem uma comunidade ELLUL Mas à force de déconcerter nos arrangements nos prudences nos ruses elles nous révèlent que pour notre tourment nos mains nont aucun remède que nous ne trouverons la tranquillité ni dans le foisonnement des désirs contradictoires ni même dans une ordonnance qui ne fera que nous jeter plus avant Le sacrifice le risque linsécurité le déchirement la démesure sont le destin inéluctable dune vie personnelle Nous reconnaissons les nôtres à ce quils ont le sens du mystère cestàdire du dessous des choses des hommes et du langage qui les approche MOUNIER 1961 a p 5253 101 2003 p 131 Em decorrência as pessoas foram reduzidas à condição de massa de manobra de uma tecnocracia que subordinou o homem e a natureza às leis mercadológicas Conforme Ellul os objetivos de toda organização técnica do homem seja pela técnica pedagógica orientação profissional ou outros meios buscam conduzir à estandardização ou seja à antecipação e resolução das dificuldades antes que estas se apresentem resumindose à correta e fiel aplicação do método que será acreditado pelo resultado que o justificará ELLUL 2003 p 16 Por tais razões a técnica para atingir seus objetivos de domínio deve engendrar um tipo novo de homem universalizável abstrato sempre semelhante aos demais já que é do comportamento da maioria que ela extrairá seus meios de ação Para que o homem se torne adaptável e servo da técnica deve se tornar inconsciente de si mesmo ELLUL 2003 p 137144 A adaptação é o objetivo das técnicas do homem seja ela pedagógica ou outra objetiva integrar o homem a seus desígnios organizacionais Tanto o ser fisiológico quanto psicológico do homem deverão responder às suas exigências Seus mecanismos de adaptação coisificam o homem arrebatamno de sua liberdade e sua responsabilidade e o colocam no lugar mais desejável aos seus olhos ou seja onde ele é mais eficaz Por isso os meios de ação técnica sobre o homem atuarão no sentido de adaptálo à massa generalizandoo e objetivandoo ignorando as diferenças entre os indivíduos por meio de ações psíquicas permanentes exercidas do começo ao fim da vida como a educação ELLUL 2003 p 343 364 À semelhança de Mounier Ellul reconhece que um dos grandes problemas da técnica é que ela desarma as fortificações interiores para impedir o desenvolvimento da autonomia da subjetividade e da vida interior da pessoa não só através das estruturas exteriores impostas mas sobretudo através de uma influência interna exercida sobre ele na qual participará fortemente a técnica pedagógica A técnica objetiva atacar o homem profundamente em suas fontes vitais tornálo incomunicável cingido em sua inteireza distraílo conduzir seus gostos e interesses transmutar seu mundo natural em artificialidades pela mediação utilitarista que exclui tudo o que não é contábil Enquanto objetivo e objeto das técnicas o homem se converte em pura aparência conjunto de formas pura exterioridade ELLUL 2003 p 418434 Tendo seu cérebro e coração tomados pela técnica sua porção de autonomia e individualidade se debilitaram Violentado e oprimido em seu pensamento e ação por uma atividade que lhe é externa e imposta perde sua capacidade de espanto Suas criações em 102 lugar de instrumentos de liberdade tornaramse seus novos grilhões Liberto das suas contrições físicas tornase escravo de contrições abstratas Operando sobre todas as coisas por intermediários perde o contato com a realidade Como Mounier Ellul protesta que o homem ao consentir esse despojo renuncia ao mesmo tempo a uma das suas mais altas vocações Ibidem p 303305 Prossegue Ellul 2003 no contexto atual da técnica sua lógica se funde na racionalidade que buscará promover a ordem a partir de muitos detalhes técnicos Essa lógica buscará mais prever que intervir através de uma vigilância constante ELLUL 2003 p 106108 Nas regras de organização e de ação técnicas não se levam em conta as particularidades que são cuidadosamente ignoradas O particular se confunde com o interno que não tem permissão para manifestarse Por isso se persegue o traço comum a todos à categoria de homens ou de fenômenos sem o qual não há estatística nem organizações possíveis Essa abstração formal serve apenas à comodidade do raciocínio mas que dá origem a um mundo que oprime o homem por todas as partes sem deixar que se manifeste o que tinha de mais próprio A forma se apodera do individual transforma o qualitativo em quantitativo Como a técnica analisa e prevê não pode suportar o indeterminado ou a iniciativa que perturba o rigor ELLUL 2003 p289 300 Nesse sentido a invasão da técnica vai dissolvendo o que há de espiritual no homem enquanto dessacraliza o mundo no qual ele vive Ela tem o papel de pôr tudo a claro utilizar racionalizando e mediatizar qualquer coisa ELLUL 2003 p 147148 Ellul também reconhece que a pessoa é gravemente ferida na aventura técnica Contudo acrescenta que justamente por não ser um ser abstrato e dual mas encarnado e integral qualquer violência contra seu ser físico ou psíquico não protegerá a salvo algo que se possa ter como essencial tudo é afetado ao mesmo tempo ELLUL 2003 p 395 Portanto nada a fazer diante do auto crescimento desmedido da técnica e da sua autonomia que só tendem a retirar cada vez mais e de modo irreversível a autonomia do homem para Ellul Todavia para Mounier a despeito da fria análise da autonomia da técnica que ensejou o aviltamento do homem ele ainda permanece essencialmente um mistério um ser integral singular e insubstituível Se é difícil mudar o sistema capitalista que tem cooperado para a tecnificação do homem mediante sua fragmentação e objetificação talvez ainda seja 103 possível retomar essa integralidade a partir de um processo de personalização que pode emergir dessa mesma racionalidade agora consciente dos seus limites e desafios Nesse sentido o que está em jogo em nossa época para Mounier é a possibilidade de superação do caráter técnicocientífico como única medida da valorização e da ação do homem no mundo Mas se esse processo de superação não puder se dar em uma mudança estrutural poderá ocorrer no mínimo ou inicialmente no interior do homem Por isso Mounier busca resgatar essa percepção da pessoa e se empenha em indicar os meios que contribuirão para a sua promoção como a educação Para Mounier enquanto ser aquieagora o homem não está condenado pelas circunstâncias ou por alguma predisposição em uma provável natureza pendente para o mal pelo contrário para o autor numa perspectiva fenomenológica ainda está em sua capacidade fazer escolhas responsáveis o que permitiria resgatar seus valores mais sublimes que foram desvirtuados da sua condição pessoal Mounier propõe começar pelo resgate de si mesmo para o qual em muito contribuirá a educação que não se limita ao ambiente escolar mas encontrase em todos os âmbitos da vida do homem familiar e social Ainda que nos encontremos de fato diante de um mundo destituído do homem bem como de um homem que se perdeu no esquecimento de si mesmo acreditamos com Fernandez que o homem deve ser sempre o centro de toda atividade humana e dos esplendores técnicos e científicos como referência obrigatória do movimento Esprit e do próprio processo de personalização MOUNIER 1961b p 16 Todavia uma mudança efetiva só poderá ocorrer se houver uma mudança de valores e isso Mounier muito bem apresenta como proposta Se a construção de um novo mundo é difícil ou mesmo impossível nada impediria a construção de um novo homem mais consciente e responsável por um destino que está ainda em suas mãos A perspectiva de Mounier é preciso enfatizar permanece cristã Na condição de indivíduo esta padronização é real acredita Mounier mas objeta que na condição de ser um mistério 1962 p 19 a pessoa não se submete a nenhum domínio pleno nem como objeto ideal a modelos abstratos pois as situações vivas são mais complexas que as situações teóricas MOUNIER 1961 b p 70 Na visão de Mounier esses ideais técnicos apontados por Ellul não podem lograr êxito total uma vez que o homem é um mistério imprevisível Para Mounier o homem não é passível de previsão ainda que Ellul reconheça a impossibilidade de se prever a totalidade dos efeitos de uma ação técnica 2003 p 111 104 É o pressuposto da redução do homem a traços comuns própria da ideia de que o homem possuiria uma natureza imutável e universal que permite a culminação de todo o edifício técnico A ideia de uma condição humana não permite a redução do homem a abstrações universalizantes e generalizantes O homem não é uma máquina com características objetivas e funções definidas Se a racionalidade técnica se forja contra as singularidades da pessoa o personalismo opõe ao autômato dos técnicos o homem situado e interior ser de comunicação mas também secreto ser de liberdade vocação e engajamento que é capaz de fazer escolhas conscientes transpor o factual e construir seu próprio destino O homem do personalismo não é uma coisa a ser empregada com êxito no mercado não é um jogo de utilidades mas deve ser dotado de uma vida autêntica e a educação contribuirá para essa formação Ainda que o projeto político de Mounier vislumbre a construção de uma outra realidade social e econômica totalmente desvinculada dos ideais capitalistas esses traços apontam para a possibilidade do homem em transcender o dado e se reconstruir ainda nesse contexto social político e econômico porém pautado em outros valores Por ser um ser livre e de escolhas o homem não está fadado a sucumbir nesse modelo que o oprime mas é convidado a libertarse e construir uma realidade que melhor convém à sua condição de pessoa cujos interesses técnicos lhe servirão como meios para lançarse mais longe dos ideais apenas de conforto impessoal e egoísta e que se comprometerão com o todo A filosofia do engajamento de Mounier colocase a serviço da pessoa que por meio da ação tem a possibilidade de transformar a natureza o dado do universo técnico a educação e a si mesma Ninguém como ele escreve Severino teve a visão global da importância da pessoa humana como valor básico e mola inspiradora do dinamismo social 1974 p IX Andreola compartilha dessa percepção e alega que o fundamental para Mounier é a afirmação da pessoa não da filosofia personalista Dirá Andreola Ele não quis que o espírito fosse primeiro um centro de reflexão e de pesquisa filosófica mas sobretudo uma união de pessoas e de iniciativas criadoras para a construção progressiva de um novo projeto histórico tendo como eixo a afirmação do primado da pessoa e como fim a construção do homem novo num mundo comunitário44 1985 p 101 44 Il na pas voulu que lEsprit soit dabord un centre de réflexion et de recherche philosophique mais surtout un centre de réflexion et de recherche philosophique mais surtout um rassemblement de personnes et dinitiatives créatrices pour la construction progressive dun nouveau projet historique ayant comme axe laffirmation du primat de la personne et comme but la construction de lhomme nouveau dans un monde communautaire ANDREOLA 1985 p 101 105 Esse projeto de construção de um homem e de um mundo novos advém do fato de que para Mounier o sentido da história não é a felicidade valor supremo do mundo burguês mas a libertação do homem ANDREOLA 1985 p 24 Para Mounier o homem concreto é o homem que se dá Ele não é feito primeiro para dominar a matéria por meio de elaboradas técnicas ou com ela construir para si um mundo repleto de conforto mas para encontrar sua vocação e seu engajamento MOUNIER 1961 b p 32 O sentido da história é que esta é ao mesmo tempo dado e criação Recebemos um mundo pronto mas temos a capacidade de operar a partir dele O domínio técnico não é absoluto como o crê Ellul mas ao homem resta a possibilidade de transmutar os dados e de construir seu destino Portanto Mounier vislumbra a possibilidade da resolução do paradoxo desses polos se por um lado a pessoa se degradou no indivíduo atomizado objetificado pelos ideais técnicos e econômicos de outro há a possibilidade de ele despertar para a reconstrução dos seus valores e ideais priorizando sua condição pessoal acima do primado do lucro e da utilidade Mounier esclarece que para a consecução desses ideais uma mudança também no plano político se fará imprescindível a fim de regulamentar todas as vias de acesso às conquistas pessoais e à personalização onde a Educação juntamente com outras instituições como a família e a comunidade contribuirá para a construção desse homem novo e para a manutenção dessa nova civilização Ainda que a organização econômica e social tenha se servido da técnica desde seus primeiros progressos MOUNIER 1961 a acentuando o tecnicismo enquanto abstração racional em detrimento do homem e ainda que não seja possível mudar a economia em princípio Mounier vê a possibilidade de se começar uma grande transformação a partir do resgate da pessoa Só a pessoa tem o direito de escolher por uma atitude de aceitação ou de recusa desse mundo objetificante Por suas decisões ela pode romper com as amarras das fatalidades subverter todos os cálculos e transformar o mundo Conforme Mounier Qualquer organização qualquer técnica qualquer teoria que negue à pessoa essa vocação fundamental da opção responsável ou diminua a sua concretização mesmo quando acompanhada de mil e umas seduções é um veneno mais perigoso que o desespero MOUNIER 2004 p 72 A técnica para Mounier permanece sob a direção do espírito A pessoa é um ser de escolhas livres e responsáveis Se a técnica foi separada da pessoa e unida às forças 106 impessoais do meio tornandoa mais um dos objetos de sua utilização resgatar a sua integralidade inalienável será o primeiro passo para romper com essa desordem que se instaurou desde então A despeito de toda ingenuidade otimista de Mounier ao acreditar no uso diferenciado de uma razão que é em si mesma controladora a possibilidade de superação da razão técnica como única medida da valorização e da ação do homem no mundo para Mounier poderá ocorrer começando através do resgate da autenticidade da pessoa Para o autor a mudança é possível e deve ocorrer e se iniciar no interior do homem Mudarseia o homem criador dessas estruturas e essas se transformariam por acréscimo O projeto de Mounier permanece revolucionário não apenas comunitário mas também pessoal O personalismo tem um propósito pedagógico voltado para a formação e para a transformação do homem como político voltado para ações transformadoras Nesse sentido a educação como obra de elevação espiritual do homem será a grande via de acesso ao despertar da pessoa adormecida em meio ao conforto e às ilusões que nossa sociedade burguesa e técnica tem proporcionado 27 A metafísica realista personalista e as categorias do universo pessoal A grandeza do homem está em dominar a adversidade e em transmutar seus dados iniciais não o é menos difícil sujeitar sua força que vencer sua impotência45 MOUNIER 1971 p 252 O personalismo é uma filosofia que se funda na pessoa na crença e na missão formadora da existência de indivíduos singulares únicos insubstituíveis ou seja antítese absoluta da massa amorfa sobre a qual operam os ideais técnicocientíficos Segundo o dicionário francês Larousse 1993 p 768 tratase de uma Filosofia que faz da pessoa humana do sujeito individual o valor essencial o fim principal46 Para Mounier a filosofia por se preocupar com a pessoa deve se preocupar também com os rumos do desenvolvimento econômico social político cultural técnico por isso filosofar não pode ser uma especialidade abstrata erigida em sistema distante da vida Mounier como realista reconhece o mundo no qual o homem se insere as forças do domínio técnico que o aprisionam e que o seduzem levandoo à superfície do seu ser pessoal Por isso verá no resgate da pessoa da sua integralidade a via de libertação destas amarras 45 La grandeza del hombre está en dominar a la adversidade y en transmutar sus datos iniciales no le es menos difícil sujetar su fuerza que vencer su impotencia MOUNIER 1971 p 252 46 Personnalisme Philosophie que fait de la personne humaine du sujet individuel la valeur essentielle la fin principale 1993 p 768 107 ainda que seja um processo lento e de difícil acesso Esse processo redundará em um homem mais autêntico e consciente da sua inserção histórica das suas responsabilidades disposto a transformar o mundo que ele criou à sua volta e que só tem levado à sua degradação A pessoa é um mistério de cujo conhecimento jamais dominaremos ou controlaremos de fato e totalmente porque ela é em si mesma indizível Podemos contudo nos aproximarmos da sua compreensão que Mounier buscará a partir da análise das suas estruturas ou categorias na perspectiva do realismo integral47 Enquanto um inesgotável concreto o ser só pode ser esclarecido descrito ou compreendido em seus aspectos exteriores MOUNIER 1962 p 21 Para Mounier o existente não pode ver o ser faceaface mas apenas entrevêlo ou esclarecêlo de uma visão marginal 1962 p 118 Por ser o homem dilacerado por antinomias existencialistas e personalistas se empenharam em circunscrever todos os elementos desta experiência vivencial SEVERINO 1974 p 32 Dado a realidade complexa e dialética da pessoa a base metafísica do Personalismo são os princípios das estruturas do universo pessoal Entendese por estrutura um sistema abstrato em que seus elementos são interdependentes e que permite observandose os fatos e relacionando diferenças descrevêlos em sua ordenação e dinamismo Tratase de um todo composto por partes que se interrelacionam permitindo penetrar no complexo universo da pessoa Se o personalismo é uma filosofia por precisar estruturas as estruturas da pessoa que o Personalismo descreve dirá Severino englobam simultaneamente tanto o absoluto da sua transcendentalidade como o relativo oriundo da sua encarnação no empírico Estas estruturas não são essências são apenas designativas por circunscrever a condição humana Nesse sentido são fenomenologicamente descritivas a fim de não esvaziar a presença ontológica real da pessoa SEVERINO 1974 p 35 Compreender estas estruturas é fundamental afirma Moix bem como reconhecer sua relatividade pois nenhum problema humano se explica sem os valores as estruturas bem como sem as vicissitudes do universo pessoal 1968 p 136 Nesse sentido são as estruturas 47 Conforme Morente o problema fundamental de toda metafísica é se perguntar por quem existe para responder a tal questionamento o realismo vem afirmar a existência do mundo das coisas que o constituem e de nós dentro desse mundo como uma de tantas coisas Para o autor a forma mais pura e clássica do realismo metafísico para quem a estrutura do ser é ao mesmo tempo do pensar onde se fundem princípios lógicos e ontológicos encontrase em Aristóteles de quem herdamos que a estrutura do ser é feita de categorias pontos de vista dos quais podemos considerálos cujos aspectos lógicos são os modos as maneiras de predicálo que também são os elementos ontológicos do próprio ser MORENTE 1979 p 105108 Como para o realismo ser e pensar se fundem a existência das coisas é dependente da existência do eu que as vive Ibidem 1979 p 283 108 do universo pessoal destacadas por Mounier que formam o homem integral este que a educação personalista almeja elevar contra toda a fragmentação e dualidade que o universo técnicocientífico forjou na figura do indivíduo Nenhum dos seus aspectos pode faltar à pessoa O que Mounier conquista ao precisar as categorias do universo pessoal é se contrapor à perspectiva técnica da objetificação do humano que opera por meio da quantificação e da fragmentação a partir de uma média totalmente impessoal A proposta de Mounier será reafirmar a pessoa não inventála ou construíla mas descrevêla em seus aspectos mais sublimes e inalienáveis pessoais com fidelidade às suas capacitações e limitações como único meio de protegêla das alienações e demissão de si mesma buscando revigorála na capacidade de resistência a toda forma de opressão e totalitarismos Mounier considera a pessoa em função das situações personalizantes e despersonalizantes fora das quais todo discurso a seu respeito se torna abstrato e desmoralizante Assim conforme Lacroix a questão central para o personalismo é saber qual é o mínimo de afirmações coerentes sobre a pessoa que permitirá engajar uma ação séria a seu serviço uma vez que Mounier não vai do personalismo à pessoa mas da pessoa ao personalismo DOMENACH LACROIX GUISSARD 1969 p 2325 271 A existência incorporada e a transcendência na perspectiva do realismo integral contra o dualismo do autômato Na linha de uma religião que centra todas suas perspectivas na Encarnação o sentido da terra não pode ser um sentido maldito Aqueles que em nome do cristianismo a fulminam de anátemas arrastam ainda sem o saberem do fundo da História os espiritualismos de evasão que foram o único recurso do homem interior até o momento em que Deus pôs os dois pés na terra e plantou a árvore da Ressurreição no coração das civilizações MOUNIER 1959 p 127128 MOIX 1968 p 354355 A ideia da existência encarnada ou incorporada é a primeira estrutura da pessoa que Mounier avalia em sua obra O Personalismo e se dá contra as teses que negaram o corpo ou o espírito ou que os separaram como realidades distintas e independentes fragmentadas que remonta ao dualismo cartesiano o que acabou ensejando seu domínio pela razão técnica Para Mounier há uma união indissolúvel entre alma e corpo entre o espírito e a matéria entre o pensamento e a ação MOIX 1968 p 7980 Abordar a pessoa na perspectiva do realismo integral é buscar compreendêla em sua totalidade captando tanto sua condição material sua imanência quanto sua possibilidade 109 espiritual Mounier oporá esta síntese dialética da pessoa aos que separam a res cogitans e a res extensa como independentes quebrando todo esquema dualista PEIXOTO 2009 p38 A restauração da simbiose homemmundo corpoalma subjetividadeobjetividade ou seja a ruptura com este dualismo cartesiano que fragmentou a inteireza do homem seria o primeiro passo para refrear o mal que tem sido instaurado pela técnica sobretudo no que tange à objetificação e manipulação do homem para atender a seus fins de domínio pleno A pessoa mergulhada na natureza é ao mesmo tempo e inteiramente corpo e espírito MOUNIER 2004 p29 possui uma condição espacialtemporal que a afirma como um ser nomundo como um euaquiagora animado por uma incessante expansão e retração que é sua própria pulsação SEVERINO 1974 p 50 Conforme afirma Mounier Não percebo minha extensão vivente desde o ponto de vista de Sirio ou seja em uma perspectiva astronômica Me assento em seu coração como no centro de uma esfera a órbita de minha atividade e todas as coisas se ordenam em disposição radiada ao meu derredor48 MOUNIER 1971 p 286 Mounier acreditava que a crise que pairava na Europa no segundo pósguerra mundial diante desse dilema dualista era uma crise de estruturas econômica e espiritual ao mesmo tempo crise do homem certamente animada pelos ideais dessa nova racionalidade técnica Por isso contra a celeuma entre materialistas que acreditavam que uma mudança na estrutura econômica resolveria os problemas do homem de um lado e entre os espiritualistas que acreditavam que toda crise se dá pelos valores que a animam e esses uma vez mudados transformariam a sociedade de outro Mounier vem opor em nome do realismo integral uma revolução total ao mesmo tempo espiritual e material como possibilidade de reconduzir à reconstrução da civilização pela via de um novo humanismo que é em si mesmo uma vontade de totalidade que o mundo moderno com seus ideais técnicos cingiu MOIX 1968 p 90100 Para Mounier espiritualistas e materialistas participavam do mesmo erro pois separavam o corpo e a alma o pensamento e a ação o homo faber e o homo sapiens Enquanto mergulhada no mundo em sua natureza encarnada a pessoa não é mera espectadora passiva dos acontecimentos mas é ser consciente das suas limitações e potencialidades A compreensão desta realidade misteriosa dáse na dialética entre um conjunto de a prioris 48 No percibo mi extensión viviente desde el punto de vista de Sirio es decir en una perspectiva astronómica Me asiento en su corazón como en el centro de una esfera la órbita de mi actividad y todas las cosas se ordenan en disposición radiada a mi alrededor MOUNIER 1971 p 286 110 condicionantes do seu ser existente e sua evolução o que leva Mounier a acreditar que o homem pode exercer domínio sobre a técnica Contudo ainda que a pessoa seja um absoluto não o é desvencilhada de algumas condições de servidão tanto temporais quanto espaciais 1968 p134 Ela não é só resultante de suas escolhas mas é também influenciada por sua ambiência histórica como a família a economia a educação a política a cultura em geral guiada pelos valores que a conduz que em nossa realidade são técnicos Por outro lado os determinismos apesar de exercerem forte influência sobre as pessoas não são absolutos Se elas são o que recebem do mundo são também o que fazem À medida que transformam aquilo que está à sua volta transformam a si mesmas Pela transcendência nela inscrita a pessoa não se limita a reducionismos mas é possibilidade aberta Ela tem um estatuto histórico e um estatuto ontológico que é sua capacidade de superar suas condições empíricas Logo ainda não é totalmente serva da técnica MOIX 1968 p 136 Na perspectiva da existência encarnada conforme Severino o homem não apenas tem um corpo ele é um corpo o seu corpo 1974 p 47 É ser imergente e emergente que imerso em sua natureza material é também capaz de projetarse além dela e o faz através da sua vocação e liberdade criadoras o que lhe protege da alienação técnica ou mesmo econômica e lhe permite construir a sua história realizar seu movimento de personalização Nesse aspecto a pessoa não é somente um dado mas é também projeto que se auto constitui num tríplice movimento de exteriorização de interiorização e de superação das suas próprias condições e condicionamentos MOUNIER 1971 p 559568 Nietzsche já havia afirmado que o homem é feito para superarse e nisso consiste sua grandeza que ele é uma ponte e não um fim NIETZSCHE 1999 p 211 Assim Falou Zaratustra Mounier corrobora com esta ideia para ele o homem é um poder ser um desenvolvimento um estarafrentedesimesmo Mounier chama este movimento de transproscendência por retratar a capacidade do existente humano de ser sempre mais do que manifesta no presente ainda que muito distante do que pode vir a ser no futuro 1962 p 3435 Enquanto mistura de terra e sangue existir subjetivamente e existir corporalmente são uma única e mesma experiência o que para Mounier não significa negar os pressupostos naturais ou mesmos científicos que orientam e simplificam a vida mas também não implica em se anular diante deles A pessoa se apoia na natureza para elevarse Deve negála a princípio como dado para afirmála como obra pessoal MOUNIER 2004 p 3637 É a 111 consciência das coisas e de si que permitirá a ruptura com a natureza situante as situações dadas e não escolhidas os imperativos técnicos SEVERINO 1974 p 6061 A orientação da pessoa para a ação a caracteriza como ser prospectivo e que valora as finalidades almejadas Numa perspectiva fenomenológica a razão e a reflexão são apenas paradas ativas que só têm sentido completo e integral enquanto etapas prévias e intensificantes da apreciação e da ação Por isso para Severino ao pensamento compete tornarse carne Ibidem p 37 Assim contra toda lógica do universo técnico a consciência jamais é imparcial objetiva ou descomprometida bem como o caráter da pessoa também não é puro dado mas também vontade Para Mounier devemos romper com o pensamento de que tudo o que é alma é profundo e divino e tudo o que é corpo superficial e bestial O homem se salva com seu corpo e não contra ele49 MOUNIER 1971 p 111 Por outro lado também é um sofisma opor inteligência à força pois um íntimo parentesco as une Ibidem p 624 Para Mounier há uma reciprocidade entre o psíquico e o corpóreo dirá o autor Deixemos pois de representarmos ao corpo e ao espírito como aos personagens de uma figura coreográfica O homem é em cada instante e um dentro do outro uma compenetração de alma e carne consciência e gesto ato e expressão Se o olhar é a mais aguda palavra da alma todo o corpo é sua voz confusa até nos balbucios de suas secreções ocultas50 MOUNIER 1971 p 109 Nesse sentido complementa o autor não há sem dúvida um só cabelo que caia de nossa cabeça sem que esboce um movimento correspondente da alma51 MOUNIER 1971 p 164 A inserção do homem no natural não é uma deficiência esquecimento ou uma violência ao espírito como o apresentou Platão em sua distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível O mundo das ideias das puras essências é apresentado por Platão como o mundo das verdades absolutas portanto superior ao mundo das cópias imperfeitas que é o mundo real PLATÃO 2001 Conforme aborda Severino apesar de enfrentar permanente alienação e de ser o lugar do impessoal e do objetal o corpo é também a condição de elevação 49 El hombre se salva con su cuerpo y no contra él MOUNIER 1971 p 111 50 Dejemos pues de representarnos al cuerpo y al espíritu como a los personajes de una figura coreográfica El hombre es en cada instante y lo uno dentro de lo outro una compenetración de alma y carne consciencia y gesto acto y expresión Si la mirada es la más aguda palavra del alma todo el cuerpo es su voz confusa hasta en los balbucios de sus secreciones ocultas ibidem p 109 51 no hay sin duda un solo cabello que caiga de nuestra cabeza sin que esboce un movimiento correspondiente del alma ibidem p 164 112 do homem o companheiro de todas as horas e caminhos Se é obstáculo não podemos ignorar que é também apoio SEVERINO 1974 p 4649 Os espíritos rígidos e obstruídos é que procuram apoio para imobilizaremse mas mentes situadas elegem apoios para lançaremse sempre mais alto MOUNIER 1971 p 647 Este é o sentido de que a técnica não pode servir apenas aos ideais de conforto e comodidade para o homem mais além deve lhe servir de apoio para superar suas limitações e fornecerlhe uma vida autêntica na qual ele é senhor e não servo A pessoa é criadora e pode destruir obstáculos e abrir fronteiras Conforme o autor Não posso pensar sem ser e ser sem meu corpo através dele exponhome a mim próprio ao mundo aos outros através dele escapo à solidão de um pensamento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento Recusandose a entregarme a mim próprio inteiramente transparente lança me sem cessar para fora de mim na problemática do mundo e nas lutas do homem Através das solicitações dos sentidos lançame no espaço através de seu envelhecimento ensiname o tempo através da sua morte lançame na eternidade MOUNIER 2004 p 37 272 A conversão interior e a dialética entre recolhimento e ruptura no embate contra a objetificação do homem Ainda que mudanças na estrutura individualista e burguesa com suas ideologias de progresso desenfreado a qualquer custo sejam necessárias e se façam urgentes nenhuma mudança exterior é possível se não se processar primeiro e profundamente no íntimo da pessoa em seu interior Essas transformações devem subverter seus valores destruir suas seguranças abalar suas antigas certezas colocar em xeque questionamentos acerca da razão de ser e de estar neste mundo acerca de suas posturas posições e causas pelas quais lutar Este é o sentido mais profundo da conversão interior da qual fala Mounier Enquanto essência da vida cristã promove uma mudança radical de rota e de crenças capaz de balançar todas as antigas estruturas do caído edifício do homem natural pautada no ego e nos valores deste mundo No cristão esta obra de transformação interior se dá de forma sobrenatural pelo operar do Espírito Santo nos corações daqueles que se permitem romper com o velho homem do pecado a partir de profundas e dolorosas escavações absolutamente necessárias para a elevação espiritual Já no homem natural no plano das estruturas do universo pessoal esta conversão interior é efetuada pela própria razão do homem a partir de uma deliberada manifestação de vontade que em sua natureza encarnada enquanto ser inteiro e total é capaz 113 de enxergar a pequenez dos alicerces que amparam o mundo burguês individualista e tecnificante Mounier não apenas critica as estruturas que sustentam esta racionalidade técnica com seus aparatos de dominação dentre os quais está a educação mas também seus fundamentos que se encontram no mais íntimo dos homens que as mantêm e as reproduzem Ele é ciente da impossibilidade de se mudar o mundo sem antes mudar o homem que o compõe A conversão íntima retrata a necessidade de um aprofundamento em nossas verdades melhor enraizadas que amparam nossa percepção do mundo de nós mesmos e das nossas escolhas Mais que uma tomada de consciência isto exige uma verdadeira obra revolucionária Quando voltamos com disposição de espírito para nós mesmos sem as máscaras já enrijecidas pelos ideais deste mundo burguês capitalista com suas técnicas hábitos valores cultura educação ou por uma exagerada auto percepção vemos que somos coparticipes direta ou indiretamente dos males que nos assolam Por isso a primeira tarefa revolucionária da técnica espiritual deve começar no interior do próprio homem levando os indiferentes a uma tomada de consciência pessoal da sua própria participação no mal Esprit no 27 de 1934 MOUNIER 1961 b p 164 A Revolução pessoal Se o mal está em nós a revolução deve começar em nosso interior antes de ser feita através de nós Só então se seguiria uma revolução contra todo mito que circunda nossa civilização A exigência deste recolhimento esta parada na presença dos acontecimentos é que possibilitará uma reavaliação das técnicas e valores que orientam nosso tempo MOUNIER 1962 p 2325 Esta obra é da pessoa inteira em uma ação conjunta com todos e com o todo Chamamos revolução pessoal esta atitude que nasce a cada instante de uma tomada da má consciência revolucionária de uma revolta dirigida em primeiro lugar por cada um contra si mesmo sobre a sua própria participação ou sobre a sua própria complacência com a desordem estabelecida sobre o distanciamento tolerado entre aquilo a que ele serve e o que diz servir e que se expande no segundo tempo numa conversão contínua de toda pessoa solidária palavras gestos princípios na unidade de um mesmo engajamento52 Esprit n 27 dez1934 1961 b p 164 A revolução pessoal 52 Nous appelons révolution personnelle cette démarche qui naît à chaque instant dune prise de mauvaise conscience révolutionnaire de une revolte dabord dirigée para chacun contre soi sur sa propre participation ou sa propre complaisance au désordre établi sur lécart quil tolère entre ce quil sert et ce quil dit servir et qui sépanouit au second temps en une conversion continuée de toute la personne solidaire paroles gestes principes dans lunité dun même engagement MOUNIER 1961 b p 164 114 Em Revolução Personalista e comunitária Mounier elucida o quanto a ausência de uma visão mais profunda de si e do mundo circundante opera contra a pessoa cujo produto é o indivíduo sem nome um número permutável sem laços sem vocação objeto e joguete para o ardor dos técnicos Para o autor é o mundo do se do l on de Heidegger mundo da irresponsabilidade das ideias vagas das posições neutras do conformismo social e político da mediocridade moral Este indivíduo tem sido assujeitado pelos ideais de domínio técnico que o transformou em um ser sem identidade em meio ao rebanho inconsciente de sua miséria servo das máquinas administrativa e econômica do capitalismo Esprit no 28 Jan1935 MOUNIER 1961 b p 58 No Tratado do Caráter Mounier descreve a situação deste homem voltado apenas para as coisas exteriores despojado de seus segredos sem auto percepção e alienado por uma civilização que está sob o governo dos ideais de domínio técnico da natureza e dos próprios homens que busca o conforto a todo preço mas não se pergunta pelo preço de suas inclinações Ao viver exclusivamente na superfície consciente determinada e taxativa de si mesmo o homem voltado para o exterior se forja um mundo à sua imagem e semelhança Enquanto se põe em contato com o indeterminado e misterioso o invade o mal estar Outra modalidade é a do homem anônimo do se impessoal e da tagarelice cotidiana que descreve Heidegger o um qualquer que tende a considerarse a si mesmo como uma coisa e literalmente a esquecerse de si mesmo a alienarse e dissiparse no mundo dos objetos das forças dos acontecimentos do trabalho das relações sociais ou como toda personalidade com tendências histéricas no jogo aturdidor de seus próprios personagens Como o tem mostrado especialmente Marx as condições materiais criadas ao indivíduo pelas estruturas sociais podem estimular tal desapossamento ou alheamento até tornálo inevitável Porém não é somente a desordem capitalista o que impulsiona a isto senão a totalidade de uma civilização que tem escolhido como programa fundamental o domínio técnico da natureza Se pode muito bem suprimir a escravidão e o subjugamento que resulta da injusta distribuição das riquezas e manter ao mesmo tempo o estado de servidão e indigência que nasce da exclusiva preocupação de instalarse favoravelmente entre as coisas53 MOUNIER 1971 p 560561 53 Ao vivir exclusivamente en la superfície consciente determinada y taxativa de sí mesmo el hombre vuelto hacia el exterior se forja un mundo a su imagen y semejanza En cuanto se pone en contacto con lo indeterminado y misterioso lo invade el malestar Outra modalidad es la del hombre anónimo del se impersonal y de la charla cotidiana qui describe Heidegger el uno cualquiera que tiende a considerarse a sí mismo como una cosa y literalmente a olvidarse de sí mismo a alienarse y disiparse en el mundo de los objetos de las fuerzas de los acontecimientos del trabajo de las relaciones sociales o como toda personalidad con tendencias histéricas en el juego aturdidor de sus propios personajes Como lo ha mostrado especialmente Marx las condiciones materiales creadas al individuo por las estructuras sociales pueden estimular dicha desposesión o enajenamiento hasta volverlo inevitable Pero es solamente el desorden capitalista lo que impulsa a ello sino la totalidade de una civilización que ha escogido como programa fundamental el dominio técnico de la naturaleza Se puede muy bien suprimir la esclavitud y el sojuzgamiento que resulta de la injusta distribución de las riquezas y mantener a la vez el estado de servidumbre e indigencia que nace de la exclusiva preocupación de instalarse favorablemente entre las cosas MOUNIER 1971 p 560561 115 Para Mounier esta interiorização este recolhimento é apenas o começo de um processo que deve desembocar necessariamente em uma exteriorização em uma ruptura dialética e alternada não só desta atividade solitária mas também do dado das situações e visões de mundo não escolhidas a partir de engajamentos conscientes e libertadores Essa postura dialética deve se tornar um dever novo para este homem novo não fragmentado afirmando a subjetividade face ao mundo objetivo ou ao menos ao lado dele e promover a salvação da interioridade no e através do novo mundo técnico Se por um lado o homem não pode se colocar contra este mundo por outro não pode deixar de criticálo MOUNIER 1962 p7576 Essa exteriorização é importante também para a própria autoconsciência nos lembra Severino já que existir do verbo existere é sair para fora desabrocharse exprimirse Todavia pura exterioridade retrata apenas uma vida inautêntica e alienada da máfé ou da simples distração que faz do homem um ser perdido e sem memória sem projetos sem decisão levado pelos seus hábitos funções e apetites ou por toda sorte de opressão seja ela política econômica social ou mesmo técnica pois que se oculta sob as demais Em sua essência profunda a pessoa se caracteriza em oposição às coisas à pura objetividade do meio técnico no qual está inserida É o cuidado para com a subjetividade que a diferencia do universo dos objetos por isso impõese lhe romper o contrato com o meio retomarse recobrarse para numa atitude de recuo melhor irromper para fora de si SEVERINO 1974 p 7478 As técnicas modernas atacam no homem o contato com seu ser interior esta retomada de si mesmo que permite uma ruptura com os processos alienantes do meio Por isso uma das mais trágicas estratégias de embrutecimento do homem por estas técnicas para Mounier é justamente aniquilar com toda possibilidade de edificação de fortificações interiores forjando nele resignações burguesas busca de conforto e segurança ou mesmo intimidações partidárias MOUNIER 2004 p 91 Historicamente conforme Ellul a técnica investiu na busca da integração total do homem o que acabou por lhe retirar sua vida interior que ainda lhe era reservada até meados do século XX Neste período ainda era possível considerar duas partes no homem frente ao mundo técnico uma submetida às regras imperiosas e exteriores da técnica outra sua vida privada e psíquica que lhe permitia uma parte de liberdade de personalidade frente a ela o que talvez tenha contribuído para a manifestação otimista de Mounier quanto ao desenvolvimento técnico Ellul percebeu que esta tensão continuou prevalecendo mas foi se 116 tornando mais rara pois que o homem foi conciliando a cada dia mais seu ser total aos imperativos da técnica ELLUL 2003 p 412 Logo Ellul concorda com Mounier que se buscou arrastar o homem cada vez mais para longe de si mesmo da sua interioridade e recolhimento esparramandoo na pura exterioridade na superfície e no esquecimento de si e dos seus reais problemas a partir da sua adaptação a um certo estilo de vida e de visão de mundo para o qual contribuíram a publicidade e a indústria do entretenimento As diversões vêm em grande parte quebrando o silêncio necessário para uma retomada interior Seus ruídos visam mascarar a angústia muitas vezes provocada pela própria técnica Ibidem p 382 Todavia será a existência de uma dimensão interior conforme Mounier que possibilitará ao homem não só a não esquivarse de si por meio das distrações mundanas mas também o rompimento com o isolamento egocêntrico que o encarcera em si mesmo 2004 p 58 Por isso primeiro o homem retirase na experiência do recolhimento da meditação e do silêncio visto como um meio não um fim em si mesmo necessário à experiência autêntica posteriormente elevase à comunicação e à comunhão à vontade de se revelar Pela vida interior nos repensamos e a nossos valores pela exterior interferimos nos problemas do mundo e dos outros Esse movimento dialético do eu ao mundo e do mundo ao eu entre interioridadeexterioridade é que permite ao homem escapar à condição de coisa de inautêntico de joguete dos técnicos e se afirmar como presença ativa e livre que transforma a vida egoísta em uma vida disponível Assim enquanto existência dialética a pessoa não é um desenvolvimento mecânico de potencialidades predeterminadas ou predefinidas não se reduz a um esquema fixo e rígido de ser É uma contínua pulsação que se projeta para fora de si mas que ao mesmo tempo concentrase sobre si é abertura para o outro sem se perder contudo na massificação do puro coletivo SEVERINO 1974 p XIV Essa vida autenticamente pessoal implica a necessidade da sua própria superação A interioridade demanda constante composto dialético de exterioridade Viver intensamente é estar exposto no duplo sentido onde a palavra designa a disponibilidade às influências exteriores e o afrontamento característico da pessoa a coragem de se expor Viver pessoalmente é assumir uma situação e responsabilidades sempre novas e ultrapassar sem cessar a situação adquirida A pessoa é um movimento de superação Sua divisa não é eu sum mas acima sursum54 MOUNIER 1962 p 5859 54 Lintériorité appelle une constante composante dialectique dextériorité Vivre intensément cest être exposé au double sens où le mot désigne la disponibilité aux influences extérieures et laffrontement caractéristique de la personne le courage de sexposer Vivre personnellement cest assumer une situation et des responsabilités 117 Essa atitude inicial de recolhimento não só permite uma autoavaliação mas também um planejamento para a ação Para Mounier será a qualidade do nosso silêncio interior que iluminará nossa atividade exterior MOUNIER 1961 b p 23 273 Disponibilidade e comunicação Os antídotos contra o isolamento técnico O problema do outro é uma das grandes conquistas da filosofia existencial A filosofia clássica o deixava em um estranho negligenciamento Enumerando seus problemas de primeira linha o conhecimento o mundo exterior o eu a alma e o corpo a matéria o espírito Deus a vida futura a relação com o outro não figura jamais no mesmo rol que os outros O existencialismo o promoveu em uma única vez ao seu lugar central55 MOUNIER 1962 p 78 O individualismo burguês que é a condição de nossa civilização técnica e capitalista que se utiliza destas dicotomias supra citadas para gerar suas ideologias e promover sua autonomia Ele denota a morte da pessoa sua dispersão quando esta é integração tensão para fora de si para o mundo para o outro para o absoluto MOIX 1968 p 146148 Nesse sentido nossa civilização técnica tem dificultado a comunicação entre os homens tornandoa trivial superficial e impessoal Conforme Ellul o refúgio das técnicas não é apenas destruidor do contato do homem consigo mesmo mas também das relações humanas Além do conforto que proporcionam as distrações condicionam à ausência de interlocutores O homem passa a se comunicar com a máquina num monólogo perpétuo que o encerra na solidão ELLUL 2003 p 381382 O rádio a TV hoje a Internet com suas redes sociais só acentuam a separação entre os homens Retirase o visavis o têteatête nas relações que rompe com o verdadeiro diálogo ou se o reduz a meras banalidades descompromissadas e facilmente compartilhadas pelo senso comum O homem é de um só golpe afastado do silêncio necessário para recobrar se ao mesmo tempo em que é afastado das moléstias dos próximos Essas técnicas de entretenimento têm a finalidade de inibir no homem o senso revolucionário Visam subjugálo adulandoo abalando a sua percepção de mundo Desta feita o homem transfere seus temores irracionais a seguranças falazes sem jamais tocar no fundo dos verdadeiros problemas da civilização moderna ELLUL 2003 p 382389 toujours nouvelles et dépasser sans cesse la situation acquise La personne cest un mouvement pour la dépasser Sa devise nest pas sum mais sursum MOUNIER 1962 p 5859 55 Le problème de lautre est une des grandes conquêtes de la philosophie existentielle La philosophie classique le laissait dans un étrange délaissement Dénombrez ses problèmes de première ligne la connaissance le monde extérieur le moi lâme et le corps la matière lesprit Dieu la vie future le rapport avec autrui ny figure jamais au même rang que les autres Lexistentialisme la promu dun seul coup à sa place centrale MOUNIER 1962 p 78 118 As substanciais relações se desvanecem nos coleguismos casuais e interesseiros Neste mundo para Mounier Não há mais próximo só há semelhantes Camaradarias incertas biológicas agrupadas por circunstâncias ou funções não por acontecimentos ou escolhas Geleia sem sabor de leitores de ParisSoir e todos estes precipitados misturados em uma grande cidade suspenso instáveis uma gota de acaso os aglomerou uma gota de acaso os dissipará Desolamento do homem sem dimensões interiores incapaz de encontros56 MOUNIER 1961 b p 50 A pessoa não reside na autossuficiência No Tratado do Caráter Mounier recorda que o primeiro gesto de uma vida pessoal não consiste em retraimento mas em uma tendência atrativa em direção a algum semelhante MOUNIER 1971 p 456 Ainda criança a pessoa não se descobre sozinha mas a partir da experiência com os outros para os quais é atirada Sua experiência primitiva é a experiência da segunda pessoa A formação da subjetividade depende portanto da intersubjetividade Na comunicação descobrese a si e constróise a alteridade pessoal MOUNIER 2004 p 4663 Os olhares das operações técnicas nos limitam a uma objetificação não só das coisas mas também do outro com fins utilitaristas A atitude em uma relação entre sujeitos deve ser de disponibilidade a pessoa se abre ao mundo e ao outro sem cálculo ou desconfianças sistemáticas Não trato o outro como natureza mas como liberdade com intimidade e comunhão MOUNIER 1962 p 8889 o que está na base do projeto de uma sociedade personalista e comunitária A experiência fundamental do personalismo de Mounier dáse na comunicação afirma Severino porque as pessoas são inseparáveis da comunidade e incompreensíveis sem ela 1974 p 81 A realização plena a socialização ou a relação interpessoal é condição necessária para que a pessoa alcance todo o seu ser na experiência da comunhão A comunicação e a comunhão estão na base do projeto de uma sociedade personalista e comunitária que é uma pessoa de pessoas É a disponibilidade que favorece a constituição de uma verdadeira comunidade numa reciprocidade de intercâmbio e amor Só a ausência de transparência pode dificultar a comunicação e o relacionamento Conforme Mounier a causa do personalismo vai do pessoal ao transpessoal 2004 p 90 56 Il ny a plus de prochain il ny a que des semblables Camaraderies incertaines biologiques groupées par des circonstances ou des fonctions non pas par des événements ou des choix Gelée fade des lecteurs de Paris Soir et tous ces précipités mêlés dans une grande ville suspendus instables une goute de hasard les a agglomérés une goutte de hasard les dissipera Désolément de lhomme sans dimensions intérieures incapable de rencontres MOUNIER 1961 b p 50 119 Das afirmações anteriores decorre que a pessoa possui uma tridimensionalidade tanto temporal quanto relacional Enquanto sujeito histórico ela é passado é presente e é futuro enquanto ser relacional ela é um movimento de interiorização exteriorização e transcendência Consigo mesma ela é movimento dialético de interiorização no sentido de um recolhimento para dentro de sua subjetividade a fim de recobrarse mas que busca sempre exteriorizarse em uma abertura na comunicação cuja objetividade a leva em direção ao outro Mas ela é também transcendente não só no sentido de sua disposição para Deus para o absoluto mas também no sentido de que busca sempre superar a si e às circunstâncias hodiernas Essa tridimensionalidade relacional aponta que a pessoa está ligada à comunidade que também se constrói diante dos desafios da inserção histórica da existência humana sustentada pela sua relação vertical em direção a Deus Para Mounier a própria concepção da Trindade divina traz consigo a ideia de um Ser Supremo no qual intimamente dialogam pessoas diferentes Ser que já é por si só a negação da solidão LACROIX in DOMENACH LACROIX GUISSARD e et al 1969 p 31 Ela é em equilíbrio em comprimento largura e profundidade uma tensão em cada homem entre suas três dimensões espirituais a que sobe de baixo e o encarna em uma carne a que é dirigida para o alto e o eleva a um universal a que é dirigida para o largo e a leva para uma comunhão57 MOUNIER 1961 b p 44 O homem também transcende a si mesmo pela sua capacidade de amar Enquanto o domínio técnico dilui o indivíduo na massa o amor plenamente realizado é conhecimento e afirmação do outro enquanto outro O amor não identifica ao contrário cria a distinção MOUNIER 2004 p 48 Logo o amor é para Mounier o cogito irrefutável da existência pessoal Se amo logo sou Ser é amar Ibidem p 46 A pessoa é uma promessa de amizades múltiplas Seu ser relacional não conhece limites misturase com os outros numa perspectiva de universalidade Nesse sentido a pessoa só se encontra e se possui quando se perde e se oferece aos outros MOUNIER 1961 b p 31 57 Elle est un équilibre en longueur largeur et profondeur une tension en chaque homme entre ses trois dimensions spirituelles celle qui monte du bas et lincarne dans une chair celle qui est dirigée vers le haut et lélève à un universel celle qui est dirigée vers le large et la porte vers une communion MOUNIER 1961 b p 44 120 Tratar o outro como objeto é tratálo como um ausente ou como um instrumento de disposição às operações técnicas Ao contrário ao tratálo como sujeito como pessoa presente indefinível e inesgotável assumoo como único singular e insubstituível como um fim e não meio dado seu valor absoluto MOUNIER 2004 p 46 A pessoa enquanto volume total do homem também possui três dimensões ela é vocação encarnação e comunhão Por conseguinte os três exercícios essenciais da formação da pessoa são para Mounier a meditação à procura de sua vocação o engajamento que é o reconhecimento de sua encarnação e o desenvolvimento da iniciação ao dom de si e à vida em comunhão Se lhe faltar algum deles a pessoa decai MOUNIER 1961 b p 44 O problema dirá Mounier é que ela carece comumente de todos o que testifica o individualismo as tiranias coletivas o despotismo técnico 274 Engajamento e Afrontamento o combate contra o aviltamento técnico Guerra aos homens de má vontade Mounier A perspectiva revolucionária do personalismo aponta primeiro para uma revolução pessoal através do despojamento de todos os valores individualistas burgueses que nos foram impressos seguida por uma revolução nessa sociedade degradada em função desses valores Este projeto do personalismo como todo projeto revolucionário traz uma exigência de engajamento a verdadeira prova de uma pessoa segundo Mounier São as suas adesões que fazem o homem suas escolhas compromissos atitudes não meramente suas palavras 1961 a p 174 No estudo do caráter Mounier afirma A única prova concluinte de um homem são seus atos O valor de suas palavras ou a autenticidade de seus pensamentos só se revelam e verificam irrefutavelmente mediante a confirmação que suas obras documentam E é que somos impulsionados à ação antes de refletirmos sobre ela e impulsionados pela urgência antes de toda deliberação O estudo do caráter culmina no conhecimento da ação cuja perspectiva governa a todas as demais58 MOUNIER 1971 p 380 58 La única prueba concluyente de un hombre son sus actos El valor de sus palabras o la autenticidad de sus pensamientos sólo se revelan y verifican irrefutablemente mediante la confirmación que sus obras documentan Y es que somos arrojados a la acción antes de reflexionar sobre ella e impulsados por la urgencia antes de toda deliberación El estudio del carácter culmina en el conocimiento de la acción cuya perspectiva gobierna a todas las demás MOUNIER 1971 p 380 121 Esse é o sentido de que ao pensamento para o autor deve seguir a ação Um raciocínio que não arremata em uma decisão equivale a um pensamento incompleto59 MOUNIER 1971 p 677 A decisão é a afirmação de um eu sua faculdade central ela reside na aceitação ou na repulsa do risco inatingível pelo debate puramente intelectual Por sua decisão a pessoa responde presente ao chamado do mundo e assume o compromisso e os riscos da resposta que dá MOUNIER 1971 p 407 408 É a ação que modifica a realidade exterior forma os homens aproximaos uns dos outros e enriquece o seu universo de valores MOUNIER 2004 p 103 A ação é o cerne da filosofia de Mounier pois tudo quanto ele pôde apreender da realidade foi em prol do comprometimento contra esta desordem estabelecida pela civilização burguesa técnica e individualista que impossibilita ao indivíduo alcançar a condição de pessoa Nesse aspecto dirá Lacroix o Personalismo já nasceu situado Recusar o engajamento é recusar a condição humana aceitando passivamente as estruturas econômicas do mundo burguês e a mentalidade por elas gerada no espírito de seus beneficiários DOMENACH LACROIX GUISSARD et all 1969 p 6970 Como o mundo moderno tem se colocado como inimigo da pessoa e da comunidade o primeiro compromisso do projeto personalista para a construção de um homem e sociedade novos deve começar pelo desvelamento das ilusões que esse sistema nos tem inculcado Diante da ameaça cada vez mais crescente da razão técnica e do seu poderio deve decorrer de nossa consciência não só a reflexão mas sobretudo o afrontamento que denota uma capacidade de escolha responsável a cada momento da existência Existir pessoalmente é também dizer não é protestar O progresso social não pode ocorrer sem luta e combate Para Mounier toda sociedade nasce vive e exprime luta e relações de forças Ser não é só amar mas é também afirmarse Não só o acolhimento mas também a ruptura a reviravolta são categorias essenciais da pessoa MOUNIER 2004 p 6871 Sob pressão o homem apresenta suas respostas às provocações vindas do mundo exterior não só se expõe ou se exprime mas também afronta o adestramento e o aviltamento originados por toda forma de opressão SEVERINO 1974 p 62 Para não sucumbir sob o peso das adesões à adaptação ao conformismo ou à alienação é necessário encarar enfrentar as circunstâncias adversas o que é um privilégio inalienável da pessoa Conforme Severino existir pessoalmente exige por vezes oposição rupturas e afastamentos SEVERINO 1974 75 No mundo moderno contudo com seus 59 Un raciocinio que no remata en uma decisión equivale a un pensamiento incompleto MOUNIER 1971 p 677 122 ideais de conforto e eficiência afirma Mounier que a maioria das pessoas prefere a escravidão na segurança ao risco na independência a vida material e vegetativa à aventura humana 2004 p 73 Conforme Mounier a pessoa tem um elevado chamado existencial que é atingir o extraordinário o que não exige que seja em lugares distantes mas no próprio centro da vida cotidiana onde é confrontada diariamente a responder aos estímulos que recebe do mundo MOUNIER 2004 p 68 Afrontar implica força decisão renúncia afirmar suas fidelidades e oposições o que se dá na temporalidade da realidade concreta enquanto ser situado aqui e agora ainda que ao custo das comodidades adquiridas Conforme Severino esta força está mais na perseverança do que no ataque a duração é sua medida 1974 p 77 Afrontar significa então não neutralizarse no silêncio e na indiferença abdicando da singularidade e sucumbindo à massa As transformações que desejamos somente ocorrerão se as confrontarmos Nossas recusas devem ser manifestas contra a objetificação do homem e dessa desordem estabelecida pelos seus ideais fundantes Nesse sentido apenas afrontando os valores dessa racionalidade técnica é que podemos nos libertar deles Conforme Peixoto o conflito para Mounier é a mola propulsora de toda a realidade histórica PEIXOTO 2009 p 45 275 Da liberdade solitária do individualismo liberal à liberdade solidária do personalismo de que coração acalmado eu vou poder demonstrar a este desempregado que é por livre contrato de trabalho que ele se encarregou de alimentar com oito francos por dia a pequena família que uma feliz sorte lhe deu a este soldado japonês que é por livre contrato de sociabilidade que ele aceita quebrar o Chinês e aos pensionários desta sorridente prisão de Genebra onde visitou um dia Rousseau que suas cadeias são a mais fantástica criação de sua liberdade Liberdades que se equilibram mas onde está a balança onde o debate entre quem pratica usura e os comerciantes desesperados entre o truste e o empresário isolado entre o vencedor e o vencido entre as companhias e eu cliente do caminho de ferro do telefone da segurança social Laissez faire laissez passer deixai fazer deixai passar o mais forte60 MOUNIER 1961 b p 30 60 de quel coeur apaisé je vais pouvoir démontrer à ce chômeur que cest par libre contrat de travail quil sest chargé de nourrir avec 8 francs par jour la petite famille quun heureux sort lui a donnée à ce soldat japonais que cest par libre contrat de sociabilité quil accepte de casser du Chinois et aux pensionnaires de cette souriante prison de Genève où visitai un jour Rousseau que leurs chaînes sont la plus étonnante création de leur liberté Libertés qui séquilibrent mais où est la balance où estil le débat entre lusurier et le commerçant aux abois entre le trust et lentrepreneur isolé entre le vainqueur et le vaincu entre les Compagnies et moi client du 123 A liberdade é outra categoria essencial da pessoa que tem sido anulada pelos ideais técnicocientíficos Contudo para Mounier ela tem a possibilidade de ser resgatada pela escolha pessoal uma vez que não se encontra em nenhuma parte dada e constituída É a pessoa que se faz livre após ter escolhido ser livre MOUNIER 2004 p 77 Há para o autor um espírito de liberdade sem o qual o homem não passa de um objeto de um joguete sob a alienação das forças impessoais como da técnica Ibidem p 82 Para Severino esse espírito é um apelo à originalidade da existência pessoal sempre em luta contra a alienação e as servidões da existência 1974 p 71 A liberdade deve ser criação ao mesmo tempo libertadora e personalizante Esta liberdade se diverge totalmente daquela apregoada pelo individualismo liberal que é uma ilusão Enquanto apenas declarativa e formal ela se recusa à maioria A esta pseudoliberdade contrapõe Mounier a ideia de uma liberdade solidária a partir da qual só nos tornamos livres pela liberdade dos outros enquanto pessoas situadas e valorizadas que personalizam o mundo e a nós mesmos Ela é uma conquista não um dom ou uma condenação como afirmou Sartre MOUNIER 2004 p 7881 A liberdade da qual fala Mounier não é absoluta pois essa não existe mas é limitada pelas relações interpessoais e pelas situações concretas MOUNIER 2004 p 77 Conforme Peixoto ainda que não seja o Estado quem a cria ou distribui pode e deve favorecerlhe o exercício mas quem primeiramente a obstaculiza é a própria pessoa que deve superar suas inseguranças bem como também suas acomodações seguranças e indiferenças PEIXOTO 2009 p 47 No plano interior entretanto é possível uma liberdade total segundo Severino 1974 enquanto fonte viva do ser Para o autor há duas grandes dimensões da liberdade esta libertação nos permitirá realizar uma personalização tanto própria como do mundo e dos outros permitirá libertar e transformar o mundo à nossa volta SEVERINO 1974 p 70 Neste sentido esta liberdade interior plena pode nos libertar dos dados opressivos de nossa situação técnica a partir do momento em que a utilizarmos intencionalmente priorizando os valores humanos sobre os naturais Assim a consciência pode se sobrepor à facticidade das coisas através da livre escolha da pessoa denotando sua transcendentalidade diante dos condicionamentos Para Mounier o homem não é só um escravo da técnica ele pode e deve se colocar como seu senhor chemin de fer du téléphone de lassurance Laissez faire laissez passer laissez faire laissez passer le plus fort MOUNIER 1961b p 2930 124 Essa liberdade não é só conquista de autonomia mas também adesão numa luta onde cada etapa se consolida por escolhas conscientes e engajadas por isto ela deve ser sempre reconquistada Ibidem p 7172 Dirá Mounier que o homem livre é o homem responsável A liberdade assim entendida não isola os homens como a do liberalismo burguês mas os une permitindo o afrontamento dos decadentes ideais de domínio por ele imposto mantido e perpetuado por suas instituições como a educação 2004 p 84 O centro dessa liberdade é o coração vivo das pessoas o verdadeiro habitat dos valores aos quais adere pela livre escolha MOUNIER 2004 p 89 Para Severino os valores são como que a moeda não entesourável da existência que se deve conquistar a cada instante Porém essa liberdade não se concretiza contra os determinismos ou condicionamentos mas sobre eles e com eles é o privilégio da transcendência da pessoa SEVERINO 1974 p 6569 28 Do pessoal ao transpessoal a comunidade de pessoas Do indivíduo atomizado elemento rigorosamente isolado submerso na massa foi sendo retirada a liberdade agora transferida para o domínio técnico A ruptura dos grupos sociais sua aglomeração nas grandes cidades foi fundamental para o nivelamento do homem e para o progresso técnico Dissolvemse os liames próprios de uma comunidade ELLUL 2003 p 5758 Este mundo impessoal e anônimo do individualismo liberal e técnico que formou uma multidão solitária e egoísta acabou gerando a necessidade do despertar da consciência do eu e do nós fundantes da comunidade O personalismo mouneriano vem afrontar a crise da civilização técnica que é totalitária e serve a fins técnicos Afirma que o destino individual da pessoa é inseparável de seu destino comunitário Preocupada com a singularidade da pessoa e com a complexidade do ser a comunidade personalista se distingue das agregações de indivíduos que correspondem à massa do individualismo bem como das ideias de coletividade Engajase na luta contra a civilização burguesa que se fixa no primado do conforto e do dinheiro que só traz separações e nivela as resistências comercializando toda troca falseando as palavras e os comportamentos isolando sobre ele mesmo longe das vivas reprovações da miséria em seus bairros em suas escolas em seus costumes nas suas relações Não há mais sobre o altar desta Igreja que um Deus sorridente e ignobilmente simpático o Burguês O homem que perdeu o senso do Ser que não se movimenta que entre coisas e coisas utilizáveis destituídas de seus mistérios O conforto é para o mundo burguês o que o heroísmo era no 125 Renascimento e a santidade na Idade Média o valor último móvel da ação61 MOUNIER 1961 a p 16 Esses novos valores decorreram do projeto iluminista de emancipação de uma sociedade dogmática e estática Para Mounier os juristas e os filósofos do séc XVIII acreditaram na edificação de uma sociedade racional Uns a queriam fundar com base no pensamento impessoal outros fundar a sociedade jurídica por contrato também impessoal baseada na convenção Pensavam que a instrução obrigatória a organização econômica e industrial o direito trariam infalivelmente a paz universal A esses ideais seguiuse um mito corrente nos séculos XVIII e XIX o de que a legislação e a educação ajustariam os interesses divergentes do homem iluminado o que era apenas ilusão MOUNIER 1988 p 87 Esprit no 28 Jan1935 p 103 apud MOIX 1968 p151152 MOUNIER 1961 b p 62 Contudo a própria experiência iria demonstrar que o saber não transforma os corações que o direito formal pode sufocar desordens persistentes que a organização e a ideologia quando desprezam o absoluto pessoal levam à crueldade e à guerra e que não se pode estabelecer a universalidade esquecendo a pessoa MOUNIER 2004 p 53 Por tais razões Mounier apresenta suas críticas a esses valores e métodos burgueses enquanto afirma a possibilidade da pessoa viver fora das categorias da acumulação material e na gratuidade e absurdidade que a distingue da razão científica e do dogmatismo lógico lembrando que a sociedade não é contrato mas compromisso vivo MOUNIER 1988 p 91 Todos esses ideais iluministas levaram apenas ao domínio técnico do homem sobre a natureza e sobre o próprio homem criando sérias desordens Como a lei da técnica vem acompanhada da modelação do homem o próprio Estado acabou por assumir todas as técnicas da organização social e foi se tornando a autoridade todopoderosa ELLUL p 227 241 O Estado se torna o aparelho circulatório da técnica cujo projeto de dominação contempla um homem cada vez mais integrado na sociedade uniformizado intelectualmente e com necessidades coletivizadas Ibidem p 152181 Será do comportamento global e padronizado do homem que a técnica extrairá seus meios de ação sua obediência espontânea sua conformidade com certos tipos gerais seus reflexos idênticos da opinião pública do 61 en commercialisant tout échange en faussant les paroles et les comportements en isolant sur luimême loin des vivants reproches de la misère dans ses quartiers dans ses écoles dans ses costumes dans ses relations Il ny a plus sur lautel de cette morne église quun dieu souriant et hideusement sympathique le Bourgeois Lhomme qui a perdu le sens de lÊtre qui ne se meut que parmi des choses et des choses utilisables destituées de leur mystère Le confort est au monde bourgeois ce que lhéroïsme était à la Renaissance et la sainteté à la chrétienté médiévale la valeur dernière mobile de laction MOUNIER 1961 a p 16 126 cálculo de probabilidade da estatística do comportamento da maioria ELLUL 2003 p 221 Nesse sentido a equalização dos homens se dá com vias a seu domínio pela técnica mas não ocorre no que tange à efetivação dos seus direitos pessoais inalienáveis e na garantia das suas dignidades intrínsecas enquanto pessoas Converte os grupos em força numérica fortemente sugestionável Os ideais iluministas de igualdade política é um mito inalcançável para a técnica que conduz à separação de uma multidão cada vez mais numerosa de serventes e uma minoria de dirigentes tendente a criar uma nova aristocracia Esta democracia aparente é perceptível nas premissas das propagandas de governo cujo uso intensivo destrói a faculdade de discernimento do cidadão Esse Estado máquina tem suas correspondências diretas na própria sociedade que se constitui sobre as técnicas e no próprio coração dos homens que se tornaram adoradores da eficiência da velocidade e da ordem A técnica segundo Ellul é que conduz o Estado a fazer se totalitário a absorver a vida inteira do homem Ibidem p 269294 Moix chama o liberalismo de coveiro da liberdade e lembra que Mounier jamais foi condescendente para com a democracia liberal e parlamentar que transformou os homens em escravos das suas próprias liberdades despojados da sua alma e do seu sustento submissos ao impiedoso poder do capital e da tirania das desordens majoritárias MOIX 1968 p 231233 Mounier alerta que nossa democracia é ditatorial e se esconde sob a máscara numérica da vontade de uma pretensa maioria assembleia soberana em nome de um poder impessoal que age por ocultação de si e da realidade 1988 p8990 A vontade subjetiva de um só homem ou do número não são infalíveis mas duas maneiras de tomar o relativo pela realidade mesma Contra este engano Mounier oferece a perspectiva do regime personalista que visa assegurar a cada pessoa de fato e não por delegação coletiva seu posto de autonomia e responsabilidade eficaz no organismo coletivo Esprit no 3536 agoset 1935 in 1988 p 8892 Sob as máscaras da impessoalidade do contrato e do pensamento se ocultam injustiças perenes MOUNIER 1961 b p 62 Nessa democracia reina a tirania oculta do dinheiro da imprensa do jogo das ideias Sob a ilusão da liberdade tanto espiritual quanto política a única que realmente prevalece é a econômica Ibidem p 86 Mounier concorda com o pensamento de Marx quanto ao fato da democracia liberal estar entregue à oligarquia dos ricos que ditam suas vontades de classe nos bancos e indústrias nos postos de comando da política da imprensa da cultura Para os autores não só 127 a igualdade é apenas jurídica mas também a democracia capitalista pois dá ao homem liberdades cujo uso o próprio capitalismo retira Dirá Mounier Quando o individualismo e o capitalismo se afirmam como defensores da pessoa da iniciativa e da liberdade eles cometem a mesma mentira que quando eles se afirmam como defensores da propriedade Eles defendem a palavra para melhor expropriar a coisa62 1961 b p 45 Hoje com a política intervencionista do Estado como salvador da economia que tem abarcado todas as técnicas de controle organizacionais correse o risco de em lugar do proletário elevarse à condição de homem como esperava Marx ocorra o pior toda a sociedade começar a se proletarizar pela grande opressão do poder que exerce os tecnocratas funcionários a serviço do Estado totalitário que tem se transformado hoje em classe dominante e se escondido atrás da técnica sob o mito da industrialização MOUNIER 1961 a p 129130 Para Mounier num primeiro momento as exigências revolucionárias individualistas da Renascença reclamaram as necessidades legítimas da pessoa pois se constituíram contra um aparelho social que se tornou pesado demais contudo esses ideais pessoais afundaram num individualismo burguês que acabou por promover como consequência o isolamento do indivíduo O individualismo primeiro isolou o homem de seus valores mais sublimes depois da comunidade MOUNIER 1961 a p 1419 O mundo moderno promoveu um afundamento coletivo uma despersonalização massiva abandonando a pessoa ao anonimato Fundado sobre o divórcio do espírito e da matéria do pensamento e da ação MOUNIER 1961 b p 49 este novo humanismo burguês e individualista fechou as nações e os indivíduos sobre reivindicações de interesse ou de prestígio MOUNIER 1961 a p 147 O contraponto oferecido pelo personalismo de Mounier para com este individualismo abstrato que só oferece uma visão caricatural da pessoa enquanto a oprime e lhe retira toda possibilidade de comunhão será o de buscar reencontrar as fontes profundas tanto da personalidade como da comunidade através de um regime personalista e comunitário MOUNIER 1961 b p 73 Para Mounier tanto a despersonalização do mundo moderno como a decadência da ideia comunitária constitui uma só e mesma degradação Elas sucumbem ambas ao mundo da 62 Quand lindividualisme et le capitalisme saffirment en défenseurs de la personne et de linitiative et de la liberté ils commetent le même mensonge que quand ils saffirment en défenseurs de la propriété Ils défendent le mot pour mieux exproprier la chose MOUNIER 1961 b p 45 128 impessoalidade das massas das posições neutras e do conhecimento objetivo e técnico onde os totalitarismos encontram solo fértil para se instalarem MOUNIER 1961 a p 5758 Esse mundo uniforme da massa é o espaço ideal de exploração do homem pelo sistema capitalista e da sua alienação quanto à sua participação na sustentação deste sistema Conforme o autor não há comunidade possível em um mundo onde não há mais próximos mas apenas semelhantes É para a massa que escorrega uma democracia liberal parlamentar esquecedora do que a democracia era primitivamente uma reivindicação da pessoa63 MOUNIER 1961 a p 58 A indiferença é um dos maiores males que afetam as sociedades modernas tanto para com uma verdadeira percepção de si e de sua inserção nesse mundo bem como para com as questões que dizem respeito à comunidade Para Mounier esses descasos culturalmente inculcados no homem devem ser banidos a partir da criação de hábitos novos possibilitando enxergar todos os problemas humanos do ponto de vista do bem da comunidade e não dos caprichos do indivíduo MOUNIER 1961 b p 34 Por isso vem Mounier afirmar O primeiro ato de minha iniciação à vida pessoal é a tomada de consciência de minha vida anônima O primeiro passo correlativo de minha iniciação à vida comunitária é a tomada de consciência de minha vida indiferente indiferente aos outros porque é indiferenciada dos outros Nós estamos aqui sob a base onde começa a vida solidária da pessoa e da comunidade64 MOUNIER 1961 a p 58 No processo revolucionário uma mudança apenas nas estruturas exteriores podem favorecer mas jamais criar o homem novo MOUNIER 1961 a p 11 Em decorrência para Mounier toda revolução material fecunda deve ser fundamentada e orientada espiritualmente extrapolando os limites de uma mudança apenas nos contextos social político ou econômico MOUNIER 1961 a p 40 O homem só se realiza como pessoa quando adere a valores que o projetam acima de si mesmo MOUNIER 1961 b p 53 Segundo Mounier o erro cometido pela Revolução Francesa foi o de ter negligenciado o próprio autor da Revolução o homem O desconcerto da democracia ante o fracasso da liberdade e ao fenômeno das massas devese à ausência de estrutura espiritual 63 Cest vers la masse que glisse une démocratie libérale et parlamentaire oublieuse de ce que la démocratie était primitivement une revendication de la personne MOUNIER 1961 a p 58 64 Le premier acte de mon initiation à la vie personnelle est la prise de conscience de ma vie anonyme Le premier pas corrélatif de mon initiation à la vie communautaire est la prise de conscience de ma vie indifférente indifférente aux autres parce quelle est indifférenciée des autres Nous sommes ici audessous du seuil où commence la vie solidaire de la personne et de la communauté MOUNIER 1961 a p 58 129 interior no homem e nos sistemas que o envolvem Afirma Mounier O fracasso da democracia individualista não é o fracasso da democracia é o fracasso do individualismo65 MOUNIER 1988 p 77 Por todas as razões precedentes é que em Mounier a Revolução deve ser primeiramente personalista para só depois ser comunitária De nada adiantaria apenas buscar a transformação das estruturas sem mudar o homem que as compõem pois a raiz dos males que as assolam prevaleceria e as reconduziriam a novas quedas A decadência da civilização para Mounier não é só de ordem econômica ou técnica mas sobretudo de ordem moral bem como social Nesse sentido qualquer Revolução exige o resgate das estruturas do universo pessoal a começar por uma conversão total e contínua do homem tanto em sua ação quanto em sua vontade de reconstrução da própria civilização Os princípios revolucionários se instalam a partir de uma inquietude que leva a uma tomada de consciência tanto de uma desordem exterior cientificamente estabelecida e mais ainda do sujeito quanto à sua própria participação na desordem até aqui inconsciente Donde a exigência de uma ruptura total não arranjos ou negociações com todos os aparelhos da desordem inclusive para com a educação burguesa para que a ação revolucionária seja eficaz MOUNIER 1961 a p 159163 Nessa comunidade personalista a pessoa é concebida como uma unidade vital aberta a relações interpessoais com Deus seu fundamento e meta e também com a comunidade na qual ela se realiza A comunidade deve promover e favorecer o crescimento e a autenticidade de cada pessoa em direção à sua realização proporcionando a aprendizagem do próximo como pessoa Por estas razões a pessoa tem o dever de sacrificar sua individualidade às promessas da comunidade e não às sociedades de interesses materiais Assim uma comunidade autêntica é pessoa de pessoas MOUNIER 1961 b p 62 1961 a p 60 Comprometida com fornecer a possibilidade de se viver como pessoa desenvolver suas potencialidades com a iniciativa da vida espiritual a comunidade personalista se baseia no amor na plena comunhão na responsabilidade mútua Nesta nova comunidade o lugar de cada um seria insubstituível e ao mesmo tempo harmonioso no todo MOUNIER 2004 Mas como o amor é uma atitude de otimismo trágico pois implica em acreditar além das inúmeras probabilidades de decepção esta comunhão também implica em riscos Na tentativa de estabelecer uma ponte com o mundo a pessoa deve assumir decisões e escolhas com 65 El fracaso de la democracia individualista no es el fracaso de la democracia es el fracaso del individualismo MOUNIER 1988 p 77 130 margens de incerteza que anularão outras escolhas Contudo é na escolha responsável que a pessoa se constrói e se afirma que demonstra o seu poder sobre o universo dos valores Ainda que a ciência a razão objetiva o direito sejam mediadores necessários das comunicações humanas por si sós são incapazes de assegurar uma plena comunidade pessoal MOIX 1968 p 152 Se faz necessário descentrar nosso universo endurecido pelas linguagens impessoais da ciência do direito das utilidades técnicas e do individualismo Só assim resgatamos as relações entre os homens da sua usurpação como relação entre coisas MOUNIER 1988 p91 Conforme Mounier Em uma perfeita comunidade pessoal cada pessoa se realizaria na totalidade de uma vocação continuamente fecunda e a comunhão do conjunto seria uma resultante de cada uma destas vitórias singulares Contrariamente ao que se passa nas sociedades vitais o lugar de cada um seria insubstituível e essencialmente desejado para a ordem do todo Só o amor seria o liame e não alguma coação algum interesse vital ou econômico alguma instituição extrínseca Cada pessoa sendo promovida aos valores superiores que a realizam encontraria os valores superiores objetivos comuns à linguagem que a religa a todas as outras66 Esprit no 28 Jan1935 1961 b p 62 Revolução comunitária Nesse sentido na comunidade pessoal não há filosofia do eu mas do nós o individualismo cede lugar à necessidade das estruturas coletivas comunitárias em oposição às coletivistas MOUNIER 1961 a p 60 MOIX 1968 p 154 Diferentemente das sociedades jurídicas contratuais fundadas sobre os pretensos valores humanos desumanizados despersonalizados para Mounier a melhor parte do homem está nesta necessidade primordial seu verdadeiro pão cotidiano o desenvolvimento de uma vida interior no seio de uma vida comunitária67 MOUNIER 1961 b p 106 Esse desenvolvimento será viabilizado por uma educação personalista que estimulará todas as potencialidades inerentes ao ser pessoal 66 Dans une parfaite communauté personnelle chaque personne saccomplirait dans la totalité dune vocation continuellement féconde et la communion de lensemble serait une résultante de chacune de ces réussites singulières Contrairement à ce qui se passe dans les sociétés vitales la place de chacun serait insubstituable et essentiellement voulue par lordre du tout Lamour seul en serait le lien et non pas aucune contrainte aucun intérêt vital ou économique aucune institution extrinsèque Chaque personne y étant promue aux valeurs supérieures qui la réalisent trouverait dans les valeurs supérieures objectives communes le langage qui la relie à toutes les autres MOUNIER 1961 b p 62 67 lépanouissement dune vie intérieure au sein dune vie communautaire MOUNIER 1961 b p 106 131 CAPÍTULO III A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA RAZÃO TÉCNICA FACE À EDUCAÇÃO PERSONALISTA O fim de toda sociedade é o estabelecimento dos melhores meios para educar a cada um na eleição livre na ação responsável e na comunidade aceita MOUNIER 1988 p 119 O personalismo de Mounier a partir do realismo integral que busca captar a pessoa tanto em sua imanência quanto em sua transcendência se contrapõe às dualidades construídas pelos ideais de domínio técnico como entre corpoalma ou homemmundo Por terem sido apresentadas como realidades distintas essas dicotomias acabaram promovendo uma visão deturpada dos verdadeiros fins aos quais deveriam servir o conhecimento científico que é o próprio homem Por outro lado também isolaram o homem do mundo dos outros e de si mesmo afastandoo da condição de sujeito do processo histórico e relegandoo ao papel de mero objeto de cálculos e previsões utilitaristas dos dispositivos por ele mesmo criados A burguesia capitalista se serviu dessas fragmentações para promover e acentuar o individualismo como condição para a potencialização de seus benefícios econômicos Como consequência a competitividade e atitudes egoístas de enriquecimento e prestígio individual foram destruindo aos poucos todo liame social Nesse contexto a técnica enquanto ciência aplicada reordenou as relações do homem com o mundo social e do conhecimento a partir de todo um aparato de organização do qual o homem foi se tornando apenas um de seus objetos A máquina administrativa do Estado por sua vez acabou se colocando por trás dessas organizações buscando intensificar o seu poder passando a se guiar por vias utilitaristas de êxito e eficácia com base em resultados apreciáveis quantitativamente Estas ideologias fortaleceram a autonomia da técnica e de seus valores em detrimento da autonomia do homem e dos valores humanos prevalecendo o que é objetivo operacional eficaz e útil para os ideais de progresso ainda que distantes das singularidades mais sublimes da pessoa 132 Mounier propõe compreender o homem a partir da indissolubilidade entre objetividade e subjetividade com a finalidade de construir um homem novo não mais fragmentado porém livre e engajado capaz de se contrapor à racionalidade técnica que se alheou dos verdadeiros fins aos quais deveria servir desde seu surgimento ou seja para o progresso espiritual do homem e da comunidade Como a existência humana em toda sua potencialidade se vê ameaçada por estes valores a serviço do mercado e do lucro Mounier propõe a volta para o todo numa perspectiva globalizante reafirmando a pessoa não como o autômato dos técnicos com atitudes previsíveis e passível de manipulações objetificantes mas como um centro de criação capaz de destruir obstáculos e abrir fronteiras Como educador Mounier propõe ao mesmo tempo uma reflexão estrutural ética e global acerca do ser humano A educação nesse sentido será a via de acesso ao resgate do ser pessoal hoje despersonalizado e desumanizado por estes movimentos tecnificantes Como para Mounier a técnica só pode romper com a vida sob a direção do espírito o autor proporá a elevação do homem a partir de uma educação que enriqueça suas potencialidades não apenas cognitivas ou técnicas mas também afetivas próativas e sociais Essa educação buscará ampliar a capacidade crítica da pessoa a fim de que ela possa fazer escolhas mais profundas e responsáveis que excedam os pequenos interesses imediatistas e aprazíveis ofertados pela sociedade de consumo Enquanto o meio por excelência de construção e transformação do homem a educação contribuirá fortemente para a restauração do homem em sua condição de pessoa o que lhe permitirá se contrapor a toda impessoalidade tanto do conhecimento quanto das relações e das organizações que a enaltecem A educação personalista de Mounier buscará resgatar a pessoa em sua subjetividade autônoma cuja corrosão tem contribuído para uma utilização da técnica em prol do mundo material em detrimento do humano Ela buscará promover o crescimento espiritual do homem a partir do reconhecimento dos mistérios do ser pessoal em sua amplitude significativamente presentes em suas estruturas Só um homem personalizado poderá se comprometer responsavelmente com o desenvolvimento técnico e colocar sempre como centro e finalidade última não aquisições materiais ou progresso irrefreável mas o homem e a comunidade de pessoas Para a concretização desses ideais conforme Mounier é imprescindível romper com a abstração matemática que acentuou o tecnicismo gerando uma visão apenas materialista da técnica que desde seus primeiros progressos trouxe sérios danos ao homem e à natureza 133 Ainda que uma mudança nas estruturas políticas econômicas e sociais sejam necessárias uma educação personalista contribuirá fortemente para uma mudança na direção dos valores que devem nortear a civilização técnica Os fins perseguidos pela razão técnica como única medida de valorização da ação do homem no mundo não consideram os meios dos quais se servem nem colocam o próprio homem como sujeito de elevação Como revolucionária a educação de Mounier trabalhará as estruturas interiores do homem para que emancipado tenha reais condições de interferir nas estruturas externas sociais políticas ou econômicas nas quais ele se insere 31 Educação da paidéia à sociedade do conhecimento Da razão de domínio Para os gregos antigos a educação tinha um sentido de Paidéia como formação de um elevado tipo de homem JAEGER 1995 a partir do cuidado com a natureza com os deuses com o corpo e com a alma das crianças Esta educação pressupunha um ideal consciente de formação total do homem como parte integrante da humanidade Segundo Chauí tratavase do cultivo do espírito das crianças para tornaremse membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento das qualidades naturais caráter índole temperamento 1995 p 292 O termo Paidéia vem de paidos criança que faz alusão tanto à criação de meninos quanto à própria cultura construída a partir da educação Conforme Jaeger 1995 os gregos deram o nome de paidéia a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição tal como nós designamos pela palavra latina cultura Para traduzir o termo paidéia não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização tradição literatura ou educação Nenhuma delas entretanto abarca sozinha a abrangência do termo que engloba o emprego de todas elas de uma única vez Por outro lado paidéia não designa unicamente a técnica para preparar a criança para a vida adulta mas é também resultado do processo educativo que se prolonga por toda a vida muito além dos anos escolares Seu resultado é um espírito plenamente desenvolvido Como afirma Jaeger 1995 era opinião geral que Homero através da poesia foi o educador de toda a Grécia Homero ainda que por trás dele existam vários poetas os rapsodos é considerado o pai da cultura helênica numa época em que os deuses já não bastavam para explicar tudo e os homens procuravam desvelar os mistérios da physis 134 mediante o logos Sua poesia foi educativa por ter suas raízes mergulhadas nas camadas mais profundas do ser humano Segundo Jaeger a poesia grega não nos dá apenas um fragmento qualquer da realidade ela nos dá um trecho da existência escolhido e considerado em relação a um ideal determinado JAEGER 1995 p 6184 Assim as epopeias homéricas retratam os homens que representam a elevação cultural e moral de sua época Tratase do ponto de vista de uma aristocracia urbana guerreira e civilizada O valente é sempre o nobre o homem de posição elevada que vê na luta e na vitória a sua distinção e a própria essência de sua vida No retrato homérico das últimas guerras troianas datadas de 1260 a 1250 a C o herói Aquiles representa o mais alto ideal de nobreza virtude e excelência Homero não concebe o herói vivendo em paz ele pertence ao campo de batalha JAEGER 1995 p 29 O herói homérico está impregnado de autoestima e deseja antes viver um breve período no mais alto gozo a passar uma longa existência em indolente repouso Prefere uma vida breve por um fim nobre a uma vida longa por nada Platão e Aristóteles tomam como modelo ideal a aristocracia homérica quando reconhecem que a areté só pode atingir a perfeição em almas seletas de heróis e grandes homens que se elevam acima da massa alienada e ordinária JAEGER 1995 p 52 O objetivo pedagógico e ético dessas epopeias era servir de exemplo para a juventude e seus descendentes O exemplo era o guia da ação em um tempo cujo valor pedagógico ético e religioso como a sabedoria dos provérbios era transmitido de forma oral de geração em geração A educação convertese em formação paidéia como modelação do homem integral de acordo com o paradigma de sua classe O jovem consciente de seu padrão deve aderir a esse adestramento distinto mediante o conselho constante e a direção espiritual característica da nobreza de todos os tempos e povos JAEGER 1995 p 2932 A educação grega também era indissociável da política cujo ideal era construir o homem como homem e como cidadão primando por sua autonomia e autodeterminação enquanto ser digno bem governado e bom governante Esta educação não buscava ensinar ofícios mas treinar a liberdade e nobreza ajudar o homem a realizar sua excelência tornandoo no que já era Centravase na formação integral corpo e espírito com ênfase no preparo esportivo e intelectual JAEGER 1995 Por pertencer a uma sociedade escravista os gregos desvalorizavam a formação profissional e o trabalho manual Enquanto a técnica se achava associada à prática dos escravos o cultivo desinteressado da força física e a atividade intelectual permaneciam privilégio das classes ociosas O ócio digno significava a disponibilidade de gozar do tempo 135 livre privilégio daqueles que não precisavam se preocupar com a própria subsistência de onde vem o termo escola scholé que era o lugar do ócio JAEGER 1995 p 50 As epopeias influenciaram fortemente a cultura grega e a educação sobretudo no período arcaico e na época clássica Todavia o ideal grego original de educação e o sentido da areté sofreram significativas alterações Ao conceito de areté cujo significado contemplava a ideia de coragem força e rapidez no campo de batalha bem como a excelência e a superioridade que eram alvos supremos do herói a partir do século V a C é acrescentado a ideia de virtude do cidadão da polis que agora deve saber falar e persuadir A educação deverá formar para expor os argumentos com consistência e para a obediência às leis A antiga educação consistente em ginástica e música tornase insuficiente e é agora acrescida da astronomia geometria aritmética retórica gramática e dialética Essa situação original dos ideais formativos foi sendo pouco a pouco transformada e reduzida Sofre grande impacto na Idade Moderna com a ascensão da burguesia e sua lógica de domínio que a fim de potencializar os interesses do capital se serviu de todas as áreas não só do fazer mas também do saber humano aliando conhecimento e técnica no campo da ciência das instituições sociais e posteriormente das tecnologias empresariais eliminando cada vez mais o espírito crítico Com os avanços dos êxitos quantitativos obtidos pelos ideais técnicos ocorreu o que Mounier chamou a demissão da pessoa cada vez mais inconsciente de si deturpada em seus valores e indiferente aos outros e ao mundo circundante As ciências se orientaram para uma função utilitarista Mesmo as ciências humanas que surgiram em decorrência dos novos problemas do homem e da sociedade em crise também sucumbiram aos princípios que regem as ciências da natureza como a objetividade ou a experimentação de modo incoerente com a característica de seus objetos o homem e a sociedade irrecortáveis mutantes e históricos Buscando a conformação dos homens ao progresso técnico a sociologia a psicologia dentre outras ciências humanas no contexto histórico em que surgiram não tiveram por ocupação a resolução dos problemas humanos em uma sociedade em crise e desordem mas se limitaram a administrálos gerilos em consonância com os novos interesses e valores em voga Desde então as ciências humanas muitas vezes promovem a aplicação de determinadas técnicas visando responder às demandas sociais a partir de uma adaptação ou readaptação dos indivíduos à prática social global A visão técnica elabora as condições ideais de existência inspirando a percepção tecnocrática e funcionalista de nossa época Nelas o método e o resultado se pautam pela eficácia e pelo êxito ELLUL 2003 p 181 136 Na base desta nova ordem imperam os ideais positivistas cuja perspectiva só valoriza o que pode ser medido quantificado e que traz resultado prático útil e imediato aos problemas apresentados pela nova realidade social Buscase a extensão dos métodos utilizados nas ciências naturais à compreensão dos fenômenos sociais que se baseiam na objetividade neutralidade observação e experimentação cuja invariabilidade independe da vontade e da ação humana Como se guiam pela ideia de que a ordem é a condição para o progresso segundo a concepção de Comte 1973 todo conflito é apresentado como não tendo sua origem na economia capitalista nas contradições entre capital e trabalho mas na anarquia ou desordem na insubmissão A perspectiva técnica de objetificação do humano opera por meio da quantificação e a partir de uma média totalmente impessoal Dirá Mounier a ciência positiva de tipo cartesiana não admite existências qualitativas Esforçase por reduzilas a relações de espaço e a forças impessoais Para tanto construirá uma imagem da média tão geométrica quanto seja possível68 MOUNIER 1971 p 70 Essas forças impessoais da técnica ao se dirigirem contra a pessoa a converte em ser abstrato fragmentado disperso em uma multiplicidade de peças individualizadas a fim de facilitar os procedimentos que atuarão em sua intervenção ELLUL 2003 p 390 Logo a técnica traz uma visão reducionista das complexas dimensões da realidade sem sentido da totalidade Nascida no contexto dos ideais liberais a racionalidade tecnicista adotou como modelo de organização a empresa e como condição de funcionamento as leis de mercado Sua busca desenfreada por mais eficácia eficiência e produtividade exige a prática sistemática da competição do indivíduo com os outros e consigo mesmo que se alicerça nos ideais individualistas burgueses enquanto os enaltece Marilena Chauí em Que é ser educador hoje Da arte à ciência a morte do Educador 1986 afirma que o pensamento científico tornouse um artificialismo absoluto porque é puro operacionalismo concebido sob o modelo de máquinas humanas num mundo dominado pelo progresso técnico O progresso técnico com todas as suas benesses desabitou a vida dos homens dandolhes mais coisas mas não mais ser Para a autora 68 Mas la ciencia positiva de tipo cartesiano no admite existencias cualitativas Se esfuerza por reducirlas a relaciones de espacio y a fuerzas impersonales Por lo tanto construirá una imagen del medio tan geométrica como le sea posible MOUNIER 1971 p 70 137 Resultado da exploração física e psíquica de milhões de homens mulheres e crianças da domesticação de seus corpos e espíritos por um processo de trabalho fragmentado e desprovido de sentido da redução de sujeitos à condição de objetos sócioeconômico manipuláveis politicamente e pelas estruturas da organização burocráticoadministrativa o progresso sequestra a identidade pessoal a responsabilidade social a direção política e o direito à produção da cultura por todos os nãodominantes CHAUÍ 1986 p5657 Da cultura agora instrumentalizada emerge uma educação reprodutora das relações de classe e sistemas ideológicos Nela confundemse conhecimento e pensamento Afirma Chauí enquanto conhecer é apropriarse intelectualmente de um campo dado de fatos ou de ideias que constituem o saber estabelecido pensar é ir além é desentranhar o que é opaco mas que se oferece como matéria para o trabalho da reflexão Enquanto o conhecimento se move na região do instituído o pensamento se move na região do instituinte CHAUÍ 1986 p 60 Essa racionalidade agora administrada e administrativa que visa a uma eficácia quantitativa acabou por extinguir toda oposição entre humanismo e tecnicismo Chauí chega a comparar o homem moderno como um ancestral do tecnocrata uma vez que o humanismo nasce como ideal de domínio técnico sobre a natureza pela ciência e sobre a sociedade pela política Na condição de sujeito do conhecimento isto é de consciência instituidora de representações o homem moderno cria um conjunto de dispositivos teóricos e práticos fundamentados na ideia de objetividade como determinação completa do real Nesse sentido a ciência e a técnica agora convertidas em representações controláveis passam a manipular as coisas recusandose a habitálas CHAUÍ 1986 p 62 32 A racionalidade técnica na educação brasileira No século XX com maior intensidade as ciências e as técnicas foram transformadas em forças produtivas e integradas à economia Por necessidades históricas emerge em contraposição aos iniciais ideais liberais burgueses que primavam pela não intervenção do Estado nas fruições privadas um Estado que foi se tornando cada vez mais partícipe dos interesses sociais negligenciados e esquecidos pelo capitalismo em expansão A fim de potencializar seus interesses e buscando estender a sua força vital numa economia cada vez mais globalizada o Estado foi adquirindo uma face cada vez mais assistencialista A educação passa a ser de domínio público TARDIF 2002 p 43 Conforme Ellul o Estado se colocou atrás da organização de domínio técnico a fim de potencializar sua capacidade de regulação dos divergentes interesses econômicos e sociais 138 Abarcando todos os elementos técnicos das organizações previamente preparados por especialistas da economia à organização pedagógica na educação o Estado aumentou seu potencial técnico dado a solidariedade entre as técnicas que permite seu crescimento em proporções geométricas ELLUL 2003 p 242 Como para Ellul tudo o que há na civilização técnica deve servir a um fim técnico buscouse não só nas estruturas exteriores impostas pela técnica a modificação dos elementos componentes da civilização mas também no aumento da sua influência interna sobre o homem Para tanto as atividades intelectuais artísticas e morais foram unidas e eliminado paulatinamente o conflito de forças do qual a técnica seria uma delas convertendo o homem em um de seus objetos ELLUL 2003 p 132134 O grande objetivo das técnicas do homem para Ellul é sua adaptação ao mundo já instituído Para a consecução desse propósito as técnicas da escola buscam direcionar a criança a um certo conformismo social O ensino vai perdendo seu valor humanista ou qualquer outro valor e passa a ter só uma finalidade fazer técnicos O que se ensina deve ser útil para a vida mas como a vida atual é técnica o ensino deve ser técnico Ibidem p 350 351 O Estado coordena pela unificação e planificação todo o conjunto técnico a fim de equilibrar as diferentes forças sociais e técnicas retirando a autoridade dos interesses privados Ainda que o Estado não seja o cérebro que as dirige conforme Ellul ele é o aparato que as relaciona e confronta entre si promovendo a progressão acelerada da técnica 2003 p 309316 Esta perspectiva intervencionista do Estado também atingiu a administração pública brasileira cujas ideias encontramse no plano diretor da Reforma do Aparelho do Estado BRASIL 1995 p 16 Mas o que se tornou a regra de ouro da competitividade entre as nações e pressuposto de desenvolvimento foi esta nova racionalidade técnica que opera com vias a aliar e potencializar ao máximo progresso técnico e crescimento econômico No Brasil a apreciação do conhecimento técnico e tecnológico como fatores fundamentais de aceleração de crescimento e melhor capacitação e inclusão da grande massa trabalhadora deuse com os ideais da educação profissional instituída em 1909 sob o governo de Nilo Peçanha pelo Decreto no 7566 Essa educação resultante da visão sócioeconômica do neoliberalismo que caracteriza a consolidação do sistema capitalista de produção fundamentada no individualismo e na competitividade tinha como objetivo potencializar a concorrência no mercado Brasil CNECEB 1999 139 Todavia a atenção para uma pedagogia tecnicista pautada no pressuposto de neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade eficiência e produtividade acentuouse no fim da primeira metade do século XX advogando a reordenação do processo educativo de maneira a tornálo objetivo e operacional De forma semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril buscouse a objetivação do trabalho pedagógico com ênfase no aprender a fazer organizado de forma parcelada SAVIANI 1989 Forjouse uma perspectiva escolar dualista que acabou por fazer separação entre formação no sentido de formação integral e profissionalização visando apenas à posse de certas habilidades técnicas num campo específico A escola tecnicista resultou da forte influência positivista na Educação no Brasil republicano que ressurgiu e se intensificou na década de 70 do século passado Numa perspectiva positivista a escola passou a privilegiar o que é prático útil objetivo direto e claro guiada pela ascensão dos valores que permeiam as ciências exatas seleção hierarquização observação controle eficácia e previsão Essa escola tecnicista tinha como objetivo a formação de operários para uma rápida inserção no mercado de trabalho a partir das mesmas exigências e valores das empresas ISKANDAR LEAL 2002 p 3 Com a extensão à escola dos critérios de produtividade na Indústria em fins dos anos 70 e início dos anos 80 a educação foi reduzida em sua altivez e profundidade e controlada por uma avaliação pautada pelos resultados numéricos e quantitativos Tal fato gerou uma organização racional da escola a fim de minimizar as interferências subjetivas que poriam em risco sua eficiência Nela professor e aluno ocupam posição secundária meros executores de um processo cuja concepção planejamento coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados e imparciais TARDIF 2002 Essa educação racionalizada e planejada pelo Estado gerou como consequência a formação rápida de professores e a especialização dos saberes TARDIF 2002 p 43 Vimos emergir uma relação clientelista onde o saber passa a ser visto como produto a ser vendido com êxito no mercado e o educando como um cliente a consumilo Nesse processo de consumo dos saberes escolares para inserção rápida no mercado de trabalho a função do professor foi deixando de ser a de formar indivíduos e foi se tornando a de equipálos para a concorrência TARDIF 2002 O aspecto humano da educação foi relegado à operatividade técnica dos meios de uma organização que acaba por subsumir tanto o educador quanto o educando Conforme disse Chauí as reformas do ensino no Brasil após 1968 denotam uma aliança entre uma certa concepção de ciência tecnologia profissionalização e progresso que 140 revelam a morte da pedagogia como arte de ensinar O novo papel da escola não se limitará apenas à reprodução das ideologias e das relações de classe mas também buscará criar em pouco tempo e a baixo custo e nível uma reserva de letrados A pedagogia será transformada em ciência o educador em cientista prático técnico e o aprendizado em criação de forçade trabalho Tendo a competência como condição e fruto do progresso a educação tornase intimidadora social e politicamente CHAUÍ 1986 p 5758 Saber e poder identificamse Da divisão social do conhecimento tecnológico todos são reduzidos à condição de meros executantes de um saber cuja origem sentido e finalidade lhes escapa Seja pela banalização e vulgarização dos resultados científicos seja através da escola há a interposição da fala dos especialistas Estas falas científicas ou técnicas têm a finalidade de tornar a realidade absolutamente transparente dominável controlável previsível promovendo um rombo à capacidade de resistência CHAUÍ 1986 p 59 Buscase dar a conhecer para que não se possa pensar Adquirir e reproduzir para não criar Consumir em lugar de realizar o trabalho da reflexão Ibidem p 62 Conforme Olgária Matos 2009 nos anos 60 do século passado a universidade tinha o objetivo de formar cientistas enquanto um intelectual que fazia da pesquisa não uma profissão mas uma vocação A pesquisa por sua vez mantinha sua autonomia com respeito às determinações materiais e do mercado Hoje a universidade converte a pesquisa em uma produtividade quantificada do conhecimento adaptandose à obsolescência permanente das revoluções técnicas promovidas pelas inovações industriais que visam lucro A temporalidade do mercado confisca hoje o tempo da reflexão que antes era a longo prazo O intelectual cultivado foi destituído pelo especialista e seu conhecimento particularizado cujo discurso se limita a formulações técnicas ligadas à sua utilidade prática Segundo o novo paradigma econômico e produtivo conhecimento e informação se tornaram sinônimos de poder e riqueza das nações e requisitos de competitividade o que conforme Bernheim e Chauí acabou por encorajar a tendência a tratálos meramente como mercadorias sujeitas às leis do mercado e abertas à apropriação privada 2008 p7 Submetida a estratégias e programas de eficiência organizacional a universidade hoje é avaliada com base em indicadores de produtividade e projetada para ser flexível definida por padrões completamente alheios ao conhecimento e à formação intelectual BERNHEIM e CHAUÍ 2008 p 812 Para os autores estamos vivenciando no século XXI uma compressão espaço temporal tudo tem ocorrido a uma alta velocidade o tempo da graduação da pósgraduação gerando uma necessidade de renovação constante do conhecimento Tudo está acontecendo 141 aqui e agora sem distância fronteiras passado ou futuro BERNHEIM e CHAUÍ 2008 p 1012 como consequência se encontrando cada vez mais distantes a realidade e o conhecimento que se produz sobre ela O trabalho acadêmico na perspectiva de uma organização fragmentada que prima pela especialização só poderá ser avaliado em termos de custobenefício pois que regulado pela ideia de produtividade que leva em conta o tempo o custo e quanto foi produzido Ibidem p 13 Tal postura nos remete à crítica feita por Marx quanto ao trabalho alienado rotineiro e aviltante que exerce os que se ocupam dos trabalhos manuais nas grandes indústrias que hoje tem coincidido até mesmo com o trabalho intelectual ainda que fora delas ou mesmo não auferindo lucros Conforme Marx abordou no chão da fábrica O movimento do pêndulo tornouse a exata medida da atividade relativa de dois operários da mesma maneira que o é da velocidade de duas locomotivas Então não há por que dizer que uma hora de um homem equivale a uma hora de outro homem devese dizer que o homem de uma hora vale tanto quanto outro homem de uma hora O tempo é tudo o homem não é nada quando muito a carcaça do tempo Não se discute a qualidade A quantidade decide tudo hora por hora jornada por jornada MARX 1982 p 58 A visão capitalista tem limitado a educação e o conhecimento reduzindo os homens a especialistas minuciosos e técnicos produtores de artigos ou outros materiais de pesquisa mensuráveis por uma prática quantificadora Essa quantificação produtiva é incompatível com o trabalho acadêmico Uma das grandes consequências do domínio técnico parece ter sido a de reduzir o trabalho intelectual na academia a uma função meramente operacional Mais um golpe é desferido contra a arte de pensar destituindo o conhecimento de sua condição emancipatória e convertendo os grandes pensadores em meros operadores de meios que lhes escapam em prol de fins que eles ignoram e aos quais são mesmo indiferentes A esses produtores de pesquisas falta a chama interior e a amplitude de olhar que só os descobridores têm afirma Mounier 1961b p 310 No chão das escolas essa prática deve ser urgentemente repensada Uma educação que se pretende verdadeiramente formativa deve mesmo transcender os espaços físicos da escola e destituir o homem da condição de coisa da qual se exige muitas vezes grandes sacrifícios em nome do progresso técnico Mounier vem claramente apontar que o homem não é uma máquina assim como o conhecimento não é pura erudição abstrata e impessoal São realidades vivas e concretas que se interagem constantemente 142 Ravitch 2011 aponta o New Public Manegement modelo de gestão empresarial norte americano fortalecido nos anos 70 do séc XX como o grande responsável pela perspectiva tecnicista do discurso neoliberal de qualidade na educação Esse modelo prioriza o desempenho de produtividade a partir de indicadores de eficiência e eficácia com foco nos resultados Sua visão é de responsabilização meritocrática e gerencialista aos moldes privados Freitas reitera essa análise de Ravitch e acrescenta que uma das suas maiores deficiências é desconsiderar o ponto de partida a igualdade de condições iniciais dos que são submetidos a seus critérios de avaliação Nessa proposta de gestão afirma o autor o que faz a diferença entre as pessoas é o esforço pessoal o mérito de cada um nada se diz sobre o ponto de partida Na escola diferenças sociais são transformadas em diferenças de desempenho FREITAS 2012 p 383 Bourdieu e Passeron 1975 alertaram para o fato de que a escola está a serviço dos grupos dominantes e reproduz seus ideais de domínio Nessa perspectiva a meritocracia é o privilégio supremo da burguesia de não aparecer como privilegiada A ação pedagógica e o sistema de ensino fontes de violência simbólica servem à manutenção e conservação da ordem social e à reprodução Para Bourdieu e Passeron o sistema escolar ao invés de transformar a sociedade e permitir a ascensão social ratifica e reproduz as desigualdades reforçando por dissimulação as relações de força material BOURDIEU 1997 p 22 Em decorrência desta lógica produtivista reinante hoje em nossa civilização técnica cujos critérios se baseiam em competências eficiência especializações as pessoas se empenham na corrida para se tornarem cada vez mais competitivas no mercado de trabalho Buscando certa distinção perante seus concorrentes procuram sempre por novos diplomas Esta busca por certificações tem se agigantado dado a necessidade de inserção e adaptação num mercado de trabalho cada vez mais acirrado e polivalente reabastecido constantemente com novas tecnologias BOURDIEU 1998 a p 59 Paradoxalmente ter um diploma na nossa realidade atual já não é garantia de emprego nem de mobilidade social e esta insegurança quanto às posições sociais ou mudança de classe tem gerado uma crise de valores legando ao indivíduo a responsabilidade pela aquisição de capacitações para se situar neste mercado de trabalho oscilante Contudo embora mantendo os indivíduos no interior das escolas relegaos a um ensino desvalorizado e outorgalhes diplomas sem valor no mercado BOURDIEU 2007 p 124 Afirma Bourdieu Fora do mercado propriamente escolar o diploma vale o que do ponto de vista econômico e social vale seu detentor ibidem p 127 143 Na perspectiva do personalismo de Mounier as razões que orientam essa busca desenfreada por certificações ou que permeiam os ideais de gestão empresarial na educação encontramse nos interesses capitalistas que regem nossa civilização técnica Esses interesses promoveram uma cultura e uma educação popular dirigidas sobre a utilidade orientandoas não para um aperfeiçoamento próprio mas por sua função econômica MOUNIER 1961 a p 95 A cultura burguesa não só promove a separação entre as pessoas mas também dissocia sabedoria e conhecimento cujo conteúdo é substituído pela força e pelos procedimentos A ciência se converte em pura erudição Por essas razões Mounier critica a intelectualização acadêmica Para o autor das instituições educacionais decorrem projetos que não consideram as pessoas que são substituídas por colecionadores de saberes nem têm a preocupação com o mundo do conhecimento Atrás da ideia de liberdade que a educação aos moldes positivistas apregoa encontra se uma minuciosa vigilância e um completo modelamento interior da criança habituandoa a uma servidão prazerosa conformandoa e adaptandoa aos valores compartilhados por essa sociedade Conforme Ellul seu paradoxo consiste em objetivar homens felizes em um meio que normalmente deveria fazêlos desgraçados caso não fossem trabalhados e modelados para ele Nesse sentido o que parece ser o auge do humanismo é apenas o auge da submissão do homem preparado desde cedo para ser exatamente o que a sociedade espera dele ELLUL 2003 p 351 A civilização burguesa com seus ideais de domínio técnico minou a educação do interior expulsando não apenas o esforço que ela requer mas também a realidade transcendente que a mede Por desconhecermos esta realidade transcendente dirá Mounier nós assistimos a um afundamento massivo e lento da metafísica na história e na psicologia das artes maiores sobre as artes menores da contemplação na emoção da ciência na erudição do senso da verdade no gosto da análise dos governos nas combinações da vida privada nos fatos diversos Estes saberes separados da sabedoria são prerrogativas das quais se revestiu ridiculamente uma pretensa elite para assentar sua suficiência e fechar suas fronteiras No topo da degradação ela se desinteressa de todo conteúdo para não mais jogar que com as formas e os procedimentos69 1961 a p 9394 69 nous assistons à un effondrement massif et lent de la métaphysique dans lhistoire et la psychologie des arts majeurs sur les arts mineurs de la contemplation dans lémotion de la science dans lérudition du sens de la vérité dans le goût de lanalyse des gouvernements dans les combinaisons de la vie privée dans le fait divers Ces savoirs séparés de la sagesse sont des prérogatives dont saffuble une prétendue elite pour asseoir sa suffisance et fermer ses frontières Au bout de la déchéance elle se désintéresse de tout contenu pour ne plus jouer quavec les formes et les procédés MOUNIER 1961 a p 9394 144 Marcuse afirma que na sociedade contemporânea de cunho positivista a direção dada ao progresso científico e técnico geram uma educação afirmativa na qual a pessoa deixa de ser uma fonte de conquista e passa a ser uma fonte de renúncia MARCUSE 1997 vol I p 122 Acrescenta Adorno que uma das armas fundamentais da razão instrumental é se servir da educação como veículo de adaptação e integração dos indivíduos padronizando suas mentes e anulando o seu aspecto de independência crítica dificultando as resistências e conformandoos ao préestabelecido ADORNO 1995 p 26 Contrariamente à virtude do ideal formativo grego o herói moderno é entorpecido pela acomodação e conforto oferecidos pela ciência e tecnologia agora triunfantes e vitoriosas 33 A educação personalista como contraponto à objetificação técnica do homem A perspectiva técnica que absorveu o mundo da cultura e da educação reduzindo o conhecimento à pura erudição a formação integral às especialidades fragmentadas e a gestão escolar às concentrações empresariais somados à idolatria do êxito da eficácia e da eficiência extensivos a toda produção humana fez da civilização o leito de uma mediocridade espiritual sem precedentes Essa condição do homem e da civilização muito inquietava Mounier que vê na formação do homem um meio de recondução da ordem dos acontecimentos Porém o autor não discute a educação isoladamente em uma obra única ou em um conjunto de obras pertinentes ao assunto Enquanto espaço necessário para a formação efetivação e perpetuação de uma comunidade de pessoas capazes de resistência a todo imperativo técnico a educação está presente em grande parte de suas obras ainda que de maneira parcial A pedagogia da pessoa para Mounier é a pedagogia da vida comunitária Não há como se mudar uma sociedade sem efetivas transformações na política e na educação esta última por ser a base na qual a pessoa se forma em sua integralidade Para o autor a razão instrumental utilitária e objetificante deve ser personalizada e personalizar a razão é trazer outras dimensões que não só racionais ou técnicas prevalecentes em nosso sistema educacional Segundo Mounier a educação a partir das diretrizes pedagógicas oriundas do Iluminismo com sua racionalidade técnica visa apenas proliferar e perpetuar este espírito burguês voltado apenas para a visão individualista de riqueza e prestígio social Nessa perspectiva os indivíduos se conduzem para esta busca desenfreada por diplomação e 145 especializações cada vez mais crescente em um mercado oscilante Essa educação reduz as potencialidades da pessoa ao seu aspecto meramente técnico ou como um instrumento de produção adaptado à ordem às normas sociais e morais dominantes com o foco para sua ascensão social ainda que muitas vezes ela não ocorra de fato Essa orientação mercantil das propostas pedagógicas neoliberais não objetiva a promoção e humanização dos homens como pessoas mas como coisas a serem utilizadas e manipuladas com êxito no mercado elite qualificada cuja preocupação se volta apenas para o sucesso profissional sem uma visão crítica das estruturas geradoras das desigualdades sociais e portanto da exclusão PEIXOTO 2009 p 65 Pautada hoje por valores mercadológicos em um contexto econômico em rápida e constante mutação a educação se converte em produto como qualquer outro As pessoas na condição de vendedoras e consumidoras desse produto buscarão uma formação polivalente para atender às suas sempre novas requisições Assim sob a égide do capital as instituições de ensino de modo geral têm se tornado espécies de agências de serviços que buscam atender às demandas do mercado através de uma formação especializada que não humaniza não contribui para o indivíduo constituirse como pessoa como sujeito autônomo As instituições de ensino têm contribuído de fato para o adestramento e reificação do ser humano se contentando em profissionalizar e mal técnicos especialistas que compreendem cada vez mais de um fragmento da realidade que lhes compete profissionalmente mas cada vez menos da visão do todo Pelas razões precedentes Mounier não se limitou a combater o regime capitalista e apontar as insuficiências da racionalidade técnica hoje imperante mas trabalhou igualmente pela viabilidade da construção de novas instituições avessas à mutilação do homem MOIX 1968 p 39 Neste processo que se dá na cidade na comunhão entre as pessoas a obra educacional é fundamental Para uma cidade que quer favorecer a eclosão da pessoa como para uma cidade que quer sujeitar as pessoas a obra essencial começa com o despertar da pessoa desde a infância Também as instituições educativas com as instituições segundo a vida privada são daquelas às quais os personalismos dão a maior importância 70 MOUNIER 1961 a p 70 70 Pour une cité qui veut favoriser léclosion de la personne comme pour une cité qui veut sasservir les personnes loeuvre essentielle commence à léveil de la personne dès lenfance Aussi les institutions éducatives avec les institutions régissant la vie privée sont de celles auxquelles les personnalismes attachent la plus grande importance MOUNIER 1961 a p 70 146 Os sistemas educativos resultantes dos ideais de domínio técnico fizeram dos homens a cristalização de hábitos culturais objetificantes Sob o pretexto de dar segurança e um direcionamento útil às escolhas profissionais a educação técnica nivela as diferenças age de modo impessoal opera por meio de abstrações que domesticam e sequestram as pessoas a começar pela infância Não atentando para as diferenças de personalidades e vocações impõelhes os interesses dos adultos pela impessoalidade do conhecimento Conforme Mounier Podese dizer da nossa educação que ela era em larga escala um massacre dos inocentes desconhecendo a personalidade da criança como tal impondolhe um resumo das perspectivas do adulto as desigualdades sociais forjadas pelos adultos substituindo o discernimento dos caracteres e das vocações pelo formalismo autoritário do saber 2004 p 133 Mounier esclarece que o fundamento da ação educativa deve se apoiar sobre a filosofia das luzes que repousa sobre o princípio da necessidade ainda urgente para o homem de se emancipar o quanto antes e melhor de todo estado de menoridade Contudo adverte que a emancipação preconizada pelos ideais iluministas acabou de fato desviandose em individualismo propriedade e autosatisfação retirando a solidariedade das relações humanas agora mediatizadas pelo poder do dinheiro Idólatra do conforto material e da segurança aperfeiçoados continuamente por novas tecnologias a burguesia a eles tudo subordina inclusive o próprio homem sucumbindo sua dignidade ao reduzilo a um puro instrumento deste sistema capitalista e técnico assujeitado à persecução ou à produção de pretensos bens que sufocam o bem supremo que é ele próprio Por estas razões para Mounier a educação deve se vincular a um novo renascimento a partir de uma revolução personalista Contra os riscos da morte da pessoa que permeiam os sistemas ideológicos oriundos desta racionalidade técnica e suas formas de reprodução por ele organizadas dentre os quais está a educação Mounier propõe uma filosofia prática a serviço do desenvolvimento e libertação da pessoa Nela levase em consideração a relação do homem consigo mesmo com os outros enquanto próximos e não apenas semelhantes com o mundo circundante e com a própria transcendência Suas críticas à educação burguesa visam demonstrar em que e como o personalismo está a serviço do desenvolvimento holístico do homem da sociedade e do mundo atual Sob a ótica de Mounier a educação que pretende se inspirar na dinâmica do personalismo deve se libertar de duas categorias de cadeias primeiro do culto do indivíduo 147 do individualismo que nos seduz em seguida do culto da coletividade que se revela na realidade como o cemitério da pessoa livre e responsável aberta e disponível para o outro O personalismo visa impulsionar a civilização para além dela mesma transcendendo toda forma de autosatisfação e de regozijo a partir de uma visão interpessoal e intercultural na busca da realização de um mundo mais humano Do precedente podemos inferir algumas implicações pedagógicas na proposta de Mounier de tratar a pessoa como sujeito como ser presente reconhecendo que não se pode definila nem classificála uma vez que é inesgotável Por outro lado também reconhecêla e afirmála enquanto outro ser singular e insubstituível impassível de toda forma de reducionismos ou previsões infalíveis como pretendem os ideais de dominação da razão técnica MOUNIER 2004 p 49 Uma educação que tem como preocupação primordial a formação da pessoa livre e consciente não do homem abstrato pode conduzila à resistência contra todo processo de aviltamento e objetificação Ibidem p 83 34 A educação personalista o desenvolvimento da vida interior no seio da vida comunitária Por todas as razões supracitadas na comunidade personalista devese abandonar por completo toda a opulenta cultura e educação burguesas Para Mounier não há negociação possível com processos que promoveram sérios danos à dignidade da pessoa ao primar pelo reinado das coisas e do capital sobre o humano e sobre substanciais relações sociais Não se pode fazer arranjos nesta educação uma vez que ela não é voltada para seres singulares mas concentrase em formar indivíduos a partir de uma média quantitativa em geral padronizadora e niveladora das diferenças Afirma Mounier Nós não refazemos sua educação nós permaneceremos sem dúvidas seres híbridos71 1961 a p 97 A cultura e a educação personalista têm em vista sempre a pessoa na inteireza de todas as estruturas do universo pessoal ou seja na sua tridimensionalidade existencial enquanto ser carnal espiritual e transcendente na dinâmica entre recolhimento e ruptura com o dado enquanto ser de comunicação e de liberdade de relações sociais engajadas e responsáveis para com a natureza e para com a comunidade Mounier reconhece que só existe cultura metafísica e pessoal metafísica por visar acima do homem acima da utilidade e da função social Pessoal por objetivar um enriquecimento interior do sujeito e não um crescimento de seu savoirfaire ou de seu savoirdire MOUNIER 1961 a p 98 71 On ne refait pas son éducation nous resterons sans doutes des êtres hybrides MOUNIER 1961 a p 97 148 Se a educação burguesa com sua razão técnica e objetificante opera por meio do entorpecimento da visão crítica a partir da fragmentação não só da realidade mas também do próprio homem gerando atitudes hostis de competitividade egoísmos dissensões exclusões e indiferenças a educação deve servir para o engajamento e não para suspender o julgamento e a ação MOUNIER 1961 a p 94 A fim de romper com os imperativos dualizantes da razão técnica a educação para Mounier deve se orientar por alguns princípios centrais Um deles é o de que a pessoa é permanência aberta jamais engessada envolta em uma dialética infinita entre sua interiorização e seu esforço de exteriorização estruturada enquanto ser integral cuja inteligência assume as formas das categorias do universo pessoal Deve também considerar que a pessoa não é um ser isolado mas de relação com a comunidade Nesse sentido a educação deve levar em conta por exemplo que a inteligência não é obra solitária mas desenvolvese na comunicação Toda rejeição aos meios propostos pela civilização ou qualquer mudança nas estruturas externas serão consoantes com a altura dos valores diretores das nossas ações MOUNIER 1971 p 336337 Desse modo para Mounier o trabalho de transformação do homem não se dá primeiro de forma externa uma vez que não são as instituições que fazem o homem novo mas deve passar inevitavelmente pela conversão interior pois só um trabalho pessoal do homem sobre ele mesmo no qual ninguém pode substituir ninguém é que poderá promover qualquer mudança MOUNIER 1961 p 177 Por isso Mounier percebe que a revolução personalista não pode ser apenas comunitária mas também pessoal e uma das maiores fontes de formação e transformação da pessoa é a educação Para o personalismo a relação pedagógica dáse na comunidade porque a pessoa é além de um serparasi também um serparaooutro e um sercomooutro Conforme Andreola por ser a pessoa uma exigência ontológica todo autoritarismo lhe é vedado pois que é uma forma de apropriação que transforma o educando em coisa ou objeto quando ele é uma pessoa Enquanto pessoa sua educação deve realizarse numa comunidade cujas relações são de liberdade de intercâmbio de diálogo de doação e de amor ANDREOLA 1990 p 61 já previstas na integralidade do universo do ser pessoal manifestas em sua estrutura Como para a visão personalista e comunitária de Mounier a pessoa é valor básico e mola propulsora do dinamismo social a educação se apresenta como um processo contínuo de personalização Enquanto um educador Mounier se assemelha ao prisioneiro que se liberta da caverna no mito de Platão 1989 Não se contentando apenas com a contemplação solitária da 149 luz da verdade parte para a ação ética política e pedagógica retornando à caverna a fim de despertar os demais que ainda se encontram acorrentados Mounier engajase na causa da transformação do homem a partir de um grito de alerta contra uma civilização em desordem Educar para Mounier conforme Andreola é uma missão não só socrática mas também profética uma função profética de testemunho de guia segundo muitos outros Função sobretudo de diálogo com todos os homens A função socrática é recíproca de ambos os lados há a ação de suscitar de provocar de despertar e a reação de acordar É um educar e educarse no sentido original da palavra educere uma ação maiêutica sempre socrática retirar do outro e de si mesmo a palavra e a verdade não inatas mas descobertas e criadas pelo apelo de fora e pelo desabrochar de dentro É a verdadeira educação que provoca e suscita a existência da pessoa 1990 p 69 Neste sentido a realidade dos interesses ocultos ou explícitos na prática educacional hoje burguesa e elitista com seus ideais técnicos de eficácia e êxito pautados pelo resultado numérico devem ser reavaliados Os pressupostos que a definem e a prática que concretiza esta educação técnica e objetificante se contrapõem e dificultam o acesso da pessoa a uma vida interior promovendo a opressão e a anulação de sua espontaneidade e generosidade MOUNIER 2004 p 4445 Por isso um papel fundamental da educação será trabalhar o caráter do educando a partir novas perspectivas e valores totalmente distintos dos valores burgueses que o despertará para uma real percepção de si dos outros e do mundo hodierno 341 A educação no aprimoramento do caráter e no respeito às singulares diferenças pela não abstração ou impessoalidade técnica Se a perspectiva do domínio técnico uniformiza os homens para planificálos a partir de modelos comuns a visão fenomenológica de Mounier afirma a unicidade e singularidade própria de cada pessoa em particular Nesse sentido o Tratado do Caráter não apresenta uma série de tipos entre os quais a pessoa pode se reconhecer Nessa obra Mounier afirma se interessar por uma tipologia dos carácteres mas reconhece que enquanto os tipos são cristalizações sólidas o caráter não é um fato mas um ato MOUNIER 1971 p 58 Do mesmo modo que o conhecimento e a verdade não são completos também o caráter é flexível não rígido Para Mounier há um dinamismo propulsor que a tudo rege prospectivamente não estaticamente Ainda que o caráter apresente constâncias tratase de um conceito com limites variáveis ainda não consolidados e susceptíveis de transformações e não de um modelo 150 estrito ou fixo Para Mounier o caráter é como o desenho da insuficiência da personalidade nós só somos típicos na medida onde faltamos em sermos plenamente pessoais Para o aprimoramento do caráter Mounier convida a ultrapassar os determinismos do mundo técnico que acabaram por promover uma visão de homem padronizada rígida universal e abstrata logo impessoal como forma de melhor nos aproximarmos dos mistérios da singularidade pessoal sua fonte de enriquecimento interior Para Mounier muitos são os mecanismos de nossa civilização técnica que corroboram em dificultar a compreensão das fórmulas caracterológicas individuais que vão da educação a construções pessoais conscientes mas há complexidades contradições e ambivalências que brotam do inconsciente e escapam ao domínio do sujeito MOUNIER 1971 p 65 A própria palavra caráter encerra uma ambiguidade por designar ao mesmo tempo as condições dadas e mais ou menos impostas mas também e felizmente a força e a potência com que as dominamos Ibidem p 49 Para o autor buscar conhecer o caráter é fundamental pois permite reagir ante ele optar sobre o próprio destino afrontar toda forma de aviltamento oriunda das determinações técnicas e que visam reduzir nossas potencialidades pessoais 1971 p 718 Como a contradição e a ambiguidade são signos da transcendência da existência pessoal em um caráter para Mounier não há signos absolutos Todo modo de ser resulta das relações com o meio e nelas se exprime Nesse sentido não existe caráter do homem isolado fora de seu contexto histórico e social O homem concreto como com justeza afirmou a fenomenologia alemã para Mounier é um euaquiagora 1971 p 6674 Segundo Mounier os engenheiros pesquisadores e pedagogos ainda que tenham consciência do quão complexa é a máquina humana e acreditem na necessidade de se lhe aplicar técnicas individuais para obter dela um adequado rendimento objetivamna como um objeto um material mensurável e utilizável próprio da razão de domínio que os inspira a partir de sua visão técnica e normatizadora Contudo dirá Mounier toda e qualquer fórmula caracterológica isto é fixa qualquer que seja sua penetração e perspicácia sempre verá sua inflexibilidade ameaçada pela imprevisível iniciativa do ser espiritual 1971 p 684 Esses técnicos engenheiros ou pedagogos mesmo que apresentem bons ideais como o de construir uma sociedade harmônica organizada investindo no homem para que este dê a melhor resposta possível no tocante ao seu desenvolvimento individual e sua boa contribuição para o progresso social não se questionam se o homem é feito para esta adaptação ou se essencialmente seu papel mais profundo não seria o de lançarse sempre para além de si mesmo diante da inquietude que lhe é característica e positiva 151 Obstaculizando no homem sua faculdade de transcenderse a racionalidade técnica acaba por se servir dele como um laboratório a ser utilizado com êxito no mercado rendendo lhe bons frutos e perpetuando assim a sua lógica de domínio Conforme Mounier Os engenheiros e os pedagogos os racionalistas e os tecnocratas de boa vontade creem às vezes responder à exigência personalista propondo uma sociedade na qual as massas humanas não sejam tratadas como rebanhos e que proporcionarão em troca a cada indivíduo um ajuste exato a suas condições de vida e a suas disposições particulares mediante o emprego generalizado da eugenia o certificado sanitário a higiene a orientação profissional e o laboratório de psicotécnica Muito fora de nosso pensamento está o subestimar toda a bem aventurança e a ordem que podem trazer estas proveitosas disposições Porém forçoso é comprovar que o tipo do perfeito adaptado musculoso e satisfeito sem inquietude e sem contratempos inopinados com o qual sonham os mais cândidos adeptos da nova educação e da racionalização humana nem sempre se tem mostrado como o melhor habilitado para acometer as mais elevadas tarefas da humanidade A questão prévia A que não podem aludir nem o psicólogo nem o educador consiste em saber se o homem é feito para adaptarse nesse sentido predeterminado e cair a continuação na letargia para ganhar seu equilíbrio e de imediato seu retiro ou se pelo contrário nasceu para viver como um perpétuo inadaptado ou melhor um perpétuo subadaptado obtendo desta subadaptação o movimento para ir sempre mais longe e conservando assim seu porvir repleto de possibilidades72 1971 p 337 342 Uma Educação popular com relevância prática e comunitária Se os ideais técnicos dissociam sujeito e objeto conhecimento e mundo teoria e ação ora priorizando um em detrimento do outro dependendo dos interesses em jogo a fim de impedir a visão e a coesão do todo muitas vezes a partir de uma educação que forma alguns para o exercício de tarefas intelectuais e outros para tarefas manuais a educação personalista de Mounier busca romper com essas dicotomias Partindo do pressuposto de que o homem não é um espetáculo ou objeto de pensamento mas um mistério vivo aqui e agora ser em situação inserido nos acontecimentos históricos a educação personalista aponta a necessidade da integração entre a teoria e a prática social e existencial 72 Los ingenieros y los pedagogos los racionalistas y los tecnócratas de buena voluntad creen a veces responder a la exigencia personalista proponiendo una sociedad en la que las masas humanas no fueran tratadas como rebaños y que proporcionaran em su cambio a cada individuo un ajuste exacto a sus condiciones de vida y a sus disposiciones particulares mediante el empleo generalizado de la eugenesia el certificado sanitário la higiene la orientación professional y el laboratório de psicotecnia Muy alejado de nuestro pensamiento está el subestimar toda la dicha y el orden que pueden aportar estas provechosas disposiciones Pero forzoso es comprobar que el tipo del perfecto adaptado musculoso y satisfecho sin inquietude y sin contratiempos inopinados con el que sueñan los más cándidos adeptos de la nueva educación y de la racionalización humana no siempre se ha mostrado como el mejor pertrechado para acometer las más elevadas tareas de la humanidade La cuestión previa que no pueden eludir ni el psicólogo ni el educador consiste en saber si el hombre está hecho para adaptarse en ese sentido predeterminado y caer a continuación en el letargo para ganhar su equilibrio y de inmediato su retiro o si por el contrario ha nacido para vivir como un perpetuo inadaptado o mejor um perpetuo subadaptado obteniendo de esa subadaptación el movimiento para ir siempre más lejos y conservando así su porvenir repleto de posibilidades MOUNIER 1971 p 337 152 Uma educação personalista tem por missão se transformar em uma teoria da ação a serviço da promoção da pessoa e da humanidade e não limitarse a meras atividades especulativas cristalizadas em disciplinas de ensino em sistemas de reprodução A educação nesse contexto deve elaborar projetos com relevância prática e social levando primordialmente em consideração a promoção da pessoa A aprendizagem deve ocorrer nas relações humanas que são eminentemente contraditórias favorecendo à pessoa a consciência crítica e a capacidade de resistência É preciso relembrar que o personalismo que Mounier sempre recusou instituir como doutrina é incompatível com a prescrição e imposição de modo unilateral e definitivo de um sistema educativo pelo risco de reduzir a parte do imprevisível reconhecido como humano Pelo contrário a educação personalista colocase contra esta ditadura burguesa mascarada individualista e técnica que promete a liberdade mas lhe nega os efeitos O objetivo da educação personalista não é fazer fabricar em série seres comportados conformados e maleáveis pelas diversas técnicas oriundas dos poderes culturais religiosos econômicos ou políticos como afirma o autor bons patriotas ou pequenos fascistas ou pequenos comunistas ou pequenos mundanos73 Tampouco a educação para Mounier tem o objetivo de formar a criança para adaptarse ao preenchimento de uma função no sistema social Ela não diz respeito nem ao cidadão nem à atividade nem à personagem social74 A educação tem a missão de despertar pessoas capazes de viver e de se engajar como pessoas75 MOUNIER 1961 a p 71 Questiona o autor Por quê se educa a criança Esta pergunta depende de outra qual é o fim dessa educação Este não consiste em fazer mas sim em despertar pessoas Por definição uma pessoa suscitase por apelos não se fabrica domesticando A educação não pode ter como fim moldar a criança ao conformismo de um meio familiar social ou estatal nem se restringirá a adaptála à função ou papel que lhe caberá desempenhar quando adulto A transcendência da pessoa implica que a pessoa não pertença a mais ninguém senão a ela própria a criança é sujeito não é nem RES societatis nem RES familiae nem RES ecclesiae No entanto não é sujeito puro isolado Inserida em coletividade formase nelas e por elas MOUNIER 2004 p 133 Conforme Peixoto a função da educação para Mounier é alertar as pessoas para a gravidade da crise da civilização burguesa ocidental que transformou a razão numa razão utilitarista Seu objetivo não é formar o homem no sentido de fazêlo mas é um apelo ao 73 de bons patriotes ou de petits fascistes ou de petits communistes ou de petits mondains MOUNIER 1961 a p 71 74 Léducation ne regarde essentiellement ni au citoyen ni au métier ni au personnage social Ibidem 75 Elle a mission déveiller des personnes capables de vivre et de sengager comme personnes Ibidem 153 despertar da nossa alienação e indiferença a partir de uma tomada de consciência e de uma atitude de engajamento e afrontamento no combate a estas estruturas Disto resulta o chamado para a necessidade de se refazer a Renascença ou seja recolocar o homem como pessoa e não como indivíduo como centro de todas as estruturas políticas econômicas e sociais Esse despertar significa desenvolver nos seres humanos submetidos ao processo educativo enquanto contingência histórica em permanente formação e devir a consciência do respeito e da valorização de si e do outro como pessoa a partir da singularidade de toda dimensão pessoal PEIXOTO 2009 p 6974 Mounier se opõe ao totalitarismo dos sistemas educativos e da escola que em lugar de preparar progressivamente a pessoa para uso de sua liberdade e responsabilidade a esteriliza no início dobrando a criança ao morno hábito de pensar por delegação de agir por ordenamento e de não ter outra ambição que de ser enquadrado tranquilo e considerado em um mundo satisfeito MOUNIER 1961 a p 71 A educação personalista vem se colocar contra a opressão de uma educação autoritária e domesticadora do tipo bancária FREIRE 1981 e a serviço da alienação Ela se opõe à assimilação mecânica da educação neoliberal destituída de liberdade e preocupação para com o educando como pessoa Mounier propõe uma educação autêntica e humanizadora em prol da liberdade ontológica das pessoas a fim de lhes desenvolver elevar verdadeiramente Enquanto a educação técnica e mecanicista ao negar a rica experiência do diálogo promove indivíduos solitários conforme Peixoto negandolhes a própria essencialidade do homem a condição de ser para a comunicação na educação personalista a aprendizagem se volta para uma liberdade situada no contexto da relação e da comunicação pedagógica É numa relação de alteridade libertadora em que o outro é pessoa e não objeto que a educação assume uma dimensão de humanização PEIXOTO 2009 p 81 Pela transcendência que lhe é inerente a pessoa só pertence a si mesma enquanto sujeito não como objeto ou coisa Nesse sentido a educação personalista busca conjugar no melhor e ao mesmo tempo a liberdade das pessoas e sua solidariedade na humanidade Os valores nos quais vivem os homens e as sociedades não são coisas em si realidades impessoais atemporais como as coloca o domínio técnico mas realidades subjetivas intersubjetivas que Mounier chama transpessoais pois que ligadas às pessoas vivas em suas relações recíprocas Elas visam elevar os indivíduos acima doos seus isolamentos além das suas particularidades para os inscrever em um engajamento mais global comunitário universal 154 Contra esta educação do tipo doutrinária a educação deve ser popular segundo o personalismo de Mounier Nela valorizase a cultura local contra a universalização de valores MOUNIER 1961 a p 97 É necessário que haja um projeto educacional para cada realidade presente na vida cotidiana das pessoas No entendimento de Moix a educação personalista ainda que dê linhas diretivas de conduta estas devem ser sempre retomadas e readaptadas A vida pessoal a vida privada e a vida pública precisam ser transfiguradas MOIX 1968 p 183 Neste sentido a verdadeira educação não poderá ser a ação exterior de um sistema de valores ainda que nobre sobre o sujeito ou uma violência do grupo sobre a pessoa para conformar sua mente sua linguagem e seu comportamento às exigências dos adultos dominantes ou dos seus ideais de domínio A educação personalista buscará proporcionar uma autopromoção da pessoa apoiada sobre uma Inter promoção de pessoas Seguindo uma linha de liberdade que se dá na abertura ao imprevisível buscará conjugar os fios visíveis e invisíveis que tecem a teia misteriosa e singular do ser humano 343 O processo do conhecimento e o lugar da formação da pessoa na educação personalista Para Mounier a inteligência é inseparável do homem carnal Ainda que orientada para o conhecimento desinteressado do universo se aplica a resolver mediante tal compreensão as situações inusitadas ou imprevistas que nem o instinto nem os automatismos adquiridos lhe permitem solucionar MOUNIER 1971 p 599 A inteligência se desenvolve na comunicação Assim como as demais atividades pessoais a inteligência não se define nem se exerce no isolamento A atividade social é elemento constitutivo da operação intelectual Todo pensamento que se embriaga com sua própria suficiência e recusa a confrontação corre o risco de cair em desvarios Para Mounier egocentrismo é egolatria mesmo que intelectual Bloqueia a vida pessoal sobre uma imagem imóvel do eu privada de contínua retificação quanto às suas perspectivas e com referência aos valores superiores o que se opera no contato com os outros MOUNIER 1971 p 659691 Por outro lado o conhecimento também é vivido sentido e não apenas pensado A verdade não constitui para o pensador subjetivo apenas um deleite dos olhos mas também uma alegria do coração Ele só consegue ouvila quando ela palpita em sua alma vivente Ibidem p 661 Mounier recorda Sartre para quem reduzir o conhecimento à pura racionalidade é rebaixar a consciência pois enquanto pura representação o conhecimento é 155 apenas uma das formas possíveis da consciência Conhecer é explodir em direção a libertarse da húmida intimidade gástrica para marchar além mais além de si rumo ao que não é um mesmo além 76 Sartre Nouvelle revue française 1o Jan 1939 apud MOUNIER 1971 p 313 No processo do conhecimento Mounier entende que o imaginário também exerce papel importante Para Sartre ele representa o sentido implícito do real Sartre Limaginaire Gallimard 1940 apud Mounier 1971 p 379 Assim o imaginário não retrai ou isola mas restitui a consciência ao estado de ingenuidade profética a conduz à realidade total por caminhos mais fecundos que os da percepção ou do conceito solitário Fecha os olhos e verás Joubert A consciência que unicamente se volta para fora é uma consciência cega e limitada Ao retroceder momentaneamente aquém dos conhecimentos dispersos dos sentidos e do intelecto o eu não se desprende da essência do mundo nem se erradica de sua própria carne muito pelo contrário se concentra sobre si mesmo para intuir e compreender ao mesmo tempo que para ser e fazer com a íntegra plenitude de sua pessoa77 MOUNIER 1971 p 375 Por essas razões a pedagogia personalista será tanto formal quanto informal promovendo um convite à comunicação não só dos homens entre si mas também das diferentes áreas do conhecimento Para Mounier o problema da educação não se reduz ao problema da escola esta é apenas um instrumento educador entre outros não o principal MOUNIER 2004 p 133 Como medida de precaução para melhor proteger a criança é preciso fazer concorrer em sua educação elementos diversos família escola corpo educativo Estado por meio de um certo equilíbrio de poderes a fim de evitar qualquer forma de abuso ou tirania MOUNIER 1961 a p 8889 A criança deve ser educada pelas vias da experiência pessoal cujo ensino será progressivamente interiorizado pelo sujeito que o recebe onde a família deverá suplementar o corpo educativo Ibidem p 74 Para Mounier o que o homem recebe como formação a partir do meio exercerá forte influência sobre ele mas não determinará o que ele será pois ele também sofrerá a influência das suas próprias escolhas Essa posição de Mounier caracteriza o seu otimismo diante dos 76 Conocer es estallarse hacia desasirse de la húmeda intimidad gástrica para marcharse allá más allá de sí hacia lo que no es uno mismo allá cerca del árbol y con todo fuera de él MOUNIER 1971 p 313 77 Cerrad los ojos y veréis Joubert La conciencia que únicamente se vuelca hacia afuera es una conciencia ciega y limitada Al replegarse momentáneamente aquende los conocimientos desperdigados de los sentidos y el intelecto el yo no se desprende de la esencia del mundo ni se erradica de su propia carne muy por el contrario se concentra sobre sí mismo para intuir y compreender a la vez que para ser y obrar con la íntegra plenitud de su persona Ibidem p 375 156 dispositivos técnicos cujo domínio para o autor não é total Se por um lado a pessoa faz parte do meio por outro pode se sobrepor a ele a partir de sua singularidade pessoal pois ela conquista o poder de constranger o meio para seus próprios fins Nesse sentido a técnica pode retomar seu valor original enquanto um instrumento a ser utilizado pelo homem para promover seu progresso e aperfeiçoamento e não para subjugálo às suas forças impessoais irrefreáveis Assim para o autor não é o ambiente que é formativo ainda que seja vivificante mas sim as situações vividas pelo homem No fim das contas ele será formado pelas próprias experiências Por isso dirá O meio sugere propõe ocasiona ou empregando um termo mais ativo provoca a atividade modelante da pessoa por si mesmo não dá forma ao mundo humano As influências causais que dele partem requerem para constituir um meio humano chegar a ser experiências vividas pelo homem únicas criadoras do ambiente É este rodeio que transforma a pertença em encarnação o que faz de todo âmbito humano desde os humores e o sangue até o céu estrelado por sobre nossas cabeças a carne palpitante de nossa vida78 MOUNIER 1971 p 73 Uma pertença ao meio preponderante sobre o domínio do mesmo reflete a impessoalidade instalada nas atitudes psíquicas MOUNIER 1971 p 75 Esta é a lógica a partir da qual opera os interesses técnicos cujo objetivo é a padronização dos indivíduos a fim de melhor lhes manter sob controle e potencializar seus ideais de domínio e êxito Mas enquanto ser de escolhas a pessoa tem o poder e o dever de sobrepujar o dado transcender as situações aviltantes e reconstruir sua história com outras bases mais humanas que materiais mais ricas que lucrativas e mais vivificantes que calculadoras 344 A perspectiva do engajamento na educação para o combate Como Mounier tem como objetivo a formação de fortes guerreiros preparados para vencer todo conformismo comodismo apego ao conforto e às ideologias nocivas ao homem e às relações sociais do mundo técnico burguês a educação para as crianças não deve se dar para a vida fácil Elas devem ser preparadas para a vida de sofrimento para o exercício de 78 El medio sugiere propone ocasiona o empleando un término más activo provoca la actividad modelante de la persona por sí mismo no da forma al mundo humano Las influencias causales que de él parten requieren para constituir um medio humano llegar a ser experiencias vividas por el hombre únicas creadoras de ambiente Es este rodeo que transforma la pertenencia en encarnación el que hace de todo ámbito humano desde los humores y la sangre hasta el cielo estrellado por sobre nuestras cabezas la carne palpitante de nuestra vida MOUNIER 1971 p 73 157 uma vocação responsável que não se limita à satisfação dos seus desejos individuais e egoístas mas leva em consideração os outros e a própria comunidade No plano do conhecimento dirá Mounier o sofrimento e a aflição são ingredientes essenciais e também reveladores da vida pessoal Eles nos voltam para a interioridade enquanto que nossos sentidos ou mesmo a razão tendem a nos lançar para fora de nós mesmos Como afirma o autor a dor é inseparável das opções exigentes em matérias transcendentais só conhecemos o que de algum modo padecemos79 MOUNIER 1971 p 559 Educar para as adversidades da vida é uma das maiores fontes de enriquecimento do homem que leva após as provas a estágios mais elevados de aprendizagem e crescimento Mounier apresenta as razões que fundamentam essa perspectiva pedagógica para as crianças Há que ensinálos docemente que ninguém deve evitar os golpes e as feridas e que somente quando os aceitamos chegamos a ser dignos daquilo que eles querem de nós Há que ensinálos a respeitar não nossa vontade senão conosco as chamadas desconhecidas que nos vêm da vida ou de Deus eu não sei como dizes tu que nos enriquecerão mais que todos nossos pequenos cálculos e todas nossas pequenas previsões80 MOUNIER 1988 p 696 Ele adverte que sempre temos uma tendência a projetar nossas dificuldades em nossos filhos e a querer poupálos dos sofrimentos pelos quais passamos Todavia nos aconselha a triunfar sobre as ansiedades e preocupações excessivas quanto ao amanhã Recordanos que a vida é uma aventura aberta e exposta contra todos os cálculos e previsões que possamos fazer O futuro é inevitável e imprevisível logo todo nosso empenho será apenas uma tentativa O fundamental na educação da criança é o esforço para o desenvolvimento da sua força interior para que ela mesma possa lidar com as adversidades que porventura venham a sobrevir Nenhum cálculo nenhuma intervenção como os advindos do domínio técnico podem predeterminar o futuro que permanece um mistério Nosso dever é fortalecer a criança interiormente para que se desenvolva bem em qualquer circunstância MOUNIER 1988 p 931 79 el dolor es inseparable de las opciones exigentes en materias transcendentales Tanto que sólo conocemos lo que de algún modo padecemos MOUNIER 1971 p 559 80 Hay que enseñarles dulcemente que nadie debe evitar los golpes y las heridas y que solamente cuando los aceptamos llegamos a ser dignos de aquello que ellos quieren de nosotros Hay que enseñarles a respetar no nuestra voluntad sino con nosotros las llamadas desconocidas que nos vienen de la vida o de Dios yo no sé cómo dices tú que nos enriquecerán más que todos nuestros pequeños cálculos y todas nuestras pequeñas previsiones MOUNIER 1988 p 696 158 Por essas razões diante do que sabemos e do que ignoramos entre as clarezas e o mistério quanto ao conhecimento no que tange à formação de uma pessoa devemos manter o equilíbrio e o diálogo entre duas atitudes vitais a de lançarmos expectativas mas conservando contudo também a desenvoltura sermos cautelosos todavia também espontâneos nos colocando como disponíveis e partícipes de seu desenvolvimento Com relação a esse propósito Mounier nos recorda o ensinamento de Rousseau no Emílio tudo o que podemos fazer através dos cuidados é aproximarmonos mais ou menos da meta porém será preciso ter boa estrela para alcançála81 MOUNIER 1971 p 68 O que se deve construir como valor é a abertura para o outro a sinceridade e a lealdade dentro da comunidade A educação personalista não formará o homem para o conforto mas para o afrontamento o engajamento e a transformação O engajamento pressupõe estratégias para a ação bem como atitudes de ruptura e protesto O engajamento permitirá recuperar a dignidade do homem e despertar nele a pessoa bem como a percepção e valoração do outro enquanto outro Ele é um grito de alerta um chamamento à conversão ao réveil Um projeto social transformador pessoal e comunitário deve se voltar para a conscientização através da conversão integral e contínua da pessoa Na educação personalista interioridade e exterioridade dialogam O recolhimento permite uma reflexão sobre a ação pedagógica que não é fuga mas conquista ativa que gera a intuição de projetos coletivos Nesse sentido pensamento e ação razão e carne andam juntos já que o pensamento autêntico é intermediário ativo entre duas ações MOUNIER 1971 p 676 Nesse contexto é importante formar o educando para o combate entretanto necessário se faz manter um certo equilíbrio instruindoo também para a prudência e moderação O ideal é adotar políticas flexíveis que lhe permitam cultivar a paz enquanto se lhe ensina as virtudes da guerra As precedentes reflexões assinalam um itinerário para o educador como ele próprio afirma Se se rejeita com aspereza ao instinto combativo se o exaspera e se o torna infecundo esteriliza ao homem Deve adotarse com o acometimento e em geral com todo o grupo das tendências afirmativas uma política flexível que se resume em três proporções normalização dentro dos limites variáveis traçados pelos temperamentos e as vocações integração no conjunto da atividade de maneira que se liquidem em tom vital sem estalar uma explosão destruidora e sublimação pelas diversas vias do desporto dos concursos do mando do jogo e do heroísmo82 MOUNIER 1971 p 558 81 pero es preciso tener buena estrella para alcanzarla MOUNIER 1971 p 68 82 Si rechaza con aspereza al instinto combativo lo exaspera y si lo vuelve infecundo esteriliza al hombre Debe adoptarse con la acometividad y em general con todo el grupo de las tendencias afirmativas una política 159 345 A vocação pessoal face à especialização técnica Assim como o Estado ou a ciência experimental e a técnica não são neutros a educação personalista que diz respeito à formação integral da pessoa enquanto unidade inseparável de corpo e espírito pensamento e ação também não pode ser neutra Uma escola que se atesta neutra o que de fato não existe dirá Mounier deixa difundir no ensino qualquer doutrina feita ao espírito do dia Se hoje se difunde a moral burguesa com seus valores técnicos de classe ou de dinheiro seu nacionalismo sua concepção de trabalho e de ordem isso se deve à pretensa impessoalidade do conhecimento científico ou mesmo dos interesses dominantes que se ocultam por trás da ideia de liberdade contratual ou da vontade geral MOUNIER 1961 a p 7172 A impessoalidade da educação burguesa com sua racionalidade técnica opera por meio da expropriação não só das singularidades pessoais como também do compromisso para com a verdade do conhecimento Contrariamente a essa concepção liberal e ideológica que usa a educação para entorpecer as mentes e lhes retirar o espírito crítico a educação personalista é intervencionista no objetivo constante do desenvolvimento da pessoa Ibidem p8889 Na intervenção da educação personalista em parte as ciências exatas e as técnicas terão um papel a desempenhar mas a crença nestas ciências não é absoluta pois para Mounier o papel primordial da escola desde o início é ensinar a viver e não a acumular conhecimentos exatos e técnicos dum savoirfaire Não se ensina a viver a partir de instruções impessoais ou por verdades codificadas advindas do pressuposto racionalista sem a sanção da experiência pessoal que as integra no sujeito que as recebe em uma vida guiada por valores humanos em um mundo constituído de pessoas MOUNIER 1961 a p 41 No mundo dos determinismos técnicos como no das ideias claras a pessoa não tem lugar o que enfraquece sua defesa contra as ingressões desses organismos Essa educação burguesa ignora propositalmente o fim último da educação que é o engajamento vivo da pessoa bem como os meios apropriados para se atingir essa finalidade Ela se limita aos fins práticos do organismo social a preparação técnica do executor e a formação cívica do cidadão MOUNIER 1961 a p 72 flexible que se resume em tres proposiciones normalización dentro de los limites variables trazados por los temperamentos y las vocaciones integración en el conjunto de la actividad de manera que se liquiden en tono vital sin estallar en explosión destructora y sublimación por las diversas vías del deporte de los concursos del mando del juego o del heroísmo MOUNIER 1971 p 558 160 Assim como a educação personalista não é neutra e não se limita a uma formação técnica tampouco será para a preparação para o exercício de uma profissão ou função pois para Mounier a pessoa se constitui sempre além das funções que executa e sempre lutando contra as limitações delas advindas MOUNIER 1961 a p 7182 Uma educação técnica ligada ao utilitarismo padronizadora e universalizante jamais obterá êxito pois a atividade deve ligarse aos desejos e necessidades individuais A regra para um trabalho eficaz é a de que a pessoa possa querer tudo o que faz ainda que não faça somente o que queira Nesse sentido humanizar a pessoa exige que o trabalho escolar ou industrial estabeleça vínculos íntimos entre a atividade e os desejos e necessidades individuais MOUNIER 1971 p 430 Nesse sentido buscarseá desenvolver no educando sua singular vocação Enquanto uma nova pessoa a criança é uma promessa exigente O papel da educação personalista será o de romper com as segregações egoístas e fechadas próprias das sociedades burguesas através do desenvolvimento em meio à ternura e à entrega da sua vocação pessoal MOUNIER 1988 p 695 Porém essa singular vocação não pode jamais ser confundida com a distinção hierárquica de classes ou de ocupações presentes nas sociedades capitalistas nem com o conformado cumprimento de uma função nesta civilização técnica A vocação é uma descoberta da própria pessoa reflete seu ser logo também não diz respeito à escolha de uma especialidade técnica que venha a trazer ao indivíduo uma posição rentável ou prestígio no mercado de trabalho tornandoo apenas mais um número na contabilidade geral dos ideais de domínio e progresso técnico Essa vocação é a singular aptidão da pessoa que a distingue das demais a faz realizada e colaboradora na comunidade livre de pessoas engajadas e responsáveis O temperamento original da pessoa é que participa na eleição das escolhas ocupacionais o que nenhum exame de aptidão técnica é capaz de avaliar MOUNIER 1971 p 86 Contudo essa vocação será facilitada pelo processo educacional que irá armar a pessoa por vezes desarmála para que ela possa encontrar o seu próprio talento e a sua missão no mundo das ocupações de trabalho MOUNIER 1961 a p 50 É a singularidade de sua vocação que faz da pessoa um ser independente que adere livremente a uma hierarquia de valores e se engaja com responsabilidade através de uma contínua conversão Ibidem p 46 No desenvolvimento das suas vocações a educação deve ajudar as crianças a libertaremse do apego e da dependência dos seus pais e tornaremse responsáveis pelo próprio destino Como a educação é uma aprendizagem da liberdade que não é um dado mas 161 uma conquista a família exercerá apenas a função tutorial da vocação da criança mas jamais lhe determinará as escolhas MOUNIER 1961 a p 88 Seu compromisso é formar a pessoa como pessoa levando em consideração todos os aspectos da estrutura do universo pessoal Se as aptidões determinam a capacidade intelectiva da pessoa o caráter por sua vez poderá suscitálas ou inibilas Percebe Mounier que certas destrezas como habilidades de ordem técnica ou capacidade especializada em uma atividade específica não são dados inatos ou independentes do resto da personalidade mas podem ser suscitados ou inibidos a partir de impressões afetivas de adestramento na infância às quais a criança dará sua assinatura ou repudiará inconscientemente como resultado de episódios incidentais que influirão em toda sua formação futura Todavia diante de qualquer fracasso quanto a uma mestria necessária e influente em sua formação futura um professor afetuoso tem o poder de restaurar danos cognitivos anteriormente infligidos ao educando Assim o afeto é primordial na relação ensinoaprendizagem Diz Mounier O apego a um professor pode pelo contrário promover reeducações em casos onde todas as tentativas anteriores haviam resultado infrutuosas83 1971 p 599 Contudo ele reconhece a importância das especializações para o fortalecimento e consolidação dos traços particulares da vocação pessoal no entanto também acredita que uma excessiva diferenciação bloqueia as virtualidades da pessoa e a reduz à sua função técnica ou social restringindolhe a sua liberdade de porvir MOUNIER 1971 p 561 No quesito vocação a despeito de todos os elementos envolvidos no seu desenvolvimento será a pessoa a grande responsável pela escolha de seu destino O regime jurídico social e econômico deverá exercer o papel de lhe assegurar isolamento proteção e lazer que lhe permitirão reconhecer em plena liberdade espiritual essa vocação Seu papel será o de ajudar a criança sem coação a partir de uma educação sugestiva a sair dos conformismos e dos erros da má orientação de lhe fornecer os meios materiais necessários ao desenvolvimento desta vocação MOUNIER 1961 b p 41 346 O papel da família do Estado da escola e do corpo educativo na educação personalista A personalização da pessoa e do mundo não caberá apenas à educação Ela poderá também ser possibilitada por ações políticas Transformações políticas são imprescindíveis para a consecução do projeto pedagógico de Mounier ainda que a pessoa prevaleça como sua 83 El apego a un profesor puede por el contrario promover reeducaciones en casos donde todas las tentativas anteriores habían resultado infructuosas MOUNIER 1971 p 599 162 finalidade essencial e primordial Não é possível abordar suas propostas educativas sem considerar seus ideais políticos e econômicos Para afastar a opressão do aparelho social econômico científico e técnico contra a pessoa uma vez que as sociedades são na maioria uma multiplicação das desordens do indivíduo o autor buscou definir um Estado pluralista sobre o plano político e uma economia descentralizada que prioriza a pessoa sobre o plano econômico a fim de assegurar com a criação de organismos comunitários o desenvolvimento e a liberdade necessários à sua salvaguarda MOUNIER 1961 b p 66 O projeto político de Mounier visa à abolição das classes sociais fundadas a partir da divisão social do trabalho 2004 p 122 A economia personalista é uma economia descentralizada em prol da pessoa por ser animada pelo primado do trabalho sobre o capital e do serviço sobre o lucro O trabalho não é o valor primeiro do homem para Mounier porque ele não é toda sua atividade nem sua atividade essencial A vida da inteligência e do amor lhe é superior em dignidade espiritual A primazia do serviço prestado sobre o lucro na produção a produção sobre o consumo e o consumo sobre uma ética das necessidades humanas recolocada na perspectiva total da pessoa caracterizam a economia personalista MOUNIER 1961 a p 111123 Essa economia é totalmente contra toda forma de fecundidade do dinheiro Não se trata de suprimir o capital mas de restabelecer uma relação de valor essencial o capital é apenas material econômico Um material nem governa nem prolifera O trabalho é o único agente propriamente pessoal e fecundo da atividade econômica o dinheiro não pode ser ganho que em ligação pessoal com um trabalho 84 MOUNIER 1961 a p 115 Se o liberalismo é fundado sobre a ideia de satisfação de necessidades mais artificialmente criadas que reais a perspectiva personalista reclama um consumo voltado para a necessidade vital estrita Ela enaltece um certo desapego um gosto pela simplicidade um estado de disponibilidade e de leveza MOUNIER 1961 a p 112113 Em Revolução personalista e comunitária Mounier aborda alguns princípios básicos que visam proteger a pessoa de toda objetificação e redução das suas potencialidades e reafirmála enquanto um absoluto Dentre eles encontrase que a pessoa não é um meio e 84 Il ne sagit pas on le voit de supprimer le capital mais de rétablir un rapport de valeur essentiel le capital nest que du matériau économique Um matériau ni ne gouverne ni ne prolifie Le travail est lunique agent proprement personnel et fécond de lactivité économique largent ne peut être gagné quen liaison personnelle avec um travail MOUNIER 1961 a p 115 163 portanto não é um objeto intercambiável Não há nem espírito evento valor ou destino impessoal Para Mounier os poderes devem definir e proteger os direitos fundamentais que garantam a existência pessoal dentre eles está a liberdade não só de movimento palavra ou associação mas também de educação MOUNIER 2004 p 73 Para assegurar essas medidas protetivas uma transformação política e econômica se faz necessária Todavia a escola não está apenas nas mãos do Estado que não detém o monopólio sobre a educação mas deve ser pluralista sempre lutando contra o arbitrário a partir de um estatuto flexível em colaboração com o corpo de professores e a família do educando A família subordinase primeiramente ao bem da criança só secundariamente ao bem comum da cidade O papel do Estado será o de cobrar da escola a devolução dos investimentos bem como de proporcionar uma educação não dogmática exercendo um poder de intervenção até sobre as instituições privadas MOUNIER 1961 a p 7476 O conteúdo a ser ministrado será fruto da elaboração de certos manuais comuns redigidos em colaboração e com imparcialidade por membros das diversas escolas Para Mounier toda escola entraria nesse movimento de espírito em prol da promoção de profundas transformações pedagógicas a partir do primado da educação pessoal sobre a erudição e a preparação para o métier ou a educação de classe MOUNIER 1961 a p 7677 Em suma o objetivo da educação consiste em introduzir no educando lucidez ordem criticismo e metas MOUNIER 1971 p 578 Entretanto não serão os tecnocratas que libertarão as crianças de todo um processo educativo aviltante que tem como finalidade última objetificálas para sua utilização técnica no mercado Tal Revolução contará com dois grupos segundo Mounier de um lado contra o intelectual burguês serão convocados para o engajamento os intelectuais orgânicos burgueses comprometidos com a transformação social e que representam uma autodestruição do velho intelectual a serviço da classe dominante e de outro o grupo dos operários camponeses o povo que guardou o senso direto do homem a salvo da deformação política uma classe trabalhadora que possui maturidade política audácia de visões e capacidade de sacrifício ANDREOLA 1985 p 123 Escreve Mounier que a capacidade política das massas operárias é insuficiente e explica em larga escala o nascimento dos regimes ditatoriais ou de domínio técnico Como a verdadeira revolução só se faz através de uma pedagogia é preciso educar o povo MOUNIER 1988 p184 Praga fev 1948 164 347 Os infortúnios do adestramento da educação autoritária Mounier se posiciona contra toda forma de adestramento em matéria de educação Produz inibições intencionais no adulto tolhendolhe a motricidade original produzindo seres forçados sem graça e desiludidos paralisados no comportamento sem criatividade ou espontaneidade MOUNIER 1971 p 189 No mesmo sentido produzir por obra de intimidação nos sistemas educativos demasiado autoritários repreensões brutais além de tolher a expressão das pulsões naturais desloca a totalidade do edifício psíquico Um de seus principais efeitos dirá Mounier é o de retrair a libido sobre si mesma e divorciar o sujeito das relações normais de sua vida envenenandoo com sentimentos parasitários de inferioridade de humilhação e de submissão Ibidem p 338 339 Um outro nefasto reflexo que a educação autoritária pode produzir são inabilidades intelectuais Por isso muitas vezes o que chamamos de incompetência nem sempre constitui um signo de inaptidão congênita mas é fruto dos exageros de autoridade em educação e no ensino que formam desde a infância seres inibidos conformistas rotineiros e convencionais despojados de todas as suas faculdades de iniciativa MOUNIER 1971 p 626 Para Mounier certos erros pedagógicos explicam em parte algumas inibições imperícias torpezas e retraimentos da inteligência ainda que a complexidade do real nos subsuma com frequência em cruéis incertezas Ibidem p 676 Os ideais de domínio da racionalidade técnica também operam por meio do adestramento Atrás de uma aparência de liberdade e respeito às individualidades acaba promovendo uma uniformização e uma violência velada que impede o real desenvolvimento da criança inibindo sua iniciativa criatividade e espontaneidade até adaptála a um dos modelos comuns e tornála condescendente com seus ideais de domínio a ponto de fazêla desejar exatamente o que a sociedade espera dela ou seja tornarse um indivíduo enquadrado em seus esquemas já prémoldados especialista passivo bem sucedido que vive uma vida confortável satisfeita e sem grandes perspectivas para além das puramente materiais ou de prestígio social O mundo do man do qual falou Heidegger da impessoalidade e da indiferença Como para Mounier o conhecimento chega à criança através do afeto podemos lhe bloquear o acesso caso ela venha a se sentir rejeitada pelo desprezo pela maldade pela opressão ou pela indiferença habitual Ela tenderá inconscientemente a construir uma vida retraída distante da própria realidade que lhe foi de algum modo recusada MOUNIER 1971 p 338 165 Lembra Mounier que no curso da história o que ainda é bastante frequente não foram poucos na propaganda ou no ensino que pela intensidade do prazer que têm em dominar acabaram transformando o serviço da verdade em um governo temporal dos espíritos Ibidem p 667 Essa atitude acabou proliferando o número de dominadores porque em matéria de educação mais que em qualquer outro terreno o semelhante suscita ao semelhante MOUNIER 1971 p 536 Como o autoritarismo na educação bloqueia o acolhimento intelectual do educando uma educação personalista deve ser criadora romper com o autoritarismo e formalismo favorecer a acolhida intelectual e a amplitude da reflexão através de um meio tolerante e progressista MOUNIER 1971 p 106 Para se atingir esse propósito uma educação dialógica é fundamental O professor se compromete a passar o conhecimento mas não faz de si o dono do saber e da verdade mas abre espaço para o diálogo Busca a fundamentação dos saberes o desenvolvimento da pessoa O aluno em contrapartida deve dar conta do conhecimento a ser trabalhado Entretanto o favorecimento dessa acolhida intelectual também exige disciplina Mounier propõe o equilíbrio entre a autoridade e a flexibilidade Ibidem p 96 Mounier propõe um método à maneira socrática e rousseauniana não ensinar uma verdade à criança mas mostrarlhe como se deve proceder para descobrila Assim como Sócrates através da maiêutica levava seus interlocutores à descoberta da verdade também o educador do Emílio propõe o constante estímulo desta iniciativa mental que Mounier aborda como superior Lembra Mounier que o propósito de Rousseau não é o de inculcar no educando toda a substância da cultura mas priorizar a boa assimilação do conteúdo adquirido a ponto de lhe permitir converterse em uma espécie de novo autor MOUNIER 1971 p 658 Por tais razões Mounier afirma nunca ser demasiado exortar os educadores para que não protejam por demais as crianças de suas iniciativas para a ação pois elas aprenderão através das suas próprias experiências boas ou ruins tanto pelos êxitos como pelos fracassos Para o autor a iniciativa se aprende pela iniciativa e as consequências felizes ou desafortunadas das tentativas da criança têm mais força pedagógica que os conselhos admoestações e advertências que se lhe possam dar 1971 p 413 166 348 Educação física e intelectual A contra face da dualidade na educação dualismo cognitivo Como na filosofia de Mounier corpo e alma teoria e prática são inseparáveis a perspectiva personalista dá a ambos igual atenção A pessoa não é só intelecto mas também corpo corpo e alma compartilham nela uma existência indistinta O Tratado do caráter evoca que o espiritual em si é carnal Mounier mostrou o homem enraizado envolvido por todos os lados com o todo circundante influenciado pelo meio pelo clima pela herança histórica pela educação pela família pela sua história inicial particular e por todas as relações sociais Para Mounier a pessoa é um ser situado em um lugar e em um tempo que em parte a condicionam pois é locatária de um universo já constituído antes mesmo de sua aparição Esprit no 103 ago1941 MOIX 1968 p 135 Se somos resultados do processo histórico levamos no rastro de nossos passos todas as aquisições que nos legou a coletividade MOUNIER 1971 p 340 Contudo a pessoa tem sua livre autodeterminação que não a limita a nenhum condicionamento mas permite sua eclosão para outras formas de existência mais conformes a seu ser pessoal Essa ideia advinda de nossa sociedade herdeira dessa razão tecnicista que faz separação entre alma e corpo é errônea assim como é errado superestimar ou subestimar um em detrimento do outro o que só uma cultura da consciência do próprio corpo análoga ao cultivo do espírito poderá evitar MOUNIER 1971 p 112 Não há hierarquia entre alma e corpo Pouco importa que o corpo preceda ou siga O que interessa é com que disposições o faz Posso ser seu escravo ou seu amo seu tirano ou seu educador um educador que como todo verdadeiro mentor é ao mesmo tempo discípulo e educado Meu corpo é meu para que eu seja por meio dele 85 MOUNIER 1971 p 113 Diferentemente da educação promovida pela racionalidade técnica que visa nivelar as diferenças Mounier enfatiza que uma educação personalista deve considerálas e respeitá las enquanto tais Como as questões corporais influenciam fortemente no comportamento do educando e pelo fato de a alma do educando estar amalgamada com o seu corpo para Mounier as diferenças físicas e orgânicas devem ser tratadas como diferenças estando o educador ligado a elas Com a identificação das diferenças entre idades e sexos às vezes até 85 Poco importa que el cuerpo preceda o siga Lo que interesa es con qué disposiciones lo hace Puedo ser su esclavo o su amo su tirano o su educador un educador que como todo verdadero mentor es al mismo tempo discípulo y educado Mi cuerpo es mío para que yo sea por medio de él MOUNIER 1971 p 113 167 mesmo entre um mesmo grupo como entre os adolescentes métodos e táticas variadas deverão ser empregados o que poderá evitar muitos dissabores MOUNIER 1971 p 151152 Como a educação começa na infância deve ser diferenciada desde o princípio A criança deve ser tratada como criança Nesse sentido Mounier critica o racionalismo moderno que tende a negar os tempos e as diferenciações que não se deixam reduzir às claridades da razão adulta Outro alvo de suas críticas será um certo superadultismo bastante comum em uma educação exclusivamente formal ou utilitária composto de depreciação ou indiferença para com a infância Ibidem p 150153 Para Mounier o situarse em seu âmbito humano configura o primeiro ato criador da criança e encontrar sua justa posição constitui o primeiro dever dos educadores a fim de lhes evitar uma visão falseada da vida e dos homens MOUNIER 1971 p 596597 Como razão e carne andam juntas Mounier elucida a importância da educação física Por desenvolver a iniciativa muscular ela favorece a atividade enquanto que a fragilidade ou mesmo a falta de exercício a dificulta MOUNIER 1971 p 381 Só podemos escapar a este dualismo ou mesmo a esta superestimação ou subestimação do corpo ou do espírito através de uma cultura que leve à consciência do próprio corpo análoga ao cultivo do espírito ambos indispensáveis para a harmonia psíquica Ibidem p 112 Excesso de intelectualidade é grave e deve ser equilibrado com um exercício paralelo da ação MOUNIER 1971 p 403 Rousseau tão bem afirmou que só quem lida bem com o corpo concebe bem as realidades espirituais MOUNIER 1971 p 331 349 A ética personalista na educação Na perspectiva de Ellul 2003 decorrente da instauração do fenômeno técnico que se dá a partir de uma mudança de atitude de toda uma civilização e não apenas por suas invenções a técnica segue seu rumo independente e desprovida de todo juízo de valor em qualquer um de seus instrumentos inclusive na educação 2003 p 50 A operação técnica é totalitária O que é técnico não analisa os meios senão os resultados ibidem p 392 No mundo técnico a questão não é a legalidade da sua ação ou a ideia de bem ou mal ao qual se destinaria mas a eficácia o êxito sem ser obstaculizada por qualquer consideração Segundo Ellul são as necessidades internas da técnica que a determinam não as externas Ela é autônoma e se basta a si mesma tem suas leis particulares e suas determinações próprias Sua autonomia se estende à moral e aos valores espirituais não 168 suportando nenhum ajuizamento ou limitação A técnica se situa além do bem e do mal ela não é nem boa nem má em si mesma não é nada em si cria novos valores influi no gosto e nos gestos dos homens Por não ser neutra constrói uma moral nova Como criadora de civilização as leis às quais obedece uma organização técnica não é a do justo ou do injusto mas da eficácia ELLUL 2003 p 137139 Mounier concorda com Ellul e compreende que a moral que permeia o universo técnico é destruidora do impulso vital do homem igualmente importante na escolha de valores Ela visa difundir a sua lógica de domínio que é utilitarista individualista e gananciosa Contudo não aponta uma ausência de moralidade mas a chama de falsa moralidade difundida ao longo dos tempos por processos educativos que sempre operaram pela impessoalidade tanto dos homens quanto do conhecimento ocultando as suas verdadeiras intenções de controle e inibindo no homem toda iniciativa criadora e sua capacidade de resistência Para Mounier a educação que herdamos e reproduzimos foi fundamentada em um jogo de falsos valores e ideais em muito desconectados da própria realidade do homem Pautada no sentimentalismo em uma finesse polida e hipócrita piedade não buscou formar o homem na decisão na fé no vigor intelectual e na sinceridade afetiva Essa é uma das grandes críticas de Nietzsche Em Para além de bem e mal ele descreve a moral europeia como uma moral de animalderebanho 1999 p 321 Complementa em outra obra Genealogia da moral que o levante dessa moral de escravos começa com o ressentimento que cria valores vedando a ação e reação dos homens 1999 p 343 O Crepúsculo dos Ídolos a denuncia como negação de vontade de vida e instinto de decadência 1996 p 48 Mounier corrobora com a visão de Nietzsche no que tange à sua crítica da moral europeia Essa moral criou fracos em vez de educar para a plenitude viril A submissão acrítica e passiva aos totalitarismos já consolidados pelo domínio técnico atesta essa resignação A fim de evitar esta redução da potencialidade combativa no educando Mounier proporá paralelo ao exercício dos músculos e do intelecto o fortalecimento moral MOUNIER 1971 p 562 Se por um lado a educação deve refinar os tratos por outro não deve negligenciar o papel da pulsão instintiva criadora e pessoal bem como não deve confundir medíocres domesticações com as nobres disciplinas do ascetismo moral Conforme Mounier Freud denunciou os estragos produzidos pela repressão dos instintos muitas vezes a serviço do mais inferior de todos eles como sendo absoluto que é o instinto de segurança e retraimento o que provoca o naufrágio não só da vitalidade mas também da personalidade MOUNIER 1971 169 p 124 A vida primitiva com suas intempéries desenvolveu no homem uma emotividade primária diferente porém tão essencial quanto à que nossa cultura e educação refinada pôde elaborar MOUNIER 1971 p 228 Freud buscou apresentar as pulsões instintivas em nossa cultura bastante sublimadas contra as sistematizações entre idealistas e racionalistas que pretenderam afastar o homem de toda animalidade supondoo como um ser civilizado por natureza Jung um discípulo seu complementa o pensamento do mestre Conforme Mounier Jung acrescenta com acerto que a maior parte das sistematizações intelectuais são instrumentos fabricados pelo medo de viver e destinados a protegernos dessa experiência palpitante Assim qualquer educação que aspira a uma pureza sublime que quer fazer dos homens bem aventurados o faz para não se comprometer MOUNIER 1971 p 350 Essa moral burguesa impessoal que tem por pressuposto a generalização padronizadora foi construída e alimentada pelos ideais de domínio técnico Ela é primitiva coletiva assertiva tem o afã de tranquilidade tende para a covardia e se esquiva do combate Para Mounier a moral é atividade interior e única exclusiva da história pessoal de cada um onde não cabe um imperativo categórico kantiano86 seu ambiente próprio é a zona do secreto e do retiro Assim ela é obra pessoal de escolha própria e diante de cada circunstância específica Todo costume moral nos confrontará sempre com situações inusitadas que no espaço e tempo em que chegarão a nós trarão novos desafios e demandarão novas escolhas a partir de nossa presença enquanto euaquiagora Portanto para que a vida moral possa afrontar o embate das forças obscuras que nos advém é necessário que ela se consolide sobre uma personalidade altiva na qual se equilibram o vigor vital e a energia espiritual MOUNIER 1971 p 688717 Para Mounier espíritos inibidos carentes de toda forma de escape tanto da agressividade quanto da sublimação acabam procurando para justificar suas debilidades compensações imaginárias de alto prestígio e pouca dificuldade em uma reputação pública isenta de riscos como é o caso dos que se refugiam sob os imperativos do progresso ou do desenvolvimento irresponsável da técnica Estes protótipos éticos burgueses acabam por romper com a verdadeira vida moral que é de fato risco escolhas dilacerantes embates 86 Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes aponta que o homem como consciência moral é um ser ativo criador e legislador Para o autor a lei moral deve agir tendo por base um imperativo categórico que se coloque como centro norteador das ações em qualquer situação que se apresente ao sujeito moral e livre sem nenhuma inclinação interna ou externa Diante das situações ele deve sempre se perguntar se a máxima de sua ação pode se tornar uma lei universal Conforme afirma Kant Temos que poder querer que uma máxima da nossa ação se transforme em lei universal é este o cânone pelo qual a julgamos moralmente em geral 1980 p 131 170 dolorosos e ações vivificantes que exigem de nós esse espírito altivo Para Mounier esse comportamento esquivo e descompromissado do homem burguês repleto de boas maneiras e finesse não passa de uma caricatura da verdadeira moralidade Esta retirada estratégica e honrosa por frequente que seja só institui uma caricatura da vida moral Traduz a precedência a dissimulação a alienação e eclipse e o farisaísmo enquanto a vida moral é peripécia franqueza superabundância afirmação e lucidez Os protótipos éticos se encontrarão mais facilmente entre os apaixonados que nesta quintessência do mundo burguês que é o bom aluno convertido em bom cidadão bom esposo e bom pai que nada infringe à força de não ser nada A moralidade não consiste como parece às vezes suporse em aplicar regras automáticas a situações pré calculadas ou sobressabidas de tal maneira que o azar e os perigos fiquem eliminados quanto possível A consciência ativa de nosso dever pelo contrário nos oferece a cada dia mais conflitos desgarradores alternativas angustiosas e ocasiões singulares de aventura e de grandeza que o que poderíamos sublinhar87 MOUNIER 1971 p 690 Escolhermos uma linha de conduta dominante a partir de valores aceitos por nós não equivale necessariamente a optar por uma direção exclusiva No final o que caracterizará nossas escolhas será nossa ação e não nossas intenções por mais puras que pareçam O que é de índole moral é a decisão de conduzir as tendências naturais para sua perfeição ou decadência posso permitir que se expresse de forma inferior e rudimentar ou elevála a uma ampla riqueza de valores sublimes O campo da moralidade é particular e exclusivo não uniforme e compulsivo MOUNIER 1971 p 723 A decisão por mais de um caminho no campo moral tratase para Mounier de uma diplomática flexibilidade e não de um enrijecimento de caráter valor propulsor de sucesso pessoal do agente que não deve jamais negligenciar os vetores diretores fundamentais que o impulsionam Este novo imperativo Mounier o resume assim Conduza cada uma das tuas inclinações pelo mapa que te brinde mais riqueza e acessibilidade despojaa das suas rigidezes e exclusivismos aficionate a moldar e harmonizar teu caráter por meio das disposições antagônicas sem deixar de mantêlo firmemente em sua orientação fundamental88 MOUNIER 1971 p 725 87 Esta retirada estratégica y honorable por frecuente que sea sólo instituye una caricatura de la vida moral Trasunta la prudencia el disimulo la atenuación el eclipse y el fariseísmo mientras la vida moral es peripecia franqueza superabundancia afirmación y lucidez Los prototipos éticos se encontrarán más fácilmente entre los apasionados que en esta quintaesencia del mundo burgués que es el buen alumno convertido en buen ciudadano buen esposo y buen padre que nada infringe a fuerza de no ser nada La moralidad no consiste como parece a veces suponerse en aplicar reglas automáticas a situaciones precalculadas o sobresabidas de tal manera que el azar y los peligros queden eliminados en lo posible La conciencia activa de nuestro deber por el contrario nos ofrece a cada día más conflictos desgarradores alternativas angustiosas y ocasiones singulares de aventura y de grandeza que lo que podríamos sobrellevar MOUNIER 1971 p 690 88 Encauza a cada una de tus inclinaciones por el derrotero en que te brinde más riqueza y accesibilidad despójala de sus rigideces y exclusivismos aficiónate a modular y armonizar tu carácter por medio de las 171 35 Desespero otimista pessimismo ativo ou otimismo trágico As propostas pedagógicas de Mounier constituem a contra face da atuação educacional na realidade pautada pela racionalidade técnica Elas fazem parte de um todo interligado que se opõe radicalmente aos ideais burgueses capitalistas e individualistas que servem à perpetuação dessa lógica de domínio Uma vez que as organizações como a educacional já não servem hierarquicamente aos interesses econômicos e estatais segue a possibilidade de superação da razão técnica como única medida de valoração das ações e relações dos homens pautadas agora no respeito mútuo na colaboração e no interesse do todo Todavia ainda que transformações na ordem econômica e política sejam lentas e difíceis é possível começar uma transformação no interior do homem e essa será a grande obra da educação personalista Nela a pedagogia não se degrada em ciência o conhecimento em acúmulo de saberes nem a escola em mercado de certificações enquanto promotora de especialidades segregacionistas Essa educação é obra intensa e atemporal Está ligada no fluxo contínuo da personalização do homem e da comunidade Sua função é colaborar com a edificação e resgate da tridimensionalidade do ser pessoal no exercício de sua liberdade e de sua singular vocação Esses ideais formativos do personalismo de Mounier afrontam diretamente os objetivos que permeiam a educação burguesa capitalista que se pauta na razão técnica e que opera pela via da impessoalidade da objetificação e da uniformização visando a conformação do homem à política do êxito e da eficácia com base em resultados quantitativos Essa educação burguesa que opera pela busca do conforto a ser perseguido na escolha de funções rentáveis no mercado das profissões gera competitividade e rupturas nas relações humanas enquanto reduz o homem à pura exterioridade convertendoo em uma pequena peça na engrenagem do mundo já completamente fragmentado e esfacelado do conhecimento do qual ele não é partícipe mas apenas receptor passivo e reprodutor de seus jogos desumanos A educação personalista não busca o conforto interesses individualistas e egoístas ou o progresso sem ter como finalidade o próprio homem Nisso ela é absolutamente revolucionária e inovadora podendo de fato recolocar a questão da técnica como valor a serviço da pessoa Muitas vezes definida como um pessimismo ativo Mounier opta para exprimir a mesma paradoxal antinomia da crença no homem e no desenvolvimento técnico por nomeála disposiciones antagónicas sin dejar de mantenerlo firmemente en su orientación fundamental MOUNIER 1971 p 725 172 de um otimismo trágico que também aponta para os complexos caminhos da evolução histórica MOUNIER 1948 p 245 e 1959 p13 Tratase de continuar acreditando no homem para além de toda evidência lógica Nesse sentido a educação seria uma fé a se abraçar um risco a correr mas que deve desenvolver no homem aspectos humanos como amores e sentimentos e não apenas pretensão de si e desejo de poder mas de ser A pessoa elevada a partir dos princípios personalistas pautados no respeito às diferenças na integralidade de seu ser pessoal e singular único e insubstituível será capaz de resistir a todo domínio que possa trazer sérios prejuízos à sua dignidade ou diminuíla nas suas potencialidades como opera a educação oriunda da racionalidade técnica Estruturada nas categorias do universo pessoal alicerçada em valores mais sublimes que os meramente materiais como o humano aliançada com a comunidade e desenvolvida no respeito à sua singular vocação com responsabilidade para como o todo circundante a pessoa em sua liberdade criadora e cheia de inciativas terá a capacidade de edificar um mundo à altura de sua grandeza e não mais se rebaixará ao que lhe é ofertado pelas limitações do universo técnico objetificante e redutor de suas potencialidades 173 CONSIDERAÇÕES FINAIS A razão cartesiana que outrora fora uma prerrogativa humana de emancipação acabou por se tornar um instrumento de desenvolvimento da sociedade técnica Em decorrência os ideais iluministas e positivistas que fizeram da ciência e da técnica as sedes da verdade e os únicos meios para a solução dos problemas do homem e para o progresso promoveram apenas obscurantismo e desordens dificultando o movimento de personalização Construiuse um projeto de racionalidade para a humanidade que em sua universalidade e impessoalidade negligencia os indivíduos singulares conforme denuncia o personalismo de Mounier A ideia individualista de liberdade autonomia e independência dos homens para consigo mesmos e para com a sociedade manifestase apenas como uma mentira funcional necessária ao desenvolvimento desta sociedade técnica o que implicou na perda do sentido de ser pessoa de pertença ao grupo e da necessidade de endereçamento ao outro No lugar da pessoa na plena posse de todas as suas potencialidades verdadeiramente autônoma livre e engajada vimos surgir um indivíduo isolado fragmentado enfraquecido e subserviente aos ideais do domínio técnico O homem perdeu o domínio da condução do desenvolvimento técnico e se viu esfacelado pelos valores por ele enaltecidos completamente alheios aos valores humanos A razão técnica cujo valor é a operacionalidade e funcionalidade não se põe a conhecer mas servir pela via da instrumentalização a um projeto reificante do mundo e do próprio homem Radicada no aparelho produtivo essa racionalidade dificulta a emancipação das pessoas enquanto lhes rechaça as diferenças e impede toda transcendência obstaculizando a dialética do ser pessoal muitas vezes limitando a pessoa a uma interiorização solitária ou a uma exteriorização evasiva de si mesma Na perspectiva de Mounier somente o ser pessoal na sua inteireza é capaz de romper com todo processo aviltante do meio que o reduz à condição de objeto e construir o próprio destino na condição de sujeito Diante do sujeito convertido em indivíduo de um lado e de outro a razão convertida em forma o domínio instrumental da razão gerou apenas afirmatividade dificultando o estranhamento e a indagação bem como reações aos valores predominantes nessa sociedade 174 técnica que se tornaram o modelo hegemônico ideal a ser perseguido e louvado pelo homem moderno Na perspectiva de Ellul 2003 não resta nada a ser feito pelo homem para mudar os rumos dos acontecimentos nem mesmo a educação poderia transformar a ordem de uma razão que busca sempre o aperfeiçoamento desenfreado e se torna cada vez mais técnica e eficaz Conforme o autor uma razão técnica buscará a restauração do homem pela própria técnica que gerou e alimenta seu assujeitamento sendo inútil buscar humanizála ou moderá la Nesse sentido a educação será apenas mais um aparato técnico de domínio do homem sobre o homem Em nosso universo dominado pela técnica a educação opera como técnica de conformação e adesão do indivíduo a essa nova realidade fragmentando a inteligência humana em diversas especialidades Desse ângulo de análise buscar humanizar a educação será um projeto estanque por ser ela dirigida para um determinado tipo de homem que é uma criação técnica e por menosprezar sua vida interior ELLUL 2003 p 327340 Chauí por sua vez vem declarar a inexistência de uma oposição entre humanismo e tecnicismo uma vez que a fonte de seu nascimento é o domínio técnico sobre a natureza e sobre a sociedade pela ciência e pela política 1986 p 62 Nessa perspectiva a educação enquanto uma técnica de ação sobre o homem busca romperlhe em fragmentos dissociar sua inteligência e ação devolvendolhe apenas sua unidade abstrata A adaptação desse homem aos ideais técnicos é produto de um cálculo perfeito de um conhecimento exato ao qual para Ellul é impossível escapar Segundo o autor tudo já estaria dominado tudo seria ordem não havendo mais resistência As mais secretas palpitações do homem e seus impulsos já teriam sido todos analisados utilizados e polidos pela operação técnica restandolhe apenas uma rebelião estéril ou um sorriso condescendente ELLUL 2003 p 400430 De fato na visão de Mounier a educação oriunda dos ideais desta racionalidade técnica tem formado seres para o mercado para a competitividade e para a subserviência acrítica técnicos divorciados do espírito demitidos de si mesmos Sua ação sobre o homem o tem destituído de sua integralidade liberdade capacidade crítica e de engajamento tanto em suas próprias causas como nas do mundo Pela ação da educação fundamentada na essência dessa racionalidade técnica verdadeiramente o homem tem sido aniquilado do interior Mounier contudo permanece otimista mesmo diante do reconhecimento dos estragos já provocados pela ação da instrumentalização da razão Em manifesto contra essa situação de não estranhamento individualismo descaso violência e toda forma de 175 totalitarismo em uma realidade contraditória que se produz pela ocultação dos reais mecanismos de dominação a perspectiva do personalismo de Mounier nos convoca a protestar contra essa afirmatividade do sujeito e da razão e rejeitar todo enaltecimento inconsequente do progresso técnico que ao sustentar o indivíduo acabou promovendo seu assujeitamento e dificultando a emergência da pessoa O projeto pedagógico de Mounier visa restabelecer a autonomia da pessoa a partir da afirmação da sua singularidade e irredutibilidade diante dos ideais de domínio técnico Sua proposta de Educação é um meio por excelência para se efetivar o processo de personalização que deve ser contínuo e não se esgotar no ambiente escolar É na sua inteireza que a pessoa formada com bases sólidas e em conformidade com suas características humanas não mecânicas pode se afirmar diante dos condicionamentos impostos pelos interesses objetificantes da técnica e do capital bem como pode conduzir livremente sua própria história O personalismo de Mounier não se posiciona contra o desenvolvimento técnico pelo contrário reconhece nele um meio de facilitar e aperfeiçoar as condições da existência humana mas adverte para a necessidade de que a pessoa seja seu condutor e não mero objeto das suas artimanhas muitas vezes desumanas e utilitaristas O otimismo de Mounier quanto ao progresso técnico advém da sua crença no fato de que a técnica transcende a exploração das forças materiais pelas ciências físicomatemáticas podendo vir a ser uma forte aliada no desenvolvimento do homem e da sociedade 1961a p 105106 A inquietude de Mounier quanto aos rumos do desenvolvimento técnico sucede da sua servidão aos interesses econômicos que geraram uma moral e uma educação constituídas com base nos princípios de uma racionalidade utilitarista e produtivista que não se questiona sobre os meios que emprega na persecução dos seus fins Essa razão em busca de eficácia e êxito em seus resultados que só avalia o homem pela produtividade acabou desenvolvendo o orgulho a inveja e a autoexaltação Mounier reconhece que todo progresso técnico traz em si um fardo ético pois ao mesmo tempo que introduz seguranças e inovações semeia igualmente novas incertezas e inquietudes o que deve nos levar sempre a uma avaliação e reavaliação das coisas Em nosso contexto a noção de progresso está em crise pois o que é moderno não coincide mais com o que é humano O divórcio entre o homem e a natureza e entre os homens provocado pelo domínio técnico bem como a consequente ampliação da insignificância do homem e do mundo começam a exigir sérias reflexões éticas 176 Essa racionalidade técnica que se coloca além do bem e do mal que não permite limitações ou juízos de valor deve ser colocada em pauta pois está em causa a própria destruição do homem que a criou e a alimenta Em vez de progresso e aperfeiçoamento cabe nos pensar agora em conservação O saber o poder e o fazer devem ser direcionados com uma visão do todo e de todos mediados por uma educação engajada na causa da emancipação do homem e da humanização do mundo dos valores do conhecimento da produção Mesmo Ellul 2003 ainda que acredite que a técnica já estabeleceu o seu domínio reconhece a necessidade de o homem colocar em pauta o preço do seu poder Os ideais técnicos e a educação deles originada que têm se colocado contra a pessoa precisam ser repensados a partir de novos vetores diretores que levem em consideração o desenvolvimento da pessoa não apenas como produtor ou produto mas como espírito e essa tarefa Mounier empreendeu com excelência Na ótica de Mounier se a pessoa se serve da condição material por conta da sua natureza carnal ela continua sendo também um ser espiritual A proposta educativa de Mounier tem em vista a ruptura com esta educação de fracos de escravos como diria Nietzsche e a ocupação com a elevação não apenas técnica mas sobretudo espiritual do homem Como o homem não é um ser fragmentado avaliável apenas por suas funções ou papéis a exercer na sociedade será na completude do seu ser a partir de ações e escolhas responsáveis e livres no exercício da sua singular vocação que ele será capaz de realizar um mundo mais humano e conforme à sua natureza de pessoa Uma pessoa não fragmentada em sua inteireza colocará todas as suas reais necessidades na balança e pela sua transcendência orientará suas condutas e objetivos sempre acima das satisfações imediatas ofertadas e glorificadas pela sociedade técnica A essência cristã do pensamento de Mounier o faz vislumbrar o homem além de sua existência carnal e a técnica além de sua essência utilitarista e dominadora Se a técnica serve ao capitalismo na sociedade burguesa liberal e individualista na comunidade personalista não haverá mais lugar para seu império já que os valores serão transmutados pela primazia da pessoa e da comunidade Do mesmo modo como uma pessoa ultrapassa a soma das personagens interiores que a animam a comunidade personalista extrapola a soma dos indivíduos que a compõem MOUNIER 1961 b p 56 Como se trata de uma comunidade espiritual nela os valores espirituais são prioritários se encontram acima da sua ciência ou das suas técnicas Dirá Mounier 177 uma civilização não toma sua alma e seu estilo essencial nem só do desenvolvimento de suas técnicas nem só do rosto dos seus ideólogos dominantes nem mesmo de uma vitória feliz das liberdades conjugadas Ela é primeiro uma resposta metafísica a um chamado metafísico uma aventura de ordem do eterno proposta a cada homem na solidão de sua escolha e de sua responsabilidade89 1961 a p 910 Para Mounier a civilização e a cultura devem ser metafisicamente orientadas pautadas em um trabalho que vise acima da produção em uma ciência que vise acima da utilidade e uma vida espiritual que leve o homem além de si mesmo Só assim será possível não apenas promover um homem novo mas também uma ordem nova MOUNIER 1961 a p 10 Lembramos que o progresso para o cristão não é para o conforto para a comodidade para a segurança vazia de espiritualidade Pelo contrário ele é combate e nesse sentido uma educação que se quer eficaz e consoante com a real condição da pessoa deve ser uma educação voltada também para a formação de fortes guerreiros capazes de lutar pelo não aviltamento e pela instauração de um mundo de pessoas de carne e espírito de terra e sangue não de engrenagens As propostas pedagógicas encontradas no personalismo de Mounier em muito se assemelham com o ideal grego clássico de educação comprometido não apenas com a formação integral da pessoa mas também com a sua condição de guerreiro onde a força a coragem e a virtude são valores primordiais dos nobres que fazem da existência um campo de batalha e não se resignam a uma vida conformista tranquila e sem glórias Nesse ideal a pessoa singular não sucumbe à força impessoal do número nem a valores inumanos Nesse sentido podemos afirmar que assim como o humanismo personalista a educação personalista é aristocrática e antiigualitária MOUNIER 1961 a p 53 Ela não só se constitui no respeito às diferenças mas também é alheia ao senso comum condutor da grande massa em sua universalidade abstrata A via inicial de acesso a toda possibilidade de transformação dos valores que predominam em nossa sociedade técnica como na política ou na economia encontrase no desenvolvimento da pessoa para o qual contribuirão os ideais formativos de Mounier Contudo a perspectiva de Mounier não visa a produzir sínteses sobre essa realidade contraditória que é a pessoa Pelo contrário como permanência aberta a pessoa está sempre 89 une civilisation ne tient son âme et son style essentiel ni du seul développement de ses techniques ni du seul visage de ses idéologies dominantes ni même dune réussite heureuse des libertés conjugées Elle est dabord une réponse métaphysique à un appel métaphysique une aventure de lordre de léternel proposée à chaque homme dans la solitude de son choix et de sa responsabilité MOUNIER 1961 a p 910 178 em construção a fazerse e a refazerse numa eterna dialética entre recolhimento e ruptura que resulta em engajamentos responsáveis e conscientes em um mundo que não se apresenta como um espetáculo mas do qual ela é copartícipe em sua existência encarnada De outra parte o personalismo de Mounier não busca revelar respostas estáticas sobre a pessoa enquanto sujeito e objeto do conhecimento mas o nãosaber Sua proposta pedagógica se dá a partir da constituição e resgate de sujeitos que do ponto de vista epistemológico sejam capazes de suportar a angústia que a incompreensão traz os vieses do nãosaber a dor da incompletude da contradição e que por outro lado também possam contestar esses sistemas de tranquilidade que sucumbiram à crença no progresso ilimitado da razão técnica Nesse sentido resgata o projeto cartesiano de estender a dúvida às verdades que sustentam essa realidade e aos mistérios do ser resultante da angústia inerente a toda consciência inquieta É latente no pensamento de Mounier que o homem não é feito para a felicidade mas para a inquietude As comodidades apresentadas pelos ideais técnicos são obstáculos para o alcance de uma comunidade composta de pessoas efetivamente livres e engajadas No mundo do conforto como afirmou Mounier um dilúvio de fogo e de tormenta parece negarnos a terra prometida pela organização científica da abundância e da segurança MOUNIER 1961b p 315 Quem traz o mundo dentro de si enquanto mistura de terra e sangue dificilmente se sentirá satisfeito onde tudo parece ruir sobretudo o próprio homem Assim como o homem é um mistério impassível de previsões objetificantes a pretensa objetividade científica e técnica é apenas uma covardia intelectual que foge da verdade viva O verdadeiro conhecimento inquieta e intranquiliza incita ao combate afronta o espírito objetivista científico nivelador dos homens e galardoador do conforto e da segurança MOUNIER 1971 p 611 Se a educação burguesa tem obstaculizado no homem sua capacidade de espantarse necessária para a afirmação da sua autonomia e capacidade de resistência a possibilidade da dúvida dirá Lacroix 1960 é a afirmação virtual da primazia da pessoa da sua tomada de consciência É a dúvida que tem por objetivo afastar todo dogmatismo toda adesão imediata espontânea e irrefletida sobre as coisas permitindo uma asserção mediata e refletida pessoal acionada pelo poder da negatividade do espírito Por outro lado todo conhecimento conforme Lacroix é uma forma de crença um misto de ciência e de fé um risco audaciosamente corrido que se legitima com a obra 179 terminada Para o autor precisamos saber que cremos e não crer que sabemos por isso conclui que toda vontade de crer deve se transformar em vontade de duvidar LACROIX 1960 p 81104 Logo para Mounier 1971 o papel do conhecimento e da educação não é trazer ao homem tranquilidade e segurança mas inquietude e engajamento Diante de uma realidade complexa e ininteligível todo projeto educacional deve levar em conta a ambivalência da razão O Personalismo afirma Lacroix é a Filosofia da ambivalência A ambivalência reflete as contradições que dilaceram não só o homem mas também o mundo suscitando em toda intenção a tendência contrária sua força antagônica DOMENACH LACROIX GUISSARD et al 1969 p 4445 Diante do reinado da racionalidade e artificialidade técnicas que aniquilam com o natural excluem toda espontaneidade criatividade e consideração pela pessoa e pelo próximo e dada a complexidade e singularidade da pessoa as perspectivas pedagógicas propostas pelo personalismo de Mounier possibilitam restituir a cada homem uma vida interior plena perpassada por um profundo e contínuo processo de conversão interior ainda que dilacerada pelas incoerências e incompletudes que caracterizam os mistérios do ser A pessoa enquanto ser aquieagora resta ainda um mistério imprevisível irredutível à exatidão do cálculo e da manipulação técnica Esse é o sentido de ser uma permanência aberta e um ser de vocação As estruturas da pessoa não são arquitetônicas exatas se assim o fosse esgotariam e tornariam completamente previsíveis e determinadas suas escolhas São como notas musicais que permitem inúmeras melodias São suas escolhas seus engajamentos e sua vocação que a diferem da máquina e das outras pessoas A negação dessas especificidades é o elementochave do fenômeno da massificação do domínio técnico potencialmente ativado pelas vias da educação Suas singulares características é que concedem à pessoa uma grandeza em dignidade por ser única e irrepetível Em contraste com os que se posicionam pela perda da autonomia do homem diante da autonomia da técnica Mounier vem reafirmála na pessoa desde que ela se exercite em resgatar a integralidade dialética do seu ser pessoal favorecida pela educação personalista Diante de uma educação que negligencia o homem autor e fim de todo progresso só uma total transformação não reformulação do espírito pedagógico Um ser fragmentado produto da técnica de fato nada pode contra ela mas como o homem não é um autômato um ser abstrato dos discursos impessoais e objetificantes mas um ser singular único insubstituível ele tem o poder e o dever de lutar para conquistar e 180 preservar sua liberdade criadora como ser de escolhas de valores e de ação que o caracterizam como pessoa Se é pertinente a ideia de Heidegger e Ellul de que a técnica tende para a dominação por lhe ser inerente a busca objetivamente matemática de êxito precisão e aperfeiçoamento contínuo Mounier coloca em questão os valores orientadores das atitudes dos homens diante do universo técnico Se servir à economia à potencialização do capital ao conforto e à segurança tem sido o fim primordial da técnica Mounier encontra no resgate do ser pessoal a possibilidade de uma transmutação destes valores que devem ser orientados em prol do progresso não apenas material do homem mas sobretudo espiritual O otimismo de Mounier consiste na crença na pessoa criadora superior e autônoma diante das suas criações o que lhe permite vislumbrar um valor transcendente até mesmo para a condução das condições materiais do homem O personalismo tem a pessoa como eixo de reorientação do pensamento e da história Enquanto um ser situado a pessoa está sempre em processo de desenvolvimento Será no exercício da vocação da pessoa em face de sua missão histórica que esta perspectiva individualista cada vez mais intensificada pelo automatismo técnico poderá ser transformada restituindo aos homens a inteireza de si e o contato com os outros não mais como semelhantes mas como próximos Como a pessoa é o fim e o sujeito dos acontecimentos Mounier propõe uma ética e uma educação valorizadas na convivência e com visão da totalidade baseada na unidade entre mente e matéria entre ciência e vida que concebam a pessoa e o mundo do ponto de vista da eternidade e não do efêmero do útil e do rentável Siegfried em seu artigo intitulado Historique de la notion de progrès recorda que se de um lado nossa concepção de conhecimento vem dos gregos no sentido do uso da razão separada de toda superstição e mito nossa concepção de homem entendido como um fim em si mesmo e não como instrumento vem do cristianismo O autor reitera a posição de Husserl 2006 para quem o conhecimento ou a ciência nos gregos que era uma curiosidade desinteressada um desejo de saber e de penetrar nos segredos da natureza em nossas mãos tornouse não mais somente chave de verdade mas também instrumento de poder Em decorrência vivenciamos a passagem de uma civilização de inspiração grega e cristã para uma civilização técnica de inspiração utilitária SIEGFRIED 1948 p 69 Resgatando essa perspectiva cristã Mounier 1959 se contrapõe aos aspectos nocivos à personalização da pessoa e das suas organizações presentes no ideal de progresso 181 técnico da nossa civilização susceptível de se destruir a si própria Seu otimismo é cristão o que lhe permite observar os acontecimentos históricos por um prisma diferenciado dos puramente racionais O progresso para o cristão não diz respeito ao mundo das comodidades da felicidade do sucesso e do ter a qualquer preço mas é ascese sacrifício numa marcha para a perfeição do ser em um aperfeiçoamento contínuo em um constante e ininterrupto processo de personalização Para Mounier a ideia de progresso é moderna e possui duas dimensões distintas enquanto o progresso técnico é um processo de acumulação contínua para o cristianismo o progresso não é indefinido é um mistério que já contém a previsão de seu fim Tomadas do ponto de vista do cristianismo a história do homem e do mundo apontam para um progresso escatológico em marcha para o fim e isto lhes dá sentido diferenciado quanto aos rumos do seu desenvolvimento MOUNIER 1948 p 219234 MOIX 1968 p 353 O progresso do cristão não é uma acumulação de ter bens poder conforto mas uma marcha para a perfeição do ser O progresso da história segundo o cristianismo não é um processo de acumulação contínua como o progresso técnico cuja lei é muito mais sumária Ele é ressurreição transfiguração Ele comporta portanto essencialmente e não a título de acidente perdas irreversíveis rasgos retornos noites crises Ele não pode se reportar a estes critérios de comodidade de segurança de aprovação sonolenta que servem geralmente para definir a felicidade Para o ator do progresso que não tem a perspectiva total este caminho acertado lhe mascara frequentemente o sentido da caminhada mas é precisamente a esta única condição que o progresso é um fato humano e divino uma fé a abraçar e um risco a correr e não uma operação contável90 MOUNIER1948 p 235236 Essa perspectiva ainda que predetermine o fim dos tempos não aponta o sentido da terra consequentemente do progresso técnico como maldito uma vez que o cristianismo se centra sobre o princípio da encarnação divina Cristo teria vindo à terra para pregar ao homem a doutrina da salvação se não desse mundo ao menos dos males que o engendram Para Mounier Deus não teria criado o homem e o mundo com vias à sua destruição mas pelo 90 Le progrès du Chrétien nest pas une accumulation davoir biens puissance confort mais une marche à la perfection de lêtre Le progrès de lhistoire selon le christianism nest pas um processus daccumulation continue comme le progrès technique dont la loi est beaucoup plus sommaire Il est ascese et suit dans la humanité comme dans le individu la loi de toute ascese sacrifice resurréction transfiguration Il comporte donc essentiellement et non a titre daccident des pertes irrevérsibles des déchirements des retours des nuits des crises Il ne peut se ramener a ces critères de comodités de sécurité dagrément somnolant qui servent générallement à definir le bonheur Pour lacteur du progrès qui nen a pas la perspective totale ce chemin heurté le masque souvant le sens de la marche Mais cest précisement à cette condition que le progrès est un fait humain et divin une foi a embrasser et un risque a courir et non pas une opération comptable MOUNIER 1948 p 235236 182 contrário colocou os dois pés sobre a terra e plantou a árvore da Ressurreição no coração das civilizações91 MOUNIER 1948 p 242 Numa perspectiva cristã o homem ainda permanece o grande projeto de Deus que não buscaria seu aniquilamento mas pelo contrário tem operado desde o início da criação para o seu aperfeiçoamento e elevação Talvez seja esse o sentido da crença de Mounier no homem e na busca pelo seu resgate pessoal Deus mantém de pé sua aposta no homem afinal não o criou como um autômato para adoráLo mas lhe confiou pela própria participação da centelha divina o bom uso de sua liberdade de escolhas Para o cristianismo de certo modo fomos criados para ou buscarmos a plenitude e a altivez que exige grandes esforços ou sucumbirmos às facilidades que requerem nossa anulação Como palco para sua escolha Deus colocou diante do homem no jardim das delícias a árvore do conhecimento do bem e do mal e a árvore da vida Gn 1 O homem escolheu conhecer mas tem demonstrado por suas atitudes que ele ainda não aprendeu a discernir O que diferencia o homem das máquinas também é a possibilidade de escolhas Por isso conforme Mounier o que deve direcionar nossa atenção diante do desenvolvimento técnico são os rumos que a técnica tem tomado nas mãos de espíritos inescrupulosos Para o autor as tentações da máquina têm se mostrado mais graves para nossos espíritos que para nossas vidas As máquinas são inofensivas se as abordamos com uma alma exigente MOUNIER 1961b p 2728 Mounier nos oferece um caminho para a retomada da condução dos fins e consequências do progresso técnico o desenvolvimento do ser espiritual viabilizado por uma educação personalista comprometida com a formação de pessoas não de autômatos A situação da técnica que assola nossa mauvaise époque não é um prelúdio apocalíptico Ainda que fosse para Mounier o apocalipse não é canto de catástrofe mas um poema de triunfo a afirmação da vitória final dos justos e o canto delirante do reino final da plenitude Assim a ideia do fim dos tempos não é a ideia de destruição mas de espera de uma continuidade e de uma completude Nesse sentido a formação pela perspectiva do personalismo permanece um projeto manifesto na crença inalienável na excelência da pessoa 91 mît les deux pieds sur terre et plantât larbre de la Ressuréction au coeur des civilisations MOUNIER 1948 p 242 183 como um absoluto que ainda tateante caminha para uma maior percepção de si numa aventura existencial cheia de contradições e lutas Essa ação formativa é inesgotável A personalização do homem e do mundo é contínua e ininterrupta e não se centra sobre o sucesso mas sobre o próprio testemunho assim como foi a vida de Mounier No contexto dramático em que Mounier viveu Andreola capta uma ligação entre sua obra e sua experiência de vida Conforme Andreola a obra de Mounier é inacabada e por três motivos sua morte inesperada e prematura sua vontade de continuidade e as características mesmas do projeto personalista ANDREOLA 1985 p 59 Por tais razões numa perspectiva cristã em lugar da busca por felicidade conforto e segurança Mounier apresentanos o caminho estreito da cruz A aposta na edificação da pessoa e no futuro do desenvolvimento técnico reflete um otimismo trágico que numa atitude de fé vê além das circunstâncias que não apontam para a destruição mas para o aperfeiçoamento O apocalipse para Mounier não aponta para o fim do mundo mas deste mundo quer dizer para o fim da nossa miséria MOUNIER 1959 p 11 Se a educação tecnificante tem contribuído para a sua disseminação a educação personalista está na fonte de um projeto exigente de superação do homem burguês e dos valores que o orientam Ela faz um apelo a um mais ser que o precede Se disse Seja porém exclama também mais além MOUNIER 1971 p 312 184 BIBLIOGRAFIA ADORNO Theodor W Educação e Emancipação Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 Sociologia São Paulo Ática 1994 ADORNO Theodor W HORKHEIMER Max Dialética do Esclarecimento 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desafios do século XXI Através de um ensaio embasado em revisão da literatura acerca da obra do filósofo francês e dos estudiosos que o seguiram buscase 1 realizar uma análise detalhada dos elementos balizadores de sua filosofia personalista 2 estabelecer uma relação clara e profunda entre os elementos de comunidade e solidariedade na visão personalista e 3 compreender como esses conceitos podem ser articulados frente aos desafios atuais época em que a dignidade humana é frontalmente violada Argumentase que a filosofia personalista de Mounier com sua ênfase na centralidade da pessoa e na importância da comunidade oferece uma base sólida para a construção de uma sociedade mais justa fraterna e acolhedora PALAVRASCHAVE Personalismo Comunidade Solidariedade Pessoa Acolhida 1 INTRODUÇÃO Em um mundo onde conflitos e divisões estão em evidência as ideias de Emmanuel Mounier sobre comunidade e solidariedade oferecem uma luz de esperança e orientação O personalismo comunitário proposto por Mounier não poderia ser mais relevante do que em meio aos desafios contemporâneos que o mundo enfrenta tais como a guerra na Ucrânia e os conflitos em Israel por exemplo Neste quadro a ONU 2023 descreve casos angustiantes que estampam o sofrimento e as dificuldades de milhares de ucranianos afetados lista de violações e crimes inclui ataques contra zonas residenciais uso generalizado de tortura violência sexual e deportação de crianças Neste sentido depoimentos de indivíduos afetados e observadores evidenciaram uma flagrante falta de consideração pela dignidade humana por parte das autoridades russas nessas situações Da mesma forma os conflitos potencializados em Israel e na Palestina destacam a necessidade de solidariedade e compreensão mútua conforme reflete o cardeal Pietro Parolin A guerra é sempre a derrota da dignidade e uma ocasião para não se chegar a qualquer solução Instituto Humanitas 2023 Em uma região marcada por décadas de hostilidade e violência a busca por uma paz justa e duradoura exige o reconhecimento da humanidade e dos direitos de todas as partes envolvidas Em face do cenário atual as ideias de Mounier sobre a importância do respeito mútuo e da cooperação entre as comunidades se mostram especialmente relevantes oferecendo um norte para superar as divisões e construir uma convivência baseada na justiça e na fraternidade Não obstante a esses conflitos específicos de guerra questões como desigualdade social mudanças climáticas e pandemias globais também destacam a importância da solidariedade e da comunidade Em face dos desafios complexos e interconectados que enfrentase é essencial reconhecer a interdependência do ser humano e agir em conjunto para o enfrentamento das ameaças comuns Em face do exposto considerando as observações de Cugini 2023 para quem Mounier representou uma figura de destaque em sua época servindo de guia para aqueles que buscavam compreender os períodos turbulentos entre as duas grandes guerras tudo isso sob a ótica cristã Diante do cenário de conflitos atuais surge a seguinte questão de pesquisa qual é a reflexão contemporânea sobre a filosofia personalista de Mounier especialmente em relação à sua concepção de comunidade e solidariedade à luz dos desafios do Século XXI Para lograr êxito empreendeuse análise bibliográfica em torno da obra de Mounier e diversos autores que a analisam sob seus mais diversos aspectos e assim teceuse a trama que compõe este ensaio Assim estruturouse este trabalho da seguinte forma após esta Introdução temse o Capítulo 2 Emmanuel Mounier e a filosofia da pessoa onde se apresenta uma breve biografia de Mounier e a filosofia do personalismo definição e características centrais Destacando a pessoa como centro da ação e da comunidade Em seguida o Capítulo 3 Comunidade em Emmanuel Mounier onde trata a definição de comunidade nos ditames de Mounier bem como a importância da comunidade para a realização pessoal e o contraponto entre comunidade versus sociedade diferenças e implicações para a solidariedade Já o Capítulo 4 Solidariedade para Mounier versa sobre o conceito de solidariedade no pensamento de Mounier assim como a solidariedade como expressão de acolhida e reconhecimento do outro tal como a relação entre solidariedade e justiça social Por sua vez o Capítulo 5 A acolhida como prática de solidariedade expõe a acolhida no contexto da filosofia de Mounier principalmente exemplos práticos de acolhida e solidariedade em comunidades tais como desafios contemporâneos para a prática da acolhida e solidariedade E o Capítulo 6 Discussão dedicase à análise crítica da aplicabilidade dos conceitos de Mounier no mundo atual incluindo solidariedade e comunidade face aos desafios globais pandemias crises econômicas e conflitos sociais E por fim encerrase com o Capítulo 7 Conclusão onde recapitulase os principais pontos abordados nos demais capítulos e evidenciase a relevância do pensamento de Mounier para a construção de uma sociedade mais solidária e acolhedora 2 EMMANUEL MOUNIER E A FILOSOFIA DA PESSOA Emmanuel Mounier 19051950 filósofo francês emergiu como uma figura proeminente no panorama intelectual do século XX oferecendo uma abordagem filosófica que transcende as dicotomias simplistas do individualismo e do coletivismo Contrariando essas correntes ideológicas Mounier desenvolveu e promoveu o personalismo uma escola de pensamento que reivindica a centralidade da pessoa na estrutura social e política Cugini 2023 Neste sentido explica Abreu 2008 começaram a surgir às primeiras teorias acerca da pessoa denominada de filosofia personalista tendo como um de seus precursores Emmanuel Mounier O personalismo é uma antropologia que surgiu na Europa tendo como objetivo oferecer uma alternativa tanto para o individualismo quanto ao coletivismo frente ao individualismo que exalta o indivíduo autônomo Abreu 2008 p 73 Para Mounier conforme Braga e Severino 2017 a pessoa não é um ser solitário e autossuficiente mas sim um ser intrinsecamente relacionado aos outros Ela encontra sua identidade e significado em suas conexões e interações com seus semelhantes Assim o personalismo destaca a importância das relações humanas e da comunidade como elementos essenciais para o florescimento humano Nessa perspectiva a comunidade não é apenas um agregado de indivíduos mas sim um espaço vital onde as pessoas se encontram se entendem e se realizam plenamente Para Arruda e Souza Neto 2023 a visão de Mounier sobre a pessoa como ser relacional também tem implicações profundas para a política e a sociedade Argumentase que a ordem social ideal deve ser construída em torno do respeito e da promoção da dignidade e dos direitos das pessoas Isso implica uma abordagem política que prioriza a justiça social a solidariedade e a participação ativa dos cidadãos na vida pública conforme se destaca do seguinte excerto A aquisição dessa consciência produz enfrentamentos políticos e sociais pois colocam o sujeito como uma pessoa engajada no mundo que luta pelo direito à liberdade e contra qualquer sistema que com seus aparatos ideológicos e racionalidades burocráticas firam a humanidade dos indivíduos o lugar de cada pessoa no mundo e a aplicação da justiça social em cenários de violência e de desigualdade Arruda e Souza Neto 2023 p 30 Além disso Mounier enfatiza de acordo com Albernaz 2014 a importância da dimensão espiritual e ética na vida humana Acreditase que a busca por significado e transcendência é uma característica fundamental da condição humana e que a filosofia personalista deve abordar essas questões existenciais de forma abrangente Neste contexto Mounier e grupo de amigos no início da década de 1930 puseram em marcha a revista científica Esprit a qual em seu primeiro número buscouse apresentar o esboço programático do projeto editorial destacando a demanda explícita de um grupo de indivíduos para explorar formas de abordar os desafios do cotidiano com fundamentos filosóficos Cugini 2023 Albernaz 2014 detalha como se deu o processo criativo O trabalho da criação da revista nestes dias se deu por meio de grupos de estudos e de debates calorosos O primeiro dia de trabalho abriuse com uma missa tendo como tema a homilia O Espírito Santo Na segunda jornada de trabalho houve polêmicas entre Mounier e Déléage sobre o tema do relacionamento entre revista e movimento Déléage queria que existisse um diretor único tanto para a revista quanto para o movimento Após discussões acirradas Mounier propôs a existência de um diretor assistido por um conselho de redação e com direito de veto estendido até aos dois terços de votos Entretanto com o tempo Mounier foi ganhando a direção da revista e seria identificado com ela Albernaz 2014 p 33 Nesta perspectiva a filosofia da pessoa de Emmanuel Mounier não é apenas uma teoria abstrata ou utópica mas sim uma abordagem holística que busca promover uma sociedade mais justa solidária e autenticamente humana onde cada indivíduo seja valorizado e respeitado em sua singularidade e dignidade intrínsecas Abreu 2008 3 COMUNIDADE EM EMMANUEL MOUNIER Visando expandir os elementos que compõem a filosofia de Mounier temse que este atribui à comunidade um papel vital e significativo na vida humana indo além da simples agregação de indivíduos Para ele a comunidade é muito mais do que um mero agrupamento de pessoas é um espaço de interação e conexão genuína onde cada pessoa é reconhecida e valorizada em sua individualidade Nesta linha Mounier 19492004 acredita que a primeira iniciativa da pessoa deve ser a de colaborar com outros indivíduos em uma comunidade onde as diferentes culturas estruturas e sentimentos possam coexistir conforme explica 1º Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si própria de se desapossar de se descentrar para se tornar disponível aos outros Só liberta o mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio 2º Compreender Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim não conhecer os outros apenas com um conhecimento geral mas captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser eu e de ser eu 3º Tomar sobre nós assumir o destino os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne 4º Dar A força viva do ímpeto pessoal não está nem na reivindicação nem na luta de morte mas na generosidade e na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa A economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo 5º Ser fiel A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte As dedicações pessoais amor amizade só podem ser perfeitas na continuidade Essa continuidade não é uma exibição uma repetição uniforme mas um contínuo renovamento Mounier 1949 2004 p47 Na visão de Mounier a comunidade é caracterizada pela reciprocidade e pelo compromisso mútuo entre seus membros É um ambiente onde as pessoas se reconhecem como seres interdependentes unidos por laços de solidariedade e colaboração Nessa união cada indivíduo contribui para o bemestar coletivo e se compromete com o interesse comum promovendo assim o desenvolvimento e o florescimento de todos os envolvidos Nesta linha Lorenzon defende que da mesma forma que Mounier é essencial considerar a relação recíproca entre pessoa e comunidade Ele argumenta que estudar esses dois elementos como um conjunto inseparável é crucial para compreender plenamente tanto suas forças quanto suas fraquezas Lorenzon 1992 Além disso argumentam Lázaro e Sganzerla 2019 a comunidade para Mounier é um espaço privilegiado para o diálogo e a troca de ideias É onde as diferenças individuais são respeitadas e valorizadas e onde os conflitos são resolvidos por meio do entendimento mútuo e da busca por consenso Essa dimensão dialogal da comunidade é fundamental para a construção de relações saudáveis e para a promoção da paz e da harmonia social Outro aspecto importante da comunidade destacado por Nascimento 2007 em Mounier é seu potencial como um espaço de crescimento pessoal e coletivo É dentro da comunidade que os indivíduos encontram apoio mútuo estímulo e oportunidades de aprendizado e desenvolvimento Ao colaborar uns com os outros e compartilhar experiências e conhecimentos os membros da comunidade podem alcançar objetivos comuns de forma mais eficaz e satisfatória Portanto para Mounier frisa Abreu 2008 a comunidade não é apenas um arranjo social mas sim uma expressão concreta dos valores humanos fundamentais como solidariedade justiça e fraternidade É um espaço onde as pessoas podem se reconhecer plenamente como seres humanos e trabalhar juntas para construir um mundo mais justo solidário e humano 4 SOLIDARIEDADE PARA MOUNIER Para Emmanuel Mounier a solidariedade não é apenas uma virtude ou um sentimento mas sim um princípio orientador fundamental para a vida em sociedade Ele enxerga a solidariedade como a verdadeira expressão da fraternidade humana um elo que une os indivíduos em um propósito comum de apoio mútuo e cuidado uns pelos outros Nas palavras de Abreu 2008 p 73 O personalismo remarca o dever de solidariedade do homem com seus semelhantes e com a sociedade Na visão de Mounier exemplificada por Braga e Severino 2017 a solidariedade é mais do que simplesmente ajudar alguém em momentos de necessidade é reconhecer a humanidade do outro e agir em consonância com essa consciência É uma disposição genuína de estender a mão ao próximo de compartilhar seus fardos e suas alegrias de se comprometer com o bemestar coletivo A solidariedade em Mounier conforme Abreu 2008 desafia a lógica do individualismo egoísta que coloca os interesses pessoais acima do bem comum Em vez disso ela convida a transcender os próprios limites do ser e conduzir a união em prol de objetivos compartilhados É através da solidariedade que podese superar as divisões e desigualdades que permeiam a sociedade e construir um mundo mais justo e fraterno Além disso temse em Lázaro e Sganzerla 2019 que Mounier ensina que a solidariedade não é uma via de mão única mas sim uma troca recíproca de apoio e cuidado Ao ajudar os outros também é beneficiado pois fortalece os laços que ligam enquanto comunidade e enriquece com a diversidade e a pluralidade de experiências e perspectivas Nesta linha para Mounier a solidariedade é um valor essencial que deve permear todas as esferas da vida humana É a base sobre a qual é possível construir relações mais justas sociedades mais coesas e um mundo mais humano e fraterno 5 A ACOLHIDA ENQUANTO PRÁTICA DE SOLIDARIEDADE A prática da acolhida para além de ser uma expressão de solidariedade é uma manifestação genuína de compaixão e humanidade Acolher o outro vai muito além de simplesmente oferecer um abrigo físico tratase de reconhecer a dignidade e o valor intrínseco de cada pessoa independentemente de suas circunstâncias ou origens A exemplo da acolhida intelectual vista em Costa e Silva 2015 onde o professor se compromete a passar o conhecimento mas não faz de si o dono do saber e da verdade mas abre espaço para o diálogo Busca a fundamentação dos saberes o desenvolvimento da pessoa O aluno em contrapartida deve dar conta do conhecimento a ser trabalhado Neste sentido ao acolher alguém estáse dizendo que a pessoa importa Buscase abrir os corações e espaços para receber o outro com bondade respeito e empatia É criar um ambiente onde a pessoa se sinta segura e confortável para ser verdadeiramente ela mesma sem julgamentos ou discriminações conforme destaca Costa 2009 p 29 fora do que o sentimentalismo barato que o discurso politicamente correto atual possa colocar é no personalismo de Mounier uma noção que implica um tremendo esforço tanto intelectual quanto existencial Em Mounier compreensão tem num primeiro momento o sentido que lhe deu Wilhelm Dilthey método de conhecimento caracterizado pelo uso da intuição e da empatia Costa 2009 p 29 A acolhida portanto é uma prática profundamente transformadora Ela oferece não apenas um lugar físico para se estar mas também um espaço emocional e espiritual onde o indivíduo pode encontrar apoio encorajamento e compreensão Em um mundo marcado pela divisão e pelo individualismo a acolhida se destaca como um gesto de união e solidariedade capaz de promover a inclusão a harmonia e o respeito mútuo conforme se extrai de Guissard 1969 ao relacionar o pensador e a prática momento em que declara que ele Mounier não se enquadra na classe de escritores e intelectuais que sendo católicos deixam de lado suas convicções pessoais ao exercerem sua profissão Também não se assemelha aos que contentamse com uma fé superficial e não se esforçam para refletir suas crenças em suas obras intelectuais Ele pertence ao grupo de cristãos que sentem que sua existência carece de significado sem deixar uma marca em seu tempo através de suas ações Além disso a acolhida tem o poder de restaurar a esperança e a dignidade daqueles que se sentem marginalizados ou excluídos Ela envia uma mensagem poderosa de que ninguém está sozinho de que sempre há um lugar onde se pode encontrar apoio e compreensão Neste ponto Mounier assim se expressa Um homem mesmo diferente mesmo degradado é sempre um homem a quem devemos permitir que viva como um homem Mounier 2004 1949 p 55 Nesta perspectiva da acolhida como prática o exemplo que dialoga com Mounier vem de Jean Vanier1 Filósofo católico fundador da comunidade LArche criada em 1964 na França e dedicada à assistência aos portadores de deficiência e pessoas vulneráveis Bingemer 2017 Portanto o exercício da acolhida estáse não apenas beneficiando o outro mas também enriquecendo a própria vida Neste entendimento buscase a construção de uma comunidade mais solidária compassiva e amorosa onde cada pessoa é valorizada e respeitada em sua totalidade Nesta linha seguindo os ensinamentos de Madre Teresa de Calcutá para quem só podemos realizar pequenos gestos mas podemos fazêlos com um imenso amor E a acolhida é uma dessas pequenas coisas que podem fazer uma grande diferença no mundo Domingues 2016 6 DISCUSSÃO As ideias de Emmanuel Mounier sobre comunidade e solidariedade emergem como uma fonte de inspiração e orientação em um mundo contemporâneo marcado por crescentes divisões e conflitos sociais O personalismo comunitário proposto por Mounier representa não apenas uma filosofia mas também uma abordagem prática para a construção de uma sociedade mais coesa solidária e inclusiva A exemplo da filosofia de Mounier as pequenas ações propostas por Calcutá tal cenário evoca a filosofia de Gabriel Marcel um dos principais expoentes do existencialismo cristão do século XX Marcel enfatizava a importância da participação ativa e comprometida no mundo mesmo diante das limitações humanas e das incertezas da existência Sua visão sobre a importância dos pequenos atos de amor e compromisso ressoa com a ideia de que a verdadeira realização reside na autenticidade e na dedicação às relações interpessoais e comunitárias Nesta dimensão as ideias de Emmanuel Mounier sobre comunidade e solidariedade complementam a filosofia de Marcel fornecendo uma estrutura conceitual para a realização prática de uma existência autêntica e engajada O personalismo comunitário 1 Nota do autor Jean Vanier foi considerado culpado por graves abusos ocorridos na comunidade em que fundou contudo este trabalho mantém a citação em respeito às pessoas que militam na instituição LArche o que como exemplo de acolhida permanece válido Mais detalhes A Arca e os escombros O caso Jean Vanier httpswwwihuunisinosbrcategorias596583aarcaeosescombros Instituto Humanitas 2020 proposto por Mounier não apenas enfatiza a importância do indivíduo dentro da comunidade mas também destaca a necessidade de solidariedade diálogo e colaboração para superar as divisões sociais e promover a justiça e a inclusão Em um mundo contemporâneo fadado a crescentes divisões e conflitos sociais a filosofia de Mounier oferece uma visão esperançosa e orientadora para a construção de uma sociedade mais coesa e humana onde os pequenos gestos de amor e solidariedade têm um papel fundamental na transformação social e na busca por um mundo mais justo e compassivo Zilles 1995 Por outro lado Cugini 2023 contemporiza sobre a realidade de outrora conforme excerto Sem dúvida a reflexão de Mounier apresenta alguns aspectos ultrapassados pois estão vinculados ao período em que sua proposta foi elaborada A situação política e cultural de nossos dias mudou e em alguns aspectos não se pode propor paralelos De qualquer forma o que há de significativo no personalismo de Mounier é a capacidade de pensar os problemas encontrados sem buscar respostas imediatas capazes de satisfazer a maioria mas de elaborar uma proposta para a frente Cugini 2023 p 7 Este autor sugere que embora as ideias de Emmanuel Mounier possam ter sido desenvolvidas no contexto histórico de 1930 e possam parecer ultrapassadas em certos aspectos ainda há aspectos significativos em seu personalismo que permanecem relevantes hoje Reconhecese que a situação política e cultural atual é diferente daquela em que Mounier formulou suas ideias o que pode tornar alguns de seus conceitos menos aplicáveis ou necessitados de adaptação No entanto o que se destaca como valioso no personalismo de Mounier é sua capacidade de pensar criticamente sobre os problemas contemporâneos sem ceder a soluções simplistas ou populistas Mounier não buscava apenas respostas imediatas que pudessem agradar à maioria mas sim propostas que fossem genuinamente significativas e que apontassem para um futuro mais justo e solidário Isso implica uma abordagem de longo prazo que reconhece a complexidade dos desafios enfrentados pela sociedade e que busca soluções fundamentadas em valores éticos e humanistas Assim embora suas ideias possam precisar ser reinterpretadas à luz das mudanças no contexto atual o cerne do personalismo de Mounier a busca por uma abordagem reflexiva e comprometida com os problemas sociais permanece como uma fonte de inspiração para aqueles que buscam promover a justiça a solidariedade e o bemestar comum na sociedade contemporânea Em um momento onde a individualidade muitas vezes é enfatizada em detrimento do coletivo o personalismo comunitário de Mounier destaca a importância de reconhecer e valorizar a interdependência e a conexão entre os seres humanos conforme se extrai de Carvalho Neto 2023 o qual explora os conceitos do filósofo canadense Charles Taylor Em uma era de crescente isolamento e alienação suas ideias ressaltam a necessidade fundamental de fortalecer os laços comunitários e promover uma cultura de colaboração e apoio mútuo Notese que Mounier apresenta o contraponto a visão niilista tal condição melhor representada em Nascimento 2007 O século XX é marcado por um niilismo profundo que difunde nos homens um pavor de uma singularidade baseada na paixão terrorista com inspiração no espírito catastrófico O século XX é também um século de fuga para o artificialismo É um tempo de paixão para o abstrato tecnicismo exagerado tornandose técnica robotização da técnica arte O milagre provém da ciência e da técnica Esses milagres estão em tudo desde um acendedor automático de microondas até na comunicação visual entre o mundo todo via aparelhos de comunicação O milagre está em poder fazer e o maior poder da técnica e da ciência é gerar o fim do mundo no ato de mandar tudo pelos ares o planeta e a humanidade com a criação das bombas atômicas Nascimento 2007 pp 129130 Nesta linha há que se destacar que ao contrário do que pensa Cugini 2023 o mundo de outrora que Mounier viu não está tão diferente do que se vê hoje conforme se extrai da obra O Século de Sangue de Emmanuel Hecht e Pierre Servent Quando a aviação israelense destrói o reator nuclear Osirak em 7 de junho de 1981 Saddam Hussein compreende que não terá jamais a bomba atômica e que precisa de outra arma de destruição em massa para rechaçar os iranianos e dissuadilos de continuar a guerra Ele lança então um programa de armas especiais graças ao apoio técnico dos soviéticos dos alemães do leste e de várias empresas ocidentais Hecht e Servent 2015 p 70 Ao leitor ainda não satisfeito trazse para esta discussão a realidade das atuais guerras servindo para exemplificar tanto o cenário que Mounier vivenciou da 2a Guerra como o que se vive na contemporaneidade conforme se observa a partir do Instituto Humanitas Não quero assustar ninguém mas a guerra já não é um conceito do passado é real já começou há mais de dois anos o mais preocupante é que todos os cenários são possíveis e que é a primeira vez desde 1945 que nos encontramos numa situação destas Instituto Humanitas 2024 Além disso diante da polarização política e social que tem assolado muitas sociedades o personalismo de Mounier oferece uma alternativa promissora Ao enfatizar a importância do diálogo do respeito pelas diferenças e do compromisso com o bem comum suas ideias proporcionam um antídoto contra o extremismo e a intolerância promovendo a construção de pontes e a busca por soluções compartilhadas para os desafios enfrentados pela humanidade Neste sentido Mounier percebeu a importância de ultrapassar as diferenças entre as duas abordagens individualismo e coletivismo visando alcançar a unidade através do reconhecimento do valor intrínseco da pessoa Albernaz 2014 No contexto da crescente crise global que tem sido exacerbada pela pandemia de COVID19 e o crescente processo de automação e digitalização as ideias de Mounier assumem uma relevância ainda maior A solidariedade que ele considera como a expressão concreta da fraternidade humana tornase essencial para enfrentar os desafios e as adversidades que afetam a sociedade como um todo Nesse sentido o personalismo comunitário não apenas inspira mas também orienta ações práticas de apoio mútuo cooperação e cuidado com os mais vulneráveis do mundo cada vez mais competitivo conforme se vê o quão atual se faz o pensamento de Mounier O indivíduo se sente cada vez menos senhor do seu meio que por seu lado se desenvolve e se organiza fora da sua alçada a uma velocidade cada vez maior as máquinas as massas os poderes a administração o universo e suas forças apresentamse lhe cada vez mais uma generalização da ameaça enquanto ele procurava nelas uma generalização de proteção Mounier 2004 1949 p 69 Neste aspecto evidenciase a contemporaneidade do pensamento de Mounier se considerarmos o avanço exponencial da inteligência das máquinas conforme é possível relacionar com o seguinte excerto mais do que nenhuma outra força os homens que compromete que por vezes esmaga perfeitamente objetiva inteiramente explicável faz perder o hábito da intimidade do segredo do inexprimível dá aos imbecis meios inesperados e acima disto divertenos fazendonos esquecer as suas crueldades Entregue ao seu peso cego é uma poderosa força de despersonalização Mas não é senão desligada do movimento que a suscita como instrumento de libertação do homem das servidões naturais e de reconquista da natureza A era da técnica fará correr os maiores perigos ao movimento de personalização Mounier 2004 1949 p 39 Nesta linha as ideias personalistas de Mounier sobre comunidade e solidariedade oferecem uma visão esperançosa e construtiva para o mundo contemporâneo Elas evocam a importância fundamental de cultivar relacionamentos significativos promover o respeito mútuo e trabalhar juntos para criar um futuro mais justo fraterno e acolhedor para todos Dado o cenário atual o personalismo comunitário de Mounier se configura como uma bússola essencial para navegação pelos desafios do século XXI Ao promover a comunidade a solidariedade e o diálogo como pilares de uma sociedade mais justa e fraterna suas ideias se constituem em um convite para construção de um futuro mais humano onde a dignidade e o bemestar de cada indivíduo sejam a principal prioridade Bem como expressou Abreu 2008 o personalismo de Mounier se configura como uma filosofia viva e inspiradora capaz de iluminar os debates contemporâneos e oferecer respostas aos desafios do século XXI Sua ênfase na centralidade da pessoa na importância da comunidade e na busca por um mundo mais justo e fraterno continua a ecoar com força e relevância convidandonos a repensar as bases da nossa sociedade e a construir um futuro mais humanizado para as próximas gerações E o que se observou também é que em relação a acolhida esta se configura como um ato revolucionário de amor e transformação social Mounier demonstrou que é através da prática da acolhida que podese construir pontes entre diferentes culturas origens e crenças promovendo um mundo mais justo fraterno e humano para todos 7 CONCLUSÃO A obra de Emmanuel Mounier não apenas nos oferece uma visão filosófica profunda mas também nos oferece um legado de valores e práticas que são essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade verdadeiramente humana e solidária À luz de seus ensinamentos sobre a importância da comunidade da pessoa e da acolhida a humanidade é desafiada a repensar suas prioridades e ações em direção a um mundo mais justo e fraterno No cenário complexo e desafiador do século XXI onde enfrentase crises sociais políticas econômicas e ambientais as ideias de Mounier ressoam como um chamado urgente à ação Seu apelo à valorização da pessoa como centro da realidade social lembra a importância de colocar a dignidade e os direitos humanos no cerne das políticas e práticas A ênfase na comunidade como espaço de encontro e colaboração inspira a construir pontes e a promover a inclusão e a diversidade nas sociedades fragmentadas E a prática da acolhida como expressão concreta da solidariedade convida a estender a mão ao próximo especialmente aos mais vulneráveis e marginalizados A opção por esses princípios elencados nas vidas e nas instituições podese criar um mundo onde cada pessoa seja valorizada respeitada e cuidada independentemente de sua origem status social ou crenças Recordate Um homem mesmo diferente mesmo degradado é sempre um homem a quem devemos permitir que viva como um homem Mounier 2004 1949 p 55 Um mundo onde a justiça a igualdade e a compaixão sejam os pilares de nossa convivência comum Um mundo onde a solidariedade seja mais do que uma ideia abstrata mas sim uma prática cotidiana que guia as ações e relacionamentos O que se observou na filosofia personalista é que independentemente do sistema econômico ou político o fator determinante para o sucesso ou fracasso de uma sociedade é o ser humano Nesse sentido é válido trazer ao debate o pensamento de Emmanuel Mounier que enfatiza a importância da pessoa como centro da vida social e política Mounier defende uma abordagem humanista que destaca a dignidade e os direitos inerentes a cada indivíduo independentemente do contexto socioeconômico em que esteja inserido Suas ideias sobre comunidade solidariedade e acolhida ressoam em diversos sistemas políticos e econômicos pois têm como foco central o desenvolvimento humano e o bemestar coletivo No contexto atual onde tanto sistemas capitalistas quanto socialistas enfrentam desafios relacionados à desigualdade à injustiça e à falta de solidariedade as ideias de Mounier podem oferecer uma perspectiva valiosa Ao destacar a importância da comunidade da solidariedade e do respeito pela dignidade humana Mounier recorda que em última análise são as ações e escolhas individuais que moldam o caráter de uma sociedade Diante disso trazer o pensamento de Emmanuel Mounier para o debate pode enriquecer a discussão sobre os sistemas políticos e econômicos ao colocar o foco nas pessoas e em suas relações interpessoais como elementos fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa fraterna e humanizada Nesta linha quando este ensaio considera os dilemas e crises contemporâneas as ideias de Emmanuel Mounier sobre comunidade e solidariedade não apenas mantêm sua pertinência mas também se tornam ainda mais urgentes e necessárias Elas lembram a importância de cultivar relacionamentos significativos promover o respeito mútuo e trabalhar juntos para criar um futuro mais justo fraterno e sustentável para todos os habitantes do planeta As ideias de Mounier se constituem em inspiração para construir pontes entre diferentes culturas e comunidades promovendo o diálogo intercultural e interreligioso Através do reconhecimento da humanidade compartilhada e da valorização da diversidade podese construir um mundo mais pacífico e inclusivo onde a comunidade e a solidariedade sejam os pilares de uma sociedade mais justa e fraterna Por fim ao seguir o farol do pensamento de Emmanuel Mounier temse a oportunidade de moldar um futuro mais esperançoso e humano para as gerações vindouras Ao contrário do que vê Cugini 2023 os tempos de Mounier não são outros na realidade é possível que Mounier estivesse à frente do seu tempo Neste sentido que cada um seja um agente de mudança inspirado por sua visão de uma sociedade baseada no respeito na justiça e na fraternidade e que o trabalho em comunidade torne esse ideal uma realidade palpável no mundo contemporâneo REFERÊNCIAS ABREU V C A contribuição do pensamento de Emmanuel Mounier para uma reflexão éticocristãpersonalista da pessoa na contemporaneidade Tese do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais Belém UFPA 2008 ALBERNAZ M F Personalismo e a formação humanizadora um estudo das contribuições de Mounier Dissertação do Programa de PósGraduação em Educação Goiânia UFG 2014 ARRUDA E SOUZA NETO J C O Personalismo Freireano a influência da Filosofia de Emmanuel Mounier Revista de Educação Pública v 32 p 2441 2023 BINGEMER M C L A mulher na igreja e na sociedade Annales Faje v 2 n 4 p 2948 2017 BRAGA L F SEVERINO A J Breves reflexões sobre o personalismo em Emmanuel Mounier Universidade Federal da Paraíba Revista Temas em Educação v 26 n 1 p 86 2017 CARVALHO NETO A A Do luto à luta emergência da visibilidade à luz do reconhecimento em Charles Taylor Annales Faje v 8 n 2 p 245245 2023 COSTA D A emergência e a insurgência da pessoa humana na história Ensaio sobre a construção do conceito de dignidade humana no personalismo de Emmanuel Mounier Dissertação do Programa de PósGraduação em Filosofia São Paulo USP 2009 COSTA E SILVA P Racionalidade técnica e formação um estudo a partir do personalismo de Mounier Tese do Programa de PósGraduação em Educação Goiânia UFG 2015 CUGINI P O personalismo de Emmanuel Mounier Origem temáticas e atualizações Rio de Janeiro Telha 2023 DOMINGUES F Fazer pequenas coisas com grande amor 02092016 Disponível em httpsarquisporgbrfazerpequenascoisascomgrandeamor Acesso em Abr2024 GUISSARD L O cristão Mounier In DOMENACH JM Presença de Mounier São Paulo Duas Cidades 1969 HECHT E SERVENT P O século de sangue São Paulo Editora Contexto 2015 INSTITUTO HUMANITAS A guerra derrota a dignidade humana e evita encontrar solução diz cardeal do Vaticano 10 Outubro 2023 Disponível em httpswwwihuunisinosbrcategorias633141aguerraderrotaadignidadehumanae evitaencontrarsolucaodizcardealdovaticano Acesso em Abr2024 Estamos no limiar da Terceira Guerra Mundial Artigo de Giuseppe Savagnone 08042024 Disponível em httpswwwihuunisinosbrcategorias638160estamosnolimiardaterceiraguerra mundialartigodegiuseppesavagnone Acesso em Abr2024 LÁZARO J A SGANZERLA A O Personalismo de Emmanuel Mounier a dignidade da pessoa humana e a crise de valores na Sociedade Moçambicana REID Revista Electrónica de Investigação e Desenvolvimento Vol 2 Nº 10 Ano 2019 LOREZON A Influência do personalismo de Emmanuel Mounier no Brasil subsídios e apontamentos para um estudo mais aprofundado In LOREZON A GÓMEZ DE SOUZA L A ORGs Emmanuel Mounier Revista Filosófica Brasileira Departamento de Filosofia da UFRJ Vol Nº 1 junho 1992 p 99114 MOUNIER E O Personalismo Tradução de Vinícius Eduardo Alves São Paulo Centauro 2004 1949 NASCIMENTO C G A práxis filosófica no pensamento de Emmanuel Mounier em tempos de globalização Revista Fragmentos de CulturaRevista Interdisciplinar de Ciências Humanas v 17 n 1 p 117136 2007 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Ucrânia Comissão revela desrespeito à dignidade humana das autoridades russas 20 Outubro 2023 Disponível em httpsnewsunorgptstory2023101822207 Acesso em Abr2024 ZILLES U Gabriel Marcel e o existencialismo Porto Alegre EDIPUCRS 1995 2 O personalismo de Emmanuel Mounier contribuições ao cristianismo 21 Elementos cristãos da filosofia personalista A base deste capítulo será fundamentada na principal obra do filósofo católico Emmanuel Mounier O personalismo1 que nos oferece uma análise detalhada dos processos que envolvem paulatinamente a construção mais do que um sistema de uma postura individualista Através de sua proposta personalista avalia criticamente a postura individualista apresentando seus danos do ponto de vista individual e coletivo O personalismo consiste precisamente nisso numa oposição ao individualismo Enquanto este último mantém o homem centrado sobre si mesmo a primeira preocupação do personalismo é descentrálo para colocálo nas largas perspectivas abertas pela pessoa2 A pessoa segundo o personalismo surge como uma presença voltada para o mundo e para as outras sem limites misturadas com elas numa perspectiva comunitária As outras pessoas não a limitam fazemna ser e crescer Não existe senão para os outros não se conhece senão pelos outros não se encontra senão nos outros A experiência primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa A pessoa no movimento que a faz ser expõese por isso é por natureza comunicável Para Emmanuel Mounier aquele que se encerra no seu eu nunca encontrará o caminho para os outros Em sua concepção só existimos na medida em que existimos para os outros Toda e qualquer pessoa é desde suas origens movimento para os outros em suas palavras ser para3 Na avaliação do psicanalista Erich Fromm em sua obra intitulada A Arte de amar4 a realização do ser humano darseá através do que ele chama de unidade interpessoal da 1 MOUNIER E O personalismo São Paulo Centauro Editora 2004 2 MOUNIER E O personalismo op cit p 45 3 Ibid p 57 4 FROMM E A arte de amar Belo Horizonte Editora Itatiaia 1964 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 56 interação e integração com outra pessoa Segundo Fromm o desejo da relação interpessoal é o mais poderoso anseio do ser humano É o que proporciona a conservação da raça humana clã ou família e sem ela fundamenta a realização do humano vêse frustrada5 A existência humana não se faz legítima quando não há a experiência relacional e o interesse no bem estar holístico do outro Acreditamos que a abordagem de Mounier relativa ao conceito de pessoa em função de sua ênfase comunitária possa nos ajudar a traçar um paralelo com as orientações básicas do cristianismo do ponto de vista comunitário e da singularidade da pessoa O autor mesmo realiza esta conexão na medida em que aponta o cristianismo como o arauto de uma noção decisiva de pessoa6 Parte de sua abordagem apresentase como tipicamente cristã7 Como exemplo podemos tomar a referência que faz a Deus8 Estruturando parte de seu pensamento personalista relembranos o fato de que a humanidade não vive sob a tirania abstrata de um Destino de uma constelação de idéias ou de um Pensamento Impessoal indiferente a destinos individuais mas um Deus que é ele próprio pessoal9 embora de um modo eminente um Deus que entregou a sua pessoa para assumir a transfiguração humana e que propõe a cada pessoa uma relação única em intimidade uma participação na sua divindade um Deus que não se afirma como pensou o ateísmo moderno10 sobre coisas arrancadas ao 5 FROMM E A arte de amar op cit p34 6 MOUNIER E O personalismo op cit p18 7 Mounier se assume como um filósofo que está entre aqueles confessam a Cristo e que nele acham o próprio sentido e a força de seu congraçamento Cf MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p98 8 Deus para Mounier é o Ser supremo que por amor nos fez existir não conferindo unidade ao mundo através da abstração de uma idéia mas através de uma infinita capacidade para multiplicar indefinidamente esses atos de amor únicos Cf MOUNIER E O personalismo op cit p 18 9 Conforme também Fábio Konder Comparato Defende Conparato que segundo o próprio texto bíblico Deus não é um princípio indeterminado e impessoal como o primeiro motor na filosofia de Aristóteles mas uma pessoa que mantém com os homens por ele criados uma relação pessoal Tratase de um Deus que transcende o mundo por ele criado mas está ao mesmo tempo sempre presente e atuante pelo diálogo pessoal e pela ação na história da humanidade Cf COMPARATO F K Ética direito moral e religião no mundo moderno São Paulo Companhia das Letras 2006 pp 445447 10 Mounier aqui faz referência aos pensadores Bakounine e Feuerbach Cf MOUNIER E O personalismo op cit p 19 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 57 homem mas que antes lhe outorga uma liberdade análoga à sua pagandolhe em generosidade o que em generosidade for dado11 Por isso defende Mounier Ao movimento de liberdade o homem é livremente chamado A liberdade é constitutiva da existência criada Deus teria podido criar num momento uma criatura tão perfeita quanto o pudesse ser Mas preferiu que fosse o homem chamado a amadurecer livremente a sua humanidade O direito de pecar ou seja de recusar o seu destino é essencial ao pleno uso da liberdade12 Em sua outra obra Manifesto ao serviço do personalismo13 Mounier apresenta a liberdade da pessoa como a liberdade de descobrir por si mesma a sua vocação e de adotar livremente os meios de realizála Não consiste numa liberdade de abstenção mas uma liberdade de assunção14 A liberdade da pessoa é necessariamente adesão Todavia para Mounier essa adesão somente é propriamente pessoal a partir do momento em que seja um compromisso consentido e renovado com uma vida espiritual libertadora e não a simples aderência obtida à força15 Esse absoluto pessoal conforme nos apresenta o filósofo não isola o homem nem do mundo nem dos outros homens A Encarnação confirma a unidade da terra e do céu da carne e do espírito confirma o valor redentor da obra humana logo que assumida pela graça Assim pela primeira vez a unidade do gênero humano foi plenamente afirmada e duas vezes confirmada Vejamos Cada pessoa é criada à imagem de Deus16 cada pessoa é chamada para formar um imenso Corpo místico e carnal na Caridade de Cristo Começa a 11 Cf MOUNIER E O personalismo op cit p 19 12 Cf Ibid 13 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo Lisboa Livraria Morais Editora 1967 14 Ibid pp 102 103 15 Ibid p 103 16 Atentemos para o que nos é lembrado através da expressão à semelhança de Deus Na concepção do teólogo Jürgen Moltmann semelhança de Deus significa em primeiro lugar a relação de Deus para com a pessoa e somente então a partir disso a relação da pessoa para com Deus Lembranos ainda o teólogo que Deus se coloca num tal relacionamento para com a pessoa que essa se torna a sua imagem e a sua honra na terra O ser da pessoa brota dessa relação de Deus para com a pessoa e consiste nessa relação O ser humano como imagem de Deus não pode PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 58 tomar sentido uma história coletiva da humanidade de que os gregos não tinham sequer idéia A própria concepção da Trindade que alimentou dois séculos de debates traz consigo a idéia surpreendente de um Ser Supremo no qual intimamente dialogam pessoas diferentes de um Ser que é já por Si próprio negação da solidão17 A esse respeito as contribuições de Leonardo Boff em sua obra Trindade e Sociedade18 nos auxiliarão apontando sistematicamente que Deus Uno e Trino consiste precisamente em um convite à experiência comunitária Por sua própria dinâmica interna as três divinas Pessoas se efundem para fora criando outros diferentes criação cósmica e humana para que se tornem o receptáculo da infinita transfusão do amor comunicativo de Deus e do oceano sem limites da vida trinitária19 Esta unidade trinitária é integradora e inclusiva Ela se destina à plena glorificação de toda a criação no Deus trino sanando o que está doente libertando o que está cativo perdoando o que está ofendendo a comunhão divina Esta integração trinitária deve se mostrar já agora na história na medida em que se superam as rupturas da comunidade conforme Gl 328 judeus e pagãos gregos ou bárbaros escravos e patrões homens e mulheres e Rm 1012 e se instaura a economia do dom atendendo às necessidades At 43135 numa comunidade onde haja um só coração e uma só alma At 43220 segundo a avaliação do teólogo viver isoladamente mas somente em comunhão humana Por isso defende a pessoa é desde o início um ser social A pessoa foi feita para viver em comunhão humana e essencialmente precisa de ajuda Gn 218 Como fundamenta Moltman a pessoa é um ser sociável e desenvolve sua personalidade somente na comunhão com outras pessoas Consequentemente ela somente pode ser em relação a si mesma se e na medida em que outras pessoas se relacionam com ela O indivíduo isolado e o sujeito solitário são formas deficientes do serpessoa porque eles perdem a semelhança de Deus Cf MOLTMANN J Deus na criação doutrina ecológica da criação Petrópolis Vozes 1993 pp 318 321 17Mounier nos lembra que essa visão era demasiado nova demasiado radical para produzir imediatamente todos os seus frutos Por isso em sua concepção essa visão serviu como fermento da história de seu início ao fim Durante toda a época medieval permaneceram presentes uma série de elementos ideológicos da Antiguidade grega Foram precisos vários séculos para se passar da reabilitação espiritual do escravo à sua efetiva libertação Cf MOUNIER E O personalismo opcit p 20 18BOFF L A trindade e a Sociedade Petrópolis Vozes 1987 19Ibid p 185 20BOFF L A trindade e a Sociedade op cit pp 185186 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 59 A esse respeito nos auxilia também o teólogo alemão Jürgen Moltmann Segundo ele a doutrina trinitária se apresenta como a melhor possibilidade de compreensão em relação a Deus a qual descobre no próprio Deus os seguintes aspectos a diferença e a unidade e a unidade da diferença Por isso apresenta o Deus que em si mesmo é rico em relacionamento e é um Deus comunitário21 O análogo da semelhança de Deus está na relação diferenciada na diferença rica em relações a qual no Deus uno e trino constitui a vida eterna do Pai do Filho e do Espírito e que determina nas pessoas a vida temporal de homens e mulheres de pais mães e crianças Essa comunhão aberta de vida social de pessoas é a forma de vida que corresponde à comunhão divina Assim o conceito trinitário de comunhão está em condições de superar não apenas o eusolidão do narciso mas também o egoísmo do par homemmulher22 O personalismo conta entre as suas idéiaschave a afirmação da unidade da humanidade no espaço e no tempo idéia afirmada pela tradição judaicocristã Nos lembra Mounier que para o cristão não há nem cidadão nem bárbaro nem senhor nem escravo nem judeus nem pagãos nem brancos nem negros nem amarelos mas todos são homens criados à imagem de Deus e todos chamados à salvação em Jesus Cristo23 Mounier defende a idéia de um gênero humano com uma história e destinos coletivos de onde segundo ele não pode ser separado nenhum destino individual24 22 Crise do cristianismo Já em meados do século XX Emmanuel Mounier chamava a atenção para um tema que contemporaneamente temos discutido recorrentemente os elementos que configuravam a suposta crise que o cristianismo passava Nos alertava que em sua avaliação parecia que o cristianismo ainda não havia realizado com o 21MOLTMANN J Deus na criação op cit p 322 22Ibid 23 MOUNIER E O personalismo op cit p 55 24Mounier opõese a todas as formas de racismos ou castas às eliminações dos anormais ao desprezo pelo estrangeiro à totalitária negação do adversário político numa palavra e em geral à constituição de homens à parte Segundo ele um homem mesmo diferente mesmo degradado é sempre um homem a quem devemos permitir que viva como um homem Cf Ibid PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 60 mundo moderno a união conseguida com o mundo medieval Perguntava então Estará a atingir o seu fim Não será este divórcio prova evidente25 Tais questionamentos coincidentemente parecem ir ao encontro das palavras de Josefh Moinght em sua obra Dios que viene al hombre Para Moingt diante dos olhos da cultura ocidental Deus parece ter mais passado do que futuro um futuro completamente diferente do que foi seu passado no seio da religião26 Conforme Moingt Mounier chega à mesma conclusão Através de uma avaliação mais profunda e apurada o filósofo personalista é levado a concluir que essa crise não é o fim do cristianismo em si mas o fim de uma cristandade de um corrompido regime do mundo cristão que rompe suas amarras e parte à deriva deixando atrás de si os pioneiros de uma nova cristandade27 Para Mounier a crise do cristianismo não é somente uma crise histórica da cristandade é uma crise de valores religiosos num mundo neutro A filosofia iluminista julgavaos artificialmente suscitados e acreditava na sua próxima desaparição Durante um certo tempo alimentou esta ilusão com a ascensão do entusiasmo científico Contudo nos lembra Mounier o século XX nos demonstrou que mesmo quando desaparecem no seu aspecto cristão as formas religiosas reaparecem sob outros quaisquer dados através da divinização do corpo da coletividade da Espécie de um Chefe de um Partido etc28 23 Caracterização do individualismo 25 MOUNIER E O personalismo op cit p 138 26Moingt salienta que não foram os ataques dos filósofos iluministas à religião ou à idéia de Deus que colocaram o cristianismo em perigo mas uma nova episteme uma nova regulação dos saberes novos critérios de verdade um novo modo de ver o universo a história a sociedade uma nova organização da sociedade em função da emancipação dos indivíduos Cf MOINGT J Dios que viene al hombre del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Sígueme 2007 p 103 Ver também PALÁCIO C Novos paradigmas ou fim de uma era teológica In ANJOS M F org op cit pp 7783 27MOUNIER E O personalismo op cit p 138 28MOUNIER E O personalismo op cit p 138 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 61 Segundo Emmanuel Mounier a Revolução Francesa marca uma fase importante da libertação política e social embora limitada pelo seu contexto individualista Desde essa ocasião um quase fatalismo se desenvolve da seguinte maneira o individualismo encontra terreno favorável na fase conquistadora do capitalismo e desenvolvese rapidamente Assim o Estado liberal cristalizao nos seus códigos e nas suas instituições e lança a condição concreta das massas urbanas na escravidão social econômica e rapidamente política29 Através desta dinâmica são fomentadas as paixões do indivíduo percorrendo todas as gamas da afetividade mas arrastando o indivíduo para o isolamento não lhe permitindo a escolha senão entre a solidão desesperada e a dispersão do desejo Recuando perante essas novas angústias e temendo as imprudências do desejo o mundo do pequeno burguês recalca o indivíduo por detrás de uma aparência de medíocres satisfações instaura o reino individualista cauteloso30 Emmanuel Mounier nos lembra no capítulo segundo de sua obra O personalismo que desde o princípio da história são mais os dias consagrados à guerra do que os consagrados à paz31 Para ele a vida em sociedade tem sido uma permanente guerrilha Em suas próprias palavras Onde a hostilidade cessa começa a indiferença Os caminhos da camaradagem da amizade ou do amor parecem perdidos nos imensos revezes da fraternidade humana Cada um de nós tem sido necessariamente ou um tirano ou um escravo O olhar dos outros rouba me o meu universo a presença dos outros detém a minha liberdade a sua escolha paralisame O amor é uma infecção mútua um inferno 32 Reconhece o filósofo que tais declarações evocam um importante aspecto das relações humanas E como ele mesmo salienta O mundo dos outros não é um 29Ibid p 23 30Ibid 31 Interessante observar que ainda hoje através de autores como o filósofo europeu Gianni Vattimo podemos verificar a mesma afirmação Nos lembra Vattimo que atualmente ainda se faz guerra para erradicar a guerra Tratase da idéia de que com a violência se possa finalmente pôr fim à violência alegandose que todas as guerras são sempre as últimas Cf VATTIMO G Depois da cristandade por um cristianismo não religioso Rio de janeiro São Paulo Editora Record 2004 p 141 32 MOUNIER E O personalismo op cit p 43 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 62 jardim de delícias33 É permanente provocação à luta à adaptação e incitanos a ir mais além34 O mundo dos outros constantemente nos oferece a possibilidade do risco e do sofrimento inclusive quando esperamos que nos ofereça a paz Por isso nosso instinto de autodefesa reage recusando o outro e suprimindo toda e qualquer possibilidade de contato 35 O individualismo na concepção de Mounier consiste num sistema de costumes de sentimentos de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e de defesa Foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental desde o século XVIII e o século XIX36 Homem abstrato sem vínculos nem comunidades naturais deus supremo no centro de uma liberdade sem direção nem medida sempre pronto a olhar os outros com desconfiança cálculo ou reivindicações instituições reduzidas a assegurar a instalação de todos esses egoísmos ou o seu melhor rendimento pelas associações voltadas para o lucro eis a forma de civilização que vemos agonizar Para Mounier sem dúvida alguma uma das mais pobres que a história testemunhou Civilização que enquadrase perfeitamente no que ele chama de a própria antítese do personalismo37 e o seu mais direto adversário38 33Como fundamenta Emmanuel Mounier em sua obra Introdução aos Existencialismos O outro é o que ameaça as minhas posses mundanas e surgeme sob o aspecto de estorvo possível Cf MOUNIER E Introdução aos existencialismos op cit p156 34 MOUNIER EO personalismo op cit pp 4344 35 Ibid p 44 36 Ibid pp 4445 37 Uma civilização personalista é uma civilização cujas estruturas e espírito estão orientados para a realização da pessoa que é cada um dos indivíduos que a compõem As coletividades naturais são aqui reconhecidas na sua realidade e na sua finalidade própria diferente da simples soma dos interesses individuais e superior aos interesses do indivíduo considerado materialmente Elas têm todavia por fim último pôr cada pessoa em estado de poder viver como pessoa quer dizer em estado de poder atingir um máximo de iniciativa de responsabilidade de vida espiritual Cf MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 83 Ver também NOGARE P D Humanismos e antihumanismos introdução à antropologia filosófica Petrópolis Vozes 1978 p 147 38 MOUNIER EO personalismo op cit pp 4445 Segundo a obra Antropologia personalista de Mounier de Antônio Joaquim Severino o modo de filosofar de Emanuel Mounier uniase à tomada de consciência de uma grande crise histórica pela qual passava a civilização ocidental Assim fundamenta Severino o personalismo partiu de uma tomada de consciência da situação degradada da civilização ocidental e sua primeira tarefa era civilizadora E como movimento civilizador propagou até mesmo uma revolução total das estruturas da civilização Contudo Mounier assim o fazia pretendendo manter tal empreendimento fecundado por uma profunda reflexão filosófica Em função disso surgiram conflitos entre ele e outros demais movimentos imediatamente ávidos de ação e demasiadamente impacientes quanto à resultados rápidos Cf SEVERINO A J Antropologia personalista de Mounier op cit p 23 Ver também COSTA J B Emmanuel Mounier Lisboa Círculo do Humanismo Cristão Livraria Morais Editora 1960 pp PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 63 Nesta civilização opõese muitas vezes pessoa e indivíduo Assim corremos então o risco de desligar a pessoa das suas concretas amarras O movimento de interiorização constituído pelo indivíduo contribui para assegurar sua forma No entanto a pessoa segundo Mounier somente tem a possibilidade de se desenvolver autenticamente como pessoa na medida em que sem cessar se purifica do indivíduo que nela está Não o conseguirá voltando toda sua atenção sobre si própria mas pelo contrário tornadose disponível e por isso mesmo mais transparente a si própria e aos outros39 Para Emmanuel Mounier Tudo se passa como se nos tornássemos então quando já não estamos mais ocupados conosco cheio de nós então e então somente prontos para os outros entrados em graça40 A crítica ao gigantismo social realizada por Mounier opõe uma salutar inquietação à mania do lógico e dos elementos que levam os próprios homens a pensar nos homens como massa Desta forma um grande estímulo para melhor os pensar como matéria ou instrumento para melhor os negar como pessoas41 Segundo Mounier a forma mais baixa que podemos conceber de um universo de homens seria um mundo em que nos deixamos aglomerar quando renunciamos a ser pessoas lúcidas e responsáveis mundo da consciência sonolenta dos instintos anônimos das opiniões vagas dos respeitos humanos das relações mundanas do dizquedizque cotidiano do conformismo social ou político da mediocridade moral da multidão das massas anônimas das organizações irresponsáveis42 3031 39 MOUNIER E O personalismo op cit p 45 40 Ibid 41 Ibid p 51 Conforme observa Alino Lorenzon em sua obra intitulada Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier o personalismo sempre recusou a dicotomia entre a reflexão e o engajamento visando conceber o discurso filosófico de uma maneira diferente da tradicional Sua intenção era permitir que o ser humano se comportasse face à história e ao acontecimento não como um simples espectador mas como um ator Não se tratava simplesmente de criticar a história ainda que da maneira mais objetiva mas de pressionála tendo sempre o cuidado de não separar o pensamento da ação No centro dessa dialética é que segundo Mounier a pessoa deveria estar a pessoa concreta e histórica Para Mounier a pessoa deveria estudar os problemas humanos sim mas simultaneamente lutar pelo ser humano no processo de personalização individual e comunitária Cf LORENZON A Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier Ijuí Unijuí 1996 p 7 42 MOUNIER E O personalismo op cit p 52 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 64 Na concepção de Mounier tal mundo consiste num mundo sem vitalidade e completamente desolado onde cada pessoa renunciou provisoriamente sua capacidade de ser si mesmo para se transformar num qualquer não interessando quem e de que forma Este mundo não constitui nem um nós nem um todo Não está ligado a esta ou àquela forma social antes é em todas elas uma maneira de ser Nos lembra então Mounier que o primeiro ato de uma vida que quer se transformar numa vida pessoal seria a tomada de consciência de sua vida anônima e a geração da revolta contra os efeitos de degradação oriundos de uma existência anônima43 Segundo o filósofo personalista a civilização ocidental consiste numa comunidade de necessidades ou interesses E tal comunidade esconde debaixo de provisórios entendimentos a discórdia Na opinião do filósofo a prática da associação não é capaz nunca de arrancar definitivamente o interesse por seu vetor egocêntrico A suposta hierarquia interna das funções embora aparentemente muito bem estabelecida enrijece e torna cada vez mais espinhosa as relações entre escravo e senhor classes castas postos cargos etc Dessa forma cada relação destas mencionadas comporta internamente variados germes de guerras interiores Neste processo contribuem para a formação de um todo que corrompe o nós44 O século XVIII nos alertava Mounier pensou que a única solução para escapar às paixões das sociedades irracionais estava numa sociedade racional fundada num acordo dos espíritos num pensamento impessoal e no acordo dos comportamentos numa ordem jurídica formal Pensavam que assim caminhariam para a paz 43 Ibid 44 Ibid p 53 Quanto a isso é interessante observar as colocações do sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza Segundo ele numa carta que Mounier escreveu para um amigo em 1940 diz que já em 1929 em plena crise econômica a crise de 1929 Mounier sentia que não se tratava apenas de uma crise de um sistema econômico mas de uma crise de civilização Assim ainda segundo Luiz Alberto Mounier em 1932 com a criação da revista Esprit lançou um manifesto Refaire la Renaissance Isto porque o renascimento foi o começo de 500 anos da modernidade e de certa maneira esses 500 anos estavam se esgotando Seria necessário retomar o começo de uma nova época Desse modo Mounier intuía que estávamos no fim de um tempo e no começo de outro mas que era um começo lento até chegar a um novo renascimento Cf SOUZA L A G A dimensão política do pensamento de Mounier In BINGEMER M C L org Testemunhas do século XX Mounier Weil e Silone Rio de Janeiro Editora PucRio 2007 p 55 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 65 universal através da instrução obrigatória da organização industrial ou do reinado do direito45 Contudo a experiência iria demonstrar que o saber agita paixões que o direito formal pode sufocar desordens persistentes que a organização e a ideologia quando desprezam o absoluto pessoal levam tal como as paixões à polícia à crueldade e à guerra Em outras palavras pronuncia Mounier não podemos querer estabelecer a universalidade esquecendo as demandas e a complexidade da pessoa46 A sociedade urbana nos moldes em que a conhecemos fomenta a sufocação do ímpeto comunitário e nos ameaça de nos degradarmos em sociedades fechadas Estas somente poderão manter vívidos os elementos de um universo pessoal se cada uma delas se mantiver virtualmente aberta à universalidade das pessoas E para conseguirmos alguma unidade não poderá ser uma unidade de identidade pois por definição a pessoa é aquilo que não pode ser repetido47 24 A necessária doação O personalismo de Mounier salientava a absoluta necessidade de como sociedade permitirmos que todos os seus membros possuíssem condições mínimas de subsistência A respeito daqueles que se encontravam sempre marginalizados expressava Um homem mesmo diferente mesmo degradado é sempre um homem a quem devemos permitir que viva como um homem48 45 MOUNIER E O personalismo op cit p 53 46 Ibid Por toda parte destaca ainda Mounier o ser humano é obrigado a aceitar sistemas e instituições que o esquecem por completo Assim quando curvase automaticamente destróise Por isso o filósofo desejava salvar o ser humano oferecendolhe consciência do que realmente é Considerava sua tarefa central divulgar a verdadeira noção de ser humano com dignidade mínima e condições justas para desenvolver sua vida pessoal e comunitária É assim que livre para ser absolutamente franco frente à realidade construía sua obra para um mundo novo Cf J B COSTA Emmanuel Mounier Lisboa Círculo do Humanismo Cristão Livraria Morais Editora 1960 pp 3233 47 MOUNIER E O personalismo op cit p 54 48 Ibid p 55 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 66 Para tal defendia que as evoluções tecnológicas as reflexões mais apuradas as meditações as retificações intelectuais as generosidades as construções técnicas de nada valem se os homens não se engajam com atos e compromissos visando a dignidade humana49 O filósofo concebe a ação não como um mal necessário mas com uma superabundância da alma a serviço dos homens50 Insistia sobre o urgente dever de todas as pessoas estarem presentes no mundo E essa presença afirmava somente se provaria através de seus engajamentos51 Segundo o seu pensamento tudo muda completamente se nos colocamos em relação a nós mesmos e aos outros numa atitude de disponibilidade deixando de pensarmos exclusivamente em nós mesmos como seres que buscam somente a autoproteção Sugere que estejamos abertos ao mundo e aos outros prestando nos à sua influência sem cálculo ou sistemática desconfiança Tratarseia de nos oferecermos a uma irrupção cuja especificidade é sermos arrancados de nós mesmos arrancados de nosso pensamento autocentrado52 Sugere Mounier que vivenciemos a experiência de uma presença sempre disponível ao outro e por isso mesmo sempre nova Seria o que chama de fidelidade criadora já que os dados de nosso compromisso perpetuamente se modificariam no decurso do caminho e perpetuamente reinventariam a continuidade de seu destino53 Experiências como essa a presença do outro longe de nos imobilizar surgem ao contrário como fonte de méritos e são indubitavelmente necessárias à renovação e criação São indispensáveis para permitir que o outro lance sobre nós o seu olhar e surta algum efeito Mas para isso nos lembra Mounier é necessário que acolhamos a presença do outro como algo que disponhamos Em suas próprias palavras Para que o olhar que sobre mim se pousa não me imobilize mas muito 49 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 105 50 Ibid pp 112113 51 Ibid p 113 52 MOUNIER E Introdução aos existencialismos op cit157 53 Ibid PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 67 pelo contrário me importune me inquiete me ponha em causa54 O olhar do outro se de fato o acolhermos nos despoja de nós mesmos nos despoja de nossa opacidade egocêntrica de nossas obstruções55 Por isso explica Mounier existimos como um ser transcendente feitos para permanentemente se libertar de si mesmos de nossas paixões de nosso desprezo pelos homens56 de nossa autosuficiência de nosso isolamento estéril ou de nossa busca pelo poder57 Nesse sentido completa o filósofo é necessário que conheçamos o povo e para isto não basta olhálo de fora Assim para perceber o sentido deste conhecimento do povo é preciso não somente agir para o povo ocuparse de obras que visam o povo humilhado e desprezado58 mas ser com existir com o povo sofrer e comungar com seu destino59 Sendo ainda mais explícito Mounier utiliza as seguintes palavras Pecadores com os outros devemos trabalhar com os outros acotovelandonos com a multidão malcheirosa60 Sobre a responsabilidade de todos sobre todos Mounier menciona o fato de algumas pessoas se esconderem atrás da doutrina da nãoviolência e denuncia que muitas vezes tal doutrina servia como refúgio ao medo de viver Um dos frutos desse refúgio seria a existência de um falso pacifismo que segundo ele não 54 Ibid p158 55 Ibid 56 Algo que Mounier concebe com uma traição da existência Cf MOUNIER E Introdução aos existencialismos op cit p162 57 Ibid pp161162 58 Denuncia Mounier que há uma realidade dolorosamente incontestável e esta é precisamente o povo para ele a comunidade daqueles que jamais gozaram de privilégio nem comando a comunidade daqueles sobre quem caem sempre de pai para filho as tarefas mais duras a comunidade daqueles que jamais serão chefes a comunidade daqueles que estão unidos num difícil e sangrento patrimônio histórico por uma certa maneira de viver o sofrimento sendo segundo Mounier sempre os mesmos que se oferecem para morrer Cf MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 102 59 Ibid p 101 60 Ibid p 113 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 68 passava de evasão desejo de tranqüilidade e por isso atacado pelo filósofo na mesma medida em que atacava o belicismo61 As palavras de Emmanuel Lévinas oriundas de sua obra Humanismo do outro homem também nos oferecem uma base proveitosa para essa reflexão O filósofo nos estimula a renunciarmos à costumeira necessidade que temos de sermos contemporâneos ao triunfo de nossa obra Lévinas nos encoraja a permitirmos o desenvolvimento desse triunfo em um futuro sem nós62 ousarmos por oferta pura de nós mesmos visar este mundo sem a exigência de nossa própria presença visar um tempo para além do horizonte de nosso tempo libertação em relação ao nosso próprio tempo63 Lévinas sugere a possibilidade de sermos para um tempo que seria sem nós para um tempo depois de nosso tempo Em suas palavras Ser para a morte a fim de ser para o que vem depois de mim64 Ação por um mundo que vem superação de nossa própria época superação de si que requer a epifania do outro65 Oferecenos então o filósofo um exemplo referente a um homem que mesmo na prisão continua a crer num futuro incerto e continua a trabalhar no presente para as mais distantes coisas às quais o presente é um irrecusável desmentido Para Lévinas há vulgaridade e baixeza numa ação que só se concebe para o imediato e para nossa própria vida Por outro lado uma nobreza muito grande na energia que se liberta da concreção do presente e o agir em prol do futuro66 25 Revolução pessoal Para Mounier é preciso ser antes de fazer E para ser é preciso extirpar o mal que há em nós Por isso explica que a revolução deve ser em primeiro lugar o 61 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 117 62 A expressão específica que o autor utiliza é a seguinte triunfo num tempo sem mim moi Cf LÉVINAS E Humanismo do outro homem Petrópolis Vozes 1993 p 45 63 Ibid 64 Ibid p 46 65 Ibid 66 Ibid p47 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 69 sentimento insuportável de um conflito entre o que acreditamos ser e o que realmente somos entre a ordem a que nós servimos e a ordem autêntica Mounier denomina revolução pessoal a atitude que nasce a cada instante de uma tomada de má consciência revolucionária seria uma revolta dirigida em primeiro lugar por cada um contra si mesmo Uma revolta sobre a nossa própria participação ou sobre a nossa própria complacência com a desordem estabelecida67 Um espírito de revolta a respeito do distanciamento tolerado entre aquilo a que a pessoa serve e o que ela mesma diz servir Tal postura geraria assim uma expansão e num segundo momento uma conversão contínua de toda pessoa agora solidária através de palavras gestos e princípios na unidade de um mesmo engajamento Tal revolução segundo Mounier é interminável e para o cristão ilimitada68 Algumas pessoas alega o filósofo católico resistem à revolução pessoal por interesses individualistas já outras que considera boas pessoas o fazem por puro otimismo e uma incapacidade de se chocarem com o mal existente Assim consequentemente se posicionam de maneira hostil a quaisquer mudanças Os próprios cristãos na visão de Mounier são guiados por uma falsa noção de caridade algumas vezes confundida com uma acomodante indulgência que na maioria das vezes não é indulgência para com os outros porque é antes indulgência para consigo69 Esses cristãos na visão de Mounier são marcados então por uma excessiva harmonia em sua visão de mundo e insuficiente realismo o que faz com que se escandalizem com as denúncias da desordem os anátemas e a expressão do desejo ardente de justiça70 Essa postura no âmbito cristão na avaliação de 67 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 108 68 Ibid 69 Ibid p 109 70 Sobre tal conformismo nos auxilia também Erich Fromm A sociedade contemporânea advoga esse ideal de igualdade não individualizada porque necessita de átomos humanos cada qual o mesmo a fim de fazêlos funcionar numa agregação de massa suavemente sem fricções obedecendo todos ao mesmo comando e contudo convencido cada qual de estar seguindo seus próprios desejos Assim como a moderna produção em massa exige a padronização dos artigos também o processo social requer a padronização do homem A união pela conformidade não é intensa e violenta é calma ditada pela rotina e geradora da sensação apaziguadora da conformidade do rebanho Nesta dinâmica o indivíduo é introduzido no padrão conformista ainda PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 70 Emmanuel Mounier acaba então ignorando o destino da comunidade esquecendo a mística a teologia e a moral comunitária do cristianismo71 Alertanos ainda o filósofo que há um mal entendido nascido do contrasenso cometido sob o signo de resignação cristã Segundo sua alegação se o cristão conhece o valor do sofrimento e do sacrifício não poderia estar menos inflamado pelo desejo de justiça72 Aliás alega o filósofo se o cristão por ventura aceita a injustiça para si mesmo ainda assim não possui o direito de fazer dela uma regra para todos73 Mounier proclamava a necessidade da autocrítica revolucionária Para alguns revolucionários lembranos a revolução nada mais é do que um pouco de agitação Assim liberam somente um temperamento Por isso alega o filósofo é importante que os revolucionários se demitam de sua boa consciência Em suas palavras Só merecemos nossa revolução se começarmos por passarmos nós mesmos por completa transformação74 Mais adiante acrescenta ainda Ser revolucionário não é um álibi nem pode suprir o lugar de ser homem75 Segundo o pensamento de Mounier revolução pessoal é o primeiro ponto essencial para a pessoa atingir Sem ela não haverá transformação profunda e duradoura A luta contra a boa consciência é a guerra à mentira que nos na infância e desde então jamais perde o contato com o rebanho Todas as pessoas de tal sociedade realizam tarefas prescritas pela estrutura total da organização social além dos sentimentos prescritos e a diversão rotinizada Cf FROMM E A arte de amar op cit pp 3233 71 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 109 72 Para Mounier é necessário providenciar recursos para permitir que o homem viva como homem dignamente Para isso apresenta a proposta personalista e isso o faz através da provocação do pensamento embora o salto do espírito não proceda dele somente da consideração das idéias e da doutrina que estão nos livros mas de um ato valente de presença na miséria do mundo de hoje da visão insustentável da desordem estabelecida A experiência ou a proximidade da miséria era seu batismo de fogo Este batismo concebia como um grito que precisava ser ouvido o grito da juventude da cólera justa e do amor e não o murmúrio pacífico dos conceitos bem ordenados Em função disto afirmava a indispensabilidade de se tomar consciência o mais rápido possível em relação ao maior número de pessoas possível para assim despertar e reunir os espíritos para engajaremse conjuntamente no combate às desigualdades Cf SEVERINO A J Antropologia personalista de Mounier op cit 20 73 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 118 74 Ibid p 111 75 Ibid PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 71 acostumamos a conviver O segundo ato revolucionário apontado por Mounier deve ser o empenho na revolução contra os mitos76 Em sua visão o mito77 é a mentira inserida no interior dos homens no interior dos partidos O mito assim concebido torna a vida pública contraditória à vida privada Se torna então temível pela ilusão que cria acobertandose dos valores mais sagrados Para o filósofo a eloqüência moral que o mito se reveste acaba mistificando até os corações retos 78 Ainda em relação a indispensabilidade da revolução pessoal Mounier afirmava que nada poderia ajudar o ser humano nessa tarefa Somente ele responsável por sua própria condução poderia gerar a revolução pessoal Quanto ao auxílio da instituições nesse processo declarava Não são as instituições que fazem um homem novo mas um trabalho pessoal do homem sobre si mesmo no qual ninguém pode substituir ninguém As instituições não assumirão seu esforço79 26 Os graus da comunidade A despersonalização do mundo moderno e a decadência da idéia comunitária representam para Mounier uma única e mesma coisa Segundo sua alegação tanto uma como outra vêm a dar no mesmo subproduto de humanidade a sociedade sem rosto feita de homens sem rosto80 O mundo dos homens sem rosto segundo Mounier é o mundo onde flutuam as idéias gerais e as opiniões vagas o mundo das posições neutras e do conhecimento objetivo É deste mundo que procedem as massas aglomerados 76 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 111 77 Evidentemente Mounier não compreende mito como hoje conseguimos compreender Sua abordagem nesta passagem específica em relação à idéia de mito é bastante pejorativa Não compreende mito através do auxílio da antropologia e da filosofia das formas simbólicas onde mito constitui uma forma autônoma e válida de pensamento diferente da razão Cf BOFF L Saber cuidar ética do humano compaixão pela terra Petrópolis Vozes 2004 pp 5557 78 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 101 79 Ibid p 112 80 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 108 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 72 humanos sacudidos em algumas circunstâncias por movimentos violentos As massas são entendidas pelo filósofo como resíduos e não como ponto de partida Despersonalizada em cada um dos seus membros e despersonalizada como todo a massa caracterizase por um misto singular de anarquia e de tirania a tirania do anônimo segundo Mounier de todas as tiranias existentes a mais vexatória já que mascara as forças da impersonalidade81 Não é possível segundo o filósofo criar uma comunidade em um mundo onde já não há próximo onde somente subsistem semelhantes semelhantes esses que não se olham Cada um vive assim uma solidão que ignora a presença do outro Afirma ainda Mounier Quando muito um indivíduo chama seus amigos a alguns duplos de si próprio82 em que possa satisfazerse e tranqüilizarse83 Para o personalismo de Mounier o primeiro ato da iniciação à vida pessoal é a tomada de consciência da vida anônima O primeiro passo de uma pessoa iniciandose numa vida comunitária seria a tomada de consciência de que tem uma vida indiferente indiferente aos outros prioritariamente porque é indiferenciada dos outros Com base nesta declaração estamos aqui no limiar onde começa a vida solidária da pessoa e da comunidade84 Existe um nós violentamente afirmado que não é para cada um dos membros que o professa um pronome pessoal um compromisso da sua liberdade responsável Muitas vezes serve para fugir à angústia da escolha e da decisão nas comodidades do conformismo coletivo Atribuise às vitórias do conjunto e lança se sobre ele os erros85 81 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 108 82 Duplos de si próprio quer dizer para o filósofo pares iguais a convivência somente com aqueles em que nos identificamos Cf Ibid p 109 83 Ibid 84 Ibid Segundo Mounier a pessoa somente se realiza como fazedora de parte de uma comunidade Contudo alertanos o filósofo católico isto não quer dizer que a ela não tenha alguma chance de fazêlo perdendose no anonimato Para Mounier não existe comunidade verdadeira a não ser uma comunidade de pessoas e todas as outras não passam de uma forma do anonimato de pessoas Cf LORENZON A Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 7 85MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 110 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 73 Esta forma elementar de comunidade conquanto seja ardente e leve cada indivíduo a um alto grau de exaltação se constitui caso não seja conduzida cautelosa e criteriosamente contra a pessoa Para Mounier tal forma tende à hipnose como a massa anônima tende ao sono86 Dessa forma tal comunidade ainda não representa mais do que uma comunidade de superfície onde se corre o risco de nas palavras do filósofo se distrair de si sem presença e sem verdadeira permuta87 Nessas comunidades cada qual vive numa espécie de hipnose difusa Se a pessoa pensa pensa as idéias segregadas pelos interesses da associação ou pelos seus interesses na associação A pessoa ainda nada ganha com esta forma de associação Na avaliação do filósofo toda sociedade vital propende para uma sociedade fechada egoísta se não for animada internamente pelos elementos básicos que configuram uma outra comunidade espiritual88 Podemos verificar definitivamente segundo a filosofia de Emmanuel Mounier a implacável impossibilidade de fundar uma verdadeira comunidade se subtraindo a pessoa Esta comunidade ainda que a coberto de pretensos valores humanos seria insuficiente em seu intuito já que estaria desumanizada na medida em que seria despersonalizada89 Mounier confessa que se fosse possível delinear uma utopia descreveria uma comunidade onde cada pessoa se realizaria na totalidade de uma vocação continuamente fecunda e a comunhão do conjunto seria uma resultante viva desses êxitos singulares O lugar de cada um seria aí insubstituível e ao mesmo tempo harmonioso no todo O primeiro laço seria o amor90 e não qualquer interesse econômico Cada pessoa encontraria nos valores comuns 86Ibid 87Ibid pp 110111 88MOUNIER E O personalismo op cit p 112 89MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 113 90 Como observa também o sociólogo e cientista político Luís Alberto Gómez de Souza em sua obra intitulada A utopia surgindo no meio de nós no marxismo Mounier não encontrava o lugar na sua visão ou na sua organização do mundo de sua forma última de existência espiritual que é a pessoa com seus valores próprios a liberdade como já foi mencionada neste capítulo e o amor Cf SOUZA L A G A utopia surgindo no meio de nós Rio de Janeiro Mauad 2003 p145 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 74 transcendentes ao lugar e ao tempo particular de cada um o laço que as ligaria entre si91 Todavia o filósofo reconhece que seria demasiado perigoso conceber este esquema como historicamente realizável Mas segundo ele mesmo que o consideremos um mito ou como cristão algo a ser alcançado não deixa de dar à história uma direção fundamental e deve orientar o ideal comunitário92 Salienta ainda o filósofo A aprendizagem do nós não pode prescindir da aprendizagem do eu Acompanhaa e seguelhe as vicissitudes o anonimato das massas é feito da dissolução dos indivíduos e a crispação das sociedades em nós corresponde a esse estágio em que a personalidade se afinca na afirmação de si93 No entanto lembranos Mounier quando começamos a nos interessar pela presença real dos homens a reconhecer essa presença em face de nós a conhecer a pessoa que ela nos revela o tu que ela nos propõe a não mais ver nela uma terceira pessoa uma pessoa qualquer uma coisa viva e estranha mas um outro eu como eu mesmo então realizaremos o primeiro ato da comunidade sem o qual nenhuma instituição será sólida94 Como nos lembra o filósofo Emmanuel Lévinas em sua obra O Humanismo do outro homem o desejo do outro a sociabilidade nasce num ser que não carece de nada ou mais exatamente nasce para além de tudo que lhe pode faltar ou satisfazêlo Menciona Lévinas 91MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 114 92Ibid Emmanuel Mounier conforme nos lembra Luís Alberto Gómez de Souza ao mesmo tempo que analisava o individualismo em toda sua abertura e o coletivismo com toda sua grandeza denunciava o reducionismo de ambos e assim propunha uma revolução personalista e comunitária que procurava incorporar as verdades de ambos os processos Cf SOUZA L A G A utopia surgindo no meio de nós op cit p141 93 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 114 94 Ibid PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 75 A relação com o outro questioname esvaziame de mim mesmo e não cessa de esvaziarme descobrindome possibilidades sempre novas Nós nos reencontramos diante do outro95 A presença do outro na concepção de Lévinas consiste em um vir a nós consiste em fazer uma entrada Isso pode ser enunciado da seguinte forma o fenômeno que é a aparição do outro é também rosto e a epifania do rosto é também visitação O outro que se manifesta no rosto perpassa de alguma forma sua própria essência plástica como um ser que abrisse a janela onde sua figura no entanto já se desenhava É precisamente isto o que Lévinas descreve pela fórmula o rosto fala A manifestação do rosto é o primeiro discurso Falar é antes de tudo esse modo de chegar por detrás da sua aparência por detrás de sua forma uma abertura na abertura96 O rosto impõese a nós sem que possamos permanecer surdos a seu apelo ou ignorálo sem que possamos cessar de ser responsáveis pelo outro Por isso a presença do rosto significa para Lévinas uma ordem irrecusável97 um mandamento que detém a disponibilidade da consciência A consciência é questionada pelo rosto A visitação do outro consiste em desordenar o próprio egoísmo do eu98 A esse respeito contemporaneamente podemos nos lembrar da expressão poética da canção Copo vazio de Gilberto Gil É sempre bom lembrar Que um copo vazio Está cheio de ar É sempre bom lembrar Que o ar sombrio de um rosto Está cheio de um ar vazio Vazio daquilo que no ar do copo 95 LÉVINAS E Humanismo do outro homem Petrópolis Vozes 1993 pp 49 50 96 Ibid p 51 97Em sua outra obra intitulada De Deus que vem à idéia Lévinas sustenta a tese de que a proximidade significa a partir do rosto do outro homem a responsabilidade já assumida para com ele uma responsabilidade sem escapatória Desse modo justifica Lévinas a subjetividade que diz eu toma sentido nesta responsabilidade de primeiro vindo de primeira pessoa arrancada do lugar confortável que ocupava como indivíduo protegido no conceito do Eu em geral das filosofias Cf LÉVINAS E De Deus que vem à idéia Petrópolis Vozes 2002 p 164 98 LÉVINAS E Humanismo do outro homem op cit pp 52 53 61 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 76 Ocupa um lugar É sempre bom lembrar Guardar de cor que o ar vazio De um rosto sombrio está cheio de dor A obra de Murilo Mendes também visita o drama teológico de lidar com o rosto do outro principalmente do pobre do miserável do fragilizado socialmente drama este salientado pelo evangelho como central para a experiência humana que procura a Deus99 Em seu poema O mau samaritano por exemplo o poeta católico menciona um elemento fundamental para a teologia cristã a co responsabilidade o colocarse no lugar do outro ainda que desconhecido Vejamos Quantas vezes tenho passado perto de um doente Perto de um louco de um triste de um miserável Sem lhes dar uma palavra de consolo Eu bem sei que minha vida é ligada à dos outros Que outros precisam de mim que preciso de Deus Quantas criaturas terão esperado de mim Apenas um olhar que eu recusei 100 27 O conceito de pessoa em Mounier Para Mounier o mundo moderno construiuse inteiramente contra a pessoa humana101 De um lado as manifestações do individualismo de outro o desenvolvimento dos grandes sistemas permitindo as tiranias coletivas Nestas formas de opressão vê o filósofo o verdadeiro mal social e contra eles empenha 99 BINGEMER MCL YUNES E orgs Murilo Cecília e Drummond 100 anos com Deus na poesia brasileira São Paulo Loyola 2004 p 90 100Ibid pp 9091 101Segundo o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza é necessário sermos muito cuidadosos ao utilizarmos em Mounier a categoria de pessoa Segundo ele muitas leituras têm atraiçoado a maneira que Mounier pensava realidades concretas utilizando a categoria do termo pessoa de modo abstrato segundo o sociólogo num vago meiotermo morno nem individual nem coletivo Alertanos Luiz Alberto que segundo Mounier a pessoa humana não é um meiotermo morno entre o indivíduo e a sociedade Ela é ao contrário articulação contraditória e concreta das pessoas e das comunidades em situações determinadas Não podemos fazer um discurso geral e vago sobre a pessoa humana Assim segundo as palavras de Luiz Alberto nós temos que ver na pessoa humana uma situação concreta contraditória intensa num conflito É aí que a pessoa se descobre em toda sua concretude Não como categoria mas como sujeito de um conflito Cf SOUZA L A G A dimensão política do pensamento de Mounier In BINGEMER M C L org Testemunhas do século XX Mounier Weil e Silone Rio de Janeiro Editora PucRio 2007 pp 5556 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 77 suas forças Por isso declara Todo o nosso esforço doutrinário não o esqueçamos visa libertar o senso da pessoa dos erros individualistas e das cadeias dos erros coletivistas102 Aí está todo o programa de Esprit103 todo o programa de Mounier De fato teve cuidado de não só propor remédios sociais e políticos mas de elaborar frente ao individualismo e frente aos grandes sistemas econômicos os aspectos da filosofia personalista e comunitária104 Seu intuito era restabelecer bases sólidas para um mundo tumultuado Assistindo na época a ascensão dos fascismos e do impulso comunista escrevia Mounier Só uma revolução personalista e comunitária pode assegurar o equilíbrio dinâmico da Europa105 Através de uma designação religiosa Mounier concebe a pessoa como um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência e de independência no seu ser A pessoa alimenta essa subsistência por uma adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por uma tomada de posição responsável e uma constante conversão Deste modo a pessoa unifica toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo mediante atos criadores a singularidade da sua vocação106 No entanto apesar da designação acima Mounier reconhece ser extremamente difícil definir o que é uma pessoa Sendo a pessoa com efeito a própria presença 102 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 122 103 Como declara Alino Lorenzon se examinarmos atentamente a revista Esprit de 1932 a 1950 os Journaux Intérieurs dês Amis dEsprit ficaremos impressionados com a quantidade de temas abordados Encontraremos questões de ordem política e econômica religiosa e artística problemas relativos à guerra e à paz ao indivíduo à família e à escola Segundo Lorenzon não se omitiu nada que fosse legitimamente humano A Revista Esprit era também uma revista diferenciada pelo método de trabalho e pela natureza das questões tratadas Era uma presença combatente e crítica manifestada por toda uma rede de grupos de reflexão e de ação Não se constituía apenas numa reunião de artigos mas era o resusltado de uma participação e de uma criação em conjunto pois todos os temas eram o objeto de uma pesquisa e de uma confrontação comunitária antes que o leitor recebesse a revista Cf LORENZON A Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier op cit pp 914 Ver também SEVERINO A J Antropologia personalista de Mounier op cit p24 COSTA J B Emmanuel Mounier Lisboa Círculo do Humanismo Cristão Livraria Morais Editora 1960 pp 2930 104 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier op cit p 122 105 Ibid 106 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 84 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 78 do humano não é suscetível de definição rigorosa107 No entanto revelase através de uma experiência decisiva inerente à liberdade de cada um referente à experiência progressiva de uma vida a vida pessoal108 Entretanto como nos lembra o filósofo há pessoas que são cegas à pessoa109 assim como há pessoas que são cegas à pintura ou surdos à música com a diferença de que são cegos em certa medida responsáveis pela própria cegueira na medida em que a conquista da vida pessoal é uma conquista oferecida a todos e não uma experiência privilegiada110 Essa experiência assim conclui o personalismo é uma experiência fundamental já que se trata da afirmação do valor absoluto da pessoa humana O personalismo quer dizer com isso que a pessoa é um absoluto em comparação com qualquer outra realidade material ou social e com qualquer outra pessoa humana Nunca ela pode ser considerada como parte de um todo família classe Estado nação humanidade Nenhuma outra pessoa nenhuma coletividade nenhum organismo pode utilizála legitimamente como um meio Salienta então Mounier Mesmo Deus na doutrina cristã respeita a liberdade da pessoa ao mesmo tempo em que a vivifica111 Todo o mistério teológico da liberdade assenta nesta dignidade conferida à livre escolha da pessoa Para o cristão esta afirmação de valor fundase na crença de 107 Segundo o filósofo personalista a pessoa não é exaustivamente apresentada e conhecida apenas através de uma noção tradutora da idéia de natureza humana mesmo que desta se possa chegar ainda que dedutivamente a outras dimensões da vida humana Tal noção sendo correlativa a um modo parcial de conhecimento é definida pelo filósofo como sobretudo estática e demasiadamente pobre Alega Mounier que não sendo a pessoa um objeto bem circunscrito que se possa facilmente apreender e sobretudo sendo o ser humano um ser que é aquilo que ele próprio se faz uma noção fixista a respeito do ser humano segundo o filósofo negligencia os mais ricos elementos constitutivos da pessoa Aliás o que Mounier visa com esta declaração segundo o autor Antônio Joaquim Severino é o modo propriamente humano da existência Contudo a realidade desta existência é um equilíbrio a ser constantemente readquirido a ser sempre formado durante a experiência da vida por isso afirma Mounier que a respeito do ser humano o que se constrói dificilmente se define estaticamente Cf SEVERINO A J Antropologia personalista de Mounier op cit pp 32 33 35 108 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 84 109 A esse respeito podemos verificar a afirmação feita por Mounier no primeiro editorial da revista Esprit no célebre Refazer o Renascimento O homem concreto é o homem que se dá Não estou presente a mim próprio se não me dou ao mundo Cf COSTA J B Emmanuel Mounier op cit p 34 110 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 85 111 Ibid p 86 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 79 que o homem é feito à imagem de Deus desde a sua constituição natural e que lhe cumpre perfazer essa imagem numa participação cada vez mais estreita na liberdade suprema dos filhos de Deus112 Contudo alertanos o filósofo personalista devemos tomar o cuidado de não defendermos apenas os privilégios do indivíduo Estes privilégios devem ceder em inúmeras circunstâncias a uma certa organização da ordem coletiva113 Emmanuel Mounier quando mencionava a necessária defesa da pessoa muitas vezes tinha sua defesa confundida com uma forma velada de individualismo Por isso fazia questão de distinguir precisamente a pessoa do indivíduo114 Para o filósofo há na individualidade uma exigência mais mordente um instinto de propriedade que é em relação ao domínio de si Este instinto oferece como atitude primeira ao indivíduo o interesse em reivindicar e apossarse do que significa para ele uma propriedade Muito diferentemente da pessoa em si que é domínio e escolha é generosidade É em sua orientação íntima polarizada precisamente ao contrário do indivíduo115 Nesta oposição do indivíduo à pessoa encontramos somente uma bipolaridade uma tensão dinâmica entre dois movimentos interiores um de dispersão e o outro de concentração A pessoa no humano está substancialmente encarnada misturada à sua carne ao mesmo tempo que a transcende116 112 Ibid pp 8586 113 Ibid p 86 É o que também destaca Leda Miranda Huhne na obra Testemunhas do século XX Mounier Weil e Silone organizada por Maria Clara Lucchetti Bingemer Segundo Huhne o personalismo de Mounier demonstra que a saída para a Boa Nova não está em se colocar de um lado o indivíduo e do outro o coletivo Por isso é preciso ver a pessoa na relação com o outro onde não se possa fugir do fogo cruzado jogo de contradições inerente ao homem e à comunidade exigindo um sair de si para compreender o outro nas suas diferenças e necessidades No entanto esta proposta que parece simples se depara com forças da desordem institucionalizada que conduz aos formalismos reforça os hábitos amplia a alienação e venda os olhos Para Mounier segundo Huhne ser cristão é ser capaz de chegar ao outro abrirse ao outro seja do oriente do ocidente do sul ou do norte Cf BINGEMER M C L org Testemunhas do século XX op cit pp 5556 114 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 87 115 Ibid p 88 116 Ibid pp 88 90 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 80 No entanto alertanos Mounier o despertar de uma vida pessoal só é possível à parte as vias heróicas a partir de um mínimo de bemestar e segurança O mal mais pernicioso que um regime político econômico pode cometer sustenta o filósofo é sufocar na maioria dos homens quer pela miséria ou quaisquer outros elementos a possibilidade e o próprio gosto de serem pessoas117 Para o personalismo o primeiro dever de todo homem quando milhões de homens são afastados da vocação do homem não é o de salvar a sua pessoa118 mas o de empenhála em toda ação imediata ou longínqua que permita a esses proscritos serem de novo colocados perante a sua vocação com um mínimo de liberdade material119 A vida da pessoa assim concebida não é uma separação uma evasão uma alienação um domínio circunscrito a que viesse apoiarse de fora à minha atividade A pessoa é uma presença atuante no volume total do humano e toda a sua atividade leva em consideração essa presença 120 O que Emmanuel Mounier concebe como vocação também é interessante para nossa pesquisa Entende ele que a unificação progressiva de todos os nossos atos e através deles das nossas personagens ou dos nossos estados são os próprios atos da pessoa Referese não a uma unificação sistemática e abstrata mas à descoberta progressiva de um princípio espiritual de vida que não reduz o que integra mas o salva o consuma121 117 Ibid p 89 118 Explicita Mounier se o homem assim se portar estará pensando unicamente em qualquer forma de sua individualidade Cf Ibid p 89 119 Ibid 120 Ibid p 90 Como também destaca Alino Lorenzon O despertar comunitário encontrou sua possibilidade de desenvolvimento no começo do século XX surgindo como uma reação veemente contra o individualismo Segundo Lorenzon foi um grito de alarme contra o domínio da tecnocracia e do gigantismo das grandes cidades O homem atormentado em sua comunicação com os outros o homem da multidão solitária o homem da velocidade e da informática experimentou ao mesmo tempo uma necessidade fundamental de comunhão e a exigência do reencontro consigo mesmo no silêncio Assim o ser humano procurou dar um sentido a essa aventura humana individual e coletiva por uma participação na obra comum Para Lorenzon assim como também para Mounier pessoa e comunidade estão em reciprocidade de perspectivas e devem consequentemente ser estudadas como um par inseparável para captar e compreender melhor sua força e sua fraqueza Cf LORENZON A Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier op cit pp 78 121 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit pp 92 93 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 81 Esse princípio vivo e criador é o que chama em cada pessoa de vocação Esta não tem como valor primeiro ser singular pois ao caracterizar o homem de maneira única o aproxima da humanidade de todos os homens No entanto ao mesmo tempo que é unificante é singular por acréscimo122 Assim segundo Mounier o objetivo da educação123 não deve ser preparar a criança para uma função específica ou moldála a uma postura conformista mas de amadurecêla armála ou desarmála o melhor possível para a descoberta dessa vocação que é o seu próprio ser e o centro de reunião das suas responsabilidades de homem124 Os homens devem ser distinguidos uns dos outros pela singularidade das suas vocações incomensuráveis distinguidos para além de suas características hereditárias dos seu talentos ou de sua condição no próprio cerne da sua existência Assim levando em conta sua interioridade a pessoa não deve ser concebida através de nenhuma medida material ou coletiva já que é sempre uma medida impessoal 125 Para Mounier tendo cada pessoa um preço inestimável e para aqueles que como ele são cristãos126 existe entre as pessoas uma espécie de equivalência espiritual que interdita segundo seu critério para todo o sempre qualquer uma delas de tomar outras pessoas como um meio ou classificálas segundo a hereditariedade seu papel social sua condição etc127 122 Ibid 123 Embora reconheça Mounier que somente a pessoa encontra a sua vocação e molde o seu destino Ninguém mais seja homem seja coletividade pode lhe usurpar essa incumbência Cf Ibid p94 124 Ibid p 93 125 Ibid p 100 126 João Bénard da Costa nos fala a respeito do ser cristão de Emmanuel Mounier Segundo ele não devemos fazer de Mounier a voz da Igreja mas também não recusálo como uma voz na Igreja Uma voz que dentro da Igreja e pela Igreja cresceu se cumpriu e se perfez Uma voz que clama na avaliação de Bénard da Costa nesse nosso humano deserto e tenta aplanar os caminhos do Senhor Ainda caracterizando a vocação de Mounier Bénard da Costa afirma que a esse respeito nada podemos encontrar de melhor do que a estreita vinculação do seu pensamento com a realidade histórica em que se inseria seu concreto assumir do mundo e do homem de cada dia seu sempre renovado e pleno compromisso E tal compromisso radicado na exigência da sua fé de cristão na renovada compreensão do que partindo de onde partia significa o Mistério da Encarnação Para Bénard toda sua obra e toda a sua ação têm de ser vistas sob essa luz Cf COSTA J B Emmanuel Mounier op cit pp 131619 127MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p100 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 82 Por isso afirma o filósofo o personalismo é um antiaristocracismo fundamental Dessa forma repele concomitantemente qualquer aristocracismo que não diferencia os homens senão segundo a sua aparência e um democratismo que pretenda ignorar o princípio íntimo de liberdade e singularidade Para o personalismo constituem assim duas deformações opostas na medida em que são duas formas de objetivação da vida pessoal128 Para Mounier o mundo das relações puramente objetivas do determinismo e da ciência positiva é ao mesmo tempo o mundo mais impessoal o mais inumano e o mais afastado possível da existência A pessoa não encontra nele lugar porque na perspectiva que ele forma da realidade não leva em conta uma nova dimensão que a pessoa introduz no mundo a liberdade a liberdade espiritual129 O social objetivado exteriorizado considerado separadamente de uma comunidade de pessoas já não é um valor humano nem espiritual quando muito um organismo necessário e em certos momentos perigoso para a integridade do homem O público corrompese quando se opõe ao privado e em vez de se apoiar nele o comprime e o recalca Assim o termo humanidade não é mais do que uma abstração impensável e nosso amor pela humanidade segundo o filósofo um pedantismo se não testemunharmos o gosto ativo e cordial por pessoas singulares uma porta aberta a todo estranho130 Comumente opõese muitas vezes pessoa e indivíduo Corremos então o risco de desligar a pessoa das suas concretas amarras O movimento de interiorização 128 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit pp100101 129 Ibid p 101 Embora é preciso destacar como nos lembra Antônio Joaquim Severino professor da Faculdade de Educação da USP para Mounier a liberdade maior galardão da transcendência humana era também uma liberdade condicionada E segundo Severino esse seu condicionamento lhe impunha muita responsabilidade A ética para Mounier por exemplo sustenta Severino pressupunha a liberdade condicionada sem dúvida mas que fazia a pessoa responsável pelo seu agir A eticidade da ação se configurava a partir da articulação dialética da vontade e da liberdade do lado da imanência com seus condicionamentos existenciais do lado da transcendência com a eminente dignidade da pessoa humana fonte de todos os valores que devem nortear nossas ações Cf SEVERINO A J A dignidade da pessoa humana como valor universal o legado do personalismo de Mounier In BINGEMER M C L org Testemunhas do século XX op cit pp 5556 130 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit p 115 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 83 constituído pelo individualismo contribui para assegurar a nossa forma No entanto a pessoa só cresce na medida em que sem cessar se purifica do indivíduo que nela está Não o conseguirá virando toda a atenção sobre si própria mas pelo contrário tornandose disponível e por isso mesmo mais transparente a si própria e aos outros Tudo se passa como se nos tornássemos então quando já não estamos ocupados conosco cheio de nós então e então somente prontos para os outros entrados em graça 131 A primeira preocupação do individualismo é centrar o homem sobre si mesmo e a primeira preocupação do personalismo é descentrálo para permitir que se abra às amplas perspectivas abertas pela pessoa Como ressalta Mounier em O personalismo o primeiro movimento que na infância revela o ser humano é um movimento para outrem segundo o que apresenta Mounier a criança de 6 a 12 meses saindo da vida vegetativa descobrese nos outros aprende nas atitudes que a visão dos outros lhe ensina Só mais tarde alega o filósofo após cursar seus primeiros anos de vida virá a primeira vaga de egocentrismo reflexo132 Ao sair do individualismo encontramos a possibilidade de realizar a pessoa autêntica que não se encontra senão quando se dá e que nos conduz ao mistério do ser Nas palavras de Mounier Encontramos assim a comunhão inserida no próprio coração da pessoa integrante da sua própria existência133 A pessoa segundo Mounier deve ser concebida como uma presença direcionada para os outros ilimitadamente através de uma perspectiva de universalidade Os outros não devem ser concebidos como obstáculos ou limitadores mas ao contrário como possibilitadores de seu crescimento e desenvolvimento Para Mounier a existência da pessoa como autenticamente humana deve levar em consideração a indispensável relação com o outro para sua completude Nos lembra o filósofo que a primeira experiência humana da pessoa é com um outro igual por isso é de forma inata expansiva134 131 MOUNIER E O personalismo op cit p 45 132 Ibid 133 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit pp 105106 134 MOUNIER E O personalismo op cit p 45 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 84 Assim explicanos Mounier é preciso partir deste fato primitivo Do mesmo modo que o filósofo que se fecha no próprio pensamento nunca encontrará uma saída para o ser assim aquele que se fecha em si mesmo jamais encontrará suas próprias potencialidades oriundas da relação com o outro135 Para o Mounier quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe percome profundamente eu próprio e tornome também estranho a mim mesmo alienado Ainda em suas palavras Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar136 Os elementos que expusemos acima constituem o próprio personalismo Exprimem a idéia de que o sujeito não se nutre autonomamente que só possuímos aquilo que damos ou aquilo a que nos damos que não nos salvamos sozinhos nem social nem espiritualmente137 O primeiro ato de uma pessoa segundo Mounier deve ser a criação com outros de uma sociedade de pessoas cujas estruturas costumes sentimentos e até instituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas Fundase numa série de atos originais que não têm equivalente em parte alguma do universo Orienta nos então o filósofo quanto a esses atos138 Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si própria de se desapossar de se descentrar para tornarse disponível aos outros Para a tradição personalista a ascese do despojamento é a ascese central da vida pessoal somente liberta o mundo e os homens aquele que 135Segundo Pedro Dalle Nogare autor da obra Humanismos e antihumanismos no que tange à concepção do relacionamento humano Mounier concebe o olhar do outro como enriquecedor e auxiliador na construção de um nós autêntico Para Mounier defende Nogare não somente é possível mas necessária a comunicação e comunhão autênticas entre as pessoas tudo dependendo da disponibilidade ou não do sujeito Cf NOGARE P D Humanismos e antihumanismos op cit p 148 136MOUNIER E O personalismo op cit pp 4546 137Ibid p 46 Assim também posicionase Pedro Dalle Nogare Segundo ele o ser humano exatamente porque é pessoa apresenta além do aspecto social e comunitário um aspecto único singular transcendendo qualquer sociedade embora não possa dispensála Ele possui uma existência que se em parte depende do meio social em sua parte melhor a alma depende unicamente de Deus tem um espírito natural e diretamente voltado para o que Nogare chama de o Infinito e o Eterno um chamado que vem diretamente de Deus e de sua consciência de ser ele mesmo de realizarse como pessoa humana Cf NOGARE P D Humanismos e anti humanismos op cit p 151 138MOUNIER E O personalismo op cit pp 4648 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 85 primeiramente se libertou a si próprios Segundo Mounier os antigos falavam da luta contra o amorpróprio o que nós chamamos hoje de egocentrismo narcisismo e individualismo Compreender deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim mas captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser e de ser eu Tomar sobre nós assumir os destinos os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne Dar a força viva do ímpeto pessoal está na generosidade e no ato gratuito na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa A economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo A generosidade dissolve a opacidade e anula a solidão da pessoa mesmo quando esta nada recebe em roca A generosidade segundo Mounier é contra a fileira cerrada dos instintos dos interesses dos raciocínios por isso é em todo o sentido da palavra perturbante Ser fiel a aventura da pessoa é uma forte aventura constante desde o nascimento à morte As dedicações pessoais o amor a amizade só podem ser perfeitas na continuidade Essa continuidade não é uma exibição uma repetição uniforme mas ao contrário uma contínua renovação A fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora Tratamos o outro como um objeto quando o tratamos como ausente como um repertório de informações que nos podem ser úteis ou como instrumento à nossa disposição Tratálo como sujeito como ser presente é reconhecer que não podemos definilo nem classificálo é reconhecer que ele é inesgotável pleno de esperanças esperanças que só ele dispõe139 139 Ibid p 48 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 86 Por isso insiste Mounier na tese da generosidade pois esta é infinitamente fecunda Segundo ele é apelo e invocação Inerente à generosidade encontrase o amor140 Este quando plenamente realizado é criador de distinções na medida em que deve ser reconhecimento e afirmação do outro enquanto outro Na concepção de Mounier o amor é uma nova forma de ser pois dirigese ao sujeito para além da sua natureza e quer sua realização como pessoa e como liberdade quaisquer que sejam seus dons ou limitações141 Libertando aquele que é chamado o amor liberta e confirma aquele que chama Por isso enfatiza Mounier O ato de amor é a mais forte certeza do homem o cogito existencial irrefutável142 Afirma ainda o filosofo católico amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida143 Quanto à indispensabilidade da relação interpessoal Mounier a define como uma provocação recíproca uma mútua fecundação O outro me perturba comenta o filósofo e introduz a desordem em minhas convicções meus hábitos meu sono egocêntrico e elementos como estes são os mais seguros reveladores de nós mesmos144 A organização só é viável para as pessoas e inserida no campo das estruturas de um universo de pessoas Senão em vez de libertar o homem faria nascer um novo estado natural reinado das massas reinado da engrenagem e seus dirigentes nas mãos dos quais a pessoa fosse simples joguete145 O totalitarismo escolheu bem o seu nome critica o filósofo pois não se totalitariza um mundo de 140 Emmanuel Mounier discorda daqueles que dizem que o amor identifica Defende o filósofo que essa crença só é sustentável no caso da simpatia das afinidades eletivas ou de uma ressonância de nós próprios numa pessoa a nós semelhante Cf Ibid p 48 141 Ibid p 49 142 Ibid 143 Ibid 144 Ibid 145 Em função desse possível joguete alertanos Nogare A pessoa deve ser protegida contra todos os abusos do poder eventualmente com a tutela de um estatuto público da pessoa Como estatuto público da pessoa exemplifica pode ser considerada a Declaração universal dos direitos humanos promulgada pela ONU em 1948 e ainda a encíclica de João XXIII denominada Pacem in terris de 1963 Cf NOGARE P D Humanismos e antihumanismos op cit p 151 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA 87 pessoas146 Para uma civilização que se baseie em princípios personalistas é necessário despertar pessoas capazes de assumirem posições como pessoas Se opõe então Mounier a todo regime totalitário que em vez de preparar progressivamente a pessoa para o uso de sua liberdade e para o sentido de suas responsabilidades a esteriliza logo na infância vergando a criança ao triste hábito de pensar por delegação de agir somente segundo a palavra de ordem estabelecida e de não ter outra ambição que a de estar instalada tranqüila e considerada num mundo satisfeito147 Para o filósofo católico a educação oferecendo à pessoa somente o sentido de uma liberdade que ele chama de vazia a prepara para a indiferença ou para a vivência de um joguete não para o compromisso responsável e para a fé viva que são a própria respiração da pessoa148 A aspiração transcendente da pessoa não dever ser segundo Mounier simples agitação mas ao contrário negação de nós próprios como mundo fechado suficiente isolado sobre o seu próprio brotar A pessoa na avaliação do filósofo não é o ser em si é o movimento do ser para o ser149 Este movimento o movimento do ser na direção do outro para o outro a serviço do outro é um dos aspectos centrais que exploraremos no próximo capítulo através da abordagem teológica de Karl Barth Barth demonstrará que esse movimento deve ser feito à luz de Jesus Cristo nossa referência humana e divina para permitir de fato uma experiência comunitária salutar e fecunda para a comunidade humana 146 MOUNIER E O personalismo op cit p 56 147 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo op cit pp 132133 148 Ibid pp 136 149 Por isso salienta Mounier A pessoa não é um objeto que se separe e se observe mas um centro de reorientação do universo objetivo A verdade de cada um só existe quando em união com todos os outros Cf MOUNIER E O personalismo op cit pp 25268687 PUCRio Certificação Digital Nº 0812675CA intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista Individualism and contemporaneity Emmanuel Mouniers criticism to the individualistc perspective Antonio Glauton Varela Rocha Introdução O individualismo é geralmente conhecido em sua acepção política mas podemos enumerar outras formas de descrição deste fenômeno Uma das formas de individualismo é o primado da subjetividade Sem indivíduo não há subjetividade e foi justamente no contexto de suprema exaltação do indivíduo que a subjetividade encontrou a base que lhe permitiu a primazia que ostentou na modernidade Neste período o indivíduo ganhou diversas cartas de alforria No plano político o Estado Mestrando em Filosofia UFC Bolsista Capes Contato glautonvarelayahoocombr RESUMO A filosofia contemporânea é marcada pela crítica à modernidade especialmente no tocante às filosofias da subjetividade Junto a outros autores contemporâneos Emmanuel Mounier se insere num contexto de oposição ao subjetivismo radical A subjetividade encontra no indivíduo a sua sede de modo que um subjetivismo radical é ligado diretamente a um individualismo radical Para Mounier a tentativa de compreender o homem apenas como indivíduo gera um homem artificial e a sociedade que se forma desta tentativa é fadada ao fracasso Nesta pesquisa busco evidenciar um paralelo entre a crítica das filosofias da subjetividade e a crítica mounieriana ao individualismo O personalismo mounieriano aponta um modelo de organização política pluralista como alternativa às propostas oriundas do individualismo tratase de uma busca por um modelo de sociabilidade que tenha em vista a pessoa como um todo em seus aspectos individual e comunitário PALAVRASCHAVE Individualismo Primado da subjetividade Intersubjetividade Pessoa ABSTRACT The contemporary philosophy is marked by the criticism to modernity especially in regards to the philosophies of the subjectivity Together with other contemporary authors Emmanuel Mounier inserts himself in a position of being an opponent to the radical subjectivism Subjectivity finds in the individual its headquarters so that a radical subjectivism is closely linked to a radical individualism In Mouniers view the attempt to understand man only as an individual generates an artificial man and the society that arises from this attempt is predestined to failure In this work I search to evidence a parallel between the criticism of the philosophies of the subjectivity and Mounierian criticism to the individualism Mounierian personalism points out a model of a pluralist political organization as an alternative to the proposals derived from individualism it is about a search for a model of sociability that has in sight the person as a whole in hisher individual and communitarian aspects KEYWORDS Individualisn Field of subjectivity Intersubjectivity Person Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 17 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 não lhe era mais senhor absoluto pois a sua legitimidade dependia do acordo mútuo dos indivíduos o contrato social No plano econômico o Estado não poderia mais intervir além do estritamente necessário ou seja além das ações que facilitassem a livre concorrência e a segurança física dos indivíduos No campo epistêmico o indivíduo ganhou liberdade em relação ao objeto passando de um simples reprodutor da realidade que lhe era autônoma à condição de sujeito criador uma vez que era na estrutura subjetiva deste indivíduo autônomo e independente que residia o sentido da realidade que o cercava Até na ética o indivíduo foi alforriado Dar a si mesmo as suas próprias leis era o ideal kantiano de ética O sujeito deveria seguir o imperativo categórico e para descobrir e entender este imperativo era suficiente o indivíduo sozinho e a sua racionalidade A contemporaneidade representa um duro golpe às pretensões modernas especialmente na critica que surgirá contra o primado da subjetividade Esta é uma das formas pelas quais percebemos ao menos no campo teórico como o individualismo que moveu toda a modernidade começa a se mostrar fajuto e limitado A crítica de Emmanuel Mounier que trabalharemos neste texto se insere neste movimento contemporâneo que nas suas mais diversas vertentes mostra a fragilidade de conceitos chaves para a modernidade Interessanos aqui em especial a superestima que naquele período se deu ao indivíduo O individualismo em sua gênese e significados O individualismo é compreendido na filosofia política como a teoria que exalta o indivíduo em detrimento da superposição estatal De fato esta idéia foi sumamente importante para o surgimento da política moderna O modelo sóciopolítico da época era o do organicismo ou seja a sociedade era organizada segundo a idéia de que o todo é anterior à parte e que esta carece de sentido sem a referência ao primeiro O quadro social era a da total submissão dos indivíduos ao Estado A crescente insatisfação burguesa diante do regime absolutista ganhou um instrumento teórico na luta por emancipação deste sistema a partir da crescente divulgação de teorias que se opunham ao organicismo Estas teorias descreviam o indivíduo com tal grau de subsistência que ele deveria ser visto como a base da organização social Destacase aqui a doutrina dos direitos naturais Esta teoria era defendida especialmente pelos jusnaturalistas que compreendiam o indivíduo como dotado de direitos e de uma dignidade anteriores ao Estado Era a própria natureza humana que determinava estes direitos de modo que à razão cabia descobrilos e ao Estado reconhecêlos e defendêlos É esta concepção de cunho fundamentalmente individualista que será a base do liberalismo burguês tanto na vertente política o contratualismo quanto na vertente econômica o capitalismo Ambos são marcados pela exigência de não intervenção estatal nos assuntos de interesse individual Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 18 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 Na modernidade observamos uma exaltação multiforme do indivíduo um exemplo desta tendência é a epistemologização do saber filosófico Vêse então que além do individualismo nas esferas política e econômica podemos perceber o individualismo também no campo epistêmico O que aqui chamamos de individualismo epistêmico é o que se concretizará nas diversas filosofias da subjetividade visível já em Descartes mas especialmente em Kant e no Idealismo Alemão O primado da subjetividade se tornou a característica fundamental da filosofia moderna representou uma verdadeira reviravolta no pensamento filosófico e será profundamente hegemônico até encontrar reais opositores a partir do advento da contemporaneidade Crítica ao primado da subjetividade Muitos autores contemporâneos irão apontar sérios limites à visão de subjetividade moderna Em Heidegger esta crítica se desenvolve a partir de sua teoria do ser Para Heidegger toda a filosofia foi marcada por um completo esquecimento do ser Mesmo quando parecia o tema central na realidade era o ente que estava no centro e não o ser Sua filosofia fala do desvelamento do ser é ele que se revela1 muito mais do que nós o deciframos com nosso conhecimento o que nos aponta para um papel bem menos ativo da subjetividade Tudo isso fica ainda mais evidente quando nos atemos um pouco sobre o conceito de Dasein O homem é o lugar privilegiado da manifestação do sentido do ser é o aídoser Porém devemos notar que este privilégio não é da mesma natureza do privilégio experimentado pelo homem na modernidade O homem em sua subjetividade não é mais o lugar doador do sentido do ser mas o lugar da manifestação deste sentido É um papel muito mais passivo Podese até questionar se é legítimo conceder um papel tão passivo à subjetividade entretanto mesmo aceitando certo exagero neste aspecto do pensamento de Heidegger é preciso admitir que sua filosofia representa um duro golpe ao primado da subjetividade2 1 Na análise de Heidegger é o próprio ser que assume o homem para seu acontecer O homem acontece como homem enquanto correspondência originária ao usar que nele se revela OLIVEIRA M A de Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 p 214 E ainda Não é o homem o senhor do ser antes ele é aquele lugar onde por meio da linguagem pomonos sob o ser recebemos a partir daí sentido significação tarefa O ser se dá desvelamento e ao mesmo tempo se retrai ocultamento já que não é produto da subjetividade mas antes a história que justamente é ser no darse e retrairse Em suma a superação decisiva da filosofia da consciência e da representação isto é da filosofia moderna da subjetividade está aqui não podemos escolher arbitrariamente o sentido histórico de nosso mundo e de nós mesmos mas antes esse sentido se nos dá nos interpela nos desafia nos chama OLIVEIRA M A de Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 p 219220 2 É importante lembrar que a questão central da proposta de Heidegger não pode ser resumida a uma simples crítica à filosofia da subjetividade Não se trata apenas de dizer que a subjetividade não determina o sentido do ser de modo a fragilizar o poder do sujeito e fortificar a concretude do objeto que lhe estaria em oposição Se assim o fosse Heidegger permaneceria no mesmo esquema dualista predominante na tradição Rompendo com tal dualismo o ser é compreendido como unidade originária tanto da subjetividade como da objetividade Entretanto embora a questão central não seja a fragilização do sujeito antes se trata de um novo pensar sobre o Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 19 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 Gadamer também pode ser considerado um duro crítico do modo como se compreendeu a subjetividade na modernidade3 Isto se faz notar especialmente em sua fala sobre a historicidade uma fala que se confrontará diretamente com a perspectiva moderna da subjetividade e do conhecimento perspectiva que tem em Kant suas mais fortes raízes e seu maior emblema A filosofia da subjetividade em moldes kantianos dá um papel mais limitado à experiência ao falar sobre o conhecimento Gadamer em certo modo segue o procedimento feito por Kant uma vez que a reflexão gadameriana sobre a hermenêutica não se dá em vista da construção de uma ciência da compreensão ou uma elaboração instrumental de regras para o correto compreender mas numa analogia com a postura transcendental a pergunta fundamental é sobre as condições de possibilidade da compreensão4 Mas se Kant seria um ponto de partida bem cedo vemos um distanciamento de Gadamer em relação à visão kantiana dos condicionamentos humanos Gadamer irá entender de modo totalmente outro o valor da experiência e dos préconceitos históricos a hermenêutica precisa ser fundamentalmente reconhecimento da condição histórica da vida humana5 por conseqüência também reconhecimento da historicidade do processo da compreensão humana De tal modo a experiência e os préconceitos não podem ser entendidos como elementos neutros ou secundários do conhecimento nem muito menos como obstáculos ao conhecimento6 Neste sentido a hermenêutica gadameriana representa uma crítica substancial à visão de uma subjetividade isolada distante dos elementos externos às próprias categorias e que seria a produtora do sentido da realidade7 Como no caso de Heidegger a posição de ser seu projeto filosófico atinge esta questão e representa um duro golpe às pretensões da filosofia da subjetividade 3 A partir daqui fica clara a preocupação fundamental do pensamento de Gadamer a superação da filosofia da subjetividade O que importa acima de tudo é vincular o sujeito que compreende à história explicitar a precedência e a influência da história em todo conhecimento humano em última análise no ser do sujeito OLIVEIRA M A de Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 p 229 4 Cf OLIVEIRA M A de Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 p 226 5 Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem é necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do conceito de preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos GADAMER Hans Georg Verdade e Método p 416 Ver também OLIVEIRA M A de Para além da Fragmentação São Paulo Loyola 2002 p 44 6 Um préconceito básico do iluminismo assumido pelo historicismo é o de que a subjetividade do conhecimento só é alcançável pela superação da situacionalidade própria à subjetividade que compreende portanto o ideal era eliminar os préconceitos por meio de um método seguro Em contraposição a essa perspectiva Gadamer vai elevar a historicidade da compreensão a princípio hermenêutico OLIVEIRA M A de Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 p 229 Nota 14 7 O modo como Kant e Gadamer entendem o processo de conhecimento coloca a subjetividade em posições e patamares diferentes Para Kant só podemos conhecer o objeto mas Kant não está se referindo ao objeto em si mas apenas a um produto do sujeito em suas categorias do pensamento Poderíamos concluir que o nosso conhecimento é basicamente uma criação da subjetividade mas não é exatamente isto pois a influência de Hume faz com que Kant atrele o conhecimento aos sentidos de modo que a subjetividade não seja exclusivamente a responsável pelo conhecimento De fato a experiência é indispensável pois fornece a matéria de todo conhecimento entretanto se a subjetividade não é a responsável exclusiva no processo do conhecimento tem o papel determinante aqui entendemos que quando acima afirmo que a filosofia da Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 20 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 Gadamer também pode ser acusada de certo exagero no caso quanto ao real poder da história na vida da pessoa8 mas sua contribuição não deixa de ser uma forte denúncia sobre o modo como a modernidade esqueceu o poder da historicidade na vida humana inclusive no processo de compreensão É importante destacar que as críticas destes autores não se limitam ao campo epistêmico Suas posturas filosóficas rejeitam a instauração da filosofia da subjetividade como paradigma da filosofia tratase da busca por uma mudança do próprio centro do pensamento Ambos cada um a seu modo com alguns pontos em comum pois Gadamer irá partir inicialmente de Heidegger para formar sua proposta filosófica irão apontar as fragilidades de se colocar a subjetividade neste posto Tais críticas certamente acarretam conseqüências em outros campos mas o que nos interessa neste estudo são as contribuições de tais autores que nos permitem explicitar o processo de desmantelamento da subjetividade em moldes kantianos concede um papel mais limitado à experiência ao falar do conhecimento não quero dizer que é um papel dispensável mas um papel bem menor A experiência fornece dados disformes e quem dá forma e sentido a tais dados é a subjetividade Já em Gadamer para quem é a história nos possui e não o contrário o processo de conhecimento ou compreensão é mais influenciado por fatores externos Tendo em vista a condição histórica e finita do ser humano Gadamer reconhece que os préconceitos antes de obstáculos à razão são na verdade a condição de possibilidade para o conhecimento O mais importante nesta comparação não é perceber o papel da experiência na visão dos autores sobre o conhecimento uma vez que os dois compreendem de modo diverso este conceito e conseqüentemente também o que os dois se referem quando falam do processo de conhecimento não é exatamente a mesma coisa Quando Kant fala da experiência está se referindo ao contato dos sentidos com a realidade externa à consciência Gadamer ao falar de experiência se refere mais ao contato que temos com um mundo vivido um horizonte que nos fornece as bases para a nossa leitura da realidade O mais importante a se destacar é que neste contexto podemos dizer que em Kant a subjetividade é mais soberana e bem menos influenciada pelos fatores externos o conhecimento é uma realidade muito mais dependente da interioridade humana Já em Gadamer a subjetividade não é mais tão soberana o conhecimento humano é histórico e sofre influências das quais não pode se desviar A exterioridade é bem mais determinante A imagem de uma subjetividade soberana isolada na interioridade é fragilizada diante da importância que Gadamer concede aos préconceitos e este isolamento se torna ainda mais frágil quando lembramos que os préconceitos legítimos são os que são fruto de um contexto intersubjetivo 8 Levada às últimas conseqüências a visão de Gadamer a respeito da história pode levar a uma espécie de determinismo ou fatalismo quanto à participação humana na história pois o homem não teria praticamente papel algum em sua construção além de um papel instrumental usado pela própria história em suma não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos GADAMER H G Verdade e Método Trad Flávio Paulo Meurer 3 ed Petrópoles Vozes 1999 p 415 Mas na relação homemhistória será que só a história é artífice Neste contexto Mounier afirma um personalismo sabe bem que o homem não é determinado pelo seu meio mas não ignora por outro lado que é condicionado por ele MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 190 Para Mounier nesta questão é importante distinguir condicionamento e determinação De modo algum desmente o poder dos diversos condicionamentos e préconceitos sobre a vida humana tanto que 11 anos antes da publicação de Verdade e Método por Gadamer Mounier já escrevera em O Personalismo uma afirmação muito próxima à posição defendida por Gadamer o espírito que conhece não é espelho neutro ou fábrica de conceitos que se interpusessem no seio da personalidade total é existente indissoluvelmente ligado a um corpo e a uma história chamado por um destino engajado inserido nesta situação por todos os seus atos e portanto também por seus atos de conhecimento Exatamente porque o homem é o ser que está sempre engajado o engajamento do sujeito que conhece longe de servir de obstáculo é meio indispensável para um conhecimento verdadeiro MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p138 Mounier não nega tais condicionamentos entretanto recorda que é verdade que a história faz o homem mas é também feita por ele Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 21 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 primazia da subjetividade a partir do advento da filosofia contemporânea e com isso mostrar sob um aspecto inicial como a teoria individualista se mostra igualmente fragilizada9 Crítica de Mounier ao individualismo Os pontos acima destacados nos pensamentos de Heidegger e Gadamer nos remetem ao questionamento contemporâneo à filosofia moderna do sujeito O que vimos até então não expõe ainda uma crítica ao individualismo em toda a sua amplitude podemos dizer que se trata de uma crítica a um tipo de individualismo Em tais autores encontramos contribuições decisivas para um sério questionamento ao primado moderno da subjetividade que é o que podemos chamar de primado do indivíduo no âmbito epistêmico mas ainda não chegamos necessariamente a uma crítica a todo tipo de primado do indivíduo Diante disto a partir de agora nossa exposição buscará evidenciar a posição de Mounier como uma proposta que compartilha o mesmo contexto de questionamento ao primado moderno do sujeito e que se configura como uma crítica mais específica ao individualismo Tratase de uma crítica radical uma vez que busca apontar a incoerência do individualismo em todos os seus âmbitos O questionamento de Mounier ao individualismo é em primeiro lugar uma crítica a uma determinada visão de homem Como todas as ramificações do individualismo são de um modo ou de outro referentes ao homem uma incoerência no campo antropológico acarretará incoerências também nas ditas ramificações O que estava por trás do surgimento do individualismo em todos os seus âmbitos era a formulação de uma nova visão de homem Foi fruto de uma luta legítima e gerou uma real emancipação do homem pois ao menos defendeu certos direitos que antes eram ignorados Apesar de reconhecer elementos positivos no individualismo nascente especialmente na defesa da dignidade humana como um valor inviolável Mounier não hesita em dizer que este individualismo não demorou a se desviar para uma visão muito estreita de indivíduo Ele trazia um problema de base a visão atomista do homem Esta visão trouxe graves conseqüências quando se buscou fundar uma sociabilidade a partir desta antropologia A crítica de Mounier ao individualismo se torna mais explícita ao analisarmos a própria definição que ele dá deste fenômeno Vejamos o que ele diz 9 Não se trata de simplesmente identificar o primado da subjetividade na modernidade com uma visão do sujeito que implique o individualismo Embora a primeira questão contenha sim elementos que podem conduzir à segunda e viceversa elas não deixam de ser questões independentes O que pretendemos evidenciar é a possibilidade de se estabelecer uma relação entre a fragilização do primado da subjetividade e a fragilização do individualismo De certo que esta relação não é obrigatória uma vez que outros autores pensam o sujeito para além do isolamento individualista mas nem por isso abandonam o primado da nova subjetividade mas no meu ponto de vista podemos sim perceber esta relação nas contribuições de Heidegger e Gadamer e deste modo evidenciase uma perspectiva contemporânea sob a qual o individualismo se enfraquece Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 22 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 O individualismo é um sistema de costumes de sentimentos de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitude de isolamento e de defesa Foi o individualismo que constituiu a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX O homem abstrato sem vínculos e nem comunidades naturais deus supremo no centro de uma liberdade sem direção e sem medida sempre pronta a olhar os outros com desconfianças calculismo ou reivindicações em relações aos outros ao lado de instituições reduzidas a assegurar a convivência mútua dos egoísmos Ou o seu melhor rendimento pelas associações viradas para o lucro eis a forma de civilização que vemos agonizar sem dúvida uma das mais pobres que a história já conheceu É a própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário10 Uma primeira característica que Mounier destaca no individualismo é o organizar o indivíduo partindo de uma atitude de isolamento e de defesa O homem passa a ser entendido como um átomo porquanto completamente independente além disto detentor de direitos advindos de uma dignidade intrínseca à sua natureza doutrina dos direitos naturais O indivíduo concebido deste modo tem uma dignidade que é alheia a qualquer fator externo Ele precisava ser concebido assim porque se dependesse de algo externo para ter dignidade poderia se legitimar um poder que lhe fosse naturalmente superior e era justamente contra a idéia de um poder natural acima dos indivíduos que lutavam os revolucionários burgueses Daí fica claro porque esta visão de homem foi fundamental para contrapor ao organicismo um modelo que não submetesse os indivíduos ao Estado O problema é que deste modo o homem não é concebido como independente apenas do Estado mas também completamente independente dos outros indivíduos pois como vimos a dignidade do indivíduo seria alheia a qualquer elemento externo e aqui se inclui tudo que está para além do eu A partir deste ponto formamse as outras características que vemos na definição mounieriana do individualismo a visão de um homem abstrato assim o é porque somente numa abstração podemos conceber um homem sem vínculos não inserido em comunidades naturais detentor de uma liberdade suprema e sem limites Se Maquiavel estava certo ao dizer que a história é modelo e pode nos ensinar muitas coisas não podemos ser indiferentes a um fato que ela vem nos mostrando o individualismo metódico que beirava a um solipsismo radical usado pelos burgueses revolucionários serviu bem como instrumento teórico contra o regime absolutista mas não serve para organizar a vida social A sociedade moderna é fruto da tentativa burguesa de fundar uma sociabilidade a partir do individualismo isso no plano político e especialmente no plano econômico11 A teoria da mão invisível da qual falava Adam Smith é um bom exemplo desta tentativa e também exemplifica claramente o que já falamos anteriormente sobre a independência do individuo em relação 10 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 6162 11 Digo especialmente econômico porque desde cedo os burgueses conceberam um sistema onde o econômico tem o primado em relação ao político este é um dos pilares do liberalismo econômico através da implementação do capitalismo Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 23 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 ao Estado e aos outros indivíduos Segundo esta teoria garantir a liberdade para buscar os interesses individuais passava a ser uma obrigação do Estado independência do indivíduo em relação ao Estado Nesta busca não era necessário se preocupar com os outros indivíduos independência dos indivíduos em relação aos outros indivíduos pois uma espécie de mão invisível se encarregaria de assegurar uma ordem entre os interesses de modo que os interesses seriam satisfeitos e todos seriam beneficiados e desse modo o individualismo seria capaz de gerar uma sociabilidade saudável Para Mounier estas pretensões do liberalismo burguês eram ilusórias e apenas mascaravam um egoísmo racionalizado se me permitem extrapolar a clássica distinção tocquevilleana entre egoísmo e individualismo12 Se como dito acima por um lado é verdade que o individualismo serviu de base para uma luta legítima contra um regime que esmagava a pessoa por outro lado para Mounier também é verdade que os burgueses se fecharam numa visão de indivíduo que trazia em si sementes de decadência o isolamento e o egoísmo13 Por isso sua definição sobre o individualismo segue com a afirmação de que o homem do individualismo em sua liberdade suprema sempre olha os outros com desconfiança calculismo e reivindicação e as instituições individualistas se reduzem a assegurar a convivência mútua dos egoísmos 14 Segundo Mounier esta visão de homem e estas instituições estão fadadas ao fracasso na missão de fundar uma sociabilidade porque como vimos a concepção atomizante do homem não seria mais que uma abstração Além disto um ordenamento social que se pautasse nesta concepção de homem não seria legítimo pois o Estado não é de per si legítimo para tanto precisa responder às exigências específicas da dignidade da pessoa Para Mounier nem todas as formas de Estado respondem a estas exigências Um modelo de sociabilidade para além do individualismo Como ordenar a sociabilidade humana Antes de responder a esta pergunta é preciso deter nos um pouco em outra questão é necessário ordenar a sociabilidade humana através do Estado15 O que está por trás desta pergunta é o problema da legitimidade do exercício de poder de uma pessoa 12 O individualismo é a expressão recente originária de uma nova idéia Nossos pais só conheciam o egoísmo Este é um amor exagerado e apaixonado de si mesmo que leva o homem a fazer tudo depender de si mesmo e preferirse a tudo mais O individualismo é um sentimento refletido e pacífico que predispõe cada cidadão a isolarse da massa dos seus semelhantes e a retirarse à parte com a família e os amigos de tal modo que após criar dessa maneira uma sociedade para o uso próprio abandona prazerosamente a sociedade a si mesma O egoísmo nasce de um instinto cego o individualismo procede de um juízo errôneo mais do que de um sentimento depravado Suas fontes são os efeitos do espírito tanto como os vícios do coração TOCQUEVILLE in LORENZON A A Atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier 2 ed Ijui UNIJUI 1996 p79 13 Cf MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p24 14 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 6162 15 Nesta questão Mounier encontra consonância com uma importante contribuição recente sobre o tema que é a teoria normativa do Estado em Vittorio Hösle Mais à frente veremos alguns pontos de diálogo nas propostas dos dois autores Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 24 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 sobre a outra este era um problema que Mounier considerava crucial16 Afinal de contas a existência do Estado é legítima É preciso apelar para uma estrutura estatal para criar a ordem social Uma visão otimista da dimensão relacional humana irá responder negativamente a esta questão pois só seria necessário eliminar os elementos que atrapalham a efetivação desta sociabilidade elementos que não seriam naturais que então os homens poderiam finalmente viver em harmonia Mounier afirma que os anarquistas são exemplos desta posição pois para eles a afirmação sem peias do indivíduo bastaria para fazer surgir espontaneamente uma ordem coletiva Ao contrário o poder é fatalmente corruptor e opressivo seja qual for a sua estrutura 17 Para Mounier nesse ponto a tese liberal não é diferente Esta posição seguramente não é compartilhada por Mounier Embora ele afirme que a comunicação é a experiência fundamental da pessoa a pessoa é originalmente voltada para o outro numa sociabilidade que lhe é natural e sempre possível o próprio Mounier nos lembra que o mundo dos outros não é um jardim de delícias 18 e na realidade desde o princípio da história que são mais os dias consagrados à guerra do que os consagrados à paz 19 Para Mounier a possibilidade do conflito é sempre presente na vida das pessoas e sem um último recurso para arbitrar estes conflitos as pessoas cairiam na anarquia Este último recurso é o Estado através do direito positivo20 Pessoas e sociedades pela força dissolvente do individualismo e pelo peso das necessidades materiais sucumbiriam à anarquia se elas fossem deixadas à deriva O otimismo do individualismo liberal e o utopismo anarquista apóiamse num conhecimento simplista da pessoa É necessário um último recurso para arbitrar os conflitos das pessoas e dos indivíduos entre si este último recurso é a jurisdição do Estado21 Nem por isso a posição de Mounier pode ser confundida com a dos que substituem o otimismo do indivíduo pelo otimismo do poder Estes últimos dão ao Estado um lugar de destaque que como veremos não pode encontrar na obra de Mounier Como dito acima o problema da legitimação 16 Cf MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 194 17 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 194 18 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 60 19 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 59 20 Assim como Mounier Hösle não considera a harmonia de convivência entre as pessoas como algo automático Especialmente porque as condições de vida das sociedades atuais são bem diferentes das presentes nas sociedades préestatais Tais condições eram a existência de um número bem menor de seres humanos o que acarretava interações menos complexas entre as pessoas que eram regradas pelos costumes e pela autoridade familiar Um número muito maior de pessoas formando uma teia enorme de relações cada vez mais complexas formam o cenário atual no qual os costumes não são suficientes para controlar os conflitos possíveis entres as pessoas e também entre os diversos grupos sociais É aqui que entra o papel do direito positivo força normativa e do Estado força estrutural e coercitiva como instituições necessárias para a organização das pessoas nas sociedades atuais Cf OLIVEIRA M A de Filosofia Política enquanto Teoria NormativoMaterial das Instituições em Vittorio Hösle in AGUIAR O A OLIVEIRA M A de NETTO L F Orgs Filosofia Política Contemporânea Petrópoles Vozes 2003 p 340341 Nos dois autores a estrutura Estatal é justificável devido à possibilidade concreta de conflitos entre as pessoas se deixadas sozinhas à cabo da organização da vida social e especialmente porque o Estado pode contribuir para que as pessoas se desenvolvam mais plenamente Mas para isso como veremos à frente ele o Estado precisa responder a algumas exigências Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 25 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 do poder das pessoas sobre as pessoas é crucial o que legitima que uma pessoa ou um grupo de pessoas governe as outras se naturalmente todo ser humano é igual em dignidade a qualquer outro ser humano Este poder exercido através de uma estrutura estatal é necessário mediante a possibilidade sempre presente dos conflitos entre as pessoas mas não é legítimo sob todas as formas22 A pessoa deve ser protegida contra todos os abusos do poder todo poder não controlado tende para o abuso Esta proteção exige um estatuto público da pessoa e uma limitação constitucional dos poderes do Estado 23 Para Mounier o Estado existe para o homem não o homem para o Estado 24 O Estado só é legítimo quando for pautado por um Estatuto fundamental da pessoa ou seja por um direito positivo que reconheça a dignidade pessoal25 Para Mounier o direito é a garantia institucional da pessoa 26 Diante disto a relação entre Estado e direito positivo se mostra de suma importância no pensamento de Mounier E para ambos Estado e direito a referência à dignidade da pessoa é indispensável27 Para Mounier o direito 21 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 260 22 Hösle chama atenção para o fato de que estes argumentos sobre a necessidade do Estado não valem para toda forma de Estado por exemplo não valem para o Estado totalitário moderno Um bom Estado é aquele que efetiva o direito natural como por outro lado o direito natural só no Estado pode encontrar garantias de existência OLIVEIRA M A de Filosofia Política enquanto Teoria NormativoMaterial das Instituições em Vittorio Hösle in AGUIAR O A OLIVEIRA M A de NETTO L F Orgs Filosofia Política Contemporânea Petrópoles Vozes 2003 p 342343 Tanto em Mounier como em Hösle o Estado é uma instituição necessária mas a relação direta entre Estado e direito é fundamental na visão dos dois Deste modo não se cai no risco de se legitimar qualquer tipo de formação estatal 23 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 195 24 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 194 25 Para Mounier o Estado deve reconhecer certo número de direitos das pessoas e das comunidades O uso do termo reconhecer aponta para duas questões 1 O Estado é o guarda não o criador dos direitos seu papel não é criálos mas reconhecêlos Cf MOUNIER E Fautil refaire la Déclaration des Droits 1944 p 6 Disponível em httpclassiquesuqaccaclassiquesMounierEmmanueldeclarationdesdroitsdeclarationdesdroitshtml Acesso em 08 Out 2009 2 Este reconhecimento é a positivação de tais direitos De certo que Mounier admite a existência de direitos pessoais anteriores ao Estado no entanto é bom salientar que ele normalmente não se refere a eles com a usual expressão direitos naturais ao invés usa uma expressão equivalente exigências pessoais Tais exigências decorrem da dignidade inalienável da pessoa Por isso quando Mounier usa o termo direito geralmente está se referindo somente a um tipo o direito positivo Daqui se conclui que quando afirmamos que para Mounier o direito deve ter a dignidade da pessoa e as exigências dela decorrentes como referência estamos afirmando em outras palavras que para Mounier o direito positivo deve ter como referência o direito natural 26 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 194 27 Hösle afirma que o direito natural se constitui como a medida para o julgamento moral do direito positivo OLIVEIRA M A de Filosofia Política enquanto Teoria NormativoMaterial das Instituições em Vittorio Hösle in AGUIAR O A OLIVEIRA M A de NETTO L F Orgs Filosofia Política Contemporânea Petrópoles Vozes 2003 p 344 Esta afirmação de Hösle equivale na proposta de Mounier à necessidade do reconhecimento da dignidade pessoal por parte do direito positivo Ambas as formulações apontam para a necessidade de Estado e direito positivo se dirigirem às exigências advindas do ser pessoal Mas quando os dois falam dos Direitos Humanos e da Democracia encontramos diferenças consideráveis Apesar de reconhecer a importância dos direitos humanos e da democracia como instrumento importante para a sua efetivação Mounier identifica nas diversas Cartas dos Direitos Humanos um problema de fundo antropológico Elas se formularam a partir da mesma ideologia individualista que como vimos Mounier rejeita veementemente Não se trata de rejeitar às Declarações mas de repensálas a partir de uma visão da pessoa em sua integralidade nos aspecto individual e comunitário por isso quando Mounier escreveu um projeto de Declaração dos Direitos Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 26 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 institucionalizado não deve ser pensado simplesmente com conotações formalistas como em Kelsen pois o que está em jogo não é apenas a legalidade mas principalmente a legitimidade O direito precisa apontar para um conteúdo para um fundamento decisivo o valor da pessoa Na obra O Personalismo ele afirma que o Estado é a objetivação forte do direito que nasce espontaneamente da vida dos agrupamentos organizados 28 uma afirmação que carrega uma forte influência que ele textualmente indica Georges Gurvitch Gurvitch pensa num direito espontâneo vinculado mais à sociedade e seus grupos do que ao aparelho estatal Ele desenvolve uma teoria do pluralismo jurídico e social 29 que tem fortes pontos de contato com o anarquismo de Proudhon Mounier vai se afastar da perspectiva antiestatal radical mas vai aceitar especialmente o pluralismo defendido por Gurvitch O pluralismo políticoeconômico será apresentado como uma proposta alternativa à sociabilidade que se buscou edificar em bases individualistas Para Mounier o individualismo não pode dar conta de fundar uma sociabilidade porque não dar conta da real condição da pessoa Como já foi dito acima a noção de independência no individualismo é tão radical que além de representar a liberdade em relação ao Estado representa também uma cisão em relação aos outros indivíduos A respeito desta compreensão Mounier reconhece que quando o individualismo se refere à relação entre os indivíduos e o Estado tem ao menos uma boa conclusão de fato o Estado não tem um poder natural sobre os indivíduos Mas no que tange às relações entre os próprios indivíduos esta independência seria bem mais limitada Não é novidade para o pensamento mounieriano que cada um possui um valor individual e não depende dos outros para ter valor mas esta dignidade não implica que os outros sejam uma realidade diante da qual se possa portarse de modo indiferente O modo como Mounier compreende este posicionarse diante do outros nos revela a importância da dimensão comunitária da pessoa no seu pensamento Não é o intitulou Declaração dos direitos das pessoas e das comunidades Pelo mesmo motivo Mounier também terá sérios questionamentos à democracia de cunho liberal e tenderá a uma proposta de vida estatal que seja mais compatível com tal integralidade da pessoa Como veremos o federalismo será a proposta acolhida e indicada por Mounier Hösle também proporá o modelo federalista mas por motivos outros 28 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 194 29 Por pluralismo jurídico social entendemos um modo de pensar o direito para além do formalismo positivista que identifica Estado e direito Nesta outra concepção o direito não é um mero epifenômeno do Estado e depende muito mais das relações concretas das pessoas nas diversos grupos sociais do que do aparelho estatal Idéias que contrariam a perspectiva monista do direito já estão presentes em Durkheim Leon Duguit Hauriou e Eugen Erlich Podemse observar algumas discordâncias nestes autores sobre o papel e a importância do Estado em relação ao direito mas todos eles sem distinção reconhecem que o direito não pode ser compreendido como uma mera manifestação epifenomênica do Estado O direito ao longo da história tem se caracterizado por seus íntimos vínculos com a solidariedade entre pessoas e grupos sociais grande parte destes autônomos em relação ao ente estatal ALBUQUERQUE N de M Complexidade Social Pluralismo Jurídico e Unidade Política da Soberania no Estado democrático 2008 p 4162 Disponível em httpwwwconpediorgmanausarquivosanaisbrasilia14684pdf Acesso em 17 nov 2009 Georges Gurvitch será responsável por grande contribuição sobre o tema especialmente sobre o direito espontâneo Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 27 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 nosso propósito nesse texto aprofundar a concepção de Mounier sobre a comunidade mas é salutar fazer alguns esclarecimentos para evitar possíveis equívocos sobre o tema Mounier fala de comunidade num sentido de contexto anterior à pessoa um contexto que lhe acolhe desde o nascimento e será seu horizonte originário de crescimento e formação neste sentido podemos falar especialmente da família e também de comunidades lingüísticas geográficas culturais etc Ele também fala de comunidade no sentido de ambiente formado pelo posicionamento da pessoa em relação a ela mesma aos outros e ao mundo são as diversas formações sociais das quais as pessoas se inserem como os vários grupos de interesse comum ou os grupos de pressão Neste último sentido quando Mounier fala de comunidade não está se referido a um simples agrupamento de pessoas mesmo que estas tenham algum vínculo que as una Quando muitas pessoas compartilham sentidos e opiniões mas são opiniões alimentadas por aquilo que se diz que se faz e apenas reproduzem o que recebem não temos uma comunidade mas um aglomerado massificado São pessoas imersas na tirania do anonimato onde flutuam entre indivíduos sem caráter as idéias gerais e as opiniões vagas o mundo das posições neutras e do conhecimento objetivo 30 É este contexto aliás que favoreceu o surgimento de certas ditaduras na primeira metade do século XX Onde se somam um povo desnorteado e um líder capaz de arregimentar uma nação com palavras de superação e salvação têmse como resultado o que Mounier chamou de sociedade do nós nós outros um nós doentio não pessoal uma sociedade onde as pessoas ao menos têm propósitos mas que ainda não são seus mas apenas um eco da vontade do líder os exemplo mais claros foram o Fascismo e o Nazismo Uma comunidade também não é uma coletividade que consegue unidade mas que sufoca a individualidade da pessoa Isso porque a comunidade só se entende na relação com a pessoa interdependência dos aspectos individual e comunitário daí que para Mounier é impossível fundar a comunidade sobre algo que não sobre pessoas solidamente constituídas Ela é um espaço de co existência de pessoas no exercício de sua liberdade responsabilidade comunicação criadora de vínculos não de identificação mas de comunhão em outras palavras pessoas no exercício da vida pessoal É preciso que fique claro que para conseguir um nós não doentio cujos exemplos paradigmáticos podemos encontrar nos fenômenos do fascismo do totalitarismo coletivista nos fenômenos cada vez mais freqüentes das seitas pseudoreligiosas significa que existem eus livres pois o nós não surge da sublimação das pessoas mas da sua realização 31 Mounier era consciente de que este tipo de convivência é muito difícil especialmente quando falamos em um plano macro Mas Mounier não diria que é impossível A intenção é ir ampliando sempre mais o alcance do nosso portar se comunitariamente Assim como no direito também no Estado são os grupos sociais que devem ter a preponderância Mounier foi muito influenciado por estas idéias 30 MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 108 31 VILLA M M org Dicionário de Pensamento Contemporâneo São Paulo Paulus 2000 p 126 Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 28 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 Feitos os esclarecimentos podemos dizer que o indivíduo abstrato do individualismo é um átomo mas o indivíduo real possui enraizamentos vivos que são o lugar de sua formação do seu crescimento onde se encontra o seu horizonte de sentido32 Estes enraizamentos não podem ser negligenciados quando se busca um ordenamento social Tentar falar da pessoa sem situála em seu contexto natural as comunidades é um erro grave que se torna desastroso quando se passa a querer fundar uma sociabilidade com esta abstração da pessoa Para Mounier é muito problemático querer fundar uma sociedade com tal concepção de homem pois a sociedade não é apenas uma justaposição de seres isolados independentes soberanamente livres proprietários ciumentos dos seus direitos 33 ou ao menos não deveria ser Daí se entende que para Mounier nenhum tipo sociabilidade pode se desviar da condição social da pessoa e para tanto tem de entendêla como uma totalidade a pessoa como volume total do homem e não apenas como um átomo visão do homem para o individualismo Para superar esta abstração Mounier recorre a alguns elementos do pluralismo34 defendido por Gurvitch o que dá um tom claramente federalista à filosofia política mounieriana Para Mounier é fundamental uma descentralização do poder nos Estados Montesquieu já falara e Mounier repete que o poder sempre tende para o abuso35 O próprio Montesquieu propôs alternativas para evitar o abuso do poder através de mecanismos de limitação Todos conhecem a famosa tese da separação dos poderes esta seria a limitação vertical do poder estatal36 sem dúvida esta é a contribuição montesquiana mais conhecida Mas Montesquieu não ofereceu apenas esta proposta de limitação do poder estatal Menos conhecida é a chamada limitação horizontal do poder Tratase da doutrina dos corpos intermédios Este mecanismo pressupõe uma estruturação pluralista da sociedade pois pressupõe a existência de outros focos de poder ou ao menos certos espaços de autonomia entre o poder central e os indivíduos Para Montesquieu esta era a grande diferença que separava a monarquia da tirania pois na monarquia entre o rei e o povo existiam corpos intermédios que faziam a ligação entre os extremos Os teóricos do pluralismo moderno obviamente não falaram dos mesmos corpos intermédios presentes na fala de Montesquieu a nobreza e o clero mas adotaram a idéia da existência de grupos ou formações sociais intermediárias entre o poder central e os indivíduos Claro que este modelo entra em choque com a perspectiva comumente aceita de organização política na 32 A expressão não é de Mounier é de Gadamer mas indica muito bem o sentido que quero expressar aqui 33 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier Rio de Janeiro Paz e Terra 1968 p 144 34 O pluralismo afirma que para defender as pessoas dos desmandos de um poder central o poder deve ser fragmentado em vários grupos e esses grupos devem ser os mais plurais possíveis para que se evite o monopólio do poder por parte de um grupo O Estado manteria sua unidade a partir da permanência de um poder central mas que não tivesse poderes sobre todos os assuntos da nação mas somente os de interesses estritamente comuns como a segurança e certa normatividade que coibisse o rivalismo entre os grupos 35 Cf MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 195 36 Cf BOBBIO N Org Dicionário de Política Brasília UNB 1998 p 929 Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 29 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 modernidade ainda hoje pois nesta proposta o conceito de soberania deveria ser repensado ao menos no seu aspecto interno A soberania é um conceito chave para o Estado Moderno e seu objetivo é garantir a unidade do Estado pela exclusividade do poder num âmbito central por mais que se aceite certas autonomias mínimas e pela extinção de poderes locais e intermediários entre este poder central e os indivíduos A perspectiva política de Mounier é diferente Na obra Manifesto ao Serviço do Personalismo isto se torna muito claro especialmente num comentário feito sobre o estatismo onde ele afirma que a doença que corrói o Estado formase dentro das próprias democracias desde o dia em que elas despojaram o indivíduo de todos os seus enraizamentos vivos de todo os poderes próximos desde o dia em que proclamaram que entre o Estado e o indivíduo não há nada lei de Chapelier que não se deveria deixar que os indivíduos associaremse segundo os seus pretensos interesses comuns ibid abriuse a via para os Estados totalitários A centralização estende pouco a pouco o seu poder com a ajuda do racionalismo ao qual repugna toda a diversidade viva o estatismo democrático desliza em direção ao estado totalitário como o rio para o mar37 Fica claro que para Mounier é um grande problema querer extinguir as mediações entre o Estado e os indivíduos E aqui vemos como Mounier é exigente quanto aos critérios de legitimação do Estado Ele só é legítimo se se pauta por um direito positivo que reconheça a dignidade da pessoa e este reconhecimento deve incluir uma visão da real dimensão da pessoa Por isso ele rejeita o ordenamento político advindo do individualismo e propõe o pluralismo político como alternativa já que ele lida com as pessoas a partir dos seus enraizamentos comunitários Para Mounier O poder do Estado é limitado na base não somente pela autoridade da pessoa espiritual mas pelos poderes espontâneos e habituais de todas as sociedades naturais que compõem a nação 38 O Estado não é uma comunidade natural como a família e a nação é um instrumento artificial necessário mas além de necessário é subordinado pois a sua legitimidade está em estar a serviço das pessoas e das comunidades O Estado deve reconhecer o valor da pessoa e isto passa pelo reconhecimento do valor das comunidades e dos grupos onde as pessoas estão inseridas O Estado não deve sufocar estas comunidades e além disto precisa facilitar o desenvolvimento das mesmas pois assim vai colaborar diretamente com o desenvolvimento de cada pessoa No entanto a comunidade tem um papel a cumprir ela deve ser um espaço de realização da pessoa39 Se a 37 MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 256 38 MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 260 39 Uma civilização personalista é uma civilização cujas estruturas e espírito estão orientados para a realização da pessoa As coletividades naturais são aqui reconhecidas na sua realidade e na sua finalidade própria diferente da simples soma dos interesses individuais e superior aos interesses do indivíduo Elas têm todavia fim último pôr cada pessoa em estado de poder viver como pessoa quer dizer em estado de poder Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 30 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 comunidade se fecha em si mesma acaba traindo seu objetivo e aqui o Estado pode intervir com coação se necessário O Estado é pois um instrumento ao serviço das sociedades e através destas contra estas se preciso for ao serviço das pessoas 40 Ao Estado resta um campo bem delimitado Ele precisa reconhecer a dignidade da pessoa por exemplo ao garantir as condições necessárias para uma vida digna Em Mounier isto se traduz na obrigação de garantir trabalho a cada pessoa pois é por ele que a pessoa pode conseguir o sustento e se realizar O salário deve atender às exigências básicas vitais da pessoa Sob tal perspectiva podemos afirmar que para Mounier um Estado que permite a miséria e a fome perde toda a legitimidade Mas além destas necessidades a estrutura estatal deve permitir que a pessoa consiga se realizar também em outro patamar de necessidades as de criação A pessoa não se resume ao aspecto biológico portanto as preocupações estatais a respeito da pessoa não podem ser apenas as necessidades desta ordem O Estado precisa reconhecer a pessoa na sua dupla dimensão individual e comunitária pois é na comunidade que a pessoa se realiza Num Estado onde as comunidades são reconhecidas em seu valor e no seu papel fundamental a pessoa acaba também sendo valorizada e tem mais possibilidades de desenvolver suas potencialidades Por isso podemos dizer que Mounier não é um antiestatista não se trata de acabar com o Estado mas de repensálo É preciso pensar um Estado a serviço duma sociedade pluralista como uma alternativa à visão individualista imposta pela modernidade pois seria capaz de reconhecer a pessoa em sua real dimensão Pode o Estado renunciar à sua unidade A exigência personalista julgou por vezes dever exprimirse pela reivindicação dum Estado pluralista de poderes divididos e afrontados para mutuamente se defenderem de abusos Mas a fórmula pode parecer contraditória seria preciso antes falar dum Estado articulado ao serviço duma sociedade pluralista41 Conclusão O individualismo enquanto aparato teórico ganhou enorme força a partir da modernidade tornandose a base para uma série de reviravoltas nos mais diversos âmbitos da época Neste estudo buscamos evidenciar como o individualismo passa a sofrer sérios questionamentos a partir da contemporaneidade No âmbito filosófico este questionamento se faz sentir marcadamente na crítica que vários autores destinaram ao primado moderno da subjetividade dos quais expomos as contribuições de Heidegger e Gadamer Uma crítica que sem dúvida alguma reduz o espaço de legitimidade do individualismo ao menos no campo teórico É no contexto destes questionamentos atingir um máximo de iniciativa de responsabilidade de vida espiritual MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 83 40 MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 p 259 Antonio Glauton Varela Rocha O individualismo e a contemporaneidade a crítica de Emmanuel Mounier à perspectiva individualista 31 intuitio ISSN 19834012 Porto Alegre Vol 3 Nº 2 Novembro 2010 p1631 que a crítica mounieriana ao individualismo se constrói Buscando atingir o individualismo nos mais diversos âmbitos Mounier procura evidenciar como este modelo não pode ser aceito como base para a construção de uma sociabilidade ao menos se estamos considerando uma sociabilidade que tenha em alta conta a dignidade da pessoa Contra um modelo que já não teria mais legitimidade teórica Mounier propõe uma perspectiva que pensasse a pessoa tanto no seu aspecto individual como no aspecto comunitário que segundo nosso autor seria um modelo pluralista A proposta de Mounier se mostra atual especialmente neste momento quando o modelo políticoeconômico vigente nos deu mais sinais claros de incoerência com mais uma crise mundial Mounier oferece uma proposta e um alerta que pode representar um norte para as mudanças necessárias Mas apesar de não ser impossível não é tão simples reverter tal quadro pois seus próprios mantenedores entenderam que o sistema ruiria se deixado sozinho e passaram a ceder espaço a pontuais ações estatais como medidas de recuperação da economia O que mostra que apesar do individualismo já ter sofrido um duro golpe teórico na prática os interesses de alguns os que detêm maior poder de ação permitem que ele continue mais forte que nunca É a velha luta entre o bom senso e os interesses luta que mais cedo ou mais tarde nos revelará seu preço Referências ALBUQUERQUE N de M Complexidade Social Pluralismo Jurídico e Unidade Política da Soberania no Estado democrático 2008 Disponível em httpwwwconpediorgmanausarquivosanaisbrasilia14684pdf Acesso em 17 nov 2009 BOBBIO N Org Dicionário de Política Brasília UNB 1998 GADAMER H G Verdade e Método Trad Flávio Paulo Meurer 3 ed Petrópoles Vozes 1999 LORENZON A A atualidade do Pensamento de Emmanuel Mounier 2 ed rev ampl Ijui UNIJUI 1996 MOIX C O Pensamento de Emmanuel Mounier Paz e Terra 1968 MOUNIER E Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 O Personalismo São Paulo Martins Fontes 1976 Fautil refaire la Déclaration des Droits 1944 Disponível em httpclassiquesuqaccaclassiquesMounierEmmanueldeclarationdesdroitsdeclarationdesdroits html Acesso em 08 Out 2009 OLIVEIRA M A de Filosofia Política enquanto Teoria NormativoMaterial das Instituições em Vittorio Hösle in AGUIAR O A OLIVEIRA M A de NETTO L F Orgs Filosofia Política Contemporânea Petrópoles Vozes 2003 Reviravolta LingüísticaPragmática na Filosofia Contemporânea 2 ed São Paulo Loyola 2001 Para além da Fragmentação São Paulo Loyola 2002 VILLA M M org Dicionário de Pensamento Contemporâneo São Paulo Paulus 2000 Trabalho recebido em 17102010 Aceito para publicação em 28102010 41 MOUNIER E O Personalismo 4 ed Lisboa Moraes 1976 p 199 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM FILOSOFIA WEIDER FERREIRA DA SILVA PERSONALIZAÇÃO E DESPERSONALIZAÇÃO EM EMMANUEL MOUNIER ORIENTADOR Prof Dr Iraquitan de Oliveira Caminha Linha de Pesquisa Fenomenologia e Hermenêutica Filosófica JOÃO PESSOA 2018 WEIDER FERREIRA DA SILVA PERSONALIZAÇÃO E DESPERSONALIZAÇÃO EM EMMANUEL MOUNIER Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Filosofia da UFPB como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia ORIENTADOR Prof Dr Iraquitan de Oliveira Caminha JOÃO PESSOA 2018 S586p Silva Weider Ferreira da Personalização e despersonalização em Emmanuel Mounier Weider Ferreira da Silva João Pessoa 2018 102 f Orientação Iraquitan Caminha Dissertação Mestrado UFPBCCHLA 1 Personalismo Ser Humano Pessoa Emmanuel Mounier I Caminha Iraquitan II Título UFPBCCHLA Catalogação na publicação Seção de Catalogação e Classificação Weider Ferreira da Silva PERSONALIZAÇÃO E DESPERSONALIZAÇÃO EM EMMANUEL MOUNIER Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pósgraduação em Filosofia da UFPB como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia DISSERTAÇÃO DEFENDIDA E APROVADA EM BANCA EXAMINADORA Prof Dr Iraquitan de Oliveira Caminha UFPB Orientador Prof Dr Alino Lorenzon UERJ e UFRJ Examinador Externo Prof Dr Giuseppe Tosi UFPB Examinador Interno JOÃO PESSOA 2018 DEDICATÓRIA À minha mãe amada Maria de Fátima da Silva primeira pessoa que conheci como presente AGRADECIMENTOS À minha família em geral especialmente às minhas irmãs por sua amizade e cumplicidade Ao meu companheiro Marcos Tadeu a alternância entre sua companhia e sua ausência tornou este trabalho um telos e uma possibilidade e só o envelope do silêncio pode conter ou expressar a menção que tu mereces Aos meus amigos colegas de profissão de trabalho e de trabalhos bem como a todo e a qualquer um que tenha sido pedra em meu caminho seja de tropeço ou de edificação não haveria caminhos e nem castelos sem vocês À professora Sílvia Contaldo que plantou em meu peito um trem ao me emprestar seu exemplar de O Personalismo primeiro contato com Mounier o devolvo com esta dissertação risos gostosos Ao Professor Iraquitan sua presença muito mais que orientação foi uma luz no fim dos túneis pelos quais fui obrigado a passar Ao professor Alino Lorenzon e sua amada Agnès que me fizeram crer de novo na pessoa por seu exercício excepcional da comunicação Ao meu melhor amigo no intervalo entre as batidas do meu pequeno coração minha gratidão e tudo o mais A reforma do homem transborda os limites do homem Emmanuel Mounier 1975 RESUMO O personalismo de Emmanuel Mounier tem o ser humano como centro nas suas reflexões Ele o apresenta através do conceito de pessoa uma maneira peculiar bastante própria e original Todavia podemse encontrar traços do desenvolvimento do conceito de pessoa ao longo de toda a Historia da Filosofia A organização da ideia de ser humano como pessoa da forma que conhecemos hoje porém só aparecerá em 1932 nas publicações da revista Esprit na França sob a inspiração e direção de Mounier Em seu trabalho o filósofo empreende o esforço de conceituar a pessoa atendendo às exigências de uma verdadeira reflexão dentro da Filosofia sem no entanto se render ou entregar a pessoa às suas possibilidades limitadas de conhecimento aos seus instrumentos técnicos e conceituais pois para ele a pessoa jamais poderia ser estudada como um objeto já que é ela irredutível a isto sob quaisquer aspectos Neste trabalho apresentase uma reflexão sobre o movimento de personalização e despersonalização conforme o pensamento de Mounier A personalização é o movimento que o ser humano realiza para assumir a condição de pessoa A condição de pessoa é compreendida como telos de todo ser humano e se realiza se concretiza ou aparece é movimento e acontece à medida que trilha um caminho particular e intransferível Inserir esta reflexão nas linhas de pesquisa filosófica da Fenomenologia e Hermenêutica portanto faz todo sentido se a pessoa acontece aparece Se aparece é fenômeno A despersonalização por sua vez será analisada nesta reflexão sob duas possibilidades ou sob dois entendimentos primeiramente como o contrário da personalização num movimento que parte da condição e da vida pessoal já concretizada de alguma forma movimento no qual ela sofre o processo de deixar de ser A segunda possibilidade ou entendimento do termo é aquela na qual o ser humano nem chega a ser pessoa sendo mais exato dizer não personalização seja por causa das determinações do meio em que vive e outras seja por escolha consciente e livre que é fundamento da vida pessoal Palavraschave Personalismo Ser Humano Pessoa Emmanuel Mounier Personalização Despersonalização RÉSUMÉ Le personnalisme dEmmanuel Mounier a pour centre lêtre humain dans ses réflexions Il le présente à travers le concept de la personne dune manière particulière propre et originale Cependant on peut trouver des traces du développement du concept de personne à travers lHistoire de la Philosophie Lorganisation de lidée de lêtre humain en tant que personne comme nous le savons aujourdhui cependant apparaît seulement en 1932 les publications de la revue Esprit en France sous linspiration et la direction de Mounier Dans son travail le philosophe entreprend leffort de conceptualiser la personne pour répondre aux exigences dune véritable réflexion dans la philosophie sans toutefois céder ou remettre la personne à leurs possibilités limitées de connaissances ses outils techniques et conceptuels car pour lui la personne ne pourrait jamais être étudiée comme objet puisquelle lui est irréductible à tout point de vue Dans ce travail nous présentons une réflexion sur le mouvement de personnalisation et de dépersonnalisation selon la pensée de Mounier La personnalisation est le mouvement que lêtre humain accomplit pour assumer la condition de la personne La condition de personne est entendue comme télos de tout être humain et se réalise se concrétise ou apparaît cest un mouvement et cela arrive car il suit un chemin privé et nontransférable Insérer cette réflexion sur les lignes de recherche philosophiques de la Phénoménologie et Herméneutique par conséquent il est logique si la personne arrive apparaît Si cela apparaît cest un phénomène La dépersonnalisation à son tour sera analysée dans cette réflexion de deux manières ou deux interprétations dabord par opposition à la personnalisation un mouvement qui part de la situation et la vie personnelle a été accompli en quelque sorte mouvement dans lequel elle subit le processus de cesser dêtre La deuxième possibilité ou la compréhension du terme est celui dans lequel lêtre humain est même pas un plus exact de dire non personnalisation soit à cause des déterminations de lenvironnement dans lequel ils vivent et dautres que ce soit par choix conscient et libre qui est fondement de la vie personnelle Motsclés Personnalisme Être humain Personne Emmanuel Mounier Personnalisation Dépersonnalisation SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 CAPÍTULO I MOUNIER SUA PESSOA SEU MÉTODO SUA OBRA13 CAPÍTULO II O CONCEITO DE PESSOA EM EMMANUEL MOUNIER 17 21 Pessoa uma visão do humano24 22 Personalismo uma utopia30 23 Pessoa e Ser Humano 32 CAPÍTULO III RELAÇÃO ENTRE PESSOA E DIGNIDADE HUMANA 34 31 Pessoa e indivíduo 39 32 Personalização 43 321 A Existência Incorporada 44 322 A Comunicação 46 323 A Conversão íntima 55 324 O Afrontamento 56 325 Liberdade com Condições 57 326 O Compromisso 58 CAPÍTULO IV DESPERSONALIZAÇÃO 64 41 Estado demais instituições e despersonalização 70 CONSIDERAÇÕES FINAIS 75 BIBLIOGRAFIA 78 APÊNDICE ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA DIALOGANDO81 10 INTRODUÇÃO O pensamento de Emmanuel Mounier em todas as suas manifestações é uma tentativa de expressão de sua concepção singular do ser humano Esta concepção além de ser intencionalmente cunhada de maneira a permanecer aberta e sempre em construção difere em diversos e importantes aspectos das formas anteriores de compreensão do mesmo objeto de estudo ao longo da História da Filosofia que por vezes o traz sob o nome de sujeito indivíduo consciência e ainda sob outras formas conhecidas que para o referido filósofo se mostram insuficientes para abarcar o universo humano Embora não se possa afirmar acertadamente que Emmanuel Mounier tenha se utilizado do método fenomenológico ou do método hermenêutico em suas reflexões não é difícil perceber a presença de elementos afins em seus escritos além de alto conhecimento e recurso a fontes clássicas e profícuo diálogo com elas e com sua contemporaneidade donde lhe vêm diversas influências em seu exercício de formular um conceito de pessoa nos termos descritos acima de abertura e construção Isto poderá ser verificado com maior clareza quando por força de necessidade se proceder ocasionalmente à análise das influências identificáveis no conceito de pessoa como por exemplo a influência de sua fé Emmanuel Mounier era cristão e seu pensamento foi marcado fortemente por traços do pensamento filosófico cristão certa influência do materialismo histórico dentre outras Ademais vale lembrar que não existe apenas um tipo de personalismo já que este não foi pensado por Mounier como um sistema filosófico fechado mas como matriz filosófica como ele mesmo diz Chamamos personalista toda doutrina toda civilização que afirma o primado da pessoa humana sobre as necessidades materiais e sobre os aparelhos coletivos que sustentam seu desenvolvimento MOUNIER 1967 p20 Assim ao longo do seu desenvolvimento são conhecidas diferentes correntes personalistas como o personalismo fenomenológico de Max Scheler o personalismo existencial representado por Jaspers e Gabriel Marcel o personalismo filosófico do qual são representantes Renouvier e Stern e o personalismo hermenêutico representado por W Jankelevitch e Paul Ricoeur Sendo assim não encontramos problema algum em afirmar que a posição aqui assumida é ao mesmo tempo fenomenológica e hermenêutica Fenomenológica por que a compreensão de pessoa que se deseja expressar é uma compreensão fenomênica ou melhor 11 dizendo buscase sustentar aqui a pessoa como sendo um fenômeno como sendo algo que acontece que aparece a despeito de Mounier nunca têla afirmado em seus escritos usando a palavra fenômeno Mas é também hermenêutica exatamente por propor uma leitura uma interpretação que se mostra perfeitamente possível já que se pode concluir das exposições de Mounier que a pessoa seja um mistério que nunca se acessa integralmente de maneira a esgotála o que possibilita afirmála no campo fenomênico O próprio exercício de buscar esta sustentação já é em si um exercício hermenêutico e a proposição do conceito de pessoa como sendo um fenômeno se alinha a uma tentativa de expressar uma visão de ser humano iniciada na verdade pelo próprio Mounier que o faz por meio deste conceito Desta feita sempre haverá uma linha tênue entre as possibilidades de leitura e interpretação deste trabalho que permitirá a uns que o interpretem até mesmo como antropológico e a outros perceberem as nuances fenomenológicas e hermenêuticas desta tentativa de exposição de uma ideia de ser humano e de fazer uma referência ao modo peculiar de conceber o ser humano trazido pelo personalismo dentro de uma ideia de ser humano específica que aqui é posta em evidência ao se dissertar sobre o conceito de pessoa Esta ideia de ser humano difere radicalmente da ideia de indivíduo que é objeto de apego cioso da filosofia contemporânea herança renascentista e da modernidade que expressa muitas vezes um humano mutilado decomposto reificado e absurdo por que nunca visto ou pensado em totalidade contudo preferida malgrado as deficiências e insuficiências que a mesma apresenta no aqui agora do mundo O problema a que se presta esta reflexão é a personalização num primeiro momento e a despersonalização do ser humano logo depois dentro da compreensão de personalização e despersonalização encontradas no pensamento de Emmanuel Mounier A intenção é evidenciar como o autor propõe e compreende esses movimentos bem como de que maneira pode o ser humano vir a ser pessoa e de que maneira ele não chega a ser pessoa ou ainda tendoo realizado de que maneira ele se pode despersonalizar Ao tentar uma solução para este problema admitese a hipótese de que o telos do ser humano seria o movimento de personalização ou melhor dizendo de que a realização do ser humano se daria através do movimento de ser pessoa que seria o modo propriamente humano de existir ou a realização máxima do ser humano não como uma espécie de finalidade 12 absoluta da qual não se pudesse fugir mas como a mais alta de suas possibilidades à qual poderia inclusive renunciar A consequência lógica de tal raciocínio é a de que nem todo ser humano é mas deve se tornar pessoa a fim de realizar sua mais alta possibilidade Pessoa portanto é uma ideia de ser humano Mais que isso pessoa é um modo de ser o modo mais especificamente humano de ser Existem muitas ideias de ser humano Há de se sustentar nesta reflexão que nem todas elas são profícuas ou levamno a se realizar plenamente Sustentase também que a ideia de ser humano que se tem num dado tempoespaço determina muito de sua existência concreta bem como se defende que essas ideias podem e devem mudar ao longo da História e que esta mudança nunca se dá por uma ruptura radical com a ideia anterior A reflexão se iniciará com a exposição de uma breve biografia de Emmanuel Mounier citando seu percurso filosófico suas influências e o contexto histórico no qual se desenvolveu seu pensamento Em seguida se fará a apresentação do conceito de pessoa acompanhada de breve recurso a dados históricos sobre a noção de pessoa e sua relação com o conceito de dignidade humana que conforme o julgamento que se sustenta aqui está intimamente atrelado àquela noção Tais dados foram percebidos no estudo da etimologia da palavra pessoa e suas significações bem como no estudo da evolução histórica do conceito de dignidade humana Em seguida se prosseguirá à analise do movimento de personalização que será realizada tomando por base e roteiro as chamadas estruturas do universo pessoal elencadas por Emmanuel Mounier em sua obra O Personalismo Finalmente se abordará o tema da despersonalização sobre o qual Mounier não deixou muitos registros mas que se entende como o movimento oposto do movimento de personalização sendo compreendido aqui em dois sentidos primeiramente quando o ser humano não chega a ser pessoa e depois quando tendo chegado a ser pessoa se despersonaliza 13 CAPÍTULO I MOUNIER SUA PESSOA SEU MÉTODO SUA OBRA Nascido em Grenoble em 1 de abril 1905 em uma família cristã de vida pacata e austera Emmanuel Mounier segundo uma das principais obras biográficas a seu respeito era de temperamento calmo metódico meditativo Débil de constituição alto delgado DÍAZ Carlos 2000 p28 viveu aproximadamente até os dezenove anos como filho único já que sua irmã mais velha Madeleine estava frequentemente em um colégio interno O fato não o impediu porém de manter forte laço com ela demonstrado em diversas de suas correspondências colhidas e catalogadas por sua esposa e seus amigos Esta atividade suas correspondências ele a realizou de maneira bem intensa até sua morte ocorrida a 22 de março de 1950 em ChâtenayMalabry Seus progenitores eram pessoas simples e de pouquíssimos recursos Seu pai farmacêutico tinha a saúde frágil Sua mãe mulher doce e reservada cuidava da educação dos filhos e ajudava o marido em suas ocupações Provou a miséria em algumas ocasiões em sua vida e na de seus concidadãos Sobre a saúde do pequeno Mounier há registros de que era mais que a do pai bastante frágil e problemática com uma visão muito debilitada em um olho desde os treze anos por culpa de um acidente no pátio do recreio surdo de um ouvido por uma otite reincidente com sequelas e necroses ósseas que não puderam ser freadas até os vinte anos DÍAZ Carlos 2000 p2829 A primeira escolha profissional do jovem Mounier foi a carreira de médico Se bem que não se possa dizer segundo seus registros que fora uma escolha pessoal pois a fizera mais para agradar e obedecer à vontade dos pais que por aptidão que a propósito os fatos demonstrariam que não existia nele para esta profissão Não obteve sucesso e experimentou a frustração de se dedicar a algo que não lhe interessava e para o que não tinha talento algum Foi num encontro com Jacques Chevalier conhecido de seu pai através de conferências temáticas sobre Malebranche e sobre César Frank que Emmanuel Mounier vislumbrou sua aptidão para a Filosofia Durante três anos estudara sob os cuidados de Chevalier e em 23 de junho de 1927 obtendo seu diploma de estudos superiores com a análise de Descartes intitulada O conflito do antropomorfismo e o teocentrismo na Filosofia de Descartes 14 Em sua vida fez escolhas que o colocaram à margem do ambiente acadêmico e dos grandes centros de civilização de sua época dos quais se afastou por motivos de coerência com seu próprio pensamento prefere se retirar e lançar mão de outros meios de inserção e de ação no mundo que não a academia Para ele não havia sentido ocupar uma cátedra numa universidade mesmo a Sorbonne onde o teria conseguido facilmente inclusive à frente de Sartre em colocação com quem compartilhou os mesmos ambientes de estudo na École Normal Supérieure Escrevera sobre sua experiência na referida universidade que falta sobretudo a essas almas seguras dos professores o sacrifício a prova a noção concreta da miséria humana assim como de sua verdadeira grandeza só conhecem o hospital a partir de sua comissão de higiene DÍAZ Carlos 2000 p2829 Mounier acreditava que sua Filosofia deveria ser uma Filosofia de ação não de gabinete e é nesse sentido que não se considerava ele mesmo um filósofo Suas principais influências foram o espiritualismo cristão e o neotomismo de Jacques Maritain os ensinamentos de Jacques Chevalier que possuía no seu estilo uma tentativa de reconciliação de Descartes e Bérgson as ideias de Charles Péguy donde Mounier assume o caráter de um pensamento menos preso aos esquemas universitários e mais aberto ao compromisso com a ação histórica Por fim ainda no escopo das influências de seu pensamento se tem o fato de que o filósofo sempre procurou manter diálogo com todo tipo de pensamento e corrente filosófica atitude que explica a presença de elementos do Existencialismo do Marxismo e do Anarquismo no seu pensamento por exemplo e até forte característica fenomenológica em seu modo de fazer filosofia se bem que nunca tenha aceitado tal alcunha Em 1932 funda a revista Esprit que funciona como centro de animação e fomento das ideias personalistas e como uma frente de batalha contra o que ele e os demais intelectuais reunidos nessa associação irão chamar de desordem estabelecida sendo uma voz bastante ativa contra o nazismo e o fascismo tomando sempre a posição de defesa do ser humano a qualquer preço É nesse momento que conhece sua futura esposa Paulette Leclercq A revista fora fundada por ele Mounier mais três intelectuais que comungavam das mesmas ideias Georges Izard André Déléage e LouisÉmile Galey Falar da fundação desta revista abre espaço aqui para falar do método de Emmanuel Mounier e consequentemente de sua obra De sua obra porque esta nasceu e se desenvolveu através das páginas da revista as maiores e mais importantes obras do autor são na verdade 15 coletâneas de artigos seus publicados em Esprit De seu método não há muito que dizer como a revista tinha pouca preocupação acadêmica isto se reflete claramente nos textos do autor o que dificulta sobretudo sua classificação Ademais o próprio tema de suas reflexões é um tema que não se deixa classificar pois tendo um caráter sempre colaborativo e dialógico sendo sempre fruto de discussões e debates políticos e culturais esta filosofia de Mounier se nos apresenta em plena elaboração e em plena vida uma filosofia que escapa a todas as sistematizações exatamente porque assenta na pessoa que é livre e sempre imprevisível MOUNIER 1974 p 8 como propõe João Bénard da Costa que escreve o prefácio de O Personalismo obra sintética das ideias gerais do pensamento mounieriano Assim caso se possa tentar uma classificação ao menos aproximada seria de bom tom e honesto deixar suas obras no viés do dialógico do dialético Com efeito o que se percebe com clareza é uma tentativa de dialogar com todas as correntes do pensamento vigente no segundo quarto do século passado Talvez pelos motivos expostos acima Mounier não figure muito nos esquemas de apresentação da História da Filosofia e permaneça ainda hoje além de pouco conhecido como tantos outros filósofos um pensador motivo de polêmicas e polemizador por temperamento e por decisão pessoal Logicamente quem contradiz encontra e engendra contraditores CARRERAS 1981 p15 Assumindo por vezes a forma de cronista do pensamento de sua época Ibid a maneira mais acertada de se lhe fazer uma leitura seria lerlhe em chave múltipla como pensador rigoroso que enfrenta decididamente as questões mais radicais e ao mesmo tempo como ensaísta periodista e literato que escreve febrilmente enquanto viaja e corre de um lado para outro Ibid Não se deve esquecer também o caráter combativo da obra Esta se situa no período complicado entre as duas grandes guerras A sociedade em que Mounier se desenvolve está passando por uma grande crise o mundo todo está passando por essa crise que agravada pelos eventos econômicos de 1929 repercute nos temas de seus escritos e nos de grande parte dos escritos filosóficos e intelectuais da época A crise de fato foi ao mesmo tempo política institucional econômica e cultural social e moral e o personalismo como outras filosofias se preocupava em dar uma interpretação em propor uma saída para a situação Essa saída para os intelectuais da época em sua grande maioria não poderia ser de maneira alguma nenhuma forma de fascismo ou de absolutismo Assim Mounier e seus 16 parceiros através da revista mesmo se insurgem contra quaisquer que sejam as presenças deste perigo E sofrem as consequências como tantos outros toma posição contra as ligas fascistas em 1934 pela Frente Popular em 1936 contra Munique em 1938 e pelos republicanos espanhóis em 1939 Em 1940 a revista Esprit surge em Lyon na zona não ocupada pelos alemães durante dez meses Seu texto Supplément aux mémoires dun âne foi censurado pelo regime prónazista de Vichy Foi preso durante alguns meses por causa da sua participação no Movimento da Resistência Após sua liberação viveu na clandestinidade até a libertação da França quando publicou em 1946 o Traité du Caractère Tratado do Caráter escrito durante a prisão1 Importa ressaltar ainda que Esprit em determinado momento passa de uma revista a um movimento através dos chamados GruposEsprit o que coloca o fenômeno num patamar significativo da História dos periódicos e movimentos na França2 Através de sua obra podese perceber alguém que escrevia do meio da vida quer dizer muitas vezes no meio das suas viagens nos trens e no meio das mais diversas ocupações atitude diversa da de quem faz da escrita uma profissão Percebese também alguém que vive de maneira diferente a sua profissão de fé a ponto de não se abster de denunciar a deterioração do próprio Cristianismo de sua época incorrendo inclusive na possibilidade da abertura de um processo contra sua pessoa por parte do próprio Vaticano O personalismo de Emmanuel Mounier se apresenta como um pensamento de práxis e de combate de urgência e de última hora de última vida Sua vida mesma se confunde com suas ideias uma Filosofia não sistematizável porque é na verdade uma matriz filosófica geradora de Filosofias de maneiras de pensar que trariam a assinatura da pessoalidade de cada pensador em sua própria obra e em seu tempo já que cada pessoa é única uma matriz filosófica que é mais do que uma atitude na qual podem ser ressignificados cada um dos sistemas filosóficos existentes lendo cada um com a lente da centralidade da pessoa da causa do ser humano Por esta razão dentre outras é bastante difícil encontrar em seus textos para fins de sistematização outro fio condutor que não seja a pessoa mesma em seu caráter de permanência aberta 1 Para uma abordagem mais completa de sua biografia conferir DÌAZ Carlos Emmanuel Mounier Un testimonio luminoso Madri Ediciones Palabra 2000 2 Para uma abordagem mais detalhada do movimento Esprit vide artigo CUGINI Paolo Emmanuel Mounier e a experiência da revista Esprit A origem da filosofia personalista Dialegesthai Rivista telematica di filosofia in linea anno 11 2009 inserito il 20 dicembre 2009 Disponível em httpsmondodomaniorgdialegesthai Acesso em 5 mai 2018 17 CAPÍTULO II O CONCEITO DE PESSOA EM EMMANUEL MOUNIER Ao personalismo interessa a totalidade da condição humana não só a sua parte noética isoladamente bem como não só também sua parte física ou nenhuma parte à qual se poderia chegar numa divisão deste objeto de estudo O aspecto diferencial deste conceito proposto por Mounier para abarcar teoricamente o tema do ser humano o conceito de pessoa e assumido pelo personalismo em geral do qual é iniciador e mentor é sua capacidade de fazêlo de forma ampliada e completa tanto quanto possível para o caso de se poder dizer que não o faça totalmente tendo maior sucesso entretanto que os conceitos propostos anteriormente para o mesmo fim Assim o sugere Paul Ricoeur amigo e discípulo de Mounier evidenciando tal aspecto diferencial do uso do conceito de pessoa para tratar do humano Volta a pessoa Não insisto sobre a fecundidade política econômica e social da ideia de pessoa Bastame evocar um único problema o da defesa dos direitos humanos em outros países que não o nosso o dos direitos dos prisioneiros e dos detentos em nosso país ou ainda os difíceis casos de consciência postos pela legislação de extradição como se poderia argumentar em cada um desses casos sem referência à pessoa Mas quero me concentrar no argumento filosófico Se volta a pessoa é porque ela continua sendo o melhor candidato para sustentar os combates jurídicos políticos econômicos e sociais evocados em outro lugar quero dizer um candidato melhor do que todas as outras entidades que foram levadas pelas tormentas culturais evocadas acima Prefiro dizer pessoa em vez de consciência sujeito eu RICOEUR 1996 p158 Todavia para que uma consideração simplista de seu ponto de vista não reduza o problema a uma querela de linguagem adequada Ricoeur no mesmo texto evoca sucintamente os problemas que quer evitar ao justificar o uso do conceito pessoa em detrimento dos demais conceitos que se referem ao ser humano na Filosofia Relativamente à consciência ao sujeito ao eu a pessoa aparece como conceito sobrevivente e ressuscitado Consciência Como se crê ainda na ilusão de transparência que se liga a esse termo depois de Freud e da Psicanálise Sujeito Como se nutriria ainda a ilusão de uma fundação última nalgum sujeito transcendental depois da crítica das ideologias da Escola de Frankfurt O eu Quem não sente a impotência do pensamento para sair do solipsismo teórico a não ser que ele parta como em Emmanuel 18 Lévinas do rosto do outro eventualmente numa ética sem ontologia RICOEUR 1996 p158 A alusão aos problemas que Ricoeur deseja evitar ao preferir o termo pessoa aos demais para tratar do ser humano tem o objetivo de pôr em evidência o problema da identificação do personalismo com o solipsismo e o subjetivismo entendidos no sentido de uma exaltação do eu ou do particular em detrimento do nãoeu com os quais é às vezes erroneamente identificado Dizse erroneamente porque o personalismo jamais prescindiu da comunidade na realização da pessoa Na compreensão de Mounier o eu cartesiano bem como as outras entidades citadas acima só podem conduzir a uma ideia de ser humano solipsista que diz respeito no máximo a um ser humano hipoteticamente ilhado completamente isolado no espaço sozinho e livre de quaisquer influências externas e que ainda assim teria consciência de si mesmo Ora tal hipótese não corresponde jamais à realidade do ser humano o eu é sempre referido a alguém algo e a consciência na verdade é sempre consciência de alguém e de algo No personalismo há um nós pensamos que vem primeiro ao invés de um eu penso Apesar do que foi dito não são raros os enganos em que muitos recaem ao ter contato superficial com o personalismo O mais recorrente deles é pensar que esta filosofia trata de assegurar o subjetivismo e o individualismo ao propor o conceito de pessoa como visão de ser humano Ora este seria um erro bem elementar de raciocínio já que desde o início os teóricos do personalismo afirmam a pessoa como fenômeno impossível sem a coexistência sem a comunidade como parte constitutiva do particular Ao tratar disso Mounier chega a afirmar a primazia do outro ao menos no campo psicológico sobre o eu e coloca um acento muito agudo na coexistência e na comunicação como condições para a pessoa Ora todo encontro é uma experiência do outro sem a qual não é possível existir mesmo para os mais votados ao solilóquio frugal e até mesmo ao egoísmo individualista porque todo ser humano teve progenitores exemplo imediato da condição necessária de ser relacional e convivência com alguma forma de organização social seja ela qual for O personalismo assim como outras filosofias acredita e defende que o ser humano seja por natureza um ser social e mesmo se apoia na afirmação de que os homens não são homens fora do ambiente social LUCIEN MALSON apud LORENZON 1996 p9 e ainda de que a pessoa traz em sua estrutura ontológica uma tendência inata para os outros 19 LORENZON 1996 p18 para inferir que a comunicação ou o contato com o outro é além de condição para a vida social para a Epistemologia e para a cultura dentre tantos traços da antropologicidade condição também para a formação da própria identidade e do processo de personalização individual e comunitária Assim é que a criança se descobre até certo ponto no espelho dos outros isto quer dizer que a criança conhece primeiramente os outros e depois a si mesma Em outras palavras a projeção no plano psicológico é anterior à subjetividade e à objetividade LORENZON 1996 p 2425 Tais afirmações portanto tornam sem sentido qualquer associação do personalismo ao subjetivismo exacerbado ao psicologismo ou ao idealismo abstratoutópico Mounier usa o termo subjetividade como um termo mais amplo e que engloba as noções de consciência e autoconsciência e se concretiza na existência da pessoa como sujeito É uma existência que implica liberdade autonomia tanto no sentido de que o sujeito tem um papel ativo em relação aos objetos como no sentido de que esta existência permite à pessoa um distanciamento das coisas distanciamento que permite a reflexão sobre o mundo sobre si e permite a transformação do que se conhece ROCHA 2011 p 42 Pode parecer que Mounier esteja propondo algo contra a subjetividade contra a admissão desta realidade Na verdade a questão não é com a subjetividade ou com a consciência não se trata de negálas e sim com estas realidades entendidas de forma separada do corpo da matéria Efetivamente as duas experiências não são separáveis existir subjetivamente existir corporalmente são uma única e mesma experiência Não posso pensar sem ser nem ser sem o meu corpo através dele exponhome a mim próprio ao mundo aos outros através dele escapo à solidão dum pensamento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento MOUNIER 1974 p 51 Se há alguma negação quanto a esses temas tal negação acontece só em relação a uma ideia de hierarquia na qual a matéria seria menos importante que o espírito e também em relação a considerar a separação dessas realidades como caminho válido para conhecimento do ser humano e para construção de uma visão de homem 20 Ainda assim o sujeito o eu transcendental ou a consciência entidades que se robustecem no pensamento de Descartes e tantos outros teóricos modernos eleitoa pela modernidade como ideia de ser humano que veio a ser a base da organização social não são suficientes para abarcar a realidade humana simplesmente porque dividem o ser humano em partes tal como os objetos da experiência científica moderna e contemporânea Justamente porque o ser humano não pode ser tratado como um objeto e não se pode tratar dele com os mesmos termos com que se teoriza sobre o que lhe é externo Não sou um cógito leve e soberano no céu das ideias mas este ser pesado cujo próprio peso dará será uma grave expressão sou um euaquiagora talvez seria necessário enunciar um euaquiagoraassimentres os homens com este passado MOUNIER 1956 p 42 Para Mounier é necessário que a consciência seja inserida numa compreensão total do ser humano não se pode aceitar que este seja resumido àquela Assim afirma que esta seria a omissão capital o pecado original do racionalismo Esqueceu ele que o espírito cognoscente é um espírito existente e que o é não em virtude de uma qualquer lógica imanente mas de uma decisão pessoal e criadora MOUNIER 1963 p 2223 Aqui talvez seja salutar lembrar também que o ser humano não pode ser visto como se estivesse à parte do mundo como um objeto isolado nem mesmo quando se propõe a voltar seu olhar investigativo sobre o mundo do qual faz parte para Mounier a razão e a reflexão só têm sentido completo e integral enquanto etapas prévias da ação Isto significa que a consciência é uma consciência engajada comprometida situada e seu pretenso caráter de imparcialidade e de objetividade descomprometida é passível de ilusões e de suspeitas SEVERINO Antonio Joaquim Pessoa e Existência p61 in ROCHA p 42 Assim fica sem sentido também qualquer pretensão de objetividade pura de redução plena da realidade humana num conceito fechado e perfeito pois um sistema conceitual pode definir com precisão o que não é mas explica só mediocremente o que é Aquilo que é certo no plano da ontologia é mais certo todavia quando nos deslizamos ao plano da história MOUNIER 1956 p 28 No que tange à pessoa há que se conseguir e talvez inventar novos métodos de estudo que levem em consideração a totalidade do ser humano 21 Pois o conhecimento das coisas do homem e do mundo na medida em que interesse ao homem se consegue só pelo compromisso que aceitamos com seu objeto Este conhecimento comprometido constituí a verdadeira objetividade pois o espectador em matéria humana dissolve o objeto em lugar de revelálo MOUNIER 1956 p52 O impasse e o bloqueio em que as descrições intuitivas e as dissociações experimentais a colocaram em um determinado momento em frente a um novo problema inventar instrumentos de análise na escala de grandes estruturas e grandes associações psíquicas e não mais para escala de comportamentos empíricos como testes laboratoriais3 MOUNIER 1974 p 30 A criação desses novos métodos só será possível a partir de um questionamento nada cômodo é preciso desinstalar e sacudir a própria ideia de ser humano A que comumente se privilegia hoje é fruto da mentalidade científica positivista moderna e filha do cartesianismo está vestida com a moda do reducionismo como consequência Mas o ser humano não é afirmação somente nem negação somente É interrogação primeiramente e a pessoa é movimento não condição estática a que se chega ou premio imóvel que se alcança A pessoa antes de tudo é um equilíbrio no fio bambo e tênue esticado entre o movimento de personalização que se admite como telos do humano e o movimento de despersonalização Ora a razão instrumental pedra de toque da ideia de ser humano a que há pouco se fez alusão é uma caixa muito pequena para conter qualquer realidade que pertença ao universo pessoal já o que é humano não cabe nela sem mutilações e Mounier insiste em propor essa mudança justamente por prever que ante o ser humanoinstrumento já não existe limite para a inumanidade MOUNIER 1956 p 128 O conceito de pessoa emerge então na Filosofia como proposta alternativa de entendimento da realidade humana Ele traz em sua definição a pertença do ser humano ao mundo físiconatural compreendida como relacional e necessária além de elemento constitutivo do mesmo Justamente neste ponto é que se torna possível falar em uma aproximação parcial com a ideia de ser humano trazida pelo marxismo em certa influência deste como se explicitará mais abaixo ou pelo menos numa apropriação do caracter materialista da mesma quando se diz que a pessoa é encarnada Além disso o personalismo entende que a pessoa é também um ser espiritual tanto quanto material um ser no qual coexistem essas duas realidades numa só e mesma de maneira natural Portanto insiste em manter entre os atributos constitutivos da pessoa a transcendência seja ela vertical sua 3 Tradução nossa 22 espiritualidade ou capacidade para ela seja horizontal sua saída de si mesmo em direção a outrem pessoa ou mundo Ao lado destes elementos o conceito de pessoa também procura resguardar ao ser humano sua capacidade criativocriadora e sua imprevisibilidade bem como sua liberdade e responsabilidades Ao mesmo tempo em que propõe uma nova maneira de enxergar a condição humana Mounier procura resguardar a dinamicidade dessa condição através da intenção de manter o conceito de Pessoa sempre aberto e dinâmico Daí procede a dificuldade principal de compreensão deste conceito dizer a pessoa é isto ou o ser humano é aquilo seria reduzir sua grandeza para este filósofo Além destas dificuldades que saltam da própria natureza do objeto estudado que no caso é o ser humano mesmo há outra dificuldade que salta do ser humano Mounier em si ele jamais quis ou pensou um sistema filosófico apesar de afirmar que o personalismo é uma filosofia não é apenas uma atitude É uma filosofia não é um sistema Não foge à sistematização Porquanto o pensamento precisa de ordem conceitos lógica esquemas unificantes Porque define estruturas o personalismo é uma filosofia e não apenas uma atitudeMas sendo a existência de pessoas livres e criadoras a sua afirmação central introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva MOUNIER 1974p16 17 Assim não resta outro caminho a seguir para encontrar as inspirações e os caracteres específicos do conceito de pessoa criado por Emmanuel Mounier Ao propor sua ideia de ser humano ele concebe a noção de realismo trágico do ser humano e notadamente se aproxima muito de algumas ideias marxistas como foi dito quando se mencionou o materialismo presente no conceito de pessoa com distanciações igualmente notáveis Todavia fazse necessário um olhar mais cuidadoso sobre o que se poderia chamar de influências do materialismo marxista na gênese do conceito de pessoa Com efeito o personalismo nunca viu problemas em admitir que tudo no ser humano está imbuído de sangue e terra 4 o que expressa através da afirmação de que a pessoa é um ser encarnado Evidentemente a expressão encarnação é de inspiração cristã e tem implicações notáveis nas proposições do filósofo de Grenoble 4 Cf nada há em mim que não esteja imbuído de terra e de sangue MOUNIER1974 p 40 23 Seu ponto de partida é a natureza o mundo pois é isto que aparece primeiro e o ser humano se encontra inserido nessa natureza já numa relação autoconstituinte de negação ele nega a natureza para ter consciência de si eu não sou o mundo sou algo diferente dele Nessa relação somente o ser humano é capaz de realizar transformações na natureza de maneira consciente através do trabalho e para Marx este é precisamente o ponto que diferencia o ser humano das outras formas de vida Afirma o autor o primeiro pressuposto de toda a existência humana e portanto de toda a história é que todos os homens devem estar em condições de viver para poder fazer história Mas para viver é preciso antes de tudo comer beber ter moradia vestirse e algumas coisas mais O primeiro fato histórico é portanto a produção dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades a produção da própria vida material Podese distinguir os homens dos animais pela consciência pela religião e por tudo o que se queira Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência e esse passo a frente é a própria consequência de sua organização corporal Ao produzirem seus meios de existência os homens produzem indiretamente sua própria vida material MARX ENGELS 1998 p 10 Para o personalismo porém esta definição do ser humano a partir do trabalho e como parte da natureza não é suficiente A importância desta categoria trabalho não se deve somente ao fato de ter o ser humano a capacidade de produzir objetos e realizar tarefas Sua amplitude na teoria marxista se deve bem mais ao fato de que o trabalho realizado por um ser humano é considerado a exteriorização dele mesmo Marx entende que o ser humano e seu trabalho se identificam ontologicamente Uma consequência importante desse argumento é que o ser humano seria também ele produto de si mesmo e o personalismo a assume de maneira incisiva quando trata do tema da personalização apesar de não reduzir o processo a isso Por esta razão não se poderia deixar de aludir a essas categorias marxistas das quais se pode reconhecer a aproximação e a distanciação no pensamento de Mounier A análise dessas relações entre o ser humano e a natureza entre o ser humano e seu trabalho entre o ser humano e os meios de produção e a partir disso tudo das relações interpessoais terá como consequência diversos conceitos muito caros ao marxismo que para este estudo configuram um excesso Por hora fazse necessário apenas a atenção ao que se tentou esboçar acima em linhas gerais o pensamento de inspiração materialista que tem sua 24 expressão máxima nas teorias marxistas a respeito da natureza humana em sua contribuição para pensálo como pessoa 21 Pessoa uma visão do humano O conceito de pessoa como já foi apresentado é exatamente a forma com que Emmanuel Mounier apresenta sua noção peculiar de natureza humana ou como ele mesmo preferia dizer condição humana ao invés de natureza humana por considerar a primeira expressão um tanto quanto fixista e já desgastada na Filosofia Para ele a pessoa é um ser natural mergulhado na corporeidade material corpo dotado de espírito nous ou pensamento alma ou psique pneuma ou respiração de liberdade criatividade e imprevisibilidade irrevogáveis O enunciado acima que funciona como uma pretensa fórmula de definição não representa todavia mais que uma tentativa malograda de conceituar o que na verdade não caberia num conceito para Mounier Por diversas vezes ele afirma em sua obra que o ser humano ou a condição humana não podem ser conceituados com total sucesso a não ser sob pena de redução ontológica e prejuízo na compreensão de tão grandioso tema só se definem os objetos exteriores ao homem que se podem encontrar ao alcance da nossa vista Mas a pessoa não é um objeto Antes é exatamente aquilo que em cada homem não é passível de ser tratado como objeto MOUNIER 1974 p15 As reflexões sobre a pessoa não se originaram com o personalismo Existe toda uma tradição antropológicofilosófica que conscientemente é retomada por esta Filosofia sem a pretensão de reclamar que o tema da pessoa seja exclusividade sua muito embora somente ela a tome como ponto de partida e objeto de estudo fazendo com que convirja nela toda e qualquer iniciativa do pensamento Apesar disso não se pode considerálo como a única corrente filosófica a estudar o tema Tampouco qualquer autor personalista de fato faria esta reivindicação menos ainda Mounier visto também que não existe apenas um personalismo Dentre todos os que existem porém O personalismo de tradição cristã consegue retomar a tradição clássica e dialogar com as novas escolas filosóficas como e o caso da Fenomenologia além de oferecer uma visão integrada totalizante e profunda da pessoa 25 humana que é tarefa de toda antropologia filosófica que se preze LIMA VAZ 2011 p1516 Fazendo uma justa referência Henrique Cláudio de Lima Vaz conhecido filósofo de metodologia e inspiração confessadamente hegelianas mas personalista em muitos de seus temas já que também retoma o tema da pessoa como visão do humano é um exemplo atual contundente da relevância e atualidade do conceito de pessoa e realiza um trabalho significativo em sua obra Antropologia Filosófica conseguindo o efeito de explicitar melhor a caracterização da condição humana através do uso de categorias como corporeidade e nous Em suas reflexões ele parte da categoria corpo com a qual sublinha o estarno mundo como primeira manifestação do humano para chegar notese que passando por categorias bem próximas daquelas utilizadas antes por Mounier ao que ele denomina ultima fronteira ontológica onde se apresentaria a pessoa O desenvolvimento do discurso da Antropologia Filosófica e da dialética que o conduz nos trouxe justamente a essa espécie de última fronteira ontológica da nossa reflexão sobre o homem na qual a categoria de pessoa se apresenta tanto na sua procedência histórica como nas suas exigências teóricas como a mais apta a exprimir toda a riqueza inteligível que se adensa nesse estágio o mais elevado da autoafirmação do sujeito LIMA VAZ 1992 p190 Para explicar o mistério da pessoa humana Emmanuel Mounier porém não parte de um sistema filosófico como nos lembra Alino Lorenzon um de seus mais respeitados estudiosos Ao contrário o caminho inverso é que foi por ele palmilhado apesar dos obstáculos teóricos e práticos de toda ordem A pessoa em todas as suas dimensões e desdobramentos será o ponto filosófico de referência Inconfundível com os objetos e com os seres da natureza cada pessoa é um universo singular e original LORENZON 1996 p70 Em sua busca pela expressão do conceito de pessoa Mounier ainda recorda o seu caráter indefinível as mil maneiras porque eu posso determinálo o meu vizinho como um exemplar duma classe ajudamme a compreendêlo e sobretudo a utilizálo a saber como hei de me comportar quando estou com ele Não são no entanto mais do que facetas fornecidas por cada um dos diferentes aspectos da sua existência MOUNIER 1974 p16 26 Tais considerações permitem evidenciar a existência do que ele chamará de universo pessoal ontologicamente singular e original que jamais se esgota ou se submete completamente à sistematização e do qual se pode até perceber manifestações mas nunca atingir a profundidade de seu ser Isto porém não deve desencorajar uma atitude filosófica frente ao problema da pessoa É o próprio Mounier quem o diz sob outras palavras Não nos precipitemos contudo arrumandoa no reino do indizível Uma experiência rica que no mundo se insere exprimese por incessante criação de situações de regras de instituições Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza MOUNIER 1974 p19 Finalmente é preciso sublinhar um traço essencial e fortemente presente na ideia de ser humano personalista a fim de completar a breve apresentação desta noção particularmente original de condição humana Esse traço é o que os personalistas chamam de transcendência e permanece inegociavelmente como elemento essencial da pessoa Isto significa que para esta Filosofia o ser humano é um ser encarnado sujeito a toda a materialidade que o cerca Porém é também dotado da capacidade natural de superar essa realidade através de uma consciência criadora engajada que é seu centro de transcendência e que o projeta e o impulsiona no movimento de transformação da mesma realidade através também de sua capacidade distintiva de conhecimento e de sua capacidade de amar de ser livre e de superação dos determinismos que o cercam A este entendimento tratamos por transcendência horizontal este não é negligenciado nem mesmo pelo materialismo histórico Existe ainda o entendimento no qual se insere como objeto de estudos a capacidade para a espiritualidade da qual o ser humano é dotado ao qual tratamos por transcendência vertical o personalismo assegura lugar para as duas compreensões na consideração da transcendência como caráter constitutivo da pessoa Mounier argumenta a favor da transcendência citando o próprio Marx o homem é um ser natural mas um ser natural humano MOUNIER 1974 p 43 5 e prossegue afirmando que a pessoa é encarnada imersa na natureza e vale a pena repetir aqui se aproxima o personalismo de parte do materialismo proposto por Marx sendo este o motivo pelo qual se evocou a visão marxista do ser humano e que ao emergir da mesma a 5 Marx citado por Emmanuel Mounier Cf Marx K Économie politique et Philosophie Coste p 78 27 transcende Sem por isso renunciar à transcendência ele reconhece a complexidade deste caráter essencial da pessoa e a dificuldade no entendimento do mesmo dentro de uma formulação de ideia de ser humano ao acenar que nosso espírito resiste a representarse uma realidade que seja inteiramente imersa numa outra por sua existência concreta e que contudo lhe seja superior pelo nível de existência MOUNIER 1974 p42 Um grande mérito do personalismo é a clareza a precisão quase palpável do resultado das reflexões iniciadas não no terreno das especulações demasiado distantes da realidade mesma e sim no chão da vida do ser humano partindo portanto da sua materialidade sem desconsiderar que ele seja no entanto mais que essa materialidade Dois pontos de convergência merecem especial atenção dentro dos objetivos hermenêuticos aqui propostos de identificar as influências oriundas do materialismo histórico na concepção personalista de ser humano São eles 1 o conceito de personalização e sua aproximação teórica com a categoria trabalho presente na visão de ser humano do materialismo histórico mas não o trabalho alienado e 2 a influência da concepção materialista histórica do ser humano no conceito personalista de pessoa Primeiramente fazse necessário mencionar o conceito personalista de personalização muito embora seja este o tema do segundo capítulo desta reflexão pelo qual se exprime basicamente a ideia de que o ser humano traz em si a capacidade para se tornar pessoa e a exigência ontológica de estender o seu universo pessoal a toda a natureza nas demais esferas que o cercam imprimindo em tudo isso sentido pessoal A pessoa não se contenta com sofrer a ação da natureza donde veio ou com moverse conforme suas provocações Voltase para ela para a transformar e progressivamente lhe impor a soberania dum universo pessoal a exploração da natureza não tem por fim articular sobre um feixe de determinismos um feixe de reflexos condicionados mas sim abrir perante a liberdade criadora de um número crescente de homens as mais altas possibilidades de humanização é por isso que devemos negar a natureza como dado para afirmála como obra como obra pessoal suporte de toda a personalização Então a dependência da natureza tornase domínio da natureza o mundo inserese na carne do homem e no seu destino E ainda é preciso dar um sentido a esta ação sobre a natureza MOUNIER 1974 p5253 Sendo o trabalho uma categoria sobre a qual a antropologia marxista irá desenvolver sua concepção de natureza humana dizendo basicamente que é a partir do trabalho que o ser 28 humano se faz e se afirma no mundo bem como humaniza o que está ao seu redor é perfeitamente possível e válido afirmar que haja uma aproximação teórica entre trabalho e personalização ou até mesmo que esta seja a forma de trabalho mais especificamente humana a ser realizada pela pessoa primeiramente em si mesma e no mundo Observase portanto a existência de uma relação íntima entre os dois conceitos talvez uma relação embrionária na qual o conceito personalista se mostra como um desenvolvimento uma sofisticação da categoria marxista no caso Em segundo lugar é perfeitamente possível afirmar também que o personalismo tenha sido influenciado em larga escala pelas concepções materialistas apresentadas pelo marxismo no que diz respeito à concepção de ser humano que o primeiro apresenta de maneira original e peculiar através do conceito de pessoa naquilo que traz de dados materiais admitidos como essenciais nesse conceito apesar da consideração adicional de assegurar lugar ao dado da transcendência vertical que é negligenciado pela antropologia marxista Assim emerge com clareza o outro ponto de convergência principal das duas maneiras de pensar a humanidade nada há em mim que não esteja imbuído de terra e de sangue MOUNIER 1974 p 40 bem como o ponto de divergência que leva o personalismo numa direção diferente senão oposta ao marxismo a consideração do dado essencial da transcendência o que de maneira alguma encerra o diálogo sempre buscado pelos teóricos personalistas com a teoria marxista e com outras posições filosóficas Com efeito adversamente ao marxismo Mounier considera que a omissão mesmo que seja apenas de parte deste caráter a transcendência na concepção de ser humano e a desconsideração teórica e prática da existência da consciência criadora e da imprevisibilidade da pessoa trariam como consequência teórica o encerramento do ser humano nas vicissitudes e determinismo naturais sem possibilidade de verdadeira liberdade e no campo prático a impossibilidade de personalização para o ser humano Concluindo podese afirmar que ambas as filosofias admitem caracteres ou elementos materialistas na concepção de ser humano e de natureza ou condição humana que procuram formular e que como já foi dito o personalismo não vê problemas em admitir as influências do materialismo em sua ideia de ser humano muito embora não encerre jamais a pessoa puramente em seus dados materiais 29 Com efeito o personalismo não tem a intenção de propor a partir do nada uma nova ideia de ser humano desconsiderando os avanços históricos a esse respeito mesmo quando questiona a ideia atual que se tem a respeito do ser humano Sua intenção ao trazer para os meandros do conceito de pessoa o realismo trágico do ser humano ou seja essa imersão de um ser capaz de transcendência na natureza e no mundo não é outra que a de devolver a ele sua liberdade criadora diante do feixe de determinismos que o cerca em cada particular e como comunidade universal que lhe fora roubada por uma antropologia de matizes por demais materialistas e também positivistas num momento ou demasiado subjetivistas e idealistas noutro Mounier rechaça com veemência toda polarização toda tentativa de prender a pessoa seja em seus elementos materiais seja na mistificação de seus caracteres espirituais Ele chega mesmo a lamentar Parece pois que aquilo a que se podia chamar a revolução socrática do século XIX ou seja o assalto contra todas as forças modernas de despersonalização do homem se separou em dois ramos um deles através de Kierkegaard chama o homem moderno deslumbrado pela descoberta e exploração do mundo À consciência da sua subjetividade e da sua liberdade o outro através de Marx denuncia as mistificações a que o conduzem estruturas sociais enxertadas na sua condição material e lembralhe que o seu destino não depende somente do seu coração mas das suas mãos Lamentável separação MOUNIER 1974 p31 Este estudo sustenta que a ideia de ser humano que se tem em cada espaçotempo é responsável pela direção histórica do ser humano que acontece nesse mesmo espaçotempo Destarte o único meio eficaz para dirigir a história é analisar o movimento da história dentro de uma experiência vivida e progressiva Este é um ponto de onde o realismo personalista se aproxima muito do método marxista de seu esforço para limpar despejar os problemas históricos do a priori e para soldar o conhecimento à ação MOUNIER 1956 p46 A situação atual da comunidade humana tem relação direta com a ideia que nela se tem do ser humano neste tempo Mudando esta visão é que se mudará qualquer coisa nesta realidade objetiva Mas não se trata de uma mudança meramente teórica e sim de uma revolução do ser humano todo Fica claro também que essa mudança não se atém meramente aos aspectos materiais do ser humano e de sua realidade Para Mounier a Revolução moral 30 será econômica ou não será A Revolução econômica será moral ou não será nada MOUNIER 1956 p 20 22 Personalismo uma utopia Falar de personalização desse desejo que se tem para o ser humano desse telos parece para alguns ser o mesmo que falar de utopia no sentido fraco do termo Por esta razão não raras vezes o personalismo recebe a acusação de ser utópico de propor o irrealizável Mas o utópico não constitui nenhum problema desde que se deixe claro qual o significado de utopia para esta reflexão Se aqui aparece o termo não tem outro significado que aquele atribuído por filósofos como Ernest Bloch por exemplo é tão somente uma concepção teórica contrária ou crítica ao status quo num primeiro momento e uma pré consciência 6 num segundo Quando se tem por tema uma sociedade utópica a maioria dos pensadores resiste a tal ideia apressandose em encontrar erros e impossibilidades nesses modelos novos como se o modelo atual fosse isento destas mesmas ervas daninhas Uma possível causa dessa resistência seria que quase sempre se pensa a realidade como se sempre tivesse existido da maneira como se encontra de maneira estática e definitiva desconsiderando os processos efetivados muitas das vezes por ideias que já foram inclusive consideradas utópicas Menos profícuo ainda é o pensamento de que para que a realidade utópica em questão passe a existir se precisasse abrir mão de tudo o que já se logrou em matéria de avanço e de evolução A utopia na qual Mounier acredita é bem diferente Eu acredito na utopia não aquela na qual a gente se evade mas naquela em que nos projetamos com uma vontade de ferro Cedo ou tarde esta força produz o seu fruto MOUNIER Emmanuel 1946 p828 Na verdade não é preciso nem mesmo possível pensar novos modelos que existam completamente independentes dos antigos Neste ponto não há como fugir dos tons hegelianos em seu clássico exemplo da flor e do fruto se o utópico não tiver relação de compromisso com o realatual ao menos no sentido de intenção de modificação se não 6 Para uma melhor compreensão do termo vide BLOCH Ernst O Princípio da Esperança Tradução Nélio Schneider Werner Fucks Rio de Janeiro Editora Contraponto p 115 a 176 2005 31 houver essa ligação e uma ação de realização não passará de idealismo infértil e esta seria justamente a fraqueza dos idealismos Desta forma podese compreender a atitude mounieriana de acreditar na utopia como uma sempre necessária revisão da atuação da pessoa em sua existência como uma proposição de catarse que a desinstalaria de suas comodidades e produziria uma crise na qual ela se possa superar pois tudo que concerne ao homem só se desenvolve por crise onde a negação deve ser total para que o renascimento seja mais surpreendente MOUNIER 1956 p81 Desta maneira é que o personalismo poderia aceitar o predicativo utópico e de nenhuma outra como pensamento que busca possibilidades e alternativas tentando oferecer alguma contribuição para o hoje e para o depois de hoje afirmando sempre a liberdade criativa do ser humano que se personaliza a partir do exercício da escolha da resistência ou da inventividade criadora de possibilidades não dadas pelo mundotempo diante de cada fato como particular e da história da comunidade humana diante de cada fato que afeta à pessoa e aqui dizer da afecção de cada fato à comunidade é mera redundância já que a pessoa é com e somente com a comunidade primeiramente as mais imediatas e inevitavelmente depois com a totalidade da humanidade Seguindo esta linha de raciocínio ou seja motivado a propor uma revisão da ideia de ser humano o recorte deste estudo se propõe uma aproximação da ideia de ser humano que o conceito de pessoa representa A construção realizada acima em torno da realidade atual do utópico aparentemente no aspecto político tem na verdade a intenção de tratar do movimento de personalização em cada ser humano e naquilo que o cerca que ele como um verdadeiro rei Midas que a tudo que toca confere o valor do ouro tem a possibilidade de realizar Quiçá pudéssemos eliminar do referido mito e da História do mundo do agora a consequência de tornar estátua que nada mais é que figura da morte que se segue ao toque da humanidade Essa forma de compreender o ser humano a pessoa só é possível a partir de toda a evolução conceitual histórica da ideia de condição humana Que não se permita que se esqueça disso 32 23 Pessoa e Ser Humano A pessoa é como o artista que passa ao público a verdade do personagem interpretado com tanta convicção do efeito de sua arte que passa despercebido em sua verdade debaixo da verdade que apresenta e que somente ela conhece em seu universo de possibilidades de realidade E se o fenômeno é apenas a parte do ser a que se tem acesso resta ainda o problema de determinar ou identificar a natureza e os limites desse acesso Desta forma cada pessoa parece guardar algo de misterioso de incomunicável apesar de toda a vontade de fazêlo que cada ser humano experimenta Talvez seja este o motivo pelo qual Mounier hesita em dar uma definição de pessoa que coubesse num conceito pois permanecendo sempre aberto manteria o caráter que mais salta aos olhos deste fenômeno a capacidade de sempre superarse a si mesmo que só o ser humano possui e que lhe é negado pela ideia de ser humano baseada no individualismo no trabalho no egoracionalismo e outras Ser pessoa significa viver todo o possível a si e transcender sempre este limite levando em consideração os compromissos assumidos por cada particular e como comunidade os valores são exemplo desses compromissos e vale recordar a inspiração cristã da Filosofia sobre a qual se discorre para fortalecer o exemplo pois a aspiração transcendente da pessoa não é agitação mas negação de nós próprios como mundo fechado isolado sobre o seu próprio brotar A pessoa não é o ser é movimento do ser para o ser e não é consistente senão no ser que visa MOUNIER 1970 p128 Ser pessoa está na ordem da escolha da liberdade Significa arcar com exigências que custam alto preço que nem todo ser humano está disposto a pagar Por isso nem todo ser humano será pessoa já que tal condição deve ser escolhida livremente e mais que isso conquistada dia a dia e mantida Mounier dirá que a maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência a vida material e vegetativa à aventura humana MOUNIER 1970 p107 Estas palavras podem corroborar muito bem com a ideia proposta acima de que nem todo ser humano escolherá ser pessoa caso se entenda a pessoa como expressão máxima da aventura humana ao que se acrescenta que poderia ser muito breve e insignificante o aparecer de cada ser humano considerado em sua existência particular desconectada da comunidade humana se o possível a cada um não fosse mutável passível de melhora e de evolução 33 Mas de que maneira se pode dizer que algo é melhor Como sustentar que é melhor ser pessoa que ser humano que mero ser Segundo que critérios podese fazêlo Parece que ser pessoa seja algo natural ao ser do ser humano e somente dele ao menos como possibilidade Os dizeres de Celeste Natário em seu artigo Homem e Pessoa trânsito e recurso vêm de encontro a uma possibilidade de resposta para estas perguntas O uso deste termo é correto porque a pessoa humana é também o ser humano embora com o termo pessoa se designe algo mais do que o ser humano algo que só se encontrará para lá do ser humano NATÀRIO 2007 p3741 Mas a pessoa é também da ordem do mistério do acontecimento fenômeno do eternamente mutável e por isso mesmo até mais sagrado que um eternoimutável Permanece por esta razão nunca reificável nunca suficientemente apreendido nunca suficientemente explicado O erro consiste em querer realizar o absoluto no relativo nunca em pensar o relativo sobre o pano de fundo do absoluto a fim de que o relativo conserve uma grandeza que cede infalivelmente ao ficar abandonado a si mesmo A história não é uma relatividade que nasce a cada instante que morre a cada instante mas o semblante sempre novo sempre fiel de um absoluto que ao mesmo tempo esclarece do alto o rio de Heráclito e mistura sua luz com suas águas movediças Sem dúvidas este absoluto e aqui nos reunimos com a grande tradição que liga a Dionísio o Aeropagita com São João da Cruz Pascal Kierkegaard e Kafka é um absoluto oculto É incomensurável para o mundo tal como está O atraímos para nós pelo esforço que fazemos em direção a ele mais que pelas representações que dele nos damos sempre imperfeitas às vezes grotescas MOUNIER 1956 p2728 Assim nenhuma das realidades humanas pode ser desconsiderada na tentativa de compreensão e formulação de uma visão mais total da de ser humano chamada aqui de pessoa que talvez um dia possa ser até mesmo superada já que como diz Mounier citando Nietzsche o homem está feito para ser superado Mas jamais se o supera por algo que é menos que ele e todo impessoal é menos que o homem MOUNIER 1956 p129 Pessoa é superação 34 CAPÍTULO III RELAÇÃO ENTRE PESSOA E DIGNIDADE HUMANA A conclusão do capítulo precedente levou esta reflexão à possibilidade da proposição de que o ser humano traria em si o germe da pessoa ou seja um telos de personalização experimentado em cada ser humano particular experienciado também como comunidade e ainda direcionado à sua relação com a natureza ou nas palavras de Emmanuel Mounier uma vocação Minha pessoa é em mim a presença e a unidade de uma vocação atemporal que me exorta a superarme indefinidamente a mim mesmo e opera através da matéria que a reflete uma unificação sempre imperfeita sempre começada de novo elementos que se agitam em mim A missão primeira de todo ser humano consiste em descobrir progressivamente essa cifra única que assinala seu lugar e seu dever na comunicação universal e em consagrar se contra a dispersão da matéria a esse reagrupamento de si mesmo MOUNIER 1975 p67 Destas ideias derivamse duas consequências sendo a primeira a afirmação da diferença teórica entre ser humano e pessoa que será examinada neste momento Tal diferença se sustenta a partir do entendimento da pessoa como telos do humano como o aparecer total do fenômeno humano como realização máxima da condição humana e apenas neste sentido já que como é evidente em toda a obra de Mounier e de outros autores personalistas o termo pessoa é já usado para designar o ser humano mas também e mais agudamente para designar algo que está além de sua condição natural dada e que somente ele pode alcançar ou melhor dizendo pode construir conquistar e necessariamente deverá manter Para evidenciar de forma mais precisa tal diferença teórica entre ser humano e pessoa que aqui é proposta unicamente para o entendimento da condição pessoal como um telos da condição humana evocarseá aqui primeiramente a história do vocábulo pessoa e a trajetória de sua significação Apesar de parecer uma pretensão especificamente filológica o que se busca aqui é tão somente a significação genérica mais antiga possível do termo para a partir daí elaborar uma análise de sua significação específica para o Personalismo Esta análise lançará alguma luz sobre a questão do ser humano e de seu telos de personalização pois o valor representativo do termo pessoa denota uma particular característica que é posta em destaque ao examinarmos a sua origem etimológica NATÁRIO 2007 p 3741 35 Emmanuel Mounier afirma que a pessoa se faz aparecer ela se expressa se mostra é neste sentido fenômeno foi dito acima Muito embora se admita que haja uma parte sua que não se deixa revelar ao menos não completamente a pessoa expõese exprimese faz face é rosto A palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prósopon aquele que olha de frente que afronta MOUNIER 1974 p98 A palavra persona por sua vez que significa avolumar a voz assim provocar ressonância NATÁRIO 2007 p 3741 é o termo latino mais próximo da noção de pessoa De início chamouse de pessoa a máscara que usavam os atores dotada de um dispositivo para amplificar a voz em Latim personare MONTORO 1971 p299 Depois a designação estendeuse aos atores e aos personagens passando em seguida do teatro para a vida onde cada pessoa representaria um papel social como o de pai mãe patrão ou empregado por exemplo Existe também o termo etrusco phersu que traz como no grego prósopon e no latim persona a mesma significação que aponta para o uso das máscaras teatrais pelos atores no teatro antigo significação que teria evoluído para o da designação do humano e posteriormente do particular Assim pensando na etimologia da palavra pessoa chegase por diversas vias quer gregas ou latinas à palavra que alude à personagem no teatro e se nesta atividade eram representadas as figuras consideradas importantes e famosas deuses semideuses heróis reis etc e se esses mesmos personagens eram como que uma imagem de ser humano quase um exemplo a ser seguido ou evitado não é difícil sustentar a ideia de que a pessoa possa ser entendida também como um telos da maneira que aqui se propõe Contudo o que poderíamos afirmar com certeza é que tendo em consideração quer o sentido usual e comum de pessoa quer o seu sentido etimológico sempre se põe em relevo que significa o homem mas possuindo um rasgo peculiar uma dignidade que o distingue de outros seres NATÁRIO 2007 p 3741 Num segundo momento ainda tratando da primeira consequência ou seja da diferença teórica aludida entre ser humano e pessoa aparecerá o problema da dignidade humana sobre o qual também se haverá de ponderar minimamente na medida em que esse tratamento interesse a esta reflexão dentro dos objetivos específicos pretendidos ou seja buscarseá também e tão somente quanto ao tema da dignidade humana sua significação 36 genérica mais antiga para a partir daí elaborar uma análise de sua significação específica para o Personalismo Dizer da dignidade humana constitui na verdade um atalho para o necessário enfrentamento da questão da natureza humana ou daquilo que constitui propriamente o humano face a outras naturezas A ligação com o tema da pessoa se torna evidente na medida em que se sustenta o axioma de que somente o ser humano traz dentre as suas possibilidades a realização da pessoa Acentuada então esta diferença teórica entre o ser humano e a pessoa o ser humano possuindo o tal rasgo peculiar chegase à seguinte questão cujo enfrentamento tornase inadiável a esta altura a da dignidade humana e a sua relação com o conceito de pessoa Poderia ser posta da seguinte forma há uma dignidade humana e uma dignidade diferente da primeira que viria do fato de o ser humano vir a ser ou não ser pessoa Ou antes ainda aquela que mais importa a esta investigação todo ser humano é pessoa Tratando desta questão podese dizer que o conceito habitual de dignidade humana passou e passará por tantas transformações quantas foram e vierem a ser as transformações da ideia de ser humano Parece haver uma ligação de interdependência entre esses dois conceitos e esta é a razão pela qual o tema da dignidade humana se torna presente Mas será de bom tom recordar que o objetivo aqui é menos de conceituar dignidade humana do que acompanhar a trajetória das suas transformações acima mencionadas pois ela acaba coincidindo por sua vez com a própria trajetória da noção de pessoa Foi na Grécia especificamente em Atenas que pela primeira vez a lei escrita seria base da sociedade política isto é havia um mecanismo que garantia igualdade para todos os cidadãos sendo a igualdade o fator primordial para se chegar à dignidade humana Contudo não se pode ignorar o fato de que poucos indivíduos eram considerados cidadãos sendo necessário que preenchessem diversos requisitos para pertencerem a essa posição ou seja o direito não protegia quem estivesse fora desse grupo seleto não havendo espaço para se falar em direitos dos escravos por exemplo RUIZ e SILVA 2016 p901 Mesmo sabendo que na Antiguidade Clássica mesmo em Atenas bem poucos tinham sua individualidade reconhecida é importante reconhecer aí traços originais de presença do conceito de dignidade humana ainda que de maneira embrionária 37 Desse modo mesmo que de forma modesta temse a criação de conceito em que a individualidade e a liberdade do ser humano são reconhecidas sendo que admitir a existência desses atributos é um passo inicial no sentido de atribuir características ao ser humano diferentes dos demais seres vivos RUIZ e SILVA 2016 p902 Aos gregos ou à Antiguidade interessa sobretudo o sentido da polis e da família O cidadão ateniense aquele que muitas vezes é apontado como o primeiro protótipo de indivíduo da História ainda é uma construção impessoal e por demais genérica dentro da ordem imóvel que rege a natureza e as ideias no mundo clássico Mounier irá afirmar MOUNIER 1974 p 23 que o conhecete a ti próprio de Sócrates é a primeira grande revolução personalista conhecida a primeira vez em que se coloca em evidência no pensamento a necessidade de se pensar a pessoa Saindo do período clássico para o medieval observase o deslocamento da dignidade humana indo da individualidade e liberdade reconhecidas até então para os meandros do teocentrismo cristão que era o forte imperativo do pensamento de época sobre todos os temas e portanto também o que está sendo discutido Quando se trata da dignidade da pessoa humana com o sentido atribuído atualmente considerase o monoteísmo hebraico como o ponto inicial uma vez que as ideias centrais que estão no núcleo do conceito de dignidade humana são vistas no Velho Testamento a Bíblia Judaica em que se afirma que Deus criou o ser humano à sua própria imagem e semelhança Neste contexto estão presentes no cristianismo elementos de individualismo igualdade e solidariedade que serviram de base para o desenvolvimento do conceito de dignidade da pessoa humana Assim nos ensinamentos cristãos o homem é o único ser querido por Deus em si mesmo já que foi o único criado em sua imagem e semelhança fazendo com que sua individualidade não seja um problema mas sim uma perfeição do ser o Homem é imagem de Deus porque é pessoa como Deus é pessoa Por outras palavras sem imagem de Deus é ser um ser pessoal RUIZ e SILVA 2016 p903 Assim a Idade Média no auge do obscurantismo a ela normalmente atribuído injustamente digase de passagem7 deixa ao ser humano a dádiva de um conceito presente nas mais modernas formulações do pensamento humano 7 Para mais esclarecimentos a respeito desta crítica ao senso comum sobre a Idade Média ver a obra Idade Média o que não nos ensinaram de Régine Pernoud Livraria Agir 1979 38 A aplicação da noção de pessoa ao Homem é também uma conquista cristã Pela primeira vez na história da antropologia pessoa aparece como resposta e não como termo interrogativo Dando ao conceito um sentido ontológico e aplicando o mesmo à realidade divina estavam abertas as portas para que o termo persona surgisse como verdadeira resposta à pergunta o que é o Ser humano e não como mera distinção de um concreto face ao universal como na antropologia antiga RUIZ e SILVA 2016 p904 Todavia mesmo com tais portas abertas é forçoso admitir que o ser humano preferiu outros caminhos para responder àquela pergunta como se verá adiante quando esta discussão se ocupar da ideia de ser humano e da ideia de dignidade humana que surgirão na Renascença8 Para Mounier porém a dignidade humana parece ter relação direta com a possibilidade da qual somente o ser humano goza de vir a ser pessoa A pessoa é integral não é somente corpo nem somente espírito E é capaz de transcendência é também irrepetível Só uma condição que resguarde a possibilidade de desenvolvimento e fruição da plenitude de suas possibilidades será para o filósofo de Grenoble uma definição suficiente de dignidade humana Observase este posicionamento de maneira bem clara quando de suas afirmações9 a respeito da necessidade de se repensar por exemplo a Declaração Universal dos Direitos Humanos10 Mounier irá se aproximar de uma visão ônticovalorativa do direito e sua ética se adéqua no modelo de ética teleológica o que o leva a considerar os Direitos Humanos como legítimos porque assentados na dignidade da pessoa humana E até aqui a posição de Mounier não difere da proposta das primeiras Declarações pois como vimos a anterioridade da ética e da moral em relação ao direito e também a referência a dignidade humana são aspectos também acolhidos pelos elaboradores das primeiras Declarações dos Direitos Destacar estes pontos em comum é importante para entendermos que Mounier não rejeita as declarações É importante destacar 8 Destacamos aqui o texto Discurso sobre a Dignidade Humana 1486 de Giovanni Pico Della Mirandola que embora imbuído de maneira inevitável do espírito de época na qual foram escritos e esse espírito engendre o individualismo inimigo da pessoa para o Personalismo ressalta o caráter inacabado e indefinitivo da condição humana ideias caras ao conceito de pessoa proposto por Mounier 9 O entendimento de Emmanuel Mounier sobre a Declaração Universal dos Direitos humanos foi expresso em texto de sua coautoria preparado em conjunto com outros membros da Esprit e publicado na mesma revista a Declaração dos direitos das pessoas e das comunidades textos encontrados em A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História dissertação de Mestrado de Daniel da Costa 2009 10 A respeito da questão de Mounier e os Direitos Humanos esclarecese que o autor admite que representam grande avanço Porém não deixa de tecer severa crítica às influências do individualismo nas Declarações Para mais informações sobre o tema vide A Emergência e a Insurgência da Pessoa Humana na História de Daniel da Costa 2009 39 que por trás do surgimento das Declarações dos Direitos está todo um movimento ascendente embora não completamente retilíneo de reconhecimento da dignidade da pessoa humana como um valor fundamental Sem dúvida que o surgimento de uma declaração conjunta que afirme esta dignidade e a cumule de direitos é um momento ímpar da afirmação deste valor como irrenunciável principalmente com a positivação destes mesmos direitos nas legislações constitucionais Mounier não vai negar isto mas alertar para elementos complicadores que marcaram a gênese das Declarações Para ele apesar delas marcarem uma intuição profundamente feliz a dignidade da pessoa humana como um valor irrenunciável elas são comprometidas com outros valores ou ideologias que as fragilizam e dificultam a sua efetivação leiase aqui especialmente o individualismo ROCHA 2011 p 79 Depurar as bases da dignidade humana dos laivos do individualismo tal sofisticação proposta por Mounier no arranjo das características próprias do ser humano que resultarão na sua ideia de dignidade humana representa uma retomada da ideia interrompida pela noção neoliberalista de indivíduo presente no conceito de pessoa que ressurge como uma possibilidade como promessa mais profícua que a sua alternativa infelizmente erigida como base da sociedade o indivíduo 31 Pessoa e indivíduo A segunda consequência da constatação do telos de personalização do ser humano é a necessidade de se admitir que existam tipos ideias diferentes de humano ao longo da História e que todas elas são ao mesmo tempo fruto e condição de realização do humano em cada tempo Mas o ser humano não está pronto E tal ideia ou projeto é dinâmico ou deveria ser nunca estático ou definitivo pois o ser humano também não é assim A ideia de ser humano que se tem numa época traça caminhos e finalidades para ele mesmo Portanto contribui ainda que não determine completamente para o devir desse habitante do universo Seguindo esta linha de raciocínio cabe perguntar então sob qual ideia sob qual projeto de ser humano os homens e mulheres no século XXI têm vivenciado sua breve existência E também se esse projeto é o que melhor lhes assegura possibilidade de plenitude em todos os âmbitos de sua vida Segundo Mounier não resta dúvida de que o projeto elegido o tipo de ser humano que existe agora a ideia vigente é a do indivíduo como a entendemos hoje que tem suas raízes na Renascença 40 A trajetória do conceito de dignidade humana da qual se fez menção no tópico anterior propositadamente deixado com aparência de inacabado para ser encerrado agora com esta conclusão passa por esse momento ou melhor dizendo é fruto da ideia de ser humano iluminada esclarecida E tal lembrança se faz necessária A concepção burguesa de tipo individualista tem sua origem na Renascença Nela residia um prurido de exigências da pessoa Mas logo desnorteouse para uma concepção do indivíduo tão estreita que trazia em si mesma desde o ponto de partida seu princípio de decadência MOUNIER 1967 p 17 Através do que parece ser uma escavação em busca da gênese do indivíduo o filósofo personalista identifica esse momento com a ascensão do que ele irá chamar de espírito burguês Ao dizer isto não se pode esquecer que Mounier se dedica à luta contra o espírito burguês e não contra a burguesia simplesmente como nos lembra Candide Moix comentando esta posição do filósofo O espírito burguês é o coração deste mal diz Mounier espírito feito de avareza indiferença para com outrem reivindicação O individualismo é dele a raiz este isolamento teimoso e egoísta O espírito burguês encontrase em todos os meios Nascido de uma classe acabou atingindo mais ou menos profundamente todas as camadas da sociedade Ele criou um tipo de humanidade o burguês A propósito Mounier escreveu hoje dizia Peguy há já trinta anos todo o mundo é burguês Do homem de dinheiro a lepra alcançou o comerciante o operário o artesão o homem do interior a família tradicional o novo rico Em todas as classes ele deixou áreas de saúde mas em todas as classes fez seus estragos A burguesia como os outros comporta zonas intactas Mas foi a burguesia no final das contas que começou MOIX 1968 p73 Podese seguir os passos de Moix ainda uma vez para através de uma longa mas necessária citação continuar com sucesso o empreendimento de compreender a identificação proposta por Mounier do espírito burguês com o indivíduo individualismo É portanto à história desta decadência que se ateve Mounier para remontar às origens do espírito burguês Mal conquistara suas franquias no século XII a burguesia liberase das servidões materiais pelas suas conquistas do comércio e da indústria Mas já busca sua segurança nas carreiras de funcionários e de magistrados do rei Do século XIV ao século XVI cria a venalidade depois a hereditariedade 41 dos cargos asseguram os postos de refúgio ele usa largos punhos bordados e talha suas penas de escrever adquire um espírito de tabelião e não pensa noutra coisa senão em se distinguir daqueles que trabalham com ferramentas A partir do século XVII ele proclama o primado do dinheiro sobre o trabalho A burguesia continua sendo ainda religiosa ainda tem filhos Mas os deixará cair O século XVIII assiste ao desmoronamento da religião A Revolução de 1789 é uma revolução burguesa A Declaração dos Direitos consagra o individualismo Vem a Restauração A união entre a burguesia e a Igreja é apenas aparente Eis que surgem as primeiras perturbações populares Abalase todo o belo edifício Até então voltairiana a burguesia perde a cabeça Esquecera o Deus arquiteto nas delícias da construção Volta ao Deus intendente para manter a ordem dos escalões sociais sugerindo aos mais inquietos a moderação e a resignação O burguês teve medo volta a ir à missa Muito mais para conservar seus privilégios e não atrair sobre si a cólera do povo a burguesia difunde na massa sua mística do conforto Desde 1848 a decadência só vem acentuandose A época individualista conheceu de início um período heróico Criou tipos viris e notáveis que fizeram romper os limites do homem O capitalismo deu aos burgueses grandes possibilidades de aventuras e de conquistas abrindo lhes todos os continentes Mas a riqueza amorteceu as coragens abriuse a era das facilidades Os valores do conforto substituem os valores de criação o ideal individualista perdeu sua coroa E abriu o caminho nas classes dirigentes inicialmente depois por descidas sucessivas até às classes populares a este espírito que nós chamamos burguês por causa de suas origens O individualismo é uma decadência do indivíduo porque em primeiro lugar ele o aviltou depois o isolou O ideal pessoal abateuse pela dissociação do espiritual e do material A deslocação da comunidade é a consequência do isolamento do indivíduo O burguês é aquele que se separa que faz sua salvação sozinho Para ele é o sucesso individual que conta quando uma comunidade só existe pelo dom recíproco dos seus membros Neste clima de arrivismo o homem é um nada para o homem a reivindicação a avareza a indiferença para com o outro a ferocidade sorridente ocupam o lugar das virtudes O individualismo é o reino do egoísmo social As sociedades de tipo burguês não passam de indivíduos ampliados Este espírito burguês Mounier o denunciou como o inimigo temível do espírito comunitário Resta caracterizar este novo tipo de humanidade tão difundido O burguês é antes de tudo o homem que perdeu o senso do Ser Fez para si um mundo à sua medida sem mistério porque só participa de si mesmo MOIX 1968 p7376 A citação desta arqueologia do individualismo realizada com esmero por Moix que costura fragmentos e afirmações de Mounier ao longo de vários escritos cartas e publicações 42 da revista Esprit11 abre um campo de visão amplo o bastante para compreender a oposição radical do personalismo à mediocridade e estaticidade do indivíduo moderno e contemporâneo Ainda assim é preciso situar o individualismo com maior amplitude Não se trata somente de uma moral É a metafísica da solidão integral a única que nos resta quando já se perdeu a verdade o mundo e a comunidade dos homens MOUNIER 1975 p 42 O individualismo que coloca o indivíduo com suas garantias e reivindicações com seu egoísmo e solipsismo sua preocupação com o bem estar somente de si mesmo no lugar da pessoa retira da ideia de ser humano atual a liberdade criativa e a responsabilidade a conexão com o universo e com os outros homens retira até mesmo sua particularidade lançandoo ao absurdo preparando um mundo de autômatos padronizados e o paralisa numa espécie de embotamento conformado como se já não pudesse ser de outra maneira como se não pudesse mais se superar O individualismo tem posto no lugar da pessoa uma abstração jurídica sem vinculações sem tecido sem entorno sem poesia negociável entregue às primeiras forças que chegam O capitalismo tem chegado a esse nãoser com sua medida monótona o dinheiro seus sentimentos já prontos sua imprensa já pronta sua educação já pronta seu jurismo de quartel e por trás da máscara dos velhos ideais tem levado a desordem até a pior tirania a tirania anônima que solda um magma de almas sem cor e sem resistência MOUNIER 1975 p 68 Vêse bem que Mounier identifica como um mal de proporções intangíveis o fato de ter o ser humano erigido todo um sistema toda uma ética toda uma economia enfim toda uma maneira de existir que tem por base o indivíduo ou melhor o individualismo Mas a pessoa não é o individuo e não será possível um mundo de pessoas sem que se ouse modificar esta base colocando em seu lugar outra maneira de existir Minha pessoa não é meu indivíduo Chamamos de indivíduo a difusão da pessoa na superfície de sua vida e a complacência que demonstra em perder se nela Meu indivíduo é essa imagem imprecisa e mutável que oferecem por sobreimpressão os diferentes personagens entre os quais eu flutuo entre os quais me distraio e me diluo Meu indivíduo é o gozo avarento desta dispersão o amor incestuoso de minhas singularidades de todo esse desenvolvimento precioso que não interessa a ninguém além de mim mesmo É também o pânico que me acomete ao mero pensamento de desligarme 11 Para mais informações a respeito dos fragmentos reunidos por Moix consultar as notas ao fim do capitulo O Espírito Burguês na obra referenciada ao fim da citação precedente 43 dele a fortaleza de segurança e de egoísmo que se constrói ao redor para garantir sua segurança e defendêlo contra as surpresas do amor É enfim a agressividade caprichosa ou altaneira com a qual tenho revestido a reivindicação erigida de modo essencial da consciência de si e a consagração ao mesmo jurídica e metafísica que se lha tem conferido no Ocidente a Declaração dos Direitos Humanos e o Código Napoleão MOUNIER 1975 p 65 Assim após se terem contornado alguns obstáculos e procedido ao enfrentamento de algumas questões que se mostraram obrigatórias como a arqueologia da pessoa realizada através de um recurso a dados etimológicos e históricos a diferença teórica entre ser humano e pessoa a trajetória do conceito de dignidade humana em sua ligação íntima e interdependência com a ideia de ser humano presente em cada período histórico mencionado naquilo que este conceito traz de contribuição para pensar a pessoa e o entendimento preciso da oposição indivíduopessoa chegase ao ponto central desta reflexão a análise do movimento de personalização necessário ao ser humano para que este atinja aquilo que Emmanuel Mounier chamará de volume total do homem um equilíbrio em longitude largura e profundidade MOUNIER 1975 p 67 em outras palavras a pessoa 32 Personalização etapas e caminhos Em sua obra O Personalismo Mounier inicia suas reflexões descrevendo as estruturas do universo pessoal A maioria dos filósofos personalistas que vieram depois de Mounier e igualmente seus principais comentadores descrevem o processo de personalização a partir da análise do que eles chamam de três dimensões da pessoa já que propõem que reconhecemos o ser da pessoa pelas marcas que ela deixa por onde passa e as principais marcas são a encarnação a comunicação e a vocação ROCHA 2011 p44 Esta atitude porém parece mais acertada no caso de uma procura pela pessoa propriamente como objeto de pesquisa No caso desta reflexão o objeto de pesquisa é outro o processo de personalização propriamente dito Por esta razão seguirseá o caminho do filósofo de Grenoble mesmo ou seja a via da análise das estruturas do universo pessoal percorrendo essas mesmas estruturas porém não mais descritivamente como ele realizou mas como um caminho ou roteiro para a personalização ou como um mapa no qual cada estrutura representará uma atitude necessária ao ser humano para vir a descobrir ou realizar a pessoa e no qual isoladamente nenhuma delas realiza por si só o processo A relação dessas estruturas entre si permanece encerrada na 44 compreensão de Mounier que parece seguir a lógica da análise das diversas possibilidades de manifestação do humano no mundo ou pelo menos das principais segundo sua visão de sua relação com esse mesmo mundo e entre seus coexistentes na subjetividade na sociabilidade e intersubjetivamente e nas atitudes que o autor considera importantes para o processo de devir da pessoa Abaixo se apresentará então uma exposição reflexiva de cada uma dessas estruturas e assim esperase ter por conclusão uma ideia mais clara do movimento de personalização 321 A Existência Incorporada À primeira dessas estruturas Mounier dá o nome de Existência Incorporada Nela ele apresentará a pessoa como um ser encarnado pertencente ao mundo ao chão da vida trazendo consigo porém além desta materialidade a capacidade para transcendêla A pessoa está mergulhada na natureza o ser humano é corpo exatamente como é espírito é integralmente corpo e é integralmente espírito Dos seus mais primários instintos comer reproduzirse é capaz de passar a artes sutis a culinária a arte de amar MOUNIER 1974 p3940 Com esta proposição o filósofo intenciona esclarecer a posição do personalismo face ao que ele chama de pernicioso dualismo MOUNIER 1974 p 41 herança dos gregos12 e não do cristianismo como ele faz questão de ressaltar Ele chama a matéria de impersonalidade dispersão indiferença que tende para o nivelamento degradação de energia identidade ou repetição MOUNIER 1974 p45 e lhe atribui uma permanente tendência para a despersonalização Ibid por causa dessas características Todavia ao mesmo tempo em que faz essas observações observa também que somente apoiado nessa mesma matéria entendida como constitutivo do humano pode este ser chegar ao universo pessoal Até nas formas mais elementares da minha existência me afirmo como pessoa e nunca sendo fator de despersonalização muito pelo contrário a minha existência incarnada é fator essencial da minha situação pessoal O meu corpo não é um objeto entre muitos outros não é sequer o meu objeto mais próximo como sendo assim se poderia unir à minha experiência de 12 Entendase especificamente herança platônica 45 sujeito Efetivamente as duas experiências não são separáveis existir subjetivamente existir corporalmente são uma única e mesma experiência A sua servidão pesanos mas ao mesmo tempo é base para qualquer consciência e para toda a vida do espírito MOUNIER 1974 p 51 A questão é que o ser humano transcende a natureza E o personalismo não negocia a presença do caráter de transcendência em sua ideia de ser humano Mas de que maneira se dá essa transcendência e como compreendêla estando atrelados ao materialismo que se nos empurra goela abaixo desde a concepção materialista do ser humano na qual está morta toda possibilidade do espiritual A dificuldade está em colocarmos corretamente esta noção de transcendência O nosso espírito resiste à representação duma realidade que esteja inteiramente inserida numa outra na sua existência concreta e que no entanto lhe seja superior em nível de existência Não se pode morar ao mesmo tempo no résdochão e no sexto andar dizia Léon Brunschvig o que apenas consegue ridicularizar numa imagem espacial uma experiência que o espaço não pode transcrever MOUNIER 1974 p 42 Ainda falando dessa transcendência da natureza é preciso evocar o entendimento de natureza que Mounier aplica a este momento de suas reflexões Examinemos pois a natureza Abandonemos o mito materialista da Natureza Pessoa impessoal de ilimitados poderes Abandonemos o mito romântico da Mãe afável sagrada imutável de que não nos podemos afastar sob pena de sacrilégio ou de catástrofe tanto um como o outro submetem o ser humano pessoal e ativo a um fictício impessoal Na realidade a natureza nada mais nos dá nada mais entrega ao nosso conhecimento racional do que um feixe infinitamente complicado de determinações das quais não chegamos mesmo a saber se para além dos sistemas que formulamos para assegurar a nossa marcha serão redutíveis a uma unidade lógica MOUNIER 1974 p 43 Tudo na natureza influencia diretamente ou indiretamente a pessoa Esse feixe infinitamente complicado de determinações nada mais é que o conjunto formado por condições biológicas geográficas culturais sociais econômicas políticas Mas nada disso encerra o ser humano em uma condição estática e imutável Como já foi dito no primeiro capítulo desta reflexão Mounier ousa inclusive argumentar a favor do caráter de transcendência da pessoa citando o próprio expoente materialista Marx 46 O homem é um ser natural mas é um ser natural humano E exatamente o homem singularizase por uma dupla capacidade de romper com a natureza Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar ele o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais E o que é infinitamente mais é capaz de amar MOUNIER 1974 p 43 Tudo o que foi dito a respeito da natureza e do ser humano nela surgindo ele na mesma e transcendendoa ficaria incompleto se não se fizesse mencionar a posição do personalismo no que se refere à relação ser humanonatureza Para Mounier tais relações não são pois relações de pura exteriorização mas relações dialéticas de permuta e ascensão O ser humano pesa sobre a natureza como o avião sobre o peso para do peso se arrancar MOUNIER 1974 p 54 É o que ele irá chamar de personalização da natureza E aqui cabe perfeitamente uma analogia com a categoria marxista de trabalho que já foi mencionada anteriormente mas como já se percebe não se trata de dominar a natureza de extrair dela todo o seu potencial e transformála em produtos que não visando o fim da instauração de um mundo de pessoas não têm valor a não ser alienante Todavia não se deve esquecer que a natureza resiste ao movimento de personalização já o ser humano resiste a ser pessoa A matéria é rebelde e não somente passiva ofensiva e não somente inerte MOUNIER 1974 p57 Assim não se deve concluir que apenas pela presença do ser humano a natureza se vá humanizar não se deve concluir igualmente que apenas pela presença da pessoa a natureza irá se personalizar já que a relação entre elas é dialética de permuta e ascensão como citado há pouco 322 A Comunicação No segundo capítulo de sua exposição das chamadas estruturas do universo pessoal o filósofo de Grenoble traz o seu pensamento a respeito da comunicação Nele irá expor sobretudo que a comunicação é talvez o que mais proporciona ao ser humano a experiência da pessoa ou o primeiro ato deste processo Como configura vasto material achouse por bem subdividilo em alguns subtópicos O Ímpeto da comunhão Passos ou etapas da comunicação Obstáculos à comunicação 47 a O Ímpeto da comunhão Comum comunidade comunicação A coincidência de raiz destas palavras salta aos olhos de qualquer leitor sem que para isso haja necessidade de uma análise morfológica O que não se mostra assim tão evidente é a solução do problema clássico que aborda a sociabilidade do ser humano ora como dado natural ora como fatalidade necessária à fuga do caos de um estado natural bélico e individualista Entendese individualismo como um sistema de costumes de sentimentos de ideias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e de defesa MOUNIER 1974 p62 Desde a Antiguidade já se admite que uma das bases sobre as quais se ergue a maioria dos estudos políticos e éticos senão todos por concordância ou discordância seja a afirmação de que o ser humano é um animal político O zoon politikon aristotélico é usado para descrever a natureza do ser humano ou algo dela e Emmanuel Mounier tratará desta característica humana a partir do conceito de pessoa que traz em si a admissão da necessidade natural de coexistência e a capacidade para a comunicação O Personalismo assim como outras filosofias acredita e defende que o ser humano seja por natureza um ser social e mesmo se apóia na afirmação de que os homens não são homens fora do ambiente social LORENZON 1996 p18 e ainda de que a pessoa traz em sua estrutura ontológica uma tendência inata para os outros Ibid para inferir que a Comunicação ou o contato com o outro é além de condição para a vida social para a epistemologia e a cultura dentre tantos traços da antropologicidade condição também para a formação da própria identidade do processo de personalização individual e comunitária Assim é que a criança se descobre até certo ponto no espelho dos outros isto quer dizer que a criança conhece primeiramente os outros e depois a si mesma Em outras palavras a projeção no plano psicológico é anterior à subjetividade e à objetividade LORENZON 1996 p 2425 Essa tendência inata para os outro essa necessidade de se dar a compreender e de compreender o outro tanto quanto for possível é o que se chama aqui de Ímpeto da Comunhão termo utilizado por Emmanuel Mounier em suas reflexões sobre a Comunicação e que se traduz em uma necessidade fundamental de dar a conhecer ao outro e à comunidade humana algo de seu próprio universo pessoal salvaguardadas as possibilidades de se fazêlo 48 linguagem e seus limites na expressão ou expressão e seus limites na Comunhão sob pena de não existir caracterizando este ímpeto como algo necessário ao fenômeno da percepção da existência de uma pessoa por uma comunidade de pessoas Desta forma não seria exagero afirmar que a pessoa é fenômeno ou afirmar a pessoa como fenômeno O ser humano não é um ser solitário mas coexiste com outros tem um caráter político e deverá atingir a plenitude do mesmo para fazerse pleno Mounier afirma que a experiência primitiva da pessoa é a experiência da segunda pessoa O tu e adentro dele o nós precede o eu ou pelo menos acompanhao MOUNIER 1974 p6364 e mais a pessoa no mesmo movimento que a faz ser expôese Por isso é por natureza comunicável e até mesmo só ela o é Ibid Há uma passagem no Tratado do Caráter obra de grande importância do referido autor que elucida bem essa relação de coexistência eunomeio dosoutros eu em relação aos outros e os outros em relação a mim MOUNIER 1946 p469 Quando se afirma que o telos da Linguagem é a Comunicação e que o ímpeto de comunhão é o que desinstala o ser humano de si mesmo e lhe confere a existência por meio de um movimento de exposição surge a necessidade de perguntar pelo que exatamente seria exposto nesse movimento A existência pessoal no caso pelo menos num primeiro momento parece prescindir de expressão e isto leva a perguntar se também prescindiria de linguagem Esse silêncio ou a experiência vivenciada nele não se caracteriza só pela ausência da expressão ou pela sua impossibilidade mas também pela não necessidade de expressão que acontece somente na experiência fundamental e primeira do ser Assim como são necessárias as primeiras expressões este momento existencial do qual pouco se consegue expressar também é necessário e só pode ser vivido na atitude do segredo len soi do recolhimento tão cara ao Personalismo Chamálo de qualquer outra coisa sujeito consciência que não de fenômeno da pessoa seria reducionismo Aludese aqui obviamente à experiência fundamental de ser de existir vivenciada no núcleo pessoal mais íntimo e que parece anterior a qualquer tipo de expressão ou de necessidade de expressão mas nunca de Comunicação e jamais suficientemente distante da percepção de si mesmo que se opera na reflexão e para o Personalismo indissociável da presença do outro como cocriador do eu Após aquela cada nova experiência possível aconteceria primeiro nesse nível existencial para depois ser como que traduzida pela expressão e pela linguagem na comunidade humana Assim desde já 49 assumese que a Comunicação só pode se realizar por meio da Linguagem entendida de maneira ampla evidentemente Não se pode dizer porém que fala e silêncio e portanto também a Linguagem de maneira ampla sejam prescindíveis no tocante à necessidade vital de expressão experimentada como efeito das carências básicas Se expressar parece estar no âmbito da necessidade do inevitável ao menos nos primeiros momentos da vida humana já que é sempre em decorrência das tais necessidades primeiras como a fome por exemplo que se dão as expressões iniciais da pessoa as mais primitivas como o balbuciar e outros sons que ainda nem são palavras mas carregam já um sentido mínimo uma intenção evidenciando a amplitude da Linguagem ou em outras palavras conforme o pensamento de Mounier representam um momento de uma apropriaçãodesenvolvimento do ímpeto de comunhão que além de angariar os recursos para a sobrevivência parece ser condição sine qua non do acontecimento pessoal na comunidade humana a única maneira de fazer notar a outrem aquela presença e ainda em ultima instância condição de existência que pode inclusive lhe ser negada Todavia isto que começa como imperativo instintivo de sobrevivência atinge altos graus de sofisticação ao longo do processo de personalização Para que se possa certificar disso basta perguntar a partir de quando cronologicamente e em cada situação a expressão passa a ser uma opção da qual se pode inclusive abrir mão Faz parte do ato de se personalizar o livre uso da expressão ou melhor dizendo o uso deliberado da mesma escolhendo assim o quê de mim enquanto pessoa específica e irrepetível se oferecerá à comunidade ou ao outro Assim a existência de outro universo pessoal distinto do meu bem como o acesso a esse universo e o acesso ao meu universo pessoal por outrem parecem depender exatamente dessa oferta pessoal que por sua vez implica disposição disponibilidade e até sacrifício das partes envolvidas Nesta capacidade de doação parece residir um antídoto poderoso para as limitações da Linguagem e para o desespero da Comunicação se não em todas as relações humanas possíveis consigo com o mundo ao menos no tocante às relações interpessoais Vale lembrar que existem sérias investigações Filosofia da Linguagem sobre a im possibilidade de expressão por meio da Linguagem e que esses problemas permanecem mesmo dentro de uma acepção mais ampla do termo como a que se assumiu aqui desde o 50 início permanecem mesmo diante da constatação do ímpeto de comunhão A tentativa frustrada de expressar de maneira completa cada fenômeno experimentado principalmente aquele a que se chamou de experiência fundamental deixa entrever que existe em cada experiência algo de incomunicável em sua totalidade pela expressão Isto não tem nada de novo à medida em que denuncia os limites da linguagemexpressão que é tradução mas coloca em evidência o caráter pessoal intransferível e impossível de ser traduzido da experiência de ser de ser pessoa Isso porém não torna menos possível a Comunicação e não a torna menos necessária b Passos ou etapas da Comunicação Quanto à necessidade da Comunicação para o movimento de personalização e para o funcionamento minimamente profícuo da vida em sociedadecomunidade não há muito que acrescentar levando em conta os argumentos acima apresentados o natural caráter político da condição humana e a coconstrução do eu pela presença e coexistência do outro salvaguardando claro a experiência fundamental dedo ser que parece acontecer antes da primeira necessidade de expressão do ser humano que se há de fazer pessoa O segundo argumento porém que traz a constatação da necessidade e do papel da presença do outro no processo de personalização do eu ganha destaque sobre o primeiro já bastante aceito como axioma nos estudos políticos e não obstante o enfoque desta reflexão seja fenomenológico e talvez por isso mesmo se faz necessário retomálo como pedra de toque os Outros não são nem o Inferno JPSartre nem o Paraíso eles são cocriadores do eu PERROUX 1970 p 31 Feito isso será salutar percorrer o caminho galgado por Mounier na tentativa de pensar o processo de Comunicação telos da Linguagem O primeiro passo que o filósofo francês irá colocar em evidência é a saída de si próprio em direção ao outro Mounier coloca essa saída no rol dos atos humanos que só podem ser explicados pela capacidade de amar capacidade esta que para ele é o verdadeiro distintivo da condição humana em antítese profunda à afirmação da racionalidade como característica distintiva de tal condição O ato de amor é a mais forte certeza do homem o cogito existencial irrefutável amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida MOUNIER 1974 p68 51 Não é difícil intuir o porquê desta alocação sair para fora de si exige uma força de vontade férrea principalmente quando não se precisa do outro e quando se escolhe realizar essa viagem ao outro mesmo sem uma necessidade imediata ou ainda quando se escolhe acolher o peregrino que vem se doar a mim para angariar existência Tal gesto está no âmbito da doação e a economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo MOUNIER 1974 p66 As idas e vindas aos universos pessoais são uma verdadeira dialética e esta dialética das relações pessoais aumenta e confirma o ser de cada um de nós Ibid O segundo ato do processo de Comunicação seria compreender A compreensão vai além da simpatia pois exige que não raras vezes se a exerça a signatários com os quais não se tem nenhuma afinidade já que no desafio da coexistência eu não posso escolher sempre com quem haverei de me relacionar Compreender é acolher é ser um pouco o outro Ser todo para todos sem deixar de ser eu porquanto há uma maneira de tudo compreender que corresponde a nada amar e a nada ser A simpatia é ainda afinidade da natureza o amor é uma nova forma de ser O amor é cego mas duma cegueira extralúcida MOUNIER 1974 p 6668 Como terceiro passo Mounier elenca a empatia o tomar sobre nós a compaixão O exercício dessa compaixão e dessa empatia levará a pessoa ao quarto passo que seria para o filósofo a generosidade o dar o ato gratuito Numa sociedade baseada em princípios individualistas esses passos ou etapas da Comunicação destoam da atitude comum da maioria das pessoas assumida à revelia já que nem mesmo se colocam sob juízo em seus atos tamanha a certeza do direito à prioridade individual em todos os âmbitos da vida inculcada no coração humano desde a opção da sociedade por este modelo seja lá em que tempo possa ter se consolidado tal processo e sob sejam lá quais formas isso tenha se consolidado em detrimento de um modelo baseado no conceito de pessoa Essa dissonância que faz bailar os homens numa dança frenética por uma realização individual a despeito da cura também pelas realizações dos que os cercam só faz minar as polifonias de possibilidades de maior felicidade comum já que retira do ser humano a atenção àquilo que o realiza a doação o amor Mas que vantagens podemse fruir do amor dessa doação gratuita num mundo de universos pessoais preocupados em sua grande maioria tão somente com o próprio umbigo 52 Como já foi dito a economia da pessoa funciona de maneira bem diversa da economia do indivíduo e a generosidade pessoal é uma generosidade criadora ela cria como consequência nas relações interpessoais aquilo mesmo que se propõe a oferecer Assim também acontece com o quinto passo elencado por Emmanuel Mounier a fidelidade Ser fiel é assumir o compromisso é assentir e também é negar afrontar e a fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora MOUNIER 1974 p 67 Fidelidade a si mesmo ao processo de personalização que é intransferível ao universo pessoal do outro que recebo Fidelidade ao ímpeto de comunhão Fidelidade que mesmo diante das dificuldades e limites confessados da Linguagem e expressão e da Comunicação leva a condição humana a enfrentar o processo dessa dialética das relações pessoais na certeza ou na aposta de que a relação interpessoal positiva seja uma provocação recíproca uma mútua fecundação MOUNIER 1974 p 69 c Obstáculos à Comunicação O ímpeto de comunhão foi apresentado como o elemento constitutivo humano que faz a pessoa se desinstalar de si mesma em direção a outrem Como foi dito este é precisamente o movimento que confere existência a uma pessoa para uma comunidade de pessoas e a despeito da solidão irredutível da experiência fundamental primeira dedo ser é também responsável pela cocriação do eu Todavia quando o assunto em questão são os obstáculos à Comunicação esse mesmo ímpeto de comunhão aparece como que desafiado em cheque mate já que a primeira dificuldade que o Personalismo enfrenta ao pensar tais obstáculos é justamente a incerteza dessa comunhão Problema clássico para a Filosofia permanece com poucas respostas o florilégio de ervas de urubu representado por questões indigestas como os limites da Linguagem o problema da verdade e da subjetividade e a incerteza da comunhão que traduz a dúvida sobre o entendimento que o outro terá de mim ao entrar no meu universo pessoal dúvida de que partilham todas as partes das relações interpessoais Há sempre algo nos outros que foge ao mais total esforço de comunicação No mais íntimo dos diálogos a coincidência perfeita não nos é dada nada me pode dar a certeza de que não haja qualquer coisa de malentendido nada a não ser em raros momentos em que a certeza da comunhão é mais forte do 53 que todas as análises e que servem de viático para a vida inteira Tal é a profunda solidão do amor quanto mais perfeito este mais aquela é sentida Por isso e de fato no universo em que vivemos a pessoa está a maior parte das vezes mais exposta do que rodeada mais abandonada do que comunicada É a avidez da presença mas o mundo inteiro de pessoas está maciçamente ausente A comunicação é mais rara do que a felicidade mais frágil do que a beleza Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas como podemos pois esperála entre um grande número MOUNIER 1974 p 70 Parece existir no ser humano uma espécie de má vontade fundamental já que há sempre algo em nós que resiste essencialmente a todo o esforço de reciprocidade MOUNIER 1974 p 69 este seria o segundo obstáculo à Comunicação Mas a pessoa não se realiza senão transpondo esta má vontade e só pode fazer isso através do ato de amor quando pensamos na pessoa somos influenciados pela imagem duma silhueta Pela experiência interior a pessoa surgenos como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas sem limites misturada com elas numa perspectiva de universalidade As outras pessoas não a limitam fazemna crescer Não existe senão para os outros não se conhece senão pelos outros não se encontra senão nos outros MOUNIER 1974 p63 Para o personalismo ser é amar A alienação ou absurdidade se tornar estranho a si mesmo perdido de si é como todas as loucuras uma falha nas relações com os outros Quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe percome profundamente eu próprio todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros o alter tornase alienus tornome também estranho a mim próprio alienado Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar A solidão que tantos escritos apresentam como dado da condição humana é na maior parte dos casos obra nossa fazemonos sós MOUNIER 1974 p64 Mas e quando eu opto por não estar disponível Não seria também este movimento de recolhimento necessário e tão personalizador quanto o de se oferecer e se doar gratuitamente Parece que tal movimento feito de maneira livre e sob justa medida seja tão necessário quanto o de estar disponível já que é nele que a pessoa pode fomentar a vida pessoal que começa com a capacidade de romper contatos com o meio de ripostar de recuperar para através duma unificação tentada se constituir uma só MOUNIER 1974 p82 54 Ainda como obstáculos à Comunicação Mounier apresenta a opacidade irredutível da existência uma indiscrição que seria barreira à livre comunicação que pode ser entendida sob o significado habitual da palavra indiscrição tanto quanto sob o significado de uma incapacidade de descrever que se prefere aqui além daquilo que ele irá chamar de egocentrismo nas reuniões de reciprocidade família pátria corpo religioso etc egocentrismo que cedo irá levantar barreiras entre o homem e o homem MOUNIER 1974 p 70 e que será portanto causador da violência obstáculo também possível nas relações interpessoais Mounier parece pensar as relações interpessoais como fenômenos ocorridos em associações de tamanho e alcance progressivo surgidas a partir das necessidades das pessoas primeiramente chegando a serem possíveis tais associações acontecerem também por escolha deliberada e depois parece pensar a humanidade como uma rede de associações menores e as relações entre elas sempre resistindo a uma massificação global que despersonaliza tais associações que pelo tamanho do seu alcance sempre preferencialmente pequeno oferecem mais condições para a personalização E aponta alguns limites nessas associações A estrutura social empobrece evidentemente a relação pessoal porquanto só pode assegurar a continuidade na repetição Uma família angélica seria talvez um ininterrupto brotar de atos de amor uma economia angélica uma contínua troca de dádivas Mas uma família humana é também um vínculo psicológico e jurídico uma economia humana um feixe de regulamentos e necessidades Este parcial impersonalismo das estruturas é uma ameaça Está para o ímpeto da comunhão como o corpo individual para o ímpeto de personalização resistência e apoio necessário Desprezálo por causa da sua ambivalência é querer iludir a condição humana O personalismo recusase pois a afetar com um coeficiente pejorativo a existência social ou as estruturas coletivas Apenas distinguirá uma hierarquia de coletividades segundo o seu maior ou menor potencial comunitário ou seja a sua mais ou menos forte personalização MOUNIER 1974 p73 Enfim tudo que se torna na pessoa comunicável em certa medida se torna impessoal o pensamento só existe e irradia quando enraizado na pessoa Se no entanto o pensamento não se tornar comunicável e portanto em certa medida impessoal já não será pensamento mas delírio MOUNIER 1974 p 75 Todavia parece que nem tudo que é incomunicável daquilo que a pessoa tem a capacidade de experimentar pode ser chamado de delírio pelo simples fato de ser incomunicável basta recorrer à experiência fundamental dedo ser por exemplo Mas tudo que é comunicável só se torna assim por meio da tradução 55 expressão Linguagem o que conduz à admissão de que o telos da linguagem seja a Comunicação que por sua vez é parte importante do movimento de personalização 323 A Conversão Íntima Após esta exposição sobre o papel da Comunicação no movimento de personalização Mounier irá apresentar a próxima Estrutura ou o próximo elemento essencial do Universo Pessoal a Conversão íntima Se até aqui o grande tema fora a saída de si em direção à natureza e a outrem o que podemos chamar de transcendência horizontal e a possibilidade de uma transcendência vertical ou espiritualidade no sentido religioso mesmo admitida embora não tão mencionada como a primeira de agora em diante o tema será o movimento inverso a interioridade a vida interior subjetividade que como veremos não é oposta ao movimento de comunicação mas pulsação complementar MOUNIER 1960 p81 Neste momento Mounier irá falar sobre algumas necessidades nada materiais do ser humano mas nem por isso menos reais o recolhimento o segredo a intimidade o privado o movimento de desapropriação e a dialética da interioridadeobjetividade Conversão íntima significa convergir forças reunir forças tomar consciência dessas forças Essa tomada de consciência essa reunião e convergência de forças é algo que acontece no interior através de um retorno a si sempre necessário como ato que prepara uma melhor saída de si num segundo momento Portanto nada tem a ver com solipsismo ou com fantasias introspectivas É aqui que se abre espaço para falar de retiro e de silencio de reserva e de segredo valores esquecidos na sociedade de hoje e que fazem falta ao ser humano contemporâneo que se perde no movimento de dispersão nas coisas exteriores que o solicitam sempre cada vez mais O homem pode viver como uma coisa uma tal vida apresentará sempre o aspecto duma demissão seja o divertissement de Pascal o estádio estético de Kierkegaard a vida inautêntica de Heidegger a alienação de Marx ou a má fé de Sartre O ser humano do divertimento vive como que expulso de si próprio confundido com o tumulto exterior assim o homem prisioneiro de seus apetites funções hábitos relações dum mundo que o distrai Vida imediata sem memória sem projetos sem domínio e que é a própria definição de exterioridade ou à escala humana de vulgaridade A vida pessoal começa com a capacidade de romper contatos com o meio de 56 ripostar de recuperar para através duma unificação tentada se constituir uma só MOUNIER 1974 p 82 Quando fala dessa vida interior tão necessária ao ser humano para se descobrir para se projetar para se construir como pessoa Mounier de maneira alguma deseja propor fugas do mundo objetivo ou romantizar essa necessidade colocandoa como mais importante que a vida exterior É preciso simplesmente que desmitifiquemos o privado impedindo que este seja elevado à posição de defesa contra a vida pública MOUNIER 1974 p 87 Outro aspecto da vida do ser humano da construção da pessoa e que diz respeito também a essa conversão íntima é a sua relação com a propriedade Possuir coisas possuir para Mounier 1974 p89 a pessoa precisa dispor de certo número de objetos necessita ter espaço e necessita não opor tanto o ter e o ser como se precisasse escolher entre essas duas atitudes existenciais As duas são necessárias Mas é necessário saber não ser possuído pelos bens que é necessário possuir Para concluir as observações sobre esta estrutura o movimento do coração servirá como uma metáfora feliz para elucidar as duas necessidades essenciais da vida pessoal ou seja a saída de si mesmo e a vida interior Unindose para se encontrar e a seguir expondo se para enriquecer e se tornar a encontrar depois de novo se unindo no despojamento a vida pessoal sístole diástole MOUNIER 1974 p92 Sem qualquer um dos dois movimentos não há vida pessoal 324 O Afrontamento Outra estrutura do universo pessoal é o Afrontamento Esta atividade poderia muito bem receber o nome de luta de forças Com efeito nos diz o autor de O Personalismo 1974 p103 ser é amar e o amor não é outra coisa que luta a vida é uma luta contínua contra a morte e a pessoa não acontece em um êxtase mas numa luta de força Luta que se expressa no sim e no não na adesão e na recusa de tudo o que é exterior e por vezes de realidades interiores desde o contato com o ambiente até as realidades culturais que são exemplo de realidades espirituais Mas uma luta não se faz somente de violências Existem outras forças a serem consideradas no movimento de afrontar que faz aparecer a pessoa 57 Por ter destruído o Ser transcendental e a existência quotidiana Kierkegaard vai indefinidamente recusando tudo o mundo o casamento a ação a Igreja as mediações intelectuais todas as forças que enraízam o indivíduo reservadas então a um como que fiat solitário e paradoxal no Absoluto Para Heidegger a existência não é um acolhimento do ser interior mas recusa da morte recusa do nada Para Sartre o homem é atacado por dentro por um ser ameaçador viscoso estúpido e não existe senão na resposta que dá à sua atração Todos estes pensamentos deram notáveis descrições da força de ruptura concentrada na pessoa Mas operando o vazio no mundo que a rodeia mais não lhe podem dar do que terror e colocam a pessoa num permanente estado de alarme e réplica Ignoram atitudes de apaziguamento de acolhimento de dádiva que são também constitutivas do nosso serMOUNIER 1974 p 102102 Como se pode notar não é impunemente que somos pessoas MOUNIER 1974 p83 ou seja o caminho da personalização passa por duras decisões por amplas reflexões por saídas exigentes de si mesmo e recolhimento por atitudes não muito fáceis na maioria das vezes É por isso que em determinado momento Mounier dirá que esta espécie é rara A maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência a vida material e vegetativa à aventura humana MOUNIER 1974 p107 Tal preferência evidencia a existência e a importância de mais uma estrutura do universo pessoal a liberdade Mas uma liberdade com condições 325 Liberdade com condições A liberdade é vista pelo personalismo com condições porque precisamente esta Filosofia não a considera uma coisa Ao dizer que a liberdade não é uma coisa o Personalismo propõe a recusa de duas visões de liberdade às quais chama de equivocadas Uma é a liberdade de indiferença liberdade de nada ser de nada desejar de nada fazer não só indeterminismo como indeterminação total Alguns liberais e outros espíritos anarquizantes veem sob este prisma a liberdade de pensamento e de ação Mas o ser humano nunca conhecerá este estado de equilíbrio fazendolhe acreditar que ele é possível iludemse suas opções reais ou então arrastamolo definitivamente para o gosto mortal da indiferença A outra é aquela que mendigamos ao indeterminismo físico Fezse um grande alarde com as novas perspectivas que a física moderna veio abrir quisse obrigála a provar a liberdade Era uma ideia totalmente errada de liberdade MOUNIER 1974 p 110111 58 Para que o ser humano fosse livre dentro dessas concepções seria necessário que o mundo fosse inteiramente inteligível que a comunhão entre as pessoas não experimentasse limites ou interrupções e que fosse total a posse dos ideais de cada um mas toda vitória da liberdade se vira contra ela própria e atrai novos combates a batalha da liberdade não termina MOUNIER 1974 p121 Sendo assim ou seja não admitindo essa ideia de liberdade resta expor então qual ideia de liberdade Mounier irá propor a liberdade com condições A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais conquistase por cima deles mas com eles MOUNIER 1974 p111 O homem livre é o homem que pode prometer e o homem que pode trair G Marcel MOUNIER 1974 p114 Ser livre é primeiramente aceitar esta condição para dela partir Nem tudo é possível nem tudo é possível em todos os momentos Estes limites quando não são demasiado estreitos são uma força MOUNIER 1974 p116 A nossa liberdade é liberdade de pessoas valorizadas Não sou livre apenas porque exerço minha espontaneidade tornome livre se der a essa espontaneidade o sentido duma libertação ou seja duma personalização do mundo e de mim próprio MOUNIER 1974 p119 Sempre recordando o papel do outro no conceito de pessoa e portanto no movimento de personalização como cocriadores do eu Mounier continua dizendo que há pois aqui uma nova instância a que separa a pessoa implícita à beira do ímpeto vital da pessoa que por seus atos amadurece na espessura cada vez maior da existência individual e coletiva MOUNIER 1974 p119 o homem livre é um homem que o mundo interroga e que responde é o homem responsável MOUNIER 1974 p123 326 O Compromisso Emmanuel Mounier é bastante extenso nesta obra que tomamos para servir de mapa da personalização ao falar da última estrutura do universo pessoal o Compromisso ou caso se prefira a ação Este subtópico tem como objetivo saldar a dívida desta reflexão para com o aspecto político do pensamento de Emmanuel Mounier deixado em segundo plano ao longo do caminho trilhado até aqui jamais por não ser importante sua importância é atestada pelo que foi dito no parágrafo anterior sobre a extensão do tema em O Personalismo e mais ainda 59 pelas palavras do próprio Mounier que afirma que uma teoria da ação não é pois apêndice ao personalismo é seu capítulo central MOUNIER 1974 p151 A ação é necessária para o personalismo pois já no conceito de pessoa se admite que ela a pessoa é atividade é ação e o que não age não é MOUNIER 1974 p151 Agir é comprometerse aceitar todas as virtualidades de uma condição encarnada à qual se pode transcender na qual se exerce a liberdade a comunicação o afrontamento Esta ação não abarca somente o trabalho nem somente as adesões mas os motivos daquele e destas e se dirige em todas as direções e planos do humano Do movimento de personalização já se disse que é o trabalho por excelência do ser humano Este aprofundamento de si até os princípios que nos fazem homens cada um o leva a cabo por sua conta sobre esses dois caminhos com frequência entrelaçados da contemplação e do trabalho MOUNIER 1975 p50 Por isso o compromisso é tão importante a ação é tão importante mas vista em toda a sua amplitude Esta ação no que se refere ao aspecto ontológico fenomenológico e até ético da pessoa implica em todas as atitudes às quais se fez referência em cada etapa da personalização em cada estrutura do universo pessoal Implica em se reavaliar no particular e na comunidade em rever sempre as adesões no espiritual ou no material do acontecimento de cada pessoa e comunidade É ao falar de adesões justamente que Mounier começa a expressar seu pensamento político pois as adesões são a forma pessoal de se comprometer Se comprometer com algo com uma ideia com estes e não aqueles valores com outra pessoa consigo mesmo Por meio de todas essas vias haveremos de chegar a criar um hábito novo da pessoa o hábito de ver todos os problemas desde o ponto de vista do bem da comunidade humana e não dos caprichos do indivíduo A comunidade humana não é tudo mas uma pessoa ilhada não seria nada O comunismo é uma filosofia da terceira pessoa impessoal Mas há duas filosofias da primeira pessoa duas maneiras de pensar e de pronunciar a primeira pessoa estamos contra a filosofia do eu e a favor da filosofia do nós MOUNIER 1975 p50 Usando este critério é que Mounier irá propor sua Revolução Personalista e Comunitária que começa na ação da personalização de cada ser humano responsabilidade de cada um e da comunidade mas em segundo lugar de quem é exigido que assegure a cada um as possibilidades mínimas para o processo e a quem é categoricamente vetada a 60 interferência ou trabalho de obstrução no desenvolvimento da pessoa Aqui entram em contato uns com os outros aspectos como liberdade imprevisibilidade estruturas e instituições numa cocriação da pessoa Deste modo e em todas as partes a reforma do homem transborda os limites do homem Não voltaremos a encontrar o sentido do homem a não ser assumindo o sentido do universo Entendamos bem este universalismo Nada de bobagens à Leibniz surdez cativante aos sons desagradáveis do universo O universo está fragmentado quer dizer é fragmentado discordante Arranquemos as facilidades e as harmonias de nossos corações A universalidade é nossa estrela longínqua Até agora só lha reconhecemos como uma experiência começada e ocasionalmente concluída Não pode ser para nós outra coisa que um esforço arrancado das profundidades do homem Não cremos tampouco alcançála por algum tipo de imposição violenta capitalismo sovietismo latinismo de uma forma ou de uma civilização completamente pronta MOUNIER 1975 p 61 Destarte embora o personalismo afirme a primazia do espiritual sobre o material e uma reforma da ideia de homem como primeira ação necessária que é sua principal meta esta não acontece sem a mesma força de ação sobre os aspectos materiais imediatamente mais percebidos até que os que sobre ele têm a primazia numa revolução ao mesmo tempo espiritual e material Quando dizemos que a pessoa é de alguma maneira um absoluto não dizemos que é o Absoluto tampouco proclamamos com os Direitos do Homem o absoluto do indivíduo jurídico A comunidade entendida como uma integração de pessoas para a inteira salvaguarda da vocação de cada uma é para nós o diremos logo uma realidade cujo valor tem um valor quase tão fundamental como o da pessoa E sabemos que hoje se acha não menos desconhecida e depreciada e não menos ameaçada que ela MOUNIER 1975 p63 a sociedade quer dizer o regime legal jurídico e econômico não têm como missão nem subordinar as pessoas nem assumir o desenvolvimento de suas vocações mas a de assegurarlhes em princípio a zona de isolamento de proteção de jogo e de ócio que lhes permitirá reconhecer em plena liberdade espiritual esta vocação de ajudála sem coação por uma educação sugestiva a desprenderse dos conformismos e dos erros de outros sistemas de darlhe pelo apoio do organismo social e econômico os meios materiais que são comumente necessários salvo vocações heroicas para o desenvolvimento desta vocação É necessário especificar que esta ajuda é devida a todos sem exceção que só poderia tratarse de uma ajuda discreta deixando ao risco toda sua parte correspondente uma vez evitado por meio dos mecanismos de coerção material o nascimento de injustiças derivadas da liberdade de alguns suscetíveis de se voltar contra a liberdade de todos MOUNIER 1975 p64 61 O personalismo exige da ação que ela transforme a realidade que forme pessoas que aproxime cada um de seus coexistentes e que enriqueça o universo de valores do ser humano Para Mounier poderíamos resumir a ação pode ser distinguida de quatro formas básicas que remontam uma distinção clássica o fazer poiein ou ação econômica o agir prassein ou ação ética o teorein atividade contemplativa e o agir em comunidade do qual o filósofo faz questão de lembrar a importância Comunidade de trabalho comunidade de destino ou comunhão espiritual são indispensáveis à sua humanização integral Foi pela oferta que delas foi feita oferta mais ou menos impura àqueles que não as encontravam no ambiente do seu país ou da sua vida que fascismo e comunismo conheceram tão largo sucesso Não é com clamores de desesperados solitários que hoje podemos despertar uma ação que o desespero esgotou MOUNIER 1974 p162163 A teoria mounieriana do compromisso engloba então num mesmo ato todo o caminho que vai desde a realização particular do movimento de personalização até os pólos político e profético da ação que recordese é em todos esses momentos perpassada de uns e outros que por sua vez perpassamse uns aos outros Neste entendimento a afirmação da solidariedade entre a teoria e a prática é já algo bem minúsculo diante daquilo que realmente importa traçar uma total geografia da ação para sabermos tudo o que deve ser unido e como o deve ser Nenhuma ação pode ser sã e viável se desprezar totalmente ou por maioria de razão se repelir quer uma preocupação de eficácia quer o contributo duma vida espiritual Sem esquecermos no entanto que a incapacidade de cada homem para plenamente realizar todo o homem especializa a ação MOUNIER 1974 p163 Se é verdade que a nenhuma pessoa particular é atribuída a capacidade de ser tudo ao mesmo tempo tornase verdade e necessidade que o mundo de pessoas se forme e surja da colaboração de todos os caracteres das comunidades ou melhor dizendo as forças de cada um e de cada comunidade pois o temperamento político que vive na condução e o temperamento profético que vive na meditação e na audácia não coexistem no mesmo homem É indispensável para uma ação bem combinada a existência destas duas espécies de homens e a articulação que entre elas se estabelecerá MOUNIER 1974 p163 62 Acontece que o ser humano e as comunidades recusam muitas vezes a ação por causa mesmo das impurezas e aspectos repreensíveis das iniciativas que surgem no hoje da existência e quanto mais esse homem ou comunidade for dado à proximidade com as filosofias do absoluto mais recusarão por aquela razão as possibilidades de ação Recordando que tal posição conduz a uma estaticidade improfícua Mounier argumenta que o absoluto não é deste mundo13 e não é comensurável a este mundo Só nos podemos comprometer em combates discutíveis e em causas imperfeitas MOUNIER 1974 p163 o que desautoriza qualquer pessoa a prescindir de seu compromisso de sua ação Recusar por um tal motivo o compromisso é recusar a condição humana Ibid Quando o personalismo fala de comprometerse não se esquece de que isso não depende da pessoa nem da comunidade de pessoas em ultima análise porque nós já estamos comprometidos embarcados préocupados MOUNIER 1974 p165 Assim assume caráter de mera ilusão qualquer abstenção na ação que apesar de toda impureza possível do compromisso não significa de maneira alguma a desistência dos valores de uma pessoa de uma comunidade pois é justamente a consciência inquieta e por vezes lancinante que temos das impurezas das nossas próprias causas guardamnos longe do fanatismo num estado de vigilância crítica Sacrificando às solicitações do real as vias e as harmonias por nós imaginadas adquirimos essa como que virilidade que a purificação das ingenuidades e das ilusões desenvolve esforço contínuo de fidelidade por desconcertantes caminhos O risco que assumimos na parcial obscuridade de nossas ações colocanos num estado de despojamento de insegurança e de aventura que é clima propício para as grandes ações MOUNIER 1974 p165 A estrutura trágica deste tipo de compromisso proposto como etapa da personalização ou estrutura do universo pessoal faz lembrar o realismo trágico com o qual Mounier trata o ser humano ou melhor a pessoa Isso corrobora mais uma vez com a característica que é marca de toda a sua filosofia partese da pessoa de todas as formas e ainda que como telos como foi proposto nesta reflexão A isto se ajuntem as observações sobre as dificuldades do compromisso as suas fragilidades e caráter também aberto e não definitivo como a pessoa mesma e o fato de 13 O sentido da expressão parece ser mais de constatação da imperfeição do mundo do que uma afirmação de um mundo vindouro embora se possa pensar que Mounier a teria usado com base em sua crença do Paraíso que professava naturalmente como cristão 63 por estas razões o compromisso ser algo que se manifesta nas adesões e rupturas como que em tentativas e erros sempre em busca dos acertos sem jamais cessar Finalizando seu tratamento desta estrutura do universo pessoal ou seja do compromisso Mounier faz uma severa crítica à educação que à sua época era praticada A educação que hoje em dia é distribuída prepara o pior possível para uma cultura da ação A Universidade distribui uma ciência formalista que conduz ao dogmatismo ideológico ou por reação à ironia estéril MOUNIER 1974 p167 A situação da Universidade teria mudado desde há cinqüenta e oito anos Àquela época escreveu Mounier e a voz da pessoa o grita com ele ainda hoje que é todo um clima a modificar se não quisermos ver mais os nossos intelectuais a dar o exemplo da cegueira e os mais conscienciosos da covardia Ibid À guisa de conclusão desta etapa na qual se propõe um caminho de personalização talvez até mais do que se lha conceitue propriamente e para além da simples afirmação do que vem a ser essa personalização será profícuo recordar as palavras do próprio Emmanuel Mounier quando diz que os três exercícios essenciais da formação da pessoa são pois a meditação o compromisso reconhecimento de sua encarnação a depuração iniciação à entrega de si e à vida nos demais Se a pessoa falha em algum deles fracassa MOUNIER 1975 p67 64 CAPÍTULO IV DESPERSONALIZAÇÃO O tema da despersonalização é algo que figura nos escritos de Mounier com menor presença do que os temas da personalização e da pessoa No livrosíntese de seu pensamento O Personalismo aparece pela primeira vez quando fala da condição encarnada do ser humano no primeiro capítulo A Existência Incorporada Esta ascensão da pessoa criadora pode seguirse na história do mundo Aparecenos como uma luta entre duas tendências de sentido oposto uma é uma permanente tendência para a despersonalização a outra é o movimento de personalização que em rigor só começa com o homem MOUNIER 1974 p45 Todavia antes de falar de despersonalização o filósofo aborda o impessoal definindoo a partir da natureza natureza exterior anterior ao homem inconsciente psicológico participações sociais não personalizadas que em nada contribui para o mal do homem Mas exatamente porque é a situação do impessoal e do objetivo é permanente ocasião de alienação MOUNIER 1974 p41 Essa abordagem do impessoal denota uma concepção de natureza bastante abrangente como se verificou ao tratar da condição encarnada do ser humano Mas não somente Denota também uma preocupação de delimitar ou pelo menos de fazer uma aproximação da fronteira ser humanopessoa uma tentativa de identificar em que ponto o ser humano começa a ser pessoa Há que se recordar o fato de que para a realização da pessoa devem ser asseguradas algumas condições É preciso que os poderes definam e protejam os direitos fundamentais que garantem a existência pessoal integridade da pessoa física e moral contra as violências sistemáticas os tratamentos degradantes as mutilações físicas ou mentais as sugestões e propagandas coletivas liberdade de movimentos de palavra de imprensa de associação e de educação inviolabilidade da propriedade privada e do domicílio habeas corpus presunção de inocência até prova de culpa proteção ao trabalho à saúde à raça ao sexo à fraqueza e ao isolamento MOUNIER 1974 p107 Tais condições começam a partir daquilo que foi definido como impessoal num esforço consciente e ininterrupto bem como livre e criativo de personalização Assim não seria estranho afirmar que a despersonalização é o oposto da personalização e em certa 65 medida isto bastaria para compreender este movimento que está sempre presente como possibilidade ao ser humano Todavia procederseá a uma descrição mais significativa uma vez que como foi proposto na introdução deste trabalho entendese a despersonalização em dois sentidos ou seja despersonalização como não chegar a ser pessoa no caso seria mais exato falar em nãopersonalização ou nãorealização do telos de personalização do ser humano e isto pode se dar por diversas contingências e despersonalização como o movimento de deixar de ser pessoa A ausência das condições materiais e espirituais que deveriam ser asseguradas a todo ser humano pela comunidade de pessoas com vistas à personalização influenciará em grande parte o processo de despersonalização É por esta razão que o tema aparece tanto quanto mais Mounier se aprofunda nas análises dos tipos de organização social que desfavorecem o fenômeno da pessoa ou da vida pessoal Assim o caminho mais propício ao entendimento duplo do movimento de despersonalização que se propôs acima será analisálo nas duas dimensões do ser humano a dimensão espiritual e a dimensão material Dizendo de outra maneira analisar o que pode ser considerado como ocasião de despersonalização como força despersonalizadora tanto no aspecto espiritual humano quanto em seu aspecto material Já foi dito que a ideia de ser humano que se tem num tempoespaço é responsável em grande parte por toda realização humana nesse mesmo tempoespaço e além admitindo certa continuidade histórica Provavelmente por admitir isto a análise mounieriana se inicie com um ataque frontal a qualquer ideia de ser humano que proponha uma humanidade estática passível de definição fechada num conceito ou marcada pelo individualismo Este último tema o individualismo já foi suficientemente explorado anteriormente e sua presença na concepção de ser humano como se viu é um problema de primeira grandeza para o personalismo Verificouse que o individualismo exacerbado vivenciado intensamente nos dias de hoje como parte da ideia e da condição de ser humano é forte fator de despersonalização justamente porque ataca sua liberdade criativa e responsabilidade a conexão com o universo e com os outros homens e mulheres retirando até mesmo sua particularidade lançandoo no absurdo e preparando um mundo de autômatos padronizados paralisandoo numa espécie de embotamento conformado como se já não pudesse ser de outra maneira como se não pudesse mais se superar 66 Mas a primeira compreensão questionada por Mounier na ideia de ser humano será o dualismo com o qual se costumava definilo em sua época e ainda hoje muito usualmente corpo e alma matéria e espírito como se estivessem separadas e pudessem se consideradas uma sem a outra E não é sem propósito que inicia criticando tal pernicioso dualismo tanto na nossa maneira de viver como no nosso pensamento MOUNIER 1974 p41 Ao dizer na mesma página que o homem é um ser natural que faz parte da natureza com seu corpo e a transcende pelo espírito podese entender que tais palavras já estão colocadas com a intenção de que sirvam de base para um projeto de reorganização de todo o universo humano desde a sua ideia de si mesmo até as suas estruturas sociais de toda espécie Notase então que a consequência de pensar o ser humano em sua completude matéria e espírito é uma revolução total do mesmo que começa na ideia e tem seu impacto no material já que para o personalismo essas duas dimensões do ser humano coexistem e não se dissociam No momento em que Mounier fala sobre o tema da encarnação vemos de modo mais claro uma apresentação do personalismo como uma proposta de realismo integral em que Mounier irá rejeitar o monismo de cunho espiritualista ou materialista e o dualismo que separa radicalmente corpo e espírito como leituras do mundo e especialmente da pessoa A proposta do realismo integral é a de pensar a pessoa como uma unidade real e não apenas aparente entre seus princípios constitutivos no entanto essa unidade não significa a negação das especificidades de cada princípio ou a assimilaçãoredução de um princípio pelo outro A pessoa é corpo e espírito sem deixar de possuir suas especificidades esses dois princípios são imbricados de modo que o desprezo de um deles acarreta um inevitável rebaixamento da pessoa ROCHA 2011 p44 A dissociação mencionada acima seria então a primeira forma de despersonalização ocorrida já na maneira do ser humano pensarse a si mesmo desconsiderando qualquer um de seus caracteres elementos constitutivos ele corre o risco de ser menos do que poderia ser desconsiderando seu aspecto espiritual o ser humano corre o risco de não chegar a ser pessoa Acontece que o ser humano tende sempre a essa postura dual talvez por ter se acostumado a verse a si mesmo desta maneira Destarte porém corre ele o risco de negligenciar algo de si mesmo já em seu pensamento o que tem consequências despersonalizadoras Tomese por exemplo a supervalorização do material em detrimento do espiritual na contemporaneidade ou do espiritual em outras épocas em detrimento do material Já em seu tempo Mounier buscava uma visão que abarcasse a completude uma 67 ideia mais total do ser humano pensamos que o homem se expressa pela objetividade tanto como pela interioridade decifrando e inventando o mundo visível tanto como elevando se pela vertical de seu próprio segredo MOUNIER 1956 p161 Chegase assim a um ponto crucial da análise a interioridade tão necessária para a realização da pessoa quanto a objetividade é cada vez menos possível e cada vez mais preterida pelo ser humano É na interioridade que se inicia a vida do espírito As solicitações da vida o consomem de tal forma que ele já nem cuida de si para além das necessidades fisiológicas mais imediatas com vistas à manutenção das condições de saúde necessárias ao trabalho e à reprodução bem como não se recorda mais desse caracter constituinte de si o espírito chegando até mesmo a negálo Não negam sua existência tanto algumas filosofias quanto organizações sociais vivenciadas ao longo da História especialmente a deste tempo Tal negligência atinge a própria vida abate seus impulsos desdobraa em espécies de exemplares indefinidamente repetidos degenera as descobertas em automatismos esconde a audácia vital em formações de segurança donde a própria invenção se retira continua por inércia movimentos que em seguida se voltam contra o seu fim Acaba por aniquilar a vida social e a vida do espírito através do afrouxamento do hábito da rotina das ideias gerais e da tagarelice de todos os dias MOUNIER 1974 p45 Vida social e vida do espírito Desta última podese falar de várias maneiras e muitos filósofos e filósofas já o fizeram Também já se esboçou anteriormente o que Mounier entende por espírito Uma recordação dessa ideia será de grande valor Quando dizemos o espírito é o espírito o que dizemos não um reflexo biológico de justificação ou uma hipótese de estrutura mas uma realidade à qual nos entregamos totalmente que nos supera nos penetra nos compromete inteiramente nos fazendo superar nossos próprios limites MOUNIER 1975 p29 Consequentemente desse entendimento é que decorre sua compreensão de vida do espírito Como porém falar de vida do espírito se este não estiver presente na ideia que o ser humano tem de si mesmo Sobre esta dificuldade Mounier declara que 68 Não pode existir aventura mais magnífica que esta realidade inesgotável do espírito nos corações dos homens e por cima de suas cabeças a qual só podemos abordar por meio de símbolos linguagens contatos pesquisas paciências e esclarecimentos Não têm fé nela uma presença que não se toca ou que não se fabrica uma presença distante digo carecem de grandeza de coração e de inteligência para manter a crença nela Eis aí uma verdade humana MOUNIER 1975 p 56 A partir desta verdade e da necessidade desta condição de possibilidade de experimentála que é o necessário recolhimento ou a subjetividade a vida interior a interioridade o filósofo de Grenoble parece fazer então uma crítica às estruturas de pensamento e de ação materiais ou espirituais que não colaborem para a realização desta vida do espírito Assim podese notar a denúncia de mais uma força de despersonalização além do monismo e do dualismo pernicioso já denunciados as condições ou melhor a falta das condições necessárias para a vida do espírito O espiritual também é uma infraestrutura As desordens psicológicas e espirituais ligadas a uma desordem econômica podem minar durante muito tempo as soluções adquiridas no campo da economia E mesmo a mais racional estrutura econômica se estabelecida com desprezo das exigências fundamentais da pessoa traz dentro de si a própria ruína MOUNIER 1974 p49 Como se percebe não é possível uma dissociação entre material e espiritual pois é já no material que se encontram as condições de vivência do espiritual ou antes a relação dialética da matéria à consciência é tão irredutível como a existência quer de uma quer de outra MOUNIER 1974 p50 e cada vez mais a ciência e a reflexão nos revelam um mundo que não pode passar sem o homem e um homem que não pode passar sem o mundo MOUNIER 1974 p 48 Desta forma Mounier continuará sua reflexão acerca das forças de despersonalização fazendo uma análise das estruturas sufocantes da vida pessoal Certamente essas estruturas estarão muito ligadas ao que se chamou de impessoal de material Mas não se deve esquecer sua dialética com o caráter espiritual do ser humano dialética que sugere uma espécie de causalidade circular no movimento da realização da pessoa da vida pessoal 69 Uma definição suficiente de vida pessoal é oferecida pela tese de Antonio Glauton Varela Rocha que assim se expressa levando em conta as três principais dimensões da pessoa ou seja a encarnação a vocação e a comunicação De tal forma podemos assim definir a vida pessoal é um modo de vida que se configura através de escolhas conscientes e livres que desembocam num agir pautado pelas dimensões pessoais ou ainda é o modo especificamente humano de existir que realiza atualiza a pessoa em todas as suas dimensões ROCHA 2011 p57 Assim podese falar do processo de despersonalização a partir da identificação das forças que sufocam a pessoa ou a impedem de se realizar o que representa um embate teórico bastante direto no sentido de afrontar tais forças Parece que Mounier e a maioria de seus comentadores Rocha por exemplo preferiram um caminho mais curto no qual se faz vir à tona o processo de despersonalização muito mais pelo que se diz do processo de personalização e daquilo que é necessário para que ocorra do que por esse caminho de afrontamento Isto pode ser compreendido mediante o reconhecimento da necessidade legítima de não negligenciar a menção às dimensões básicas da pessoa e à salvaguarda das condições de concretização dessas dimensões que como diz Mounier são condições para o aparecimento da própria vida pessoal Os três exercícios essenciais da formação da pessoa são pois a meditação em busca da própria vocação o compromisso reconhecimento de sua encarnação a depuração iniciação à entrega de si e à vida nos demais Se a pessoa falha em algum deles fracassa MOUNIER 1975 p67 Ora qualquer força ou instituição então que retire do ser humano a possibilidade de concretizar as três dimensões constituintes da pessoa vocação compromisso e comunicação pode ser considerada despersonalizadora Se o caminho for este necessariamente há de se iniciar pelas condições materiais que geralmente são as mais imediatas para num segundo momento falar daquilo que toca mais especificamente ao espírito Todavia as considerações a respeito destas ultimas já foram feitas de maneira suficiente e como se ressaltou não há uma separação possível desses dois aspectos da vida humana numa filosofia que pretende pensála de maneira integral e portanto da única maneira real de tal forma que ao se falar de estruturas como Estado e de necessidades de primeira ordem como Educação e Saúde dentre outras estruturas e necessidades impessoais no sentido de materiais primeiramente não se 70 estará ignorando que quem vive sob o Estado e tem tais necessidades é o ser humano integral real Pensando desta maneira esta reflexão chega à analise do lugar do Estado na vida da pessoa Ou melhor do lugar que o Estado deveria ocupar na vida pessoal bem como nas influências de toda e qualquer instituição negativa ou positivamente no processo de personalização 41 Estado demais instituições e despersonalização Para tratar do tema do Estado como possibilidade de força despersonalizadora retoma se aqui um artigo do autor desta dissertação14 publicado recentemente no qual se discute a problemática A fundamentação teórica dessa discussão pode ser encontrada em diversas obras de Mounier mais especificamente em O Personalismo que traz no capítulo intitulado A Revolução do século XX um esboço duma teoria personalista do poder e analisa as relações de poder entre os seres humanos e eles mesmos bem como entre estes e as instituições por ele criadas Acrescentase que tudo o que for dito a respeito do Estado pode ser dito e deve também a respeito das demais instituições como escolas partidos hospitais e todo tipo de instituição Conforme o referido artigo que se propõe a pensar o papel das instituições especialmente o do Estado nos movimento de personalização e despersonalização a delimitação de um lugar para o Estado em si já configura tarefa difícil e parece soar como ousadia subversiva nos dias de hoje onde se costuma atribuirlhe diversas responsabilidades poderes e obrigações por vezes até excessivos e errôneos pelo menos em nível de Brasil não seria exagero afirmar uma dependência cada vez mais crescente do Estado e uma onipotência do mesmo presente na inconsciência política da maioria das pessoas dependência e onipotência bastante perigosas digase de passagem que se aproxima de uma alienação de 14 O artigo A utópica relação de poder entre pessoa e Estado na teoria política personalista foi publicado pela Revista Dialogando v2 n 4 JulDez2017 e consta no Apêndice desta Dissertação 71 responsabilidades pessoais e abre espaço para um exagero de presença do Estado na vida e universo das pessoas SILVA 2017 p3948 Retomar a ideia de uma discussão a respeito do lugar do Estado na vida pessoal quando se fala do processo de despersonalização é extremamente importante para compreender em que medida uma instituição pode representar uma força despersonalizadora num momento político em que as pessoas tendem a se distanciar de reflexões relevantes como esta e se fixam no máximo em polaridades partidárias e ideológicas em seus diálogos quando acontecem Obviamente é difícil esperar uma consciência política efetiva geral já que levando em conta as conjunturas educacionais atuais percebese que estas conjunturas estão muito aquém da capacidade de formação de criticidade e não partem de uma visão total do homem cumprindo apenas parte de uma tarefa muito maior com a transmissão de instrução e técnica carecendo sempre da formação integral tão necessária à mudança de status quo na sociedade SILVA 2017 p3948 Corroboram para a compreensão do que se deseja expressar neste momento a situação atual da Educação no país que parece pensada sistematicamente como um projeto de crise desde a manutenção das condições de trabalho maçantes e desanimadoras geradas por um sistema que já se provou ser ineficaz e desumano desde as suas bases os baixos salários dos docentes principalmente da educação básica pública o corte orçamentário das universidades públicas e o desestímulo também sistematicamente pensado ao que parece das pesquisas em Humanidades Isto é despersonalizador pois como recorda Mounier se a política não é tudo está em tudo MOUNIER 1974 p193 E não há verdadeira política sem educação para a política Pensar o Estado como possível força de despersonalização passa pela reflexão a respeito da crise de credibilidade que a sociedade deste tempo vivencia A realidade atual das relações de poder entre pessoa e Estado é bastante delicada a sociedade vive uma crise em todos os segmentos mas de forma particularmente tensa no que diz respeito à credibilidade a ser depositada nas instituições e em seu funcionamento e eficácia ao mesmo tempo que não consegue se pensar à margem da situação nem em outra forma de relação com as mesmas instituições e perde cada dia forças importantes no seu processo de transformação 72 ao longo dos tempos como a força da utopia minada cada vez mais diante de um processo de despersonalização vivenciado em todos os níveis Isto acontece porque a forma da sociedade se apoia numa antropologia numa visão de homem que no caso é a visão individualista que não conduz senão à forma de Estado que conhecemos hoje com pano de fundo contratualista e que tem em sua estrutura uma burocratização muitas vezes causadora de morte e uma tendência indiscutível ao abuso do poder na relação com a pessoa SILVA 2017 p3948 Assim seria necessário pensar uma condição para o Estado na qual ele ao menos e apenas cumpriria seu papel de facilitador e garantidor das condições necessárias ao surgimento e desenvolvimento tanto da pessoa como de uma comunidade de pessoas Tal é a configuração de Estado que o personalismo apresenta ou seja comunitária baseada na afirmação de que uma comunidade política seria natural ao homem Tal afirmação pode ser encontrada nos escritos de Juan Carlos Scannone que cita Francisco Suárez teórico político que identifica as bases das relações de poder em um consenso comunitário e não em um contrato social de base individualista Suárez é um filósofo político moderno e sua modernidade se mostra na acentuação da liberdade e por isso da necessidade do consenso voluntário Mas ele não pressupõe uma antropologia individualista da liberdade que só depois se faz social por meio de um pacto Pelo contrário o homem naturalmente livre é assim mesmo natural e necessariamente político e social ainda que faça parte desta ou de outra comunidade política determinada de forma livre e histórica SCANNONE 1998 p134 Deslocar a centralidade das relações de poder entre pessoa e Estado para a pessoa é a proposta de Emmanuel Mounier Para ele o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado MOUNIER 1974 p 194 Desta maneira o exercício do poder por parte do Estado só poderá ser justificado quando estiver a serviço do bem da pessoa e a serviço da promoção da pessoa já que esta seria a função presumida desde o início para este modo de governabilidade Deste modo o povo foi a causa eficiente de todos os reis príncipes e magistrados legítimos Portanto se o povo foi a causa efetiva ou eficiente e final dos reis e príncipes já que tiveram origem no povo mediante uma eleição livre não poderão impor ao povo que os 73 serviços e tributos que fossem devidos ao mesmo povo e cuja imposição foi consentida a si mesmo pelo próprio povo Donde se deduz claramente que ao eleger o rei o povo não renunciou à sua liberdade nem lhe entregou ou concedeu o poder de violentar ou de fazer ou legislar coisa alguma em prejuízo de todo o povo ou da comunidade Outra prova antes que existissem reis e magistraturas os bens a que nos referimos eram de toda a comunidade e pertenciam a ela por direito natural O povo natural e historicamente é anterior aos reis mas teve que dedicar parte dos bens públicos à manutenção dos reis por isso foi o povo quem criou e estabeleceu o direito dos reis LAS CASAS 1990 p 63 e 65 A argumentação prossegue com a identificação da finalidade do Estado com a obrigatoriedade de promover o bem comum e assegurar o estatuto da pessoa SILVA 2017 p3948 Fazendo ele mais que isto ou menos certamente poderá representar uma força de despersonalização Mas qual seria a forma de um Estado ideal para o personalismo Como pode o Estado passar de força despersonalizadora a facilitador do processo de personalização Salutar se faz a lembrança contudo de que a personalização não depende exclusivamente do Estado muito menos de qualquer outra estrutura material ou instituição como se verificou quando se tratou de tal processo anteriormente caso contrário não haveria possibilidade de realização para a pessoa Mas encontrarseá uma indicação de como seria esse Estado garantidor das condições desta realização nos escritos do teórico personalista Jesús de la Torre Rangel que assim se expressa um Estado personalista não é coletivista ou totalitário à maneira dos regimes que afogam a liberdade e a responsabilidade criativas da pessoa como no caso dos fascismos e do socialismo de tipo soviético nem tampouco é um estado neutro ou simples mecanismo técnico à maneira do Estado liberal mas se trata de um Estado sustentado pela ação livre e responsável das pessoas em seu próprio benefício para o bem comum Seu Direito enquanto normatividade deve expressar esse serviço à pessoa RANGEL 2000 p 192 Ademais afirmando que o Estado existe para a pessoa e não o contrário o personalismo abrirá um espaço para o entendimento de que é preciso garantir um estatuto fundamental da pessoa compreender os direitos subjetivos como faculdades das pessoas direitos estes que têm origem na sua própria dignidade e que necessariamente passam pela 74 consideração do outro como participante dos mesmos direitos Seria função do Estado justamente zelar por essa garantia O Estado enquanto autoridade dotada de poder concentração mesma da juridicidade objetiva tem o mesmo sentido a mesma função do direito normativo ou seja o serviço dos direitos das pessoas e a criação de condições das relações de justiça Seu fim e a guia de suas ações é o bem comum seu âmbito de jurisdição tão amplo como seu fim ainda em matéria econômica pois de acordo com Mounier deve impor posto que ela se nega uma distribuição mínima da riqueza RANGEL 2000 p 192 Uma rápida observação porém fará vir à tona a verdade incômoda de que pelo menos no Brasil dos dias atuais senão no mundo a democracia representativa não está nem perto de legislar ou de governar de acordo com os parâmetros ou objetivos descritos acima Finalmente é forçoso admitir a necessidade urgente de um movimento de personalização que faça frente ao empobrecimento intencional que aprisiona as massas despersonalizadas na inverídica ideia de onipotência do Estado e do seu lugar na vida das pessoas e da comunidade de pessoas SILVA 2017 p3948 Tal movimento passa pela descoberta do que é ser pessoa do que é ser comunidade passa pela educação que assume um papel não mais reduzido à informação e formação técnica pois assim como está também pode em grande medida ser considerada como força de despersonalização passa por uma concepção de serviços de saúde voltados mais a preservar a saúde das pessoas do que a coletar dados para um exercício de poder e passa ainda por tantos meios que no status quo são utilizados ao contrário do que deveriam ser como forças de despersonalização 75 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após o esforço empreendido na tentativa de resolução do problema proposto nesta dissertação que se exprimiu pela intenção de evidenciar como Emmanuel Mounier compreende os movimentos de personalização e despersonalização ou seja compreender como e de que maneira pode o ser humano vir a ser pessoa e de que maneira ele não chega a ser ou tendo chegado a ser pessoa de que maneira ele se pode despersonalizar chegamos ao termo deste trabalho com algumas conclusões que serão expostas a seguir Primeiramente como era de se esperar de uma reflexão feita com base em uma Filosofia que procura resguardar o status de permanência aberta em sua tentativa de definição de ser humano concluímos junto a todos os teóricos personalistas consultados que definir a pessoa fechandoa num conceito ou num sistema não é possível a não ser que se lance mão de uma maneira de fazêlo que não agrida seu caráter indefinitivo Notese que se diz aqui indefinitivo e nunca o que representaria uma atitude nada filosófica indefinido ou indefinível Com efeito nossa primeira tentativa foi a de chegar a uma definição de pessoa que conforme a exigência personalista descrita acima de manter sua abertura permanente fosse ao mesmo tempo desta natureza e atendesse às exigências conceituais de um trabalho filosófico Desta atitude de humildade frente ao mistério da pessoa poderíamos sem cerimônias chamar assim a consideração de que é forçoso admitir que com os aparatos conceituais e técnicos de que dispõem tanto a Filosofia quanto quaisquer ciências atuais não são capazes de esgotar o tema concluímos num segundo momento que definir o processo de personalização bem como o processo inverso a despersonalização é uma tarefa que goza das mesmas dificuldades da definição da pessoa Novamente chamamos a atenção para o fato de que afirmamos não a impossibilidade de conhecer esses processos mas sim a impossibilidade de conhecer de maneira completa restandonos a possibilidade de conhecê los apenas de maneira parcial como que por aproximação Talvez o problema esteja em aceitar que a pessoa seja uma questão filosófica que como outras não termina Isto todavia não nos soa como derrota Pelo contrario soanos como fidelidade ao que se pode a respeito dela afirmar 76 Em nossa tentativa de expor o conceito de pessoa esta forma de compreensão do ser humano enfatizada e desenvolvida por Mounier chegamos também à conclusão de que não seria necessário um processo de personalização e nem seria possível falar de despersonalização caso todo ser humano fosse já uma pessoa Isto expõe uma aparente divergência do nosso pensamento quanto ao pensamento do filósofo que parece afirmar que todo ser humano seria pessoa Pensamos para fundamentar nossa hipótese de que nem todo ser humano já seja uma pessoa em todo o processo de desenvolvimento material e espiritual na tomada de consciência nos processos de aprendizagem e uso da linguagem na intencionalidade e em tantas outras categorias fenomenológicas psicológicas culturais e sociais que representam tantos processos vivenciados por cada ser humano ao longo de sua existência Desta forma nos parece correta a posição que assumimos de afirmar o processo de personalização como telos do ser humano Para descrevermos de maneira aproximada o processo de personalização fizemos uso ao longo desta reflexão de um caminho que consideramos fiel ao pensamento mounieriano caminho que foi apresentado quando expusemos uma a uma as estruturas do universo pessoal dissertando sobre elas como quem fala de um mapa Ora falar da existência de um caminho ou de um mapa não é o mesmo que oferecer ao interlocutor um conhecimento definitivo Concluímos antes que este mapa é uma indicação de que o devir da pessoa sua realização é pessoal e intransferível Mais ainda existem certos processos que serão vivenciados de maneira diferente por seres humanos diferentes na sua busca pela personalização E ainda há de se considerar as possibilidades e impossibilidades de comunicar a experiência pessoal os limites da comunicação Afirmamos contudo junto com Mounier que existem três estruturas do universo pessoal que precisam ser concretizadas por qualquer ser humano que decida empreender seu processo de personalização a vocação signo da particularidade tanto de identidade quanto de possibilidade e decisão de ação no mundo e na comunidade e que só se vislumbra na meditação e na vida interior a comunicação que faz com que seja possível a realização de aprendizados trocas de experiências e coconstrução do eu e o compromisso que é o reconhecimento de nossa situação encarnada e transcendente a um tempo Ao trazermos nossas perspectivas sobre o tema da despersonalização nossas conclusões foram na mesma direção das que tivemos quando falamos do processo de 77 personalização falar de despersonalização só é possível admitindo como axioma a hipótese de que nem todo ser humano seja pessoa Procuramos estender nossa compreensão do movimento de despersonalização e alargálo em comparação com o que pudemos absorver das fontes mounierianas e personalistas em geral para uma compreensão que chamamos de dupla ou seja compreendemos a despersonalização como não chegar a ser pessoa e como deixar de ser pessoa Identificamos que da mesma maneira que existem condições sem as quais o ser humano não chega a ser pessoa e essas condições são a um tempo materiais e espirituais existem também condições frente às quais é possível afirmar a fragilidade da pessoa e a sua dissolução o que equivale logicamente a afirmar que existem condições de despersonalização Em nossas análises colocamos a tônica ou demos maior destaque às condições materiais de despersonalização começando pelo entendimento do lugar do Estado na vida pessoal e estendendo as conclusões a respeito do mesmo a todo tipo de instituição humana pois concluímos que a descrição que tentamos do processo de personalização dera conta por sua vez dos objetivos fenomenológicos hermenêuticos éticos e ontológicos almejados na apresentação do processo em questão restando por fim falar dos elementos políticos envolvidos nos processos tanto de despersonalização como de personalização Finalmente julgamos ter logrado êxito em propor uma solução para o problema desta dissertação dentro daquilo que o personalismo admite como método e possibilidade de afirmação sobre o ser humano lembrando sempre que a pessoa só pode ser definida como uma permanência aberta 78 BIBLIOGRAFIA BLOCH Ernst O Princípio da Esperança Tradução Nélio Schneider Werner Fucks Rio de Janeiro Editora Contraponto p 115 a 176 2005 CARRERAS Juan Sáez Emmanuel Mounier una filosofia de La educacion Valencia NAU Libres 1981 COSTA Daniel A Emergência e a 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Martins Editora vol II 1971 MOUNIER Emmanuel O personalismo Lisboa Livraria Morais Editora 1974 MOUNIER Emmanuel Oeuvres 2 Traitè du Caractère Paris Seul 1946 MOUNIER Emmanuel Que es el Personalismo Buenos Aires Criterio SRL 1956 79 MOUNIER Emmanuel Revolucion Personalista y Comunitaria Madrid Editora Zero 1975 MOUNIER Emmanuel Manifesto ao Serviço do Personalismo Lisboa Moraes 1967 MOUNIER Emmanuel Introdução aos existencialismos São Paulo Livraria Duas Cidades 1963 NATÁRIO Celeste Ser humano e Pessoa trânsito e recurso Reflexão Campinas janjun 2007 p 3741 Disponível emhttpsseersispuc campinasedubrseerindexphpreflexaosearchauthorsviewfirstNameCelestemiddleNa melastNameNatC3A1rioaffiliationcountry Acesso em 06 de fevereiro de 2018 PERNOUD Régine Idade Média o que não nos ensinaram Rio de Janeiro Livraria Agir 1979 RANGEL Jesús de la Torre Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo Isonomía México n12 abril 2000 Disponível 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do que é o ser humano para o princípio da dignidade da pessoa humana Revista Jurídica Cesumar Mestrado Maringá set dez 2016 v16 n 3 p 897917 80 SCANNONE Juan Carlos Lo social y lo político según Francisco Suaréz Hacia una relectura latinoamericana actual de la Filosofia política de Suárez en Xipe Totek Revista de Filosofia y Ciencias Sociales del Inst Libre de Filosofia y Ciencias y Centro de Reflexión y Acción Social Guadalajara n26 junio de 1998 SILVA Weider Ferreira A utópica relação de poder entre pessoa e Estado na teoria política personalista Revista Dialogando Quixadá v2 n 4 JulDez2017 VAZ Henrique Cláudio de Lima Escritos de Filosofia V Introdução à Ética Filosófica 2 São Paulo Loyola 2000 VAZ Henrique Cláudio de Lima Antropologia Filosófica 11 ed 1 vol São Paulo Loyola 2011 VAZ Henrique Cláudio de Lima Antropologia Filosófica I São Paulo Loyola 1991 VAZ Henrique Cláudio de Lima Escritos de Filosofia V Introdução à Ética Filosófica 2 São Paulo Loyola 2000 81 APÊNDICE ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA DIALOGANDO A UTÓPICA RELAÇÃO DE PODER ENTRE PESSOA E ESTADO NA TEORIA POLÍTICA PERSONALISTA Resumo Para além da discussão sobre qual seja o melhor regime de governo e sob qual partido orientação política deve ele estar urge a necessidade de se discutir qual o lugar do Estado na vida das comunidades humanas A definição desse lócus está na base das reflexões acerca das relações de poder entre o homem e seus coexistentes e entre o homem e o Estado bem como das relações de direito entre eles Passando pela noção de personalização da condição humana partindo do axioma de que o ser pessoa é a realização mais perfeita possível dessa condição e pela noção de utopia como possibilidade a ser alcançada e conquistada esta reflexão tem como objeto de estudo o status quo das relações entre Pessoa e Estado fundado na antropologia individualista e aquilo que se pode antever de um status que se admite como possibilidade mais humanista e geradora de dignidade para as comunidades de pessoas portanto mais rica em relação ao que se tem atualmente a qual seja fundada numa antropologia personalista com vistas a contemplar o homem em sua totalidade e a totalidade de suas relações interpessoais Palavras chave Personalismo Pessoa Emmanuel Mounier Política Utopia Résumé En plus de la discussion sur ce qui est le meilleur système de gouvernement en vertu de quel parti politique dorientation devraitil être il y a un besoin urgent de discuter de ce que le lieu de lÉtat dans la vie des communautés humaines La définition de ce locus soustend les réflexions des relations de pouvoir entre les hommes et leur s coexistant s et entre lhomme et lEtat ainsi que les relations juridiques entre eux Tourner le concept de personnalisation de la condition humaine fondée sur laxiome que la personne est dêtre aussi parfaite que possible réalisation de cette condition et la notion dutopie comme possibilité dêtre atteint et conquis cette réflexion a pour objet détude le status quo de la relation entre la personne et de lÉtat sur la base de lanthropologie individualiste et ce qui peut prévoir un status qui est accepté comme possibilité plus humaniste et la génération de dignité pour les communautés de personnes donc plus riche par rapport à ce qui est actuellement et doit être basée sur une anthropologie personnaliste afin de comprend à lhomme dans sa totalité et la totalité de leurs relations interpersonnelles Motsclés Personnalisme Personne Emmanuel Mounier Politique Utopia 82 INTRODUÇÃO Prescindir da definição do termo Utopia num escrito pretensamente político em Filosofia deveria ser praxe usual e unânime Todavia para fins de maior alcance desta modesta reflexão considerase necessário advertir que o termo aqui utilizado assume tão somente o significado de uma concepção teórica contrária ou crítica ao status quo no caso das relações de poder entre a Pessoa e o Estado bem como o de uma préconsciência 15 tendo como base das ponderações a respeito do tema a Filosofia Personalista algumas ideias oriundas da leitura da obra Utopia de Thomas Morus e do Princípio da Esperança de Ernest Bloch Objetivase partir da realidade hodierna das relações de poder acima mencionadas identificando suas limitações e as consequências das mesmas no universo pessoal 16 e num mesmo movimento contrastar a realidade atual dessas relações com aquela que poderia advir de uma reorganização política e social fundada sobre as bases conceituais personalistas Evidentemente a primeira tarefa que se impõe é a de elucidar alguns termos técnicos que serão utilizados como foi o caso de Utopia e agora do termo Personalismo sob pena de uma confusão irremediável Personalismo nada tem a ver com subjetivismo ou promoção de uma individualidade pessoal específica para quaisquer que sejam os fins Uma consulta rápida na literatura política brasileira poderia conduzir a este engano pueril cometido por diversos intelectuais até brilhantes em suas análises porém desavisados do significado oficial do termo que designa uma Filosofia ou movimento filosófico surgido em 1930 sob a égide da revista Esprit que pretendia difundir uma concepção de homem e de mundo alicerçados no conceito de Pessoa cunhado por Emmanuel Mounier e outros pensadores de seu círculo Por sua vez o conceito de Pessoa proposto pelo Personalismo traz em seu âmago uma maneira peculiar e original de abordar a realidade do Homem de maneira mais holística que os conceitos utilizados até então para abarcar este tema Sujeito consciência e outros 15 Para uma melhor compreensão do termo vide O Princípio da Esperança I de Ernst Bloch p 115 a 176 16 Entendase em tudo que faz parte da condição humana e diz respeito à pessoa 83 conceitos clássicos da Filosofia já não atendem na afirmação de Mounier à necessidade de compreensão de si mesmo por parte do homem contemporâneo A novidade e atualidade do conceito de Pessoa e sua amplitude de alcance em detrimento de outros que poderiam ser usados para designar o ser humano é atestada por diversos pensadores dentre os quais se destaca Paul RICOEUR Volta a pessoa Não insisto sobre a fecundidade política econômica e social da ideia de pessoa Bastame evocar um único problema o da defesa dos direitos humanos em outros países que não o nosso o dos direitos dos prisioneiros e dos detentos em nosso país ou ainda os difíceis casos de consciência postos pela legislação de extradição como se poderia argumentar em cada um desses casos sem referência à pessoa Mas quero me concentrar no argumento filosófico Se volta a pessoa é porque ela continua sendo o melhor candidato para sustentar os combates jurídicos políticos econômicos e sociais evocados em outro lugar quero dizer um candidato melhor do que todas as outras entidades que foram levadas pelas tormentas culturais evocadas acima Prefiro dizer pessoa em vez de consciência sujeito eu 17 No entanto para que uma leitura supérflua de seu ponto de vista não reduza o problema a uma questão de linguagem adequada RICOEUR no mesmo texto elenca os problemas que tem a intenção de evitar ao defender o uso do conceito Pessoa ao invés dos demais Relativamente à consciência ao sujeito ao eu a pessoa aparece como conceito sobrevivente e ressuscitado Consciência como se crê ainda na ilusão de transparência que se liga a esse termo depois de Freud e da psicanálise Sujeito como se nutriria ainda a ilusão de uma fundação última nalgum sujeito transcendental depois da crítica das ideologias da escola de Frankfurt O eu quem não sente a impotência do pensamento para sair do solipsismo teórico a não ser que ele parta como em Emmanuel Lévinas do rosto do outro eventualmente numa ética sem ontologia 18 17RICOEUR Paul Leituras 2 A Região dos filósofos Tradução Marcelo Perine e Nicolas Nyimi Campanário São Paulo Edições Loyola 1996 p 158 Disponível em httpsbooksgooglecombrbooksidaW4HM gUQU4ClpgPA155otsnNCUFFCrfadq Acesso em 06 de fevereiro de 2017 às 16h 18 Idem 84 Para Emmanuel Mounier a Pessoa é um ser natural mergulhado na corporeidade material corpo dotado de espírito nous ou pensamento alma ou psique pneuma ou respiração de liberdade criatividade e imprevisibilidade irrevogáveis O enunciado acima que funciona como uma pretensa fórmula de definição não representa como já foi dito em outra discussão 19 mais que uma tentativa malograda de conceituar o que não verdade não caberia num conceito para Mounier Por diversas vezes ele afirma em sua obra que o ser humano ou a Condição Humana não podem ser conceituados com total sucesso a não ser sob pena de redução ontológica e prejuízo na compreensão de tão grandioso tema só se definem os objetos exteriores ao homem que se podem encontrar ao alcance da nossa vista Mas a pessoa não é um objeto Antes é exatamente aquilo que em cada homem não é passível de ser tratado como objeto MOUNIER 1960 p15 Poder no pensamento Personalista O poder que um homem exerce sobre outro sempre foi um tema controverso e para o Personalismo não foge a esta característica Mounier ressalta a importância desta questão dizendo que o problema crucial do Personalismo é o da legitimidade do poder que o homem exerce sobre o homem poder que parece contraditório com a relação interpessoal MOUNIER 1960 p194 Essa aparente contradição é reforçada mais contundentemente quando se percorre o aparato conceitual personalista que propõe conceitos chave como comunicação compromisso afrontamento e até mesmo uma teleologia do existir humano voltada sempre para a formação de uma comunidade de pessoas todas elas participantes de uma condição comum a humana com seu valor absoluto universal que se manifesta em cada pessoalidade Quando se pensa no exercício do poder e na sua legitimidade surge inevitavelmente a questão levantada pelas teses anarquista e liberalista a respeito da natureza humana afinal 19 Utilizome da mesma fórmula em outros artigos para expressar ainda que minimamente o conceito de pessoa no pensamento mounieriano 85 o homem é bom ou mau em sua natureza Para o caso de ser ele mau saberia exercer o poder de maneira outra que a egoísta Esses dois extremos costumam chocarse e excluirse Assim temos dum lado otimismo da pessoa pessimismo do poder do outro pessimismo da pessoa otimismo do poder Dos dois lados na relação entre a pessoa e a coletividade um termo é idealizado outro esmagado 20 Decerto não se trata de estabelecer se o exercício do poder é legitimo ou não Igualmente a querela entre as teses supracitadas parece não ter relevância aqui Nas reflexões personalistas tratase mais de tentar estabelecer bases seguras para esse exercício e de procurar alicerces mais sólidos para legitimálo e sobretudo pensar limites para isso Se as bases do exercício e da legitimidade do poder não podem ou não devem ser assentadas sobre um otimismo radical de qualquer uma das duas partes seja a pessoa seja o poder nem sobre o pessimismo radical de alguma delas sob pena de inviabilidade decorre nas palavras do filósofo francês que o poder não pode estar baseado senão no destino último da pessoa deve respeitálo e promovêlo MOUNIER 1960 p195 O poder assim deve emanar do compromisso da construção de uma comunidade de pessoas que são responsáveis umas pelas outras já que se constroem também a si mesmos mutuamente os outros não são nem o paraíso nem o inferno São coconstrutores do eu FERROUX 1970 p 31 Sobre os limites a serem pensados para as relações de poder aqueles são conditio sine qua non do serviço que estas devem prestar à construção de uma sociedade de pessoas pois sem este fim não se justificariam Se a pessoa deve ser subordinada convém que não o seja senão enquanto se conserva a sua soberania de sujeito reduzindo ao máximo a alienação que lhe impõe a condição de governada 21 20 MOUNIER Emmanuel O personalismo Lisboa Livraria Morais Editora 1960 p195 21 Idem p 195196 86 Ademais tais limites devem existir para salvaguardar todos e cada um contra todo tipo de abuso de poder uma vez que poder sem limites sempre incorre em tal abuso O lugar do Estado no pensamento Personalista Em um dos seus últimos escritos O Personalismo Mounier procura desenvolver um esboço do pensamento personalista a respeito de várias grandes temáticas da Filosofia Uma das sessões do livro que é intitulada A Revolução do século XX traz um capítulo chamado de O Estado A Democracia Esboço duma teoria personalista do poder que inicia suas reflexões evocando como tema principal e primeiro a definição e o estudo do lugar do Estado A delimitação de um lugar para o Estado em si já configura tarefa difícil e parece soar como ousadia subversiva nos dias de hoje onde se costuma atribuirlhe diversas responsabilidades poderes e obrigações por vezes até excessivos e errôneos pelo menos em nível de Brasil não seria exagero afirmar uma dependência cada vez mais crescente do Estado e uma onipotência do mesmo presente na inconsciência política da maioria das pessoas dependência e onipotência bastante perigosas digase de passagem que se aproxima de uma alienação de responsabilidades pessoais e abre espaço para um exagero de presença do Estado na vida e universo das pessoas Paradoxalmente falando ainda no nível da situação nacional as pessoas parecem se distanciar cada vez mais de reflexões políticas balizadas por questões relevantes como esta do lugar do Estado em suas vidas preferindo discussões partidárias e oposições de ideologias quando chegam a isto Não se pode negar que a população de meia idade tem se interessado paulatinamente pela política mas ainda é cedo para afirmar uma consciência política efetiva principalmente quando se inicia tal análise pelas conjunturas educacionais atuais que estão muito aquém da capacidade de formação de criticidade e não partem de uma visão total do homem cumprindo apenas parte de uma tarefa muito maior com a transmissão de instrução e técnica carecendo sempre da formação integral tão necessária à mudança de 87 status quo na sociedade Todavia nas palavras de Mounier se a política não é tudo está em tudo MOUNIER 1960 p193 A realidade atual das relações de poder entre Pessoa e Estado é bastante delicada a sociedade vive uma crise em todos os segmentos mas de forma particularmente tensa no que diz respeito à credibilidade a ser depositada nas instituições e em seu funcionamento e eficácia ao mesmo tempo que não consegue se pensar à margem da situação nem em outra forma de relação com as mesmas instituições e perde cada dia forças importantes no seu processo de transformação ao longo dos tempos como a força da utopia minada cada vez mais diante de um processo de despersonalização vivenciado em todos os níveis Isto acontece porque a forma da sociedade se apoia numa antropologia numa visão de homem que no caso desde os tempos do Iluminismo é a visão individualista que não conduz senão à forma de Estado que conhecemos hoje com pano de fundo contratualista e que tem em sua estrutura uma burocratização muitas vezes causadora de morte e uma tendência indiscutível ao abuso do poder na relação com a pessoa Tal configuração de Estado é completamente diferente daquela que se busca apresentar aqui ou seja uma configuração comunitária com base na afirmação de que a comunidade política não nasceria a partir de um pacto mas seria natural ao homem Esta afirmação é feita por teóricos políticos como Juan de Mariana e Suárez que identificam as bases das relações de poder no consenso comunitário e não no contrato social de base individualista Suárez é um filósofo político moderno e sua modernidade se mostra na acentuação da liberdade e por isso da necessidade do consenso voluntário Mas ele não pressupõe uma antropologia individualista da liberdade que só depois se faz social por meio de um pacto Pelo contrário o homem naturalmente livre é assim mesmo natural e necessariamente político e social ainda que faça parte desta ou de outra comunidade política determinada de forma livre e histórica 22 22 SCANNONE Juan Carlos Lo social y lo político según Francisco Suaréz Hacia una relectura latinoamericana actual de la Filosofia política de Suárez en Xipe Totek Revista de Filosofia y Ciencias Sociales n26 Inst Libre de Filosofia y Ciencias AC y Centro de Reflexión y Acción Social AC Guadalajara junio de 1998 p 134 88 O deslocamento da centralidade nas relações de poder entre Pessoa e Estado é justamente a base do argumento de Emmanuel Mounier Para ele o Estado existe para a pessoa e não a pessoa para o Estado Mounier 1960 p 194 Assim o exercício do poder por parte do Estado só pode ser justificado quando está a serviço do bem da pessoa de sua promoção já que esta é a sua função presumida desde a gênese desse tipo de modelo de governabilidade Deste modo o povo foi a causa eficiente de todos os reis príncipes e magistrados legítimos Portanto se o povo foi a causa efetiva ou eficiente e final dos reis e príncipes já que tiveram origem no povo mediante uma eleição livre não poderão impor ao povo que os serviços e tributos que fossem devidos ao mesmo povo e cuja imposição foi consentida a si mesmo pelo próprio povo Donde se deduz claramente que ao eleger o rei o povo não renunciou à sua liberdade nem lhe entregou ou concedeu o poder de violentar ou de fazer ou legislar coisa alguma em prejuízo de todo o povo ou da comunidade Outra prova antes que existissem reis e magistraturas os bens a que nos referimos eram de toda a comunidade e pertenciam a ela por direito natural O povo natural e historicamente é anterior aos reis mas teve que dedicar parte dos bens públicos à manutenção dos reis por isso foi o povo quem criou e estabeleceu o direito dos reis 23 Identificar a finalidade do Estado com a obrigatoriedade de promover o bem comum e assegurar o estatuto da pessoa é a primeira afirmação do Personalismo ao tratar do lugar do Estado e das relações de poder mesmo entre as pessoas e um Estado pluralista é o que se consegue antever dessa forma ideal de organização social Porém se ainda não é possível vislumbrar como seria esse estado utópico de maneira completa e definitiva resultado que não pode mesmo ser esperado de um processo engendrado por pessoas em toda a sua dinamicidade justamente por causa desta dinamicidade que antagoniza com a pretensão do definitivo já se podem afirmar a presença de alguns elementos e seu papel nessa nova maneira de organização o poder tem por finalidade o bem comum das pessoas que implica o sacrifício de interesses individuais em respeito pleno à integridade e liberdade espiritual de cada pessoa Mounier 1974 p 771774 o pluralismo do Estado contemplado tanto na 23 LAS CASAS Bartolomé de De Regia Potestate Obras Completas 12 Edición en latín y castellano Alianza Editorial Madrid 1990 Segundo Principio IV p 63 e 65 89 representação efetiva de toda a sociedade e na feitura das leis e exercício do Direito e ainda determinado equilíbrio entre certa autoridade e a liberdade Qual será a nova forma desse Estado a serviço da pessoa Pergunta nosso filósofo e responde que o que sabe junto com os anarquistas é que ainda não foi realizado e que nunca o será de um modo utópico e que deverá ser constantemente reconquistado 24 Ao falar desses elementos presentes na configuração desse Estado utópico sobre o qual se discorre aqui Mounier faz uma importante distinção entre poder autoridade e força Continuando Mounier desenvolve o que chama uma doutrina personalista da autoridade onde distingue entre autoridade poder e potencia força A autoridade a considera como fundamento do poder como preeminência de uma existência ou de um valor espiritual ao poder o vê como instrumento visível da autoridade devendo a esta seu valor e a lei de seu exercício o qual não exclui o exercício de certa coação ainda que tenha por destinação espiritual que purificarse cada vez mais dela e a potência é para Mounier a materialização do poder resíduo do poder quando a autoridade se retira do mesmo simples sinônimo de força 25 Parece residir na autoridade desta forma compreendida toda a possibilidade de justificação do exercício do poder nas relações interpessoais em todos os regimes de governo possíveis mas principalmente no regime democrático A autoridade à qual alude Mounier parece poder ser identificada com o consenso de uma comunidade a respeito da eleição de um governante O exercício do poder aparece assim acompanhado da exigência da máxima responsabilidade já que entendemos por democracia o regime por excelência da responsabilidade pessoal 26 e nesse sentido o povo é comunidade de pessoas e não uma massa anônima ou uns indivíduos junto a outros caso se deva definir a democracia poderia 24 RANGEL Jesús de la Torre Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo En ISONOMIA n12 abril 2000 p 190 25 Idem p188 26 MOUNIER Emmanuel Revolución Personalista y Comunitária En Obras I Ed Sígueme Instituto Emmanuel Mounier Salamanca 19881993 p228 90 fazerse isso dizendo que é a sociedade na qual não somente é permitido mas é exigido o ser pessoa 27 À primeira vista tem se a impressão de que o modelo ideal de governo tenha em seus meandros o regime democrático necessariamente Mas o personalismo não faz esta afirmação propriamente embora simpatize mais com este regime do que com outros e assim pareça considerálo como parte integrante ou algo já mais próximo do Estado utópico ao qual alude em suas reflexões Todavia não se furta a fazer a crítica do estado atual das democracias O personalismo faz uma crítica à chamada democracia de massas dos regimes fascistas por se tratarem de massas despersonalizadas Tampouco aceita como autêntica a chamada democracia liberal individualista expressada nos regimes representativos como os parlamentos porque é inoperante para o bem da pessoa já que o regime no qual funciona o capitalismo oprime o ser humano aliena a pessoa 28 Os problemas identificados no regime de governo democrático atual por uma análise de cunho personalista são muitos Com relação à supracitada crise de fé nas instituições talvez o problema mais intimamente ligado a esta crise seja o da representação Numa sociedade tão diversa e plural só haveria garantia de bom funcionamento do regime democrático no caso de todos os setores da sociedade serem efetivamente representados Ora sabese que ainda se está muito longe de ter êxito em tal intento A democracia capitalista é uma democracia que dá ao homem umas liberdades cujo uso o capitalismo lhe retira A igualdade Se proclama a igualdade jurídica e sobretudo o que conta para ela a igualdade de oportunidades na corrida pelo dinheiro hipocrisia em um regime no qual apesar de alguns êxitos frequentemente nascidos da violência e da usura de algumas infiltrações avaramente dispostas o ensino e as funções de mando são para o conjunto de monopólio de casta no que em todos os terrenos as sanções afetam diferentemente aos pobres e aos ricos A soberania popular finalmente não é mais que uma isca um engodo O 27 María Zambrano citada por Jesús de La Torre Rangel in Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo En ISONOMIA n12 abril 2000 p169 28 RANGEL Jesús de la Torre Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo En ISONOMIA n12 abril 2000 p191192 91 Estado político não representa a homens ou partidos mas a massas de gente livre indiferenciada cansada que vota de qualquer maneira e se coloca sob a dominação dps poderes capitalistas os quais mediante a imprensa e o parlamento mantém o círculo deste aviltamento 29 Com a representação deficitária ou pelo menos não efetiva de todos os setores da comunidade humana a governabilidade se dirige apenas a massas despersonalizadas e o resultado dessa equação é a perpetuação de uma democracia meramente formal que jamais chegará a oferecer credibilidade e verdadeira preocupação com a Pessoa enquanto não se somar àquela uma democracia econômica além da reificação do humano e da sua redução ao número E esses resultados não se aproximam em nada da visão de democracia do Personalismo Ademais a verdadeira democracia não se identifica com o reino do número da maioria mas com a consolidação de um regime político que vive sempre criandose e recriandose pelas pessoas em liberdade e plena responsabilidade Um Estado personalista não é coletivista ou totalitário à maneira dos regimes que afogam a liberdade e a responsabilidade criativas da pessoa como no caso dos fascismos e do socialismo de tipo soviético nem tampouco é um estado neutro ou simples mecanismo técnico à maneira do Estado liberal mas se trata de um Estado sustentado pela ação livre e responsável das pessoas em seu próprio benefício para o bem comum Seu Direito enquanto normatividade deve expressar esse serviço à pessoa 30 Ao afirmar que o estado existe para a pessoa e não o contrário Mounier abre espaço para a compreensão de que é necessário garantir o estatuto fundamental da pessoa entender os direitos subjetivos enquanto faculdades das pessoas direitos estes que se originam de sua própria dignidade e passam necessariamente pela consideração da alteridade como signatária dos mesmos direitos A função do estado seria justamente zelar por essa garantia O Estado enquanto autoridade dotada de poder concentração mesma da juridicidade objetiva tem o mesmo sentido a mesma função do direito 29 MOUNIER Emmanuel Revolución Personalista y Comunitária En Obras I Ed Sígueme Instituto Emmanuel Mounier Salamanca 19881993 p340 30 RANGEL Jesús de la Torre Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo En ISONOMIA n12 abril 2000 p 192 92 normativo ou seja o serviço dos direitos das pessoas e a criação de condições das relações de justiça Seu fim e a guia de suas ações é o bem comum seu âmbito de jurisdição tão amplo como seu fim ainda em matéria econômica pois de acordo com Mounier deve impor posto que ela se nega uma distribuição mínima da riqueza 31 Uma observação mínima no entanto trará à tona a verdade de que pelo menos no Brasil dos dias atuais a democracia representativa não chega nem perto de legislar ou governar segundo os parâmetros descritos acima e o prejuízo é quase geral Conclusivamente cabe observar a necessidade urgente de um movimento de personalização que faça frente ao empobrecimento intencional que aprisiona as massas despersonalizadas na inverídica ideia de onipotência do Estado e do seu lugar na vida das pessoas e da comunidade de pessoas Tal movimento passa pela descoberta do que é ser Pessoa do que é ser comunidade passa pela educação e por tantos meios que no status quo são utilizados para realizar o movimento contrário à utopia ou caso se deseje maior concretude e presença de possibilidade de realização desse objetivo da préconsciência de novas e melhores possibilidades sempre presente no chão da experiência humana no aqui e pelos tempos REFERÊNCIAS MOUNIER Emmanuel Revolución Personalista y Comunitária En Obras I Ed Sígueme Instituto Emmanuel Mounier Salamanca 19881993 MOUNIER Emmanuel Anarquía y Personalismo En Obras I Ed LAIA Barcelona 1974 MOUNIER Emmanuel O personalismo Lisboa Livraria Morais Editora 1960 RICOEUR Paul Leituras 2 A Região dos filósofos Tradução Marcelo Perine e Nicolas Nyimi Campanário São Paulo Edições Loyola 1996 p 158 Disponível em httpsbooksgooglecombrbooksidaW4HM QU4ClpgPA155otsnNCUFFCrfadq Acesso em 06 de fevereiro de 2017 às 16h 31 Idem p 193 93 RANGEL Jesús de la Torre Mandar obedeciendo Poder y democracia desde el Iusnaturalismo y el Personalismo En ISONOMIA n12 abril 2000 FFERROUX Alienation et societé industrielle Paris Gallimard 1970 SCANNONE Juan Carlos Lo social y lo político según Francisco Suaréz Hacia una relectura latinoamericana actual de la Filosofia política de Suárez en Xipe Totek Revista de Filosofia y Ciencias Sociales n26 Inst Libre de Filosofia y Ciencias AC y Centro de Reflexión y Acción Social AC Guadalajara junio de 1998 LAS CASAS Bartolomé de De Regia Potestate Obras Completas 12 Edición en latín y castellano Alianza Editorial Madrid 1990 Segundo Principio IV PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP Carlos Roberto da Silveira O humanismo personalista de Emmanuel Mounier e a repercussão no Brasil DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2010 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUCSP Carlos Roberto da Silveira O humanismo personalista de Emmanuel Mounier e a repercussão no Brasil DOUTORADO EM FILOSOFIA Tese apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob a orientação do Prof Dr Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento SÃO PAULO 2010 Banca Examinadora DEDICATÓRIA Aos meus pais queridos Ana e José gratidão eterna À minha esposa Maria Imaculada companheira de todos os momentos aos meus filhos queridos Larissa e Carlos Alexandre sobretudo pelo respeito pela compreensão força e confiança que transferem A todos aqueles que despertaram e imprimiram primaveras em tempos sombrios AGRADECIMENTOS Ao amigo Prof Dr Carlos Arthur Ribeiro do Nascimento pela sua orientação dedicação atenção e sabedoria Aos membros das bancas de qualificação e defesa Aos Professores Doutores que me acolheram com carinho e disponibilizaram se através das entrevistas emails cartas e materiais o que muito contribuiu para o enriquecimento desta pesquisa Foram eles Antonio Joaquim Severino João de Scantimburgo Luiz Alberto Gómez de Souza Balduíno Antonio Andreola e João Batista Libânio À Mestra Ernestina Remusat Rennó Irmã do Convento da Providência de GAP pela gentileza e colaboração À Professora Grafira pelo inestimável auxílio Ao José Carlos Zeca pela ajuda precisa À Edith e Marcílio pela cooperação Ao pessoal da secretaria biblioteca docentes e demais funcionários da PUC SP À Paulene minha sobrinha pela sua disponibilidade solidária Ao Paulo pelo empréstimo dos valiosos livros da Biblioteca Alcântara Silveira A todos da Faculdade Católica de Pouso Alegre FACAPA em especial à Lucilene à Meire e à Dona Ivone por me deixarem acampar na biblioteca À CAPES cuja bolsa de estudos contribuiu significativamente para realização dessa pesquisa Enfim agradecimentos a toda minha família e em especial à amiga e esposa Maria Imaculada Pereira da Silveira pelo carinho e incentivo Não se trata de conservar o passado mas de resgatar as esperanças do passado AdornoHorkheimer Mounier matouse de trabalho e de preocupações A pequena felicidade tão íntima tão tocante que era entrevista naquele lar onde a presença feminina e a graça da infância eram o bálsamo do drama viril daquela consciência de filósofo dissiparase como uma névoa em uma noite de inverno 1950 era marcado por uma ausência a mais na hora em que mais necessária se tornava a presença de um espírito como desse defensor da Pessoa Humana contra os perigos que cada dia mais a ameaçam E o visitante de algumas horas trazia para outras margens do Atlântico por onde Mounier só em projeto ou sonho navegara a imagem fugaz de um lar desfeito de uma felicidade esvanecida de um parque antigo mergulhado na chuva Alceu Amoroso Lima Importa a todo custo que façamos alguma coisa de nossa vida Não o que os outros admiram mas esse impulso que consiste em imprimirlhe o Infinito Emmanuel Mounier LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS AC Ação Católica ACB Ação Católica Brasileira ACI Ação Católica Independente ACJF Ação Católica da Juventude Francesa ACO Ação Católica Operária ADP Ação Democrática Parlamentar AEC Associação dos Educadores Católicos AIB Ação Integralista Brasileira AP Ação Popular AUC Associação dos Universitários Católicos BAEM Bulletin des Amis dEmmanuel Mounier BEM Bibliothèque Emmanuel Mounier CEPAL Comissão Econômica para a América Latina CLT Consolidação das Leis do Trabalho CIDOC Centro Internacional de Documentação em Cuernavaca México CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CONSEA Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável CONTAG Confederação dos Trabalhadores na Agricultura CPC Centro Popular de Cultura CPI Comissão Parlamentar de Inquérito DCEPUC RJ Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro DB DocumentoBase AP DN Diário de Notícias Rio de janeiro FAO Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação HAC Homens da Ação Católica IBAD Instituto Brasileiro de Ação Democrática IEM Instituto Emmanuel Mounier IPES Instituto de Pesquisas Sociais ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros IBRADES Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social JAC Juventude Agrária Católica JC Jornal do Comércio Rio de Janeiro JCB Juventude Católica Brasileira JEC Juventude Estudantil Católica JECF Juventude Estudantil Católica Feminina JFC Juventude Feminina Católica JICF Juventude Independente Católica Feminina JIC Juventude Internacional Católica JOC Juventude Operária Católica JOCF Juventude Operária Católica Feminina JUC Juventude Universitária Católica LCs Ligas Camponesas LEC Liga Eleitoral Católica LFAC Liga Feminina da Ação Católica LIC Liga Independente Católica LOC Liga Operária Católica MCP Movimento de Cultura Popular MEC Ministério da Educação e Cultura MDCEPUCRJ Manifesto Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro MIRAD Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário PCB Partido Comunista Brasileiro PSD Partido Social Democrático PUC Pontifícia Universidade Católica PUCSP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SNI Serviço Nacional de Informações UBES União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFPA Universidade Federal do Pará UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UNE União Nacional dos Estudantes USP Universidade de São Paulo RESUMO O personalismo de Emmanuel Mounier 19051950 surgiu diante de uma condição histórica permeada por grandes desordens Dentro do contexto de humanidade em crise Mounier promoveu sempre a pessoa Defendeu uma retomada dos inalienáveis direitos humanos abriu vias para o universo ético da pessoa em seu tempo e lugar Propôs um despertar um desabrochar de existência verdadeiramente humana feita de imanência e transcendência Assim desperta a pessoa sernomundo e comomundo assume a humanidade recusa a passividade e o conformismo diante das ameaças alienantes de qualquer natureza Elegendose comprometese numa luta permanente para humanizar a humanidade Sua filosofia que une reflexão e ação chegou às outras margens do Atlântico e teve progressivamente repercussão no Brasil a partir da década de 50 Momentos de grande produção intelectual cultural filosófica política e social foram vividos como jamais visto na História do Brasil Tudo foi interrompido pelo Golpe Militar de 1964 chegava ao fim a primavera dos tempos de libertação de educação e de cultura centrada na dignidade da pessoa humana Ao furtar a lógica das estações iniciavase um longo período de inverno sombrio Período que jamais pode ser esquecido embora atualmente tudo se faça para rejeitar este passado vergonhoso Ainda que sob o punho de ferro da ordem totalitária desordem estabelecida o personalismo no Brasil na década de 70 conseguiu manter a centelha acessa através de uma incoativa trincheira de um pensar mais especificamente filosófico Com o passar do tempo ao sintonizar os dias atuais notase que novos episódios contra a dignidade humana ocorrem diariamente Não é estranho pensar que aludindo no início do século XXI ao enfoque defendido por Mounier venhase a redescobrir que a idéia de pessoa pode contribuir muito para o nosso tempo O pensamento de Mounier sobre a pessoa pode fornecer subsídios para um despertar pessoal que abarque os outros promova uma ética de responsabilidade e traga consigo nas estruturas de seu universo pessoal a novidade tão necessária a uma comunidade comumunidade que precisa urgentemente entenderse como planetária Palavraschave Emmanuel Mounier Personalismo Pessoa Novidade Atualidade Brasil ABSTRACT The personalism of Emmanuel Mounier 19051950 came up during a historical situation permeated by great disorder Within the context of mankind in crisis Mounier always promoted the person He defended the recovery of inalienable human rights and paved the way for the ethical universe of the person in his time and place He proposed an awakening a bloom of the true human existence made of immanence and transcendence Thus awakened the person beingintheworld and withtheworld takes hold of his humanity refuses passivity and conformism when faced with alienating threats of any nature His philosophy which unites reflection and action reached the other shores of the Atlantic and had an improving repercussion in Brazil from the fifitys Times of great intellectual cultural philosophical political and social production were lived as never before in the history of Brazil Everything was interrupted by the Military Coup of 1964 came to an end the spring of the times for liberty education and a culture centralized in the dignity of the human person Not following the logic of the seasons it was starting a long time of somber winter A time that can be never forgotten even though nowadays everything is being done to reject this shamefull past Anyway even under the iron fist of the totalitarian order established disorder the personalism in Brazil during the 1970s managed to maintain the spark lighted through a starting trench of thinking specifically more philosophical Time going attending to nowadays time it is noticed that new incidents against human dignity do occur daily It is not an odd thing to think that referring at the beginning of the 21st century to the view uphold by Mounier one comes to rediscover that the idea of the person can contribute much to our time Mouniers thought about the person can provide help for a personal awakening that enclose each other promoting a responsibility ethics and bringing with it in the structures of its personal universe something new so much needed by a community common unity that urgently must be understood as planetary Key Words Emmanuel Mounier Personalism Person Novelty Present time Brazil SUMÁRIO INTRODUÇÃO01 I AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A AÇÃO EMMANUEL MOUNIER 19051950 E O PERSONALISMO05 1 Mounier existência e compromisso07 11 Do pessimismo cristão ao otimismo trágico21 2 Fontes de inspiração33 3 Fundamentação teórica metodológica e histórica do personalismo46 4 Desordem estabelecida55 41 Capitalismo e individualismo56 42 Cristandade desvitalizada62 43 Totalitarismos68 II A EMERGÊNCIA DA PESSOA70 1 Do termo pessoa à pessoa no pensamento de Emmanuel Mounier72 2 Estruturas do universo pessoal82 21 Unidade entre existência e encarnação82 22 Transcendência da pessoa e sua eminente dignidade86 23 Comunicação aprendizagem interpessoal88 24 Recolhimento como meio de exteriorização93 25 Afrontamento e sua dinâmica96 26 Liberdade com condições98 27 Compromisso exigência da ação102 3 O personalismo a serviço da pessoa108 31 Revolução personalista e comunitária111 311 Revolução pessoal112 32 Prioridade aos meios materiais114 33 Comunidade personalista117 34 Educação personalista119 III O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER NO BRASIL123 1 Ação histórica um desafio no Brasil após a Segunda Grande Guerra123 11 Ação Católica no Brasil e os campos de atuação128 12 O despertar de inspiração libertária133 2 Exigências de um novo pensamento humanista para o momento histórico concreto brasileiro138 21 O Ideal Histórico141 22 Inspirações no pensamento personalista de Mounier e a Consciência Histórica148 23 A repressão reflexão e militância em tempos sombrios177 3 O Personalismo de Mounier a partir de 1970 no Brasil186 IV O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER LEGADO E NOVIDADE193 1 O legado193 2 Novidade do póspersonalismo198 CONSIDERAÇÕES FINAIS212 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS219 INTRODUÇÃO As posições que nestas páginas esboçamos são discutíveis e estão sujeitas a revisões Pelo menos têm a liberdade de não terem sido pensadas na aplicação de ideologias recebidas mas terem sido descobertas progressivamente com a condição do homem do nosso tempo Qualquer personalista não pode deixar de desejar que elas sigam a linha dessa descoberta e que a palavra personalismo seja um dia esquecida um dia em que já não for preciso atrair as atenções sobre aquilo que devia ser a própria banalidade do homem Emmanuel Mounier Com frequência a pessoa esteve sob debate na história da filosofia Mas esta adquiriu enorme relevância principalmente no século XX na década de 30 com a filosofia personalista francesa e em especial com Emmanuel Mounier intelectual francês cristão filósofo e fundador da revista Esprit ainda hoje sendo editada Mounier retomou a noção de pessoa e fez desta o porto de partida para uma nova navegação filosófica pensamento compromissado otimista aliado à exigência da ação frente à desordem estabelecida Tratase de uma filosofia da ação em resposta aos problemas concretos dos homens no seu mundo e situados no tempo e no espaço Este trabalho sobre o personalismo de Emmanuel Mounier 19051950 nasceu com a proposta de compreender o porquê de sua filosofia da elaboração do personalismo da fundação da revista Esprit da importância destes no contexto histórico europeu enfim de seu compromisso com a humanidade e testemunho como homem de pensamento e ação Isso levou a 2 uma pergunta particular teria o humanismo personalista de Emmanuel Mounier provocado alguma repercussão no Brasil Emmanuel Mounier vivenciou em sua época a crise espiritual material política econômica teológica filosófica científica que resultou no aviltamento de valores manifestado ao extremo nas duas Grandes Guerras nos campos de concentração nos holocaustos e totalitarismos Na procura por todas as formas de defender a pessoa humana Mounier refletiu sobre seu tempo histórico conheceuo contestouo e o afrontou Autor de vastíssima obra marcada pela preocupação com a dignidade da pessoa humana sua maior obra foi no entanto ter dedicado toda sua existência em prol do despertar de um mundo mais humano Daí estarem certos os estudiosos que afirmam ter Mounier construído sua vida em paralelo a seu pensamento o personalismo Portanto para que se possa entender a filosofia de Mounier é preciso conhecer a trajetória de sua vida seu tempo histórico suas fontes de inspiração neotomismo articulado ao pensamento cristão existencialismo marxismo fenomenologia existencial as fundamentações teórica metodológica histórica e o que se entende por desordem estabelecida capitalismo e individualismo cristandade desvitalizada totalitarismos Assim será possível compreender a condição histórica na qual brota tal filosofia bem como a exigência do pensamento ser aliado à ação aos quais Mounier se entregou de corpo e alma É o que esperase permitirá situar a real dimensão da filosofia de Mounier Esses aspectos são tratados no Capítulo I As condições históricas para a ação Emmanuel Mounier 19051950 e o personalismo No Capítulo II A emergência da pessoa apresentase um breve apanhado da compreensão do termo pessoa até se chegar a Mounier que não a define sistematicamente por acreditar ser esta não inventariável não se tratando de objeto passível de observação e delimitação Para ele a pessoa é mistério novidade transcendência espiritual e experiência de vida Não se vê em Mounier a pretensão de definir o que seja a pessoa Ele acredita que a pessoa seja um universo dinâmico e aponta que as estruturas do universo pessoal podem revelála parcialmente e que ela sirva como centro de reorientação Assim a pessoa pode despertar de sua dormência de seu 3 mundo inautêntico e viver plenamente sua grandeza humana Para Mounier este seria o mais belo presente do mundo Diante disso podese compreender a missão do personalismo de se manter aberto ao diálogo de se propor descobrirse progressivamente com a condição do homem promovendo uma revolução pessoal comunitária ética e pedagógica Quanto à pergunta particular deste trabalho é o Capítulo III O personalismo de Emmanuel Mounier no Brasil que a visa em última instância Aí são identificadas as sementes do personalismo que para aqui são transplantadas e vingam bem cultivadas na terra Brasilis Tratase do nascimento da ACB e seus movimentos da contribuição do ideal histórico de Jacques Maritain das exigências de um novo pensamento humanista diante de uma nova condição histórica e concreta inspirado em Emmanuel Mounier Despertados de uma dormência coletiva militantes jovens e intelectuais dentre outros acreditaram que a única alternativa era agir sobre a desordem estabelecida Foram anos de grande ebulição teóricoprática de libertação de educação de preocupação com o outro enfim com a pessoa Destaque especial é dado a Henrique Claudio de Lima Vaz estudioso das obras de Mounier que inspirado por ele põe em relevo o conceito de consciência histórica que orientará os principais movimentos de engagement no Brasil Tal exigência tal produção intelectual e prática será ceifada pelo Golpe de 1964 A repressão reflexão e militância em tempos sombrios O personalismo retorna porém na década de 70 por outro viés mais especificamente filosófico O Capítulo IV é dedicado ao legado de Emmanuel Mounier e sua novidade por meio do qual se afirma que seu pensamento relativo à pessoa continua atual vivo e seria urgente a ele recorrer frente às vicissitudes da condição humana no momento histórico presente Assim neste novo milênio poderia ainda ouvirse o eco personalista pela pessoa podendo ele penetrar ainda muito bem em nossos ouvidos Certamente é urgente o projetarse a pessoa pois jamais em toda a história da humanidade se ouviu falar tanto em princípios éticos desde o âmbito das organizações governamentais ou não até as escolas primárias Vozes se erguem nos debates na mídia movimentos e mais movimentos se agregam em 4 prol da dignidade humana mas paira uma ganância contínua aviltando espíritos o individualismo egoísta prepondera e a desordem estabelecida vagueia por todos os cantos do globo terrestre A humanidade carece de novos olhares para os novos problemas agora de ordem mundial Fazemse totalmente necessárias grandes mudanças e atitudes decisivas pois se o ser humano não despertar a sua pessoa se não afrontar e der direção às suas ações talvez esteja caminhando para a total inviabilidade de sobrevivência o que infelizmente hoje mais do que nunca atrai nossas atenções 5 Capítulo I AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS PARA A AÇÃO EMMANUEL MOUNIER 19051950 E O PERSONALISMO A história da pessoa será assim paralela à história do personalismo Não se desenvolverá somente no plano da consciência mas em toda a sua grandeza no plano do esforço humano para humanizar a humanidade Mounier 1950 p10 Emmanuel Mounier dizia que a pessoa não é como uma forma um molde em que se imprimem ideias instruções e convicções Ao contrário se constitui de puro movimento dialético que a perpassa É pensamento implícito que filtra as vontades obscuras percorrendo o caminho do pensamento refletido No final deste percurso como complemento da existência surge a ação o refino apurado a vontade da ação seguida do apelo à ordem e mesmo ao transcendente Com isso o pensamento se faz carne carne de existência e em cada existente carne de sua existência Logo fazse mister insistir em um pedido a pessoa não deve encolherse nos abrigos e nem fugir dos problemas Mounier 1947 p18 Mounier insistia veementemente sobre a necessidade da reflexão seguida da ação este movimento contínuo de criação em que a pessoa imprime a cada instante a sua presença novidade absoluta na história fidelidade histórica e no infinito história progressiva1 Ele declara 1 Veja abaixo p 67 6 O personalismo a partir de hoje deve tomar consciência de sua missão histórica decisiva congrega hoje vontades em número suficiente elucidou suficientemente os seus princípios de base e os seus próximos deveres para poder trazer à plena luz a sua possibilidade específica que é a possibilidade do homem frente ao mundo burguês ao marxismo e aos fascismos Inspirando também ele uma concepção total da civilização ligada ao destino mais profundo do homem real não tem de mendigar um lugar em qualquer fatalidade histórica ainda menos em qualquer barafunda política deve doravante com a simplicidade e o desinteresse daqueles que servem o homem assumir nos países que para tal estejam preparados a iniciativa da história Mounier 1967 p124 125 Se a história em sua etimologia expressão grega historía significa de forma geral pesquisa Coulanges 1971 p8 analisa que através desta felizmente o passado nunca morre completamente para o homem O homem pode esquecêlo mas deste passado guardará sempre a recordação Paul Ricoeur 19132005 afirma que a história contém em seu núcleo um desejo de encontro juntamente com um desejo de explicação Preciso da história para sair de minha subjetividade privada e experimentar em mim mesmo e para além de mim mesmo o serhomem o Menschsein 1968 p37 Parece que aqui se unem nas dimensões do tempo o passado o presente e o futuro diante de uma determinada condição histórica que formará a história Ricoeur Ibid p27 dirá que a condição histórica é uma resposta pela escolha da história pela escolha de um certo conhecimento duma vontade de compreendêla racionalmente Ao compartilhar pensamentos ao perscrutar o passado e principalmente o presente dos homens parece que Mounier precisou da história e precisou da história de sua época vivendoa objetivamente diferentemente do historiador que considera a história à distância Nela ele viu a crise da civilização desordem estabelecida a crise da própria pessoa e por isso adentrou a história dos homens o conhecimento objetivo histórico e acima de tudo o conhecimento filosófico Podese usar a expressão de Ricoeur Ibid p24 o que chama de subjetividade de reflexão para nomear essas etapas sequenciais do conhecimento refletido Mounier ultrapassou porém estas etapas e ousou para chegar ao centro do personalismo fazerse carne de sua existência Enfatizou o valor absoluto da pessoa a necessidade de um novo olhar sobre o homem em sua realidade presente e futura e com as 7 estruturas do universo pessoal Cf abaixo Cap II Seção 2 proclamou a luta permanente da pessoa para humanizar a humanidade pela qual doouse com testemunho exigente e combatente Ricoeur 1968 p12 ao recordar as homenagens outrora prestadas pelos companheiros de Esprit ao filósofo da ação Emmanuel Mounier resgata desse passado um artigo seu no qual filtra e reescreve uma nova homenagem que revela seu apreço e sua dívida para com o grande amigo Esta homenagem recolocada em novo contexto tornase a confissão de minha dívida Essa maneira de vincular a reflexão filosófica aparentemente mais apartada da atualidade dos problemas vivos de nosso tempo esta recusa em dissociar uma criteriologia da verdade de uma pedagogia política este gosto de não separar o despertar da pessoa da revolução comunitária esta recusa em cair no preconceito antitecnicista a pretexto de interioridade essa desconfiança em face do purismo e do catastrofismo esse otimismo trágico enfim tudo isto considero minha dívida a Emmanuel Mounier 1 Mounier existência e compromisso Emmanuel Mounier nasceu em primeiro de abril de 1905 na cidade de Grenoble sudeste da França Tímido integrante de uma família modesta viveu a infância e adolescência cercado pela afeição de seus pais da irmã mais velha e dos avós que conservavam firme a fé cristã católica Do ambiente em que fora criado guardou a visão do homem do campo como um exemplo a ser seguido sinceridade espontaneidade amizade eram a mistura perfeita da comunhão entre os homens Quando homem formado estudante universitário encontrandose diante da artificialidade do espírito intelectual predominante na Sorbonne sempre se lembrava de sua infância e dela extraía recordações de sua família de toda sua comunidade e de sua vida de montanhês muitas vezes eu me volto com reconhecimento para os meus quatro avós camponeses verdadeiros todos os quatro eu sinto um avô reagir em mim sua saúde a correr nas veias o ar dos campos a purificar meus pulmões Mounier 1963 t IV p413 8 Do ambiente bucólico preservava a meditação e a introspecção em que buscava aprofundar seu intelecto De criança apesar da acentuada timidez logo conquistava a afeição e a amizade Em sua adolescência busca afrontar a vida e se arriscar Encontrar pessoas era tudo o que esperava da vida e eu sentia que isto queria dizer encontrar sofrimento pareciame não poder imaginar a alegria senão através da partilha do sofrimento Mounier 1963 t IV p415 Na juventude sofre dois acidentes que o levam a perder uma vista e um ouvido o que significou para o jovem um sintoma da fragilidade humana Muito ligado ao ambiente e aos valores familiares filho atencioso e moderado os pais retardaramlhe os estudos esperando conservar ao máximo seu convívio tão natural sutil e harmonioso Interferiram inclusive em sua carreira estudantil pois o orientam para a medicina acreditando que a praticidade desta seria um complemento compensatório para o seu forte lado meditativo Atendendo seus pais Mounier inscrevese na Faculdade de Ciências embora sentisse uma particular inclinação pelas Letras Mais tarde num retiro espiritual realizado pela ACJF Ação Católica da Juventude Francesa Mounier definirá sua vida Li então em letras de fogo a necessidade de bifurcar meu retiro foi uma revelação não da vida interior que graças a Deus a tive abundante em toda a minha adolescência mas da verdadeira humildade que eu ignorava e de minha vocação da qual duvidava Ibid p417 Desta forma buscou apoio familiar Seu pai sem contestação apresentouo ao discípulo e amigo de Bergson Jacques Chevalier em Grenoble dando início a uma grande amizade e estudos visando ao apostolado religioso Mounier se esforça propõe discussões temas de debate redige o curso que seu mestre ministrou sobre Bergson chama atenção Em 1925 funda um grupo de estudos em 1926 dirige reuniões semanais de um grupo chamado Platonizantes sendo também membro da Conferência São Vicente de Paulo Por intermédio de Mons Guerry vigário do bairro mais pobre de Grenoble tem contato com a miséria seu batismo de fogo algo que marcará sua iniciação 9 Em junho de 1927 defende seu trabalho acadêmico voltado para a filosofia humanista cujo tema O conflito do antropocentrismo e do teocentrismo na filosofia de Descartes2 já mostra uma preocupação com os problemas da atualidade juntamente com a vida interior Este tema com que conclui o curso superior lembra que tal filosofia visa ao apostolado e está moldado na tríade pensamento ação e compromisso que marca o autor profundamente e passa a ser sua bandeira Com 22 anos de idade parte para Paris com intuito de ingressar no curso oficial para o magistério Por intermédio de Jacques Chevalier tem contato com o Pe Pouget lazarista octogenário e cego que lhe confere até 1933 ano de sua morte uma sólida formação teológica Em 5 de janeiro de 1928 perde seu único amigo íntimo Georges Barthélémy colega de classe em filosofia Este fato lhe provoca enorme tristeza Completa o curso de licenciamento em 1928 Obtém o segundo lugar no concours dagrégation3 e recebe uma bolsa por três anos para ingresso no curso de doutorado Resiste pois para ele havia uma atitude intelectual muito idealista e abstrata na Sorbonne o que o afastava completamente da dramaticidade pela qual passava a comunidade humana Hesita também com Jacques Chevalier que lhe expõe a necessidade de uma técnica a ser implementada Sei que isto é preciso no entanto odeio estas prisões Mounier 1963 t IV p 439 Então Mounier escreve a Jacques Chevalier Decididamente sou incapaz da atitude objetiva daqueles jovens que se colocam diante dos problemas como diante de uma peça de anatomia e diante da própria carreira como diante de um mecanismo a montarse metodicamente até o ponto fixado esta gente me desgostou de seu método e me teriam resumindo tudo desgostado da filosofia se não fosse o senhor o meu 2 Barlow Cf 1975 p 18 diz que com este trabalho Mounier parece antecipar em dez anos a análise de Jacques Maritain em seu Humanismo integral sobre o humanismo teocêntrico e o humanismo antropocêntrico 3 Bem lembrou VillelaPetit Cf 2005 p149150 quando escreve o artigo celebrando o centenário de nascimento de quatro intelectuais do meio filosófico francês Emmanuel Mounier 19051950 Paul Nizan 19051940 Raymond Aron 19051983 JeanPaul Sartre 1905 1980 Estes quatros jovens prestaram o mesmo concurso Os três últimos foram alunos da École Normale Supérieure Mounier após completar seus estudos em Grenoble foi para Paris prestar o referido exame e se classificou em segundo lugar precedido por Raymond Aron JeanPaul Sartre também concorreu mas foi reprovado No ano seguinte 1929 em sua segunda tentativa ele foi aprovado em primeiro lugar e Paul Nizan em quinto 10 passado e a verdadeira filosofia que disso não é responsável Mounier 1963 t IV p 433434 Disposto a prosseguir os estudos defrontase com vários temas e finalmente decide estudar a visão de Henri Delacroix referente ao problema da personalidade assunto de que se ocupa longamente nas obras O Personalismo e Tratado do Caráter Mas antes de escrever seu trabalho um grande acontecimento marcalhe por completo a vida Escreve e publica um livro sobre O pensamento de Charles Péguy com a colaboração de Georges Izard e Marcel Péguy Tal envolvimento o faz descobrir novos caminhos em seu pensamento e obra Vale citar que este livro foi dedicado ao amigo Barthélémy Através do estudo de Péguy afirma ter conseguido salvarse da crise de angústia que tanto o afligia e ao redescobrirse neste autor Mounier admirao profundamente Seu trabalho fêlo ter contato com Henri Bergson e também com Jacques Maritain que aconselhava na produção da obra os três jovens autores Mounier Izard e Marcel Péguy4 O estudo sobre Péguy propiciou a Mounier numerosas conferências o que o tornou mais seguro e confiante Inicia também seus primeiros ensaios como escritor no movimento dos Davidées5 cujas revistas eram publicadas pela sua fundadora Mlle Silve e por Jean Guitton Assim sente aproximarse da ação e escreve a sua irmã Madeleine não poderias acreditar na alegria com a qual me encontro em tal meio Quantas vezes estive eu dolorosamente dilacerado entre estas duas perspectivas permanecer um homem de gabinete cuja obra não ultrapassa o papel onde se 4 Os três jovens receberam informações diretamente de fontes vividas Para Mounier em especial o contato com Maritain irá cristalizar a formação de seu pensamento personalista pois através de seu mestre aproximase de outras pessoas e pensamentos que o marcarão profundamente Basta atentarmos para esta simples retratação Entre os anos de 19001901 Maritain relacionase com Charles Péguy e se tornam amigos Em 1903 Péguy leva o casal de amigos Raíssa e Jacques ao curso que Bergson ministrava no Collège de France O jovem casal encontra em Bergson a luz e o caminho para o espiritualismo Na famosa autobiografia do casal Maritain As grandes amizades estes expressam como sendo uma época do grande renascimento espiritual para eles Em 1905 o grande encontro com Leon Bloy e o cristianismo Raíssa e Jacques Maritain em 1906 recebem o batismo no catolicismo e Péguy os segue na mesma fé Cf Pussoli Lima 1995 p129168 5 Os Davidées eram um grupo de professores cristãos que surgiu em 1916 e que se reunia para discutir os problemas pelos quais toda a França passava Publicavam seus pensamentos de apelo coletivo contra as desordens através da revista Les Davidées Tal nome tinha relação com a obra Davidée Birot nome do personagem central do romance de Nicolas Marie François René Bazin 18531932 produzida em 1912 Jean Guitton escreveu uma obra sobre este movimento GUITTON Jean Les Davidées Histoire dun mouvement dapostolat laïc 19161966 Paris Casterman 1967 11 imprime ou então agir preso porém em quadros ou partidos onde é necessário mentir e sacrificar o recolhimento à agitação e à eloquência Eis aqui um primeiro plano em que vejo a ação se oferecer a mim sem causar detrimento Mounier 1963 t IV p 444 De 1931 a 1932 participou em Meudon das reuniões mensais de intelectuais católicos protestantes e ortodoxos coordenadas por Jacques Maritain Nestas reuniões passa a ter contato mais profundo com os problemas europeus 6 Inicia seu professorado em 1929 no Colégio Santa Maria de Neuilly De 1931 a 32 leciona filosofia no Liceu de SaintOmer Deste período magisterial inúmeros testemunhos de alunos colegas de estudo e amigos apontam as tendências de Mounier em não medir esforços para transmitir um ensino objetivo e transparente Além disso diziam ser ele dotado de um enorme senso de humildade e carisma como nas palavras de Moix um despertador de almas e nas de Jean Guitton 1928 apud Moix 1968 p13 Sois destes seres privilegiados que herdaram a simplicidade basta que apareçais e logo todos se agrupam em torno de vós O clima de instabilidade social e política assim como a crise econômica de 1929 se alastram na Europa A insegurança e a opressão tornamse o cotidiano 6 Eram realizadas no apartamento dos Maritain em Meudon as reuniões mensais Estas reuniões se tornaram célebres frente aos grandes problemas da cultura Eram inúmeros os participantes dentre eles temos Georges Rouault Henri Ghéon Henri Massis Stanilas Fumet François Mauriac Jacques Madaule Jean Pierre Altermann René Schwob Pe Garrigou Lagrange Pe Michel Riquet Georges Auric Nicolai Berdiaef Charles Du Bos Gino Severini o príncipe Vladimir Ghika que depois se tornou padre Charles Journet depois se tornou cardeal Louis Massignon Jean Cocteau Jacques Froissard o futuro Pe Bruno de Etudes carmélitaines Gabriel Marcel Marc Chagall Jean Hugo Igor Stravinski Pierre Reverdy Julien Green Raíssa Emmanuel Mounier dentre outros Importante lembrar que tais encontros não tinham apenas a finalidade cultural Seus membros viveram momentos de tensão de crise principalmente com a condenação pela Igreja da Action française 1926 Foi também durante este período de permanência dos Maritain em Meudon que Jacques publicou muitas obras dentre as quais citamos Primado do Espiritual 1927 Religião e Cultura 1930 Distinguir para unir ou Os graus do saber 1932 a sua obra mestra Humanismo Integral 1936 a obra mais conhecida Situação da poesia 1938 juntamente com Raíssa Attilio Danese mostra em seu artigo que Com os amigos de Maritain que se reuniam em Meudon Mounier havia colaborado na dissertação do texto Pour le bien commun onde persistia a duplicada recusa do comunismo e do fascismo em favor de uma terceira força que seria assumida nas responsabilidades do bem comum Mounier procurava instrumentos para modificar a democracia burguesa Juntamente a ele pensavam Sturzo Ignazio Silone e Simone Weil que temiam uma democracia orientada para o individualismo burguês O documento citado por Danese referese ao manifesto publicado em 19 de abril de 1931 Pour le Bien Commun Les responsabilités du chrétien et le moment présent Paris Desclée de Brouwer 1934 Cf Danese 2007 p37 12 Quanto mais Mounier se aprofundava nos estudos mais expandia sua consciência Percebeu a necessidade de combater as desordens do mundo contemporâneo frente aos novos valores que afloravam com os acontecimentos Algo deveria ser feito para o despertar da dormência medíocre diante da desordem Inspirado por Péguy Mounier pensa em criar uma revista com o teor das grandes tradições revolucionárias francesas ligadas às tradições espirituais Era preciso portanto uma necessidade ativa uma vocação um compromisso a ser implantado Dessa ideia nasce a revista Esprit sob a aprovação de Maritain Mounier ao mergulhar em suas reflexões viu também a necessidade de despojarse de sua vida cotidiana pois o novo trabalho enfocaria o agir o combater e sérias consequências certamente adviriam Nosso caminho será uma marcha de solidão 1963 t IV p 479 Dáse então sua despedida da Universidade amigos e colegas tornandose um homem público aos 27 anos Em 1932 foi editado o primeiro número da revista Mounier sabia que a partir deste momento haveria de encontrar várias tribulações em seu percurso questões financeiras desaprovações ataques violentos problemas de equipe e principalmente de sua parte o quase rompimento com seu mestre Jacques Chevalier que desaprovava a postura da revista Esprit Mounier se defende dizendo querer repetir a experiência de Charles Péguy e dizendo tentar alcançar de alguma forma possibilidades de ajudar mediante métodos eficazes um agir sobre a crise pois a revista era um grito inconformado com as mazelas da época um movimento de contestação de busca e atitude de uma geração estagnada Este veículo em defesa da pessoa inserido na situação histórica denunciava os doutrinários os moralistas e os espiritualistas que projetavam construções lógicas longe da realidade humana Foi nesta época que se cristalizou em mim um tríplice sentimento 1 O sentimento de que um ciclo de criação francesa estava fechado que havia coisas a pensar que não se podiam escrever em parte alguma que para nós pianistas de vinte e cinco anos faltava um piano 2 O sofrimento de ver cada vez mais nosso cristianismo solidarizado com o que chamarei mais tarde de a desordem estabelecida e a vontade de fazer a ruptura 3 A percepção sob a crise econômica de uma crise total da civilização Ibid p 476 477 13 Juntamente com a revista surge outro movimento de ação política La Troisième Force com Georges Izard em sua diretoria Izard amigo de Mounier mantinha contatos estreitos com o movimento Esprit mas logo surgem problemas Mounier tenta de todas as formas evitar a cisão entre os dois movimentos Segundo ele A Terceira Força perdia a pureza pois desperdiçava os valores espirituais seculares Para ele a ação poderia tornar se impura quando não alimentada pela meditação de uma vida interior Se direcionada somente em prol de medidas táticas correria sérios riscos de levar à mentira aos desvios da ação Cf abaixo Cap II subseção 27 CapIII Subseção 311 Para Mounier a verdade deveria ser o valor universal não se podendo abrir mão de sua lucidez Enfim ocorre a separação A Terceira Força fundese ao Fronte Comum formando um novo movimento chamado Fronte Social Ao fundar a revista Mounier acreditava na possibilidade de um acordo entre o pensamento e a ação política Mas Esprit não era de caráter político sendo no entanto de compromisso não somente de pensamento Porém o compromisso sabia ele poderia estabelecer contatos com as impurezas da ação Mounier era um homem voltado ao diálogo à conversação não era um político Sua missão constituíase em dar testemunho pensamento combatente antes de tudo O movimento Esprit ao dar testemunho veio a sofrer ameaças de descontentes por serem molestados em sua comodidade burguesa A instabilidade na Europa aumenta vivese o momento das guerras da Etiópia pelos italianos 1935 da Espanha 193639 a invasão alemã da Áustria no início de 1938 e os problemas com o Fronte Popular Mounier posicionase com firmeza contra o nazismo e tornase um crítico ferrenho ao denunciar o Acordo de Munique a traição dos pacifistas a qualquer preço o que veio a lhe causar muitas inimizades e crise interna no movimento Esprit com a saída de vários membros importantes da equipe Logo uma campanha se ergue promovida pelos nostálgicos da Action Française7 e 7 Havia se passado vinte e quatro anos da derrota da Guerra FrancoPrussiana para os alemães e viviase na França um momento de prosperidade Mas tal clima logo é invadido por um período do medo de uma nova guerra Acreditavase que as Forças Armadas fossem a 14 rumores surgiram de que o Vaticano condenaria a revista e o movimento Esprit por conluio comunista Mounier rapidamente escreve um resumo completo sobre as origens os fins e as posturas do movimento dirigindose ao arcebispo de Paris Jacques Chevalier o previne sobre as más companhias e Mounier responde mas o rompimento entre os dois foi inevitável Por favor caro amigo não me construa à distância uma fisionomia artificial O senhor sabe muito bem como é difícil conhecer um homem um pensamento uma vida Não me fale de meus novos amigos Eu não frequento mais homens de esquerda do que antigamente eu detesto o espírito partidário de direita Eu sou sem ambiguidade possível antimarxista Não confunda as coisas Mounier 1963 t IV p598 Em 1935 Mounier casase com Paulette Leclerq e fixa residência em Bruxelas lecionando no Liceu Francês Teve três filhas sendo a primeira acometida de encefalia aos sete meses de idade vítima de uma vacina antivariólica Tornase a perda da filha a imensa prova cristã para a família que vê em Françoise mergulhada em uma misteriosa noite do espírito a dor dos homens reafirmandolhes ainda mais a fé oferecendoa em nome de Cristo e em nome de todos os que sofrem o dilaceramento humano Mounier jamais esqueceu a presença de Françoise garantia da Segurança Nacional até que em 1894 o capitão de Artilharia Alfred Dreyfus Caso Dreyfus foi sentenciado à prisão perpétua acusado de vender preciosas informações secretas aos alemães Tudo não passou de uma fraude para encobrir um segredo maior Algumas personalidades ilustres denunciam as irregularidades do processo Dentre elas o poeta Charles Péguy os escritores Émile Zola e Anatole France e os compositores Alfred Bruneau e Albéric Magnard Em 1906 Dreyfus tem sua inocência reconhecida e a opinião pública francesa se divide entre esquerda e direita despertou logo nas consciências mais apuradas para as necessidades vitais da França o desejo de uma organização que militasse na defesa dos valores e ideais ameaçados Com esse ânimo formouse uma efêmera Liga da Pátria Francesa da qual permaneceram dois grupos os Patriotas guiados por Paulo Deroulède e Maurice Barrès e a Action Française fundada por Charles Maurras e Henri Vaugeois Com a morte de Vaugeois ficou Charles Maurras na direção do movimento e do jornal Laction Française Começa na França quase imperceptivelmente o jogo de esquerda e direita como uma espécie de guerra civil latente mas logo marcada com sangue Em setembro de 1923 a anarquista Germaine Berton com a intenção de matar Maurras entra na redação do jornal e atira em Marius Plateau que cai mortalmente ferido No mesmo dia do enterro os dois movimentos se fundiram em um na Action Française Maurras assume por completo a liderança e recebe apoio dos principais intelectuais da França Léon Daudet Jacques Bainville Henri Massis George Bernanos Jacques Maritain Maurras nascido em 1868 foi um nacionalista de direita que defendia os interesses da França em suas relações com outros países Defendeu a monarquia Escritor teórico e político antisemita e antirepublicano foi condenado pelo Vaticano em 1926 Ingressou na Academia Francesa em 1938 Apoiou o governo de Vichy Após a vitória das tropas aliadas em 1945 foi condenado à prisão perpétua Faleceu em 16 de novembro de 1952 numa clínica em Tours Cf CORÇÃO sd p163205 15 A Europa se vê frente aos totalitarismos Fascismo Nazismo e de ameaças tendo início a Segunda Grande Guerra Mounier aos 34 anos presta serviço ao exército na função de secretário no setor administrativo não muito longe de sua cidade natal Feito prisioneiro das forças alemãs foi libertado e desmobilizado em julho de 1940 Mounier reencontrase com a família instalamse em Lyon e aguarda obter autorização do governo francês para reiniciar a publicação então paralisada da revista Esprit Com a pobreza material pela qual são acometidos e os fortes invernos de 40 e 41 Mounier passa a ministrar aulas particulares na casa dos lazaristas de Lyon na escola Ruobin Dauphiné e em Vienne para que a família possa sobreviver Sua preocupação latente continuava Desenvolvia atividades sob o governo de Vichy8 sempre com a intenção de um esclarecimento e declara guerra sem tréguas ao regime totalitário busca de toda ação mesmo incoativa mesmo truncada forçando no sentido de derrota do nazismo Mounier 1963 tIV p293 Com isso organizava discussões debates e reuniões em torno dos pensamentos de Jean Lacroix Gabriel Marcel Maurice Noël Robert dHarcourt dentre outros O movimento Esprit reaparece em zona livre território não ocupado pelas forças alemãs em novembro de 1940 É acolhido com alegria mas logo recebe restrições e começam os debates censurados Os assuntos devido à censura pareciam não propor a guerra sem tréguas contra o Nazismo e a desordem estabelecida le désordre établi Uma neutralidade aparente era necessária por isso o movimento perdia colaboradores a ponto de o contestarem como sendo uma traição Momentos difíceis Já não participamos de uma guerra de fuzis mas também não assinamos armistício com a guerra espiritual começada por nós em 1932 Ibid p 289 Segundo Mounier tais ações eram ainda muito mais importantes nesse período Passa a trabalhar em numerosos movimentos de juventude que surgem além das conferências palestras e debates na Escola de Uriage onde é admitido em 1940 Em seu 8 Em 5 de julho de 1940 as tropas alemãs invadiram o norte da França eliminando os exércitos franceses Os sobreviventes se refugiaram na parte centrosul do país Após dez dias as tropas alemãs tomaram Paris Em 22 de junho a França assina o armistício com a Alemanha de Hitler a costa do Atlântico e o norte ficariam ocupados pelas tropas alemãs França ocupada no sul e sudeste França nãoocupada o governo devia lealdade à Alemanha e Vichy tornase a capital da França 16 trabalho mostrava as debilidades dos dirigentes de Vichy e fomentava a luta contra as influências da ideologia nazista Em julho de 1941 perde sua posição de professor na Ecole de Cadres dUriage instituição escolar que mais o marcou pois consistia num centro de resistência à ocupação alemã Esta assumia por missão formar novos dirigentes imbuídos de princípios de responsabilidade ética para dirigirem a França através de uma pedagogia diferente da visão tradicionalista existente pois se acreditava que a crise provinha da má condução de seus dirigentes Através de um novo pensar a Escola estimulava a participação do aluno a autonomia responsabilidade e liberdade Havia conferências seminários e as aulas estas funcionavam como discussões e introduções às temáticas chamadas de espírito de Uriage Balduíno Antonio Andreola Apud Andreola 1985 p 136 cita R Josse ao afirmar que o Personalismo foi a doutrina de referência mais frequente nesta escola Isto provocou incômodos aos governantes que não tardaram a enviar ordem para o afastamento de Mounier em 1941 e decretar a dissolução da Escola no final de 1942 Como a qualquer grande educador esta experiência o havia encantado pois era libertária compromissada crítica já que tratava dos problemas atuais fugia do autoritarismo e pedantismo Essa escola foi para Mounier o símbolo da prática pedagógica em sala de aula Em agosto de 1941 Esprit é interditada devido ao sucesso pois segundo Mounier o movimento havia alcançado duas metas propostas difundir as ideias da revista entre a nova geração e impedir o processo de expansão totalitária Portanto o movimento estava mais vivo Vale salientar que o trabalho desenvolvido por seu fundador jamais fora de envolvimento político mas sim de expansão espiritual e cultural busca consciente da dignidade humana jamais ligado a organizações clandestinas mas sim afrontamento aos totalitarismos e privações que impedem o crescimento humano Em 15 de janeiro 1942 Mounier foi feito prisioneiro suspeito de pertencer ao movimento Combat Neste período os trabalhos de Esprit 17 estavam suspensos e ele foi encarregado de organizar estudos sobre a resistência ideológica em particular a Declaração dos Direitos do Homem que em dezembro 1944 foi reproduzida na íntegra na revista Esprit com grande circulação Em meio a estas turbulências seu nome foi encontrado em papéis com um dos membros do Combat sendo então acusado de ser um dos chefes do movimento clandestino que tinha por finalidade em primeiro lugar lutar contra a propaganda e a dominação alemã Preso logo trata de promover reuniões sessões de estudo gerando harmonia e tornando a prisão algo muito diferente algo como uma comunidade Um dos detentos Henri Colin escreve sobre sua presença Posso dizer que Emmanuel Mounier era um raio de sol da cela tinha sempre uma palavra amável para acalmar um enervamento momentâneo transmitindo aos que o cercavam a paz de seu espírito 1950 Esprit p1032 No cárcere dá início ao Tratado do Caráter Em 21 de fevereiro sai da prisão mas devendo permanecer em residência vigiada em Clermont Ferrand Em 14 de março recebe liberdade provisória em Lyon porém em 29 de abril sem nenhuma explicação de Vichy é posto em internamento administrativo sendo conduzido para ValslesBains em 2 de maio A 19 de julho em contestação inicia uma greve de fome juntamente com seus colegas de internamento Trâmites ocorreram entre Mounier e Vichy e somente em 30 de junho décimo segundo dia de greve com o crescente envolvimento da população que acompanhava as notícias através da Rádio de Londres as conversações do Governo Vichy o envolvimento do Cardeal dos universitários e do ministro da Suíça tiveram resultado é declarada a revogação do decreto de internamento Mas a liberdade esperada por Mounier e seus colegas ao recobrarem a saúde pósinternamento no hospital de Aubenas é trocada pela prisão política em 7 de julho sendo então transferidos para o presídio de Saint Paul em Lyon Mounier continua inabalado em sua fé e compromisso Na cela prepara sua defesa e dos companheiros estuda muito Reinicia a redação do Tratado do Caráter e persiste sempre com os debates a respeito da filosofia personalista assuntos políticos econômicos nacionais e internacionais além de retomar assuntos sobre Péguy Maritain e Bergson oferecendo sempre diálogo e um pouco mais de conforto em momentos miseráveis No dia 30 de 18 outubro concluise a defesa deste processo e Mounier vêse às voltas com a liberdade Com o avanço das forças alemãs sobre as zonas livres e a saúde abalada busca asilo com sua família em Drôme e Dieulefit permanecendo aí até a libertação com outro sobrenome o da esposa Neste ínterim termina o Tratado do Caráter e o Afrontamento Cristão Estuda literatura filosofia questões históricas do cristianismo investiga profundamente as obras de Friedrich Wilhelm Nietzsche Soren Kierkegaard Charles Maurras Pierre Joseph Proudhon Georges Sorel e Charles Forbes Montalembert Deste último publica uma antologia estuda com muito interesse Lêtre et le néant de Sartre que há pouco havia sido editado descobre em Albert Camus uma espécie de reflexão sobre o absurdo não perde de vista os acontecimentos internacionais No final de setembro de 1944 os Mounier voltam a Paris e novamente a pobreza os avassala a situação material é extremamente precária sendo ainda mais agravada com o frio de 1944 e 1945 mas continuam firmes em fé e vontade contando com a generosa ajuda de amigos para sobreviverem Mounier chega a conseguir prestígio e a revista Esprit volta aos leitores em dezembro de 1944 com um teor mais instigante e repleto de ânsia libertária consciente do pósguerra das atrocidades cometidas pelos totalitarismos abrindo espaço aos assuntos que emergiam devido ao grande genocídio Há portanto predominância do debate de tais questões sempre com enfoque filosófico expondo os temas ligados ao marxismo existencialismo resistência revolução democracia medicina literatura enfim tudo em prol de um espírito muito mais amplo Tal empreendimento se abre para a universalidade e foi considerado a segunda geração Esprit tendo por integrantes Jean Lacroix Henri Marrou François Goguel Paul Fraisse JeanMarie Domenach Bertrand DAstorg André Bazin Albert Béguin Mikel Dufrenne André Dumas Pierre Aaimé Touchard Paul Ricouer dentre outros A missão do movimento nesta fase de pósguerra é de contribuir para reestruturar política e espiritualmente as sociedades dominadas pelo pessimismo por toda Europa Para se ter uma ideia o próprio Mounier concordava que entre os anos de 1932 e 1939 Esprit era animado por uma atitude mais crítica do que construtiva uma mentalidade meio anarquista normal aos jovens da época e que alguns definiam como proudhoniana e aos poucos se desfez Quanto à revista esta tinha uma 19 penetração profunda mas limitada em torno de 3 a 4000 exemplares Já em 1944 quando a revista reaparece produziramse de 12 a 15000 exemplares com um efetivo de 40 a 50000 leitores Cf Lacroix 1969 p36 A partir deste momento Mounier parece ter duplicado suas forças Passa a viajar constantemente para o exterior fortalecendo movimentos pronunciando palestras participando de reportagens ou seja dedicandose à comunicação sua maior aliada e ao diálogo seu mais coerente instrumento de unificação humana Publica em 1946 Liberté sous conditions e Introduction aux existentialismes em 1947 Questce que le personnalisme em 1948 Léveil de Afrique noire e La petite peur du XXème siècle Sua última obra em vida é Le personnalisme de 1949 Em nenhum momento Mounier fraquejara as prisões a doença da filha as privações diversas rupturas o cárcere a morte de amigos as guerras nada o abalou a ponto de desanimarse Mantevese sempre firme um homem fervoroso um cristão dedicado à causa humana Mas todo corpo carrega em si as marcas do sofrimento e em 1949 é acometido de uma crise cardíaca que acreditava ser apenas cansaço Em fevereiro de 1950 sofre novamente outra crise e em março no dia 22 vem a falecer Os jornais noticiaram que a multidão que acompanhou o corpo de Mounier contava entre os presentes seus grandes inimigos o que era um dos maiores elogios Quando os inimigos de um homem esquecemse por momentos dos ataques que a ele dirigiam revelam respeito pelo adversário e reconhecem que o contentor embora na trincheira oposta era um batalhador de fibra valor e coragem um lutador com quem era possível a luta de peito aberto eis que dele não era preciso temer o golpe baixo a deslealdade ou a traição Mounier conduzia o debate para um plano elevado e profundo que os adversários nem sempre podiam alcançar Daí os ataques de ordem pessoal os manejos mesquinhos que são o espernear dos que percebem falsear a tábua em que apoiam Desaparecido o adversário porém todos tiraram o chapéu em sua homenagem Silveira 1967 p16 Alcântara Silveira declara que o maior número de acompanhantes do corpo de Mounier era de seus amigos que espiritualmente viviam à sua sombra seguiam seus passos tinhamno como um guia embora ele nunca 20 impusesse nada e nem pretendesse criar discípulos Entusiastas o rodeavam Dono de uma simpatia cativante conhecedor dos homens fácil lhe foi organizar uma equipe por entre os que caminham desorientados à procura de solução sabendo como lhes mostrar o caminho que ele julgava certo Silveira1967 p17 Seu legado é fruto de sua filosofia um personalismo que expressou o valor intocável e inquestionável da pessoa Algo que mais se aproximou quantitativa e qualitativamente da proposta da palavra grega πρόσωπoν pois projetou seu olhar para frente e afrontou9 não havendo nunca de ser de outra forma Como dizia Lucien Guissard 1969 p 47 Ele não pertence à categoria dos escritores e pensadores que conhecidos como católicos colocam entre parênteses suas convicções íntimas no exercício de sua própria disciplina Menos ainda à categoria daqueles que se satisfazem com a fé simplória e não se preocupam em dar testemunho através de obra do espírito Ele é do tipo do cristão que não se sentia realmente vivo sem uma ação sobre sua época Não ambicionava fama ou brilho Sua filosofia era a honestidade do espírito em acolhida à dignidade humana e neste sentido verdadeiro Candide Moix foi feliz ao reutilizar o que o próprio Mounier escreveu em sua tese a respeito de Maine de Biran A lição de uma vida Tal texto encaixase também mais que perfeitamente na própria pessoa de Emmanuel Mounier 1927 apud Moix 1968 p 44 O que faz o valor inapreciável de sua filosofia é que ela se confunde com sua vida interior Não se organiza em sistema mas desenvolvese na duração seguindo uma pista hesitante sinuosa mas de direção perseverante Seu livro mais belo seu único livro é sua vida os outros não passam de estacas demarcadoras de etapas 9 Aludese aqui à ideia latina de que pessoa referese a o que se expressa a si mesmo por suas próprias operações tornando presente uma propriedade que o distingue de outras de sua natureza MORA 2001 p 22622263 21 11 Do pessimismo cristão ao otimismo trágico Em um ensaio publicado em 1949 Perspectivas existencialistas e perspectivas cristãs no livro Esperança dos desesperados Mounier diz que foi solicitado a pronunciar um julgamento em nome do pensamento cristão face ao desespero do mundo moderno Mas afirma não saber o que seja pensamento cristão Não existe uma filosofia cristã assim como não existe uma doutrina social cristã ou uma política cristã Mounier 1972 p113 Acredita Mounier que exista uma inspiração cristã que perpassa a história e da qual chegam a nós apenas as premissas das diversas filosofias Para ele há dados cristãos em que o pensamento filosófico se abebera mas tratamse de dados suprafilosóficos e os filósofos cristãos não estão ainda muito de acordo em relação aos caminhos que os ligam à filosofia Ibid p113 Pergunta então Quem diante de Sartre representará o cristianismo Santo Agostinho ou Santo Tomás Pascal o trágico ou Leibniz o negociador Kierkegaard ou Maritain O cristianismo é um Evangelho de vida não é uma filosofia Ibid p113 Portanto cuidados devem ser tomados Inicialmente pedese para não confundir moda existencialista uma pequena febre de cafés conversas de apaziguados em seus plácidos espíritos com o sério esforço monumental de Sartre Convém lembrar aos menos avisados que o existencialismo advém de uma longa galeria de antepassados Cf abaixo p4243 Outra atenção segundo Mounier 1972 p114 deve ser dada ao erro de confrontar cristianismo e existencialismo como dois conteúdos dos quais se estabelece o balanço e os relacionamentos entre si Será a maneira mais deplorável de se alinhar naquilo que o existencialismo chama acertadamente o pensamento inautêntico Para Mounier Ibid p115 o cristianismo por pouco que seja compreendido arriscase a encorajar uma espécie de fatalismo devoto degradação da idéia da providência uma espécie de masoquismo beato degradação da virtude da humildade uma disposição crédula degradação do espírito de fé um bom humor satisfeito degradação da esperança um sentimentalismo invertebrado degradação da caridade 22 Essa imagem do cristianismo será encontrada em muitos cristãos Mounier se abstém desse cristianismo desvitalizado e aponta que mesmo o gênio de Nietzsche julgava o cristianismo nesta ótica Crê Mounier que o cristão autêntico recusa esse subproduto mais vivamente que seus adversários Acredita este que o cristianismo e o existencialismo Sartre têm em comum uma exigência a da autenticidade Vê nos dois que a verdade se descobre nos diálogos sobre o terreno comum e na vigilância constante da má fé Eis aqui um dos paradoxos do existencialismo que se diz ateu e mesmo como Sartre o escreveu sem evasivas como um ateísmo que se pensa mais total e mais coerente que qualquer outro Mounier 1972 p116 Mounier utiliza o pensamento de Sartre Apud Mounier p 116 que diz Não sou uma coisa um ser objetivo que se conhece colocando como uma peça de anatomia sobre a mesa de observação um móvel impessoal transportado pelo rio da natureza e determinado em seu trajeto por uma fatalidade Sou um existente a saber um ser que surge na ordem determinada das coisas como uma novidade absoluta um centro de iniciativa de afirmação de liberdade Um ser é certo que não é ausente ou separado do mundo que não vive mesmo e nem se encontra senão no e pelo mundo mas que transcende o mundo por sua potência criadora e deve constantemente arrancarse à viscosidade das coisas para conservar a leveza elástica de sua existência primeira Em um sentido eu sou mesmo aquele por quem o mundo existe porque tudo o que tomba no pesado ser do mundo o passado o hábito a afirmação por demais insistente talvez mesmo a morte eu posso revivificar retomandoo em minha liberdade hominizando assim o mundo O que importa para um existente não é o jogo estético da cintilação das coisas a simples organização da utilidade do mundo mas é a vida autêntica a perpétua libertação de minha liberdade o perpétuo arrancarse à inércia das coisas da vida e do pensamento sempre em vias de cair sobre mim como um frio ou uma rigidez de morte Mas qual é o núcleo do protesto existencialista de Sartre Mounier Ibid p117 pensa que é essa transcendência da existência humana em relação à vida e à matéria esse caráter rebelde da afirmação espiritual a respeito de toda explicação que se pretende exaustiva pela ordem pelo sistema de ideias pelo élan vital essa liberdade criadora que às vezes faz do homem uma espécie de deus essa ligação íntima do homem à matéria Entretanto essa 23 ameaça que ele encontra nela parece segundo Mounier 1972 p117 colocar este homem em pleno universo cristão Podese dizer que cada vez que o élan cristão tendia a decair um despertar existencialista devolveulhe sua força de vida é São Bernardo restabelecendo o primado da salvação contra o racionalismo de Abelardo lImitation erguendo a fé contra os tortuosos raciocínios da escolástica decadente São Francisco sublevando o cristianismo ocidental contra as opressões da apropriação Pascal lembrando a angústia cristã a um século de conformismo devoto e de acomodações galantes Kierkegaard impelindo o paradoxo da fé contra a arquitetura filosófica de Hegel tão total que nada mais secreto ou inquietante ficava aí esquecido Ibid p117 Do legado eufórico da filosofia e da economia do século XIX os existencialismos acusam uma época das mais pobres espiritualidades da história uma vasta mistificação da felicidade fragilidade e abandono do homem impotência da razão e a iminência da morte sobre a vida Um retorno do sentido trágico da existência Mounier não concorda com um termo que usualmente utilizavam em sua época pessimismo cristão Para ele melhor seria trágico cristão pois em definitivo para o verdadeiro cristão este pode ser o tempo de seu triunfo O cristianismo tem seu ponto de partida no momento em que um anjo diz aos apóstolos que se conservam de nariz levantado para a montanha onde o Cristo acaba de desaparecer Por que estais a olhar para o ar Vossa tarefa doravante está a vossos pés Ibid p118119 Mounier tece relações entre momentos distintos da história do cristianismo ao lembrar que a Igreja primitiva rechaçou os gnósticos como heréticos quando manteve o cristianismo presente ao mundo material e histórico opondose a tomálo como uma evasão mística Santo Agostinho fala da cidade de Deus e da cidade dos homens inextrincavelmente mescladas os monges assumem o trabalho manual e as orações Mounier acredita que o cristianismo autêntico se desenvolve desta maneira Portanto diante da pobreza espiritual cabe resgatála urgentemente antes que se afogue na inexistência na inércia e no frio rígido da morte Emmanuel Mounier viveu entre os anos de 1905 a 1950 Sua vida decorreu portanto durante as duas grandes guerras de 1914 e 1939 e no entremeio destas No seu Manifeste au service du personnalisme na primeira 24 parte do livro o autor discorre sobre O mundo moderno contra a pessoa e seu pensamento retrata uma crise generalizada Mounier chega a utilizar a expressão desordem estabelecida para traduzir a desordem da civilização ocidental Assinala que o principal aspecto desta desordem é a miséria resultado das desordens de ordem econômica política religiosa e moral que levam o homem rumo ao individualismo e ao surgimento de regimes totalitários Para Mounier era o fim o término da euforia otimista que predominara nos anos de 1920 Atento percebeu que pouquíssimas pessoas estavam despertas diante de tais acontecimentos Não havia dúvida chegava ao fim a fase do surrealismo dos poetas e literatos cintilantes como Jean Cocteau AndréPaulGuillaume Gide Henry de Montherlant e Marcel Proust Candide Moix 1968 p58 retrata esta época na visão de Mounier A geração da década de 20 fora uma geração de jovens deuses meninos insuportáveis poetas cintilantes A geração dos anos 30 ia ser uma geração séria grave ocupada com os problemas inquieta com o futuro Em uma entrevista concedida por JeanMarie Domenach sucessor de Mounier na direção da revista Esprit aos redatores da equipe Frères du Monde10 sobre o pensamento de Mounier vêse a preocupação de Domenach ao pedir muita atenção para não separálo da ação e tornálo em pensamento comum mais simpático em arranjos para manuais de filosofia o que seria um grande erro O pensamento de Mounier desenvolveuse dentro de um contexto histórico agitado não cessou de combater tirado de profundas fontes fora do tempo ele é no seu enunciado continuamente histórico no corpo a corpo com os homens com os acontecimentos Retirado do ambiente de seu tempo ele perde grande parte de sua força de choque Hoje em dia parece muito natural ter estado contra Munique contra a aliança entre o espiritual e o reacionário pela reconciliação da Igreja com os valores autênticos do mundo moderno a libertação da França e o Concílio consagraram semelhantes atitudes Mas os que viveram estes momentos se recordam de que não eram senão um punhado de homens raros homens e que tinham contra eles tanto o povo como os poderosos Domenach 1969 p10 10 Material extraído do título original francês Présence de Mounier Dossiê n 27 da revista Frères du Monde Bordeaux Tradução brasileira DOMENACH JeanMarie Org Presença de Mounier Trad Maria Lúcia Moreira São Paulo Duas Cidades 1969 p 922 25 Domenach acredita que a verdadeira fidelidade não é seguir Mounier teoricamente mas praticar o que ele iniciou É preciso fidelidade que para Mounier era a presença ativa aos acontecimentos uma posição de acolhimento e combate afrontamento a tudo que tornasse as liberdades confortáveis O mundo no qual vivemos é cada vez mais tolerante com as ideias e cada vez o é menos com os comportamentos Temos o direito de dizer não importa o que contanto que nos conduzamos como todo mundo Eis o que devemos recusar a odiosa polidez deste mundo que coage a viver no seu ritmo e segundo suas leis mediante o que há de permissão à noite que se desligue a televisão e se leia Marx ou Mounier como bem aprouver Vivei de outro modo falai aos homens e recusai obedecer cada vez que vos ordenarem agir contra a justiça e a verdade Vereis o que acontecerá Eis o que chamo a fidelidade de Mounier É um risco Domenach 1969 p11 Para Mounier estar disposto a agir e a enfrentar riscos é o que faz o homem estar presente no mundo e na história Deixa claro não nos limitarmos a uma visão simplista precedida de impulsos e sim buscarmos ações que modifiquem a realidade exterior que nos formem que nos aproximem dos homens que enriqueçam o nosso universo de valores Mounier 1950 p105 Mounier pertenceu à geração séria dos anos 30 e a intenção de seu movimento foi recusar a passividade e o conformismo diante de uma Europa friorenta dos conjurados do medo Apontou um caminho a valorização da pessoa à qual se dedicou de corpo e alma pensamento e ação sendo sua vida construída paralela à história do personalismo num contexto trágico em tempos de agitações mas acima de tudo de esperanças Foi durante a Resistência quando preso em Lyon que Mounier trabalhou em seu livro Afrontamento Cristão 1944 Estudou profundamente as obras de Nietzsche e redigiu respostas a certas acusações manifestas deste mostrando que o cristianismo não era uma religião dos fracos covardes e conformistas mas opção dos corajosos daqueles prontos a enfrentar as desordens que se estabeleciam Por outro lado faz coro com Nietzsche e critica impiedosamente a cristandade decadente burguesa com seus logros e confortos 26 Em se falando de trágico cristão Ricoeur lembra que o livro Afrontamento Cristão se desenvolveu no inverno de 19431944 inverno em muitos sentidos Nesta época Mounier estava preso afastado da família e da pequenina Françoise Troca correspondência com a esposa Paulette na busca de encontrar forças frente a tantos mistérios Que sentido teria tudo isto se nossa pequenina fosse apenas um pedaço de carne danificado não sabemos onde um pouco de vida acidentada e não esta pequena hóstia branca que nos ultrapassa uma infinidade de mistério e de amor que nos cegaria se o víssemos face a face se cada golpe mais duro não fosse uma nova elevação que cada vez quando nosso coração começa a se adaptar a se habituar ao último golpe é uma nova exigência de amor Tu ouves esta pobre vozinha suplicante de todas as crianças mártires no mundo e este pesar de ter perdido sua infância no coração de milhões de homens que nos perguntam como um mendigo à beira do caminho dizeime vós que tendes amor as mãos cheias de luz quereis darnos isto também Se nós sofrermos apenas sofrer aguentar suportar nós nada teremos e não atenderemos ao que nos é solicitado Da manhã à noite não devemos pensar neste mal como em algo que nos é tirado mas como em alguma coisa que damos a fim de não perder o mérito deste pequeno Cristo que está no meio de nós de não o deixar só ele que deve nos arrastar de não o deixar trabalhar sozinho com o Cristo Apud Guissard 1969 p55 Ricoeur amigo íntimo de Mounier entende que este difícil momento transpareceu em seu Afrontamento Cristão As entrelinhas exalam e deixam perceber o momento vivido e afrontado por Mounier Ricoeur 1968 p153 vê no conteúdo das páginas a condição histórica e a opção combatente do autor no alto de sua tragédia em um livro que se configura como símbolo de tanta pobreza material e de ascese interior livro tão duro para o cristão ordinário tão exigente em suas incidências filosóficas Podese dizer que ele por inteiro é uma meditação da força da qual tratou São Tomás depois dos Padres11 De certa forma toda a vida de Mounier constituiu uma extrema superação humana de triunfos tempos difíceis tempos de medo pois era preciso transbordar otimismo em oposição ao desespero e transformar o 11 Ver São Tomás de Aquino Suma de Teologia VII II Seção da Parte II q 123140 27 trágico em exigência profundamente cristã Ricoeur 1968 p152 assim se refere a esse otimismo trágico o tom que Mounier designa pelo nome de otimismo trágico é algo mais complexo do que poderia parecer à primeira vista traz no bojo duas tendências prestes a se dissociarem uma que permanece em primeiro plano tende para o otimismo como resultante final do drama a outra mais discreta tende para o sentimento de ambiguidade da história em cujo seio se digladiam o melhor e o pior Emmanuel Mounier pôs sem dúvida em cena um debate de interesse de historiadores sociólogos filósofos teólogos a questão que deixa em aberto é a interseção duma teologia bíblica e duma filosofia profana da história na encruzilhada do otimismo como balanço positivo face aos olhos humanos e da esperança como firme certeza de um sentido oculto Paul Ricoeur termina por ressaltar que Mounier mais uma vez cumprindo muito bem seu papel põe todos os envolvidos de sobreaviso contra a ineficácia de uma abordagem especulativa do problema quando desvinculada da crítica do mundo em que se vive A análise de Ricoeur sobre o otimismo trágico de Mounier aponta duas tendências que ao primeiro olhar estão prestes a se dissociar 1ª de sentido otimista quanto ao caráter final do drama 2ª um sentimento de ambiguidade da história na qual encerrase a luta entre o melhor e o pior Ricoeur sustenta que a questão é deixada em aberto e relembra o sobreaviso lançado por Mounier Cabe aqui a tentativa de sondar mais em profundidade a expressão otimismo trágico lançada por Mounier Para isso serão reunidas algumas referências com as quais esperase aproximarse mais do sentido desta expressão Recordemos primeiro um estudo de Vernant em que este parafraseando Walter Nestle diz que a tragédia grega nasce quando se começa a olhar o mito com olhos de cidadão continua ele ainda dizendo que não é somente o universo mítico que perde sua consistência e se dissolve mas simultaneamente o mundo da cidade fica também submetido ao questionamento e debate de seus mais altos valores A tragédia não é apenas uma forma de arte é uma instituição social que pela fundação dos concursos trágicos a cidade coloca ao lado de seus órgãos políticos e judiciários Instaurando sob a autoridade do arconte epônimo no 28 mesmo espaço urbano e segundo as mesmas normas institucionais que regem as assembléias ou os tribunais populares um espaço aberto a todos os cidadãos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como objeto de representação e se desempenha a si própria diante do público Mas se a tragédia parece assim mais que outro gênero qualquer enraizada na realidade social isso não significa que seja um reflexo dela Não reflete essa realidade questionaa Vernant 2005 p10 Diante do passado mítico dos heróis junto às novas formas de pensamento jurídico e político conflitos de valor são dolorosamente sentidos daí o trágico a angústia as contradições e confrontações do cidadão grego Percebese que as cenas interpretadas no teatro trágico grego trazem agregadas em si uma íntima ligação com o questionar a Cidade no sentido da construção de uma reflexão política comunitária Entendese que a primeira tendência de que falava Ricoeur sobre o sentido otimista do caráter final do drama encontrase aqui Ao questionar a Cidade a tragédia finaliza num certo triunfo o otimismo catártico a purificação Por outro lado este otimismo provoca incita o cidadão e apela a ele por sua parcela sua contribuição seu compromisso para construção de novos valores morais no sentido de promover a vida boa Por isso a tragédia mesmo não tratando da realidade social da época tinha o afã de questionála Olivier Mongin 1997 p70 ao comentar Ricoeur vê no trágico o questionar mas o questionamento tende a ultrapassar sua própria visão e põe a nu a dimensão aporética da práxis As aporias das quais a filosofia é inseparável saem do núcleo da tragédia questionadora e se transfiguram num caráter aporético do agir Para Ricoeur 1995 p161 estamos diante da primazia da ética sempre viva sentido de intenção de uma vida realizada sob o signo das ações consideradas boas sobre a moral lado das normas obrigações interdições Tratase da ética efetiva cumprindo sua missão afrontando e ultrapassando o crivo das normas que se cristalizam e sempre carecem de mudanças engendradas que advêm da sabedoria prática que é a intenção ética atenta à singularidade das situações 29 A sabedoria prática envolve a vida real o real trágico Nasce diante das situações concretas em que a pessoa é posta a prova Por isso retomase o que se disse antes ficar de sobreaviso contra a ineficácia de uma abordagem especulativa do problema quando desvinculada da crítica do mundo em que se vive da realidade social como diz Vernant Na tragédia grega em particular depois da Antígona de Sófocles sabese que nascem os conflitos exatamente quando pessoas obstinadas e íntegras identificamse tão completamente com uma regra particular que se tornam cegas com relação a todas as outras assim ocorre com Antígona para quem o dever de sepultar um irmão se sobrepõe à classificação do irmão como inimigo pela razão do Estado igualmente com Creonte para quem o serviço da Cidade implica a subordinação da relação familiar à distinção entre amigos e inimigos Ricoeur 1995 p169170 A peça trágica de Sófocles Antígona obra demasiado humana faz alvorecer o trágico da ação da guerra de valores ou dos comprometimentos fanáticos Pouco importam os lados que se digladiam melhor ou pior Antígona ou Creonte pois em ambos se configuram os conflitos de deveres É nesse ponto que se requer a presença da sabedoria prática Ela se liga à situação do juízo moral e tem por necessidade a convicção que possui força mais decisiva que a regra A convicção não é arbitrária isso quando recorre às fontes do sentido originário ético que não passaram pela norma Ricoeur elabora e desenvolve a estrutura ternária que compõe o sentido ético estima de si momento reflexivo do desejo da vida boa sujeito responsável capaz de mudar os acontecimentos do mundo solicitude movimento de si em direção ao outro exigência ética da reciprocidade amizade e terceira depois do viver bem das relações interpessoais Ricoeur entende que é preciso viver o sentido de justiça igualdade e distribuição justa12 A tragédia grega adentrando o movimento catártico desorienta o homem condenao à práxis e o reorienta Por isso Antígona em sua tragédia chama tanto a atenção Ricoeur dirá que ela ao reorientarse assume para si todo o risco no sentido de uma sageza prática em situação que melhor responda à sabedoria trágica Esta resposta diferida pela contemplação festiva 12 Para maiores detalhes Cf abaixo p206211 30 do espetáculo faz da convicção o além da catarsis Apud Mongin 1997 p69 A filha de Édipo com seu agir promove um retorno às raízes primevas do herói grego que ao transgredir as leis atrai as desgraças as tormentas para si mas estabelece sua vontade contra o destino marcado pelos deuses e pelos homens Um dado importante Antígona não defende sua Pátria seu Estado a exemplo da Areté já definida dos grandes heróis gregos defende o irmão inimigo do Estado as leis da família as leis divinas não escritas Portanto está contra as leis mantidas por seu tio Creonte que usurpou o trono de Édipo pai de Antígona promoveu a morte de seus irmãos Polinice e Etéocles e pela sua lei aterrorizou e esmoreceu sua irmã Ismênia Esta diante do trágico encolheu escolheu o caminho da facilidade embora mais tarde reconheça isto Sendo assim no momento mais preciso Ismênia não cumpriu o papel da personagem trágica cabendolhe angústia maior o remorso e o pior o pessimismo Mongin 1997 p70 faz uma pergunta importante Como é que esta sageza prática indissociável de um pensamento sobre o caráter aporético da ação se manifesta na obra de Ricoeur Aponta primeiro uma implicação na vida da Cidade ao suscitar compromissos e tomadas de decisões Para ele Ricoeur jamais cedeu ao imperativo político viveu em campo de prisioneiros foi estimulado pelas reflexões do personalismo de Mounier e de PaulLouis Landsberg o trágico da época não é estranho a Ricoeur e não surpreende que este tema intervenha igualmente não já sob a forma de um debate sobre a tragédia e o caráter aporético do agir mas de uma angústia perante a história Ibid p 70 A resposta de Mongin é clara e pode estenderse também à história de vida de Mounier a seu compromisso com a Cidade e acima de tudo com o cristianismo vivo combatente contra as morais cristalizadas totalitárias que impedem a pessoa humana de se desenvolver plenamente Além do otimismo do refletir a tragédia do caráter aporético do agir do trágico e suas mazelas não se pode esquecer de outro termo importante que se afigura em tempos de desespero a esperança Hesíodo em Os trabalhos e os dias trata em seus versos do presente de Zeus a Prometeu e aos homens Para Lafer 2006 p53 a temática de 31 Prometeu e Pandora é o relato central dos Erga sobre os fundamentos da condição humana que se estabelece na Antiguidade grega Pandora aquela que recebeu todos os dons assume para si o ato punitivo de Zeus para com os homens A punição os males kaká está contida no jarro píthos Pandora executa o ato punitivo porque ela é a própria punição ao retirar a tampa do jarro deixando escapar as doenças nóusoi os pesares Kédea as dores a fadiga enfim os males da punição que constituem o mundo dos humanos Contase porém que Pandora deixou sozinha dentro do jarro a Elpís esperança préciência expectação espera depois de todos os males terem saído e de ela ter recolocado sua tampa Lafer 2006 p72 A Elpís é ambígua Está ligada a Prometeu em sua préciência e à irreflexão de seu irmão Epimeteu Ela é espera e esperança ilusão necessária simultaneamente pode ser o bem e pode ser o mal confiança ou desilusão Pandora é o fluxo da condição humana É a um só tempo o belo e o mal o prazer e a dor a vida e a morte o nascer e o perecer Mas ela traz consigo a originalidade ao inaugurar a raça das mulheres a fala Phoné que servirá de comunicação entre os homens tanto para o bem como para o mal Ibid p91 Portanto traz um dos elementos mais importantes da constituição humana o poder da comunicação como fundamento primeiro de uma raça pensante Diante dos dons divinos recebidos cabe ao homem ciente de um fim comum de angústia perante a história ser otimista fazer uso sempre do diálogo reflexivo Caso se estabeleça a desordem eis o compromisso consigo com o bem comum com a vida boa Eis também o trágico seguido do caráter aporético do agir Ao final de um otimismo trágico resta mesmo a esperança a boa Elpís Retornando a Mounier ao usar o termo otimismo trágico dirigese ao cristão Cobra deste na ação o sentimento vivo do cristianismo Pede que a pessoa represente seu papel diante da vida do trágico cristão da história questionando a realidade agindo sobre esta e assumindo todos os riscos Este otimismo trágico é pois a própria condição do cristão É ambiente de luta de não aceitação da comodidade do estático daquilo que o priva do crescimento humano Tal termo traz consigo o compromisso ético diante da onda do 32 absurdo do extremamente trágico do desespero da comodidade que assolava os homens de sua época Mesmo diante da crise da tragicidade da vida deveria o cristão cumprir sua missão Lucien Guissard Apud 1969 p5051 transcreve o que Emmanuel Mounier havia dito Quem escolheu o partido da inteligência não escolheu um caminho fácil Dever de testemunhar uma verdade transcendente no caminho da qual deverá combater os limites e as paixões de seus próprios amigos dever de se engajar numa ação que a cada passo ferirá as mais caras fidelidades não podendo recusar nem a um nem a outro nem concilialos jamais em harmonia perfeita Deve perpetuamente correr de um a outro acusado aqui de trair a disciplina de combate lá de ferir a verdade dilacerado na sua própria consciência e em cada uma de suas decisões Mas infatigavelmente deve segurar as duas extremidades da corrente de um lado lembrar sem ceder as exigências da verdade lutando com todas as forças contra a mentira e a exploração dos valores espirituais salvar salvar e salvar ainda quando o combate só deseja confundir odiar e destruir ao mesmo tempo escolher é sacrificar Libertarse e engajarse perpetuamente para edificar ao mesmo tempo uma outra uma apesar da outra a liberdade e a eficácia do espírito Este caminho é árduo este agir político implica uma dimensão histórica e espiritual A pessoa é transcendência e opção pode participar do plano de sua salvação cristã desabrochando no encontro consigo ou perderse em si na ambivalência de sua Elpís Havia em Emmanuel Mounier a vontade e a força como disse Ricoeur havia a crença no mistério e na esperança Paulo Freire combatente dizia que a esperança no sentido de sua ambiguidade poderia ser passiva simplesmente uma espera ou ativa Portanto para a segunda opção era preciso inventar o verbo esperançar ou quem sabe poderíamos tomar emprestado o termo otimismo trágico de Mounier Na obra Pedagogia da Esperança Freire 1997 p 56 escreve Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança no pessimismo no fatalismo Mas prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas à pura cientificidade é frívola ilusão Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais O essencial é que ela enquanto necessidade 33 ontológica precisa de ancorarse na prática Enquanto necessidade ontológica a esperança precisa da prática para tornarse concretude histórica É por isso que não há esperança na pura espera nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura que vira assim espera vã Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate mas sem o embate a esperança como necessidade ontológica se desarvora se desendereça e se torna desesperança que às vezes se alonga em trágico desespero Daí a precisão de uma certa importância em nossa existência individual e social que não devemos experimentála de forma errada deixando que ela resvale para a desesperança e o desespero Desesperança e desespero consequência e razão de ser da inação ou do imobilismo Ricoeur ao lembrar a obra Afrontamento Cristão afirma que só o cristão assaz forte e duro é que poderia retrucar a Nietzsche Pouquíssimos tiveram a coragem de criticar a cristandade Finada cristandade e apontar caminhos acima de tudo trilhandoos Por isso Lucien Guissard 1969 p56 acredita que a transparência de Mounier não é mostrada nos artigos e nem em seus livros mas diante de sua fidelidade cristã Mounier foi homem livre e altivo que não desanimou frente ao trágico cristão afrontou esperançou e só se curvou diante de Deus 2 Fontes de inspiração Para Mounier conduzirse às fontes inspiradoras por onde o personalismo se abeberou foram de suma importância os contatos e as orientações de seus mestres inicialmente o ajudaram a conhecer e a perscrutar certas premissas fundamentais que lhe serviram de base para a construção de seu pensamento humanista Viuse anteriormente que Mounier adentra a filosofia através de seu apostolado tendo por primeiro mestre Jacques Chevalier que em suas conferências introduz o discípulo ao pensamento de HenriLouis Bergson Este pretendeu escapar do reducionismo impositivo sobre as dimensões humanas subjetivas do reducionismo da interioridade da consciência da liberdade dos direitos inalienáveis da pessoa ou seja era necessária uma nova metafísica 34 que ultrapassasse os simbolismos da linguagem e que na intimidade do real concreto no reino da duração pura comunicasse com o eu profundo pois aí se encontra uma ocupação séria do espírito No Personalismo de Mounier encontramse os principais aportes do espiritualismo bergsoniano como a renúncia a um sistema de pensamento acabado os esforços para unir razão e realidade uma concepção de consciência como memória e história e a necessidade de um novo método filosófico diante da crise da civilização Chevalier ao ter contato com Mounier logo percebe a capacidade o empenho o interesse de seu discípulo dessa forma se estabelece mútua confiança Travavam numerosas conversas tanto referentes a assuntos pessoais quanto aos estudos debates conferências e cursos Chevalier 1926 apud Moix 1968 p6 anota em seu diário a respeito do aluno Alma dócil ardorosa transparente é a de Mounier Escapa ao duplo perigo da dispersão e do ascetismo e sobretudo dessa terrível segurança que se tem aos vinte anos de ter feito uma volta completa em torno dos problemas de tudo ter visto tudo compreendido e tudo acabado Chevalier preocupase num primeiro momento em oferecer ao aluno um método rigoroso e seguro Candide de Moix chega a dizer que talvez venham daí as preocupações com uma objetividade voltada para o sentido da reflexão profunda inevitavelmente acompanhada do compromisso da ação tanto cobrado por Mounier13 Não se deve pensar que o aluno recebia tudo passivamente pois era de personalidade forte Mas sendo maleável tudo o que recebia assumia para si e o transformava Um dia após a morte de Mounier Chevalier testemunhou fornecilhe um viático duplo e único 1º antes de tudo princípios firmes e inconcussos e uma orientação bastante precisa desde o início para um fim mais espiritual que intelectual um sentido no qual crer e amar com toda a alma 2º como instrumentos intelectuais não lhe dei fórmulas conceitos nem palavras em que se exprimiam meu modo de ver e traduzir a verdade ele devia forjar seus próprios instrumentos o verdadeiro discípulo não é o que 13 Severino 1983 p XI XII diz que para Mounier filosofar não é criar um sistema objetivado de conhecimentos mas assumir uma atitude reflexiva diante da existência É tomar uma posição intelectual diante do ser da existencialidade total numa tentativa de interrogála apreendêla compreendêla interpretála e até mesmo de orientála 35 repete as fórmulas mas o que propaga um movimento recebido 1950 apud Martins 1997 p42 Apesar da ruptura com seu mestre exatamente por pensar e agir com independência o discípulo foi fiel até o fim no que se refere ao testemunho acima quando escreveu seu primeiro artigo este dedicado a Jacques Chevalier declarandoo mestre de espírito eminentemente católico ou seja humano e universal Mounier 1963 tIV p420421 No período compreendido de 1927 a 1933 encaminhado por Chevalier Mounier esteve aos cuidados do padre Pouget sob sua direção e assistência Encontravamse duas vezes por semana e debatiam temas diversos sobre mística a Bíblia os santos história das religiões meditação e ação Daí a aquisição de sua sólida formação teológica que Mounier não esqueceu e que para ele foi uma revelação Em uma carta a Jacques Chevalier escreve Jamais lhe poderei agradecer suficientemente o fato de me haver dado a oportunidade de conhecer o Pe Pouget Quando me acho em sua presença pareceme estar em face da verdade Ibid p428 Nas férias de 1928 a 1929 Mounier aprofunda os estudos sobre Charles Péguy Juntamente com dois colegas Marcel Péguy e Georges Izard passa a ter apoio e incentivo de Jacques Maritain Nas palavras de Moix 1968 p10 Quando se conhece Péguy vaise direto a Bergson Dáse então encontro pessoal com Bergson A obra sobre Péguy é editada em 193114 De 1931 a 1932 Mounier é solicitado por Maritain a participar em sua casa em Meudon nas reuniões mensais de intelectuais católicos protestantes e ortodoxos Notase claramente em Mounier a influência de Charles Péguy O jovem discípulo o vê como exemplo a ser seguido um homem que pensa e age que reuniu em torno de si livres pensadores católicos e protestantes que não se entregavam às trapaças e isto é comprovado por Mounier quando se refere ao caráter de seus orientadores Maritain e Bergson15 Péguy era um homem do 14 A publicação do livro sobre Péguy fez parte de uma das coleções Le Roseau dor que era dirigida por Jacques Maritain 15 Mounier procura seguir as linhas de pensamento de seus mestres e daqueles que os rodeiam Importante lembrar que Jacques Maritain é muito próximo de Bergson e também de Léon Bloy escritor profeta crítico ferrenho do espírito burguês que também inspira profundamente Mounier Bloy escreve sobre Maritain Grande sucesso do meu querido afilhado Não sei só Deus o sabe se Jacques é capaz de um movimento de gênio Mas certamente tem todos os dons de um homem superior Suas conferências de pura filosofia são 36 povo que passa a ser seu norte guia alma de fiel testemunho comprometido espírito cristão em revolução contínua Candide de Moix 1968 p14 escreve O exemplo de Péguy e a amizade benevolente de Maritain serão dois sólidos apoios para Esprit16 Mounier a exemplo de Péguy funda em outubro 1932 a revista Esprit que passa a ser o veículo o órgão oficial do personalismo Esta assume diante deste movimento o sentido da experiência dialógica a posição de portavoz do projeto de renovação política e espiritual frente à crise generalizada Cogitouse que Mounier imitou Péguy Quando entrevistado por Dominique Auvergne em 1938 Mounier confirmao como um guia No entanto afirmou que jamais quis ressuscitar os Cahiers de la Quinzaine17 anexar Péguy ou continuálo pois Péguy estava além dele Para Candide de Moix 1968 p12 Péguy e Mounier são homens bem diferentes e um paralelo entre suas obras seria muito difícil de estabelecer e mais ainda pouco convincente Parentes próximos pelas suas atitudes em face da vida é sobretudo na crítica da Desordem Estabelecida que eles se encontram Apesar de tudo Péguy permanece sendo um homem do século XIX Mounier ao mesmo tempo em que combate as desordens do mundo moderno abrese aos valores novos Assim tem ele razão de dizer que não imitou Péguy Este nele influiu pelo melhor de si mesmo pela sua universalidade Apontoulhe a direção geral Mounier ao ter contato com as obras de Péguy sentese embriagado no que se refere ao Mystère de Lesperance Cf1963 t IV p 446 Depois de Péguy confessa viver possuído por Joana dArc De seu mestre mantémse o espírito cristão e a necessidade de revolução contínua Em um texto de radiodifusão 1945 escreve Posso dar o testemunho pessoal de que a descoberta de Péguy lá por volta de nossos vinte anos contou muito com a decisão que nos levou a buscar em torno da revista Esprit o laço entre as tradições revolucionárias francesas e suas grandes tradições espirituais Mounier apud Moix 1968 p11 de uma admirável clareza com achados os mais brilhantes Conferências de Jacques Maritain sobre Bergson Apud Faria1968 p 205 16 Cf p 10 acima 17 Tratase de uma revista fundada por Charles Péguy em 1900 que reuniu livres pensadores agnósticos e judeus revolucionários com grande repercussão no meio intelectual francês com o propósito de denunciar e agir sobre as desordens de sua época 37 No encontro com seus mestres com a filosofia a teologia com o espírito do cristão revolucionário Mounier aprofunda seu conhecimento diante das exigências do mundo cobra de si um movimento uma ação pessoal que imprima sua marca diante da história Cristão convicto e fervoroso acreditou no cristianismo vivo Pierre Ganne 1971 p11 ao prefaciar a obra O compromisso da fé escreve Outra não é esta fonte senão sua fé cristã e a fidelidade secretamente heróica que ele viveu diaadia até sua morte No rastro de Péguy Mounier critica o espiritualismo o idealismo e o intelectualismo desencarnado Questiona a concepção pessimista da pessoa humana desprezo do mundo e pela vida material a dependência da dignidade diante da graça pela graça de Deus é que o homem desenvolve sua condição de criatura livre Ao retomar o tomismo Mounier desenvolve em sua Estrutura do Universo Pessoal o pensamento sobre a Existência Encarnada que transcende a natureza que se abre ao diálogo à liberdade e supera a dicotomia corpo alma da filosofia antiga e medieval Mounier redimensiona o problema do livre arbítrio ao considerar o homem como uma unidade corpoespírito homem ser nomundo e pensa que o cristianismo interessando o mundo todo pela história do Verbo e da Cruz estabeleceu uma amizade entre o homem e a natureza O mundo sensível irradia a mesma luz que penetra o coração do homem e sustenta sua vida Élhe isto necessário para exercitar sua inteligência e remontar a seu Deus Mounier 1971 p26 Para ele o homem encarnado no mundo precisa entender que está tomado em um corpo em um determinado tempo histórico e lugar Mas não é situado prisioneiro como imaginavam os pessimistas da carne desde Platão até esse jansenismo Ibid p29 Sendo o homem indivisivelmente corpo e espírito Mounier cita São Francisco ao referirse à frase Meu irmão corpo mostrando a relação de fraternidade o corpo como meu primeiro próximo Para Mounier posso arrastar meu corpo próximo às atividades de minha pessoa para cooperar na obra da Redenção ou trair o universo inteiro ao moverme por leis mecânicas de um espetáculo objetivo e indiferente Muitos cristãos se tornaram insensíveis a essa traição de tal modo são dóceis 38 com a sensibilidade moderna à influência do objetivismo científico e do idealismo Mounier 1971 p30 Por isso Mounier aproximase de outra fonte de inspiração para propor ações para o problema o marxismo O homem para ele é pessoa mergulhada na natureza mas ao mesmo tempo o homem é corpo e é integralmente espírito Dos seus mais primários instintos como comer reproduzirse ele é capaz de passar às artes subtis como da culinária à arte de amar Cf Id 1950 p 1920 Porém em sua existência diante da multiplicidade de fatores como o geográfico climático econômico político cultural situações incidentes na estrutura existencial e face às contingências da vida o homem pode alienarse Frente a um capitalismo burguês Mounier Ibid p21 afirma que a miséria assim como a abundância esmaganos o marxismo pensa bem quando diz que o fim da miséria material é o fim de uma alienação é etapa necessária para o desenvolvimento da humanidade Complementa dizendo não ser neste ponto que terminam as alienações nem mesmo num plano natural Não é somente pela denúncia e crítica mas pela práxis que o personalismo aproximase de Marx Tal relação é notada pela dificuldade de discernir nas obras de Mounier os conteúdos exclusivamente teóricos do marxismo pois para ele teoria e prática devem converterse em ação Por isso Mounier proclama o homem não como um espectador da vida mas como ator crítico cabendo a ele pressionar a história sempre em um contexto de pensamento e ação devendo ser um criador a todo o momento Diz ele Importa a todo custo que façamos alguma coisa de nossa vida Não o que os outros admiram mas esse impulso que consiste em imprimirlhe o Infinito 1963 tIV p430 Mounier tinha compreensão da força das ideias marxistas e jamais subestimou sua importância mas travou vários debates com o marxismo O personalismo é o único terreno onde um combate honesto e eficaz pode ser travado com o marxismo 1961 tI p508 Sabia de sua extensão e dizia ser o marxismo mais que um método ambicionava ser uma explicação do homem pretendia ser um humanismo e diante de tanta desordem vinha oferecer esperança a um povo exaurido 39 Por toda parte onde lhe é possível exprimirse tem o marxismo a confiança do mundo da miséria Por pouco profundas que aí sejam as suas raízes certas reviravoltas bem o mostraram ele simboliza para esse mundo atualmente a libertação dá às mais legítimas reivindicações a maior riqueza humana deste tempo uma forma que julga solidária de suas esperanças Não se pode contestar aliás que os partidos marxistas por muitos danos capitais que lhes tenha de imputar não hajam grandemente contribuído para a inteligência e o progresso da organização social Mounier 1961 tI p509 Para os marxistas afirma Mounier a vida espiritual advém das condições sociais e econômicas portanto rejeita o cristianismo e qualquer forma de realismo espiritual pois não há espaço algum na sua visão ou na sua organização do mundo para uma forma última da existência espiritual que é a pessoa e seus valores próprios a liberdade e o amor Portanto a pessoa nesta perspectiva não é de uma realidade existencial primeira mas um instrumento voltado ao serviço das forças coletivas O marxismo prepara o homem de duas formas pelo ateísmo recusando as evasões espiritualistas e pelo trabalho fortemente firmado pelas razões científicas e industriais Mas o sentido desta libertação e o instrumento da transformação dependeriam dos proletários que deveriam ser conscientes da sua missão Porém por não estarem plenamente conscientes o partido representa seus interesses e os dirige Mounier diz tratarse de uma doutrina materialista ateia mas alerta para não mergulharmos na simplicidade de tal ideia e frisa que não é tão simples afirmálo pois seu nascimento advém de uma época em que o espírito fora traído e o materialismo exprimia em seu primeiro ato apenas um desejo de viver um realismo plenamente humano18 Com toda razão afirma o primado econômico Geralmente só desprezam o econômico aqueles que deixaram de ser perseguidos pela neurose da falta do pão cotidiano Em vez de argumentos um passeio pelos subúrbios talvez fosse preferível para nos convencer Na ainda tão primária fase da história em que vivemos as necessidades os hábitos os interesses e preocupações econômicas determinam massivamente os comportamentos e opiniões dos homens Daí não resulta que os valores econômicos sejam exclusivos ou superiores aos outros o primado do econômico é uma desordem histórica de que precisamos nos libertar Mounier 1950 p 119 18 Texto de radiodifusão 20 de agosto de 1945 Cf Moix 1968 p 243 40 Quanto ao materialismo diz pensar de uma forma mais radical do que este que designa uma filosofia que insistindo exatamente sobre um humanismo do trabalho e da função produtora considera como ilusórias outras dimensões não menos essenciais do homem notadamente a interioridade e transcendência Mounier 1962 tIII p14 Novamente procura reter a atenção e alerta para que não confundamos o materialismo de Marx com o de seus discípulos marxistas19 Mounier expressava simpatia pela concepção marxista e a via como uma doutrina econômica e política que ao invés de ser tratada como estranha nas faculdades deveria ser olhada como aliada nas instituições de ensino Quanto às críticas voltadas à pessoa afirma que a falha essencial do marxismo é ter ignorado a realidade íntima do homem a da vida pessoal No mundo dos determinismos técnicos como no mundo das ideias claras a Pessoa não tem lugar 1961 tI p519 Segundo Mounier o pensamento de Marx parece ter se aproximado da dialética personalista na crítica da alienação exatamente quando chega a retratar quimeras humanas Alienação do operário diante do trabalho que lhe é estranho do burguês nas posses que o possuem o do utente num mundo de mercadorias desumanizadas pela avaliação comercial Ibid p519 Em sequência complementa com uma visão personalista e declara tratarse de uma despersonalização quer dizer de uma desespiritualização progressiva que substitui um mundo de liberdades vivas por um mundo de objetos Ibid p519 Neste ponto o autor acredita estar definida a oposição ao marxismo pois diferente do fascismo o marxismo prega o otimismo do homem coletivo ocultando o pessimismo radical da pessoa O marxismo presume ser o indiví duo incapaz de se transformar por conta própria mas a massa esta se torna criadora portanto é capaz de dirigir e conduzir sob suas estruturas o indivíduo 19 Moix 1968 p243 relata Marx diz numa carta que ele quase falou em realismo dialético em referência ao termo materialismo Tal materialismo se aproximaria da perspectiva cristã que condena tão severamente quanto Marx o falso espiritualismo Notase de passagem que foi lá pela década de 30 que foram publicados na França os escritos de juventude de Marx muito menos materialista que o marxismo corrente Tais escritos exerceram grande influência sobre os espíritos ciosos de voltarem às fontes do materialismo Quantas vezes não chamou a atenção Mounier para o que Marx diz de seu humanismo que difere do idealismo tanto quanto do materialismo e é ao mesmo tempo a verdade que nos une a ambos O marxismo denuncia certo idealismo e certo espiritualismo burguês Mas o cristianismo o faz também apesar de ser em nome de outros princípios 41 Para tal concepção numa ótica personalista a massa é um instrumento de formação da pessoa e a ideologia um instrumento de formação de massa a pessoa tornase aquilo a quem é imposta uma ideologia A ditadura marxista não pode deixar de ser uma ditadura racionalista pois ela só conhece a adesão que está no termo da formação e desconhece a colaboração radical da pessoa o valor da prova Mounier 1961 tI p520 Na visão de Mounier somente a pessoa é responsável pela sua salvação somente a ela cabe a missão de levar o espírito aonde este tenha desaparecido Então conclui que o marxismo aproximase da visão persona lista pois quando uma espiritualidade encarnada é ameaçada deve primeiro se libertar e libertar os homens da civilização que os oprime não se refugiando em medos remorsos ou exortações Além de que não há civilização e cultura humana que não sejam metafisicamente orientadas Só um trabalho que vise para além do esforço e da produção uma ciência que vise para além da utilidade uma arte que vise para além da aceitação e finalmente uma vida pessoal em que cada um se devote a uma realidade espiritual que o transporte para cima de si mesmo são capazes de sacudir o peso de um passado morto e criar uma ordem verdadeiramente Ibid p486 Mounier reconheceu o trabalho de Marx e formulou várias críticas em debates sobre todos os âmbitos da estrutura da revolução marxista Só para se ter como ideia na revista Esprit n 145 1948 p7051015 foram abordados os desvios ideológicos e doutrinários na interpretação do projeto e da doutrina comunista com ênfase nas respostas de Marx Portanto sempre assumiu uma postura construtiva num diálogo firme e honesto revelando o seu sentimento personalista cristão ao dizer Temos nossa maneira própria de ser marxista Isto porque a revolução marxista segundo Mounier desconhecia a vasta realidade do Universo pessoal interpessoal e a Transcendência Para este o realismo cristão seria o único a garantir esta tônica Com referência à relação homemnatureza concebida pelos marxistas como a relação de senhor para escravo de dominação para o realismo cristão situarseia de outro modo o homem não foi criado para dominar as coisas mas para um efetivo diálogo com elas pois as coisas não são objeto de desprezo idealismo nem somente de exploração materialismo grosseiro mas um sacramento natural pelo qual o homem voltase para Deus Cf Moix 1968 p249 42 Reafirma que a massa contribui para a existência mas não para movimentos criadores os valores que dela advêm partem das pessoas que a compõem ao passo que o marxismo afirma que a revolução de massa é criadora dos valores revolucionários Mounier 1961 tI p520 acrescenta que não é individualizando os dados de uma ciência abrandada que se passará das condições de existência a este centro inacessível da Pessoa de onde todo procedimento recebe significação e responsabilidade Para ele a pessoa é quem imprime a marca do homem a todos os ardis da sua mão ou do cérebro O personalismo interagiu com a contribuição crítica do marxismo mas propôs ir além ou seja imprimir a presença da pessoa um homem encarnado na história voltado para os valores que transcendem a história sob a percepção do que chamou presença real do ser dos seres desta presença que é o mistério o mais emocionante da vida todo o destino do humanismo e da humanidade com ele será decidido em torno de sua restauração ou de sua recusa definitiva Moix 1968 p255 Outra fonte inspiradora o existencialismo deixou marcas profundas no pensamento de Mounier Relembra este que o existencialismo apesar de ser tão atual advém de uma longa galeria de antepassados20 ressurgiu como fruto da crise contemporânea em que por entre as cinzas do holocausto dos campos de concentração do aviltamento das almas os homens se lançam ao desespero por entre gritos dos existencialistas ateus pósNietzsche que dizem Deus está morto Há contudo os existencialistas cristãos que se empenham na tentativa de fazer renascer o cristianismo autêntico que se perdera nos caminhos do comodismo e dos valores inconsistentes da burguesia 20 Mounier 1947 p714 ao retratar os existencialismos em suas raízes menciona o apelo socrático em oposição às divagações cosmogônicas dos físicos da Jônia com o imperativo interior conhecete a ti mesmo a interpelação dos estóicos ao autodomínio a não sistematização da fé de São Bernardo contra Abelardo os temas sobre a vida e a morte de Pascal Kierkegaard contra o sistema a sistematização do sistema a que se opõe a Existência Absoluta com destino semelhante Maine de Biran que travou combate com as filosofias sensualistas do século XVIII Até aqui chegouse ao tronco da árvore a galeria dos antepassados Depois a árvore se divide em duas ramificações fenomenológicas de um lado o existencialismo ateu que vai de Heidegger a Sartre e Nietzsche que surge como outra corrente Simétrico de João Batista quis ressoar o fim da era evangélica anunciando a morte de Deus aos homens que após o terem assassinado não ousavam assumir Do outro lado do ramo temos Péguy Blondel La Berthonnière Bergson Marcel Jaspers Landsberg Scheler Barth Buber Berdiaeff Chestov Soloviev e o personalismo 43 Inaugurase assim algo a que a filosofia clássica não dava importância e a que a filosofia da existência abriu as portas a problematização do outro colocando em foco a crítica da alienação Mounier concorda que personalismo e existencialismo são duas filosofias existenciais e convergem em um ponto fundamental lutar contra o sistema Ressalta por variadas vezes a riquíssima atuação do existencialismo ao oporse à alienação sob todas as formas do divertissement de Pascal à máfé de Sartre Afirma que o personalismo é uma filosofia da existência antes de ser uma filosofia da essência Personalismo e existencialismo não iniciam pela teoria do conhecimento pelos sistemas de pura essência o que torna o homem impessoal É preciso existir plenamente antes de tudo Daí a necessidade de uma fenomenologia da existência para se chegar ao compromisso para se entender que corpo e alma interagem com a história com os homens e transformam o mundo Ao se reparar na árvore existencialista nas primeiras páginas da obra Introduction aux existentialismes 1947 p1011 observase que Mounier insere o personalismo entremeio a Gabriel Marcel e Jaspers indicando haver comunicações estreitas entre eles ao passo que apesar de estarem na mesma árvore nutrindose da mesma seiva o personalismo de Mounier difere do de Sartre Não somente por se tratar no caso de Sartre de um existencialismo ateu mas também pela visão do absurdo um prazer do nada e naquilo que afirma Cousso 1969 p86 Ao contrário ele Mounier pensa como Gabriel Marcel que a esperança é um componente essencial do estatuto ontológico do homem Mounier faz referência ao trágico na vida pessoal admitindo sua existência o que no entanto difere do pessimismo Cf Cap I Subseção 11 isto é o fato aquilo que Heidegger e Sartre chamaram de facticidade Pensa Mounier que o homem deve perceber que ele é obra do ato de amor de Deus que não o fez ser pronto e acabado mas ser em construção que depende do próprio homem Candide de Moix 1968 p201 complementa que o homem encontrase dilacerado entre um absoluto e sua realidade miserável pela provação imediata de sua situação concreta não pode ele deixar de receber primeiramente o choque transtornante de seu absurdo aparente de sua solidão frágil e da incoerência das suas descobertas No entanto sempre 44 caminhando em paralelo com o mistério provocador o cristão crê que todo existente é um sinal da superabundância do amor de Deus Quanto ao existencialismo ateu este mergulha na facticidade do homem Aí está o ser sem razão estupidamente para nada Moix 1968 p201 No quesito relacionamento humano há forte oposição entre Mounier e Sartre Para Sartre esta relação é sempre realizada no conflito o olhar do outro é sempre hostil é a mortificação cada um de nós é necessariamente ou um tirano ou um escravo O outro com seu olhar rouba o meu universo Diante dos outros minha liberdade é prisioneira a escolha do outro me paralisa e o amor é uma doença Mounier 1950 p35 Mounier diz ser inútil indignarse visto que negar tal quadro seria falho uma vez que o mundo dos outros não é um jardim de delícias Ibid p60 mas de provocação à luta à adaptação ao risco ao sofrimento diante dos quais o instinto de autodefesa reage ora afastandose dos contatos ora tornando os outros objetos Então o alter tornase alienus estranho a mim próprio alienado Mas diante dessa visão é possível e necessária a comunicação e a comunhão autênticas entre os homens A anulação da pessoa nos aprisiona Quanto a Sartre no que se refere à questão do olhar Mounier 1947 p100101 diz que este não aprofundou muito tal assunto pois o olhar é a janela mais direta aberta para o ser pessoal o caminho central para a invocação de pessoa para a pessoa Executor de obras vis o olhar imobiliza e se apossa Mensageiro do interior soberano ele chama e oferece Jean Lacroix por sua vez reafirma a visão existencialista em que na ótica de Sartre homens solitários com suas liberdades incomunicáveis lutam em um mundo desprovido de qualquer tipo de finalidade ou racionalidade não havendo uma filosofia da história A cada instante tudo é inteiramente reposto à prova O mundo não tem outro sentido a não ser o que cada indivíduo dá a si mesmo a cada momento com seu projeto temporal Lacroix 1972 p54 Na medida em que Sartre acredita que o homem é apenas aquilo em que se faz e seus fins não são guiados de fora sendo ele mesmo que os determina quer dizer que o homem é liberdade total e o outro é para ele um inferno Alino Lorenzon acompanha Mounier e diz 45 A Identidade e a alteridade pessoais se constroem no afrontamento e na experiência do outro O melhor espelho para o olhar do homem é o olhar de um outro homem Um ser entra no campo imediato de minha vida e tudo é posto em questão unicamente por essa presença O outro vem desinstalar meus hábitos e minhas convicções Meu equilíbrio interior não é mais o mesmo de antes O outro é uma interrogação no meio do caminho Eu preciso ser questionado pelo outro Eu preciso ser interrogado por uma liberdade diferente da minha a fim de re descobrir minha liberdade As perguntas que me são dirigidas pelo outro por suas palavras ou pelo seu olhar são diferentes daquelas levantadas pelo mundo dos objetos É que o outro é mais do que uma simples natureza A presença do outro contrariamente ao pensamento sartriano não agride minha liberdade mas é uma janela para o mundo e um convite ao despertar de minha consciência Lorenzon 1996 p3031 Nas palavras de Candide Moix as duas filosofias diferem de forma profunda no que diz respeito ao trágico e o desespero No fracasso total da comunicação na impossibilidade de fundar uma comunidade volta Sartre ao individualismo à negação da natureza humana à negação da história à ideia de uma liberdade sem limites e por vezes sem finalidade à dissolução da verdade na subjetividade à desconfiança excessiva da razão ao niilismo filosófico e sobretudo à recusa sistemática da objetividade que termina na recusa das mediações da ciência da técnica da organização e marca uma volta ao idealismo Moix 1968 p222 Mounier sempre procurou trilhar caminhos com a intenção de uma nova civilização uma sociedade de homens livres dentro de um pluralismo sempre baseado no diálogo e na comunicação por isso simpatizava com o marxismo e o existencialismo Pelo primeiro dizia ele é vencida a alienação material colocando o homem no centro da história e pelo segundo a alienação espiritual O personalismo procurava assimilar as suas dimensões humanistas cristãs que se efetuam no conceito de compromisso e que consistia em uma constante dialética encarnação e transcendência constituindo a natureza da pessoa que é serqueestánomundo e ao mesmo tempo é serparaalémdo mundo criando simultaneamente uma consciência crítica Para Mounier o marxismo era mais um humanismo do que um naturalismo o existencialismo contemporâneo era indiferente com a integração da existência objetiva Dizia O destino dos anos próximos é sem dúvida o de reconciliar Marx e 46 Kierkegaard Mounier 1947 p90 O personalismo assume como missão esta reconciliação uma revolução social e interior ocorrendo no exato momento em que se firma a pessoa em seu compromisso 3 Fundamentação teórica metodológica e histórica do personalismo Mounier tem seu pensamento norteado pela perspectiva fenomenológica aliada ao contexto histórico Sempre tentou afastarse dos possíveis erros de adequação entre o personalismo e o sistema Ao apresentar o Programa do movimento Esprit para 1933 alerta sobre o perigo das construções ideais e da crítica fragmentária salienta ser preciso evitar dois erros fundamentais o dos belos sistemas distanciados da realidade e dos acontecimentos assim como o da crítica superficial e sem eficácia Ao retratar a vida de Mounier Cf acima p 911 verificamos sua posição em referência a sua experiência universitária na Sorbonne quando desistiu dos estudos porque se sentia afastado dos problemas de ordem humana para ele a postura fundamental era mais humana do que propriamente intelectual Via desta forma na vida acadêmica uma atitude intelectual abstrata e idealista que não era portadora dos acontecimentos e dramas pelos quais passava toda a Europa Vale lembrar para não nos envolvermos em considerações rudimentares e simplistas porque Mounier não descartava de forma alguma a questão da fundamentação teórica como se comprova através das palavras de Alino Lorenzon 1993 p18 A novidade de seu método reside por conseguinte nesse realismo humano o único que pode estabelecer a ponte entre a pessoa e o mundo Recusava sim o método dedutivo dos dogmatismos e o empirismo dos realistas assim como as construções lógicas longe da realidade humana lançadas pelos moralistas doutrinários e espiritualistas Para ele o personalismo não tratava apenas de analisar ou de criar uma estrutura mas sim de exercer mudança da realidade O personalismo não é um sistema O personalismo é uma filosofia não é apenas uma atitude É uma filosofia não é um sistema Não foge à sistematização Portanto o pensamento necessita de ordem conceito lógica esquemas unificantes não servem apenas para fixar e comunicar um 47 pensamento que sem eles se diluiria em instituições opacas e solitárias servem também para perscrutar essas instituições em toda a sua profundidade são simultaneamente instrumentos de descoberta e de exposição Mounier 1950 p6 Antonio Joaquim Severino 1983 p22 indica o que há de mais forte nesta afirmação o que mais convence é a presença significativa de uma metafísica coerente em sua evolução desde os primeiros escritos até os seus últimos livros Sempre houve por parte de Mounier a resistência em tornar o personalismo um sistema fechado Jean Lacroix 1972 p74 compartilha tal pensamento ao dizer também não deixar de lado os sistemas assim como nem justapor sistemas diferentes nem adotar um sistema fechado e definitivo Todo sistema é verdadeiro enquanto concebido como uma visão do real e falso na medida em que essa visão pretende ser total Mounier adotava portanto uma ótica kierkegaardiana não aceitando o enfoque lógicoidealista hegeliano criticando a epistemologia racionalista que se pretendia objetiva universal e impessoal sendo para ele uma corrente oposta à existência pessoal Criticou também a redução da pessoa proposta pelo marxismo ao seu serem situação numa natureza préhumana que se lançava numa visão naturalista Severino expressase com justeza quando aponta que o personalismo deve ser encarado não como um sistema filosófico mas como uma atitude autenticamente filosófica Isto se deu no momento em que houve para Mounier a necessidade de compreendêla para empreendêla pois de início tratavase de algo implícito só mais tarde o Personalismo se afirmou como atitude filosófica explícita e como esboço de uma filosofia estruturada coroando a obra de engajamento histórico do movimento que inspirava 1983 p128 Nos termos de Paul Ricoeur o cogito inicial da filosofia de Mounier era a naturezaexistencial um projeto em elevada instância civilizador e sua intenção não era somente a de analisar uma noção descrever uma estrutura mas pressionar a história através de um certo tipo de pensamento combatente Lorenzon 1996 p18 Não esqueçamos que sua emergência se deve à crise de civilização e que ele ousou visar a algo além da escola filosófica Jean Lacroix 1966 p3 ao prefaciar uma obra de Mounier Communisme anarchie et personnalisme frisa É verdade que o diretor 48 do Esprit construiu sua filosofia pouco a pouco no contato com o acontecimento acontecimentos estes colhidos do cotidiano em nome da pessoa o que exigiria portanto uma investigação complexa que métodos racionalistas iriam limitar em sua dimensão filosófica Desta forma Severino pode afirmar haver Mounier intuído uma nova versão da filosofia inserida pela necessidade dialogal no confronto com o homem os acontecimentos e sua existência concreta no mundo Então careceu da exigência de uma reformulação epistemológica Esta reformulação da epistemologia é exigida pela condição especial do objeto da reflexão filosófica a pessoa humana Sendo esta simultaneamente imanente e transcendente no seu modo de ser ela se constitui até certo ponto como um mistério pouco transparente aos olhares da razão A condição existencial da pessoa desnorteia pois não oferece ao filósofo uma totalidade sistematizável no nível da evidência lógica mesmo de uma lógica dialética Severino 1983 p129 Portanto para Mounier não se pode explicar a pessoa na sua totalidade pois é um ser não acessível diferente dos objetos que se põem à prova através da ciência positiva e a filosofia racionalista Logo encontrase a necessidade da reformulação do pensamento filosófico o filosofar não é tido como um conhecer mas como um despertar para a existência autêntica Ibid p133 pois essa antropologia exige uma nova metodologia embasada em uma experiência vivencial da própria existência pessoal Acompanhando ainda Severino este evidencia que Mounier empreende um novo projeto de revolução personalista e comunitária mas o sentido da perspectiva epistemológica da pessoa bem como questões de metodologia filosófica não era o ponto de vista de Mounier porém esta atitude fenomenológica que não se explica em termos de definição gnoseológica é que na obra O Personalismo seu autor sintetiza uma antropologia de um ponto de vista metafísico daí o desnorteamento filosófico a que se alude Por outro lado no Tratado do Caráter a concepção da ideia de pessoa é abordada em contraposição à psicologia o que vem a desnortear o cientista talvez Mounier respondesse que esta omissão é intencional e adotada justamente por causa do verdadeiro rigor filosófico Severino 1983 p133 49 Mounier partilha também seu pensamento com Gabriel Marcel um dos representantes do existencialismo católico que contribuiu significativamente para a concepção metodológica na abordagem da pessoa humana Para ele esta não é um problema mas um mistério não devendo ser estudada com os instrumentos da ciência em uma investigação objetiva o que reduziria um Ele a um objeto ou coisa Por isso sua compreensão deve ser buscada na interrogação metafísica respeitando sua originalidade tratandoa como pessoa aproximandose dela como de um Tu ou seja sempre no diálogo e no amor Participa também quanto à definição do homem encarnado não se referindo a uma alma um espírito encarnado em um corpo mas à pessoa humana encarnada no agir Para Gabriel Marcel e Mounier o Eu tornase pessoa somente na medida em que se dedica à ação assumindo a responsabilidade dos seus próprios atos Cf Mondin 1983 p290 Daí a ética da responsabilidade individual que reverte depois para outra dimensão a comunitária Mounier pretendia conferir significado ao personalismo como uma fenomenologia existencial que se situava entre o radicalismo objetivo da ciência e o subjetivismo da metafísica ou seja a tentativa de descrição da existência da pessoa e do mundo sem se vincular a nenhum critério ordenador de natureza epistemológica nem mesmo às exigências redutoras da fenomenologia husserliana Severino 1983 p145 Tratavase de reflexões seguidas de praticidade um projeto concreto de renovação social Mounier sabia de sua dificuldade e ao preocuparse em se situar contra as pretensões de uma razão idealista e positiva aproximavase de Kierkegaard e Bergson e das perspectivas do existencialismo criandose então uma nova necessidade para o pensamento Para além de todo o contexto préexistente talvez aí se encontre o verdadeiro rigor filosófico Mounier conhecia os limites da abordagem racional mas jamais propôs o delírio em sua substituição Apenas quis eliminar do papel da razão a máfé em querer esquematizar estruturar e fixar em moldes geométricos o que é essencialmente vida duração descontinuidade e heterogeneidade Apesar disso a consciência contando com a razão devia buscar compreensão desta plenitude existencial da pessoa embora a explicação radical parecesse inacessível Por isso Mounier reflete sobre o homem servindose de uma fenomenologia que aliás 50 permitirá acesso a uma ontologia Acaba indo muito além do que lhe possibilitam escrúpulos metodológicos e epistemológicos explícitos Severino 1983 p146 Mounier sempre foi voltado à meditação e à reflexão mas também voltado ao movimento e à ação Não se entendeu com a filosofia de sua época contudo não ficaria imóvel diante da grave crise pela qual passava a civilização ocidental Sua dúvida metódica era de caráter histórico e cultural uma busca por um movimento civilizador resultado de seu estilo reflexivo cuja novidade de método consistia nesse realismo como meio de estabelecer contato entre a pessoa e o mundo Este contato nos primeiros anos do movimento foi de confronto e por assim dizer considerado o menos filosófico possível mas viria a se explicitar numa reflexão profunda com o desenrolar dos acontecimentos pois os últimos dias de Mounier foram dedicados à mais profunda reflexão sempre à luz de uma metafísica completa e que infelizmente foi interrompida por sua morte Ibid p24 O método porém já era aplicado em todas suas obras anteriores Ele dizia que antes de nos lançarmos à busca do verdadeiro há a necessidade preliminar de uma regra de higiene ou seja uma renúncia a tudo que nos impeça a aproximação de nosso espírito com a verdade cabendo nos afastar dos processos prontos e já formulados como resposta Notase deste modo que na criação do movimento Esprit este deveria ser considerado sob o título de engajamento reconhecedor e histórico pois retratava os problemas em sua dimensão própria sem tolher a história na pretensão de segurança e absolutidade buscando a luz de valores e princípios Vale citar Ricoeur 1968 p137 Sua grande força é a de ter em 1932 vinculado originariamente sua maneira de filosofar ao afloramento ao nível de consciência de uma crise de civilização e de ter tido a ousadia de visar para além de qualquer escola filosófica a uma nova civilização em sua totalidade Assim sendo o trabalho desenvolvido pelo movimento era filosófico e também pedagógico com intuito de despertar consciências Mounier dizia que jamais o filósofo deve trair a luz da verdade que o real revelar pois o espírito filosófico é uma ética da inteligência Para a reformulação da epistemologia surgiu então a necessidade da elaboração de uma fenomenologia da existência que encontrasse seu caminho 51 entre o objetivismo radical da ciência e o subjetivismo da metafísica Para Mounier o personalismo não podia se assentar em uma psicologia cientificista pois se trataria então de uma manipulação e não do homem integral visto que o método analítico e objetivista impediria a apreensão da subjetividade Quanto à metafísica essencialista havia nela um comprometimento com o radicalismo subjetivo estimulado pelas ideias puras o que a afastava da experiência concreta de uma vida pessoal pois tal metafísica havia criado seus próprios instrumentos lógicos esquecendose dos mistérios do ser sobretudo do ser do homem Como sintetiza Severino 1983 p131 A noção de natureza ou essência humana tornase um esquema fácil mas infiel se desligada da condição existencial do homem Daí um salto para um território cujas fronteiras se estabelecem além das estruturações já elaboradas uma nova busca de compreensão do ser da pessoa e uma nova visão metodológica do conhecimento O método fenomenológico nesta perspectiva nasce da exigência e da busca fiel da experiência existencial do homem Para Severino a significação filosófica última do Personalismo encontrase numa metafísica fundamental da pessoa como ser imanentetranscendente dialeticamente constituído em sua natureza e agir o que se transforma em uma antropologia realista que se volta para uma ética da responsabilidade e que se forma através do engajamento que perpassa do individual ao comunitário Para Mounier 1961 tI p547 este engajamento está intimamente ligado à história O sentido do homem pessoal envolve o sentido da existência e o sentido da história Isto equivale a dizer que o ideal personalista é um ideal histórico concreto que jamais concilia com o mal ou com o erro mas se conduz com a realidade histórica sempre impura em que as pessoas vivas estão inseridas para dela extrair de cada vez segundo as épocas e os lugares o máximo de realização Portanto o homem situase como agente inovador e transformador da história é a sua ação que transforma conferindo reorientação à história e consequentemente à humanidade Não será ocioso lembrar o contexto inumano e catastrófico em que os homens estavam inseridos neste período e que tal momento histórico era ao extremo vivido e vivenciado pelo autor 52 Nem sempre o homem pensou na sua história ignorava então sua existência Somente a partir do século XIX e principalmente do século XX que o homem descobre sua real importância na história vindo a se contrapor às ideias existentes os sistemas as verdades eternas que o haviam fixado em um absoluto intemporal Mas a reação contra o imobilismo corria o risco de culminar em um relativismo total que é também a negação da história Mounier afirmou que era um risco mas necessário pois de uma forma ou de outra ocorreria o despertar era o momento de o homem esclarecer as confusões entre eternidade e intemporalidade Os meios cristãos acreditando ser a história um grande perigo para a verdade enrijeceramse em suas respostas polemizando falsamente desconhecendo ao mesmo tempo as origens da noção de história e as estruturas fundamentais da fé cristã Moix relata parecer estranho que a ideia de história não seja uma evidência do espírito humano e que Mounier mostrou ser totalmente ausente do pensamento antigo para o qual a verdade era a imobilidade e o tempo ocorria dentro de um circuito fechado voltado sempre para si mesmo exceto para o povo judeu que crê que o mundo tem uma história e ao mesmo tempo professa o monoteísmo absoluto Quanto ao cristianismo diz ele ser herança da visão judaica elevandoa a um caráter sobrenatural do Reino de Deus e então Enxertando a história humana na do Cristo soldou as três unidades teológicas unidade de Deus unidade da história unidade do gênero humano Moix 1968 p350 Como cristão Mounier acredita Cf abaixo p6768 que a história e a humanidade são únicas a história profana e a sagrada são uma só21 O homem compromissado e o mundo participam da mesma aventura uma corrente de personalização sempre disponível e aberta aos acontecimentos Henrique Claudio de Lima Vaz 1998 p100121 em seu estudo Pessoa e Sociedade o ensinamento de João XXIII faz uso de três concepções antropológicas elaboradas pela civilização ocidental a clássica a moderna e a planetária e juntamente a estas sempre presente a exigência 21 Mounier em sua obra A esperança dos desesperados dedicase ao assunto com o tema Um sobrenaturalismo histórico aliado ao pensamento de Georges Bernanos fazendo uso de suas obras literárias principalmente de Sob o sol de Satã 53 cristã exigência a que faz referência recorrendo ao termo de Nédoncelle que ele nomeou de pulsão personalista Propõe que o homem inserido na cultura planetária é o agente transformador das estruturas do mundo na sociedade ele interage sob os quadros técnicos e profissionais na economia inserese na produção planificada na política temse o Estado As mencionadas imagens do homem clássica moderna e planetária estão presentes em outros tantos ciclos históricos que nelas se fundamentam e por elas se caracterizam indo desde as criações culturais às ideologias Jamais se deve pensar em cortes históricos que as separem no tempo pois as novas concepções diante de novos problemas integram traços do homem antigo Então é que se define uma idade de conflito e crise em todas as camadas da cultura As novas concepções do homem tanto significam envolvimento com a crise estabelecendose o conflito nas estruturas dos planos acima mencionados cultura sociedade economia e política como o aparecimento de um novo tipo de homem torna lento e difícil integrar valores historicamente provados Lima Vaz 1998 p104 especifica A ordem clássica e o individualismo moderno chocamse antes de se comporem numa ordem que resulte das liberdades convergentes Esta nova ordem passa a ser exigência de um desenlace histórico para a solução dos problemas que marcam o desenlace da idade do individualismo Neste ponto o personalismo cristão busca introduzir no homem planetário o sentido do realismo existencial pulsão personalista da exigência cristã sobre os direitos inalienáveis da pessoa e da sociedade tais direitos exprimindo a própria possibilidade histórica de ser da humanidade É lógico isto se realizará sempre sob a dimensão do conflito portanto caberá a este novo tipo de homem o homem novo afrontar e viver seu otimismo trágico pois a liberdade não é gratuita deve ser compreendida e assumida com responsabilidade No período conturbado vivido por Mounier na Europa porque não dizer no planeta diante da guerra nuclear e iminentes desavenças uma nuvem negra pairava sobre os homens e os inundava com profecias catastróficas levando a um estágio de angústia e desespero Neste momento histórico 54 nasce uma literatura específica voltada para o absurdo22 A burguesia em ascensão insistia em um otimismo ingênuo os burgueses decadentes em um irracionalismo cético pessimismo reacionário os marxistas em um otimismo progressista Surgem muitas vertentes de pessimismo como o fascismo o absurdismo ateu o catastrofismo cristão enfim uma enxurrada de variantes e variáveis Mounier rebateas veementemente pois segundo ele existe a esperança e a felicidade a nos abarcar e jamais entregar a existência humana nas mãos da catástrofe e do absurdo Rejeita todas essas vertentes porque sua visão da história é a de um otimismo trágico Entre o otimismo impaciente da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos o caminho próprio do homem está neste otimismo trágico que encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta Mounier 1950 p3334 Mounier jamais tentou excluir o trágico da história pois excluiria então o cristianismo e por outro lado o mundo tem uma história e um sentido Está assinalado de uma obscura vocação para a grandeza humana e sobre humana mas através de uma história dramática feita de irrupções e de quedas de iluminações e de solidões cuja unidade ainda desconhecida só se elabora pelo dilaceramento e pela luta ad augusta per angusta 1948 Esprit 150 p705 Se percebermos o trajeto da história saberemos que ela se faz pela ação humana e conheceremos momentos de glória e seu revés Há quem se entregue ao medo ao comodismo outros se refugiam num espírito de catástrofe Mounier 1950 p11723 No entanto há esperança resta uma única saída afrontar inventar investir a única que desde as origens da vida pode 22 Mounier reúne em seu livro A Esperança dos desesperados quatro ensaios que foram publicados de janeiro de 1948 a janeiro de 1950 em revista Os ensaios são críticas literárias buscando sempre diálogo orgânico entre Malraux Sartre Camus e Bernanos que já havia falecido 23 Nesta mesma obra em O personalismo e a revolução do século XX Mounier alude às posições ou manifestações sobre o nihilismo Uns entregamse ao medo e seus habituais reflexos um conservador debruçarseá sobre as ideias adquiridas e os poderes estabelecidos Outros se refugiam num espírito de catástrofe Tocam a trombeta do Apocalipse e desprezam qualquer esforço progressivo a pretexto de considerarem somente a escatologia digna de suas nobres almas vociferam contra as desgraças de seu tempo pelo menos contra aquelas que confirmam seus preconceitos Clássica neurose de tempos de crise em que aumentam as mistificações 55 sempre triunfar sobre as crises Mounier 1950 p117 Ser situado é conferir sua existência sua liberdade e responsabilidade perante os homens e a história que não é nada mais que a própria humanidade Mounier 1962 tIIIp192 sintetiza seus pensamentos relacionados à pessoa encarnada frente à história da seguinte forma eu sou um euaquiagora talvez fosse preciso tornar ainda mais denso e dizer um euaquiagoradessejeitopor entre esses homenscomessepassado 4 Desordem Estabelecida A filosofia grega teve seu alvorecer com a curiosidade em conhecer Obra do desejo epithymiás dirá Platão no Fédon Para Aristóteles é a archê da filosofia No Teeteto Sócrates afirma a Teodoro que o filósofo possui um páthos uma sensibilidade uma capacidade de admirar de contemplar e torna se afetado pelo espanto Espantar tò páthos é o princípio primeiro da filosofia é o envolvimento é ocuparse com o objeto do espanto o objeto admirado thaumázein Esta palavra advém do verbo thaumázô que tem sentido equivalente ao espanto ao maravilharse Sua raiz agrega o verbo theáomai no sentido de ver de contemplar de elucubrar sobre o objeto observado Afirma Spinelli 2006 p 79 que o verbo thaumázô apresentase sobretudo com o sentido ativo e não passivo designa uma reação humana de admiração e espanto perante o que vê ou observa e que instantaneamente provoca um páthos ou seja desperta uma paixão que por sua vez pede para que seja disposta ou arranjada de alguma maneira Mounier tem por objeto de pensamento e ação a desordem estabelecida utiliza esta expressão para se referir às desordens da civilização ocidental Era preciso conhecer este objeto e agir em suas estruturas Assinala que o principal aspecto revelador da desordem causa de espanto é a miséria Esta é o resultado de uma série de causas conjugadas que caracterizam as desordens como a econômica a política e a moral Segundo Mounier a miséria é a causa do aviltamento dos valores espirituais que leva o homem a um profundo individualismo e ao surgimento de regimes totalitários 56 41 Capitalismo e individualismo A crise de 1929 põe fim à felicidade europeia Alguns buscavam respostas supondo que o mal advinha da questão econômica e outros apontavam para a questão moral Surge então a geração da inquietude séria e preocupada com o futuro Esta juventude sentiu a presença da desordem imediatamente ao pósguerra de 1914 a 1918 e depois com o abalo econômico influenciado pela quebra de Wall Street a miséria se alastra A geração de Esprit considerada geração do compromisso conseguiu desvelar o momento histórico pondose à luta tendo como ponto de partida a presença da miséria Mas não se tratava somente de uma desordem econômica em que uma determinada parcela da população vegetava também política em que o dinheiro corrompia os governos e tudo não passava de jogo de interesses Conjuntamente outro tema de grande importância era o aviltamento dos valores espirituais em prol de outros supostos valores acobertando a desordem Os idealistas com desprezo ao bem material apoiavamse em princípios espirituais engenhosa arquitetura para esconder as nossas angústias Mounier 1950 p116 Os materialistas tomavam uma via metafísica inaceitável Mas para Mounier a crise do homem do século XX é a crise da civilização ocidental sendo a desordem antes de tudo espiritual e o individualismo nascido com o mundo burguês a sua raiz Então o homem teve as suas certezas abaladas na racionalidade nas ciências na fé cristã no aparecimento de estados policiais nas duas grandes guerras Parecia que a humanidade não havia conseguido domesticar sua animalidade não tinha trazido a felicidade nem neutralizado suas paixões Nas palavras de Mounier Ibid p116 para lá das harmonias econômicas Marx revela a luta sem tréguas de profundas forças sociais para lá da harmonia psicológica Freud descobre o turbilhão dos instintos finalmente Nietzsche anuncia o nihilismo europeu antes de passar a palavra a Dostoievsky Os valores do século XIX balançaram diante dos desconstrutores da ética Marx Nietzsche Freud chamados de mestres da suspeita por Paul Ricoeur Cf Lima Vaz 2002 p409 O trio embora proponha análises 57 completamente diferentes buscava uma estratégia teórica de interpretação sobre a razão ética os princípios conceitos e normas para legitimar e justificar as necessidades da sociedade as pulsões e as tendências voltadas para a origem da natureza humana Cf Lima Vaz 2002 p407418 O primeiro volta se para a atividade econômica o segundo para a criação cultural e o terceiro para a estrutura do psiquismo sendo os três os que mais influíram sobre o pensamento ético do século XX Para Mounier estes pensadores influenciaram e muito o pensamento e a ação do personalismo Ao retratar o capitalismo Mounier chega mesmo a sustentar que em toda a história jamais houve um tirano que repousasse tanta ordem sobre uma desordem jamais tirano algum dispôs de poder tão universal de esmagar homens pela miséria ou pela guerra de um ponto a outro da terra e nenhum tirano acumulou no silêncio da normalidade tantas ruínas e injustiças Mounier 1961 tI p386 Reduziu massas à miséria aviltando almas seu mal mais pernicioso O capitalismo tem por alicerce o princípio metafísico do otimismo liberal caracterizandose pelo primado da produção o homem a serviço da economia pelo primado do dinheiro primado do capital sobre a produção e o reino da especulação pelo primado do lucro urgindo então um mecanismo de opressão concentração de poderes nas mãos de poucos dirigida por interesses privados Mounier atémse à desordem espiritual provocada pelo capitalismo que consagra a destruição de todos os outros reinos do espírito livre do trabalho honesto e alegre da ação desinteressada torna o dinheiro o maior valor pois consagra o homem pela medida de quanto ele tem O egoísmo se instala no coração humano devido ao capitalismo burguês individualista responsável por lutas intermináveis das classes A burguesia francesa em 1789 era revolucionária lutou contra a nobreza carregou a bandeira da Liberdade Igualdade e Fraternidade condenou a tirania a opressão e o imobilismo social favoreceu o surgimento dos enciclopedistas dos filósofos dos escritores conduziu o povo à tomada da Bastilha tornandose vitoriosa Vitoriosa a ponto de poder lutar contra o que pregava combatendo a própria mobilidade do povo Mounier alerta sobre a falsa pretensão de restabelecer a ordem o repouso e a tranquilidade custe o 58 que custar certas forças podem se transformar em forças totalitárias exemplo do fascismo Superada a crise emerge tal acomodação e otimismo mórbido que dizia tratarse de um velho hábito de tranquilidade burguesa fazendo a pessoa e a comunidade acreditar na ordem cada vez que o repouso se estabelece A desordem dos períodos de estagnação é o mais pernicioso porque inaparente o mais odioso porque mascarado eis o inimigo hereditário Mounier 1961 tI p138139 O movimento Esprit constatou as discrepâncias de sua época O capitalismo oferecia o reino da riqueza mas também de forma desproporcional a miséria o egoísmo a luta de classe Nesse momento vale ressaltar a crítica de Mounier com relação ao mundo do trabalho inserido nesse contexto capitalista que transformou o trabalho em mercadoria apenas um serviço de troca e por outro lado retirou toda sua beleza e plenitude sufocando o homem tornandoo próximo a uma máquina Em sua visão os extremos devem ser evitados Os espiritualistas veem no trabalho a degradação do homem os materialistas exaltam o trabalho como atividade suprema do homem Mounier buscou o sentido do trabalho através de um equilíbrio pelo qual o trabalho tenha um sentido cósmico ou seja o homem transforma a natureza bruta e ao mesmo tempo a humaniza dandolhe uma nova dimensão atribuindolhe novos valores Não se tratando da degradação num progresso desordenado voltase o olhar para um valor personalista e antropológico e também religioso Além desta visão ele próprio reforça a tríplice finalidade do trabalho 1 Antes de tudo é o meio para cada um assegurar o mínimo de subsistência e a subsistência daqueles que estão naturalmente sob sua responsabilidade devendo o trabalho oferecer ao homem condições de uma vida plenamente humana com um salário digno Ibid p280 2 O trabalho é a extensão criadora do homem é onde este se concretiza o indivíduo sai de si mesmo a obra de fazer é a primeira escola da abnegação e quem sabe a condição de duração de todo o amor Abnegação criadora evidentemente que só deve fazer o indivíduo perderse para afirmar a pessoa Mounier 1961 tI p280 3 O trabalho estabelece por excelência contatos humanos num estado econômico onde ele ocupa a maior parte das 59 obras do homem é uma das fontes principais da camaradagem que prepara as comunidades mais profundas Mounier 1961 tI p280 Daí a necessidade de se tomar uma outra via oposta ao capitalismo pois este renega esses princípios massacra os homens meras mercadorias esmagados nas palavras de Candide Moix pelo poder dos senhores ocultos do capital o que Mounier expressa como um grito que ecoa com esta tomada de consciência Despojado de tudo o que faz o homem e especialmente o homem possuidor exaurido por um trabalho que não tem mais razão de amar porque nele tudo lhe é hostil ou estranho como não esperar que este proletário se entregue à revolta e a este materialismo de que o acusam tantas vezes aqueles mesmos que o lançaram nessa situação Ibid p 469 Sob essa relação o capitalismo exerce todo o seu poder sobre o mundo sobre a natureza e a natureza humana sendo lógico que crie uma pequena casta privilegiada detentora do poder dizendo ser defensora da propriedade privada Mounier retruca propriedade da qual privamos os outros desta forma tornase uma inimiga direta dos valores dos quais diz ser tutora como a liberdade a cultura os valores religiosos enfim Do direito à responsabilidade o capitalismo fez um direito ao lucro e à impunidade Pretende defender a pessoa e a esmaga sob o mecanismo anônimo do dinheiro a liberdade ele abafa debaixo da guerra econômica da exploração social e das oligarquias pretende defender a iniciativa mas concedea somente àqueles que no regime já são senhores do risco ele também se defende mas o faz através de uma solidariedade de gangsters em que começam a entrar os Estados Criticase a confusão o capitalismo dele tira os argumentos para rejeitar a organização coletiva mas onde está o regime em que qualquer um indistintamente ocupase de qualquer coisa a não ser nos conselhos de administração e nos seus governos As críticas das quais nos tornamos portavozes contra um certo comunismo da irresponsabilidade atingem em cheio o capitalismo atual que é um comunismo bastardo e mascarado em proveito de uma minoria Id 1946 p122 Como recusa ao capitalismo surgiu o anticapitalismo que exerceu forte pressão na década de 30 que sob certas formas o recusava mas por outro lado também era de interesse mútuo soerguêlo um capitalismo disfarçado Tratavase então do anticapitalismo dos pequenos capitalistas contra os 60 maiores pequenos comerciantes industriais e rendeiros o anticapitalismo dos capitalistas organizados capitalistas de poupança contra o capitalismo aventureiro capitalismo de especulação o anticapitalismo dos industriais contra o capitalismo financeiro Este outro sentido do capitalismo como diretriz também era recusado por Mounier pois de tal semente sua própria resultante eram os interesses que tinham por meta a generalização do conforto da riqueza da segurança e do prestígio Ele não criticou apenas o capitalismo mas aprofundouse na teoria de que este visava a subordinar a atividade econômica a uma ética das necessidades expondo princípios de uma economia humana na qual o primado do trabalho prevalecesse sobre o capital a responsabilidade pessoal sobre o anonimato o serviço social sobre o lucro os organismos sobre os mecanismos Enfim permaneceu firme em seu propósito opondose também ao espírito individualista espírito burguês que nascera de uma classe e encontrara seu habitat principalmente no seio da burguesia francesa que inclusive em uma determinada época prestara valiosos serviços ao cristianismo por sua integridade e esforços mas perdeu a razão tendo iniciado seu individualismo na Renascença A burguesia proclamou o primado do dinheiro sobre o trabalho no século XVII já no século XVIII como consequência a religião declina Com a revolução de 1789 um movimento burguês e com a declaração dos direitos consagrase o individualismo oferecendo o progresso o conforto e a garantia contra riscos encontrandose sua nova religião o voltairianismo No entanto com as crescentes perturbações populares restaurase a Igreja como meio de atenuar as agravantes apenas com intuito de garantir a segurança acalmando o povo teve maior oportunidade de difundir a mística do conforto Neste momento revertese ao ter asfixiando o ser passase a uma busca humana da felicidade medíocre da tranquilidade do conforto para si A Renascença tornase uma libertária propondo liberar o homem de sua opressão social e este impulsionado pelo desejo de liberdade se revolta contra tudo o que o pressiona Nas palavras de Mounier isto teria seu lado positivo mas continha o germe de toda sua contaminação Nela fremiam exigências legítimas da pessoa mas logo se perdeu quando se desviou para uma concepção estreita do indivíduo princípio de decadência que a 61 Renascença trazia em si desde o início 1961 tI p491 492 O burguês isolavase em seu reinado o pequenoburguês que não era rico tinha em mãos o desejo de tornarse através da avareza sempre ávido pelo dinheiro a todo custo Enfim Mounier decretava que o mal do pequenoburguês é o câncer de toda a Europa ocidental Entre o espírito burguês satisfeito com sua segurança e o espírito do pequenoburguês inquieto por adquirila não há diferença de natureza mas de escala e de meios Os valores do pequenoburguês são os do rico definhados pela indigência e pela inveja Corroído até na sua vida privada pela preocupação da promoção social como o burguês é roído pela preocupação da consideração só tem um pensamento chegar E para chegar um meio erige em valor supremo economia não a economia do pobre fraca garantia contra um mundo onde tudo é infelicidade para ele mas a economia avara cautelosa de uma segurança que avança passo a passo economia exercida sobre a alegria sobre a generosidade sobre a fantasia sobre a bondade a lamentável avareza da vida enfadonha e vazia Ibid p494 O burguês ao perder o sentido do ser desfigura o sentido do senso divino da gratuidade do amor Acredita encontrar em seu ter as respostas da sua liberdade mantendo o outro a certa distância e a religião com a intenção de assegurar ordem social assim como a caridade e o amor passam a ser meras ferramentas morais código de tranquilidade social Dessa forma quanto mais se infiltrava o espírito burguês nas camadas sociais mais se tornava um humanismo burguês auxiliado pelo cristianismo que aos poucos ia formando uma moral burguesa Nasce o cristianismo deformado e Mounier reprova as ações burguesas pelo fato de traírem a missão do homem assim como reduzir as verdades eternas e fazer de seus valores as verdades cristãs Ele lutou incansavelmente contra o idealismo burguês pois remontava ao dualismo cartesiano entre espírito e matéria negando o sentido da Encarnação e criava ao mesmo tempo uma cultura de aparência Com o avanço da guerra o personalista esperava que este espírito burguês se rompesse e que os homens saíssem da letargia pela qual estavam acometidos mas a derrota francesa parecia não ter surtido o resultado esperado pois eles que em nada acreditavam jamais morreriam por qualquer causa nem por Deus nem pela revolução nem pela França nem pelos seus 62 amigos Eram por demais egoístas e aviltados Para Mounier a burguesia havia falhado e portanto não deveria mais deter o poder era o momento de uma renovação francesa Por seus méritos procurava despertar consciências recriminando sempre o espírito burguês e sabendo que a batalha do movimento Esprit levaria muito mais tempo seria necessário uma revolução uma revolução personalista e comunitária 42 Cristandade desvitalizada Inicialmente mal compreendido Mounier depois de alguns anos obteve grande influência para a renovação da Igreja Católica em todo o mundo pois estava entre os intelectuais católicos que buscaram criar um pensamento próprio articulado sobre a ideia tradicional da pessoa visto que o clero diante da crise da humanidade culpava a modernidade pelos problemas políticos e sociais e alguns insistiam na adaptação do tomismo às novas circunstâncias O personalismo teve irradiação intelectual na França e Europa do pósguerra tendo seus temas sido retomados nas encíclicas sociais de João XXIII e de Paulo VI Mater et Magistra 1961 e Pacem in Terris 1963 bem como no Concílio do Vaticano II 19621965 Inspirou o sindicalismo movimentos sociais de origem cristã e ainda movimentos de atuação dos leigos como a Ação Católica Operária ACO a Juventude Operária Católica JOC a Juventude Estudantil Católica JEC a Juventude Agrária Católica JAC a Juventude Universitária Católica JUC e outros Anterior a estes legados o diálogo aberto de Mounier com todas as vertentes e movimentos lhe trouxe diversas inimizades Como dissemos antes ele era do tipo de pessoa que não se sentia viva se não pensasse e agisse sobre o seu tempo Cristão de imensa fidelidade assume o partido dos pobres e oprimidos voltase para as vítimas da injustiça da desigualdade independente de credos e outras particularidades Paul Ricoeur aponta Mounier como o oposto do filósofo universitário do filósofo professor que possui a preocupação senão o escrúpulo de permanecer à margem da vida e 63 da história e com a maior razão da paixão política que lhe parece por essência indigna do filósofo Cousso 1969 p83 Seu ideal era ficar acima da discussão diante do mundo e não no mundo para atuar compromissadamente Depierre o padreoperário de Montreuil grande amigo de Mounier e também de Esprit fala da vocação deste combatente Não sei quando Mounier percebeu que a fidelidade a sua vocação pessoal tinha raízes profundas na fidelidade à causa dos oprimidos Como disse muitas vezes ele recusava por sua fé sua oração pelo engajamento de sua vida familiar cristã a abstração do ponto de vista dos pobres Eles só eles eram a medida de sua fé e de sua perseverança cristã Porque os pobres são realistas porque é do pão cotidiano que eles necessitam porque é um raio de sol para seus filhos que eles desejam porque os pobres nos obrigam a ter uma fé tecida de caridade prática de caridade consequente de caridade clarividente Como o próprio Cristo no seu anúncio do juízo final Mounier queria provar sua fé na terra e como Paris era seu próximo na terra de Paris com seus subúrbios vermelhos e cinzentos Mounier acreditava em uma boa nova presente nas usinas nos campos nos hotéis nos sindicatos nas aldeias nas Câmaras como esteve presente aos pastores de Belém a Pôncio Pilatos o ocupante romano a Herodes o rei Gozador Boa nova terrestre como vontade de Deus carnal como salvação prometida cotidiana como o pão do pater Depierre apud Guissard 1969 p53 Lucien Pelissier escreve que Mounier sem contestação foi um homem de esquerda devido a sua vocação e aspiração por justiça social Ele sempre se recusou a se identificar com qualquer força política mas este homem de ação foi mal compreendido e visto por outro ângulo Isso pode ser evidente hoje mas em sua época as forças espirituais devido a uma grosseira confusão na maioria das vezes pareciam fazer causa comum com o mundo reacionário Tudo que pudesse nascer da esquerda era a priori suspeito e considerado sem maior exame como indo contra ao espírito A defesa de valores espirituais propriedade família pátria religião transformavase volens nolens em defesa da propriedade capitalista do egoísmo familiar e do nacionalismo sob o branco manto do farisaísmo religioso Pelissier 1969 p 124 Ao contrário para Mounier 1961 tI p140 a esquerda passava a maior parte das forças novas todo progresso social e quase toda a riqueza de coisas novas da arte e na literatura e mais do que tudo isso o 64 imenso fluxo do desejo de justiça conservado sem compromissos quase sem eloquência no coração das massas trabalhadoras As palavras soaram como complacência ao marxismo e várias acusações lhe foram dirigidas Dentre elas a de Jacques Chevalier que o criticou sobre suas más companhias Ou mesmo a polêmica com o Pe Fessard que admitia a boa fé deste cristão e ao mesmo tempo o acusava de servir objetivamente o comunismo Mounier responde às críticas e aponta que o Pe Fessard ignorou um texto da revista Esprit de Julho de 1947 Os cristãos Progressistas Alega que a omissão é lamentável e poderia ter evitado desordens sérias Mounier em março de 1948 escreve a Pe Fessard e declara que tem muito a dizer sobre a comunicação dele Ele inclusive fica espantado ao ver seu pensamento totalmente transformado no sentido contrário ao da orientação seguida por Esprit 24 Diante de tantas polêmicas sempre se prestou ao diálogo e com os cristãos teve a coragem de também anunciar a agonia do cristianismo O cristianismo foi evacuado com as honras oficiais para instalar sob o mesmo nome e a despeito dos tolos uma religião utilitária mais ou menos dependente da polícia das sociedades A fé a esperança e a caridade cedem o passo no coração do praticantetraficante ao gosto da segurança da economia da vida pequena da imobilidade social Mounier 1971 p150 Mounier diferencia cristianismo de cristandade O primeiro possui uma realidade sobrenatural ou seja está neste mundo sem ser do mundo não há como ser julgado é transcendente Ao passo que a cristandade é designada por uma sociedade de tradição e maioria cristã envolta em um tempo e lugar sujeita aos movimentos de cada época Não se deve esquecer que a história vive um dos períodos mais horrendos da civilização humana deveras o cristianismo é há um tempo encarnado e transcendente Para o autor aí está o problema Ele situa o cristão num clima totalmente diferente do da desenvoltura 1946 Esprit25 p189 Por isso para Mounier a cristandade histórica não encontra em seu seio uma representação do cristianismo na sua 24 Cf a obra Quando a cristandade morre de Mounier nesta encontramse o artigo Os cristãos progressistas duas cartas respostas endereçadas ao Pe Fessard e também um artigo com referência a esta polêmica p129152 Sobre o termo progressista veja abaixo nota n 73 65 totalidade e a conveniência pode tornála condizente com a desordem estabelecida Em seu artigo sobre a Agonia do Cristianismo25 Mounier denuncia a cristandade ao declarar que esta havia se degenerado e integrado os valores de uma classe social burguesa Nas palavras de Michel Richard 1978 p119 Por isso os católicos viveram a solidariedade entre o poder espiritual e o poder temporal e confundiram a defesa do espiritual com os interesses morais políticos e econômicos da classe dominante Para Mounier em sua obra Laffrontement chrétien o cristianismo desvitalizado perdera sua dimensão aos apelos de sua fé e fez da sua religião qualquer coisa de confortável que lhe assegure a segurança na terra e a promessa do além Reduziu a sua religião às dimensões de um universo pessoal encolhido mesquinho Tornou se frágil e medroso escreve Richard Ibid p119 Sendo Mounier 1972 p3 um cristão convicto sempre em defesa da pessoa tinha plena consciência dos problemas e dizia Na verdade na agonia eterna do cristianismo erguerse hoje uma ameaça de agonia mais clara e mais angustiante Os cristãos mal têm consciência dela no todo Para ele os cristãos dormiam na ilusão de sua força como a França dormia em 1939 achandose segura através de seu exército e de seu passado de glórias Passou a alertar incessantemente os cristãos referindose a que estavam se distraindo muito com obras movimentos insignificantes partidos e dizia que alguma Sedan26 espiritual lhes abriria os olhos até que uma agonia da cristandade em que vivemos há séculos os force a não mais camuflar a extensão da crise e a preparar nos estertores uma ressurreição da qual não souberam reconhecer a urgência nas épocas das certezas enganosas Ibid p4 Apontando fatos mostrou a fraqueza dos cristãos seus contemporâneos com relação às guerras que se preparavam em Viena e Madrid a ascensão do fascismo nos países católicos e questiona sua força quando diz que se houvesse união em prol da pessoa da humanidade 25 Artigo escrito em maio de 1946 Encontrase na obra Emmanuel MOUNIER Quando a cristandade morre p 317 26 Batalha dramática em que a França teve de capitular diante dos alemães em 1º setembro 1870 66 Setecentos milhões de cristãos resolvidos a liquidar a plutocracia anarquia os fascismos e a guerra solidariamente já se imaginou que força Mounier 1963 tIV p207 Segundo Mounier a cristandade moderna continuava a prepararse para a sua morte juntamente com a Europa pois eram frutos da mesma desordem dizia que a morte se aproximava não a morte do cristianismo mas da cristandade ocidental feudal e burguesa Uma cristandade nova nascerá no futuro de novas camadas sociais cedo ou tarde e de novos enxertos extra europeus É preciso que não a sufoquemos com o cadáver da outra Id1972 p17 Afirmava que deveria morrer porque o próprio sistema que a mantinha era um sistema políticosocial que vinha definhando aos poucos e a missão maior da Igreja em seu pensamento era restabelecer a sua profunda tradição espiritual restabelecer a vida a verdade a dignidade e o amor Insistese que Mounier sempre esteve do lado dos fracos e oprimidos o que realmente desejava era que a Igreja fizesse sua parte com referência à evangelização trabalho com as comunidades com as questões sociais que não se entrevasse pelo politicismo não confundindo ordem religiosa com política Como cristão em sua luta pela pessoa viveu humildemente amava os pobres afrontava e debatia com os cristãos sobre sua missão e arriscava tudo É o que registra Moix 1968 p264 com as seguintes palavras Ninguém conhece nada de Emmanuel Mounier escreve o padre André Depierre numa bela homenagem a ele prestada se a respeito dele ignora antes de mais nada o seguinte que quis e pretendeu ser com tenacidade com teimosia apenas um operário na construção no meio de outros operários Mounier se agarrava com as próprias mãos à barca de todos os reprovados do mundo havia recusado a segurança e fora armar sua tenda em outras bandas Acreditando na falência da cristandade ocidental feudal e burguesa estabelecida por quatro séculos esperava que surgisse de suas cinzas um cristianismo de massas populares e que tratava como sendo um cristianismo ao ar livre uma teologia comunitária Portanto acreditava ser a doutrina cristã superabundante e inesgotável mas cabia ao mundo cristão inserila neste momento histórico Para isso travou diálogos constantes com incrédulos e cristãos frisou que as denúncias de Nietzsche eram pertinentes e traziam importantes contribuições para a reflexão filosófica 67 Nesta época foram feitas pesquisas sociológicas na França que tiveram como resposta algo desolador para o meio cristão estava generalizado o ateísmo prático Em sua obra Afrontamento Cristão Mounier visou analisar o cristianismo católico como instituição e como prática social apresentando uma análise crítica das infraestruturas éticoreligiosas denunciando condiciona mentos conduzidos pelo medo pelo conforto material ou espiritual ao estilo burguês e então estabeleceu um problema e uma questão básica Dirigese aos ditos cristãos Temos nós guardado vivo em nossa cristandade do ocidente o sentido profético do homem novo Mounier 1962 tIII p10 Em sua Confissão para nós cristãos escreve Dois homens apenas dois em cinquenta anos foram os únicos que tiveram a coragem de denunciar especificadamente o burguês que se fantasia de religião Péguy e Léon de Bloy Um vinha de fora e na sua revolta contra o burguês reconheceu o ardor cristão O outro vinha de dentro e em seu fervor cristão forjou sua cólera contra o burguês Hoje não estamos sozinhos A vida que nos arrebatou na tormenta nos deu um gosto de pureza e de despojamento Pessoa família pátria liberdade assumimos todos os nossos valores Mas é preciso primeiro arrancálos dos falsários Id 1971 p14827 Emmanuel Mounier quis ajustar seu pensamento às novas exigências do cristianismo da época pois quando fala da crise do cristianismo ocidental está se referindo sempre às do mundo cristão Para ele cada época é sempre uma novidade inesgotável e contínua e o personalismo é um método dialético que combina a fidelidade histórica a um certo absoluto humano com uma experiência histórica progressiva O mundo e o homem encontramse numa mesma aventura pois o cristianismo herdou da visão judaica o caráter sobrenatural que Mounier chamou de sobrenaturalismo histórico uma junção da história humana à do Cristo que abarca três unidades teológicas unidade de Deus unidade da história e unidade do gênero humano Em uma conferência pronunciada na Semana dos Intelectuais Católicos de Paris em 1949 sob o título de Fé cristã e civilização apresenta seu trabalho sobre A Finada Cristandade Cf Mounier 1972 p194227 Mounier diz que não existe 27 Gustavo Corção em sua obra O Século do Nada alude que nas décadas de 1940 e 1950 surgem movimentos e contestações da cristandade como Jeunesse de lEglise movimento do Padre Montuclard La France pays de mission obra do Padre Godin Essor ou déclin de lÉglise Carta pastoral do Cardeal Suhard Économie et Humanisme Padre Lebret e o movimento dos Padres Operários Padre Loew Cf Corção sdp367408 68 uma história sagrada e outra profana não há duas histórias estranhas uma à outra existe a história da humanidade o cristão habita duas cidades uma natural a outra sobrenatural que se desabrocham e Tanto mais a Igreja recusa a separação desses dois mundos tanto mais afirma sua vigorosa distinção Devese continuamente esclarecer uma e outra e as manter juntas Mounier 1972 p 215 Para Mounier a Igreja não está encarregada de organizar o mundo repartir os bens produzir a maior felicidade para todos pois se trata de uma comunidade de vida em Cristo Deve se ater em manter a vida aperfeiçoar o homem para uma humanidade Não se trata de propiciar riquezas ser guardiã da sociedade menos ainda força ou academia Durante os dois primeiros séculos a Igreja consagrouse direta e plenamente à evangelização Tão logo ocupada em organizarse ela deixa a tarefa a quem incumbe Ibid p215 Segundo Mounier o ateísmo assim com pensadores polêmicos prestava um enorme serviço à comunidade dos cristãos visto que punha à prova a fé forçando os cristãos à inquietude e à luta Por isso recorria sempre aos pensadores como Marx Nietzsche Freud Sartre Camus e ao romancista católico Bernanos buscando formular novas interrogações expondo e provocando revisões da fé da prática religiosa e moral pois como foi dito era urgente repensar a missão dos cristãos para revitalizar o novo papel da Igreja 43 Totalitarismos No pósprimeira guerra as mortes coletivas a crise econômica a proletarização das classes sociais o desemprego em massa as falências levam as populações a desarranjos de ordem material e psicológica neste exato momento surgem os ideais totalitários como promovedores de instalação da ordem do soerguimento do orgulho Inicialmente as primeiras adesões ao nazismo e ao fascismo tendem a pronunciarse como anticapitalistas reagem contra os desvios do nacionalismo liberalismo e individualismo possuindo um caráter revolucionário que trouxe um novo vigor provocando admiração e 69 fazendo apelo aos jovens para o heroísmo Por algum tempo fezse justiça mas logo é notória a mentira pois existiam reações de forças conservadoras aliadas a grupos que à custa de privilégios mantinhamse por meio de tarifas de proteção obtendo o Estado em troca financiamento para a manutenção da ordem pública em vista de combater o comunismo e as ações sindicais O fascismo teve força na Itália por volta de 1922 mas repercutiu por vários países Na França um despertar nacional e uma exaltação à pátria edificaramse entre os homens Mounier rapidamente condena tal agitação Critica este nacionalismo pois em nome da pátria homens estão sendo esmagados através de métodos de escravidão Recusamos reconhecêla nesta nação abstrata que se fortifica de sua soberania como um burguês se fortifica com sua vida privada sem saber compreender que o rosto mais belo é aquele que é o mais aberto Recusamos reconhecêla neste Estado Policial que se chama totalitário no sentido de que este é a verdadeira realidade do indivíduo e que para ele tudo está no Estado e nada de humano ou de espiritual existe e a fortiori não tem valor fora do Estado Mounier 1961 tI p225226 Não se tratava de uma verdadeira comunidade de pessoas livres responsáveis mas sim dominadas pelo terror pelo medo Segundo Candide Moix 1968 p231 As bases de sua grandeza quais são elas O culto da raça da nação do Estado da vontade de poder da disciplina anônima do chefe dos triunfos esportivos das conquistas econômicas O superior se sujeita ao inferior novo materialismo Mounier por inúmeras vezes mesmo antes da guerra já alertava sobre o totalitarismo e o personalismo condenava severamente os métodos policiais do fascismo que chegou a criar este universo concentracionista Diz ele A pessoa é espoliada já o era na desordem o é agora por uma ordem imposta mudouse de estilo mas não de plano 1961 tI p506 70 Capítulo II EMERGÊNCIA DA PESSOA Mounier extraiu do pensamento heideggeriano a visão do mundo do man28 e fez deste o representante direto o alerta para o mundo cristão que presenciava O primeiro passo da vida cristã é em nós a redução daquela zona que Heidegger chama o mundo do Se Mounier 1946 p26 Era neste mundo impessoal mundo da irresponsabilidade que a grande maioria dos cristãos havia se escondido Por isso cobrou desses homens de fé uma atitude ativa perante a vida pois os via despersonalizados alienados em suas rotinas e confortos Utilizou a linguagem cristã e tratou o assunto como sendo um pecado contra a pessoa Candide de Moix utiliza as palavras de Péguy ao mencionar tal acomodação uma evasão idealista de cristãos em demasia que fogem do mundo que não compreendem sobretudo nos períodos de violência e medo Os católicos são realmente insuportáveis na sua segurança mística Imaginam para si mesmos que o estado natural do cristão é a paz paz pela inteligência Quando ao contrário é próprio do místico uma invencível inquietude Se acreditam que os santos eram senhores tranquilos estão muito enganados Moix 1968 p299 28 Mounier em suas obras escreve monde de IOn ou seja o mundo do se A língua alemã dispõe de dois pronomes para indicar a ação impessoal de um verbo es e man O primeiro aponta uma impessoalidade indiferenciada pelo qual o sujeito da ação pode ser uma coisa uma situação ou uma pessoa Já o segundo possui caráter impessoal mas se diferencia por tratar de despersonalização da pessoa que corresponde a um mero se a gente para a língua portuguesa Cf Heidegger 2001 27 71 Este abandono foi visto por Mounier como sendo a própria perda do tu Pensava como Gabriel Marcel ao afirmar que a religião começa onde eu transformo um ele em um tu Se a suprema vocação da pessoa é divinizarse divinizando o mundo personalizarse sobrenaturalmente personalizando o mundo seu Pão cotidiano não é mais sofrer ou divertirse ou acumular bens mas hora a hora criar o próximo em seu redor Sua cotidianidade jamais tomará neste momento o rosto da recusa da amargura da reivindicação da hostilidade ou simplesmente da frieza e do fechamento mas será disponibilidade acolhimento presença resposta compreensão felicidade dos encontros Mounier 1946 p64 Portanto pecase contra a pessoa quando contribuímos para que esta se entregue aos ditames do anonimato e da omissão quando esta pessoa é forçada a identificarse com suas funções reduzindose a uma coisa manipulada quando em nome da boa consciência social encobremse as injustiças quando se reduz a mulher à sua função doméstica erótica e à mais alta função a materna acima dos cuidados e seduções Mounier Ibid p27 pede ao cristão para perceberse como tal eu peco contra a pessoa todas as vezes que ajo como se desesperasse do homem quer porque sem nenhum mandato eu o excomungo das mais altas virtualidades do homem quer porque eu o reduzo à condição de um objeto ou instrumento Para o personalismo a pessoa é um absoluto pelo fato de que ela é modelo e perfeição ontológica com um chamado a se realizar plenamente além do tempo e a sobrelevarse ao infinito Diante de tal pensamento coube ao movimento personalista o trabalho de aflorar a tomada de consciência de um universo cada vez mais impessoal nas relações entre os homens e a sociedade cuja despersonalização tornava o homem objeto estranho ao outro e a si mesmo Por isso Mounier imprimiu um sentido diferente à maneira de filosofar partiu da pessoa para chegar ao personalismo Teve por norte os problemas suscitados pela pessoa em sua existência individual relacional para depois abarcar a comunidade de homens livres e responsáveis É da noção tão antiga e profunda de pessoa a reflexão jurídica e a teológica que Mounier vivência aprofunda e cria a sua concepção ou seja herdaa em grande parte numa ligação vital de pensamento e ação 72 1 Do termo pessoa à pessoa no pensamento de Emmanuel Mounier Entender o homem como pessoa é semente de onde brota o personalismo cabe indicar como se dá esta gênese Segundo Mounier o termo foi utilizado por Charles Renouvier 18151903 em 1903 para classificar sua própria filosofia também por Walt Whitman 18191892 em suas Democratic Vistas29 em 1871 seguidos por vários autores americanos Novamente veio a ser utilizado na França por volta de 1930 com outro enfoque tendo como instrumento de divulgação o movimento Esprit e também alguns grupos inconformados com as crises que se alastravam pela Europa A história da pessoa será assim paralela à história do personalismo Não se desenvolverá somente no plano da consciência mas em toda a sua grandeza no plano do esforço humano para humanizar a humanidade Mounier 1950 p10 Na Breve história da noção de pessoa e de condição pessoal Cf 1950 p1011 Mounier retraça o percurso dessas noções verificando que da Antiguidade até os alvores do cristianismo o sentido da noção de pessoa se manteve embrionário A questão da pessoa não teria sido perscrutada pelos filósofos présocráticos pois havia uma preocupação específica em desvendar o cosmos através de princípios racionais sendo a grande questão a constituição do universo Sabese o termo pessoa no latim persona significa máscara e tem o mesmo sentido do vocábulo grego πρόσωπoν A máscara está intimamente ligada ao personagem do teatro trágico grego O ator mascarado é o dramatis persona A sua fala é dirigida ao público por vezes se faz derivar do termo persona do verbo persono infinitivo personare soar através de algo que neste caso é a máscara Portanto o ator é um personatus Cf Mora 2001 29 Obra de Walt Whitman um dos mais importantes poetas dos EUA foi pioneiro do verso livre do tratamento poético cotidiano difusor da abolição da escravatura dos direitos da mulher do amor livre e do desenvolvimento tecnológico Democratic vistas é um ensaio que questiona a corrupção social e política do governo norte americano Esta obra pertence a um contexto ímpar pois em 1871 ocorre a Exposição Internacional de Nova Iorque onde Whitman declama alguns de seus poemas inéditos Publica a quinta edição de Leaves of grass e também neste mesmo ano o Democratic vistas Tal ano é importante pois é o período da emancipação do negro e da emenda à constituição que garante o direito de voto do mesmo 73 p2262 Além disso JeanPierre Vernant em um artigo intitulado O momento histórico da Tragédia na Grécia Algumas condições sociais e psicológicas aponta um dado importante sobre a origem da máscara Prefere falar de antecedentes ao invés de origem para que não haja o equívoco de se tratar de um falso problema Portanto nos enganaríamos se pensássemos na máscara da tragédia como máscaras de rituais primitivos ou seja como transvestimento religioso apesar de haver parentesco É uma máscara humana não um disfarce animal Seu papel é estético diferente do ritual mas por outro lado mantém viva a religião cívica do culto aos heróis A máscara serve também para distanciar e diferenciar os coristas ou melhor o coro no sentido de um personagem coletivo encarnado por um colégio de cidadãos do personagem trágico aquele que sob uma máscara individual representa o herói Cf Vernant 2005 p12 O personagem o herói Héros representa todos os cidadãos diante dos erros Importante lembrar que o teatro trágico tinha por finalidade promover a catarse purgatória dos erros hamartía da comunidade de toda a pólis e não somente do indivíduo em particular O erro sendo no entanto sempre comunitário proveniente do modelo de identidade que cada homem tem e que emana da própria comunidade está dependente para ser dito um erro do modo de valorar do conjunto A identidade de cada um é a do todo de modo que o erro cometido não é responsabilidade de um homem mas é previsível por todos aceito e expurgado conjuntamente apesar de praticado por alguns Gazolla 2001 p27 Para Mounier quando Sócrates colocou o conhecimento à prova no Conhecete a ti mesmo ele se tornou o mentor de uma nova perspectiva da primeira grande revolução personalista já conhecida a necessidade de saber de conhecer quem é o homem de preferência à pretensão de conhecer o universo Platão prosseguiria com o trabalho de Sócrates culminando na ideia do homem dual corpo e alma uma diretriz de sua filosofia e de onde partiria a consideração da alma como a responsável pelos processos cognitivos e as virtudes sendo portanto a que detém a primazia O corpo era apenas sua morada temporária que a mantinha presa ao mundo das aparências O objetivo da alma seria superar os erros preservar as virtudes aprimorarse atingindo o 74 inteligível Para Aristóteles a alma ainda continua sendo a diretriz que se desmembra em duas dimensões a racional e a política que através da pólis e da aspiração pelo saber tornavamse condições mestras para a felicidade do homem A questão da pessoa adquire relevância a partir do advento do cristianismo quando o valor absoluto do ser humano passa a ser considerado um elemento da revelação cristã não voltada ao gênero humano de modo abstrato mas voltada aos homens enquanto sendo filhos de Deus e constituindo um povo o novo Israel No cristianismo a pessoa foi visualizada não apenas como simples elemento de fé Tanto na patrística como na escolástica o tema da pessoa suscitou profundas reflexões culminando em elaborações técnicas que visavam ao entendimento da fé Zilles 1993 passim Foi o Bispo de Hipona com pensamento filosófico de influência platônica que se enveredou a desvendar e explicar a Trindade Divina deparandose com um dilema como conferir a um só Deus esta tríade sem lhes furtar a integridade e a singularidade Tinha em mãos os termos gregos essência e ente mas não lhe ofereciam respaldo pois a verdade nestas palavras era considerada no sentido de adequarse como intenção Diante do problema a solução estaria na palavra grega hipóstase ou seja substância primeira e que vem a derivar na palavra pessoa Desta forma consegue fundamentar sua argumentação conferindo a cada pessoa da Trindade sua singularidade e completude Mas Agostinho deparouse com outra questão quando ao se tratar de reflexões de um ente diante de si este passava a ser objeto de suas próprias preocupações deparandose com o eu denominado por ele existente real que se confrontava com o mundo interior Urbano Zilles descreve que o reconhecimento do desenvolvimento do eu e da pessoa aparece com a definição de Boécio para quem a pessoa era uma substância individual de natureza racional eu concluindo que o homem é uma entidade subsistente e completa autosuficiente São Tomás de Aquino amplia o universo do conceito vida e lhe confere o atributo da incomunicabilidade o que significava que cada homem possuía o seu status ontológico sendo inviolável insubstituível único dissociado de outro ou sendo mais exato tornavase pessoa Vale citar que Boécio possui fortes 75 ligações com Aristóteles mas diferem nesta questão em que o primeiro situa se num contexto teológico no qual a pessoa encontra a felicidade suprema com o encontro com Deus Imagem Deste no homem como sendo o ideal ético cristão ao passo que Aristóteles resume seu ideal de felicidade em duas palavras sophia e phrónesis a sabedoria teórica e prática ou seja o estado mais elevado de felicidade encontrase na contemplação superior da alma e consequentemente no bem viver na pólis Com René Descartes surge um novo conceito de pessoa relacionado com a autoconsciência não mais definida com relação à autonomia do ser o eu consiste nesta consciência pois pensa a si mesmo Mounier procura pôr em evidência a contribuição própria de Descartes É costume relacionar com Descartes o racionalismo e o idealismo modernos que dissolveram na ideia a existência concreta Esquecese assim o caráter decisivo e a complexa riqueza do cogito Ato de um sujeito tanto como intuição de uma inteligência é afirmação de um ser que rompe com os intermináveis cursos da ideia e se assume como autoridade na existência O voluntarismo de Ockam a Lutero tinha preparado esses caminhos Daí para adiante a filosofia deixa de ser uma lição que se aprende como era costume na escolástica decadente para ser uma meditação pessoal e a cada um é pedido que por sua conta a refaça Mounier 1950 p13 Tratarseia de acordo com Mounier de uma conversão como a do pensamento socrático voltado a uma conversão à existência mas exatamente neste momento a jovem burguesia se revolta contra a estrutura feudal e em sua reação exalta o individualismo econômico e espiritual Da mesma forma Mounier salienta que o cogito de Descartes apesar de seu valor abala o personalismo clássico de Leibniz aos kantianos devido aos germes do idealismo e solipsismo metafísicos nele contidos Quanto a Hegel Mounier mostra sua oposição ao dizer que este trata de dissolver todas as coisas todos os seres de acordo com sua representação não foi por acaso que ele veio defender a total submissão do indivíduo ao Estado Ibid p13 Prossegue dizendo que o personalismo não deve se esquecer da história de Leibniz a Kant e a dialética da pessoa de todo esforço de reflexão do pensamento idealista 76 Kierkegaard em paralelo com Marx também questiona Hegel por referirse ao espírito abstrato e não ao homem concreto sujeito criador de sua história Vale lembrar que o personalismo de Mounier tem como precursor o francês Maine de Biran salienta ter este penetrado no âmago da raiz da pessoa e em sua zona de emergência A interrogação sobre a pessoa vem a adquirir uma importância total em relação à singularidade e complexidade de seu ser a partir do século XX com os filósofos Charles Renouvier Martin Buber Max Scheler Gabriel Marcel Maurice Nédoncelle Romano Guardini Paul Ricoeur Martin Heidegger Edgar Sheffield Brightman sem falar do próprio Mounier Autores que dizem ser a pessoa constituída não só de espírito mas também de matéria não só alma mas também corpo não apenas de pensamento mas perpassa este Pertencentes a correntes filosóficas diversas os pensadores mencionados buscavam superar a visão intelectualista que prevalecera durante a época moderna a partir de Descartes uma visão reducionista da realidade humana ao pensamento que com o idealismo havia sacrificado novamente como ocorrera na filosofia grega o singular ao universal A fenomenologia existencial veio oferecer a visão do homem concreto e criador de sua existência enquadrandoo como pessoa singular superando a visão negativista do humano estigmatizada por séculos Renouvier ao publicar sua obra de título O Personalismo propõe fundamentos de toda investigação filosófica no universo do homem em sua concreção e individualidade Para ele o caráter específico da pessoa humana seria o conhecimento mas diferente do conhecimento dos idealistas com referência ao criativo e também ao caráter fenomênico como afirmava Kant Seu pensamento possuiria assim abertura para o mundo e para o absoluto o que levaria o homem a reconhecer a existência de uma pessoa primeira e criadora Ao reconhecer sua existência impõese por harmonia das leis que regulam os entendimentos dos seres inteligentes uma representação A hipótese de um mundo existente por si eterno não é mais de um mundo que possa dar razão a si mesmo da sua existência Mondin 1983 p288 77 Sob o impulso de Renouvier emergem os personalistas franceses dentre eles Mounier que busca no personalismo uma concepção de pessoa humana dotada de movimento progressivo de personalização É através do corpo que nos relacionamos com o mundo pois a pessoa não é um objeto que se fragmente ou separe mas uma reorientação do universo que por ela se edificou buscandoa iluminar nos seus diversos planos as estruturas sendo preciso não esquecer que esses planos não são mais do que incidências diferentes sobre a mesma realidade Mounier 1950 p17 A pessoa nesta visão de Mounier como diz Alino Lorenzon 1996 p7 apresentase com a característica de comportarse face à história e ao acontecimento não como simples espectador mas como um ator Não se tratava simplesmente de criticar a história ainda que da maneira mais objetiva mas de pressionála tendo sempre o cuidado de não separar o pensamento da ação No centro dessa dialética é que deverá colocar sempre a pessoa isto é pessoa concreta e histórica Estudar os problemas humanos sim mas simultaneamente lutar pelo homem no processo de personalização individual e comunitária A dicotomia corpoalma é refeita através da existência encarnada dando nova dimensão ao livrearbítrio pois o homem é uma unidade de corpo e alma e numa visão personalista principalmente para o cristão aquele que fala com desprezo do corpo da matéria trai a mais central tradição pois o homem é um ser natural e seu corpo faz parte da natureza Então ao tomar consciência de si o homem real ultrapassa as teorias no exercício de sua vida principalmente em períodos de decadência humana como as guerras campos de concentração e miséria em todos os âmbitos a presença da pessoa sempre se fará de forma conflitante pois reflexão e ação exigem movimento atitude pessoal compromisso cuja abrangência comunitária ética e social são abarcadas Diante do que foi exposto ainda resta uma pergunta O que é a pessoa para o personalismo de Mounier Mounier ao referirse à pessoa em sua obra Manifeste au service du personnalisme Principes dune civilisation personnaliste 1936 apresenta esta questão Em resposta ele inicia dizendo o que não é a pessoa não é indivíduo pois este é egocêntrico impessoal avaro e singular não é consciência que alguém tem de si mesmo pois para 78 ele cada homem pode criar várias representações de si A pessoa é um absoluto vale por si mesma Ela é dotada de dignidade intrínseca dignidade humana A pessoa jamais poderá ser um meio terá que ser sempre um fim Peixoto 2001 p105 Tal pensamento conduz Mounier à elaboração de cinco aspectos fundamentais para diferenciar a pessoa do indivíduo Primeiro para ele não existe a experiência imediata da pessoa Quando esta tenta apreenderse aparecemlhe as multiplicidades que a dispersam Tudo a princípio é difuso fuga de si e excitação espécie de fantasia interior dissolução de minha pessoa na matéria Mounier 1961 tI p525 Movido por estas influências aí se encontra indivíduo Porém a individualidade não é simples entrega passiva às percepções às emoções e reações A individualidade abriga uma exigência mordaz um instinto de propriedade É através deste instinto que o homem inveja apossa reivindica e depois firma na propriedade as suas defesas Dispersão avareza eis as duas marcas da individualidade A pessoa é domínio e escolha é generosidade Ela é portanto na sua orientação íntima polarizada justamente o contrário do indivíduo Ibid p525 O personalismo repudia todo tipo de extremismo como o espiritualismo do espírito impessoal ou o racionalismo da ideia pura que desconhece a pessoa Para Mounier existe na pessoa a substância da encarnação que é a tensão dinâmica bipolar de dispersão e concentração em que corpo e alma transcendem transcendimento Cf nota n 31 ao m esmo tempo Mas para energizar estes polos antes carece suprir a exigência do atendimento material atender às necessidades mínimas de bemestar e segurança para depois despertar a vida pessoal O indivíduo encarnado apresenta o lado irracional da pessoa A pessoa é polarizada por estar em sentido contrário ao da individualidade Nessa tênue linha que percorre a pessoa em sua transformação pela personalização emerge o segundo aspecto o da consciência que é um avanço para além da dispersão da individualidade Mounier os trata como esboços sobrepostos da personalidade Personagens que eu represento nascidas da aliança do meu temperamento com o meu capricho que frequentemente se mantêm ou reaparecem por 79 surpresa personagens que fui e que sobrevivem por inércia ou por covardia personagens que eu creio ser porque as invejo ou porque as recito ou porque deixo que imprimam em mim a moda personagens que eu desejaria ser e que me garantem uma boa consciência porque acredito sêlas Mounier 1961 tI p527 Ao se aprofundar um pouco mais para além dos personagens chegase aos desejos às vontades e esperanças Estes apelos obstinados aparecem rapidamente são estreitos contra a vida e juntamente com as ações julgam apreender a pessoa Desses resultados muitos estão contaminados de vários tipos de retórica e as melhores infelizmente são estranhas Por iniciativa numa ordem mais íntima mesmo que ainda à deriva a pessoa caminha para uma orientação profunda uma unificação da descoberta progressiva de um princípio espiritual ou seja sua vocação30 Cabe à pessoa somente a ela descobrir sua vocação que será unificante pois o seu fim é de alguma forma o modo interior que a aproxima da humanidade e ao mesmo tempo a torna singular Não se experimenta diretamente a realidade completa da vocação pois o conhecimento e a realização da pessoa é sempre simbólico e incompleto A minha pessoa não é a consciência que eu tenho dela Ibid p529 Nesta fase o esforço pessoal ainda se confunde com a dispersão do indivíduo e as representações dos personagens Para se chegar à pessoa terceiro aspecto é preciso um esforço constante de superação dépassement e despojamento dépouillement ou seja de renúncia de privação e espiritualização uma situação limite de sacrifício e dor Mounier acompanha o pensamento de Nikolai Aleksandrovich Berdiaeff 18741948 viver como uma pessoa é passar continuamente da zona em que a vida espiritual é objetivada naturalizada à realidade existencial do sujeito31 A pessoa é mistério é 30 A palavra vocação está gasta pelo uso que fazem dela escreve Mounier Confundem na com a vocação profissional temperamento aptidões caráter componentes de constituição psíquica A vocação transcende a existência Vinculase ao mistério da liberdade É ruptura quanto a tudo que abafa a voz ou desvia o sentido da autenticidade portanto ela exige proteção e vigilância uma virtude natural e sobrenatural de silêncio afim de que passo a passo caminhe rumo ao íntimo intimius intimo meo Assim a pessoa será preenchida não somente pela imagem e semelhança de Deus mas será inundada pela vida íntima de Deus por prestar a Ele a confirmação de seus pedidos Cf Mounier 1961 tI p750 751 31 O sujeito aqui mencionado possui um caráter um modo de ser espiritual um apelo à intimidade do ser uma capacidade de transcendimento esforço constante de superação e despojamento Não se trata do sujeito biológico social psicológico ou o sujeito do 80 protesto contra a superficialidade esforço que diferencia um homem de outro pela singularidade vocação e acima de tudo qualidade interior Ao desenvolver o quarto aspecto Mounier falará da liberdade espiritual e solicita atenção para não a confundir com a liberdade do liberalismo burguês que é vazia de toda a fé A liberdade da pessoa é a própria procura e descoberta de sua vocação são os meios para se realizar a liberdade de assunção de adesão e compromisso renovado com o espírito libertador É dever de todo regime institucional favorecer as pessoas as vias do encontro libertário a ele cabe 1 não aceitar qualquer forma de opressão 2 estabelecer margens de independência diante das pressões sociais 3 organizar todo aparelho social sobre o princípio da responsabilidade pessoal oferecendo maior liberdade de escolha Mounier 1961 tI p534 Para o último aspecto aludese à comunhão entre a pessoa e a comunidade No percurso do individualismo à personalização a pessoa atravessa momentos do mais baixo estado de tensão e agressividade ao mais alto assim como o herói termo supremo Mounier cita algumas vias do heroísmo como as do estóico do nietzscheano e do fascista Porém dá norte a uma via que leva a pessoa ao caminho autêntico que conduz aos mistérios do ser caminho do santo misto de heroísmo e violência espiritual mas que se transfigura é a vida de todo aquele que avalia um homem antes de tudo pelo seu sentido das presenças reais pela sua capacidade de acolhimento e de dom Ibid p534 Aqui emerge o cerne do paradoxo da pessoa lugar de tensão e calma centro do movimento ponto em que o ter comunica ao ser e este se abre inundando de acolhimento e doação Ao término dos aspectos para diferenciar a pessoa do indivíduo não vemos nas palavras de Mounier a pretensão de definir propriamente o que seja a pessoa Certamente estaria fora do propósito personalista mas a priori descreve uma possível designação de cunho religioso Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência em seu ser ela alimenta essa subsistência por uma adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por um racionalismo que durante muito tempo empregou a palavra no sentido de irrealidade Cf Mounier 1961 tI p529 81 compromisso responsável e uma constante conversão deste modo ela unifica toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo mediante atos criadores a singularidade de sua vocação Mounier 1961 tI p523 Por outro lado aponta que a definição acima não pode ser verdadeira porque a pessoa é indefinível de acordo com os rigores da sistematização pois não se trata da arquitetura de um objeto mas sim de uma experiência de vida iniciativa vida espiritual e responsabilidade Sendo a pessoa com efeito a própria presença do homem a sua característica última ela não é susceptível de definição rigorosa Ela não é objeto de uma experiência espiritual pura desapegada de todo o trabalho da razão e de todos os dados sensíveis Entretanto revelase através de uma experiência decisiva proposta à liberdade de cada um não da experiência imediata da substância mas da experiência progressiva de vida a vida pessoal a vida pessoal é com efeito uma conquista oferecida a todos e não uma experiência privilegiada ao menos acima de um certo nível de miséria Ibid p524 Sobre esta exigência de uma experiência fundamental o personalismo agrega um juízo de valor um ato de fé o absoluto da pessoa humana não será comparável com quaisquer realidades materiais sociais ou com outra pessoa humana Para ele mesmo Deus na doutrina cristã respeita a liberdade pois dessa forma a pessoa se aproxima vivifica e busca afirmação de valor em sua crença de que somos sua imagem e semelhança Suspeitouse que Mounier por defender a pessoa quisesse reintroduzir o individualismo Mas seus pensamentos percorreram caminhos opostos Preocupouse muito com tal problema e relatava que se não se colocar todo o diálogo referente à pessoa nesta área abismal da existência e se também se limitar às reivindicações das liberdades públicas e dos direitos da fantasia isto poderia levar o homem a se adaptar e se acomodar numa posição sem resistência profunda então correremos o risco de defender apenas os privilégios do indivíduo e é verdade que estes privilégios devem ceder em várias circunstâncias a uma certa organização da ordem coletiva Ibid p524 52532 Diante da não definição sistêmica do que seja a pessoa tanto nas 32 Veja abaixo Capítulo II Subseção 33 82 palavras de Gabriel Marcel por ser esta não inventariável como nas de Mounier de que não se trata de um objeto passível de separação e observação mas de um centro de reorientação do universo objetivo importa então adentrar o universo da pessoa a fim de conhecer suas estruturas os pilares que revelam parcialmente o mistério da pessoa que para Mounier era o que haveria de mais belo presente neste mundo 2 Estruturas do Universo Pessoal A ideia de pessoa para Mounier é compreendida como um universo dinâmico sempre em prova num movimento contínuo de personalização de si e do mundo mas sujeita à despersonalização pelas ameaças alienantes No entanto existir significa elegerse comprometerse conquistar incessante mente seu universo não desenvolvendo apenas o plano da consciência mas toda sua grandeza numa luta permanente para humanizar a humanidade 21 Unidade entre existência e encarnação Mounier inicialmente ao retratar o universo pessoal reconhece que há no ser uma estrutura psicofísiológica do homem chamada por ele de existência incorporada evidenciando a existência de uma unidade entre o sujeito e o corpo que confere aos dois uma única e mesma experiência uma existência corporificada O homem é corpo e espírito mergulhado na natureza é um ser natural seu corpo é parte da natureza e o segue por onde for33 O homem por outro lado transcende a natureza pois é um ser natural humano capaz de romper 33 Na visão de Mounier 1950 p21 a natureza é entendida como todos os elementos que condicionam a natureza exterior anterior ao homem inconsciente psicológico participações sociais nãopersonalizadas que confinam a existência A encarnação não é uma queda Mas exatamente porque é a situação do impessoal e do objetivo é permanente ocasião de alienação 83 com a natureza e transformarse não é encerrado no seu destino pelo determinismo Se nos mantemos concretamente ligados a numerosos e estreitos determinismos cada novo determinismo que os sábios descobrem é mais uma nota na gama da nossa liberdade Mounier 1950 p23 Ciente de sua existência a pessoa caminha rumo à liberdade sempre e continuadamente Esta ascensão da pessoa criadora pode acompanhar a história do mundo tratandose de uma luta entre o movimento de despersonalização e o movimento de personalização O primeiro aniquila a vida social e espiritual através da abstenção como pessoa responsável e autêntica Quanto ao segundo Mounier faz referência a Teilhard de Chardin ao concordar que este movimento começa com o homem ao longo de toda a história do universo e então a imergência do universo pessoal não vem deter a história da natureza antes a compromete na história do homem sem inteiramente a submeter Ibid p25 Mounier observa que o materialismo quando histórico e localizado tem razão no que se refere ao comportamento dominado pela situação biológica e econômica pois no decorrer da história o homem vive entremeio aos instintos paixões e interesses Por outro lado o espiritualismo e o moralismo tornamse impotentes diante do jugo biológico e econômico exatamente por desprezarem tais concepções Por isso Marx tratará o espiritualismo e o moralismo como abstratos O personalismo comunga com o pensamento de Marx e opõese também ao idealismo quando este reduz a matéria e o corpo através de uma atividade puramente ideal ou quando reduz o sujeito pessoal acomodandoo sob seus resultados objetivos A proposta personalista é de um realismo integral estando longe de ser um espiritualismo Pertencelhe em toda a latitude da humanidade concreta qualquer problema humano desde a mais humilde condição material às mais elevadas possibilidades espirituais Ibid p26 Mas o espiritual também é uma infraestrutura do homem e as desordens tanto psicológicas como espirituais ligadas a uma desordem econômica podem contaminar as soluções adquiridas no campo da economia pois desprezando as exigências fundamentais da pessoa já traz dentro de si a própria ruína Alino Lorenzon resume Há entre esses dois elementos essenciais uma estreita interdependência e reciprocidade que nenhuma ética 84 pode ignorar sem cair num falso materialismo ou num falso espiritualismo Lorenzon 1996 p70 O pensamento de Mounier parece avançar com base no argumento de São Tomás e seus seguidores no que se refere ao reconhecimento da autonomia da alma quanto ao ser pela presença do homem sob certas atividades absolutamente espirituais Por outro lado sentese o constrangimento ao negar a identificação da alma com a totalidade do homem porque esta não se encontra em condições de realizar sozinha certas atividades concernentes ao homem como trabalhar sentir comunicarse e mesmo suas atividades puramente espirituais como conhecer intelectualmente e exercer a capacidade de escolha livre em sua condição encarnada34 Daí Mounier afirma que a união da alma e do corpo é algo indissolúvel é uma unidade que não se submete a uma hierarquia de autonomia A obra Tratado do caráter descreve o espiritual como em si carnal e caminhando ao mesmo tempo sob as influências do meio social dos momentos políticos históricos educacionais religiosos enfim como não escapando às raízes lançadas pela humanidade no material e portanto a pessoa está encarnada em um tempo e lugar e por entre outros homens Concluise que existe uma teia interligando tudo e todos sendo merecedora de uma profunda atenção em toda sua dimensionalidade Sendo portanto a pessoa corpo e alma ao mesmo tempo existir subjetivamente existir corporalmente são uma única e mesma experiência Podese reforçar tudo o que se lança contra a matéria ou o espírito conduz a graves erros e para Mounier eram inconsistentes o espiritualismo do espírito impessoal e o racionalismo da ideia pura que jamais interessariam para o destino do homem Já os horizontes elucidados por Freud sobre os instintos e por Marx sobre a economia ele os descreve como aproximações dos problemas humanos mas de forma fragmentária por outro lado o espiritualismo e o moralismo tornaramse impotentes pois rejeitaram por completo as ideias de Marx e Freud Portanto uma posição se faz necessária para o problema prático ou seja assegurar a solução nos planos das infra 34 A respeito ver Tomás de Aquino Suma teológica primeira parte questões 7589 no que se refere ao conhecimento especialmente questão 84 artigos 68 85 estruturas biológica econômica e espiritual Por mais racional que uma estrutura econômica possa ser considerada recordese que se desprezar as exigências fundamentais da pessoa trará incluída em si a própria ruína Mounier 1950 p27 Notase assim que o homem está mergulhado na matéria mas não é servo dos mecanismos e condicionantes Ele tem por finalidade conquistar o seu universo pessoal uma existência corporal uma consciência pessoal Empreende portanto uma personalização da natureza que confere a vocação de resgatar pelo trabalho resgatandose a natureza Com o passar do tempo o homem foi se afastando pela técnica da relação dialética entre a pessoa e a natureza com isso foi se despersonalizando Tornase então preciso resgatar o primado humano pois a produção não tem valor se não visar ao seu mais alto fim a prosperidade do mundo de pessoas Portanto não é o personalismo nas palavras de Maurice Nédoncelle Uma filosofia de domingo à tarde pois sempre que a liberdade alça voo a natureza a prende ameaça a insegurança e as preocupações são de nosso quinhão A perfeição do universo pessoal encarnado não é pois a perfeição de uma ordem como pretendem todas as filosofias e todas as políticas que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo É perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente Ibid p33 Existe neste ser dual uma ética cristã da encarnação em que a pessoa ciente de que seu corpo e espírito constituem uma única substância integrada e completa passa a ter consciência de si não desprezando nem um nem outro O desprezo pela matéria converteuse em apreço pela matéria alcançando de forma coerente o seu devido espaço atingindo o horizonte cósmico da evolução do homem e do mundo nos estudos de Teilhard de Chardin e na poesia de Paul Louis Charles Claudel Daí ser o homem responsável por si e pelo mundo personalizandose em reciprocidade com a natureza humanizando e transformandoa dando um movimento à história numa universalização progressiva dos grupos em comunidade uma outra via dual um pensamento focado na natureza e na coletividade Para Mounier a história do universo é também a história do homem A evolução biológica tende à formação de pessoas autônomas dotadas de um 86 poder de escolha revestidas da dignidade de causalidade Cf Pascal aVII fr513 encarnação eterna do Verbo A pessoa espiritual é o auge da transcendência da evolução vital trajetória progressiva que caminha para o sentido de uma libertação espiritual 22 Transcendência da pessoa e sua eminente dignidade O homem vai além ultrapassa transcende a natureza e sua transcendência manifestase a partir de atividades produtoras Portanto realizar e realizando realizarmonos nada mais sendo do que o que realizamos Mounier 1950 p84 Mounier se recusa a se entregar completamente a este pensamento sartriano de encerrar o todo do homem num pensamento quase marxista na atividade de produção Ora esta atividade não se restringe a uma operante solidão A pessoa para ele vai muito além do que e o que produz Afirma também que os melhores atos humanos nem sempre são os voluntários Mounier pede para que não se confunda isto com a agitação do élan vital um viver a todo custo pois é o contrário Como para Gabriel Marcel ao tomar consciência de que sou mais do que minha vida diz Mounier encontro este paradoxo de que alguém não se encontra no plano pessoal senão quando se perde no plano biológico Gosto diz Nietzsche das pessoas que não pretendem conservar e é com todo meu coração que amo os que soçobram porque passaram para o outro lado Ibid p8485 Não se trata também de um élan social que segundo a demonstração de Bergson35 tende a se renegar em sociedades fechadas onde o eu se enrijece em um egocentrismo maior Sustenta Mounier Ibid p85 que a aspiração transcendente da pessoa não é agitação mas tratase de uma negação de nós próprios num mundo fechado e isolado A pessoa não é o ser é movimento do ser para o ser e não é consciente senão no ser a que visa Sem esta aspiração dispersarseia 35 Cf Henri BERGSON As duas fontes da moral e da religião Trad Nathanael C Caixeiro Rio de Janeiro Zahar Editores 1978 87 MüllerFreienfels em sujeitos momentâneos36 Michel Richard 1978 p120 por seu lado resume apropriadamente Ser transcendente não significa que o homem esteja cortado da realidade quer dizer que há no homem uma qualidade de ser para fazer progredir Ser pessoal quer dizer uma tensão de si a si um movimento íntimo de natureza espiritual pelo qual o homem se ultrapassa constantemente para si e para outrem A transcendência é a riqueza produtora de um si em constante tensão consigo mesmo e em perpétua confrontação com outrem e com a realidade social Mas quais os caminhos a seguir Em primeiro lugar uma experiência da superação em que o transcendente é apreendido pela existência e em segundo lugar o transbordamento onde o ser ultrapassa mais do que tudo o que faz muito além de sua vida Dessa forma poderá culminar em um movimento transpessoal combatente conferido pela experiência da comunhão e valorização cujo resultado inclui como processo de personalização valores como a felicidade a ciência a verdade os valores morais a arte a história os valores religiosos enfim tratase de relações estreitas É necessariamente um movimento combativo diante da infinidade de obstáculos Candide Moix recorda que a dignidade da pessoa não corre o risco de ser esmagada pelas forças exteriores da opressão podendo até degradarse no íntimo pela falta da própria pessoa Por isso na visão de Mounier 1950 p90 aderir aos valores pode exigir o sacrifício da vida Só existimos definitivamente a partir do momento em que constituímos um bloco interior de valores ou de devotamentos E sabemos que a própria ameaça de morte não prevalecerá contra ele 36 Pensamos ser importante descrever brevemente algumas passagens da biografia de Richard MüllerFreienfels 18821949 Nascido em Bad Sem foi professor da Academia Pedagógica de Stettin da Escola Superior de Comércio de Berlim e da Universidade de Berlim Interessouse pela psicologia da arte recusando as orientações positivistas e sensualistas Tratoua de psicologia vital encontrando apoio nos pensamentos de Nietzsche e Ludwig Klages bem como orientações pragmáticas como a de Willian James Tal norte conduziuo a uma teoria do conhecimento baseada na ideia de que a chamada objetivação é no máximo um momento derivado de uma posição do real efetuada pelo sujeito Para ele o conhecimento do real é determinado por uma série de intenções As intenções são as expressões do sujeito total Cf Mora 2001 p 2023 88 23 Comunicação aprendizagem interpessoal Viver a experiência da comunicação é de fundamental importância para a pessoa encarnada pois esta se direciona aos outros e ao mundo Mounier lembra que na infância a primeira experiência da criança se dá quando ao sair da vida vegetativa ela descobre o outro aprende com as atitudes de quem lhe ensina ou seja vive a experiência primitiva da pessoa que é a experiência da segunda pessoa O tu e adentro dele o nós precede o eu ou pelo menos o acompanha Mounier 1950 p38 Acentuase que é pela natureza material que a exclusão ocorre dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço mas na comunicação é neste mesmo movimento que a pessoa se torna ser e se expõe Aí está sua natureza comunicável Sabese demasiadamente que o mundo do outro é bem diferente mas Mounier contesta o pensamento existencialista de Heidegger e Sartre em que A comunicação está envolvida pelo desejo de possuir e de submeter Cada um de nós é necessariamente ou um tirano ou um escravo O olhar dos outros rouba o meu universo a presença dos outros detém a minha liberdade a sua escolha paralisame O amor é uma infecção mútua um inferno Ibid p35 Recorre à história que permite perceber que tal pensamento advém do instinto de autodefesa que surgiu com o individualismo ideológico burguês ocidental do século XVIII e XIX permitindo a formação de um homem abstrato sem comunidades naturais calculista voltado somente para o lucro reduzindo os outros a meros espelhos este seria o período mais pobre que a humanidade conheceu o que favoreceu posteriormente a realidade e ideia existencialista A questão personalista é tornar frutífera a comunicação comunicação como fato primitivo descentrando o indivíduo tornandoo disponível transparente a si próprio e ao outro É portanto o personalismo abordado como filosofia da segunda pessoa tu e eu formando o nós uma comunidade Notase que quando a comunicação enfraquece ou se corrompe a pessoa se perde a si própria e todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros o alter tornase alienus tornome também estranho a mim 89 próprio alienado só existo na medida em que existo para os outros ou na frase limite ser é amar Mounier 1950 p39 Daí ser a ética de inspiração personalista fundamentada em um esforço constante ininterrupto de superação de si e do material uma sucessiva afirmação e negação de nós próprios Ao tratar deste assunto Mounier enumera um conjunto de atos originais para a criação de uma sociedade de pessoas 1 Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si tornarse aberta ao outro Deve romper o invólucro estilhaçar a proteção moldada e acomodada do egocentrismo narcisismo descentrandose invocando um encontro ou seja a ascese do despojamento é a ascese central da vida pessoal pois só liberta o mundo e os homens aquele que já se libertou 2 Compreender Abrirse à visão do outro princípio de alteridade de acolhimento do outro 3 Tomar sobre si a alegria o sentimento e a angústia dos outros 4 Doação A força do impulso pessoal não está na reivindicação individualismo pequeno burguês nem na luta de morte existencialismo mas na generosidade e no ato gratuito na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa37 5 Fidelidade As dedicações pessoais como amizade amor somente serão perfeitas na continuidade numa fidelidade criadora na aventura interpessoal numa contínua renovação pois é assim que aumenta e confirma em nós o nosso próprio ser Certamente existem muitas variantes algo que foge ao esforço da comunicação um esforço de reciprocidade até a nossa existência é como que inerente a uma opacidade irredutível a uma indiscrição que é a barreira à livre comunicação Ibid p42 Por isso a nossa ausência mas o olhar do outro não é apenas um olhar que fixa e enrijece como pretende Sartre ele é 37 Convém observar que a generosidade sublinhado no texto de Mounier é a paixão e virtude fundamental e central de Descartes equivalente de acordo com este à magnanimidade dos escolásticos Cf Tratado das paixões art 161 Ver Tomás de Aquino Suma teológica IIII questões 129133 magnanimidade e questões 134135 magnificência Aristóteles Ética a Nicômaco Livro IV cap 24 R A Gauthier La magnanimité lideal de la grandeur dans la philosohie painne et dans la théologie chrétienne Paris J Vrin 1951 90 também o mais seguro revelador de mim mesmo Severino 1983 p83 Para Mounier a pessoa cresce em contato com pessoas e somente se realiza relacionandose com os outros seria impossível atingir a comunidade esquivandose da pessoa só na medida em que se torna constitutivamente pessoa poderá haver comunidade O nós segue o eu ou mais precisamente não poderia precedêlo O contrário isto é a comunidade como anterior à pessoa é uma aparência O nós orgânico o nós realidade espiritual consecutiva ao eu não nasce de um apagamento das pessoas mas de sua realização Severino 1983 p85 Aristóteles dizia ser o homem um animal racional Teilhard complementa que além de racional é reflexivo ou seja dotado de personalização38 Consequentemente a comunicação é um elemento de uma ética de responsabilidade é o canal livre para qualquer entendimento entre seres reflexivos pois A forma mais baixa que podemos conceber de um universo de homens é aquela a que Heidegger chamou o mundo do man a gente mundo em que nos deixamos aglomerar quando renunciamos a ser pessoas lúcidas e responsáveis mundo da consciência sonolenta dos instintos anônimos das opiniões vagas dos respeitos humanos das relações mundanas do diz que diz cotidiano do conformismo social ou político da mediocridade moral da multidão das massas anônimas das organizações irresponsáveis Mundo sem vitalidade e desolado onde cada pessoa renunciou provisoriamente a sêlo para se transformar num qualquer não interessa quem de qualquer forma O mundo do man não constitui nem um nós nem um todo Não está ligado a esta ou aquela forma social antes é em todas elas uma maneira de ser O primeiro ato de uma vida pessoal é a tomada de consciência dessa vida anônima e a revolta contra a degradação que representa Mounier 1950 p4539 Lembremos que o Personalismo assim como o Movimento Esprit sempre estiveram em permanente diálogo com várias correntes de pensamento e ação buscavam assim através da comunicação entre pessoas ampliar encontros e debates com outros credos ordens políticas filosóficas religiosas 38 Cf Teilhard de Chardin O fenômeno humano parte III O pensamento Cap I Nascimento do pensamento 39 Na obra original encontramos o termo grifado monde de lOn Preferimos a expressão alemã mundo do man Cf nota n 28 91 Estudiosos definem o personalismo como sendo uma Filosofia Dialógica Lorenzon 1996 p4240 em que o termo adversário passa a ter uma conotação de pôr em evidências as minhas certezas incertezas e contradições sendo o outro de extrema importância para que sua inteligência não fique estagnada na introversão intelectual ou nas ideias fixas Assim o pensamento dialógico possui dois momentos o primeiro é o da oposição Por duvidar com maior ou menor intensidade dependendo da realidade este ato já libera o homem para a busca da verdade questionando as forças que o fazem jazer no imobilismo e no conformismo O segundo momento do pensamento dialógico é o da comunicação ou da expansão ou seja o amor à verdade não uma simples confrontação mas um compromisso em que as respostas se refletem na ação transformadora para a pessoa e a comunidade Diante de sua época retornando ao mundo man Mounier aponta que jamais houve tantas sociedades vitais41 e menos comunidades comum unidades pois não se trata de agrupar pessoas é preciso ver que existe a pessoa não uma despersonalização para a massa um mundo da indiferença composto de anônimos como se disse acima Cf p8687 Chega a dizer que há momentos em que a sociedade vital anteparase com uma sociedadeem nós42 como o nós proletários nós jovens nósoutros Enfim são mostras de que a indiferença mutila e infelizmente muitas pessoas também caem novamente na despersonalização Tentouse edificar uma sociedade racional no século XVIII com apoio dos juristas e filósofos Primeiro através da instrução obrigatória da organização industrial e pelo direito procurandose fundar uma sociedade jurídica por contrato baseada na convenção e na associação Pensavase 40 Veja o artigo Lorenzon 1996 p3546 O diálogo adaptado do capítulo 11 primeira parte da tese de doutorado em Filosofia intitulada Personne et communauté essai sur loeuvre dEmmanuel Mounier Paris Université de ParisX 1972 385p 41 Moix 1968 p151 diz Mas o que é uma sociedade vital Chamaremos de sociedade vital toda a sociedade cujo laço se constitui do fato de viver em comum certo fluxo vital a um tempo biológico e humano e de se organizar para vivêlo da melhor maneira possível São em suma as associações de interesse em que as funções se distribuem individualizam mas não personalizam onde os indivíduos são permutáveis sendo assim a sociedade econômica Muitos casais muitas famílias são meras associações e não verdadeiras comunidades espirituais Seria falso acreditar que a organização sabiamente estudada das estruturas econômicas e políticas basta para criar uma comunidade 42 Prosseguindo com Moix 1968 p151 O melhor exemplo das sociedadesemnós é dado pelo fascismo É significativo que nasçam habitualmente nas democracias em que a despersonalização atingiu um estágio avançado 92 assim fundar uma sociedade em que houvesse acordo dos espíritos baseado em um pensamento impessoal e acordo dos comportamentos baseado numa ordem jurídica formal Tudo foi por terra a paz desejada não vingou o solo pareceu estéril A experiência iria demonstrar que o saber não agita paixões que o direito formal pode sufocar desordens persistentes que a organização e a ideologia quando desprezam o absoluto pessoal levam tal como as paixões à polícia à crueldade e à guerra Numa palavra que não se pode estabelecer a universalidade esquecendo a pessoa Mounier 1950 p46 Tratase da descoberta do outro A aprendizagem da comunidade é pois a aprendizagem do próximo como pessoa em sua relação com a minha pessoa o que se chamou de modo feliz aprendizado do tu Severino 1983 p8543 Lima Vaz em Nota histórica sobre o problema filosófico do outro aponta que é o pensamento de Emmanuel Mounier que dá a verdadeira dimensão ao personalismo francês 2001 p209 Lima Vaz escolhe vários textos mais significativos de Mounier a respeito do problema do outro e identificaos em nota de rodapé que sem sombra de dúvida foram depois utilizados em sua antropologia filosófica referente à categoria da pessoa Cf Ibid 240 Severino reforça a recomendação de Mounier para que o personalismo não seja tratado com ligeireza e portanto visto de forma equivocada como um avatar do individualismo pois se o nós é anterior ao eu se a vida pessoal não é volta sobre si mas movimento para e com o outro para e sobre o mundo natural para um acima e um além do adquirido tão fundamentalmente como é recolhimento e interioridade o Personalismo situase nos antípodas do narcisismo do individualismo do culto egocêntrico 1983 p89 Em suma para o personalismo a comunicação é o elo vital da humanização da relação entre nós da comunidade de uma aprendizagem do próximo como pessoa ou seja a aprendizagem do tu 43 Permitimonos apropriar do título do conhecido livro de CORÇÃO Gustavo A descoberta do outro 5 ed Rio de Janeiro Agir 1955 93 24 Recolhimento como meio de exteriorização Nas palavras de Mounier se a pessoa é movimento para o outro a interiorização o recolhimento a conversão íntima é o seu complemento A pessoa é recolhimento e ao mesmo tempo acolhimento é uma correlação comunicativa interior Não se trata de um movimento fugidio mas de uma busca pelo silêncio e retiro uma organização de si mesmo pois as distrações da atual civilização destroem o sentido do tempo livre o gosto pelo tempo que corre a paciência da obra que amadurece e vão dispersando as vozes interiores que dentro de pouco tempo apenas o poeta e o homem religioso escutarão Mounier 1950 p52 Diante da diversidade da multiplicidade dos eventos o homem passa a não possuir sua própria vida vive a dos sistemas como um autômato regido pelas ideologias ou dogmas e se perde por entre as turbas O homem do divertimento vive como que expulso de si confundido com o tumulto exterior assim o homem prisioneiro de seus apetites de suas funções de seus hábitos de suas relações de um mundo que o distrai Vida imediata sem memória sem projetos sem domínio que é a própria definição de exterioridade ou à escala humana de vulgaridade A vida pessoal começa com a capacidade de romper contatos com o meio de retomar de reaperceber Ibid p5244 O recolhimento le sur soi vem a ser retomar reaperceber daí a necessidade de um movimento para a meditação de um aprofundamento pessoal para concentrar todas as forças com o objetivo de estabelecer o seu centro unificador as energias espirituais da pessoa No recolhimento a pessoa pode assumir a postura silenciosa do retiro através do segredo len soi reserva pessoal que deve ser respeitada mas que também possui seus limites O recolhimento não abarca somente as ruminações e segredos pois um ato lhe dá início e um ato o conclui Assim é preciso também sair da interioridade para sustentar e nutrir a interioridade É a própria estrutura da vida pessoal que a isso nos obriga a reflexão não é somente um olhar interior lançado sobre 44 Para Mounier este homem expulso de si apresentase no aspecto de uma demissão como o divertissement de Pascal o estágio estético de Kierkegaard a vida inautêntica de Heidegger a alienação de Marx ou a máfé de Sartre 94 mim e minhas imagens é também intenção projeto de nós próprios Mounier 1950 p5556 A discrição de certos segredos é salutar pois a reserva é manifestação de respeito da pessoa à sua vida pessoal ou seja a intimidade le privé Ora pessoas que se exibem não percebem a densidade do segredo e logo se esvaziam Mesmo na comunicação esta não ocorre completamente de forma direta mas através de meios indiretos como o humor a ironia o mito os símbolos dentre outros Ibid p5354 Estas formas de comunicação para Mounier se abrigam no não inventariável que se liga a certo segredo uma espécie de pudor contraditório No personalismo a temática sobre o pudor possui grande importância O pudor é o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões nem ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria sua existência uma vez que esta se manifestasse totalmente Ibid p54 Para o personalista entre a vida privada e a vida pública há um marco onde se estabelece a paz das profundidades a intimidade comunicada lá onde se encontra o pudor que resguarda a pessoa significando que ela é muito mais do que o próprio sentimento e corpo analisado Ao passo que a vulgaridade oferece aparência imediata quando exibida aos olhares públicos É preciso no entanto destruir os falsos pudores e um sentido mórbido do segredo É na intimidade o privado no recolhimento que se pode encontrar uma espécie de plenitude um encontro com as fontes interiores Mas todo cuidado deve ser tomado para não se entorpecer neste retiro preferindo uma vida vegetativa fechada protegida uma prática burguesa da vida privada com seus pseudo segredos dos negócios da casa etc Mounier alerta para não se pensar como puros espíritos devendo ficar vigilantes para que a paz vegetal não abafe a espiritual tornando a vida fechada e exclusiva quando o pudor vira excessiva prudência e se degrada Os regimes totalitários basearamse nesta degradação para eliminar de modo radical a esfera do privado Talvez temam não apenas as deturpações do privado mas sobretudo seus verdadeiros e profundos recursos Ibid p55 A abertura para a intimidade exige do homem uma sucessiva afirmação e negação de si mesmo uma angústia essencial ligada à existência pessoal e 95 ao mistério da liberdade Para tal tornase necessário um movimento constante de apropriação e desapropriação negação e afirmação de si mesmo É pelo desapego que o homem se permite realizar a verdadeira comunhão Eis a distinção central entre o ter e o ser para Mounier Não é possível ser sem ter embora nosso ser seja infinita capacidade de ter jamais esgotável pelo que tem e ultrapasse em muito o ter pelo seu significado Sem ter a existência não se afirma perdese nos objetos Além do mais possuir é entrar em contato renunciar à solidão à passividade há falsas pobrezas que não são mais do que escapatórias O idealismo moral é muitas vezes a procura de uma existência que nada mais pesaria existência contra a natureza que leva à falha ou à inumanidade Mounier 1950 p57 Nesta ótica a propriedade assim como a intimidade é exigência concreta da pessoa Não deve ser excluída desta individualidade das pessoas pois o ter é atitude do espírito e seria utópico excluir o sentido da propriedade O maior complicador é o problema da possessão humana que tende à alienação à degradação do ser nos objetos à submissão exaltando a posse como se ela fosse por si própria a libertação Por isso os problemas das responsabilidades éticas frente à utilização dos bens Usufruir da propriedade é um direito humano exigência do ser temporal e espiritual Mas no regime de bens proposto pela sociedade burguesa não há somente uma alienação histórica contingente Há no centro de toda possessão humana uma alienação do trabalho sempre renovada Ibid p58 O mal da posse e da propriedade se manifesta quando o comportamento possessivo reverte em anomalias psíquicas éticas sociais que derivam em crimes guerras e outras infelicidades É aí que se encontra a grande superação a conversão onde a dialética personalista do ter é menos triunfante pois se deve originar de uma entropia ou de uma involução do ter O desenvolvimento humano implica um despojamento de seus bens e de si e consequentemente se despolariza do egocentrismo Enfim Mounier salienta que a vida interior mantém no homem certo segredo sua intimidade uma personalidade Ao contrário os que se exibem não passam de um livro aberto que logo se esgota O recolhimento não é demissão do mundo nem uma paz vegetativa Interioridade e 96 exterioridade são movimentos essenciais da existência pessoal do homem total espiritual e carnal Ser é expandirse É preciso que não desprezemos tanto a vida exterior sem ela a vida interior tornarseia incoerente tal como sem vida interior aquela não seria mais que delírio Mounier 1950 p62 25 Afrontamento e sua dinâmica A palavra grega que foi traduzida por pessoa é o termo prósopon olhar para frente e afrontar A conversão pela interioridade e a luta pela exterioridade faz a pessoa prepararse para uma existência autêntica Mounier gostava muito da palavra afrontamento e não queria que se colocasse sob ela qualquer conteúdo pois o afrontamento da pessoa não se confunde com sua singularidade Suas palavras são recordadas Mounier apud Moix 1968 p163 Se é verdade que toda pessoa é única não se deduz que a originalidade é marcada por excelência Só somos típicos na medida em que nos falta ser plenamente pessoais A originalidade aparece como forma secundária ou um subproduto da vida pessoal o que caracteriza o cume da existência pessoal são antes as virtudes da pessoa despojada de glória e afetação Mounier cita alguns exemplos como o herói no auge da batalha o amante que se entrega o criador em êxtase diante da sua obra e o santo no encontro com Deus Estas pessoas vivem momentos em que ao atingirem a plenitude da vida pessoal não se diferenciam nem se singularizam Também não estão voltadas para essa ou outras formas de ação estão lançadas integralmente para fora de si próprias totalmente entregues ao que são para pensar como são Mounier 1950 p64 Não devemos pensar que tais pessoas são exceções Como disse Kierkegaard O homem verdadeiramente fora do comum é o homem verdadeiramente comum e Mounier afirma que o personalismo não é uma ética dos grandes homens nem tampouco de uma aristocracia dos prestigiosos sucessos psicológicos e espirituais característica dos altivos chefes à moda Nietzsche A pessoa é existir aceitar dizer sim mas muitas 97 vezes é dizer não protestar desligarse é romper São as reviravoltas exigências essenciais da vida pessoal existência e ação uma constante tensão entre o sim e o não compromisso engagement45 e descompromisso uma difícil presença no mundo A recusa significa oporse a algo fazer oposição é ter ciência da responsabilidade é também fazer uso da força não da força bruta do poder da agressividade mas da força tal como a moral cristã a viu força humana interior e espiritual que se manifestou como em Gandhi Onde só nos resta escolher entre a covardia e a violência aconselharei a violência Se amamos a paz só pelo simples medo das baionetas prefiro que nos degolemos mutuamente entre nós mesmos Prefiro ainda ver a violência exteriorizarse a vêla refreada só pelo medo Mounier apud Moix 1968 p117 Mounier 1950 p67 complementa as palavras do apóstolo moderno da não violência O amor é luta a vida é luta contra a morte a vida espiritual é luta contra a inércia material e o sono vital A pessoa toma consciência de si própria não no êxtase mas em uma luta de força A força é um dos seus principais atributos Denunciou os erros do pacifismo dos fracos pediu para que não fugissem da força mas impedissem a violência Tratavase de uma revolta contra a domesticação a opressão o aviltamento humano a depreciação dos direitos inalienáveis da pessoa A força do personalismo ao afrontar a sua época denunciou várias formas de tirania e em tal momento diante das atrocidades era necessário romper defender a dignidade e se preciso fosse com a própria vida pois o protesto e a recusa não são valores supremos da pessoa São atitudes e gestos necessários para a saúde da vida pessoal e coletiva Lorenzon 1996 p56 45 Mounier foi o primeiro a empregar o termo na França Tal palavra provém de Scheler e Jasper Segundo Candide de Moix muitos acreditam que a própria exigência do engajamento e a própria palavra advenham do pósguerra mais precisamente através da equipe existencialista de Temps Modernes Mas Moix retifica e conclui que foi através da revista e do movimento Esprit principalmente a partir de 1936 que a palavra engajamento foi extensamente empregada na França Daí sua imensa repercussão Cf Moix 1968 p191 Bom lembrar que Sartre fica conhecido pelo seu engajamento combate social e político mais tardio que se imagina A revista Les Temps Modernes foi fundada em 1945 enquanto que a Esprit de Mounier em 1932 98 Em suma ser é amar é recusar mas também é afirmarse Mounier recorre a Bernanos que fala do homem que tem a capacidade de impor a si próprio uma disciplina mas que não a aceita cegamente de ninguém Pessoa de testemunho vivo que se dá ou se recusa mas que nunca e a nada se presta Espécie rara de homem acrescenta Mounier 1950 p71 pois a grande maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência a vida material e vegetativa à aventura humana Por isso a recusa da domesticação e da opressão é uma dimensão da pessoa seu último recurso quando o mundo se levanta contra o seu reino Ibid p71 26 Liberdade com condições A liberdade é outra dimensão essencial da pessoa Segundo Mounier liberais marxistas existencialistas e cristãos a colocam no centro de suas perspectivas Como suas concepções a respeito são discordantes resultou daí uma grande confusão pelo fato de se separar a liberdade da estrutura total da pessoa Ora a liberdade é afirmação da pessoa vivese não se vê Mounier 1950 p72 A liberdade não é uma coisa Ela não se prova como prova um teorema O homem tenta conhecêla enquadrandoa como ausência de causa ou lacuna no determinismo O que temos então Para Mounier seriam formas mal definidas de liberdade como indiferença e indeterminismo A indiferença é a liberdade de nada ser de nada fazer ou desejar É o não se comprometer o não afrontar que é pura negação de si A outra é o indeterminismo dos físicos modernos que desconstrói apenas as pretensões positivistas A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais conquistase por cima deles mas com eles Ibid p73 O avanço da ciência moderna ampliou os conhecimentos de tal forma que se tentou também identificar a liberdade No próprio nível da natureza Mounier salienta que o indeterminismo das partículas não é a liberdade mas tal fenômeno propõe uma estrutura não rígida do mundo o que pode ser considerado uma das condições da liberdade A molécula viva não é também a liberdade mas tal acumulação de energia pode ser tida como orientada para multiplicar possibilidades e preparar centros de escolha A autonomia 99 psicológica que permite ao indivíduo animal regular sua nutrição temperatura locomoção e permutas com o ambiente e outros indivíduos não é ainda a liberdade Prepara porém a autonomia corporal que serve de base à autonomia espiritual da liberdade Mounier 1950 p7374 Já a pessoa esta se faz livre a partir do momento em que se propõe ser livre a liberdade não é constituída é operada supõe coragem e combate permanente No mundo das forças naturais cabe à pessoa somente a ela reconhecer os aliados da liberdade e comprometerse em ser livre porque Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade Ibid p7446 É preciso portanto compreendêla como conquista pois não se trata de manifestação espontânea não é uma coisa dada de uma vez ela é renovada autocriadora manifestação original Tratase de uma autoconsciência principal causa eficiente da personalidade Copleston 1959 p163194 Entretanto não quer dizer sem limites à moda dos liberais puros e alguns existencialistas bem como alguns cristãos que acreditam que Deus se basta a si mesmo porque Deus é o Ser e ignoram a condição humana Para esta liberdade absoluta é uma farsa conclui Mounier Porque não somos somente o que fazemos e tampouco somente o que queremos existem condições e limites Absoluta a liberdade humana seria amorfa lançando o indivíduo em movimentos de revolta delírio e desumanidade pois se sentiria condenado a sua própria liberdade absurda e ilimitada liberdade sem objetivo puro ímpeto A liberdade de que fala Mounier é a verdade viva do ser não num ato rebelde de espontaneidade mas da pessoa situada aquela que constitui a si mesma no mundo e perante os valores Ser livre é então em primeiro lugar aceitar sua condição e a partir dela avançar Nem tudo é possível em todos os momentos pois a liberdade tal como o corpo cresce com os obstáculos opções e sacrifícios Na visão de Mounier a ideia de gratuidade é uma ideia de existência rica e em certa condição profundamente insuportável A liberdade é 46 Seria interessante aproximar esta visão de liberdade passando pelas etapas do indeterminismo físico e da autonomia animal do processo de interiorização da geração descrita por Tomás de Aquino na Suma contra os gentios Livro IV cap 9 Ver também os graus de independência de ação das formas Suma teológica I q76 a1 100 mais do que dizia Marx a consciência de uma necessidade É um princípio porque a consciência é promessa e iniciativa de libertação Aquele que não enxerga a sua escravidão é escravo mesmo permanecendo feliz na sua condição Mounier 1950 p77 Condição indigna Portanto não basta inscrever a liberdade nas constituições ou elogiála em discursos inflamados É preciso assegurar as condições comuns de liberdade isto é as liberdades biológicas econômicas sociais políticas Num sentido histórico estas liberdades oscilam as liberdades de ontem são abaladas pela liberdade de amanhã como as da nobreza foram abaladas pelas da burguesia as desta pelas populares A liberdade de todos pode comprometer a de alguns Declarações estatutos e outras diretrizes legais são necessários para salvaguardar as condições comuns de liberdade acima mencionadas No entanto infelizmente sua generalidade inevitável pode encobrir justamente a liberdade os interesses de alguns A liberdade para Mounier não é somente manifestação de espontaneidade ela é invocação Não somos livres porque exercemos apenas a espontaneidade Seremos livres se esta espontaneidade tiver o sentido de uma libertação de uma personalização do mundo e de mim próprio A evasão do espírito desvia das tarefas árduas mas diante das vicissitudes dos problemas que se supõem serem fatalidades o homem corre o risco de vender sua liberdade por um mínimo de segurança não é menos urgente denunciarmos o espírito de escravidão e suas forças escondidas Ibid p80 A irrefletida aceitação dos sistemas pode conferir apenas passividade o conforto tornando as massas dóceis e desorientadas É por isso que Mounier contesta o gosto passivo da autoridade e a cega adesão às diretrizes dos partidos o que ele nomeia de indiferença dócil das massas desorientadas Urge portanto despertar A liberdade é operária mas é também divina É verdade que a liberdade não deve fazer esquecer as liberdades Mas quando os homens não sonham mais com catedrais não sabem mais construir belas mansardas Quando perdem a paixão da liberdade já não sabem edificar liberdades Não se dá a liberdade aos homens do exterior com facilidades de vida ou com constituições adormecem nas suas liberdades e acordam escravos Ibid p80 101 Portanto as liberdades nada mais são que possibilidades conferidas ao espírito de liberdade que têm por finalidade destruir minhas alienações pelas quais eu me torno objeto em certas situações quando entregue às forças impessoais Mounier 1950 p80 Situações estas que o marxismo expôs em boa parte Resta acrescentar algo que lhe escapa inteiramente a condição humana ao aspirar à autonomia está sempre colocada frente às sujeições de onde provém uma alienação difusa irredutível Notamos que mesmo as alienações determinadas e históricas que se mantêm por tempo determinado se caem por terra surgem outras e novas batalhas principiam pela liberdade Para Kierkegaard cada fase deste combate é marcada pelo que ele chama de o batismo da escolha Esta aparece primeiramente como opção daquele que opta por isto ou aquilo e ao fazêlo se edifica Mas devese tomar cuidado com a miopia filosófica quando esta desvia o centro de gravidade da liberdade ou seja opta pela opção Concentrase então a liberdade somente sobre o poder de opção a consequência é fazer com que a liberdade venha a perder o seu ímpeto Por falta de energia até a própria opção pode esgotarse Para Mounier este é o mal espiritual da inteligência contemporânea Acentuase assim exclusivamente a conquista da autonomia o que pode tornar o homem crispado sobre si mesmo isto é opaco e indisponível Ibid p82 Liberdade é responsabilidade é devoção ela unifica Através dela é que o homem se situa sendo interrogado pelo mundo e responde personalizando se Na acepção da palavra liberdade é o religar entre condição e pessoa entre pessoa e humanidade 102 27 Compromisso exigência da ação Liberdade supõe ação a existência é ação portanto o compromisso é o capítulo central do personalismo47 As estruturas anteriormente apresentadas constituem a totalidade ontológica da vida pessoal não podendo seguir um curso fragmentário É pela ação que modificamos que enriquecemos nosso universo de valores Não se trata de impulso utilitário pois a ação abarca a pessoa na sua integridade O compromisso é a essência da vida pessoal responsabilidade que oscila entre a repetição ética e o mistério religioso entre o tempo e a eternidade estando no mundo nunca sendo plenamente do mundo Mounier1962 tIII p186 Mounier está alerta ao denunciar o que chama de desvios da ação48 Uns se deixam guiar pelas diretrizes do determinismo absoluto uma negação da ação que abafa a liberdade Ele descreve que o marxismo compreendeu a tempo o perigo que implicava a ambiguidade de seu materialismo assumindo assim a responsabilidade de todos os recursos da práxis 1950 p103 Outros acreditam na fatalidade donde a necessidade de se adaptar Uma concepção praticamente fatalista do sentido da história ou do progresso justificaria todos os conformismos atuais Ibid p103 Todos os partidos sofrem de uma crise de incertezas sobre a relação entre a objetividade e a responsabilidade pessoal ou seja sobre a relação da estratégia e do militante Frente a estas demissões há pois urgência em restituir o sentido da pessoa responsável confiante de si própria Recordese também que a pessoa não é isolada Quando reunidas e unidas as pessoas multiplicamse as consciências personalizando e 47 Mounier declara que o personalismo deve muito a Maurice Blondel 18611949 à sua extensa elaboração de ideias sobre a filosofia da ação e práxis Cf Mounier 1950 p102 48 Mounier afirma que em sua época algumas correntes de pensamento espiritualista e materialista ainda continham certa repugnância quanto à introdução da ação no pensamento e na mais alta vida espiritual Cf Mounier 1950 p102 João de Scantimburgo em sua obra sobre a filosofia blondeliana escreve que Blondel ao elaborar a tese sobre a ação sabia que iria enfrentar preconceitos indiferenças e relutâncias Sendo ele original inovou no que já fora meditado há séculos A valorização da ação era um conceito inadmitido na filosofia do século XIX ao menos no sentido estudado pelo filósofo ou seja demonstrandose que ação e contemplação se completam Ao mesmo tempo uma iluminação interior nos aproxima do mistério que somos nós os seres humanos marcados com um destino e um sentido de vida Scantimburgo1995 p147 103 assegurando à quantidade o sentido humano com uma referência a cooperação das liberdades e das qualidades que controla os delírios e as mistificações que se separados indubitavelmente arrastam o indivíduo Cf Mounier 1950 p103 A ação só terá validade ou sentido se imbuída de uma consciência amadurecida de sua época e do drama integral desta num refletir sobre o seu compromisso pessoal a partir da historicidade da existência humana PaulLouis Landsberg49 em seu relatório apresentado ao congresso de Esprit de 26 de julho de 1938 intitulado O sentido da ação desenvolve a temática mostrando o valor e o sentido do compromisso engagement Inevitavelmente muitas das vezes a pessoa tem que agir moralmente e quase que fisicamente mesmo parecendo ser inadmissível do ponto de vista das doutrinas dos ideais de perfeição e pureza Em sua análise aponta que muitas doutrinas tornamse cristalizadas opondose ao dever vívido da solidariedade humana e aos verdadeiros valores das probabilidades de vitória ou derrota da ação Landsberg numa alusão à ação ao agir utiliza uma passagem retirada dos versos do Bhagavad Gita quando Arjuna o grande guerreiro pede a seu escudeiro para que o leve ao campo onde seu exército e o adversário encontravamse prontos para um grande combate Sua estratégia tinha por finalidade medir suas forças e as do inimigo Assim que viu os dois lados seu coração tremeu pois ambos os exércitos continham pessoas de sua família tios primos irmãos sobrinhos e amigos Neste momento crítico seu espírito foi apossado pela dúvida pelo desânimo e indeciso não sabia se deveria começar a batalha de Kurukshetra nem sabia qual seria sua dharma conduta correta O escudeiro diante da imensa angústia de Arjuna transmitelhe coragem naquela que seria considerada a maior batalha da Índia Tais 49Amigo de Emmanuel Mounier PaulLouis Landsberg 19011944 foi um filósofo personalista alemão que como muitos opositores do nazismo deixou seu país Em 1933 foi para a Espanha onde ensinou filosofia na Universidade de Barcelona Também deixou este país expulso em 1936 quando eclodiu a guerra civil Foi para a França e por intermédio de Pierre Klossowski conheceu alguns membros do comitê da Esprit entre eles estavam Jean Lacroix e Emmanuel Mounier Landsberg foi discípulo de Max Scheler Influenciou existencialistas e principalmente personalistas no que se refere à teoria do compromisso engajamento e seus valores Cf Esprit 2002 p 12 Sua vida foi prematuramente interrompida no campo de deportação de Orianenburgo Cf Mounier 1947 p10 104 palavras receberam o nome de Bhagavad Gita Canção do BemAventurado Senhor pois seu escudeiro era o deus Krishna que estava disfarçado e disse Aja levantese para a batalha não busque refúgio na inação Ninguém pode ficar um só instante inativo cumpra o ato prescrito a ação vale mais que a inação a vida orgânica cessaria se você não agisse nenhum ser corpóreo pode absterse completamente da ação Apud Landsberg1968 p84 Estas exortações não tratam de questionar a santidade buscada pelo eremita na União mística com o Todo numa anulação progressiva da vida numa nulidade da individualidade da coletividade de seu ser corpóreo e de toda entrega à ação O que se pretende é mostrar que a corporeidade comporta a ação e esta a impureza pois o crime aparente pode ser um dever Então o cavaleiro deve aceitar e mesmo escolher as consequências saber o que se é pois hesitar é não realizar nada é preciso tomar decisão Karma50 Os problemas existenciais nascem com as crises humanas Em especial Landsberg referese aos do cristão no confronto entre a aspiração da pessoa por um ideal religioso de absoluta pureza do ser e o engajamento no mundo histórico social que o rodeia O homem quer salvar sua alma quer enfrentar a morte e o juízo final livre de todo o pecado mas ao mesmo tempo não pode esquecer que Deus o situou dentro de uma comunidade e o fez nascer num instante definido do tempo histórico Landsberg1968 p85 Cabe ao homem somente a ele inserido em seu tempo e lugar optar no conflito entre a vontade pessoal de valor e o egoísmo individual ou coletivo bem como na situação de escolha entre a salvação e o egoísmo Encontrar a medida exata do dever do agir e o ponto preciso em que o sacrifício da integridade pessoal se transforma em pecado contra a própria salvação do homem é isto que tem importância para o cristão Para ele o conflito entre a pureza moral e as condições de uma ação pode assumir o aspecto de uma crise radicalmente séria e aparentemente insolúvel Ibid p86 87 50 Em sânscrito Karma significa trabalho ação e compromisso Podemos dizer responsabilidade e engajamento Em muitas das vezes é confundida com uma lei física de simples causa e efeito conforme conceitos da lei da inércia No Bhagavad Gita por todo o poema é notório que as exortações a Arjuna tratam da necessidade de se livrar do egoísmo e aterse ao compromisso humano Isto através das ações conscientes voltadas à humanidade permanecendo sempre ligado ao absoluto ao supremo Krishna 105 Para Mounier o cristão diante de sua responsabilidade deve afrontar comprometerse engajarse e jamais recuar do contrário tratase de uma boa consciência do fariseu que demarca e marca com sua demissão as fronteiras entre o humano e desumano Para ele não há engajamento verdadeiro sem a referência do absoluto pois o homem está além de sua própria ação Considerou que em sua geração era esta a maior vocação Por outra ótica quando se fala em ação em primeiro lugar nos vem a ideia exclusivamente política Importa saber que o movimento Esprit não se voltava diretamente para este polo Seu fundador salientava que o engajamento é comprometimento e envolvimento portanto valoriza a presença histórica e direciona as luzes sobre as estruturas de toda existência humana o personalismo traz mesmo para a análise política uma contribuição direta às exigências humanas Moix 1968 p177 O que se espera dessa ação Dirá o pensamento personalista que modifique a realidade exterior que ela nos forme nos modifique que nos aproxime dos homens enriquecendo nosso universo de valores Esclarece quatro formas ou dimensões da ação que se tornam exigências 1 Fazer poiein a ação tem como fim dominar e organizar a matéria exterior e será chamada de Econômica Ação do homem sobre as coisas ação do homem sobre o homem no plano das forças naturais ou produtivas até mesmo em matéria de cultura ou religião por ela o homem desmonta ilumina ou gerencia determinismos Mounier1950 p105 É a ciência aplicada aos negócios humanos é a indústria em sentido amplo é a produção e organização de modo geral tendo como fim a eficácia Mas somente a utilidade fabricação e organização não esgotam as necessidades humanas como as de dignidade e fraternidade A economia não responde à totalidade dos problemas de ordem humana tem de fazer apelo à esfera política e esta se insere na ética Assim caberia à política unir o rigor da ética ao da técnica É neste nível que ocorre a personalização do econômico e a instituciona lização do pessoal Qualquer apoliticismo que fuja desta área vital da ação quer a pura técnica quer a pura meditação voltada somente para o interior não passará de uma deserção espiritual Ibid p106 106 2 Agir prassein sua finalidade principal não é a construção de uma obra exterior mas a formação de quem executa através de sua capacidade suas virtudes ou seja sua unidade pessoal Daí ser uma dimensão da ação ética voltada para a autenticidade tema muito aludido pelos existencialistas Numa ordem econômica cabe à ação ética fundar suas raízes porque as relações humanas jamais se reduzem às questões puramente técnicas Mesmo os meios materiais em interação com o homem tornamse meios humanos Ou seja os meios materiais transformados modificam também os homens num mesmo processo Mas se os que agem se aviltam os resultados poderão ser comprometidos Por isso a ética duma revolução ou regime é do ponto de vista dos seus resultados tão importante quanto os cálculos de força Para Mounier a técnica e a ética são os dois polos da inseparável cooperação da presença e da operação de um ser que não age senão em proporção com o que é e que não é senão na medida em que se faz Mounier1950 p107 3 Contemplar teorein está intimamente ligado ao homem integral tendo um fim que se reveste de perfeição e universalidade através de uma obra finita e ação singular Embora possuindo como principal preocupação a experiência de valores a ação contemplativa pode ser conservada como tradução clássica do grego teorein contanto que não seja tida apenas como obra da inteligência mas do homem inteiro Seu fim sendo a perfeição e universalidade pode atuar no que é de caráter prático exercer uma ação do tipo profético esta seria ligação entre o contemplativo e o prático ético econômico Cabelhe o testemunho polo profético que atinge sua meta pela palavra pela escrita ou atos quando se perde o sentido do absoluto pelo peso dos compromissos Muitas pessoas ultrapassam o testemunho pela palavra escrita ou falada e passam ao ato e até se tornam executantes Destacamse neste sentido Abraão pela sua fé e obediência Gandhi pelas greves de fome como protesto Joana dArc que começa dando testemunho de suas vozes e depois assume o comando dos exércitos São estas pessoas que pressionam determinadas situações não fazendo cálculos à maneira técnica pois sua atitude provém antes de tudo da fé na eficácia transcendente do absoluto ultrapassam portanto tudo sendo elas próprias a força viva da humanidade 107 4 Dimensão coletiva da ação é a comunidade do trabalho do destino da comunhão espiritual indispensáveis à sua humanização integral Não basta portanto uma teoria é necessária a ação e a conexão entre elas Mas não somos tudo ao mesmo tempo non omnia possumus omnes No entanto o homem de ação realizado é aquele que vive em seu interior uma dupla polaridade do polo político ao profético percorre agitandose o caminho que vai de um ao outro sempre com um compromisso combatente de assegurar a autonomia de cada um regular sua força respectiva e encontrar as comunicações entre um e outro O ser engajado é ser compromissado recusar o compromisso é negar a condição humana Porém entre a pureza e a impureza da ação existe o risco que assumimos diante da parcial obscuridade de nossas opções colocando nos em um estado de despojamento e insegurança Mas é neste estágio que emerge o momento propício para as grandes ações Mounier1950 p113 Assumida a trágica estrutura da ação não se pode mais confundir comprometerse e aventurarse Apesar de não ser nada fácil aí se revela o valor moral personalista do sersituado exatamente quando a coragem assume esta trágica situação e renuncia aos débeis planos do ecletismo do idealismo e oportunismo Portanto uma ação não mutilada é sempre dialética Ibid p113 Ponto de vista compartilhado por Paul L Landsberg companheiro de movimento de Mounier ao afirmar que ao se engajar assumemse riscos e a responsabilidade de uma obra futura tal qual Arjuna fruto de uma formação humana que consequentemente realiza a história da humanidade e seu progresso Bem lembrou Landsberg sobre a consciência mítica dos gregos quando Prometeu o culpado fez de sua ação um grande benefício aos homens Ele que prevê atinge sua grandeza com sua aventura sagrada seu ato significa aos gregos a fatalidade que governa o mundo o trágico o herói que se destrói afirmando e superando os limites da própria humanidade Sua culpabilidade e sua nobreza se prolongam numa teimosia justa que ele contrapõe à punição a hybris heroica fracassa mas ao fracassar ela tem ainda razão contra a fatalidade e os deuses o herói tem razões para querer o que quer e ser o que é face ao destino cego e contra os deuses imortais o homem pode estar errado do ponto de vista pragmático mas não do ponto de 108 vista do valor ele se justifica por sua coragem que o eleva realmente acima da humanidade sua culpabilidade nada tem de mal absoluto ele pode escolhêla quando tem vocação de herói Landsberg 1968 p87 3 Personalismo a serviço da pessoa Em uma carta a JeanMarie Domenach Mounier escreve O acontecimento será nosso mestre interior 1963 tIV p817 Ora dirá Mounier se o acontecimento fosse acolhido ele precisamente revelaria tudo o que é estranho da natureza dos homens e para além deles O acontecimento demarca e marca o encontro do universo com o meu universo minha individuação e personagens Id1971 p6951 Decidido na sua vocação sabia que a peregrinação não seria fácil e a conversão haveria de ser integral Não queria somente tratar do homem também lutar objetivamente pelo homem mas como é de costume disfarçar sua opinião preconcebida sob a roupagem científica nós preferimos declarar de cabeça erguida que nossa ciência para ser uma ciência honesta deve ser uma ciência combatente Id 1961 tII p7 Jean Lacroix 1969 p23 em seu artigo intitulado Emmanuel Mounier um testemunho e um guia salienta que o jovem pensador à sua maneira de filosofar exigiu de si certo tipo de pensamento combatente influenciado pela dupla reflexão antiga e profunda sobre a noção da pessoa a reflexão jurídica e principalmente a reflexão teológica Dessa união constituída em grande parte pelos eventos diários surgiu a ligação vital entre pensamento e ação na promoção da pessoa Com isso Mounier não apenas renovou tal noção mas inovou a ideia de pessoa tornandoa presente situada e concreta Nascia então uma nova concepção ética herdada da trajetória de sua vida e de sua vocação que aos poucos transformavam temas mais ou menos tradicionais em elementos de cultura e civilização retirados do acontecimento histórico ou cotidiano Ibid p24 Para Lacroix ele foi exemplo vívido de testemunho um guia um educador do homem no século XX ou seja educou a humanidade do homem colocandoo em pé 1950 Esprit p839 51 Cf acima p 7882 109 João Bénard da Costa ao prefaciar o livro O Personalismo afirma que a filosofia de Mounier não contém algo de novo ela é mesmo algo de novo novidade que se sustenta pela temporalidade o corpoalma o ser encarnado compromissado com a História e com a humanidade A grande contribuição de Mounier ao pensamento contemporâneo foi a de ultrapassar a problemática filosófica nas questões relativas a pontos de partida de método e de ordem e de oferecer aos filósofos de profissão uma Matriz filosófica Esta é a expressão usada por Ricoeur 1968 p138 ao dirigir se às primeiras obras de Mounier Colaborador do Esprit e amigo de Mounier Ricoeur explica que a atitude combatente advinha do nível de afloramento de uma profunda consciência frente à crise aos acontecimentos e que ele ousou pregou uma conversão uma pedagogia afrontou as ordens cristalizadas inclusive o veneno sorboniano Obras como as de Bergson de Brunschvicg de Blondel de Maritain contemporâneas dos primórdios da revista Esprit realizam por todo o seu estilo o gênero didático que se adapta a um público de estudiosos de professores e para além destes de adultos que se instruem A filosofia francesa participava de modo claro até o período imediatamente anterior à guerra da tarefa docente em sua acepção mais geral Essa função docente explica bastante a força e a fraqueza da filosofia universitária fraqueza em sua tendência em situar os problemas à margem da vida da história e a proporcionarse uma vida e uma história que nos casoslimite são de todo irreais mas força em seu gosto pelas questões metodológicas pela busca do ponto de partida da verdade primeira e pelo ordenado processo discursivo Ibid p136 Com seu projeto Mounier pretendia a aventura de uma filosofia extra universidade52 por isso afrontou as ordens ultrapassando o despertar das consciências Ricoeur declara que a consciência da crise estava distante de se constituir num núcleo do pensamento representativo da França em 1932 Da mesma forma encontravase a filosofia universitária que não desempenhava qualquer papel decisivo achandose incapacitada a orientar de maneira mais radical uma vocação filosófica É portanto uma dúvida metódica de caráter 52 Mounier ao desistir de seu curso de doutorado escreve a respeito de sua tese Estou deixandoa amadurecer pois uma tese a meus olhos é mais uma obra humana que uma obra intelectual Mounier 1963 tIV p 442 110 histórico e cultural que estimula todas as reflexões de Emmanuel Mounier Ricoeur 1968 p137 Era preciso ir além era urgente revolver mover revisar valores e não inquietarse com os graus do ser A questão é de saber se o reconhecimento dos graus do ser tem afastado essas infelicidades Contudo diante dos desvios do pensamento sejamos sensíveis à força dessa contestação Citase Marx Aristóteles já escrevia se vale mais filosofar ou ganhar dinheiro para quem está na necessidade o melhor é ainda ganhar dinheiro E o rigor de nossa época faz com que os problemas temporais se coloquem no primeiro plano O mundo está em pane somente o espírito pode restabelecer a máquina em andamento traise a si mesmo se disto há desinteresse É por isso que nossa vontade se estende até a ação É por isso que nós pedimos aos que são mais filósofos entre nós àqueles mesmos que precisam de recuo e de solidão que saibam descer demoradamente no meio dos homens que se acostumem a isso Salvos da complacência por meio do vigor da doutrina evitarão a evasão pela sua presença no drama universal Mais do que nunca devemos consentir nesta gravidade Mounier 1961 tI p150 151 Importava realmente empreender uma grande transformação O primeiro ato revolucionário iniciase com a tomada de consciência e ruptura com a desordem estabelecida considerada por Mounier a filha do espírito burguês e do individualismo nutrida e ninada pelo capitalismo Essa desordem promovia a perda do sentido do ser a perda do outro transformando pessoas em seres indiferentes mesquinhos e acomodados num mundo de segurança e conforto Tudo isso colaborava definitivamente com as crises de ordem econômica e moral Então foram tecidos diagnósticos Para os marxistas a crise advinha da economia clássica problemas em suas estruturas Pensando assim esqueciam as dimensões da interioridade e transcendência Já os moralistas opunhamse ao dizer que a crise era dos homens dos valores e costumes corrompidos Cf acima Cap I Subseção 41 Estas avaliações encobriam a verdadeira realidade da condição humana da necessidade econômica e de uma revolução espiritual O erro consistia de acordo com Mounier na separação entre corpo e alma entre pensamento e ação uma herança do passado resquício de um cartesianismo duvidoso Para Mounier 1950 p116117 a crise era moral econômica estrutural e também do homem A crise espiritual é a crise do homem clássico europeu 111 nascido com o mundo burguês A crise das estruturas misturase com a crise espiritual Como resultado uma economia sem sentido aliada à ciência o capitalismo burguês segue um curso impassível as classes sociais desagregamse as classes dirigentes caem na incompetência o Estado vêse envolto em tumultos e por fim a preparação para a guerra Diante da desordem total Mounier retoma as palavras de Péguy reavivaas em tom de compromisso A revolução moral será econômica ou não será revolução A revolução econômica será moral ou não será nada Mounier 1961 tI p849 Mounier como nenhum outro foi aquele que teve em torno de si o sentido pluridimensional do tema da pessoa escreve Ricoeur Ele realmente dedicouse e colocou o personalismo a serviço da pessoa e reuniu companheiros na difícil batalha contra os sistemas Ricoeur 1968 p165 declara A mim me parece que o que mais nos atraiu para ele é algo de mais secreto que um tema de muitas faces a rara concordância entre duas tonalidades do pensamento e da vida a que ele próprio chamava de força na esteira dos antigos moralistas cristãos ou ainda a virtude do nos pormos frente a frente e a generosidade ou abundância do coração que corrige a crispação da virtude da força por algo de agraciado e delicado é a sutil aliança de uma bela virtude ética com uma bela virtude poética que fazia de Emmanuel Mounier esse homem ao mesmo tempo irredutível e que se dava 31 Revolução personalista e comunitária Uma despersonalização do mundo moderno e a decadência da ideia comunitária eram para Mounier uma mesma coisa Por quatro séculos de individualismo conclui ele o homem perdeu o hábito de pensar sua vida e seus atos no aspecto da comunidade Então temse um mundo regido por ideias gerais opiniões vagas indivíduos neutros e sem rostos que se aglomeram no anonimato em comunidades exteriores jurídicas artificiais e moralistas Assim a desordem assumia rapidamente uma proporção generalizada por isso haveria de ser erradicada através de uma mudança radical a 112 revolução Mounier confirma que a palavra revolução à primeira vista parece muito forte invoca violência e terror mas salienta que no simbolismo mais profundo e puro da palavra esta contém uma prece imbuída do compromisso com a causa dignamente humana Para ele o termo revolução contém o antídoto contra o comodismo e a injustiça Por isso convoca a todos para marcar presença diante da gravidade que dilacera os homens através dos regimes que se tornam anêmicos por meio de milhões de seres e milhões de misérias 311 Revolução pessoal A consciência da crise e a sinceridade meio despertas não bastam Importa à pessoa ultrapassar as ideias pois é necessário assumir o máximo de responsabilidade e transformar o máximo de realidade à luz das verdades que tivermos reconhecido Mounier 1961 tI p637 Eis portanto a dual missão compromissada que se afirma duplamente revolucionária em nome do espírito pois o espiritual é também carnal ou seja revolução espiritual integral O primeiro ato de uma revolução pessoal depois da tomada de consciência da indiferença é a tomada de consciência da outra face a instintiva ou interessada consciência da adesão e repugnância pela qual não se percebe Homens aderem a esta consciência por entusiasmo mas logo se ocupam das aparências cuja densidade sufoca a vida pessoal no convívio com as agitações fúteis São as traições do espiritualismo Para Mounier é preciso ser antes de fazer Chamamos revolução pessoal esta atitude que nasce a cada instante de uma tomada de má consciência revolucionária de uma revolta dirigida em primeiro lugar por cada um contra si mesmo sobre a sua própria participação ou sobre a sua própria complacência com a desordem estabelecida sobre o distanciamento tolerado entre aquilo a que ele serve e o que diz servir e que se expande no segundo tempo numa conversão contínua de toda pessoa solidária palavras gestos princípios na unidade de um mesmo engajamento Ibid p328 113 Ao compromissado cabelhe como a primeira missão o combate permanente contra a má consciência revolucionária Depois na continuidade de sua tarefa deve este expandir outras consciências pois não há puros todos pecam uns com os outros sendo preciso extirpar o mal O segundo ato é o rompimento com certas matrizes matriz de direita e esquerda matrizes coletivas e individuais que são as mentiras as ideologias contidas no interior dos homens e dos partidos que transformam as ilusões em valores sagrados Submetidos a essas matrizes os cristãos individualistas ignoraram o destino comunitário do cristianismo a mística e a teologia Os reacionários de esquerda confundiram sua ação com o espiritual53 Os intelectuais para Mounier na sua maioria estavam apodrecidos pelo falso liberalismo portanto covardes Não preservaram a pessoa mas apenas a sua pequena preciosa personalidade afastada das grandes correntes humanas e voltada à própria adoração ou às suas caras ocupações Mounier 1961 tI p647 Já o pequeno burguês ou o burguês quando se refere à pessoa pensa na liberdade de se enriquecer e na manutenção da sua autoridade privilegiada na vida econômica Ibid p647 Na esfera política as coisas não caminhavam diferentes Corrompida devido à corrida para o poder esta se transformava em meios para impor individualidades formando cartéis de conquistadores e autoritários Por isso importava a todo custo como terceiro ato o urgente dever de estar presente no mundo afirmando que uma pessoa se prova pelo engagement pelo testemunho e ruptura cabendo às pessoas se unirem e digladiarem contra as desordens Para isso um quarto ato revolucionário era necessário para que não fosse apenas agitação precisavase conhecer antes de agir Diante de tanta farsa era extremamente necessária uma revolução que se orientasse para o testemunho e ruptura com os sistemas viciados Contudo uma sólida base técnica dos meios espirituais54 colaboraria para a 53 Mounier entende que a Terceira Força declarou sua morte devido à impaciência de seus militantes bem como o despreparo para uma revolução Cf acima p 9 54 A técnica segundo Mounier só poderá empregar meios que promovam a harmonia com a pessoa Lei fundamental do espírito que se divide em dois planos 1 Técnica dos meios espirituais individuais ou ascese da ação que tem como base as exigências primeiras da pessoa com sentido de mediação e retirada com o intuito de libertar a ação da agitação O despojamento é o sentido da ascese contra os ídolos adesões superficiais hábitos tiranias 114 descoberta dos valores autênticos de uma fecundação orgânica e comunitária entre os homens colocando a inteligência a serviço da ação numa cruzada contra a confusão Cruzada contra os blocos que cimentam erros contraditórios e erguem uma barreira diante da realidade e diante dos homens Cruzadas contra as uniões sagradas que mascaram as desordens profundas sob reconciliações interessadas Cruzada contra os conformismos parasitas do pensamento e do caráter O ódio fazse virtuoso puritano o ódio é outra forma de confusão Mounier 1961 tI p641 Portanto nem doutrinários nem moralistas dirá Mounier em seu Manifesto ao serviço do personalismo mas compromisso com a realidade com a justiça uma revolução personalista e comunitária aberta a todos os homens Quanto aos cristãos só pedimos que sejam eles mesmos É verdade que esta é sem dúvida a Revolução Ibid p857 55 32 Prioridade aos meios materiais Mounier jamais aceitaria que o problema da miséria fosse tratado com naturalidade Afirmou que todo aquele que não sentisse a miséria como uma queimadura em si mesmo faria objeções levianas levantando falsas polêmicas56 pseudosinceridades dentre outros 2 No sentido de retirada e despojamento poderá o militante procurar uma pureza estéril que rapidamente diluiria todo o compromisso Cabe então lembrar que o individual sempre deverá caminhar para uma técnica personalista de meios coletivos que será posta em prática num sentido de fermentar as comunidades orgânicas O personalismo exercerá a ação progressiva de correção interior bem como no preparo de reagrupamentos e no apoio a diversos segmentos como os sindicatos cooperativas dentre outros Cf Mounier 1961 tI p644646 55 Mounier acreditava que a revolução ocorreria através de duas frentes de combate A primeira reduzida constituída de uma minoria de intelectuais e de burgueses que despertos profundamente com a causa aderiram aos valores da pessoa seguido de cristãos que retomaram a consciência das exigências heróicas de sua fé diante da desordem e mediocridade de sua vida e coletividade A outra da qual ele afirma sua importância é a do povo que moldado pelo trabalho e pelo risco vital guardou o sentido direto do homem e salvou o melhor de si da deformação política Cf Mounier 1961 tI p648 649 56 Sobre este assunto em O ponto de vista de um cristão Mounier escreve sobre a miséria e sua urgência Milhares de homens morrem de fome por causa de um regime econômico imoral e superado Milhões de homens se desumanizam sob o esmagamento dessa miséria Aquele que tem fome diz São Tomás é preciso alimentálo antes de fazerlhe sermões IIII q32 a3 no fim do corpo do artigo Isso não é fazer o material passar à frente 115 Diante dessa enfermidade social seria necessário priorizar os meios materiais ou seja a questão econômica primum vivere deinde philosophare57 Se o homem não possuir o mínimo de bemestar e segurança necessária à sua sobrevivência tornase inútil promover a revolução espiritual O personalismo reencontra a encarnação da pessoa e o sentido de suas servidões materiais sem no entanto negar a sua transcendência ao indivíduo e à matéria Mounier 1961 tI p526527 Portanto a revolução espiritual não pode resolverse separadamente da economia e da política mesmo que estas sejam subordinadas ao espiritual Mounier pede muita atenção sobre a questão Relembra que o espiritual para o movimento personalista não é uma máscara ou escapatória Temse certo número de debates fundamentais a regular com todo o mundo Mas antes disto pão trabalho dignidade para aqueles que não a têm 1936 Esprit p444 Ao propor a revolução material Mounier acreditava em um novo regime social e econômico atribuído às necessidades da pessoa humana o que ele chamou de revolução da pobreza Promoveu embates contra as instituições capitalistas e percebeu que a revolução sobreviveria se estivesse apoiada nos pilares políticos mas estes também careciam de transformações Era prioridade emergir um novo regime pluralista democrático de amplitude social e ética voltada para uma comunidade de pessoas Mounier 1961 tI p611 626 Mounier revela preocupações quanto à conquista da aquisição dos bens materiais A revolução material pode propiciar o desenvolvimento de valor espiritual mas pode também desenvolver o lado desumano Eis portanto a primazia do espiritual Se a miséria degrada a abundância pode levar à acomodação Temse então uma felicidade calculada aos modos de Bentham Usufruir da paz e da calma chã pela qual o homem não vive sua autenticidade e nem seu esforço criador Mounier declara Não queremos um do espiritual mas é garantir ao espiritual as condições materiais indispensáveis para que se possa estabelecer Mounier 1971 p52 57 Provérbio latino primeiro viver depois filosofar Na ausência de determinadas condições sociais econômicas e políticas tornase impossível qualquer especulação filosófica cultural ou espiritual 116 mundo de felicidade queremos um mundo humano E só é humano o mundo que garantir suas possibilidades às exigências essenciais do homem Mounier apud Moix 1968 p91 O assunto é de grande profundidade pertence ao universo da justiça social e não a uma felicidade sob acumulação de bens e segurança que abafam o crescimento da liberdade espiritual Quando os espiritualistas bradaram que o homem se salvaria pela pobreza Mounier interveio dizendo que o personalismo não pretendia hipocritamente perpetuar a miséria mas pretendia uma vez vencida a miséria que cada pessoa se tornasse livre e desimpedida dos apegos e tranquilidade Ele afirmava que cada ser conheceria sua força e sua própria medida não opomos revolução espiritual a revolução material Afirmamos somente que não há revolução material sem estar enraizada e orientada espiritualmente Mounier apud Moix 1968 p94 Tal revolução se estrutura e interliga a três dimensões a espiritual a política e a histórica Se houver negação de qualquer uma destas dimensões certamente destruirão as vias para se chegar à pessoa qualquer reforma social que não apoie a plena realização da pessoa realismo integral logo se desgasta no oportunismo Mounier apesar de não ser um político sabia da importância da participação dessa dimensão no plano da encarnação Por isso afrontou e criticou os valores carcomidos do sistema político Acreditava que os fatos sociais não eram apenas fatos físicos particulares Via a dimensão política contida na dimensão histórica que por sua vez contemplava a dimensão espiritual Como cristão afirmou que o político deveria estar subordinado ao moral o moral ao metafísico e este ao sobrenatural e o espírito comandaria o político e o econômico Então para assegurar a revolução deviase contar com o apoio da força política para efetuar a passagem da revolução aos fatos em seguida nutrirse da ajuda de outro grande aliado o povo Para Mounier o povo não poderia ser compreendido como na visão de Marx num messianismo do proletário numa ideia de classe oprimida que deteria o poder Para ele não se tratava de classe nem de considerações sociológicas abstratas que definiriam o componente essencial da História 117 Mounier então observa Maritain ao descrever que para conhecer o povo não basta agir para o povo devese ser com existir com sofrer com o povo comungar com o seu destino presenciando vividamente a sua comunidade Bernanos sentia no povo os últimos recursos da honra e Mounier a esperança de uma revolução Moix 1968 p100102 33 Comunidade personalista O fim último da revolução era promover a comunidade de pessoas um personalismo comunitário um novo socialismo diferente do conhecido no século XIX58 Assim sendo a bandeira do personalismo a pessoa Mounier pretendia que este novo socialismo preparasse as indispensáveis bases espirituais atendose também às condições materiais e necessidades coletivas para que se formasse uma promissora estrutura de reorganização social abolição da condição proletária substituição da economia anárquica fundada no lucro por uma economia organizada em ordem às perspectivas totais da pessoa socialização sem estatização dos setores da produção que alimentam a alienação econômica desenvolvimento da vida sindical reabilitação do trabalho promoção contra o compromisso paternalista da pessoa do operário primado do trabalho sobre o capital abolição das classes formadas na divisão do trabalho ou de fortuna primado da responsabilidade pessoal sobre as estruturas anônimas Mounier 1950 p120 O personalismo ao se colocar a serviço de tal missão pretendia encontrar os valores comprometidos estabelecer um governo democrático e 58 Moix 1968 p103 descreve A ameaça principal do socialismo nascente era o individualismo com todas as suas consequências na ordem social Tal ameaça ainda existe mas há outra muito maior ainda o totalitarismo inimigo mortal da pessoa humana Em 1930 o século XX era candidato a se tornar a era totalitária O personalismo nascente achouse perante temíveis forças de opressão trustes capitalistas delírios fascista mal totalitário do comunismo russo Estavam ameaçadas as aspirações mais fundamentais da pessoa humana Daí ao mesmo tempo em que combatia o individualismo o personalismo foi levado a acentuar os direitos inalienáveis da pessoa Há porém outra diferença e esta é capital entre o primeiro socialismo e o de Mounier O da primeira época faz profissão de materialismo Introduziu o ateísmo na sua bandeira Se sua reação contra uma época em que se falava muito em espírito sem assegurar as condições materiais do homem é compreensível não é menos verdade que tal socialismo mutilou o homem Não se ateve senão à edificação das estruturas econômicas 118 uma economia socialista Foi confundido com a pretensão de criar um novo individualismo quando falamos em defender a pessoa suspeitam muitas vezes de que queremos restaurar sob uma forma tímida o velho individualismo Mounier 1961 tI p525 Mounier contesta prontamente as acusações chega a dizer que há pleonasmo quando se designa a civilização a que ele visa por personalista e comunitária Mounier 1950 p39 Enfatiza que a dimensão individual está interligada com a dimensão comunitária Portanto em cada comunidade cada pessoa é reconhecida como pessoa ser integral compósito de espírito e matéria numa aventura humana que participa de uma obra comum A pessoa só se realiza na comunidade isso não quer dizer que ela não tenha alguma chance de fazêlo perdendose no anonimato lon Não existe comunidade verdadeira a não ser uma comunidade de pessoas Todas as outras não passam de uma forma do anonimato tirânico Id 1961 tI p182 Os pilares do universo pessoal proposto por Mounier auxiliam nesta promoção Sabese que em comunidades de pessoas as ações estão interligadas certas opções e atitudes podem afetar outras pessoas há portanto condições e princípios de convivência O personalismo defende a comunidade de pessoas ao afirmar que em seu interior esta traz consigo uma ética da pessoa Não se trata de mais um movimento filosófico especulativo mas sim de uma ética de ação situada que possui alcance éticopolítico Contudo Mounier ao elaborar a fundamentação metafísica de seu projeto civilizador adentrou o espaço das implicações antropológicas para justificar as exigências da ação A partir de então o engajamento da pessoa passou a ser considerado como uma tomada de posição da pessoa em relação aos elementos de sua situação E é a própria condição ontológica da pessoa uma transcendência imersa numa imanência é sua própria condição estrutural essencialmente dinâmica que dará ao agir humano seu caráter intencional O agir é com efeito a própria via de personalização Será pela ação que a pessoa manifestará o seu ser e criá loá enriquecendoo na temporalidade de sua existência Severino 1983 p140 Mas paralela a este equilíbrio harmonioso paira uma imensa fragilidade a despersonalização que pode lançar o homem no mundo da comodidade e alienação mundo man Noutro lado a eficácia da 119 personalização efetuase com a reflexão que revela os valores pessoais Estes valores culminam em responsabilidade que em conjunto com a práxis complementamse Temos uma constante estrutura trágica pela qual a pessoa está intimamente posta à prova direcionada a uma proximidade a um encontro com outras pessoas na promoção da solidariedade da justiça e comunhão entre os homens Enrique Domingos Dussel ao tratar deste termo assim se expressa Há práxis então na atualização da proximidade da experiência de ser próximo para o próximo de construir o outro como pessoa como fim de minha ação e não como meio respeito infinito 1987 p19 Para Dussel a práxis significa encurtar distância um agir para o outro como outro que se une à proximidade na promoção do encontro faceaface sempre em sentido à sua anterioridade ou seja a pessoa Adverso temse a proxemia a despersonalização que é a aproximação indiferente interessada como se houvesse aproximação de qualquer objeto ou coisa O personalismo afirma que o caminho da práxis é de difícil percurso pois se situa entre os extremos condicionantes e criação de valores fecundos A liberdade humana é o guia que ajuda a percorrer o entremeio destes extremos perfazendo o mundo do ser e seu destino pessoa e comunidade conquista ética e política Caminho árduo envolto de fraquezas e limitações mas jamais se elimina a participação da liberdade humana é o risco humano necessário entre as exigências da transcendência humana significada pelos valores e as imposições da imanência transcritas nos determinismos concretos das situações Severino 1983 p142 é que nasce a pessoa ser situado Cf acima p 55 cuja existência encarnada abarcará a comunidade de pessoas uma perspectiva estritamente ética e uma perspectiva política Ibid p142 para realização de um humanismo integral 34 Educação personalista Mounier dedicouse em certo momento de sua vida à carreira de professor Cf acima p1516 Podemos dizer que quando demitido da 120 profissão docente não se demitiu da vocação e transformou o seu movimento personalista em extensão de seu magistério Lacroix o chamará de educador outros de pedagogo da encarnação social59 e Domenach parece concordar com Mounier Cf acima p 108 sobre a ciência combatente O personalismo é antes de tudo uma pedagogia uma filosofia de serviço e não de dominação Seu sucesso não é avaliado pelo poder nem pelo número mas pela transformação dos espíritos e dos relacionamentos humanos pelo nascer de uma inquietação pela consciência de uma responsabilidade Domenach 1969 p12 Acreditava Mounier que o personalismo tinha por missão imprimir às instituições as orientações sobre a realização da pessoa e este trabalho haveria de começar pelas instituições mais próximas da pessoa como os estabelecimentos educacionais Preocupado discordava da educação de seu tempo Acreditava ser esta em larga escala um massacre de crianças60 Então questiona Porque se educa a criança Tal pergunta depende de outra qual é o fim dessa educação Mounier 1950 p129 Para ele uma cidade que queira favorecer a evolução da pessoa deve esforçarse em despertar a criança desde a infância para que possa formar a pessoa encarnada no homem e este para as exigências do universo pessoal e coletivo Aí se encontra o homem um sernomundo e comomundo Mundo entendido numa ótica fenomenológica não se tratando de matéria nem tampouco como consciência mas de uma unidade existencial dialética focada na estrutura do universo pessoal presença humana no mundo Importa portanto ao homem cultivar e dar sentido à sua presença de forma autêntica jamais se entregando às relações de indiferença e dormência Pertence às instituições educativas a missão pedagógica desse despertar Sendo a pessoa permanência aberta esta se suscita por apelos e a educação não pode renderse à domesticação cerceando a pessoa em seu transcendimento de pertença a si própria A criança não é uma res societatis res familiae e nem também um sujeito puro e isolado Ibid p129 ela está 59 Cf Equipe Frères du Monde Presença de Mounier p 18 Veja também outras opiniões como as de Jean Guiton e Candide de Moix Cap I Seção 1 p7 neste trabalho 60 Mounier 1950 p129 referese a este massacre quando se desconhece a personalidade da criança impondolhe as perspectivas do adulto destruindo o discernimento das vocações pelo formalismo do saber autoritário 121 inserida num meio numa família numa nação e a escola é mais um instrumento educador Para Mounier a instituição escolar de seu tempo ao cumprir sua tarefa atende às necessidades da nação como formadora de agentes de produção e cidadãos pertence portanto a um quadro do direito natural educativo O erro dessa instituição é a pretensão de querer sustentarse como a célula central irradiadora da vida educacional da pessoa Também se esquece que enquanto a pessoa não atingir sua maioridade ela está sob a tutela das comunidades naturais como a família autoridade espiritual reconhecida pela família e na falta destas o corpo educativo Mounier 1961 tI p553554 Ciente de que é parte de um sistema educacional a educação não tem por fim formar a criança no conformismo de um meio familiar social ou estatal Id 1950 p129 Bem como não é de sua atribuição adaptar a criança à função que futuramente lhe caberá na vida adulta Tal proximidade leva ao pensamento de Paulo Freire sobre a educação bancária aquela que se preocupa apenas com créditos e depósitos do conhecimento de gravações de extratos de treinamentos e competições engendradas por uma educação domesticadora e opressora Cf Freire 1987 cap II A educação deve abarcar o tempo fazer história possuir memória é portanto abrigo de informações vivas que tem por missão fazer desabrochar seres numa existência verdadeiramente humana de imanência e transcen dência Deve também auxiliálos na ciência de que a pessoa não pertence a ninguém a não ser a si própria Importa à escola ainda preparar as pessoas para a profissão preparação técnica e funcional Mas esta deve esclarecer sobre a necessidade da liberdade material sem a qual a vida pessoal se asfixia No entanto é primordial que esta instrução seja compreendida como complemento parte da liberdade Se o homem se constrói como pessoa através deste processo pedagógico este deverá ser transparente sério pois lhe servirá de guia inicial para alçar voos em sua trajetória com liberdade para percorrer seus próprios caminhos na busca de sua emancipação pessoal e o melhor ciente dos sistemas que o abarcam 122 Uma educação voltada à pessoa é completamente diferenciada em relação à educação livresca que confunde cultura com acumulação de saber A educação personalista tem de se firmar através da expressão da vida da aprendizagem da liberdade e a escola não pode ignorála O saber dissociado da realidade transformase num saber abstrato num formalismo que abafa a criatividade e a escola não pode ser mais um dentre tantos outros instrumentos contra a pessoa Já a cultura possui uma função globalizante na vida pessoal seja na vida profissional privada religiosa educacional familiar enfim ela é liberdade e transposição uma profunda transformação da pessoa Na visão de Mounier 1950 p131 a cultura é transcendência a ultrapassar se estagnada transformase em incultura academismo pedantismo e se cristaliza em forma de sistemas Mounier declara que a civilização ocidental nega a dimensão humana tanto na base informal quanto formal portanto gera desumanização individualismo competição e autoritarismo Homem desperta Dizia Mounier Tal despertar é o cerne da educação uma constante atuação pedagógica que deve suscitar no educando não apenas os conhecimentos mas também o compromisso Quanto ao educador neste deve permanecer vivo latente em seu coração o compromisso de despertar almas Ele deve ficar vigilante ao surgimento de mecanismos geradores e anuladores da liberdade humana São grandes os desafios do educador por isso Mounier indaga Por que educar a criança Esta pergunta leva a outra Qual é o fim dessa educação Ele responde Esta não consiste em fazer mas em despertar pessoas Ibid p129 123 Capítulo III O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER NO BRASIL 1 Ação histórica um desafio no Brasil após a Segunda Grande Guerra No final da Segunda Guerra Mundial o mundo estava perplexo diante de tantas atrocidades o medo e o receio ainda persistiam frente a uma iminente e peculiar Terceira Guerra Mundial Foi neste contexto que o cenário internacional mergulhou num clima de Guerra Fria entre duas grandes potências os EUA e a URSS Por cerca de quarenta anos uma frenética corrida armamentista se sucedeu no Ocidente gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que acreditavase firmemente podiam estourar a cada momento e devastar a humanidade Hobsbawm 2000 p224 Neste período o medo da destruição mútua inevitável Mutually Assured Destruction sigla inglesa muito bem expressa por MAD perpassou décadas e felizmente a própria suposição da destruição em massa serviu de base de acordo mútuo para que esses países não cometessem tamanha loucura contra a humanidade Contudo num estado de paz mesmo que paz fria a situação mundial depois da Segunda Grande Guerra tornouse estável até os meados da década de 1970 Nesses anos foram registrados momentos de grande progresso por quase todo o planeta através de uma economia mundial capitalista que se tornava multinacional No Brasil em 10 de novembro 1937 Getúlio Dornelles Vargas instaura o 124 Estado Novo com a outorga da Constituição de Francisco Campos Praticamente quase todo o ministério apoia o golpe As forças do Exército fecham o Congresso o governo dissolve os partidos intervém em todos os Estados com exceção de Minas Gerais e cancela a eleição presidencial Inspirada na Carta polonesa de 23 de abril 1935 a Constituição é totalmente descumprida diante de um pretexto o estado de guerra Vargas passa a governar por decreto com poderes ilimitados num ciclo de sete anos de totalitarismo 19371945 Sua imagem neste período tornase o estandarte do regime Ele concentra todos os poderes indica todas as autoridades encarna e simboliza o Estado Novo Toda a máquina estatal cultua seu nome em comícios desfiles cartilhas cartazes livros e músicas Seu aniversário torna se festa nacional comemorada e chamada de Dia do Presidente Nas escolas primárias os alunos entoam o hino de louvor Salve Getúlio VargasO Brasil deposita sua fésua esperançae seu orgulhono chefe da nação Isto é Brasil 500 anos 1998 p135 Deposto e com o fim do Estado Novo ocorre a primeira eleição em 10 anos 021245 que deu a vitória ao general Eurico Gaspar Dutra61 graças ao apoio do PSD Partido Social Democrático criado e dirigido por Vargas do próprio Vargas da máquina estatal e da participação e influência da Igreja Frei Oscar de Figueiredo Lustosa lembra que a Igreja e o Estado instituição eclesiástica e instituição civil comunidade religiosa e comunidade política bem como o poder espiritual e o poder temporal são termos binomiais e que através dos séculos vem desafiando em seu relacionamento fórmulas e receitas préfabricadas e mecanicamente aplicadas 1991 p7 Porém quando se refere ao período totalitário getulista lança uma pergunta Como a IgrejaHierarquia procedeu durante este período Acredita que a resposta não seja clara pois foram confusas as situações vividas pelos católicos no envolvimento com o Integralismo62 juntamente com o medo do 61 Juntamente com o novo presidente nasce a Assembleia de caráter congressual com o dever de substituir a Constituição de 37 Importante lembrar que cinco anos depois Getúlio Vargas é reeleito e assume novamente o cargo de presidente do Brasil 62 Movimento fascista brasileiro durante a segunda metade dos anos 30 comandado por Plínio Salgado que ao encontrar com Mussolini deu início ao seu apostolado O integralismo combateu o socialismo e a liberaldemocracia em nome da tríade Deus Pátria e Família Em 1932 surge a AIB Ação Integralista Brasileira Em 1935 segundo Salgado a AIB tem 1123 núcleos e 400 mil adeptos Entre eles figuras exponenciais como Miguel Reale Alfredo 125 comunismo Mas a Igreja em seu relacionamento com o poder do Estado desde 193063 não dará uma só palavra a respeito do Estado Novo e tampouco sobre a constituição de 1934 De forma geral segundo Lustosa a maioria do episcopado não via tal governo com maus olhos pois a civilização cristã recebia proteção contra os perigos e ameaças do comunismo Com isso a Igreja fez coro com a repressão das forças de segurança fechando a boca e os olhos diante das atrocidades inomináveis da polícia contra os presos políticos E quando em 1937 Pio XI promulga a encíclica Divini Redemptoris o episcopado a divulga no Brasil respaldada por uma Carta pastoral como se a palavra do papa viesse a talho para canonizar a conjuntura do regime brasileiro em face dos comunistas subvertedores da ordem social cristã Eis o que afirma a hierarquia depois de lembrar dos horrores das perseguições aos católicos na Rússia Espanha e México e o silêncio da imprensa sobre o comunismo de Moscou Devese em parte tal silêncio a razões de uma política menos previdente favorecida por várias forças ocultas que há muito procuraram destruir a ordem social cristã Lustosa 1991 p575864 De certa forma com o final da guerra as pressões internas e externas ao regime aumentaram e isso favoreceu a passagem para o processo democrático de 1945 A questão social descortinou novos horizontes os operários se uniram os sindicatos se fortaleceram abrangendo o espaço rural e foram ao encontro do homem do campo65 Logo não tardou para que Buzaid Mourão Filho Raimundo Padilha Godofredo da Silva Telles Hélder Câmara e Alceu de Amoroso Lima Cf Isto é Brasil 500 anos1998 p132 63 Veja Lustosa 1991 p4859 sobre A aliança implícita acordo das lideranças D Sebastião Leme e Getúlio Vargas 19301945 64 O texto entre aspas de acordo com o autor está contido no texto Carta pastoral do Episcopado brasileiro e a encíclica Divini Redemptoris de S S Pio XI sobre o Comunismo ateu Rio de Janeiro Tip do Jornal do Comércio 1937 p12 65 Convém lembrar que antes da passagem do processo democrático de 1945 entre os anos de 1922 a 1926 quase a totalidade do período governamental do presidente da República Artur da Silva Bernardes passou sob estado de sítio Nesses anos viveuse uma ebulição revolucionária política através de certos movimentos como a Semana de Arte Moderna o Levante dos 18 do Forte o Movimento Tenentista a formação do Partido Comunista Brasileiro PCB a Coluna Prestes e de extrema relevância os movimentos sindicais marcados por grandes manifestações e greves dos operários Por isso uma acirrada repressão bernardista caiu sobre os tenentes os anarquistas os comunistas os sindicalistas os simpatizantes e suspeitos No governo de Washington Luís Pereira de Souza 19261930 ocorreu o arrefecimento revolucionário Ele libertou todos os presos políticos e outros ditos aprisionados injustamente Dias antes do término de seu mandato Washington Luís foi deposto pelo golpe militar que abriu um caminho para Getúlio Vargas 19301945 Vargas mesmo em sua campanha para a presidência da República assumiu a concessão de algumas reivindicações como a da condição de trabalho dos salários e do direito previdenciário Isso lhe coube futuramente o sentimental título de pai dos pobres e o reconhecimento fundamental 126 surgissem propostas a respeito da Reforma Agrária no que concerne à posse de terras Em 1950 o bispo da Campanha cidade do Sul das Minas Gerais D Inocêncio Engelke ligado à Juventude Agrária Católica JAC anuncia sua Cartapastoral dando todo apoio e ênfase à reforma Gómez de Souza 2004 p27 Em resposta são realizadas as Semanas Ruralistas de Campanha MG em 1950 e também de Natal RN em 1951 com o apoio da Ação Católica AC Frei Lustosa acredita que se tratava de um novo tempo em que os dirigentes da Igreja estavam sensibilizados e conscientes da necessidade do reformismo rural Portanto caminhavam lado a lado com a gente da igreja e a gente do governo nos diversos quadros da questão social ora aplaudindo ora questionando ora se dividindo internamente em posições ideológicas diferenciadas em face às medidas oficiais decretadas 1991 p69 Foi neste período que as ideias de Marx Sartre Chardin Mounier Jasper Marcel Blondel Simone Weil dentre outros fomentaram e fermentaram debates entre estudantes e professores brasileiros o que influiu na ordem do pensamento e da ação quanto ao que toca ao político pedagógico econômico e cultural Por este rastro as camadas populares também começaram a se estruturar isso já na segunda metade dos anos 1950 e início de 1960 Com a pretensão de se construir uma nova humanidade vários projetos surgiram para sua viabilização Os jovens invocaram a liberdade o fim das discriminações exigiram compromissos pregaram o amor e a solidariedade Viveuse um período de pretensões reformistas lutas por independência nas colônias do Terceiro Mundo melhores condições de que o ajudou a promover a harmonia entre as classes a aproximação do sindicato ao Estado e o apoio de parte do operariado contra alguns segmentos rebeldes oriundos dos próprios operários Em 26 de novembro de 1930 foi criado o Ministério do Trabalho Com o decreto 19770 de 19 de março de 1931 o sindicato foi incorporado ao Estado e às Leis portanto subordinado ao Ministério do Trabalho Em 10 de maio de 1943 entrou em vigor a CLT Consolidação das Leis do Trabalho com seus 922 artigos sobre a organização sindical a previdência as relações trabalhistas e a justiça do trabalho Durante o período do Estado Novo a intervenção do Estado sobre o sindicato foi severa Com o sindicato oprimido o Estado arrogou o privilégio exclusivo de falar em nome dos trabalhadores e com isso desenvolveu uma intensa propaganda de proteção ao assalariado como o salário mínimo Para a grande maioria de trabalhadores aplausos à Getúlio pai dos pobres para outros poucos indignados rebeldes cabia ao presidente o título de mãe dos ricos Cf Isto é Brasil 500 anos 1998 p 111128 127 trabalho emancipação feminina Suas reivindicações se refletiram nas inquietações dos estudantes e acabaram ancorando muito de seus sonhos idealistas ao chão concreto da restauração de uma sociedade que pedia o reconhecimento da dignidade e os direitos de todos os despossuídos As atenções dos jovens mais politizados voltavamse para as lutas dos trabalhadores e de suas organizações enquanto cresciam as preocupações das classes dominantes pelos levantes que multiplicavamse por toda a parte Semeraro 1994 p21 Foram anos de grande ebulição principalmente nas universidades católicas em que os estudantes reivindicavam transparência ética dignidade e liberdade Através dos movimentos de esquerda os universitários e trabalha dores pretendiam mudar o curso da história do Brasil e o pensamento de Emmanuel Mounier atravessou fronteiras nele os jovens encontraram respostas aos seus maiores anseios Com isso revoluções insurgiramse contra poderes ditatoriais pois se havia percebido um outro viés As ameaças maiores à humanidade não surgiam tanto dos conflitos armados e sim das diversas opressões da dependência dos povos do conformismo da alienação da manipulação das massas Como pregavam as filosofias existencialistas era preciso voltarse para o compromisso político para o engajamento na situação promovendo a vida autêntica a vivência da liberdade e da consciência responsável Ibid p2066 Constança Marcondes César lembra que Em 1950 floresce o personalismo de Mounier É sob o impacto de sua filosofia que a Ação Católica vai trabalhar e em 1960 principalmente sua obra será muito difundida nas Universidades Católicas 1988 p6067 11 Ação Católica no Brasil e os campos de atuação 66 Optamos por as filosofias existencialistas no plural por concordar com Mounier quanto a sua posição de que o existencialismo possui raízes mais antigas mas aparece normalmente ligado a uma corrente precisa do pensamento moderno no sentido de que trata se de uma reação da filosofia do homem contra o excesso da filosofia das ideias e da filosofia das coisas Neste sentido referindose à Árvore existencialista com suas várias ramificações preferimos falar de existencialismos Cf Mounier 1947 p714 67 Quando de minha defesa de dissertação A pessoa como desafio na sociedade globalizada e a atualidade do pensamento ético personalista de Emmanuel Mounier para os componentes da banca de mestrado na PUCCAMP 2003 tive o prazer de contar com a presença da Profa Constança que revelou seu apreço pelo personalismo de Emmanuel 128 A Ação Católica foi idealizada com a pretensão de estabelecer a presença da Igreja na sociedade reconquistando a elite intelectual as massas em especial os jovens e a classe trabalhadora atraída por movimentos de inspirações anarquistas fascistas e comunistas A Ação Católica propagouse na Itália durante o pontificado de Pio XI 19221939 quando este a estruturou e a definiu como um movimento organizado de participação de católicos leigos no apostolado hierárquico da Igreja Tal ideia de participação provocou reações visto que significava a entrada de nãocléricos no preservado espaço que parecia exclusivo dos sacerdotes Gómez de Souza 2004 p63 Foi com Pio XII que o termo participação foi trocado por colaboração atrelado ao que se chamou de Mandato que significava o laço formal que liga um Movimento da Ação Católica à Igreja hierárquica de quem recebe os direitos e garantias Garrone 1960 p64 No Brasil D Sebastião Leme de Silveira Cintra arcebispo do Rio de Janeiro em 1923 promoveu a Ação Católica tendo por ponto de partida as elites68 Em 1929 o arcebispo de Porto Alegre D João Becker publicou uma Cartapastoral espelhandose na Ação Católica italiana que consistia de quatro setores específicos de atuações voltadas para os homens Homens da Ação Católica HAC para as mulheres Liga Feminina da Ação Católica LFAC para os jovens Juventude Católica Brasileira JCB Masculina e para as moças Juventude Feminina Católica JFC Beozzo 1984 p30 Já em meados de 1930 chegou ao Brasil o modelo de um movimento criado na Bélgica em 1923 pelo Padre Joseph Cardjin filho de operários denominado Mounier Ela disse Naqueles tempos fui uma militante apaixonada pelo pensamento personalista 68 Cf Carta apostólica Quamvis Nostra Documentos Pontifícios n 42 Petrópolis Vozes1950 Veja o Sítio httpwwwvaticanvalholyfatherpiusxilettersdocumentshfp xilett19351027Quanvisnostraithtml acessado em 06072009 Libreria Editrice Vaticana Alceu Amoroso Lima afirmava que o propósito da AC era de influir em três meios sociais entre os operários entre os estudantes e entre os intelectuais Para ele estes últimos de modo particular haviam provocado o sofrimento da sociedade moderna pois separaram o pensamento da realidade e as ideias da realização A espiritualização dos meios intelectuais brasileiros primeiro dos nossos propósitos não é pois uma obra de alheamento social ou de simples culto da cultura como se faz nos meios intelectuais agnósticos e sim uma empresa de incalculável alcance tanto para o enriquecimento da própria inteligência como para sua irradiação moral e social Por isso tanto nos esforçamos na promoção de uma cultura superior inspirados nos princípios mais sadios da Razão e da Fé E daí nossa atuação nos meios intelectuais 1935 p17 129 Juventude Operária Católica JOC cujos núcleos floresceram nas cidades de São Paulo e Rio Grande do Sul e que mais tarde recebeu o nome de especializado69 Em seguida surgiu a Juventude Universitária Católica JUC precedida pela Associação dos Universitários Católicos AUC Dom Sebastião Leme com seu plano de mobilização e organização social e política dos católicos contou com um quadro de líderes leigos de grande influência no meio social e cultural como a da figura marcante de Alceu Amoroso Lima conhecido pelo pseudônimo Tristão de Athayde que tinha se convertido ao catolicismo em 1928 e que havia segundo ele encontrado na obra Humanisme intégral 1936 de Maritain as respostas às indagações acerca dos dramas sociais da época Contou também com a presença do intelectual exmilitante anarquista católico convertido Jackson de Figueiredo Martins Jackson foi responsável pela criação da revista A Ordem e do Centro Dom Vital no Rio de Janeiro A revista foi criada em 1921 por um pequeno grupo de católicos O Centro em 1922 e passou a funcionar como uma associação civil católica ligada à Igreja com o papel de a auxiliar na tarefa de reconquista dos fiéis e também na difusão do cristianismo entre os intelectuais e a elite Assim A Ordem absorveu a maior parte dos intelectuais católicos em seu círculo ofereceu cursos laterais de Teologia Filosofia e História seguiu voltada para o estudo e a discussão do pensamento católico bem como incentivou o apostolado católico de seus membros Busetto 2002 p484970 Com a morte prematura de Jackson em 1928 por afogamento Alceu Amoroso Lima assume a direção dos dois órgãos A Ordem e o Centro Dom Vital até o ano de 1968 a pedido de Dom Sebastião Leme Lima 1971 p12 69 Mesmo antes de instituir o modelo italiano no Brasil já havia núcleos espalhados pelo país Quase sempre isto sucede em torno de sacerdotes seculares e religiosos que haviam conhecido por ocasião de seus estudos em Roma a Ação Católica Italiana fortemente incrementada pelo papa e procuravam de algum modo imitála Ou também pelo influxo da Juventude Operária Católica JOC da Bélgica vitoriosa graças ao Pe Cardjin e de um grupo de trabalhadores As publicações e notícias de tal organização suscitaram o interesse de alguns sacerdotes e leigos entre nós Dale 1985 p14 70 Para Luiz Alberto o fato de a revista ser denominada A Ordem não possui nenhuma alusão ao lema positivista da bandeira nacional pretendia enfrentar a desordem social sendo uma reação ao mundo moderno pois Jackson declaravase convictamente reacionário na linha do francês Louis Veulliot ou de Joseph de Maistre que lutaram para restaurar o ancien régime Gómez de Souza 2004 p189 130 Inicialmente continua o trabalho deixado por Jackson porém com menos energia quanto à imediatez das questões políticas mesmo que contando com a maioria de seus membros ligados ao Integralismo Durante os anos 30 Amoroso Lima em consonância com o pensamento católico conservador e simpático aos princípios políticos do corporativistimo autoritário passou a repelir qualquer idéia de modernização social e atuando como íntimo colaborador de Dom Leme contribuiu na criação da Ação Universitária Católica AUC da Liga Eleitoral Católica LEC e da ACB Ação Católica Brasileira Busetto 2002 p4971 Só mais tarde Amoroso Lima adotou o pensamento católico democrático e reformista de Jacques Maritain pensamento muito criticado e atacado pelos setores tradicionais Em 1934 Amoroso Lima foi nomeado primeiro presidente nacional da Ação Católica Brasileira permanecendo até 1945 Lima 1971 p13 Diante de suas atividades na ACB no Centro e na Revista tornouse um dos maiores divulgadores do pensamento de Maritain nos círculos católicos no Brasil e um expressivo intelectual No outro lado da ACB na cidade de São Paulo em contraposição ao pensamento de Alceu encontravase o dirigente leigo Plínio Correia de Oliveira apoiado pelo vigáriogeral da arquidiocese Pe Castro Mayer Em 1943 Plínio escreveu um livro Em defesa da Ação Católica opondose a Amoroso Lima que havia escrito em 1938 Elementos da Ação Católica Surgia 71 Foi na AUC que os estudos de religião e filosofia permearam a vida dos jovens militantes Em 1932 através da energia de Alceu nasce também o Instituto Católico de Estudos Superiores sob a direção de Sobral Pinto Os estudantes acolhidos chegavam de diversas faculdades como as de Direito Medicina e Politécnica Detalhe importante é que certos jovens se despertaram em suas vocações religiosas Dentre muitos vejamos alguns No primeiro grupo encontramse Dom Basílio Penido OSB que vinha do noviciado da Companhia de Jesus e estudava medicina Jovino Irineu Joffily da Paraíba estudante de química industrial um líder formidável que arrastou vários outros para os dominicanos Clemente Isnard OSB estudante de direito e hoje bispo de Nova Friburgo RJ Sebastião Hasselman OP que com Romeu Dale OP e Joffily OP fez seu noviciado na França Frei Romeu Dale OP será durante 12 anos 19491961 o assistente nacional da JUC Dom Leão Almeida Matos OSB médico também Cf Beozzo 1984 p2429 Importante também lembrar a criação da LEC Jackson anos antes da Revolução de 1930 percebeu a necessidade de novos ajustes com o universo da política e propôs a D Leme a criação de um partido católico D Leme se opôs ao partido mas concordou na criação da Liga Eleitoral Católica uma espécie de tribunal privado eclesiástico para julgar os candidatos a postos políticos em função de seu alinhamento diante dos interesses corporativos da Igreja ensino religioso indissolubilidade do casamento etc Uma vez mais o dirigente seria Alceu comandante em tantas frentes Cf Gómez de Souza 2004 p190 131 um conflito irreconciliável entre as partes De um lado um esforço para repensar o problema da atualidade quanto à liberdade a democracia a participação social do outro tudo que fosse considerado moderno e incomodasse o tradicional era qualificado como anticristão Segundo Gómez de Souza 2004 p64 O modelo de referência destes últimos era a velha cristandade medieval sobre a qual Correia de Oliveira ensinava na universidade Fazendo frente a ela Maritain em seu livro Humanismo Integral de 1936 falava da Nova Cristandade numa sociedade pluralista Em 1943 morre o arcebispo de São Paulo D José Gaspar dAfonseca e Silva sendo nomeado D Carlos Carmello de Vasconcelos Mota Cessa a influência de Castro Mayer que logo foi nomeado bispo de Campos Durante este período de mudanças São Paulo recebe a presença de três sacerdotes canadenses da Congregação de Santa Cruz que traziam consigo uma vasta experiência em Ação Católica Especializada Neste ínterim chegaram também dois dominicanos que regressavam de seus estudos na França Frei Rosário Joffily e Frei Romeu Dale este assumiria por muitos anos a função de assistente nacional da JUC72 As mudanças não param Quase que ao mesmo tempo morre D Sebastião Leme Para sua posição foi nomeado D Jayme de Barros Câmara que não comungava as ideias de Amoroso Lima Por isso Amoroso Lima logo se afastou da ACB Nos anos seguintes os dirigentes da Ação Católica se voltaram para a reorganização institucional interna Os mais tradicionais foram se desligando do movimento Luiz Alberto Gómez de Souza lembra que a ACB além do integrismo radical fora também influenciada em alguns setores pelo integralismo de Plínio Salgado calcado no pensamento corporativo com fortes influências do salazarismo português O próprio Amoroso Lima sem nunca ter pertencido a essa corrente chegara a recomendar aos católicos uma possível adesão ao integralismo Logo depois tomava distâncias dessa organização assim como o Pe Hélder Câmara que fora em 1932 um importante líder integralista em Fortaleza Até 1950 em alguns poucos centros Porto Alegre foi um deles se podiam 72 Importante lembrar que a AUC nascida a partir do Centro Dom Vital integrouse e se transformou em 1937 na JUC que já havia sido criada em 1935 132 encontrar certas simpatias pelo integralismo que logo iriam desaparecendo Gómez de Souza 2004 p65 A ACB com a saída de Alceu Amoroso Lima perdia um grande líder mas ao mesmo tempo arejavase por receber novas ideias que a fizeram distanciarse do modelo centralizado italiano Ascendeu à presidência o padre cearense Hélder Câmara que ocupou posição de destaque entre os anos de 1947 a 1964 Sensibilizado pelo problema social ele se tornou o símbolo do chamado Clero Progressista Ao buscar aprimorar a Igreja Dom Hélder ajudou a alterar o rumo de uma das instituições mais antigas e importantes da América Latina nos anos 60 e 70 a Igreja passou a se ocupar de modo crescente de questões ligadas à desigualdade social e à necessidade de uma maior participação da sociedade dentro do processo político Dom Hélder simbolizou tais transformações e juntamente com um número de outros bispos progressistas lutou por uma alteração radical das estruturas sociais e pelo estabelecimento de um socialismo humanista de gênero Latinoamericano Serbin 200973 Em 1950 houve grande movimentação no que se refere à organização dos movimentos de leigos existentes no Brasil Os modelos importados fosse o italiano o canadense ou o francês foram muito questionados e a pergunta em pauta era qual o modelo a se seguir a pressão de alguns assistentes eclesiásticos dirigentes leigos e a influência marcante dos padres Hélder Câmara e José da Távora futuros bispos auxiliares do Rio de Janeiro levaram à transformação total em 1950 para o modelo especializado com os movimento masculinos e femininos de jovens da área rural JAC estudantes secundários JEC e JECF de setores da classe média e urbana JICF Juventude independente operários JOC e JOCF e universitários JUC A eles corresponderiam teoricamente organizações 73 Para Lima Vaz é importante observar que tanto para os integristas como para os progressistas o passado possui grande importância Os primeiros buscam no passado a imagem ideal tornandoo o paradigma definitivo da cultura cristã que precisa ser restaurada Os segundos buscam na raiz do cristianismo as virtualidades primeiras que precisam ser transplantadas neste novo tempo Dois termos característicos de duas épocas do catolicismo francês exprimem significativamente essa dupla visualização do passado restauration é um termo integrista ressourcement expressão criada por Péguy num outro contexto passa a fazer parte do vocabulário progressista Aos primeiros importa fixar o segmento do passado em que a Igreja dominou as instituições as ideias e toda a vida dos homens são os cultores de uma Idade Média muitas vezes idealizada Os segundos remontam à simplicidade das origens para tentar fixar os princípios que permanecem para além das formas históricas transitórias são os que interrogam o Novo Testamento sobre a essência do cristianismo ou se voltam para um cristianismo primitivo também frequentes vezes idealizado 1998 p142 143 133 adultas ditas ligas que tiveram vida efêmera umas poucas LIC e LOC seriam origem das futuras ACI e ACO Gómez de Souza 2004 p636474 Com a decisão de se especializar de acordo com o meio no qual trabalhava a Ação Católica Brasileira adota o modelo especializado a partir de 1950 e terá por norte o pensamento de Jacques Maritain em especial o Humanismo integral principalmente no meio universitário pelo que a JUC ocupará posição de destaque sendo considerada o setor mais importante da ACB 12 O despertar de inspiração libertária Dentre os Movimentos da ACB a JOC não fora muito dinâmica durante os anos de 1935 a 1948 Os líderes da ACB não acreditavam na necessidade de despender maiores envolvimentos articulações e forças em um movimento constituído de operários mesmo sabendo que o pensamento marxista possuía força neste meio e oferecia resposta às inquietações da época Durante este período a JOC sobreviveria graças a esforços isolados de alguns sacerdotes e bispos que se preocupavam com a classe operária Mesmo com dificuldade a estrutura da JOC no contexto nacional foi adquirindo com o passar do tempo uma forma organizacional valiosa à medida que conhecia seus próprios limites e problemas de várias ordens Esta experiência fêla reconhecer num breve prazo sua real missão e compromisso com o trabalhador urbano Sua estrutura tornouse composta de Seções Locais Federações Confederações Comitê Nacional oferecendo Serviços Jocistas e Campanhas de acordo com os Estatutos Cada Seção Local tinha por finalidade resgatar os jovens operários afastados da Igreja fazendoos participar das atividades recreativas da discussão dos problemas trabalhistas dos cursos de alfabetização e dos Círculos de Estudos A Seção se compunha de uma equipe de militantes que recebia instruções e orientações 74 Significado de algumas siglas ainda não descritas JEC Juventude Estudantil Católica JECF Juventude Estudantil Católica Feminina JICF Juventude Independente Católica Feminina JOCF Juventude Operária Católica Feminina LIC Liga Independente Católica LOC Liga Operária Católica ACI Ação Católica Independente ACO Ação Católica Operária 134 através do Boletim do Militante com uma agenda de reuniões programadas pela Equipe Nacional da JOC Do conjunto de seções de uma determinada diocese formavase a Federação que era organizada como um comitê composto por três dirigentes e um assistente eclesiástico Os dirigentes também eram intermediários entre as seções e o Comitê Nacional Já as muitas Federações reunidas formavam o Conselho Nacional que elaborava o caminho Programa Nacional a ser palmilhado pelo Movimento Devido à extensão do território brasileiro criaram se as Confederações ou Regiões Jocistas o que facilitou o conhecimento dos problemas regionais Na composição do quadro de pessoal foi importante o trabalho dos primeiros jovens com dedicação exclusiva os chamados propagandistas que tinham a missão de difundir o Movimento por toda a região Não tardou para que surgisse também o Encontro Anual Nacional dos dirigentes das confederações visando uniformizar as atividades e adotar ideias comuns por todo o país Outro elemento importante foi a criação do jornal a Juventude Trabalhadora de tiragem mensal que pretendia ser um veículo de formação e informação De certa forma todas estas articulações foram muito importantes no sentido de fortalecer a presença do Movimento em muitas regiões do Brasil pois se constatou que em 1956 funcionavam 424 Seções dez mil membros eram atuantes atingindo mais de cem mil jovens operários Era inegável a eficiência organizacional jocista considerando que a JOC fora oficializada há alguns anos apenas Muraro 1985 p43 Reconhecida oficialmente pelo clero brasileiro em 1948 a JOC encontrou o terreno propício para seu desenvolvimento graças ao novo ambiente industrial do pósguerra da injeção de capital estrangeiro no país do número crescente de operários e dos sonhos libertários da juventude Para isso os militantes jocistas esforçaramse muito em que a JOC se tornasse conhecida Empreenderam grandes concentrações pelo Brasil através de passeatas de peregrinações como a dirigida a Aparecida do Norte em 1953 e a participação no congresso Eucarístico no Rio de Janeiro em 1955 Através desses eventos despertaram jovens para a vocação cristã para a importância 135 da família para o lazer e a cultura Nestes primeiros anos como Movimento oficial pode se afirmar que a JOC era caracterizada mais como um movimento religioso do que como uma organização de trabalhadores A harmonia com o Estado e com a hierarquia eclesiástica também era evidente Muraro 1985 p50 Entre os anos de 1956 a 1961 o Brasil vivia em um clima de euforia durante o governo de Juscelino Kubitschek com um crescimento econômico real Seu slogan cinquenta anos de progresso em cinco de governo parecia realizarse Brasília tomava forma em concreto armado a autosuficiência de bens de consumo o Programa das Metas os grandes investimentos as pesquisas encorajadas pelo governo no que se refere aos problemas de desenvolvimento do Brasil através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros ISEB 75 despertavam otimismo e um nacionalismo ímpar Somente em 1958 a JOC parece ter compreendido o porquê de sua existência A partir daí voltouse para o jovem operário o abandonado quando transpassou os núcleos paroquiais e chegou até as fábricas às oficinas adentrou os ambientes dos sindicatos dos clubes e dos bairros Foi a partir do início da década de 1960 que os jocistas se envolveram concretamente na defesa dos direitos econômicos sociais culturais e políticos do mundo operário Isso muito se deve à aproximação com os militantes mais radicais de esquerda a chamada esquerda católica constituída inicialmente por membros da JUC e da JEC e posteriormente formando uma importante tríade a própria JOC 75 Criado como órgão do Ministério da Educação e Cultura MEC em 14071955 o ISEB tinha por meta elaborar uma ideologia com o intuito de compreender a realidade brasileira e promover o desenvolvimento nacional que ficou conhecida como nacional desenvolvimen tismo Apesar de criado no governo de Café Filho inicia suas atividades quando Juscelino Kubitschek assumiu a presidência do país O ISEB reuniu nomes reconhecidos no meio intelectual como Sérgio Buarque de Holanda Miguel Reale Hélio Jaguaribe Roland Corbisier Cândido Mendes Alberto Guerreiro Ramos Nelson Werneck Sodré Álvaro Vieira Pinto dentre outros Em 1958 uma crise interna divide o Instituto De um lado o grupo de Hélio Jaguaribe se opõe à corrente de que fazia parte Guerreiro Ramos e Corbisier que exigia uma atuação mais compromissada e menos acadêmica Com o golpe militar de 31 de março de 1964 o presidente da república João Goulard foi deposto em 13 de abril de 1964 o ISEB foi extinto e instaurado um inquérito policialmilitar IPM para apurar as atividades dos isebianos Muitos foram exilados Cf Fundação Getúlio Vargas Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil FGVCPDOC 136 Da mesma forma que a JOC a JUC levou também certo tempo para entrar em sua fase mais produtiva Como movimento especializado nasce oficialmente e adquire relevância a partir de 1950 Após esta data houve uma aproximação com as esquerdas políticas do país É este o período em que se inicia o envolvimento dos jovens universitários não só com as preocupações de ordem religiosa doutrinária e cultural mas também as ultrapassando no sentido de críticas e lutas por reformas do sistema educativo e envolvimentos com os problemas sociais políticos e econômicos76 Ciente da diversidade regional do Brasil a Coordenação Nacional em 1950 decide realizar anualmente o congresso do Conselho Nacional da JUC com o intuito de reunir dirigentes jucistas de todo o país para debates e decisões Passagem crucial na vida da JUC foi a da insatisfação entre os grupos de liderança do movimento a partir de 1956 quando se percebeu a grande quantidade de debates em especial nos conselhos nacionais e que muito pouco se fazia para o movimento em si A causa da ineficácia da JUC foi encontrada na falta de vida do movimento em suas discussões e orientações teóricas excessivamente abstratas na falta de engajamento na realidade concreta Kadt 2007 p85 Algumas alterações começam a surgir A JUC de Pernambuco adota uma orientação mais prática e compromissada socialmente seguindo a JUC de Recife que nos anos de 1957 e 1958 focou temas como universidade e sociedade saúde miséria fome Já no ano de 1958 estes jucistas agiam nas favelas seguindo suas idéias e descobriam a realidade brasileira No IX Conselho Nacional em julho de 1959 vários temas foram abordados e exigências apontadas para uma nova consciência como a Missão da Igreja A Igreja e o Temporal Condições do engajamento cristão no Temporal além de seminários para preparar os assistentes da JUC Muitos destes assuntos foram tratados pelas comissões É neste evento que se inicia uma nova etapa da JUC aquela que se preocupa com a educação com o 76 Beozzo Cf 1984 p35 opta por uma certa divisão quanto à história da JUC Dividea em três etapas Etapa preparatória 19431950 Etapa de organização expansão e consolidação 19501960 Etapa de engajamento no temporal e crise com a hierarquia 1960 1967 137 engajamento temporal e que tem por forte marca o início da crise com a Hierarquia A JUC na época 19591964 tornase o mais proeminente movimento especializado dos setores da Igreja No decurso da década de 1950 o Movimento foi aos poucos se sensibilizando com os problemas nacionais e a cada Conselho os debates tornavamse mais tensos e exigentes quanto à ação Por isso ao assumir posições inovadoras e muito questionadoras logo suscitou preocupações e fortes reações os jovens da JUC passaram a questionar aspectos das ideias dominantes na Igreja como a passividade política diante da ordem estabelecida num contexto de convivência universitária com outras correntes de pensamento especialmente as socialistas e comunistas às quais precisavam fazer frente Eles eram influenciados pela discussão teórica no interior da própria Igreja em particular pelas obras de Jacques Maritain Emmanuel Mounier e Pierre Teilhard de Chardin ficaram marcados pelo pontificado progressista do Papa João XXIII a partir de 1958 além de confrontarse com as desigualdades gritantes da sociedade brasileira e com o ascenso na mobilização política de trabalhadores urbanos e rurais numa dada evolução da conjuntura política nacional nos anos liberais do governo de Juscelino Kubitschek 19561960 e internacional notadamente com a vitória da Revolução Cubana de 1959 Ridenti 2002 p213282 De uma forma ampla o mundo vivia um novo contexto histórico permeado por revoluções de libertação nacional amparados por ideais socialistas como a revolução de Cuba a da Argélia as lutas anticolônias na África na Ásia entre outras O modelo soviético de socialismo passou a ser contestado considerado burocrático conformado e acomodado à ordem internacional estabelecida pela guerra fria Por isso surgiam novas referências na esquerda constituída na maioria de católicos bem como de protestantes Em 1960 a JUC estava presente em 52 cidades brasileiras em locais nos quais funcionavam universidades ou faculdades em especial Faculdades de Filosofia Importa lembrar que até 1959 em São Paulo havia um grupo que ocupava a posição de liderança nacional constituída por alguns dirigentes como Luiz Eduardo Wanderley Plínio Arruda Sampaio Paulo Gaudêncio Celso Lamparelli Francisco Withacker Ferreira e o assistente Monsenhor Enzo 138 Gusso Nos anos seguintes 19591964 será o grupo de Belo Horizonte MG que irá assumir o centro de maior representatividade do Movimento nacional 2 Exigências de um novo pensamento humanista para o contexto histórico concreto brasileiro Na circular de preparação para o III Conselho Nacional em Salvador Bahia em janeiro de 1953 foi solicitada pela equipe nacional da JUC aos participantes a leitura das obras Religião e Cultura O Homem e o Estado de Jacques Maritain Les hommes contre lHomme La Mission de lintellectuel de Gabriel Marcel e As fronteiras da Técnica de Gustavo Corção Estiveram presentes 56 dirigentes de 16 cidades universitárias que representavam jucistas de 105 faculdades com 415 militantes e 260 simpatizantes Participaram também 8 assistentes padres encarregados do movimento no sentido espiritual e a equipe nacional Estes preocupados com a organização dos Conselhos futuros decidiram promover um encontro nacional preparatório de 6 a 12 julho Encontro Nacional de Assistentes da JUC Para o próximo Conselho 1954 o tema escolhido centrouse na questão social e nesse ano oficialmente ocorreu o I Encontro Nacional de Assistentes da JUC José Oscar Beozzo Cf 1984 p5657 esclarece que nos anos seguintes nas leituras solicitadas ao Movimento aparecem frequentemente as obras de Congar de Lubac Daniélou Perrin Voillaume Suhard Thils e no plano social e filosófico ao lado de Maritain liase Lebret Mounier Calvez e Karl Rahner Porém no VIII ConselhoV Encontro realizado em Campinas em 1958 surgiram pesadas críticas ao Movimento e uma cobrança exigente quanto ao comprometimento jucista no temporal Em 1959 no IX ConselhoVI Encontro em Belo Horizonte iniciase a nova etapa do Movimento em torno Da Necessidade de um Ideal Histórico Bezerra 197977 para a JUC apresentado 77 Almery Bezerra fará uso do livro de Jacques Maritain Humanisme Intégral para utilizar a expressão ideal histórico No Brasil a obra de Maritain foi traduzida por Afrânio Coutinho Companhia Editora Nacional1945 139 em um texto pelo assistente da JUC de Recife padre Almery Bezerra O padre Bezerra desperta os jovens e encontra apoio fundamental do grupo mineiro integrado pelo assistente padre Luiz Viegas Herbert José de Souza Betinho Antônio Otávio Cintra Henrique Novaes Paulo Haddad Vinícius Caldeira Brant dentre outros Para Luiz Alberto Gómez por trás da busca de um ideal histórico o que realmente se pretendia era afirmar um programa que servisse de guia para inserir os cristãos no seio da sociedade Os motivos seriam a ausência de um pensamento democratacristão significativo a falta de reflexão madura sobre o cristianismo e sobre a realidade brasileira Diferentemente os países vizinhos como o Chile e a Venezuela através dos movimentos socialcristãos e os partidos democratacristãos encontravamse profundamente inspirados em Maritain Cf Gómez de Souza 2004 p71 Beozzo lembra que é exatamente neste momento que o grupo mineiro se sobressai inaugurando uma nova etapa da JUC Será a equipe de Belo Horizonte que pela primeira vez levantará a reforma das estruturas em toda sua acuidade auxiliada sem dúvida pela presença de um importante grupo de jucistas da Faculdade de Ciências Econômicas 1984 p59 Neste sentido Beozzo diz que foi na tentativa de concretização das premissas teóricas que a equipe de Belo Horizonte na maioria estudantes de ciências sociais da UFMG se destacou pois ao perscrutar o problema do desenvolvimento e do nacionalismo a equipe procurou elaborar um ideal histórico para o Brasil dentro de uma linha socialista Ibid p59 Ainda segundo Beozzo a liderança central do Movimento deslocouse gradualmente de São Paulo para Belo Horizonte Dentro da perspectiva de comprometimento acentuado no temporal a equipe de Belo Horizonte através do Ideal Histórico propôs mudanças profundas das estruturas econômicas políticas e culturais da sociedade Enquanto São Paulo passava por enormes transformações do gigantismo urbano no que se refere à elevada produção industrial o crescimento das grandes correntes migratórias internas e externas ao mesmo tempo ocorria a quebra do tradicionalismo o aumento dos movimentos de esquerda junto às classes operárias ocorrendo também que aos poucos a Igreja perdia espaço para muitas outras vertentes religiosas 140 que cresciam juntamente com a população Mesmo a Universidade Católica de São Paulo no plano científico e cultural não poderia concorrer nem de longe com a Universidade de São Paulo Diferentemente da capital paulista a jovem e moderna Belo Horizonte conservava sua tradição religiosa não estando as escolas e as universidades articuladas com o esmagador aparelho industrial Então Uma presença importante da JUC na Faculdade de Ciências Econômicas facilitaria a elaboração deste projeto de reforma econômica e social da sociedade animada diretamente por uma motivação religiosa Beozzo 1984 p85 Importante ainda lembrar que nessa época todo o meio universitário encontravase muito politizado o que era considerado uma atividade normal e necessária à JUC Os militantes participavam dos assuntos e debates sobre a reforma universitária a política estudantil os diretórios acadêmicos as uniões estaduais e como candidatos na União Nacional dos Estudantes UNE No X Conselho NacionalVII Encontro realizado na cidade do Rio de Janeiro 1960 comemoraramse os dez anos da JUC e contouse com a presença de 500 militantes de vinte diferentes Estados além de representantes jucistas da Argentina Colômbia e Uruguai O Movimento alcançara uma repercussão surpreendente sobretudo nos anos sessenta A mudança de orientação a radicalidade evangélica o compromisso combatente penetraram nos anseios dos jovens sedentos por mudanças dia após dia somavase maior número de militantes à JUC atraídos pelos primeiros sucessos Com o aumento extraordinário de universitários que queriam integrar a JUC os critérios de admissão foram modificados Se antes exigiase uma vida de fé vivida a um nível mais intenso e autêntico agora requeriamse qualidades de liderança em seu meio e a concordância com as linhas do Ideal Histórico a filiação à Igreja através de sinais visíveis como a oração e os sacramentos passam a ser desvalorizados em proveito da participação na construção de uma ordem temporal que encarnasse concretamente os princípios evangélicos Ibid p91 Outra consequência importante infeliz no decorrer da história da JUC certamente não desejada pelos militantes e que fora depois objeto de reflexão e lamentada pelos jucistas referiuse ao compromisso político que se 141 deixou levar por conchavos e manipulações para eleger este ou outro candidato Para aqueles que não partilhavam de tais métodos e opções ideológicas ficou insustentável a convivência no Movimento78 Inevitavelmente surgiram muitas controvérsias ataques internos e externos que acompanharam os novos passos da JUC 21 O Ideal Histórico Nos anos de 1959 e 1960 entre os jovens cristãos constatavase a carência de um instrumental filosófico que sustentasse a proposta de um compromisso concreto com a realidade brasileira Padre Almery Bezerra ao viver o problema com os jovens buscou em Jacques Maritain a resposta Bezerra pretendia trazer alguma luz ao problema enfrentado pelo Movimento não bastava saber que se tem uma tarefa a cumprir no mundo não bastava conhecer as teses de uma teologia cósmica ou ser posto dentro de uma perspectiva de encarnaçãoBezerra 1979 p79 mas era preciso saber como executála proclama aos militantes a necessidade do agir no sentido atual da história no momento exato em que vós sois chamados a fazêla para que venhais a conhecer a maneira concreta e devida segundo a qual se deve encarnar o vosso cristianismo Ibid p79 Em Maritain os argumentos para tal mudança significavam a hora de recristianizar momento de urgência para uma nova cristandade um regime temporal ou uma era de civilização cuja forma animadora seria cristã e corresponderia ao clima histórico dos tempos em que entramos Maritain 1945 p128 Maritain ao apresentar o ideal histórico de uma nova cristandade indica que o Ideal Histórico é uma imagem prospectiva que significa o tipo particular o tipo específico de uma civilização ao qual se tende em certa era histórica Ibid p123 Para ele um Tomás Morus um Fénelon um Saint 78 Vimos que Mounier alerta sobre desvios impurezas da ação e os cuidados com a ação mutilada Veja o Cap II subseção 27 Cap III Subseção 311 142 Simon ou um Fourier construíram uma Utopia pela qual um ser de razão se constituía isolado de toda existência datada e distante do clima histórico em particular Certamente foram expressões máximas absolutas de uma perfeição social política e da arquitetura na qual a minúcia imaginária é levada tão longe quanto possível por isto que se trata de um modelo fictício proposto ao espírito no lugar da realidade Maritain 1945 p124 O ideal histórico concreto de Maritain não se referia a um ser de razão e sim a uma essência ideal realizável dentro das dificuldades e imperfeições não era uma obra feita mas em permanente confecção uma essência capaz de existência inserida num dado clima histórico correspondendo por consequência a um máximo relativo ao clima histórico de perfeição social e política no qual tudo implica em uma ordem efetiva a existência concreta Maritain afirma não desconhecer a importância do papel histórico das utopias e em especial a fase chamada utópica do socialismo em seu desenvolvimento ulterior Mas pensa que o ideal histórico concreto e um justo uso dessa noção permitiriam a uma filosofia cristã da cultura preparar realizações temporais futuras dispensandoa de passar por uma tal fase e de recorrer a qualquer utopia Ibid p124 Pretendia ele para uma cidade temporal um regime orgânico com caracteres de uma civilização comunitária personalista e peregrinal com alguns traços típicos para o clima histórico de então Ibid p128 O primeiro aspecto referiase a um fim próprio o bem comum que ultrapassa a simples soma dos bens individuais e interesses pessoais inserindo o indivíduo como parte do todo social encaminhandoo para um outro bem o intemporal para conquistar a perfeição e sua liberdade espiritual O segundo o bem comum temporal deve estar a serviço dos fins sobrenaturais da pessoa humana O bem comum temporal é um fim intermediário ou infravalente79 tem especificação própria e se distingue do fim último e dos interesses eternos da pessoa humana Mas sua própria especificação o envolve numa subordinação 79 Maritain Cf 1945 p129 entende que precisamente podese dizer o bem da vida civil é um fim último em uma determinada ordem finis ultimus secundum quid sendo ele próprio relativo e subordinado por isso intermediário ou infravalente ao fim último absoluto finis ultimus simpliciter A respeito ver Tomás de Aquino Suma Teológica III questão 65 artigo 2 143 a este fim de onde recebe suas medidas dirigentes Portanto possui consistência e bondade própria e condição de reconhecimento estando porém subordinado não se torna um bem absoluto O absoluto centro de fixação ao qual se refere não está nele mas fora dele e lhe é pois essencial sofrer a atração de uma ordem de vida superior Maritain 1945 p129 O terceiro aspecto a cidade terrestre com caráter de momento terrestre refere se a uma sociedade de pessoas no sentido de que são viajantes Estas pessoas não se estabelecem em moradas definitivas pois são peregrinos à procura da felicidade terrestre Para isso carecem transpor o vale de lágrimas através da multidão reunida da existência do todo do estado de justiça da amizade da prosperidade e precisam acima de tudo que se ultrapassem para que possam influir na vida da alma e no destino espiritual da pessoa Ibid p133 Na cristandade80 medieval o ideal histórico era comandado por duas dominantes a da ideia da força a serviço de Deus e a outra o fato concreto de que a civilização temporal estava de alguma maneira ligada ao sagrado e implicava a unidade da religião Corresponde o ideal histórico concreto da Idade Média o mito ou símbolo do SantoImpério ao que se pode chamar uma concepção cristã sacral do temporal Ibid p14181 Na opinião de Maritain essa concepção possui cinco notas típicas 1 Tendência a uma unidade orgânica de máxima qualidade com o intuito de unificar temporalmente o mundo sob o Imperador bem como espiritualmente sob o Papa 2 Predomínio efetivo do papel ministerial do temporal como causa instrumental em relação ao espiritual Como exemplo as Cruzadas 3 Emprego do aparelho temporal para fins espirituais Daqui procede a coerção física os abusos intoleráveis a condenação à morte por heresia a punição do 80 Sob a palavra cristandade Maritain 1945 p128 designa certo regime comum temporal cujas estruturas denotam em graus e segundo modos de resto muito variáveis a marca da concepção cristã da vida Só existe uma verdade religiosa integral só há uma Igreja católica pode haver várias civilizações cristãs cristandades diversas 81 Entendese que numa civilização de tipo sacral o auxílio em questão do temporal ao espiritual é de ordem instrumental nesta medida põe o braço secular sua espada a serviço do espiritual É normal então que a força de coação do Estado entre em jogo para proteger a fé da comunidade contra as influências dissolventes ninguém se espanta quando a consciência da comunidade é vitalmente impregnada das mesmas certezas unânimes podese dar mesmo como aconteceu na Idade Média que a intervenção do Estado nestas matérias modere e refreie os excessos das reações populares espontâneas É tão natural à multidão linchar o herege Maritain 1945 p172 144 corpo por preocupação com as almas 4 Diversidade de raças sociais Disparidade de categorias sociais hereditárias compostas por hierarquias das funções sociais e de relações de autoridade através de uma inferioridade natural apoiada na ideia romana do paterfamilias que advém do PaterDivinus 5 Um Império de Cristo a edificar Uma obra comum com a missão de restabelecer a estrutura social e política a serviço do Redentor através da força do homem e da política batizada Cf Maritain 1945 p141148 Ao contrário o ideal histórico de uma nova cristandade embora fundado nos princípios de uma cristandade medieval irá diferir quando da opção por outro caminho o da concepção profana cristã82 e não o da concepção sacral cristã do temporal Fora do contexto da marcha para a unidade típica da Idade Média e da dispersão espiritual mecânica da unidade pública importa o retorno de uma estrutura orgânica pluralista mais avançada que trate com esmero as estruturas econômicas jurídicas e institucionais Maritain a compreende como uma sociedade não somente de indivíduos mas uma cidade pluralista que reconhece nas sociedades particulares uma autonomia tão alta quanto possível e diversifica sua própria estrutura interna segundo conveniências típicas de sua natureza Ibid p158 Surgem dessa compreensão cinco notações que embora possuam correlações são opostas às notas típicas A primeira o pluralismo se estende para as esferas da estrutura da cidade da economia e da ordem jurídica A unidade temporal não seria mais a dos moldes da unidade sacral da Idade Média uma unidade máxima83 mas uma unidade mínima que consiste em uma organicidade superior firmada nos pilares da liberdade da tolerância civil e da amizade pressuposta pelos princípios éticos primeiros A 82 No caso da civilização profana esta se caracteriza pela procura do seu fim próprio infravalente e é a título de agente principal infraposto que a cidade temporal cristã desempenha seu dever para com a Igreja A Igreja integra de forma pluralista as atividades cristãs na própria obra temporal conseguindo com isso agentes autônomos de acordo com a ordem mais elevada A cidade auxilia a efetivar sua missão própria através das atividades morais e espirituais Cf Maritain 1945 p173 83 A unidade temporal vista na Idade Média possuía um sentido máximo exigente e altamente monárquico O centro de formação situavase muito alto na vida da pessoa acima do temporal situada nos corações e elucidada pelas estruturas políticas nacionais imperiais e centros de estudo diante de uma dada unidade doutrinal teológica e filosófica Cf Maritain 1945 p141143 145 segunda é a afirmação da autonomia do temporal não mais instrumental e sim como um fim intermediário ou infravalente A terceira nota trata da liberdade das pessoas adquirida pelas conquistas e realizações É o contrário do imposto pelo ideal medieval e liberal Ela é fundada na ética da pessoa no amor e na liberdade A seguinte a unidade de raça social pretende a igualdade a condição comum entre os homens Oposição simultânea à falsa concepção liberal dos tempos modernos e ao ideal sacral da Idade Média Maritain 1945 p193 O caminho é a democracia personalista que exige muito empenho para não reduzir a liberdade aos aspectos meramente formais e jurídicos A última notação é sobre a obra comum uma comunidade fraternal a realizar na cidade temporal Para uma civilização cristã que não pode mais ser ingênua não apareceria mais a obra comum como uma obra divina a realizar na terra pelo homem porém antes como uma obra humana a realizar na terra pela passagem de algo divino que é o amor nos meios humanos e no próprio trabalho humano Ibid p195 O princípio dinâmico não seria mais a ideia medieval de um Império de Deus a ser edificado muito menos a ideologia da Classe da Raça da Nação ou do Estado É uma ideia não estóica nem kantiana e sim evangélica de dignidade da pessoa humana de sua vocação espiritual e de seu amor fraternal Diante da vida profana e temporal seria porém absurdo esperar que todos os homens se tornassem bons Por isso são de suma importância na realização socialtemporal as verdades evangélicas de uma obra comum profana cristã para que as comunidades religiosas vivam fraternalmente Mas ainda é preciso um minimum doutrinal comum entre os crentes e os descrentes para que sirva de base de uma ação comum em que cada um comprometase ao maximum É uma obra prática comum profana cristã e não sacral cristã que compreende a plenitude e a perfeição das verdades Isso pode comprometer todo o cristianismo a dogmática e a ética cristã mas é somente no mistério da Encarnação Redentora que o cristão percebe a dignidade da pessoa humana Portanto é profana pois não há exigência de uma obra comum absolutamente de cada qual como entrada a profissão de todo o cristianismo Ao contrário ela comporta em seus traços característicos 146 um pluralismo que torna possível o convivium de cristãos e nãocristãos na cidade temporal Maritain 1945 p198 Maritain acreditava que o ideal histórico concreto de uma nova cristandade se tornaria límpido e as verdades do cristianismo seriam salvas e transmitidas ao futuro purificandoas dos erros mortais em que estavam comprometidas as verdades em prol das quais se esforçou a era moderna na ordem cultural Maritain 1945 p199 No texto de Almery Bezerra encontramos inspirações e citações retiradas diretamente do pensamento de Maritain De acordo com uma entrevista com um assistente da JUC em 1978 soubese que Bezerra escolheu Maritain não por fidelidade ao neotomismo pois ele nem se considerava maritaineano no sentido em que esta palavra possuía na época Gómez de Souza 1984 p158 Escolheuo porque Maritain empreendera um enorme esforço para abrir o pensamento da Igreja ao mundo contemporâneo que aos poucos perdia o sentido do sagrado Suas ideias sobre as categorias de análise propunham avanços nas discussões em torno dos valores No entanto é sabido que estas categorias foram utilizadas num determinado momento ideológico quando da construção de uma nova cristandade e de programas reformistas da democracia cristã Ora tais categorias poderiam ser úteis diante do problema da JUC naquele momento mas se fossem empregadas de maneira mais flexíveis Ibid p158 De certa forma com o ideal histórico de Maritain pretendiase ocupar um ponto intermediário entre as reflexões teológicas e a doutrina social da Igreja Doutrina que oferecia os primeiros princípios de ação na ordem do conhecimento por essência especulativo e muito longe da ordem prática e aos teóricos oferecidos pelos sociólogos economistas planificadores e homens políticos por natureza fragmentários isolados e uma ordem e conhecimento filosófico autêntico e teológico Libânio 1982 p288 Na realidade tal ideal histórico cristão elaborado por Almery Bezerra possuía um modelo fixo e fechado propondo o que tange aos princípios médios No decorrer do texto Bezerra salienta a necessidade do conhecimento da realidade histórica através do estudo das ciências sociais políticas econômicas históricas dentre outras bem como o conhecimento dos 147 princípios universais cristãos através dos ensinamentos do magistério eclesiástico dos doutores católicos teólogos e filósofos cristãos e do aprofundamento da própria vida cristã De posse desses conhecimentos colhemse os princípios médios que exprimirão o ideal histórico concreto marcados pela universalidade e que participam da ordem do conhecimento prático Daí uma essência capaz de existir num dado momento histórico relativo de perfeição social e política Esta tarefa pertence não à hierarquia mas às elites católicas e supõe e aproveita o trabalho e a contribuição de todos Bezerra 1979 p82 Segundo o mesmo autor a JUC teria importante papel na tomada de consciência deste ideal histórico concreto quando estendesse para os militantes o alcance dos estudos quanto às vocações e futuras profissões promovesse a profunda busca por conhecimentos vívidos do Evangelho da doutrina da Igreja dos problemas da época tentasse com toda humildade intelectual com a máxima fidelidade e competência delinear hipóteses de trabalho intelectual e de ação Ibid p83 Feito o pedido através de seu texto Da necessidade de um Ideal histórico Almery Bezerra obteve a resposta que foi anunciada em 1960 no Congresso dos dez anos da JUC no Rio de Janeiro Os jucistas de Belo Horizonte Regional CentroOeste apresentaram um documento público de cunho católico Algumas diretrizes de um ideal histórico cristão para o povo brasileiro no qual pela primeira vez criticouse duramente o capitalismo e apresentaramse algumas análises flexíveis numa junção de pensamentos ligados às ideias de Marx e Maritain complementandoas ao mesmo tempo com as de Emmanuel Mounier As orientações pretendiam concreção através da primazia do trabalho sobre o capital da substituição da propriedade privada por efetivo instrumento de personalização para todos os brasileiros da substituição da economia anárquica fundada no lucro por uma economia organizada dentro das perspectivas totais da pessoa pensamento de Mounier Veja acima Cap II Subseções 32 e 33 da eliminação do anonimato da propriedade capitalista da orientação das forças nacionais no sentido da real satisfação das necessidades do povo brasileiro e da abolição da condição proletária No plano político havia uma exigência quanto à 148 radicalidade evangélica Pediase a participação concreta aos partidos realmente comprometidos cujos interesses voltavamse para os interesses das classes menos favorecidas os oprimidos os operários e os camponeses guiados por planos de ação e métodos democráticos imbuídos do ideal de justiça distributiva No plano que se refere ao governo este deveria ser capaz de alterar a ordem capitalista numa promoção qualitativa de justiça e cooperação entre os homens No âmbito internacional era pedida à sociedade brasileira uma posição de independência ante os dois blocos hegemônicos da liderança mundial Cf JUC Equipe Regional CentroOeste 1979 p8497 Delineavase aí um novo caminho que apresentava um percurso renovador audacioso e perigoso aos olhos dos tradicionalistas principalmente porque se construía dentro de um movimento oficial da Igreja e adentrava um terreno prático demais muito concreto além de falar em desenvolvimento socialista Sob as asas do Ideal Histórico tal movimento ganhou impulso pelo dinamismo e pela força empreendedora dos jovens Mas este Ideal Histórico adaptado à realidade brasileira através dos princípios médios põe os militantes em contato com o concreto em seus aspectos econômicos sociais culturais e políticos Isso os leva à necessidade de mudança das estruturas nestes campos Por consequência emerge um confronto ideológico que brota da atuação política de manifestos mais exigentes quanto ao compromisso da intervenção nos problemas brasileiros Bem lembrou Gómez de Souza 1984 p159 que se for feita uma análise linguística desde o primeiro texto de Bezerra até aos que o seguiram notarseá um distanciamento progressivo de Humanisme Intégral com o completo desaparecimento deste em 1962 22 Inspirações no pensamento personalista de Mounier e a Consciência Histórica Alceu Amoroso Lima em suas Memórias Improvisadas declara que depois de Jacques Maritain pelo menos quatro outros pensadores católicos 149 influíram no arranjo de suas ideias Foram eles Thomas Merton Gabriel Marcel Emmanuel Mounier e Teilhard de Chardin Amoroso Lima 2000 p265 escreve Conheci Mounier em Paris quinze dias antes de sua morte Fomos apresentados por Albert Béguin Não nos recebeu na redação do Esprit mas em sua casa de campo casa de campo rústica com móveis reduzidos Pareceume cansado Homem de hábitos severos ouvia mais que falava Estava então muito preocupado com os acontecimentos europeus pois havia no ar uma atmosfera de apreensão em face dos rumores que ocorriam sobre os riscos de uma terceira guerra mundial Guardo desse encontro uma lembrança inesquecível Já conhecia sua obra e o trabalho que desenvolvia em meio de dificuldades e incompreensões Pois bem sintome hoje muito mais próximo dele em matéria social que de Maritain que depois do Humanismo Integral voltou praticamente as costas para problemas dessa ordem84 Amoroso Lima afirma que a ausência de Maritain nos assuntos de ordem política e social85 fora preenchida por Mounier e Thomas Merton Por exemplo Mounier compreendeu mais profundamente o problema do comunismo percebendo no marxismo certos aspectos que haviam escapado à filosofia tradicional exageradamente abstrata e transcendentalista Lima 2000 p272 Por isso de acordo com Amoroso Lima Mounier havia enveredado através do ponto positivo do marxismo no sentido prático na exaltação da pessoa humana no personalismo como instrumento de composição ao contrário de oposição radical Declara que católicos acreditaram erroneamente que ele pretendia fundir catolicismo e comunismo Não entenderam que sua vontade era tornar viável a convivência de homens com ideais diferentes pois sempre privilegiou o diálogo com o intento de alcançar um ponto de equilíbrio86 84 Na obra Europa de Hoje Amoroso Lima conta sua visita às redações da Seuil e da Esprit localizadas à Rue Jacob 28 Narra que neste dia não se encontrou com Mounier mas foi convidado para um almoço em sua casa de ChâtenayMalabry arrabalde de Paris Amoroso Lima descreve com detalhe este dia em que tem contato com Mounier e sua família Cf Lima 1951 p189194 85 Segundo Amoroso Lima Cf 2000 p265 Maritain havia dado as costas para os problemas de ordem política e social Depois da morte de Raíssa 1960 ele se mostrou exclusivamente preocupado com o problema filosófico mais explicitamente religioso com a vida transcendente com a vida após a morte 86 O diálogo de Mounier aberto às diferentes vertentes de pensamento e ideologia o colocou em situações polêmicas e penosas devido aos preconceitos às inverdades e análises contraditórias que lançavam contra sua pessoa Em 1982 no Cinquentenário da Revista Esprit ocorreu um seminário comemorativo em Doudan cidade periférica de Paris onde infelizmente ainda se constatou tal incompreensão Em entrevista 16112009 Antonio Balduíno Andreola ouvinte neste Seminário conta que lá estavam presentes vários dos 150 As preocupações de Mounier quanto aos assuntos de ordem social política existencial e cristã ressoaram e passaram a fazer sentido para outros que perceberam a desordem estabelecida nas outras margens do atlântico e pretenderam agir contra ela Luiz Alberto Gómez 2003 p176 escreve Pertenço a uma geração que sendo universitária nos anos cinquenta pensava com muita esperança em novos projetos para o Brasil Tínhamos um amplo horizonte de futuro pela frente Em um Boletim Nacional da JUC de 1953 nº 2 p29 um assistente nacional confessava que a leitura de Feu la Chrétienté87 de Mounier havia sido uma revelação para ele e como certas prevenções a seu respeito tinham desaparecido No mesmo ano do Conselho de Belo Horizonte 1959 outro Boletim nº 5 p 20 publicou extratos do mesmo livro acentuando que Mounier era o autor que mais influía no pensamento da Juventude Católica da França do Canadá e da Bélgica O título escolhido para o boletim foi O temporal sacramento do Reino de Deus Gómez de Souza 2003 p156 Tratase de um texto com a preocupação de não cair no dualismo espiritualtemporal Este assunto foi abordado por Mounier em uma Conferência pronunciada em 1949 intitulada a Finada Cristandade Nessa conferência ao se referir ao espiritualtemporal Mounier diz não existir uma história sagrada e outra profana Alega que a Igreja insiste na separação desses mundos nessa vaga de deixar ir os fenômenos que é grega e não cristã em oposição ao primeiros companheiros de Mounier Sua esposa Madame Mounier Paul Fraisse Paul Ricoeur Jean Lacroix Denis Rougemont JeanMarie Domenach dentre outros O fato foi que John Hellman professor de História em MontréalCanadá autor do livro Emmanuel Mounier And the New Catholic Left 19301950 Toronto University Press 1981 apresentou em sua palestra o tema Personnalisme et fascisme no qual defendia que Mounier havia se comprometido com o nazismo Em resposta Paul Ricoeur cavalheirescamente se limitou a observar que às vezes não se conta com fontes suficientes JeanMarie Domenach não abrandou e disselhe Por que o senhor não procurou falar conosco Poderíamos fornecerlhe fontes melhores para sua pesquisa Madame Mounier tomou a palavra e explicou que Mounier esteve na Alemanha porque como seu marido ele a havia acompanhado a um congresso do qual ela participou representando o Museu de História da Arte de Bruxelas como diretora dessa Instituição Certamente esclareceu ela que ele aproveitou a viagem e conversou com muitas pessoas inclusive as ligadas ao regime nazista o que não significava nenhuma ligação com qualquer regime nazifascista de que foi crítico veemente por toda sua vida As palestras foram publicadas no Le personnalisme dEmmanuel Mounier Hier et demain Pour un cinquantenaire Paris Seuil 1985 87 Obra de 1950 somente traduzida no Brasil em 1972 pela Editora Paz e Terra com o título Quando a cristandade morre 151 espiritualtemporal É com rigor a presença na vida do cristão do espiritual e da vida eterna em oposição a nossas atividades naturais Mas esta vida eterna é também carnal e se oferece através das atividades naturais Se a Encarnação não fizer parte porém de um mesmo mundo a noção do espiritual se contamina com a noção eclética e frouxa de um idealismo em que o espiritual moral significa o espírito sem corpo o sopro da vida sem vida a boa vontade sem boa vontade a cultura sem terra Pensando que o cristão deva viver no espiritual enviaseo sob esta campanha pneumática e quando por sorte acha ali o ar rarefeito dizemlhe que deve empenharse no temporal como se o espiritual fosse separado do temporal e o temporal destituído de espiritualidade Não temos que trazer o espiritual ao temporal pois que nele já está Nosso papel é o de descobrilo e de fazêlo viver de comunicálo apropriadamente O temporal é completamente o sacramento do Reino de Deus Mounier 1972 p20488 Segundo o Gênesis o homem foi criado ut operaretur terram para que explorasse a terra através do trabalho com o suor de seu corpo Notase amiúde uma redução do sofrimento da humanidade pecadora pelo próprio trabalho e se deixássemos nossos espíritos voarem para maiores altitudes longe dessas conjecturas perceberseia que um princípio pelo menos será certo religião da universal imitação do Cristo encarnado o cristianismo pede ao homem uma presença ativa a todo temporal Mounier 1972 p205 Se Maritain havia inspirado movimentos em países como o Chile a Venezuela e mesmo a seção paulista do PDC a ação dos militantes da JUC principalmente em Belo Horizonte e São Paulo irá recorrer ao pensamento de Mounier Um compromisso que aos poucos foi se revelando como personalista e socialista Henrique Claudio de Lima Vaz em sua biobibliografia confessa que após escrever o seu primeiro artigo O existencialismo publicado na revista Verbum março de 1948 sofreu um choque intelectual ao mergulhar em alguns textos das obras de Sartre isso nos anos do pósguerra numa fase de crises profundas e decisivas Lima Vaz 1982 p418419 menciona também outra descoberta capital dessa época no que se refere às dimensões e às 88 Veja acima Capítulo II Subseção 21 152 direções das referidas crises a obra de Emmanuel Mounier e a leitura mês após mês da revista Esprit O personalismo foi para mim o primeiro instrumento de leitura do mundo moderno nos seus aspectos políticos e sociais que nossa formação escolástica desconhecera soberanamente O próprio Pe Lustosa não obstante sua aguda sensibilidade histórica ficara preso à miragem de um corporativismo anacrônico que seduzira os católicos sociais entre a Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno e que a obra de Maritain dos anos 30 começara a revelarnos Estaria assim longe de ter pouca importância este batismo personalista em seus primeiros passos direcionados a uma reflexão social e política bem como às descobertas e experiências que não o deixarão mais e que o levarão a ter o primeiro contato com o marxismo Só bem mais tarde irei ao estudo direto de Marx mas devo reconhecer que a marca personalista estará doravante indelevelmente presente na minha leitura e na minha crítica do marxismo Lima Vaz 1982 p419 Quando entrevistado Lima Vaz disse que os livros de Mounier eram leitura quase que obrigatória e sua presença um modelo pois este soube unir reflexão e ação sob a inspiração de uma doutrina ao mesmo tempo comunitária e personalista Nobre Rego 2000 p34 o que exerceu grande atração sobre a juventude universitária cristã Pode ser considerada como sintomática a apresentação da tradução brasileira de Sombras de medo sobre o século XX É este o primeiro livro de Mounier traduzido no Brasil o pensamento vigoroso de Mounier há dez anos atrás tem para nós hoje uma atualidade surpreendente Continua Transcende os acontecimentos de momento que o estimularam para propor nos uma linha de pensamento uma visão de história e uma maneira de situar nos diante das ideologias e problemas da nossa época o medo a máquina o progresso pensamento moderno que alia surpreendentemente a solidez da tradição cristã bebida nas suas fontes mais autênticas à audácia de assimilar uma época revolucionária no seu espírito nas suas descobertas no seu conteúdo político89 89 Veja orelha do livro MOUNIER Emmanuel Sombras de medo sobre o século XX Trad Salústio de Figueiredo Rio de Janeiro Livraria Agir Editora 1958 153 Gómez de Souza lembra também que em 1959 os universitários seguiam realmente as sugestões de Jacques Maritain mas logo no começo da década seguinte o personalismo de Mounier é que servia de inspiração queríamos deixarnos penetrar pelas aspirações de uma nova consciência histórica e apostávamos com Emmanuel Mounier num socialismo personalista e comunitário denunciavamse o sistema capitalista desigual e o subdesenvolvimento dependente e associado como se diria um pouco mais adiante reformas de base pediam dirigentes estudantis e sindicais começava a descoberta da cultura popular Paulo Freire conscientização MEB MCP de Recife CPC da UNE valorizavamse o saber do povo e seu processo pedagógico da consciência mágica à consciência crítica 2003 p176 Em julho de 1960 quase que ao mesmo tempo da realização do Conselho da JUC na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas em Nova Friburgo Rio de Janeiro ocorreu uma reunião onde estavam presentes o Dominicano francês Thomas Cardonnel o Jesuíta e professor dessa faculdade Lima Vaz alguns jucistas de Belo Horizonte e alguns estudantes da Universidade Católica do Rio Na reunião ventilouse a possibilidade da criação de um grupo no gênero de Esprit com sua própria revista A iniciativa não prosseguiu mas era urgente tomar alguma atitude Então os estudantes cariocas e o Pe Lima Vaz em março de 1961 reencontramse no Rio de Janeiro por ocasião de uma Semana Social na Pontifícia Universidade Católica PUC tendo por convidados Cândido Mendes e Hélio Jaguaribe O Diretório Central dos Estudantes da PUC presidido pelo jucista Aldo Arantes aproveitou a ocasião para elaborar um manifesto publicado em julho Gómez de Souza 1984 17590 Convém lembrar que o frei Cardonnel que viveu no Brasil por alguns meses apenas produziu artigos que causaram grande impacto e o autor foi muito importante para os estudantes universitários da época pois apareceu entre nós como alguém que traz uma palavra nova e forte Com seu estilo e principalmente com seu testemunho provocou imediata reação Souza Gómez de Souza 1962 p2191 90 Veja abaixo p 158160 91 A referida citação está contida na obra SOUZA Herbert de GÓMEZ DE SOUZA Luiz Alberto Cristianismo hoje 2ª ed Rio de Janeiro Editora Universitária da UNE 1962 Em um artigo recente Gómez de Souza 2007 p54 escreve Eu fiz a Introdução e Betinho a 154 Compartilhando o pensamento de Mounier numa reportagem publicada em O Metropolitano sob o título Deus não é mentiroso com certa paz social Cardonnel criticou inconformadamente aqueles que usavam o Cristo para sua comodidade Em seu testemunho enfoca vários assuntos 1 A condição da comunicação para a coexistência dos povos Estava convicto em preconizar o estabelecimento de conversações não mais as de cúpula entre diplomatas e governos mas sim a da base entre os povos O verdadeiro diálogo conduzido rigorosamente com a eliminação da força do preconceito e da sedução é princípio não de separação mas de convergência Cardonnel 1962 p24 2 A dinâmica dos subdesenvolvidos Quando os povos reivindicam o direito ao pão não basta responderlhes através de um plano econômico Sua fome manifesta uma necessidade de consideração e de dignidade É preciso agir não somente por eles mas com eles Ibid p25 Virtudes existem nos homens não nos sistemas Deus não é falso nem mentiroso com certa paz social feita do consentimento dado por todos à injustiça antinatural Ibid p25 A manutenção de uma falsa ordem é o que conhecemos por desordem estabelecida 3 O perigo idealista O perigo de dominação cristã é a reconquista pelo idealismo pelo espiritualismo e pelo deísmo O Cristianismo não é uma contemplação de uma verdade intemporal mas a história de um Deus que ensina a viver como homens para despertar nos homens o gosto de uma vida de deuses Ibid p26 4 O primeiro problema devese falar do homem em sua vida concreta existente e encarnado e o problema mais urgente é o da luta contra a miséria tema central da desordem estabelecida em Mounier Contestar a legitimidade de uma luta pelos homens a partir de sua iniciativa e isto em nome do perigo comunista pareceme ser a pior das imposturas Ibid p27 pois quando se ajuda os homens a se tornarem humanos o totalitarismo é evitado Por isso o povo brasileiro deve despertar para sua alma para a originalidade de sua vida comum tal é hoje para nós o grande trabalho a realizar Ibid p27 5 O papel dos Cristãos Os verdadeiros cristãos precisam transformar a vida de forma consciente para que nasça uma comunidade humana Ibid p27 Conclusão A 1ª edição se esgotou e a 2ª edição praticamente desapareceu quando a UNE foi incendiada no dia 1º de abril de 1964 155 O resultado deste artigo foi imediato Acusaramno de herege e marxista mas não foi o bastante para silenciálo Logo anunciou seu segundo testemunho A Verdade não se contempla mas se faz Neste texto aponta que nossa cultura é fragmentária e satisfazse com o esfacelamento e atomização do homem e dos homens O ensino universitário isola a função intelectual da vida de outras formas de existência Os sábios detendo as chaves do saber saboreiam os refinados frutos do conhecimento e jogam as migalhas às massas Mas o pretenso saber dos sábios que se acomodam com essa espécie de ignorância das multidões não é segundo a palavra do Eclesiástico senão vaidade e perseguição do vento Cardonnel 1962 p 29 Com a forma liberalcapitalista o mundo contemporâneo havia transformado o domínio do saber em um império e a existência econômica e política no reino do poder A apatia reinava e ele se queixava da falta cruel de homens radicais Cardonnel Ibid p30 convoca para a vida os homens sem preconceitos para que pensem e vivam a radicalidade através da força de pensamento da capacidade de amar de querer e realizar Por isso a verdade não se contempla ela se realiza nos homens que a vivem Dirá Confesso ter ficado imensamente satisfeito com a paixão de totalidade com a extraordinária capacidade de adesão que venho incessantemente encontrando na juventude brasileira Ibid p 32 Quando se refere ao compromisso dos jovens brasileiros exprime sua imensa confiança por exigirem uma verdade por buscarem uma transformação radical do mundo Ele pensava que talvez fôssemos o único povo internacional constituído de representantes de várias raças e de nações tão diversas e que caberia a nós realizar uma síntese de uma única pátria humana Ao término de seu testemunho lemos Quis eu aqui apenas indicar as consequências as implicações do fato cristão para o Brasil1960 de tal forma é verdade que ser cristão não significa outra coisa senão ser totalmente humano Ibid p34 Novamente as acusações se acumularam ainda mais Isto o levou a escrever O Deus de Jesus Cristo Cf Cardonnel 1962 p 3556 que revela a extensão a profundidade de seu pensamento imbuído de Cristo e de sua força redentora Mas diante de tantas intrigas conchavos e traições este 156 homem radical e de testemunho deixa o Brasil despedindose com o seguinte bilhete Meu coração se identifica doravante com uma saudade de todos vós meus amigos definitivos provas vivas da necessidade de um encontro eterno Cardonnel apud Gómez de Souza 1962 p21 Assim como Mounier Cardonnel também havia despertado os jovens dos movimentos estudantis da Ação Católica que de um ideal histórico lançavamse à procura de um instrumental filosófico de engajamento concreto José Luiz Sigrist 1982 p24 relatou que o Ideal Histórico ao poucos tornase uma ideologia que não pode resistir ao impacto da realidade histórica frente às outras ideologias nascentes que se lhe opunham Internamente na JUC o Ideal Histórico começa a ser criticado nos seus aspectos ideológicos Não se trata de implantar uma nova cristandade uma vez que a cristandade é a própria negação do cristianismo Não se estudará mais Jacques Maritain com seu Ideal Histórico Preferese Pierre Teilhard de Chardin e Emmanuel Mounier Mounier pela dimensão cristã do seu existencialismo frente a outros não cristãos Ibid p24 e por sua abordagem do problema da existência concreta diante da desordem estabelecida Herbert de Souza Betinho em Um depoimento pessoal dirá que o contato com o Tomismo através do convento dos Dominicanos em Belo Horizonte e nas noites de estudo com o casal Laterza foram um importante exercício de pensar Este contato não havia passado de um encontro com a lógica e com a ideia rigorosa e científica de pensar Descobrimos que havia formas de pensar corretas os silogismos perfeitos e incorretas os sofismas e que o conhecimento do real exigia um método científico Souza 1982 p18 Portanto a filosofia era ciência Mas vivendo em um tempo de novas exigências perceberam que seus conhecimentos quanto à lógica e ao Tomismo não respondiam a essas exigências Por isso mais do que Maritain foi Mounier com o Personalismo que nos deu essa sensação de encontro com a filosofia do homem da história e da ação foi com esse espírito que lemos Lebret e nos confraternizamos com Frei Cardonnel em sua rápida e fecunda passagem pelo Brasil Ibid p18 157 Betinho declara que foi o pensamento de Mounier que atendeu à necessidade de se fixar um norte para uma busca aqui e agora Mounier fazia a ligação entre o Evangelho que havíamos lido e praticado através dos dominicanos e a realidade entre o pensamento e a humanidade entre a teoria e a prática o estar no Brasil e intervir na história Mounier foi portanto o elemento de ruptura com o nosso primeiro e precário aprendizado da filosofia e a abertura para uma nova etapa de busca Souza 1982 p1892 Podese dizer que a força dessa nova etapa se manifesta a partir do Congresso dos dez anos de JUC Os jucistas viverão um período de crises com o episcopado e com a opinião pública Com rapidez os inimigos conclamados e patentes da Igreja tornaramse defensores obstinados de sua ortodoxia em uma luta contra a JUC pressionando bispos em nome de textos e encíclicas e exigindo a condenação da ala comunista da Igreja Beozzo 1984 p9293 Os artigos de Cardonnel haviam irritado profundamente Gustavo Corção que lançou contra o dominicano francês a carga de suas rabugices em seu estilo cáustico mas ainda bem cuidado Gómez de Souza 1984 p174 Foi nesse clima tenso de acusações contra a JUC feitas na nunciatura apostólica e nas cúrias episcopais contra os assistentes e contra o frade dominicano que o Cardeal do Rio de Janeiro pediu a Cardonnel que abandonasse o país Era sabido segundo Beozzo que os mais conscientes haviam percebido que o Congresso era parte dos problemas que a JUC enfrentaria brevemente devido ao engajamento político e consequentemente por concretizarse numa opção de esquerda ao estilo de Mounier o que inevitavelmente provocaria o desacordo entre o Movimento e a Hierarquia Até mesmo o vocabulário da JUC foi suficiente para provocar choques devido a palavras como alienação revolução brasileira consciência histórica socialismo engajamento etc Cf Lima Vaz 1962 p6162 Os estudantes a esta altura já sabiam dos 92 Betinho quando se refere ao termo precário escreve que não faltava contato com a filosofia faltava uma relação entre a filosofia e a prática para sua época para o contexto histórico Foi um período marcado pelo autodidatismo e pelo anseio por resposta aos problemas que se revelavam não nos faltava vontade de estudála e essa foi uma característica da geração que conheci e que me chama a atenção quando retomo hoje a lembrança daquele tempo 1982 p17 93 Segundo Beozzo 1984 p92 um dos campeões de campanha contra a JUC foi o jornal Estado de São Paulo 158 problemas que assumiam ao pertencer ao quadro da JUC devido ao engajamento político em razão do qual deviam tomar posições Em fevereiro de 1961 a JUC organizou o primeiro Seminário Nacional de Estudos em Santos SP quando se discutiu a necessidade de um movimento político de inspiração personalista Entre os integrantes estavam Lima Vaz Cândido Mendes de Almeida e o dominicano frei Carlos Josaphat94 que criaria dois anos mais tarde o semanário Brasil Urgente espécie de testemunho cristão em nível mais popular e mais radical ao mesmo tempo Beozzo 1984 p47 Foi em março de 1961 que veio à tona o Manifesto do DCE da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro95 Tratavase de um manifesto composto por estudantes que diante da nua realidade brasileira descobrem as desordens e anunciam a missão do cristão agir sobre as seguintes estruturas 1 Do subdesenvolvimento Aos militantes cabenos denunciar uma estrutura liberalburguesa pressionando até as últimas consequências seus dirigentes e responsáveis MDCEPUC 1979 p101 2 Do analfabetismo A simples constatação de que 52 de brasileiros analfabetos não participam da escolha eleitoral é o bastante para retratar a falsidade de uma situação Ibid p102 3 Do problema da propriedade capitalista Devese provocar o advento da propriedade humana elucidada por Mounier Situar a produção dos bens na linha de uma propriedade participada em escala sempre mais vasta por todo o corpo social é imperativo que se imponha para a livre sobrevivência da nação Ibid p103 4 Do nacionalismo imperial Dos países ricos emana um nacionalismo egoísta que arquiteta projetos colonizadores como instrumento de ampliação de seus mercados externos Por outro lado não deixa de existir o nacionalismo dos países colonizados É justo que estes lutem pela conquista de um estatuto histórico de dignidade humana Quanto aos discursos internacionais monólogos do mais duro egoísmo os jovens categoricamente 94 Veja a obra BETTO Frei MENEZES Adélia de JENSEN Thomaz Utopia urgente escritos em homenagem a Frei Carlos Josaphat nos seus 80 anos São Paulo Casa Amarela Educ 2002 95 Manifesto do Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica In Luiz Gonzaga de SOUZA LIMA Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil hipóteses para uma interpretação Rio de Janeiro Editora Vozes Ltda 1979 p 98107 Utilizaremos a abreviatura MDCEPUC quando mencionarmos este Manifesto 159 anunciam Nós denunciamos em termos de nacionalismo militante e primariamente na luta contra os imperialismos econômicos enquanto precisamente aspiramos ao diálogo dos povos MDCEPUC 1979 p103 O Manifesto em toda sua extensão mostra a latente preocupação com a promoção humana com os imperativos sociais com a educação com a obrigação moral e com a tão discutida reforma agrária que naquela época era considerada pelos jovens de inadiável urgência para que se pudesse restituir ao homem do campo a sua dignidade Temos consciência de que a promoção das classes operáriasurbanas e campesinasrurais se coloca neste momento dentro da perspectiva cristã como o passo mais largo que a história exige das vanguardas atuantes no sentido da humanização do mundo Nesta promoção a educação das massas é uma tarefa de primeira hora Conservar a educação como instrumento cultural de dominação das classes privilegiadas é servir à opressão dos humildes Somente através da democratização da nossa educação poderemos chegar à consciência cultural global que exprimirá num projeto novo as aspirações da nossa hora histórica Ibid p103 Ao término do documento há o apelo ao compromisso pessoal do universitário para não fugir à responsabilidade da tarefa de lutar pela participação histórica quando se assume a bandeira do homem Rapidamente surgem acusações através da imprensa96 que ataca o Manifesto dos universitários bem como o trabalho do professor Lima Vaz que havia feito a revisão do texto Com efeito ocorre um debate na própria PUC Rio Alguns professores tomistas97 da Universidade Católica do Rio de Janeiro atacaram o MDCEPUCRJ considerandoo hegelianomarxista além de uma forte reação do Centro Dom Vital isentase Alceu Amoroso Lima na pessoa de Gustavo Corção que atacou o manifesto dos estudantes e com excesso de imaginação e zelo descobriria nele um bocado de inspiração espinosista panteísta e hegeliana Gómez de Souza 1984 p176 96 Tratavase do editorial de MEIRELLES T Jornal do Comércio JC 170661 e do de CORÇÃO G Diário de Notícias DN 18061961 97 Pe Francisco Leme Lopes SJ professor de Introdução à Filosofia e de Filosofia Geral Pe Pedro Cerrutti SJ César Parente Tarcísio Meirelles Padilha professor de História da Filosofia 160 O professor Lima Vaz irritase com as acusações dirigidas aos estudantes e a ele escreve um artigoresposta no jornal Metropolitano Jovens Cristãos em luta por uma história sem servidões 1962 p5973 Nessa resposta98 ao contrário do que escreveu o jornalista do DN que o manifesto era uma algaravia um documento inanalisável em seu conteúdo Lima Vaz afirma que esta sim é uma análise errada e arbitrária Segundo ele o estilo textual resulta da pluralidade de autores e o manifesto possui nítida estrutura e conteúdo Abrase uma página de Mounier de Chenu de Henri de Lubac de Friedrich Herr e logo se encontrará o clima familiar dos autores do manifesto Ibid p61 No que se refere às coordenadas filosóficas não se trata de armações com tecnicismos filosóficos inspirações espinosistas panteístas e hegelianas conforme haviam acusado Tratase de uma filosofia cristã da história do homem livre em cooperação com Deus história como libertação encontro com a paz divina É puro Evangelho e também pura doutrina da Providência que se define como manifestação da razão divina enquanto ordena a história a um fim A filosofia é a do realismo cristão a do pensamento de Mounier Cf acima Cap II Seção 2 refletido num contexto histórico Lima Vaz indica com clareza para aqueles que não compreenderam o texto algumas fontes imediatas como o capítulo de Mounier O Cristianismo e a noção de progresso em Sombras de medo sobre o século XX e o de Henri de Lubac La recherche dun homme nouveau em Affrontements mystiques Lima Vaz 1962 p67 Frei Carlos Josaphat em Evangelho e revolução social evidencia que o Evangelho prega e a consciência cristã reclama uma submissão ao poder legitimamente constituído e uma colaboração eficiente para manutenção e aperfeiçoamento de estruturas legais adaptadas ao Bem Comum 1963 p87 para uma sociedade em um determinado momento histórico Portanto se os interesses servirem somente às classes privilegiadas aos regimes dominantes à desordem estabelecida a posição cristã será de inconformismo e de repúdio Ibid p87 Se beneficiar as instituições como também as atividades religiosas há aí uma dupla traição ao Evangelho pois 98 Retratamos aqui alguns comentários Para sua totalidade veja o artigoresposta Lima Vaz 1962 p5973 161 compromete a religião da verdade e a liga a mecanismos de iniquidade Portanto a exigência cristã advém das armas cristãs a verdade a bondade e o amor Devese tentar todos os meio de convicção de persuasão crendo na palavra no diálogo e no desenvolvimento da equidade cristã Além disso o realismo cristão também não desconhece o mundo do econômico e sabe que este condiciona o comportamento moral e pode dificultar a vida dos homens em seu desenvolvimento espiritual Josaphat 1963 p9297 Ora se armas cristãs se emperram quer por ditaduras tiranias disfarçadas ou seja quando a desordem se estabelece e resiste ao máximo pedese que o cristianismo não venha a se confundir com a timidez social com a hesitação e o temor velado do povo eis o que não permitiremos jamais Mounier 1972 p5 Portanto para que não se chegue a um extremo Revolução devem os cristãos empenharse ao máximo por todos os meios ao seu alcance para que de forma pacífica e democrática possam mudar os rumos da iniquidade da desordem e da injustiça para que não se tornem cúmplices do mal Só a inércia a omissão e a demorada cumplicidade dos cristãos dentro de regimes injustos e opressores podem levar a esses extremos da Revolução Armada Então se os cristãos forem omissos e ineficientes quando menos difícil e menos heróica se apresenta a sua resistência como poderão dominar o processo violento da convulsão social Quase sempre outras forças revolucionárias mais aguerridas e mais preparadas passarão a conduzir a Revolução iniciada quem sabe sob os aplausos e com a participação de todas as correntes sadias da nacionalidade Oliveira 1963 p9697 Para o professor Lima Vaz os contraditores queriam que o estudante fosse o real universitário cristão que se dedicasse aos estudos e à escolha da boa profissão ou seja estudioso preocupado com o futuro já bem adestrado desde a mocidade numa providência burguesa distante do realismo cristão Mas acontece que essa perspectiva não seduz os autores do Manifesto do DCE da PUC Nem estou certo a imensa maioria dos universitários brasileiros O futuro que os preocupa em primeiro lugar não é o seu É o dos irmãos que sofrem É o daqueles cujo presente não promete senão um futuro de miséria maior de desesperança mais profunda do abandono total e do sofrimento sem nome É o daqueles cujo presente desamparado e inerme é utilizado como coisa sem direito e instrumento sem dignidade pelos que travam a luta pela dominação mundial na mais cruel e cínica das guerras a guerra fria Ora é 162 este presente que os universitários cristãos assumindo a crítica da própria situação privilegiada querem viver na sua carne denunciar pela sua consciência transformar pela sua ação Para que as dores de hoje engendrem amanhã um futuro mais digno das imagens vivas de Deus que são nossos irmãos os homens Lima Vaz 1962 p72 Certamente devido a essa dissensão uma divisão ocorre entre os Jesuítas e os estudantes diante dos acontecimentos Preocupados os universitários promovem um debate público no DCEPUCRJ convidando os estudantes os professores tomistas da Universidade e o professor Lima Vaz O debate ocorre mas sem a presença dos professores Jesuítas bem como a de Lima Vaz pois foram impedidos de participar por ordem do reitor da PUC RJ Dois anos após o Manifesto Vaz dirá que este documento possuía inspiração de pensadores como os padres Congar Chenu de Lubac assim como Teilhard de Chardin e sobretudo de Emmanuel Mounier considerado no momento o mestre mais seguido pela juventude católica brasileira Id 1963 p288 Em Salvador no mês de maio entre os dias 20 e 27 num clima de tensão realizase o I Seminário da Reforma Universitária organizado pela UNE e que termina por uma declaração sobre o projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Para os estudantes o projeto possuía como eixo central uma concepção liberalburguesa destoante portanto da verdadeira educação Em O Metropolitano de 4 de junho de 1961 a juventude brasileira exige a rejeição total e o veto do projeto A situação em relação à Hierarquia fica mais complicada diante da recusa pois as autoridades da Igreja juntamente com a Associação dos Educadores Católicos AEC apoiavam as grandes linhas desse projeto Em julho de 1961 realizouse em Natal o XI Conselho Nacional da JUC VIII Encontro Nacional dos Assistentes da JUC com o tema O Evangelho fonte de revolução brasileira Esse documento provocou malentendidos quanto à redação à precisão teológica e aos planos muito aquém dos apresentados no 163 Rio de Janeiro99 Assuntos como socialismo e luta armada foram contemplados Um padre convidado o Jesuíta Pedro Caldeirón Beltrão enfurecido redige um relatório de extrema violência contra o movimento e o envia a vários membros do episcopado D Eugênio de Araújo Salles Administrador Apostólico de Natal resolve desligar a seção local da JUC da organização do Movimento Nacional No mesmo período do ConselhoEncontro foi publicada a Encíclica Mater et Magistra que fermentou ainda mais o discutido assunto da socialização Ainda em julho deste mesmo ano Aldo Arantes líder jucista vence a eleição para a presidência da UNE D Jayme Câmara Cardeal do Rio de Janeiro expulsao do Movimento o que causará uma ferida que levará anos para cicatrizar Gómez de Souza 1984 p188 lembra que D Cândido Padim tempos depois 1965 numa reunião de bispos em Roma comentou Vejo um paradoxo no fato de um lado de se exigir a sacralização do temporal e doutro lado de se impedir aos leigos esta tarefa E concluiu Não vejo pois possibilidade de uma linha certa da AC se os bispos pretendem que os membros da AC se abstenham de uma atuação na ordem temporal Em 5 de outubro de 1961 a Comissão Central da CNBB emite um documento confidencial100 endereçado à JUC e aos bispos Diretrizes da Comissão Episcopal da ACB e do Apostolado dos Leigos para a JUC O documento dava atenção a vários assuntos dentre eles que a partir de 1962 nenhum dirigente jucista poderia concorrer a cargos eletivos em organizações políticoestudantis nacionais ou internacionais sem deixar o cargo de direção na JUC Outro importante assunto visto como retrocesso referese ao retorno à sacralização das estruturas temporais uso da autoridade que mostra profundamente não só a arbitrariedade da distinção mas sobretudo a sobrevivência de categorias dos tempos de cristandade que não estão mortas como desejaria Mounier na mentalidade de muitas autoridades eclesiásticas Gómez de Souza 1984 p189 99 Luiz Alberto Gómez de Souza Cf 1984 p181182 afirma a partir de entrevistas realizadas ter constatado que a redação do documento ficou a cargo de apenas uma pessoa da equipe nacional a qual não consultou outros membros Na véspera do Conselho a própria equipe discutiu sobre sua apresentação 100 Uma cópia desse documento chegou ao domínio público o que permitiu maiores ataques contra a JUC dentro e fora da Igreja 164 Entre os anos de 1961 e 1962 houve um crescimento enorme quanto à consciência política e a JUC aos poucos se envolveu mais profundamente com a UNE com os programas de educação popular e as mobilizações camponesas Sua presença na década de 1960 adentrou várias organizações que também marcaram o tempo como o Movimento de Educação de Base MEB criado pela CNBB o Movimento de Cultura Popular MCP os Centros Populares de Cultura CPCs as Ligas Camponesas LCs o Programa de Alfabetização Paulo Freire além da atuação na Frente Nacionalista e nas eleições ao lado de marxistas na Confederação dos Trabalhadores na Agricultura CONTAG Entre o final 1960 e início de 1961 viveuse o fim do governo Juscelino Kubitschek e a posse de Jânio Quadros Os sinais de esgotamento do modelo desenvolvimentista já se manifestavam e Jânio prometia restabelecer a ordem renuncia seis meses depois A burguesia do país aliada à burguesia internacional vivia o medo do crescimento dos movimentos populares e sentia se em pânico Tensão de maior proporção era nítida na classe média que ainda vivia as expectativas do desenvolvimento e ao mesmo tempo os problemas econômicos como o desemprego e a inflação que ajudavam a corroer tais sonhos os membros da JUC com origem principalmente nas classes médias entram em conflito intenso com estas e vão aos poucos descobrindo o movimento popular através de centros de cultura do trabalho alfabetização etc Mas volta sempre o candente problema colocado por Frei Romeu a D Helder poderá a JUC dar resposta a todas essas necessidades Um movimento oficial e mandatado pode tratar de construir relações orgânicas com setores emergentes quando a Igreja no seu conjunto estava em posição mais tímida e moderada Haveria necessidade de um movimento político distinto Gómez de Souza 1984 p197 Devido ao documento emitido pelos bispos criouse um espírito de oposição sistemática contra a Igreja e em particular a Hierarquia Grupos se reuniam em torno de um messianismo coletivo De um lado marxistas maçons capitalistas militantes no sentido de um materialismo do outro progressistas vanguardistas reformistas numa linha de libertação do homem através da revolução brasileira advinda do Evangelho No horizonte da Igreja 165 frei Romeu Dale deixa seu posto nacional de assistente ocupado por doze anos o que trará problemas que contribuirão como fato propulsor da criação de novo movimento pois com sua saída em 1961 não haverá mais Conselhos Nacionais e nem Boletins A vaga será ocupada por Dom Cândido Padim em 25 de junho de 1962 que será nomeado bispo em 5 de agosto primeiro bispo a assumir a responsabilidade de um movimento especializado da ACB Em fevereiro de 1962 ocorre o primeiro encontro que redundou neste novo movimento101 o qual terá em breve um nome Ação Popular AP Reuniramse em Belo Horizonte no Convento dos Dominicanos estudantes e profissionais provenientes do jornal Ação Popular de BH o grupo do Rio de Janeiro com o Pe Lima Vaz o grupo da UNE de Aldo Arantes jucistas do Recife os padres Henrique Laje Alípio Freitas Almery Bezerra e uma centena de outras pessoas que pensavam em um movimento comum Beozzo 1984 p113 A ideia norteadora foi a da consciência histórica MDCEPUCRJ e os artigos de Lima Vaz sobre o assunto O texto núcleo foi apresentado em junho de 1962 no Esboço do Estatuto ideológico Mesmo sendo a maior parte desse grupo constituída de membros cristãos o movimento não se apresentava como confessional nem de ideologia cristã ou restrito aos cristãos Superavase a ideia de uma esquerda cristã ao mesmo tempo em que se explicitava uma opção socialista Gómez de Souza 1984 p199 Como em 1962 não havia ocorrido o Conselho Nacional da JUC esse se realiza em Aracaju em janeiro de 1963 Nesse evento o movimento se reanima principalmente com o auxílio de Dom Padim que tornase o advogado e defensor do movimento acatado junto ao episcopado Mesmo não se podendo dissipar todas as reservas e temores a situação tornase menos tensa Beozzo 1984 p47 Ainda em janeiro de 1963 foi de suma importância a semana de estudos coordenada por Lima Vaz que esclareceu e estabeleceu distinções entre consciência cristã e ideologia discutindo os seguintes temas Cristianismo e 101 O primeiro encontro que fora o passo inicial de coordenação de um movimento ainda sem nome e que a imprensa chamou de grupão foi alvo de novos ataques de Gustavo Corção em artigos no Diário de Notícias 166 consciência histórica Consciência histórica e Cultura Cultura Ideologia e Cristianismo A Cultura Moderna e suas manifestações ideológicas Polarizações ideológicas no mundo da cultura contemporânea Opção cristã no universo da cultura contemporânea Resumindo o ideal histórico de Maritain aos poucos deixou de responder aos problemas suscitados pela realidade brasileira Há em seguida uma proposta orientadora prefixada sobre os princípios médios inspirada na teologia como princípios primeiros como também na Doutrina Social da Igreja e no conhecimento da realidade histórica brasileira através das ciências sociais políticas econômicas históricas etc Esse caminho flexível era incompatível com as raízes do ideal histórico de Maritain e com a vigente ideologia da ACB Cf acima Cap III Subseção 21 Viveramse momentos de grande ebulição filosófica102 devida principalmente às inspirações personalistas de Emmanuel Mounier que mais tarde somarseiam às de Marx o que veio a exigir profunda reflexão para penetrar no universo da consciência histórica Lima Vaz escreve que o pensamento de Mounier orientavase no sentido de vincular a afirmação da pessoa ao social e ao histórico a situála assim no terreno do concreto da relação com o outro da dialética do nós Ele se dirigia pela visão da história da pessoa e da comunidade que seriam polos dinâmicos capazes de orientar os homens à grande mutação histórica de nossos dias que é a planetização do homem Mas infelizmente a morte prematura de Mounier interrompeu a última fase de seu pensamento período de diálogo permanente com o existencialismo do pósguerra e principalmente com o marxismo Lima Vaz 2002 p239240 Betinho lembra que os jovens de sua época viviam constantemente em processo de novas descobertas e de buscas filosóficas que os orientassem Sua geração lia e se apropriava de livros de vários autores Heidegger Kierkegaard Léon Bloy Gabriel Marcel Berdiaeff Lebret Sartre Chardin após Mounier leuse Marx através de Yves Calvez La Pensée de Karl Marx o Marx da ideologia e da alienação Essa leitura significava discutir idealismo e 102 Revelase na pesquisa de Emanuel de Kadt Cf 2007 p312 que os autores mais citados no início dos anos de 1960 entre os cristãos de esquerda eram Lebret 84 Mounier 52 Lima Vaz 52 Teilhard de Chardin 45 Marx 34 Sartre 27 167 materialismo e se debater na contradição entre o materialismo histórico e a filosofia cristã Quanto à alienação não se pretendia resolver nem o problema filosófico nem os problemas particulares dos estudantes pois com Mounier estes já haviam descido no terreno dos homens concretos da história da economia e da política Souza 1982 p19 Foi neste contexto de engajamento e militância cristã da JEC e da JUC que Marx apareceu como desafio e problema Betinho Ibid p19 escreve participávamos da política movidos pelas exigências da fé cristã por que então deixar a fé que nos levava à política para poder encontrar Marx na política Através da fé já não havíamos chegado à política Por que aceitar o dilema entre fé cristã e política marxista Entrar em tal terreno de engajamento político era um inevitável encontro com Marx seguido de problemas com a hierarquia e pesadas acusações quanto à militância Foi nesse momento que os jovens encontraram a força do pensamento de Lima Vaz que elaborou um tipo de conhecimento que responderia aos problemas do engajamento político social O Pe Vaz nos introduziu no terreno deste desafio através da dialética que estava na origem do próprio Marx Pe Vaz pensava a dialética a partir de Hegel porém em outra versão Souza 1982 p20 Com o pensamento personalista de Mounier e a versão da consciência histórica de Lima Vaz formase um instrumental de reflexão e práxis o qual motivará profundamente o pensamento dos jovens cristãos brasileiros de esquerda no que se refere à desordem estabelecida às tarefas históricas do cristão à dignidade da pessoa humana ao compromisso ao diálogo à encarnação à dinâmica do homem Enfim Fernando de Bastos Ávila 1982 p1516 em seu Depoimento de um irmão dedicado a Lima Vaz sintetiza O Pe Vaz procurou oferecer àqueles jovens novos parâmetros novas categorias de análise iniciandoos na temática da consciência histórica e numa crítica inteligente do marxismo seu esforço foi incompreendido não pelos jovens mas pelos que não compreendiam o drama dos jovens e não compreendiam a radicalidade dos questionamentos com que se defrontavam os jovens o compreenderam e fizeram suas opções conscientes pelas quais pagaram com a dor a fidelidade a seus compromissos num dos períodos mais 168 tenebrosos de nossa história cultural e política por coincidência aqueles que não compreendiam então nem o mestre nem os alunos situavamse no segmento que uma vã analogia geométrica denominava de extrema direita exigiam do Pe Vaz uma condenação de seus discípulos exigiam que ele os renegasse num momento em que tal gesto seria sentido como uma traição o Pe Vaz sempre se negou a isto sofreu com eles com eles foi vítima da repressão foi reduzido à condição de um homiziado da cultura ao ostracismo intelectual103 É assim que Lima Vaz caminha ao encontro dos anseios do jovens universitários Para uma compreensão dos parâmetros e análises sobre a consciência histórica Vaz esclarece que prefere não falar em ideal histórico concreto expressão empregada por Maritain mas em consciência histórica O ideal histórico concreto apresentase como a essência realizável de uma certa civilização específica a que tende determinada idade histórica que neste sentido se distingue da utopia Mas os ideais históricos quer sejam ideologias ou utopias não recebem significação senão como extensões da consciência histórica da época Por isso podem ser índices que apenas elucidam as formas da consciência histórica e que correm o risco de se tornarem em essências puras podendo representar uma fuga sutil da história real Portanto A consciência histórica de uma determinada época não suscita seus ideais históricos como essências realizáveis mas como imagens e modelos de sua essência efetiva das suas contradições reais do seu desdobramento concreto o ideal tornase alienante quando sua função heurística cede lugar à rigidez das ideologias falo assim de consciência histórica dos tempos modernos e tento descrever a sucessão de formas em que se exprime seu movimento efetivo o cristianismo precisamente não propõe um ideal histórico ele não se deixa degradar nunca em ideologia ele é uma consciência histórica e sua originalidade reside precisamente nas razões últimas do prodigioso dinamismo histórico Lima Vaz 1962 p77 Para Vaz a noção de consciência histórica nasce quando a subjetividade dissolve a imagem de cosmos natural do homem antigo juntamente com a nova construção da forma do universo científicotécnico provocada pela revolução científica Nasce quando o mundo é experimentado pelo sujeito e submetido às leis empíricas constituídas de rigor matemático Diferentemente da premissa fixista milenar do cosmo platônico salvar os 103 Veja abaixo p 180181 169 fenômenos que se divinizou e cristalizou o homem moderno vê o mundo por um novo ângulo e cabelhe desdivinizar conhecer geometricamente as coisas pois o mundo é concreto e mutável De Descarte à Ilustração de Kant a Hegel e Marx do historicismo e da fenomenologia aos existencialismos das filosofias científicas do século XIX a Teilhard de Chardin tal a questão fundamental que define a trajetória da consciência histórica dos tempos modernos Lima Vaz 1962 p7879 Essa concepção antropológica em contraposição à cosmológica criou uma consciência no sentido de que o homem a partir deste momento ativamente transcendeu sobre o mundo revelandose na interpretação científica do universo natural e em sua transformação em universo técnico Id 2001 p189 Já a subjetividade no sentido estrito de interioridade dessa nova consciência é oposta à exterioridade do mundo e se revela enquanto tal quando o sujeito das significações e dos valores compreende o mundo Para Lima Vaz Ibid p166 tratase de uma consciência histórica e não da história A históriaciência não se constitui entretanto senão a partir da dimensão histórica da consciência de sua distensão interior sua memória que torna possível a recuperação do ser na forma do passado e sua projeção simétrica no espaço hipotético do futuro É aí que se encontra a originalidade da historicidade da consciência abertura para o sernotempo quando este se projeta num sentido histórico ou numa inteligibilidade histórica de uma experiência temporaldoser No sentido de uma consciência antropológicacultural ou seja o homem como elemento estrutural de uma consciência histórica consciência moderna Lima Vaz faz referência ao ser ativo e criador de um universo cultural em específico Se se pensar na Grécia Clássica é costume dizer que o senso histórico seria estranho aos helenos ou desconhecido devido à doutrina do eterno retorno à imagem de tempo circular podese no entanto dizer que de certa forma não passou despercebido a Tucídides com a ciência da história e além disso já foi também assinalado que o problema da significação do processo histórico está no centro da reflexão filosófica grega Ibid p168 170 Notadamente verificase que na história da humanidade esta consciência surge em tempos de crise Tucídides inicia sua obra na clara consciência de se encontrar diante do mais vasto abalo que sacudiu a Grécia o mundo bárbaro e de certo modo a humanidade inteira O pensamento histórico de Agostinho é também uma meditação sobre a queda de Roma a crise e seu desenlace da civilização antiga Só que o providencialismo agostiniano é já uma teologia cristã da história e sua resposta à crise é um julgamento transcendente sobre a história e a afirmação de uma esperança escatológica Lima Vaz 2001 p170 Em relação à consciência histórica moderna quais traços ela acentua caracteristicamente na cultura ocidental Uma primeira característica pode ser apontada em Giovanni Battista Vico 16681744 que ao se libertar dos preconceitos de seu tempo dos métodos racionalistas e abstratos propõe concentrarse nos aspectos mais concretos da história a fim de conhecer verdadeiramente o homem e seus produtos Grandes Filósofos 2005 p155 Dessa forma temse uma filosofia da história em que esta se apresenta como orientada para um fim Vaz acrescenta a esta visão e a complementa com o pensamento de Karl Löwith que se refere à dimensão futurista da história Segundo Löwith seria a transposição de aspectos fundamentais de uma teologia da história bíblicocristã formulada em termos profanos uma mundanização da história da salvação em história universal Lima Vaz 2001 p170 Uma segunda característica é a descoberta do tempo histórico como uma realidade empírica conhecida pela técnica pelos métodos da pesquisa científica uma revolução que rompeu com a tradição de quase dois milênios e criou um novo conceito de razão de natureza de experiência e de lei natural é claro que a adoção de um novo quadro do Universo nasceu com base numa atitude nova diante da realidade que a transformação dos quadros da inteligência e a modificação profunda da mentalidade científica foram possíveis por um novo modo de entender o homem e o seu lugar na natureza por uma concepção nova da história Rossi 1992 p34 Em sua trajetória a consciência histórica para Hegel e Marx permeia os extremos da consciência e do mundo consciência como movimento 171 concreto do próprio autoreconhecimento e o mundo como correlato dialético do próprio movimento da consciência Mas o sentido do movimento dialético entre estes dois polos é diametralmente oposto nos dois pensadores Para Hegel o Espírito é o Absoluto origem e a história é epifania sua exteriorização Assim a consciência histórica é reflexão sobre a história compreensão do passado sua eternização no Espírito que nele se reconhece É a justificação da história vivida edificação pelo processo dialético de uma interioridade ideal paz do cismo especulativo expressão de Vaz para que o espírito se recolha depois de um duro trabalho na história Para Marx a consciência histórica deve interpretar o passado transformar o presente práxis revolucionária e criar o futuro Não é a ideia e sim a práxis que surge diante de uma realidade concreta histórica do homem espoliado em seu trabalho é em suas carências sensíveis expressão de Marx que se encontram as posições reais do mundo Encerrando a história numa totalidade ideal já dada a filosofia hegeliana vai tornarse o instrumento de justificação de todos os ócios históricos de todas as diversões idealistas No momento em que o problema é colocado no plano da história real ou seja do trabalho dos homens reais ela fica definitivamente ultrapassada problema indissoluvelmente teórico e prático que define a direção da marcha da consciência histórica dos tempos modernos Lima Vaz 1962 p81 Estes tempos modernos criaram novas consciências Da produção artesanal à industrial do eletromagnetismo à física nuclear da relatividade ao princípio das incertezas tudo isso somado a muitas outras descobertas promoveu uma enorme evolução e o pensamento de Marx colaborou também para modificar a imagem de mundo dos tempos galileanos A humanidade descobre uma nova percepção da natureza e da história pois o tempo do mundo e o tempo do homem é uma dialética da transposição Ibid p82 É o que Romano Guardini chamava de advento do reino do homem quando este surge como um novo homem que de certa forma tem em suas mãos o domínio sobre a natureza que envolve todo o planeta Eis que surge o problema quanto ao poder o problema do homem enquanto ser social O trabalho dialético da consciência histórica no que se refere à consciência social vai adentrar a vida do homem que passa agora a sofrer as pressões 172 dos interesses e das necessidades práticas de uma revolução industrial Marx em seu Manifesto elucida o domínio da natureza a especulação os homens explorados e a necessidade de produção para fortalecer a burguesia Cada indivíduo trata de criar uma força essencial estranha sobre o outro para encontrar assim satisfação para seu próprio carecimento egoísta Com a massa de objetos cresce pois o reino dos seres alheios aos quais o homem está submetido e cada novo produto é uma potência do engano recíproco e da pilhagem recíproca O homem tornase cada vez mais pobre enquanto homem precisa cada vez mais de dinheiro para apossarse do inimigo A ausência de medida e a desmedida passam a ser sua verdadeira medida Inclusive subjetivamente isto se mostra em parte no fato de que o aumento da produção e das necessidades se converte no escravo engenhoso e sempre calculador de apetites desumanos refinados antinaturais e imaginários Marx 1987 p182 Nessa dramática aventura de se transformar o mundo devemos recordar que Mounier apreciava certas ideias de Marx mas a revolução marxista segundo Mounier desconheceu a imensa realidade do Universo pessoal interpessoal e a Transcendência Cf acima Cap II Seção 2 Para Mounier o realismo cristão seria o único a garantir esta dimensão Recordese também o contexto divergente no que se refere à relação homemnatureza concepção marxista de senhorescravo pois para o realismo cristão o homem não foi criado para dominar as coisas mas para um efetivo diálogo para com elas as coisas não são objeto de desprezo idealismo nem somente de exploração materialismo grosseiro mas um sacramento natural pelo qual o homem voltase para Deus São portanto dimensões humanistas da dialética constante entre o ser encarnado e a transcendência serqueestánomundo e ao mesmo tempo é serparaalémdomundo aquele que cria ao mesmo tempo a consciência crítica Cf acima p 45 Lima Vaz vai a essa fonte e propõe a afirmação radical da transcendência do homem sobre a natureza embasada na mensagem cristã no compromisso Cf acima Cap II Subseção 27 na responsabilidade de sua encarnação como evento e como sentido como dignidade de um 173 kairós104 supremo Tratase do tempo em que a pessoa transcende consciência cristã de um homem feito à imagem e semelhança de Deus Essa imagem é diferente de uma cópia que reflete imperfeitamente um paradigma perfeito mas sim a do caráter concreto e dinâmico de uma espécie de situação ontológica original e única do homem em face ao mundo Lima Vaz 2001 p197 É uma dialética histórica de transformação de humanização da natureza e do homem Em concreto a responsabilidade histórica que decorre das estruturas mais profundas da consciência cristã que conduz o cristão à fronteira mais avançada das lutas históricas em que o homem se empenha na conquista de um mundo mais humano do universo das liberdades reais Id 1962 p91 Lima Vaz no final de seu artigo Consciência cristã e responsabilidade histórica evoca Mounier e o acompanha rumo à rota da mais alta estrela ao exigir do homem a coragem lúcida e generosa de seu compromisso alertando o cristão do pecado ou seja o pecado da omissão histórica da despersonalização de si do outro e do mundo Cf acima p 7071 Então Lima Vaz 1962 p92 faz suas as palavras de Mounier para despertar o cristão O pequeno e encolhido medo abrigase no ancoradouro das tranquilas enseadas do passado onde os mastros vegetam na calmaria de todos os conformismos A coragem lúcida e generosa eleva o gesto largo ao vento dos grandes espaços livres abrindo no grande mastro a grande vela para a rota da mais alta estrela De acordo com Betinho o desenvolvimento da Consciência histórica contribuiu muito para sua geração foi fundamental para se compreender o momento vivido afirmar a missão do cristão no terreno dos homens concretos e erguer a base do engajamento político pois era preciso pensar e atuar historicamente Em seu depoimento Betinho Souza 1982 p20 esclarece que Lima Vaz com seu pensamento contribuiu com a parte filosófica de um importante documento referente ao engajamento especificamente histórico na 104 Termo grego que significa tempo oportuno tempo de decisão Para a concepção bíblicocristã referese a um momento decisivo no tempo acontecimento marcante na história cristã cujo núcleo será a Existência e a Ação de Cristo Cf Lima Vaz 2001 p204 174 política Souza 1982 p20105 O Documentobase DB foi apresentado em março de 1963 aos integrantes do novo movimento Cf acima p 165 quando estes se reuniram em Salvador aprovaram o DB e identificaram o movimento com o nome de Ação Popular AP Este movimento iniciouse informalmente no final de 1961 Cf acima nota n 101 Com o Esboço do Estatuto Ideológico de junho de 1962 firmou se como movimento político Com a legitimação do DB a AP ficou nacionalmente conhecida Luiz Alberto Gómez Souza 2003 p43 lembra entre os anos 1962 e 1963 com os companheiros de geração Betinho à frente criamos um movimento político a Ação Popular com uma opção socialista personalistacomunitária Dos seus fundadores muitos eram militantes radicais da JUC JEC e JOC Betinho foi o primeiro coordenador nacional da AP além disso o movimento rapidamente abriuse aos círculos estudantis e mais tarde a AP atraiu seguidores entre os trabalhadores e camponeses politicamente mais avançados Kadt 2007 p107 Desde o princípio de sua história os responsáveis pela AP tomaram certos cuidados para que o movimento não tivesse nenhuma ligação com o sentido confessional cristão Isso se explica pois embora a maioria dos militantes tivesse formação religiosa e fosse oriunda dos movimentos da ACB já haviam experimentado dificuldades com a hierarquia católica Compromissado com o homem brasileiro antes de tudo e com os ânimos em ebulição no decorrer de sua existência a AP passou a ser vista como paracristã ao declarar guerra a organizações mais acomodadas reformistas ou que mantinham ligações formais com a Igreja De certa forma os responsáveis pela Comissão Central da CNBB mantiveramse neutros em relação ao movimento pois no ano de 1963 ainda estavam sob o encanto que a encíclica do Papa João XXIII Pacem in Terris proporcionava Mesmo 105 Sobre este assunto Betinho diz O Pe Vaz no entanto nunca foi um ator de nossa política nem definiu os cenários de nosso engajamento Ele simplesmente definiu o fundamento filosófico de nossa opção naquele momento E tão discretamente quanto havia entrado como filósofo no nosso texto se manteve afastado do cenário de nossa prática Não que dela discordasse e me refiro especificadamente à prática até 1964 mas simplesmente porque não pensava ser esta sua tarefa de padre Como pensador nos proporcionou a dialética que fundamentava nossa análise e prática política como padre não via na prática política o seu campo de atuação 1982 p 2021 175 antes dessa publicação papal os bispos foram persuadidos a emitir uma declaração afirmando a necessidade de mudanças urgentes e radicais no país Eles referiamse às aspirações do povo à participação das massas no processo histórico brasileiro à reforma agrária à reforma nas empresas industriais através da participação em sua propriedade e lucros à reforma eleitoral e à reforma no sistema educacional Mas a relação de neutralidade com a AP cessou no decorrer do ano de 1963 devido à ideologia e principalmente às atividades empreendidas por este tudo passou a ser motivo de suspeita e hostilidade Em dezembro de 1963 uma carta pastoral foi enviada aos responsáveis da ACB chamandolhes a atenção para certas correntes ideológicas que eram incompatíveis com os ideais da Ação Católica Quanto à presença da AP pediuse extrema cautela e proibiuse aos militantes católicos de compor frentes únicas com marxistas Kadt 2007 p109111 Caso entrassem para a AP que buscassem modificar sua essência no sentido da autenticidade cristã106 Cândido Mendes 1966 p70 a viu por uma outra ótica Acreditou que a AP era expressão dos católicos de esquerda que desenvolveram um humanismo concreto de militância prática fundada nos princípios gerais do personalismo e de uma preocupação genérica com os valores da cultura para o da descoberta partindo do engajamento das tarefas da chamada conscientização Para ele a Ação Popular trazia a marca do catolicismo progressista tendo por impulso a visão cristã compromissada que levou certas técnicas de ação como a alfabetização em massa a terem um sentido mais amplo e profundo Isto até o golpe militar de abril de 1964 Devese portanto compreender que o movimento AP embora significasse um abandono da perspectiva católica geral que até então indicava uma contaminação mais ou menos acusada pela ótica da Ordem sobrelevasse o aspecto de opção pura que tinha a sua militância eximindose a toda retomada da investigação ou análise das teses de desenvolvimento tal não lhe retirou 106 A AP recebeu militantes de todo o país principalmente da JUC e da JEC Por isso foi assegurada à AP a hegemonia e direção do movimento universitário e grande participação no movimento dos estudantes do ensino médio o que se prolongou mesmo depois de 1964 Em outros setores como a pequena e média burguesia a AP não foi desconhecida principalmente entre profissionais como os professores os bancários Em muitas localidades espalhadas pelo país a presença da AP esteve representada pelos movimentos sindicais Cf Souza Lima 1979 p44 176 entretanto a sua riqueza específica que foi a de ter ao crivo de uma participação autêntica incorporado determinados temas de uma cogitação cristã geral à problemática de hoje há de se falar nesse sentido em contribuição legitimamente praxísta daquele movimento para o processo nacional dele pôde a ação da esquerda católica retirar a sua primeira manifestação de efetiva originalidade Mendes 1966 p69 O aspecto da opção chamado por Kierkegaard de batismo de escolha é aquele que edifica o ser Como já foi visto Mounier preocupavase com a liberdade de opção quando se referia ao sentido superficial da escolha Pelo que mostra a AP não se tratou apenas de conquista da autonomia mas sim de liberdades edificantes ao participar na história Cf acima Cap II Subseção 26 A originalidade segundo Cândido Mendes surgiu a partir de temáticas cristãs que foram inseridas em determinados comportamentos políticos e sociais e assumidas na prática Ele faz menção explícita aos movimentos de alfabetização de educação de adultos de sindicalização rural desenvolvidos pelos integrantes da AP O aspecto mais importante para ele foi o da anexação que lograram do tema da cultura popular ao desenvolvimento nacional Ibid p 6970 Para uma rápida compreensão desse compromisso é na introdução do Documentobase 1963 que se encontra formulada a missão da AP ao se traduzir como a ação revolucionária expressão de uma geração que assumiu a responsabilidade de uma transformação radical para estabelecer a autenticidade humana como resposta ao desafio de nossa realidade e como decorrência de uma análise realista do processo social brasileiro na hora histórica em que nos é dado viver Ação Popular Documentobase 1979 p118 O DB além da introdução possui quatro capítulos O primeiro aborda a perspectiva histórica mundial e latinoamericana O segundo trata da perspectiva filosófica quanto à consciência e o mundo história e cultura e consciência histórica O terceiro aborda a história do socialismo e suas consequências políticoideológicas Por último a evolução da realidade brasileira Ibid 118144 Em suma o DB direciona a AP ao optar 177 por uma política de preparação revolucionária consistindo numa mobilização do povo na base de desenvolvimento de seus níveis de consciência e organização firmando esta mobilização numa luta contra a dupla dominação capitalista internacional e nacional e feudal Fortalecendo progressivamente seus quadros a AP desempenhará cada vez mais o papel de promover e orientar cada mobilização apoiandoa em intervenções diretas e pela atuação coordenada de seus militantes dentro das estruturas atuais do poder Ela se propõe a tarefa de elaborar com o povo na base da contribuição deste a nova sociedade Ação Popular Documentobase 1979 142 Aqui se encontra o marco divisório entre o pensamento e a ação A consciência histórica permeou as diretrizes da JUC depois de Aracaju e da AP de 1962 a 1964 O que se percebe é que a JUC entre 1960 a 1962 teve sua fase de crescimento mas logo após começou a perder militantes que migravam para a Ação Popular O fato foi que enquanto a JUC recuperava o papel de movimento da Igreja a AP assumia toda a responsabilidade nas lutas sociais e políticas tornandose um movimento de ação revolucionária Como observa Luiz Alberto Gómez de Souza 1984 p207 se frequentemente houve dupla militância e se vários dirigentes da AP eram exjucistas os caminhos se vão separando aos poucos a primeira JUC tratando de desempenhar seu papel de movimento da Igreja a segunda AP num compromisso cada vez mais concreto durante o pacto populista e mais tarde na experiência da clandestinidade 23 A repressão reflexão e militância em tempos sombrios Na realidade a AP tornouse um movimento político com diretrizes de pensamento cristão revolucionário e com matrizes de personalismo socialista Foi o primeiro movimento de participação concreta no processo nacional por uma nova geração católica Mendes 1966 p50 Aliando o pensamento político cristão de Mounier e as indagações de Lima Vaz a AP cobrava de seus militantes a luta sem tréguas contra a desordem estabelecida embasada na consciência do engajamento radical Independentemente de que caminhos tenha tomado posteriormente depois de abril de 1964 Cândido Mendes assinala 178 O significativo está em que a derivação da AP para inclusive um ativismo limite não representou uma satelização por movimentos de esquerda radical confessos Constitui o ideário daquele movimento então o esforço de situar jure proprio aquela posição a partir de um engajamento que se pretendia intensamente cristão e apoiava os seus fundamentos num ethos próprio e novo de participação Mendes 1966 p24 No mesmo clima de engajamento entre os dias 16 a 21 de setembro de 1963 ocorre em Salvador uma reunião dos assistentes da JUC para discutir a noção de consciência histórica e o método de atuação dos jucistas Os assistentes de Belo Horizonte apresentaram um esquema para analisar o compromisso do cristão frente à realidade brasileira esta considerada como composta de um conjunto de setores estruturais ligados às áreas política econômica e social de ideologias as visões de mundo e de movimentos sindicatos partidos e outros numa dialética entre si os militantes presentes nestes conjuntos deveriam vivenciar a realidade dando testemunho Por seu lado os militantes vão se comprometendo sempre mais nos programas de educação popular e de mobilização camponesa seja no Movimento de Educação de Base MEB criado pelos bispos nos Centros Populares de Cultura CPC estudantis seja no Movimento de Cultura Popular do Recife MCP ou nos programas ligados às experiências de Paulo Freire no Recife no Rio Grande do Norte Angicos e logo depois por todo o país Gómez de Souza 1984 p208 O MCP adota o lema de Miguel Arrais Educar para Libertar e com isso desenvolve o programa de alfabetização de adultos na esteira do método de Paulo Freire107 O CPC projeto políticocultural criado pela UNE teve por fundadores Arnaldo Jabor Carlos Lyra e Oduvaldo Viana Filho incorpora depois Astrojildo Pereira Rui Facó Ferreira Gullar Dias Gomes Divulga talentos populares como Zé Kéti Cartola Nelson do Cavaquinho dentre 107 Que consistia basicamente na ideia de que a educação deve tornar o homem consciente de sua liberdade no mundo Em seu método estimulava a atitude crítica diante da realidade do mundo Diferentemente das escolas tradicionais havia os círculos de cultura em lugar de professores os colaboradores Palavras do cotidiano como favelas fome trabalho etc condições existenciais deveriam ser discutidas no processo de aprendizagem para na sequência se pensar em transformações Para maiores detalhes confira o tema central deste assunto na obra FREIRE Paulo Educação como prática da liberdade Rio de Janeiro Paz e Terra 1967 179 outros lança o filme Cinco vezes favela a Coleção de livros Cadernos do Povo Brasileiro o disco Subdesenvolvido e peças teatrais108 Viviase uma efervescência sem igual No campo as Ligas Camponesas LCs especialmente as do Nordeste multiplicavamse O sindicalismo rural seguia a mesma proporção Como exemplo no período compreendido entre os anos 19551957 existiam apenas 3 sindicatos rurais chegaram a 300 em julho de 1963 e a cerca de 1500 em março de 1964 As LCs só em Pernambuco chegaram à marca de 64 e se estenderam para vinte estados brasileiros sendo registradas 218 organizações Cf Semeraro 1994 p2829 Os movimentos estudantis encabeçados pela União Nacional dos Estudantes UNE e pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UBES reivindicaram a democratização do ensino e também apoiaram a luta das massas populares contra as classes dominantes Pela primeira vez na história brasileira as massas populares apoiadas por intelectuais e partidos de esquerda aparecem no cenário político e ameaçam seriamente as classes dominantes que viam fracassar as diversas tentativas de contemporizar pela via das reformas populistas Não era mais possível conter o crescente volume de forças populares que desenganadas pelo esquema da aliança policlassista insistiam por mudanças na própria estrutura da sociedade Semeraro 1994 p32 No bojo das mudanças greves começaram a acontecer nos meios mais industrializados no eixo RioSão Paulo Atingiram várias categorias de profissionais como os ferroviários estivadores funcionários de banco previdência departamento de estrada de rodagem empresas de luz e água e assalariados em geral Importante lembrar que em 1961 antes da posse de João Goulart na Presidência da República estabeleceuse uma crise institucional e militar quanto à passagem do cargo a João Goulart Jango Mesmo assim Goulart toma posse em 07091961 No Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais em Belo Horizonte no dia 15 de novembro deste mesmo ano Goulart marca presença ao dar apoio à reforma rural Ele também restabelece as relações 108 O movimento foi fechado pelo golpe militar e teve seu acervo destruído Isto é Brasil 500 anos1998 p175 180 diplomáticas com URSS que haviam sido rompidas em outubro de 1947 e anuncia as Reformas de Base agrária urbana bancária educacional Com isso seus rivais ficam mais enfurecidos incomodados e descontentes Civis e militares mobilizamse rapidamente Na sede do IBAD109 empresários contrários a João Goulart criam o Instituto de Pesquisas Sociais IPES O general Golberi do Couto e Silva conspirador dos anos de 1954 55 e 61 deixa seu posto para dedicarse ao IPES Nasce o Instituto com verbas dos conservadores dos empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo O Instituto influenciou por meio da doutrinação as áreas militares e patronais já com o intuito de preparar o golpe de 1964 Este órgão com seus cinco grupos divulga relatórios semanais entre oficiais grampeia telefones e prepara o futuro nascimento do Serviço Nacional de Informações SNI que integrará a máquina de repressão Juntamente ao SNI os EUA darão seu apoio para o golpe inclusive com auxílio militar na chamada Operação Brother Sam Cf Isto é Brasil 500 anos 1998 p 173179 Estavam abertos os porões da ditadura e iniciavamse os tempos difíceis da reflexão militante Em 1 de abril de 1964 a UN E e a UBES têm suas sedes no Rio de Janeiro saqueadas e incendiadas O jornal Brasil Urgente também foi saqueado Ocorrem prisões e perseguição de grande número dos militantes da JUC MEB AP e de outros movimentos da Igreja Surgem denúncias na imprensa contra a AC e a JUC Em Belo Horizonte a sede da JUC foi invadida e desaparecem documentos dos arquivos Na AP líderes e militantes foram presos Herbert José de Souza Vinícius Caldeira Brant e outros partem para o exílio Lima Vaz deixa o Rio de Janeiro e segue para a sede da província jesuítica em Belo Horizonte à qual pertencia Foi acolhido na UFMG pelo então diretor professor Arthur Versiani Velloso Lima Vaz em depoimento dirá que o professor 109 Instituto Brasileiro de Ação Democrática foi criado por 59 empresários portavozes do capital estrangeiro intelectuais e políticos de direita Em 1960 ajuda Jânio a criar a Ação Democrática Parlamentar ADP O IBAD encerrou suas atividades em 20121963 por ação ilícita ao receber verbas estrangeiras e financiar candidatos conservadores na eleição de 1962 Foram beneficiados 8 candidatos a governador 15 a senador 250 deputados estaduais elege Lacerda e Ademar 110 deputados federais A Comissão Parlamentar de Inquérito CPI do IBAD formada em 1963 apurou que nesta aliança 152 empresas estrangeiras financiaram o Instituto Eis algumas Texaco Esso Shell CocaCola GE Ciba Bayer IBM Cf Isto é Brasil 500 anos1998 p167 181 Velloso homem independente e acima das conveniências políticas do momento recebeume não obstante as suspeitas que cercavam meu nome Nobre 2000 p30 Ele afirma que durante 22 anos na UFMG não recebeu nenhuma restrição e sim estímulos para que desenvolvesse sua tarefa de professor Declara que durante os primeiros anos teve que comparecer ao Departamento de Obra Política e Social DOPS ao Comando da Polícia Federal e Militar Lima Vaz em entrevista diz As vicissitudes de minha peregrinação a partir da década de 70 foram tranquilas Meu problema com os órgãos de segurança estava resolvido com o hábeas corpus que havia recebido do Superior Tribunal Militar em 1968 Em 1975 fui para o Rio chamado a ensinar novamente na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas que para ali se transferira Continuei no entanto meu magistério na UFMG vindo todos os mês a Belo Horizonte para dar minhas aulas Na UFMG permaneci até me aposentar em 1987 Nobre 2000 p30 No dia 17 de abril o governador Carlos Lacerda denuncia os órgãos da AC como sendo locais de reagrupamento de comunistas D Cândido Padim AssistenteGeral da AC declara imediatamente em nota pública que não pode deixar de protestar contra tais acusações levianas Assistentes eclesiásticos saem do país Inquéritos PolicialMilitar IPM procuram os chamados subversivos militantes e exmilitantes Em julho membros da JEC e da JUC são detidos em seus apartamentos e só liberados com a intervenção do Assistente Geral da AC Cf Gómez de Souza 1984 p 213 Em Belo Horizonte ocorrem nas ruas choques entre a Ação Católica e grupos de católicos integristas Grupos das Congregações Marianas invadem o Convento dos Dominicanos e denunciam à polícia os ditos comunistas infiltrados nos movimentos da Igreja As Faculdades de Filosofia da UFRJ e USP são metralhadas A intelectualidade é reprimida com a demissão de centenas de professores universitários entre eles Oscar Niemeyer Josué de Castro Celso Furtado Anísio Teixeira e Paulo Freire A Universidade de Brasília é invadida pela Polícia Militar em 18101965 e perde 210 professores Começam as torturas 182 seguidas de algumas vítimas fatais nesta primeira fase da repressão militar 19641968110 O golpe de 1964 despedaçou os projetos da Ação Popular que evidentemente parecia constituirse em um canal privilegiado de participação política e de militância orientada ao humanismo cristão e visando a construção de um socialismo como também estaria destinado a ter papel importante na política brasileira Souza Lima 1979 p46 Esta possibilidade histórica não se confirmou Com o golpe de Estado ocorre inicialmente a paralisação da participação governamental que fora importante no Ministério da Educação no setor de alfabetização de adultos na cultura popular e na aplicação do método Paulo Freire Com o isso o movimento sentese desarticulado e traça uma nova linha política com as seguintes etapas principais a definição do caráter da Revolução Brasileira como socialista e de libertação nacional b escolha da alternativa da luta armada c transformação da AP em uma organização marxistaleninista d adesão ao maoísmo e à teoria chinesa e sua virtual extinção com a confluência da maioria de seus quadros em outras organizações políticas clandestinas Ibid p4647 Diante da repressão continuada a AP em cada etapa que pretendia desenvolver reduzia suas bases sociais compostas por cristãos progressistas e também no geral o quadro de pessoal esvaziavase Aos poucos a AP transformouse em um pequeno grupo de militantes que abandonam as raízes sociais do humanismo personalista cristão o que restou foi uma organização pequena e impaciente que disputava verbalmente com outras organizações clandestinas a hegemonia da direção da classe operária e da Revolução Brasileira Ibid p 47 110 Podese dizer que o regime militar 19641985 no Brasil atravessou três fases distintas A primeira inicia com o Golpe Militar de Estado Considerase a segunda fase o período a partir de dezembro de 1968 com a promulgação do AI5 Ato Institucional 5 Os anos de 1969 a 1973 são considerados os anos de chumbo da mais virulenta ditadura Tempos de tortura violência sem limites mortes desaparecimentos e prisões que poderiam superar 10 mil em um só dia A terceira fase começa com a posse do general Ernesto Geisel em 1974 ano em que paradoxalmente o desaparecimento dos opositores se torna rotina iniciandose então uma lenta política de distensão que iria até o fim do período de exceção Tancredo Neves é eleito Presidente da República e sua posse estava marcada para 15031985 Cf BRASIL SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS 2007 p21 183 Enfim as diretrizes do DB da AP foram abafadas pelas forças da repressão a proposta a tarefa de elaborar com o povo na base da contribuição deste a nova sociedade Ação Popular Documentobase 1979 p142 tombou por terra e uma nova experiência seria lançada a da clandestinidade A evolução da AP seria condicionada logo depois pelo golpe militar de 1964 e por sua vida na clandestinidade Tendo surgido como um movimento aberto a uma elaboração teórica criativa na linha do personalismo comunitário de Mounier mais adiante a partir da influência do pensamento de Althusser em 1966 e logo depois do maoísmo transformouse numa rígida organização marxistaleninista dogmática e sem originalidade na qual não houve mais lugar para os cristãos Gómez de Souza 2004 p76 Diante do período repressivo ditatorial mudanças também ocorreram na cúpula da Igreja D Hélder não será reconduzido à secretariageral da CNBB Confrontos surgem entre a JUC e D Vicente Scherer eleito responsável pela Comissão de Apostolado dos Leigos no que se refere à continuação de D Padim na AC e ao desmembramento da AC estendendose até o conflito final com a Hierarquia Enquanto ocorriam embates sobre o destino da AC e os novos rumos da JUC realizouse em Campinas o XIII Conselho da JUC no período de 19 a 28 de fevereiro de 1965 Uma circular é dirigida aos centros regionais e locais com uma nova orientação não mais de militância e engajamento mas militante pessoa engajada ser situado universitário em seu meio universitário Eis o novo percurso da JUC os limites da nova política nacional e da pastoral universitária Caso contrário a prática concreta na clandestinidade Gómez de Souza 1984 p220 vê nessa perspectiva que a trajetória se parece a uma grande elipse em que saindo do interior da Igreja depois de uma abertura à realidade brasileira e seus conflitos a JUC volta aos problemas intra eclesiais Neste ínterim trâmites ocorrem repetidas vezes em Roma sobre o destino da AC O resultado final nov 1965 foi a ideia de uma descentralização da AC fortalecimento das estruturas regionais e redução das equipes nacionais às tarefas de coordenação D Vicente Scherer pede sugestões Em 184 julho de 1966 em reunião temse um clima tenso e um diálogo impossível entre o bispo e os movimentos do a e i o u JAC JEC JIC JOC JUC A CNBB em reunião no dia 15 de junho de 1966 aprova a descentralização da ACB Neste clima realizase o XIV Conselho Nacional da JUC entre os dias 18 e 28 de junho em Antônio Carlos MG Para estes dias também está previsto o XXVIII Congresso da UNE em Belo Horizonte O evento foi proibido pela Polícia Militar PM Mesmo assim este acontece às escondidas numa igreja dos padres franciscanos Diante do fato dos tratamentos diferenciados os membros da JUC protestam pois se entendem como ligados à Igreja Em uma Circular da Equipe Nacional do dia 11 de agosto 1966 apud Gómez de Souza 1979 p229 os militantes declaram Consequentemente não nos reconhecemos como Ação Católica ou qualquer forma de organização que se defina como extensão do Apostolado Hierárquico mas nos propomos a assumir nossa missão de cristãos homens do mundo engajados e comprometidos numa vivência teologal e é em função desta missão que o movimento se organiza Dentro da diversidade de funções permanecemos unidos à Hierarquia na comunhão eclesial No dia 17 de agosto D Vicente Scherer envia uma carta à Equipe Nacional dizendo que não caberia a ela decidir se será ou não uma organização da AC Na carta ele cita partes de textos de Pio XI de 1934 e 1935 cuja orientação é de que aqueles que não concordarem com os princípios da Igreja devem se retirar Por outro lado pede à Equipe Nacional que avalie as decisões Ibid p229230 No dia 07 de novembro a Equipe Nacional dirigese a CNBB em um documento como exJUC Analisa o significado da posição radical do movimento universitário o compromisso a fidelidade ao real a personalização e seus instrumentos Demonstra os conhecimentos adquiridos sobre os problemas da realidade brasileira e finaliza dizendo o que esperava da CNBB um diálogo mais profundo com os bispos Ora o meio universitário constituise em um dos poucos senão o único grupo dentro da sociedade global que tem condições hoje de globalizar e enfrentar uma situação de opressão ou de injustiça pelo fato de não estar ainda 185 comprometido com o status quo e ter instrumentos de análise e possibilidade de organização 1966 apud Gómez de Souza 1979 p230 O assunto foi discutido na reunião com os bispos no dia 08 de novembro no Rio de Janeiro e a CNBB torna público que o Secretariado Nacional do Apostolado dos Leigos declara a dissolução das Equipes da JEC JIC e JUC por assumirem posturas semelhantes D Vicente é criticado no encontro dos assistentes da AC em Porto Alegre os assistentes exigem um tempo de reflexão antes de interpretar os textos do Concílio e de fixálos em estatutos eles pedem também uma definição mais clara do conceito de evangelização Ibid p 232 Mesmo assim sem a ajuda e proteção da CNBB a Equipe Nacional planeja continuar a luta mas as dificuldades tendem a aumentar diante dos problemas internos de redução de quadro do pessoal coordenadores e militantes Em 22 de abril de 1968 ocorre um pequeno Encontro Nacional onde se reflete a debilidade do movimento Um documento de 2 de junho de 1968 constata que O que vemos surgir hoje nos meios cristãos não é mais movimento mas uma série de pequenos grupos que aspiram a uma comunicação maior e reflexão comum apud Ibid p 236 Dirá Gómez de Souza que o fim da JUC irá coincidir com o início da rebelião utópica de maio de 1968111 dos jovens de muitos países incluindo manifestações universitárias No Brasil com o AI5 as atividades militantes tornaramse praticamente impossíveis Ibid p 236 Em carta de 15052003 Luiz Alberto Gómez de Souza responde a uma pergunta sobre se ainda haveria vestígios das ideias personalistas de Mounier face às inquietações da atualidade Prezado Amigo Obrigado por sua carta Na verdade o pensamento de Mounier não está presente na França Fico triste ao ler Esprit em sua nova orientação Madame Mounier quando esteve no Brasil faz alguns anos também tomava suas 111 Na França os estudantes e operários paralisam o país no Maio de 68 sob o lema libertário É proibido proibir Nos EUA jovens contestam a guerra do Vietnã o que leva à desobediência civil de massa os Panteras Negras radicalizam a luta contra o racismo A onda avança pela Alemanha Itália Japão Polônia Tchecoslováquia Brasil México Argentina Uruguai Chile Peru entre outros países 186 distâncias da publicação e refluía na Associação dos Amigos de Mounier Há espaços personalistas como na Itália bem acompanhados pelo Alino Lorenzon onde publicam uma revista No Brasil somos uns poucos para os quais Mounier segue sendo atual O fato de Leopold Senghor no Senegal e o presidente Diem no Vietnam se declararem personalistas em nada adiantou Que eu saiba não há nada semelhante à sua presença na JUC Não o sinto na pastoral universitária nem na pastoral de juventude Mas o personalismo como dizes é uma perspectiva uma maneira de olhar o mundo112 3 O Personalismo de Mounier a partir de 1970 no Brasil Na década de 1960 viveuse o início de grandes transformações período dos laboratórios mais férteis de criatividade Segundo Luiz Alberto Gómez de Souza 2004 p76 Gustavo Gutiérrez por várias vezes lhe disse que nesse momento surgiram os primeiros sinais que se configurariam dez anos mais tarde na Teologia da Libertação Gutiérrez quando redigia sua Teologia da Libertação interrompeu a redação e veio ao Brasil entrevistar os envolvidos na JUC dirigentes e assistentes eclesiásticos Gómez de Souza registra também que Pablo Richards afirmava que o Brasil vivia antecipadamente a efervescência do cristianismo revolucionário que outros países como a Argentina o Uruguai e a Colômbia só viriam a conhecer depois entre os anos de 19681970 cita também Charles Antoine ao dizer que a JUC era um laboratório de pesquisas das novas relações entre Fé e Política para Ralph della Cava um símbolo na vida católica brasileira aos olhos de Michael Löwy tratavase de um movimento pioneiro de surpreendente criatividade intelectual e política e que mesmo diante da derrota pela a desordem estabelecida espalhou sementes por toda a América Latina Cf Ibid p76 Giovanni Semeraro lembra que numa avaliação sumária e pretensamente científica as propostas e as atuações dos jovens pré64 têm sido consideradas ingênuas e românticas Sabese das falhas e das limitações próprias daquele tempo mas é preciso reconhecer e registrar o que 112 Carta recebida em 15 de maio de 2003 durante a realização de pesquisa no curso de mestrado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas PUCCAMP 187 foi deixado por esta geração de jovens quanto à valorização da subjetividade à construção de uma consciência crítica à vida participativa na sociedade e à concepção de um socialismo humanista democrático personalista Dentro da difícil tarefa hoje em curso de reinventar os caminhos de uma nova síntese sóciopolíticocultural mais coerente com os anseios contemporâneos a reavaliação das propostas dos jovens católicos dos anos 60 poderá ajudar a reconhecer a criatividade dos grupos diferentes na sociedade a força das configurações religiosas a pluralidade dos movimentos sociais o protagonismo histórico dos novos sujeitos populares e acima de tudo o poder transfigurador de uma juventude generosa Semeraro 1994 p15 Mesmo que fechados os porões da ditadura passa ainda por suas frestas um ar úmido e podre que se cristaliza nas lembranças nas feridas ainda não cicatrizadas Muitos assuntos desse passado pendentes e carentes de justiça voltam ao cotidiano presente com o necessário e justo propósito de resgatar a verdade de uma época vergonhosa e desumana de poder totalitário113 Diante da crise do século XX buscouse uma nova imagem do homem os neohumanismos empenharamse na confecção de uma nova antropologia voltada para a existência do homem contemporâneo Abalados pelos mestres da suspeita e insatisfeitos com os modelos antropológicos clássicos tanto naturalista como idealista a filosofia se volta para a relação da reflexão unida à experiência existencial com o enfoque éticoantropológico 113 Para maiores detalhes veja Sítio na Internet Direitos Humanos Ação movida pelo Ministério Público Federal MPF no dia 26 de novembro de 2009 na Justiça Federal para responsabilizar pessoalmente as autoridades os agentes públicos e civis da União do Estado e Município de São Paulo Os réus são acusados por ocultações de cadáveres de militantes 1500 ossadas foram desenterradas em Perus em 1990 que foram executados por discordar da Ditadura Militar 19641985 As ossadas foram encontradas em valas comuns clandestinas para que não fossem identificadas nos cemitérios da capital de São Paulo Vila Formosa e Perus Para ver na integra o documento de 56 páginas cf sítio da Procuradoria da República de São Paulo Ligado também a este assunto cf Frei Betto Batismo de Sangue Obra importante é o Livrorelatório Direito à memória e à verdade da Comissão Especial sobre Mortos e desaparecidos políticos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República de 2007 instituída pela Lei nº 914095 Importante também é o livro do Projeto Brasil nunca mais onde se pesquisou mais de um milhão de páginas em cinco anos Produziu se um relatório Projeto A com aproximadamente cinco mil páginas referentes a mais de 700 processos políticos que tramitavam no Superior Tribunal Militar apenas no período de 1964 a 1979 São relatos vivos das barbáries torturas e assassinatos de um Brasil nunca mais D Paulo Evaristo Arns Cardeal prefaciou esta obra Em 2009 já na 37ª edição este livro infelizmente marca sua importância 188 Ainda que possam eventualmente levantar questões epistemológicas isto é feito incidentalmente em decorrência mais de eventuais vinculações filosóficas Seu objetivo fundamental continua sendo o da compreensão do sentido do concreto Os humanismos contemporâneos esforçaramse então para superar uma visão puramente abstrata do homem tentando dar conta de todos os aspectos complexos da realidade histórica enfrentada pela humanidade que nem sempre estiveram presentes na reflexão filosófica dos períodos anteriores Severino 1999 p127 No Brasil como foi visto Exigências de um novo pensamento humanista para o contexto histórico concreto brasileiro Cap III Seção 2 o neo humanismo os existencialismos o personalismo adentrou principalmente os meios universitários os movimentos da ACB da AP exigindo mudanças para a construção de uma história efetivamente humana homem concreto Através do personalismo de Emmanuel Mounier foi posto em prática o compromisso o testemunho enfim a visão do homem responsável pela sua ação Foi a época do engagement da consciência histórica momento de uma nova fase na educação e na cultura violentamente barrada pela repressão militar Ainda em meio às tormentas deste período da história do Brasil Severino aponta que o personalismo nos anos 70 adquire outra dimensão através de uma sistematização mais aprofundada do pensamento de Emmanuel Mounier quando o personalismo passa a ser estudado na sua dimensão mais especificamente filosófica 1999 p133 114 Por sua vez verificar o que escreve Alino Lorenzon em seu artigo publicado na Revista Filosófica Brasileira em número consagrado ao 40º aniversário da morte de Mounier 1990 Influência do personalismo de Emmanuel Mounier no Brasil subsídios para estudos posteriores parece indicar algo um pouco distinto A influência de Mounier é ignorada e 114 Em entrevista Severino relembrou que no período de 1960 a 1962 fez seu curso de graduação em filosofia na Universidade Católica de Louvain na Bélgica De 1962 a 1964 fazia seu mestrado nesta mesma universidade e obteve o título com a dissertação La critique de la notion de démocratie chez Emmanuel Mounier Durante este período fora do Brasil mesmo à distância tentava acompanhar a movimentação no país às vezes por intermédio do jornal Brasil Urgente Já no Brasil no período de 1967 a 1972 conclui seu doutorado em filosofia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Bento PUCSP orientado por André Franco Montoro Sua defesa de doutoramento ocorreu a portas fechadas e com o título diferente do original Pessoa e existência os princípios ontológicos do personalismo de Emmanuel Mounier pois viviase ainda o momento da repressão militar e tratar de algo relacionado a Mounier era estar contra o sistema estabelecido era tornarse subversivo e comunista Entrevista realizada no campus da USP no dia 23 de abril de 2008 em vista da presente tese 189 desconhecida mesmo dentro dos Departamentos de Filosofia No entanto ela tem sido muito importante em setores como a educação o serviço social e no campo políticosocial Lorenzon 1996 p107 A razão ou pelo menos uma das razões seria porque a filosofia de Mounier aflorou fora dos muros da universidade como já vimos Cf acima p 109110 Diante disso poderíamos talvez dizer que a partir da década de 70 ainda no regime de Ditadura Militar uma segunda fase parece surgir no Brasil no que se refere à presença de Mounier Uma outra perspectiva um olhar sobre o personalismo de Mounier mais especificamente com o teor teóricofilosófico de um compromisso refletido sem as exigências do engagement radical firmouse nas áreas da Antropologia Filosófica da Educação da Ética da Filosofia Política e Social e da Religião com vistas à realidade ética e política Assim atestariam alguns estudos Antonio Joaquim Severino em sua tese de filosofia Cf acima nota nº 114 desenvolve um estudo sobre A antropologia personalista de Emmanuel Mounier este é o título de sua tese quando publicada Neste estudo Severino recorre ao compromisso da pessoa e à significação filosófica do personalismo para chegar à metafísica da pessoa e da comunidade humana Sua pesquisa percorre as noções de natureza humana experiência existencial perpassa as estruturas do universo pessoal rumo à pessoa categoria fundante que se envolve numa ética do compromisso de si e da responsabilidade comunitária e a desenvolve Balduíno Antonio Andreola no campo das Ciências da Educação produz sua tese em torno de uma pedagogia política da libertação com o título Emmanuel Mounier et Paulo Freire une pédagogie de la personne et de la communauté Universidade Católica de LouvainlaNeuve Bélgica 1985 A ideia central desta tese nasce do princípio de que Mounier e Freire partiram de uma intuição idêntica ou seja da convicção de que era preciso fazer algo diante da crise As formas da denúncia e a mudança radical são aproximações apresentadas pelo autor que as colhe da fonte do personalismo e levaas ao encontro com a pedagogia do oprimido mostrando as convergências entre o personalismo de Mounier e o projeto de Freire 190 Alino Lorenzon produziu estudos para fundamentar a ética e a educação na antropologia personalista Investigou as relações entre pessoa e comunidade tendo em mira propostas políticoeducacionais no cotidiano de sua prática docente Lorenzon 1996 p123 escreve Ao tomar contato com alguns escritos de Mounier nos anos 60 impressionou me a clarividência como tentativa de descobrir compreender e enfrentar as intuições de pensadores do porte de Marx Nietzsche Freud Heidegger Sartre e outros Ao mesmo tempo ia despertando em minha consciência a necessidade de uma reflexão comprometida com os desafios do momento a crise de toda a civilização E um dos diagnósticos efetuados por Mounier a respeito da crise de civilização consistia em denunciar o desrespeito pela pessoa humana e o individualismo reinante Ao se deparar com as afirmações de Mounier sobre a pessoa e a comunidade Lorenzon elabora sua tese tendo em conta três eixos de reflexão a pessoa como relação a promoção das pessoas na e pela comunidade o papel das mediações na reciprocidade das consciências A tese tem por título Personne et communauté essai sur loeuvre dEmmanuel Mounier Universidade de ParisX França1972 Um dos grandes responsáveis no Brasil pelo desenvolvimento e memória do pensamento de Emmanuel Mounier é Luiz Alberto Gómez de Souza115 Para Leonardo Boff Luiz Alberto é um dos herdeiros intelectuais e morais de Alceu Amoroso Lima o intelectual cristão mais fino e fecundo que a Igreja Católica produziu no século XX Gómez de Souza 2003 p 10 115 Natural de Lavras do Sul RS fez seu doutorado em sociologia na Universidade de Paris Foi dirigente nacional da Juventude Universitária Católica JUC secretário geral da Juventude Estudantil Católica JEC Internacional e um dos fundadores da AP Junto a D Hélder Câmara colaborou na preparação do Concílio Vaticano II e com Ivan Illich do Centro Internacional de Documentação em Cuernavaca México CIDOC Em 1963 foi assessor do Ministro da Educação pesquisador do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Social IBRADES assessor de pastorais e movimentos sociais Foi funcionário das Nações Unidas pela Comissão Econômica para a América Latina CEPAL e também pela Organização para Agricultura e Alimentação FAO no Chile no México e na Itália Foi professor em universidades do Rio de Janeiro Escreveu várias obras inúmeros artigos em revistas nacionais e internacionais Trabalhou como Diretor Executivo do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais CERIS criado em 1962 pela Conferência dos Bispos do Brasil CNBB e dos religiosos do Brasil CRB Atualmente ocupa o cargo de Diretor do Programa de Estudos Avançados em Ciência e Religião da Universidade Cândido Mendes UCAMRJ 191 Ele desenvolveu sua tese que muito ajudou em nosso trabalho em sociologia com o título A JUC os estudantes católicos e a política Universidade de Paris França publicada em 1985 Lorenzon faz menção em seu artigo a Luiz Eduardo Wanderley no que se refere ao MEB e à influência personalista na tese de doutorado deste com o título Educar para transformar educação popular a Igreja Católica no Movimento de Educação de Base publicada em 1984 Há além disso vários outros trabalhos mencionados por Lorenzon116 Nas observações finais de seu artigo Lorenzon 1996 p124 enfatiza que o seu texto constituise de apontamentos em vista de um trabalho a ser desenvolvido convidando o leitor interessado a prosseguir a caminhada Esperamos que este trabalho face ao convite deixe pelo menos alguma marca abra mais uma trilha rumo ao pensamento de Emmanuel Mounier Esperamos também devido às desordens que ainda atingem a pessoa que tal pensamento esteja presente em várias áreas do conhecimento humano e principalmente seja considerado nos cursos de filosofia 116 Lorenzon 1996 p10123 cita também Odaléa Cleide Alves Ramos Les éléments psychologiques et philosophiques de la notion de personne dans loeuvre dEmmanuel Mounier Tese de doutorado em filosofia na Universidade de ParisXNanterre França 1970 Dagmar Haj Musi com a dissertação de mestrado Exigência da educação num mundo em mudanças atualidade do pensamento de Mounier Universidade Federal do Paraná Brasil 1987 Nelson de Figueiredo Ribeiro ligado à esquerda católica exministro do Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário MIRAD publicou uma obra no campo da ética e da filosofia política social usando os princípios éticopolítico e filosófico das obras de Mounier intitulada Caminhada e esperança da reforma agrária 1987 José Rafael Menezes que escreveu um livro intitulado Psicologia social personalista 1970 Vamireh Chacon autora de O poço do passado 1984 No campo religioso Pe Pascoal Rangel se inspira em Mounier e escreve Emmanuel Mounier um pensamento dentro da vida 1976 No campo do Serviço Social o personalismo está presente nas obras de Anna Augusta de Almeida Possibilidades e limites da teoria do Serviço Social 1978 Safira Bezerra Amman Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil 1980 Maria Ângela de Albuquerque na Escola do Serviço Social disserta sobre a Contribuição de alguns pressupostos do personalismo à compreensão da pessoa deficiente mental análise de uma experiência com os grupos em Serviço Social UFRJ Brasil 1985 Aloisio Ruedell no campo políticosocial desenvolve a dissertação de mestrado sobre Lições políticas para a América Latina Universidade Católica do Rio Grande do Sul Brasil1985 Enfim complementando com alguns dados mais recentes em 1998 na USP Adão José Peixoto defendeu sua tese no campo da Educação com o título O papel do educador na perspectiva da filosofia personalista de Emmanuel Mounier Em 2008 na área das Ciências Sociais na UFPA Verônica do Couto Abreu defendeu sua tese intitulada A contribuição do pensamento de Emmanuel Mounier para a reflexão éticocristãpersonalista da pessoa na contemporaneidade Em 2009 Daniel da Costa defendeu sua dissertação de mestrado na USP Departamento de Filosofia com o título A emergência e a insurgência da pessoa humana na história ensaio sobre a construção do conceito de dignidade humana no personalismo de Emmanuel Mounier 192 Enfim poderíamos dizer que mesmo em um país por onde Mounier só em projeto ou sonho navegara isso foi o bastante para marcar uma época Seu exemplo de vida fez também nascer por outras margens do Atlântico lutadores e combatentes que assumiram o testemunho radical doando a própria vida contra toda desordem estabelecida Talvez de uma outra forma sua memória nos cobre mesmo nos dias atuais uma pura e simples exigência de que as banalidades do homem lhe sejam conferidas Cf abaixo p 199 193 Capítulo IV O PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER LEGADO E NOVIDADE 1 O legado Infelizmente devido sua morte precoce Emmanuel Mounier não chegou a presenciar boa parte da colheita dos frutos cujas sementes foram plantadas e cultivadas por suas mãos e que para nós continua viva Como foi dito anteriormente em rápida passagem Cf acima p 62 o personalismo obteve irradiação intelectual na França e Europa do pósguerra como também foi decisivo na elaboração da Comunidade Europeia que aproveitou os pressupostos personalistas sobre a economia a comunidade a cultura a democracia e a pluralidade dentre outros Na Itália o Movimento Comunidade lançado por Adrien Olivetti 1901 1960 era muitíssimo inspirado nos princípios do personalismo e tentava encontrar um equilíbrio entre o mundo técnico e a responsabilidade das pessoas Lorenzon 1996 p15 Na França sobretudo com a Vida Nova Vie Nouvelle 19541971 através de Jean Lestavel nascido em 1930 fundouse o movimento de formação e educação comunitária Para isso o pensamento de Mounier foi fundamental Conclui Lorenzon 1996 p15 Sem estar oficialmente ligado a Esprit o movimento Vida Nova sempre se referiu à obra de Mounier Se compararmos a filosofia e os meios desse movimento com os do personalismo constataremos uma grande convergência 194 Movimentos ligados ao pensamento de Mounier surgiram para além da Europa em alguns países da África dos Estados Unidos da América Latina dentre outros que assumiram para si o personalismo comunitário Lorenzon 1996 p15 A revista Esprit criada por Mounier continua sendo impressa até os dias atuais O Bulletin des Amis dEmmanuel Mounier BAEM com regularidade circula desde 1952 fazendo um trabalho sério e meticuloso aliado à Bibliothèque Emmanuel Mounier de lAssociation des Amis dE Mounier BEM onde se conservam os manuscritos os dossiês o grande acervo documental da vida obra e memória do movimento personalista Na Espanha criouse em 1984 o Instituto Emmanuel Mounier IEM e posteriormente outras sedes autônomas foram criadas na Argentina México e Paraguai Publicamse as obras de Mounier os Cadernos de formação as obras clássicas do personalismo a Coleção Esprit além de jornais e revistas Vários grupos por boa parte do globo terrestre divulgam o pensamento de Mounier através da www World Wide Web Rede de Alcance Mundial em vários sítios117 No Brasil e na América Latina o personalismo inspirou o sindicalismo movimentos sociais de origem cristã movimentos de atuação dos leigos movimentos de educação ação e cultura popular Cf acima Capítulo III Em abril de 1947 foi editado na revista Esprit o pedido de Mounier 1971 p105124 O que nossa época pede ao Papa chefe dos cristãos é que seja um santo engajado compromissado e no mesmo movimento um político independente118 Ele lembra as palavras do Padre Congar de que a 117 Veja alguns sítios importantes Association des Amis dEmmanuel Mounier Chatenay Malabry Paris AAEM Asociación Española de personalismo AEP Centre dAction pour un Personnalisme Pluraliste Louvain Bélgica Centro Ricerche Personaliste di Teramo Itália Instituto Emmanuel Mounier Argentina IEM Instituto Emmanuel Mounier Espanha IEM Instituto Emmanuel Mounier França IEM Instituto Psicopedagógico Emmanuel Mounier Bogotá Colômbia La Vie Nouvelle Pour Une Alternative Personnaliste et Citoyenne Movimento de educação popular na França LInstitut Emmanuel Mounier de Catalunya The personalist Forum di Buffalo New York USA The personalist Forum Southern Illinois University Carbondale USA Revue Esprit França Acessos de confirmação dos sítios realizados no dia 18052009 Para acessar os endereços eletrônicos dos referidos sítios veja abaixo referências bibliográficas p 231232 118 O pedido de Mounier foi feito ao Papa Pio XII em maio de 1939 quando questionou o silêncio da Igreja diante da agressão italiana à Albânia 195 Igreja é incessante circulação de vida entre uma jurisdição e uma comunidade Para Mounier o lado jurídico preserva os princípios e o comunitário é papel da Igreja preparar a mistura da carne e do sangue do mundo No plano da vida cristã ela deve ver as incidências as consequências pois a vida total da Igreja é feita das informações de uns e de outros em marcha com a humanidade a Igreja está entre o já dado e o ainda esperado junto com o ainda a fazer e só esta dialética define sua verdadeira posição na história Mounier 1971 p225 Como já se sabe Mounier e o Movimento Esprit receberam condenações do Estado da Igreja e também de amigos e parceiros Cf acima Cap I Subseção 1 O que fora tão cobrado por Mounier com referência aos rumos da Igreja daí as condenações foi retomado na Carta Encíclica do Papa João XXIII Mater et Magistra 15051961119 Evolução da questão social à luz da doutrina cristã Esta carta foi um marco importante e também rica de ideias personalistas pois ultrapassou as críticas e percorreu o universo das exigências do pensamento do compromisso e da ação Foi esta encíclica uma atualização das orientações anteriores da Rerum Novarum 15051891 de Leão XIII sobre a condição operária no auge do capitalismo individualista da Quadragesimo Anno 15051931 publicada num momento conturbado numa atmosfera contaminada pelo nazismo fascismo e comunismo em meio à qual Pio XI retrata o ensinamento sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a lei evangélica e por último da Rádiomensagem 01061941 de Pio XII sobre o direito de propriedade dos bens como direito natural estabelecido por Deus os limites de acordo com os princípios de justiça e caridade além das relações do trabalho assuntos sobre a família e a imigração Com isso na encíclica Mater et Magistra encontramse respostas a certas questões cogitadas pelo personalismo como a do dever da Igreja em restabelecer o trabalho missionário do cristianismo120 a da preocupação com a dualidade do ser integral a da missão de elevar as almas e ao mesmo tempo 119 A encíclica foi publicada em 15 de julho de 1961 a data foi modificada para coincidir com a da Rerum Novarum comemorando seu septuagésimo ano Cf Camacho 1995 p 186 Cf Ildefonso CAMACHO Doutrina Social da Igreja abordagem histórica Trad JA Ceschin São Paulo Edições Loyola 1995 120 Veja Mounier 1972 capítulos Agonia do cristianismo Breve tratado do catolicismo inconstante Responsabilidades do pensamento cristão e a Finada cristandade 196 de se preocupar com a existência cotidiana da pessoa da liberdade e da responsabilidade Lembra Mounier 1962 tIII p694 Não temos que trazer o espiritual ao temporal ele já aí está nossa tarefa é de aí o descobrir e de fazê lo aí viver propriamente de comungar com ele O temporal todo inteiro é o sacramento de Deus A encíclica termina com um apelo um pedido para que todos colaborem no estudo na ação no compromisso para que se realize uma ordem social onde haja o amor a verdade a justiça e a liberdade De Sanctis1972 p224 As temáticas de Mounier também foram acolhidas na Encíclica do Papa João XXIII Pacem in Terris 11041963 sobre a paz entre todos os povos fundamentada na verdade na justiça no amor e na liberdade a todos os homens de boa vontade De uma maneira mais direta no curto período de dois anos que a separa da Mater et Magistra esta encíclica vai de encontro à realidade política uma opção a favor das democracias contando com um apoio importante da Declaração Universal dos Direitos Humanos que fora aprovada em dezembro de 1948 Seguem alguns parágrafos o que fora tão afirmado por Mounier agora presente nesta encíclica Como exemplo a I parte Ordem entre os seres humanos Todo ser humano é pessoa sujeito de direitos e deveres 9 Em uma convivência humana bem constituída e eficiente é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa isto é natureza dotada de inteligência e vontade livre Por essa razão possui em si mesmo direitos e deveres que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza Tratase por conseguinte de direitos e deveres universais invioláveis e inalienáveis Documentos de João XXIII 1998 p324 Sobre o Direito à existência e a um digno padrão de vida Parte I Direitos 11 o ser humano tem direito à existência à integridade física aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida tais são especialmente o alimento o vestuário a moradia o repouso a assistência sanitária os serviços sociais indispensáveis Seguese daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença de invalidez de viuvez de velhice de desemprego forçado e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes de sua vontade Ibid p324 325 197 No 13 Parte I Direitos Direitos que se referem aos valores morais e culturais lemos Deriva também da natureza humana o direito de participar dos bens da cultura e portanto o direito a uma instrução de base e a uma formação técnica e profissional conforme ao grau de desenvolvimento cultural da respectiva coletividade É preciso esforçarse por garantir àqueles cuja capacidade o permita o acesso aos estudos superiores de sorte que na medida do possível subam na vida social a cargos e responsabilidades adequados ao próprio talento e à perícia adquirida Documentos de João XXIII 1998 p 325 Como último exemplo citamos o 138 parte 4 Relações entre os seres humanos e as comunidades políticas com a comunidade mundial O bem comum universal e os direitos da pessoa humana Como o bem comum de cada comunidade política assim também o bem comum universal não pode ser determinado senão tendo em conta a pessoa humana Por isso com maior razão devem os poderes públicos da comunidade mundial considerar objetivo fundamental o reconhecimento o respeito a tutela e a promoção dos diretos da pessoa humana com ação direta quando for o caso ou criando no plano mundial condições em que se torne mais viável aos poderes públicos de cada comunidade política exercer as próprias funções específicas Ibid p363 364 Já no Concílio do Vaticano II 19591965121 basta ler algumas Declarações e Decretos para perceber certos reclamos de Mounier antes rechaçados agora aceitos com louvor e celebrados pela Igreja Como exemplo na Constituição pastoral Gaudium et Spes promulgada em 7 de dezembro de 1965 a Igreja busca interpretar os problemas do mundo122 121 O Papa João XXIII anuncia em 25 de janeiro de 1959 a decisão de convocar um novo concílio geral para toda a Igreja e um sínodo diocesano para a Cidade de Roma Esta dupla celebração consistiria de maneira feliz uma condução à atualização do Código do Direito Canônico A data fixada para o início do concílio foi 11 de outubro de 1962 e a celebração final com a leitura das Mensagens para a humanidade data de 8 de dezembro de 1965 Bom lembrar que João XXIII falece em 3 de julho de 1963 Então foi eleito o papa Paulo VI em 21 de junho de 1963 que deu continuidade ao concílio Cf Alberigo 2006 p17 122 Constituíram temas abordados na referida Constituição Primeira parte Cap I A dignidade da pessoa humana Cap II A comunidade humana Cap III A atividade humana no mundo Cap IV O papel da Igreja no mundo contemporâneo Segunda parte Cap I A promoção da dignidade do matrimônio e da família Cap II A conveniente promoção do progresso cultural na seção 1 Situação da cultura no mundo atual seção 2 Alguns princípios para conveniente promoção da cultura seção 3 Alguns deveres mais urgentes dos cristãos com relação à cultura Cap III A vida econômicosocial seção 1 O desenvolvimento econômico seção 2 Alguns princípios diretores de toda a vida econômico social Cap IV A vida da comunidade Política Cap V Promoção da paz e da comunidade 198 2 Novidade do póspersonalismo Mounier no prefácio do Manifeste au service du personnalisme escrito em outubro de 1936 pede desculpas aos leitores pelo uso da palavra Manifesto e os previne contra os perigos do personalismo 1961 tI p481 Alega que este título dado a suas primeiras pesquisas fez alguns acreditarem numa pretensão deslocada e outros críticos num novo conformismo Mas no decorrer de quatro anos de movimento isso fora vencido Então uma chama viva um compromisso impregnava a cada dia os colaboradores do movimento de uma forma independente pois estavam sempre preocupados com a situação histórica com a historicidade humana com a afirmação da pessoa e o bem comum Afirma então que se poderia chamar de personalista toda doutrina que atendesse ao primado da pessoa sobre as necessidades materiais e coletivas Mas previu e advertiu que o personalismo podia esconder sob uma designação coletiva o comodismo de muitas doutrinas Daí as muitas denúncias de Mounier sobre a ambiguidade e a estagnação que parasitariam a fórmula personalista através do individualismo e do totalitarismo Jamais o caminho assumido por ele seria linear estava adiante dos ideais fascistas comunistas e da burguesia decadente pois além de um acordo sobre as condições elementares físicas e metafísicas o personalismo era o necessário testemunho de convergência de vontades ao serviço das quais se colocava para que incidisse com eficácia na história em vista de uma civilização dedicada à pessoa humana Em 1949 no último trimestre foi publicado O Personalismo cerca de três meses antes da morte do autor No final do livro Mounier sempre aberto internacional seção 1 Evitar a guerra seção 2 Construção da comunidade internacional Cf De Sanctis 1972 p295438 Em uma citação Alino Lorenzon indica Mounier é considerado um dos precursores leigos do Concílio do Vaticano II Entre as muitas pessoas que o afirmam podemos lembrar do Padre Chenu o Padre Ganne e o Padre M Vincent que apresentou em 1977 na Universidade Católica de Louvaina uma tese de doutorado em Teologia tendo por título As orientações personalistas da Gaudium et Spes O padre Chenu sublinha a importância de Mounier sobretudo para as relações com os não cristãos a abertura da Igreja para o mundo o acontecimento como sinal dos tempos e a laicidade como presença atuante dos cristãos no mundo Lorenzon 1996 p120 199 ao diálogo expressa seu maior desejo que a palavra personalismo seja um dia esquecida As posições esboçadas nestas páginas são discutíveis e estão sujeitas a revisões Estas têm a liberdade de não terem sido pensadas na aplicação de ideologias recebidas mas foram descobertas progressivamente com a condição do homem do nosso tempo Todo personalista só pode desejar que elas acompanhem o progresso dessa descoberta e que a palavra personalismo seja um dia esquecida porque não haverá mais a necessidade de atrair as atenções sobre aquilo que deveria ser a própria banalidade do homem Mounier 1950 p133 O personalismo foi sem dúvidas um movimento que em determinada época de 1932 a 1950 avançou à frente lançandose a favor dos direitos humanos inalienáveis na busca por um despertar diante das desordens esta belecidas Mounier até seus últimos dias conseguiu agregar valores e sua vida tornouse um marco no registro histórico em defesa da pessoa humana Balduíno Antonio Andreola 2000 p16 na Cartaprefácio a Paulo Freire relata a conversa emocionante com Paul Ricoeur quando fora vizinho dele em 1983 durante o seu estágio de um mês na Biblioteca Mounier em ChâtenayMalabry próxima de Paris Falando de Mounier e de seu falecimento Ricoeur lhe disse O lado mais cruel da morte é que a gente faz perguntas ao amigo e ele não responde mais Andreola 2000 p16 escreve na sequência Lembro que a emoção lhe embargou a voz e ele ficou olhando longamente para o chão em silêncio Impressionoume constatar que ele estava repetindo trinta e três anos depois o que escrevera em 1950 para o número especial da revista Esprit dedicado à memória de Mounier Nesta ocasião escrevia Paul Ricoeur 1968 p135 Nosso amigo Emmanuel Mounier não mais responderá às nossas perguntas uma das crueldades da morte é mudar radicalmente o sentido de uma obra literária que ainda se constrói não só ela não mais continuará como também é subtraída a esse movimento de intercâmbio de interrogações e respostas que situava esse autor entre os vivos Tornase para sempre obra escrita e apenas escrita consumase a ruptura com seu autor cuja obra entra doravante no campo da única história possível a dos leitores a dos homens vivos que ela alimenta Em certo sentido uma obra atinge a verdade da sua existência literária quando morre seu autor toda publicação toda edição inaugura a 200 impiedosa relação dos homens vivos com o livro de um homem virtualmente morto Os vivos menos preparados a participar de tal relação são sem dúvida aqueles que conheceram e amaram o homem aquele que viveu e cada leitura renova neles e consagra de certo modo a morte do amigo Logo em seguida Ricoeur reitera que não foi capaz de reler os livros de Mounier como deveriam ser lidos como se fossem livros de um morto Tentava portanto passar da leitura para o diálogo interrompido o diálogo impossível que se tornava mais cruel a cada leitura No campo da história possível a dos leitores retomamse as obras de Mounier com o intuito de colher seus pensamentos e perscrutar as possibili dades destes para o aquiagora pois a humanidade ainda está carente de diálogos compromissados uma vez que o homem continua espoliado maltratado em suas dimensões espiritual e material Apenas um exemplo Em 05092008 Jacques Diouf Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação FAO ao celebrar o centenário de nascimento de Josué de Castro refez o pedido deste quanto à ações mais profundas de dimensão política e social com relação à Fome no Brasil e no Mundo Diouf 2008 CONSEA assim se pronunciou só em 2006 o mundo gastou 1 trilhão e 200 bilhões de dólares em armas Enquanto isso temos dificuldade em conseguir os 30 bilhões de dólares anuais que permitiriam relançar a produção agrícola alimentar os 826 milhões de famintos no mundo e assegurar a segurança alimentar mundial Nos dias 17 e 18122009 em Roma Diouf anunciou que a humanidade chegou a uma terrível marca um bilhão de pessoas estão desnutridas em nosso planeta A cada seis segundos uma criança morre de fome Cf Documento FAO Hannah Arendt fornece uma formulação reforçadora da atitude diante da desordem e inapetência política Já foi referido anteriormente o thaumázein Cf acima p55 o espanto necessário ao filósofo Hannah Arendt retoma de Platão o termo doxadzéin Este possui um significado contrário ao thaumázein ou seja pertence à esfera da opinião doxa na qual o homem nega o páthos e dele foge recusandose conhecer a novidade que o espanto confere provocando a busca do conhecimento O espanto advém do novo do que a novidade traz consigo No universo da filosofia política Arendt fala do agir 201 tendo por base duas palavras gregas archein começar conduzir governar e prattein prosseguir ir até o fim Correspondentes a estas palavras temse as palavras latinas agere por em movimento e gerere continuação dos atos e eventos históricos Para ambas as palavras o initium dáse com o nascimento com a novidade A natalidade e não a mortalidade deveria ser a categoria central do pensamento político Falase neste ponto da natividade da criança que vem ao mundo ou que deveria vir Arendt 2009a p190 cita Agostino Initium ergo ut esset creatus est homo ante quem nullus fuit123 Não se trata do início de alguma coisa do mundo mas de alguém que é tratase da pessoa com as estruturas do universo pessoal Eis aqui portanto uma proposta que acompanha Mounier pois a pessoa não pode ser sistematizada moldada traduzida completamente em conceitos quaisquer que sejam Por isso Mounier relutava e via na pessoa a novidade que chega ao mundo e traz em seu ser o mistério o não inventariável o milagre Cf acima CapII Para Arendt 2009a p191 o novo sempre acontece à revelia da força esmagadora das leis estatísticas e da probabilidade que para fins práticos cotidianos equivale à certeza assim o novo sempre surge sob o disfarce do milagre pelo fato de que ele é o inesperado o singular Portanto cada nascimento vindo ao mundo é o singularmente novo Diante de sistemas totalitários talvez seja um pleonasmo Arendt aponta que a necessidade do terror nasce do medo de que a cada nascimento humano a cada milagre um novo começo se erga e faça ouvir sua voz no mundo Eis o problema para o sistema pois este detesta o mistério o não inventariável a novidade Repugna a incerteza adora o estável o projeto o planejamento e a fabricação do futuro que se assenta numa plataforma rígida engessada na totalidade sistêmica São frutos de sua história o nazismo o fascismo o estalinismo um Admirável mundo novo124 que não suporta a novidade Jorge Larrosa 1998 p73 em um artigo intitulado O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro concorda que a criança é algo 123 Portanto o homem foi criado para que houvesse um começo e antes dele ninguém existia 124 Título da conhecida obra de Aldous Huxley de 1932 é possível não lembrar também de 1984 de George Orwell 1949 202 absolutamente novo que dissolve a solidez do mundo e suspende a certeza que temos de nós mesmos Não é o começo de um processo que se antecipa mas um verdadeiro início Não se trata de relação de continuidade conosco e com nosso mundo para que se converta em um de nós mas do instante da absoluta descontinuidade da possibilidade enigmática de que algo que não sabemos e que não nos pertence inaugure um novo início Larrosa 1998 p73 Dussel por sua vez sustenta que quando a criança vem ao mundo no calor da proximidade originária a proximidade primeira a imediatez anterior a toda imediatez ocorre com o mamar Boca e mamilo formam a proximidade que alimenta acalenta protege As mãos da criança que tocam a mãe ainda não brincam e não trabalham A mesma boca que suga não lançou discursos insultos ou bênçãos não mordeu a quem odeia não beijou sua amada ou amado É imediatez anterior a toda distância a toda cultura a todo trabalho é a proximidade anterior à econômica é já a erótica a pedagógica e a política Toda proximidade do mamar é escatológica projetase no futuro como no passado ancestral chama como o fim e a origem Contudo é somente o começo pessoal singular de cada um Dussel 1977 p24 Na imediatez do filho para com a mãe a criança também se encontra em um tempo histórico numa cultura na qual como pessoa deverá se desenvolver De um nível de reflexão proximidade para um outro momento metafísico Dussel menciona o momento político uma proximidade que não é mais de mãefilho mas relação irmãoirmão ou política125 A palavra política é para ele ampla e não restrita Não se trata somente da ação do político mas de toda ação humana social prática É responsabilidade de todos tanto o governante como o governado o nível internacional nacional de grupos ou classes sociais e seus modos de produção etc Ibid p77 Que não se promova portanto o fratricídio ao eliminar a novidade Enquanto situação metafísica que não é ontologia e exige a práxis revolucionária da libertação126 Dussel elucida um outro momento a situação pedagógica 125 Sobre o assunto veja Dussel 1977 p22112 os seis níveis de reflexão proximidade totalidade exterioridade alienação e libertação Quatro situações metafísicas política erótica pedagógica e antifetichista 126 Veja Dussel 1977 p5455 203 como proximidade paifilhos mestrediscípulo onde converge a política A situação pedagógica ocupase da educação da criança do novo e deve preocuparse para não promover o filicídio mas libertar respeitar sua novidade e exterioridade Arendt alerta ainda os adultos sobre a criança a criança só é nova em relação a um mundo que existia antes dela que continuará após sua morte e no qual transcorrerá sua vida 2009b p235 Por isso a criança recém chegada em estado de viraser é de inteira responsabilidade de todos os homens Quanto à sua educação são precisas mudanças urgentes Exatamente em beneficio daquilo que é novo e revolucionário em cada criança é que a educação precisa ser conservadora ela deve preservar essa novidade e introduzila como algo novo em um mundo velho que por mais revolucionário que possa ser em suas ações é sempre do ponto de vista da geração seguinte obsoleto e rente à destruição Arendt 2009b p243 De uma maneira geral a essência da educação é a natalidade o fato de que constantemente nascem seres humanos no mundo Ibid p223 Isso significa que a todo o momento devese estar aberto ao novo quer dizer o ser humano está aberto ao novo mas eis aí a banalidade humana ainda em discussão Em se pensando em educação no sentido escolar não se estaria reduzindo a novidade da infância às condições no sentido de que a reconduz e a torna dedutível do que já existia Larrosa 1998 p76 Larrosa utiliza a propósito uma expressão intrigante e provocadora de Juan Mariena que retrata a revolução do novo quando um ser recémchegado desequilibra o sistema envelhecido e surge então um pedagogo que se chamava Herodes Ibid p77 O rosto de Herodes não se deixa ver apenas nos sistemas totalitários do século passado Ele pode perfeitamente ter muitas outras faces como a da competitividade do mercado da economia dentre outras Não implica necessariamente a destruição física da novidade mas sua conversão em instrumento para a produção totalitária pragmática administrada de um admirável mundo novo Escreve Larrosa 204 Todas as formas de totalitarismo todos os rostos de Herodes têm uma coisa em comum afogar o enigma ontológico do novo que vem ao mundo ocultar a inquietude que todo nascimento traz eliminar a incerteza de um porvir aberto e indefinido submeter a alteridade da infância à lógica implacável de nosso mundo converter as crianças em uma projeção de nossos desejos de nossas ideias e de nossos projetos Larrosa p7879 Daí concordarse com Severino para quem o pensamento de Mounier continua atual e pode contribuir de forma significativa para a demanda de uma nova civilização Lembra ele que as razões pelas quais Mounier pleiteava na primeira metade do século XX um novo renascimento continuam presentes no contexto da sociedade contemporânea em que pesem as mudanças em algumas de suas configurações A pretensa nova ordem mundial continua sendo uma desordem estabelecida 2007 p26 Com efeito de Attilio Danese 2007 p31 constatase que as diferenças são poucas quando se tenta relacionar o período dos anos trinta do século passado e o início do terceiro milênio após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 11 de março de 2004 e 07 de julho de 2005 talvez o mundo nunca tenha sido tão semelhante e próximo às crises da civilização econômica de 1929 que geraram a Segunda Guerra Mundial127 Há em relação à pessoa o abandono a privação e desrespeito que atraem e chamam a atenção sobre o que deveria ser a própria banalidade do homem Estando o homem de hoje ainda distante de se livrar do banal em sentido contrário é conveniente recorrer à história ou seja voltar ao que passou para coletar e resgatar as esperanças do passado em vista do presentefuturo de uma distante ainda desconhecida comunidade global que precisa ainda ser dialogada Ricoeur em um ensaio considerado por ele próprio como provocador publicado na revista Esprit de janeiro de 1983 arrisca a seguinte fórmula 127 11092001 Quatro aviões de passageiros foram sequestrados e tornaramse armas de ataques contra certos alvos nos EUA Dois aviões foram lançados contra o Word Trade Center outro colidiu contra o Pentágono e o quarto que atingiria o Capitólio destroços deste foram encontrados na Pensilvânia Morreram no ataque 3234 pessoas e mais de 6291 ficaram feridas 11032004 Ataques ocorridos em Madrid Espanha Dez bombas explodem nas estações e em um veículo da rede ferroviária Morreram 191 pessoas e outras 1700 ficaram feridas 07072005 Uma série de explosões atingiu o metrô de Londres e um ônibus no centro Morreram 52 pessoas e 700 ficaram feridas 205 Morre o personalismo volta a pessoa Isso se deve diz ele à preocupação em compreender as reservas e às vezes a repugnância das gerações mais novas do que a minha em usar o termo personalismo mesmo preservando a fidelidade crítica à obra de Emmanuel Mounier Ricoeur1996 p155 Ricoeur reconhece que o personalismo se embrenhou por uma constelação de ismos melhor articulados conceitualmente mas que se tornaram fantasmas conceituais das gerações mais novas Considera que o personalismo assim como as outras correntes dessa constelação sentiram o impacto de uma nova estrela o estruturalismo que brilhou nos anos sessenta Além disso com a morte de Mounier o personalismo perdia sua força e com o advento dos estruturalismos que pensavam com a ideia de sistema deixavase para trás a ideia de um tempo cultural e filosófico tratado por Mounier Mas o que parece reprovação possui um conteúdo novo diz Ricoeur por isso que morra o personalismo e volte a pessoa O conteúdo novo encontrase em um outro ensaio sobre o personalismo Abordagens da pessoa 1990 Ricoeur 1996 p163 afirma que a pessoa era e ainda hoje é o termo mais apropriado para cristalizar pesquisas Dessa forma pergunta Como falar da pessoa sem passar pelo personalismo Diante dessa interrogação desenvolve sua tese eximindose das questões políticas econômicas e sociais da ideia de pessoa direcionando se para o problema referente à defesa dos direitos humanos e concentrando se no argumento filosófico Mas para Ricoeur se se volta à pessoa é porque esta palavra continua sendo o melhor candidato para sustentar os combates jurídicos políticos econômicos e sociais ao passo que outros conceitos como o de sujeito consciência e eu não se prestariam tão bem a este papel Consciência Como se crê ainda na ilusão de transparência que se liga a esse termo depois de Freud e da psicanálise Sujeito Como se nutriria ainda a ilusão de uma fundação última nalgum sujeito transcendental depois da crítica da ideologia de Frankfurt O eu Quem não sente a impotência do pensamento para sair do solipsismo teórico a não ser que ele parta como em Emmanuel Lévinas do rosto do outro eventualmente numa ética sem 206 ontologia Prefiro dizer pessoa em vez de consciência sujeito eu Ricoeur 1996 p158128 Concorde assim com Mounier Paul Ricoeur vê a pessoa como atitude compromisso e convicção Diante das pesquisas concernentes à linguagem à ação e à narrativa propõe um prolongamento sobre a ideia de pessoa comparável com o que fez Mounier em seu Tratado do caráter Acredita pois que pode contribuir na constituição de uma fenomenologia hermenêutica da pessoa Para isso formula um plano que se divide em quatro partes a linguagem o homem falante a ação o homem que age e sofre a narrativa o homem narrador e a vida ética o homem responsável Começando pelo homem responsável fará uso de uma estrutura ternária Entende por esta expressão que se se quiser distinguir a ética da moral esta última se referirá à ordem dos imperativos às normas e proibições Então descobrese uma ética mais radical do ethos suscetível de fornecer um fio condutor na exploração das outras camadas da constituição da pessoa Ricoeur 1996 p164 Por ethos Ricoeur compreende a aspiração a uma vida realizada com e para os outros em instituições justas Três tópicos importantes para a constituição da ética da pessoa O primeiro tópico aspiração a uma vida realizada traz em sua raiz uma ética anterior a todo imperativo um elemento ético desejado que é a noção de estima de si não se tratando de redução a um eu aquele centrado sobre si mesmo mas do sujeito responsável aquele que age intencionalmente estimando a si mesmo jamais egocêntrico sendo capaz de modificar a ordem das intenções e acontecimentos do mundo Em relação ao segundo tópico com e para os outros Ricoeur sugere a palavra solicitude que é o movimento de si em direção ao outro interpelação e proximidade eunomeiodosoutros em relação aos outros e os outros em relação a mim Mounier 1961 tII p469 Uma exigência ética profunda de reciprocidade Um outro semelhante a mim este é o voto da ética no que diz respeito à relação entre a estima de si e a solicitude Ricoeur 1996 p165 É pela amizade que a similitude e o reconhecimento se aproximam da igualdade 128 Artigo intitulado Morre o personalismo volta a pessoa publicado na revista Esprit em janeiro 1983 quando do quinquagésimo aniversário da revista 207 Mas se a solicitude for marcada por forte desigualdade inicial a capacidade de reconhecimento terá o trabalho de restabelecer a solicitude Como exemplo a relação do mestre com o aluno na qual a superioridade intelectual do primeiro se distingue pela capacidade de reconhecimento de superioridade e que se iguala na relação de instrução ou de ensino Ao contrário quando a solicitude parte do mais forte para o mais fraco como na compaixão é ainda a recipro cidade da troca que faz o forte receber do fraco o reconhecimento alma secreta da compaixão do forte É então possível afirmar que a reciprocidade vista na amizade é a essência oculta das formas desiguais da solicitude Quanto ao terceiro tópico as pessoas pretendem viver em instituições justas Ao falar de instituição introduzse a pessoa na relação com o outro agora fora do contexto de uma amizade mas num espaço em que cada pessoa deve viver uma distribuição justa Ricoeur menciona então a justiça distri butiva não se trata somente de bens e mercadorias mas de direitos e deveres responsabilidades vantagens e desvantagens Aí deparase com um grande problema ético o outro está face a face mas não tem rosto para a insti tuição Esta categoria não pertence digamos ao mundo man pois cada um é pessoa distinta Mas cada um se relaciona com o outro através da instituição De Aristóteles passando pelos medievais Ricoeur desenvolve a consideração desta forma mais notável de justiça Sua caminhada chega até a obra de John Rawls Uma teoria da justiça129 Esta teoria ofereceria o melhor modelo para mediar as estruturas de distribuição na busca de uma proporcionalidade digna de se chamar equitativa Ricoeur aproveita uma via que Rawls sugere diferentemente do utilitarismo anglosaxão segundo a qual 129 John Bordley Rawls 19212002 ficou conhecido como o Rousseau de Harvard sendo considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos da filosofia política e moral Sua obra prima A theory of Justice 1971 foi traduzida para o alemão 1975 para o francês 1987 e depois para 25 países tornandose o maior bestseller filosófico das últimas décadas Constituiuse de vinte anos de trabalho investigativo e mais 30 anos de revisão devido às interlocuções com muitos estudiosos Proferiu várias palestras conferências e debates com os maiores especialistas de diversas áreas interdisciplinares Só quanto a Teoria da Justiça várias pessoas inspiradas por Rawls receberam mais tarde o Prêmio Nobel como os economistas Amartya Sem James Tobin John Forbes Nash Jr John Charles Harsanyi Kenneth Joseph Arrow dentre outros Sua obra influência trabalhos de filosofia política através das contribuições das ciências jurídicas Herbert Lionel Adolphus Hart Ronald Dworkin Thomas Nagel sociais Brian Barry Judith Nisse Shklar Robert Alan Dahl do comportamento Lawrence Kohlberg e da economia Em relação próxima com a filosofia moral foi reintroduzida no pensamento do utilitarismo britânico Cf Nythamar de OLIVEIRA Rawls Rio de janeiro Jorge Zahar Ed 2003 208 ao invés da justiça buscar vantagem máxima para maior número deve nas repartições desiguais definirse pela maximização da parte mais fraca o que mostra uma preocupação com o mais desfavorecido Isso equivale à busca do reconhecimento no plano da amizade e das relações interpessoais Lógico que os envolvidos neste caso se encontram numa relação distante de parecer com uma relação entre amigos mas a grandeza ética de cada um é indiscernível da grandeza ética da justiça segundo uma fórmula romana bem conhecida atribuir a cada um o que lhe é devido Ricoeur 1996 p167 Ao lançar a tríade estima de si solicitude e instituições justas Ricoeur diz complementar a duplicidade dialética entre a pessoa e a comunidade tratada por Mounier na revolução personalista e comunitária pois segundo ele aqui se distinguem as relações interpessoais que têm por bandeira a amizade das instituições que trazem em seu bojo a justiça Acredita ser isto benéfico para o personalismo pois não exclui a amizade mas sim distingue claramente as relações interpessoais e institucionais abrindo precedente para a justiça para a dimensão política do ethos No mesmo sentido firmase a ideia comunitária pois o outro se funde na amizade e na justiça e ao mesmo tempo não as separamos na medida em que pertence à ideia de ethos abarcar numa única fórmula bem articulada o cuidar de si o cuidar de outrem e o cuidar da instituição Ibid p168 Pensando no aspecto da linguagem Ricoeur está convencido de que uma retomada contemporânea da ideia de pessoa pode tirar muito proveito do chamado linguistic turn na filosofia Percebe que a semântica pode oferecer um primeiro esboço da pessoa enquanto singularidade ao passo que a identi ficação permitirá destinguir uma pessoa da outra Já na pragmática mais do que na semântica é que a contribuição linguística para a filosofia da pessoa é mais decisiva Entendo por pragmática o estudo da linguagem em situações de discurso em que o significado de uma proposição depende do contexto de interlocução Ibid p170 Neste contexto o eu e o tu envolvemse em um processo de interpelação e interlocução em que a linguagem garante algo como eu prometo que se referirá ao compromisso engagement muito 209 bem sustentado nos atos do discurso consigo e consequentemente com o outro130 É claro que a pessoa ao cumprir sua promessa preserva em si mesma sua identidade ou seja a manutenção da estima de si Em outros termos a promessa é também uma obrigação e nisso preservarseá a instituição da linguagem através de uma estrutura fiduciária que estará envolta de confiança Por outro lado a linguagem ultrapassará a instituição o que a torna uma distribuidora da palavra Portanto a promessa é o resultado da tríade linguística locução interlocução e linguagem junto com a tríade ética estima de si solicitude e instituições justas Quanto à ação Ricoeur preocupase com o agente da ação no sentido das proposições que se relacionam com as ações humanas A investigação semântica responderá à questão quê Outro campo de investigação é o da motivação da ação por quê Uma ação é intencional na medida em que responde através da razão Outra questão é a da pessoa que se identifica no campo da ação com o problema quem Quem fez o quê Por quê Sobre o quem Ricoeur recorre a dois componentes éticos da estima de si a capacidade de agir e a capacidade de produzir mudanças eficazes no curso das coisas uma interação uma práxis Como terceiro componente os aferidores de excelência são os preceitos as normas as técnicas que definem o ethos da ação cabendo às instituições sentido de teleologia reguladora a aferição das ações Como resultado final os componentes da correlação teoria da ação e teoria da ética unemse totalmente num ritmo do cuidado e do sucesso Já o homem narrador como mediador intercalase entre o nível práxis e ético ternário Ricoeur aponta um problema da ordem narrativa ligada ao tempo referindose à constituição da pessoa ou seja ao fato de que a pessoa 130 Importante destacar uma ideia somente quanto à interpelação da tese de Enrique Domingos Dussel resultado de um seminário no México ocorrido em março de 1991 em que ele encontrou com KarlOtto Apel e a partir desse encontro escreveu A razão do outro A interpelação enquanto atodefala Dussel partindo do pensamento de Lévinas vê no Outro Autrui a fonte de qualquer discurso ético possível a partir da exterioridade ou seja da irrupção do Outro no caso daquele que clama por justiça que interpela Afirma Dussel que a linguística neste momento é a mediação o encontro de caráter corpóreo face a face Lévinas na proximidade O interpelar atodefala speech act possui uma exigência 210 existe sob o regime de uma vida do nascimento até a morte Em termos filosóficos encontrase na esfera da identidade precisamente quem A identidade é compreendida por ele sob duas formas A mesmidade identidade idem permanência de uma substância imutável à qual o tempo não afeta A outra é a que não pressupõe imutabilidade implica manutenção de si promessa uma identidade ipse ipseidade conceito talvez excessivo dirá Ricoeur Esta dialética das duas formas da identidade é de certo modo interna à constituição ontológica da pessoa pois estão envolvidas em perguntas interiores sobre quem sou e inevitavelmente incidem sobre o que sou É então na história contada que a dialética mesmidade e ipseidade tece a trama da vida através dos acontecimentos É a somatória das ações reunidas às narrativas dos personagens dessas ações que produz a história contada e suas identidades Para Ricoeur o conceito de identidade narrativa corresponde à estima de si pois esta se designa no tempo como fonte narrativa da vida Ela medeia e reflete é pois a filosofia da pessoa Ricoeur também encontra na solicitude alteridade uma identidade narrativa dividida de três maneiras uma unidade narrativa da vida que integra a dispersão a alteridade sendo marcada pelo acontecimento contingente e aleatório outra unidade integra cada história de vida ligada às outras histórias de vidas onde a ação e a interação formam uma única história por fim a alteridade está ligada à constituição de nossa própria identidade Por fim Ricoeur sustenta que a identidade das instituições além das pessoas individualmente ou quando em interação só pode ser narrativa Por isso ele insiste no tema das instituições precisamente quando se aplica a regra da justiça Alerta sobre os riscos de confundila e falseála em sua identidade única aquela que convém às pessoas e às comunidades ou seja o sentido da identidade narrativa aliada à dialética de mudança incorporada na promessa constante manutenção de si Sabese dos desafios da sociedade globalizada na busca por uma emergência ética em nível planetário mas notase sem sombra de dúvida a interpellare é um chamar apellare que estabelece um relacionamento o inter então é interpelar exigência e reparação Cf DUSSEL 1995 p4378 211 necessária urgência da retomada da ideia de pessoa humana pessoa entendida como novidade absoluta No desenvolver deste trabalho neste contato com as obras de Mounier quando faltam menos de três meses hoje 25122009 para completar os sessenta anos de sua morte ele se faz sentir vivo entre nós pois seus pensa mentos pulsam em potência ativa e vibram agora neste novo milênio Nós quem sabe estamos mais preparados para consagrar sua vida pois não participamos de tal relação direta com o autor infelizmente poderíamos dizer a este amigo que não foi conhecido por nós que o personalismo não poderá ainda ser esquecido pois os pressupostos que envolvem a dignidade da pessoa humana deixam ainda a desejar e carecem de seu pensamento vivo Por outro lado desejamos e fazemos eco com Ricoeur para que morra o personalismo que morra mesmo que nos sirva apenas de memória relativa a certa fase da história Mesmo em um diálogo impossível convém recordar Emmanuel Mounier com o seu testemunho combatente com seu projeto que preza a dignidade da pessoa humana a esperança os mistérios as estruturas do universo pessoal e diante disso frente a uma nova condição histórica pedir que volte a pessoa e com ela todo o mistério da novidade 212 CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma estabilidade política e a crença no progresso advinda do Século XIX avança sobre o novo século XX que se inicia mas de repente atônita a humanidade se surpreende As certezas tornamse incertezas coisas concretas passam a um relativismo valores esmaecem alteramse as rotas das crenças perante a ciência a fé e a racionalidade e dáse início a um período dos mais sombrios da História Neste ínterim ocorrem as duas Grandes Guerras Mundiais os regimes totalitários os campos de concentração holocaustos bombas atômicas e os projetos de engenharia social mais terríveis jamais vistos pela humanidade em que milhões de vidas sucumbiram Momentos de crises de dimensão econômica política social religiosa moral filosófica que reduzem o ser humano e consequentemente a humanidade ao nada É neste ambiente conturbado e hostil que aflorou e se desenvolveu na França o personalismo de Emmanuel Mounier Ele ao analisar esta crise da civilização deparouse com a crise da pessoa Assim toda a sua filosofia veio a se formar entremeio às crises e reflexões às articulações com a vida por entre os desafios dos acontecimentos dos dramas da humanidade e da cultura Junto ao movimento Esprit Mounier empreendeu uma nova filosofia diferente dos moldes acadêmicos de sua época Em contato direto com os problemas do homem o personalismo tornouse singular ao extrair do pensamento filosófico as respostas que auxiliassem o empreendimento de ações concretas Sempre compromissado com a causa humana Mounier sofreu variadas privações e censuras Passou pelo cárcere sofreu a pobreza material e apesar de muitos pesares com muita esperança sua ação personalista se expandiu Propôs debates somou vitórias denunciou as 213 construções lógicas dos moralistas doutrinários e espiritualistas que se afastavam da realidade humana Confrontou os grandes poderes sistemas totalitários capitalismo burguês a cristandade desvitalizada que camuflavam sob as vestes da ordem as desordens que se estabeleciam no seio da sociedade Enfim o personalismo pretendido por Mounier não se apresentava como e nem tinha a pretensão de ser mais uma filosofia e sim uma filosofia que despertasse as consciências adormecidas Despertas as pessoas poderiam optar pela via do compromisso do testemunho da responsabilidade o que para Mounier seria o complemento da grandeza humana que não se deixaria reduzirse às meras coisas Eis a missão acordar os homens do sono dogmático preparandoos a se engajarem numa pulsão de vida sersituado responsável por si e por outrem não aceitando o comodismo e a passividade Assim a pessoa imprimiria implicitamente na História uma ética de responsabilidade individual e comunitária uma personalização a favor da pessoa humana uma revolução que simultaneamente teria abrangências ética moral espiritual social econômica e política Devido a sua morte precoce Emmanuel Mounier não chegou a presenciar os efeitos de seu hercúleo trabalho Mal compreendido só passados alguns anos de sua morte foi reconhecido A Igreja Católica retomou seus temas nas encíclicas de João XXIII e Paulo VI Mater et Magistra Pacem in Terris Foi considerado um dos precursores leigos do Concílio Vaticano II e na Constituição da Pastoral Gaudium Spes podemse perceber em seu conteúdo as orientações personalistas Inspirou a Comunidade Europeia os Movimentos Comunidades na França Itália África Estados Unidos América Latina Inspirou sindicalismos movimentos culturais movimentos operários estudantis as Ligas Camponesas e principalmente os movimentos especializados da Ação Católica Cf acima p 123197 Os primeiros capítulos deste trabalho buscaram justamente compreender o que foi o personalismo de Emmanuel Mounier Neles perscrutouse a gênese as fontes originárias de inspiração as fundamen tações do personalismo as condições históricas de seu nascimento as estruturas fundamentais do universo pessoal os meios para se chegar à pessoa o legado do personalismo e sua atualidade Resta porém mencionar 214 o ponto de chegada ou a meta principal desta pesquisa seu objetivo específico que foi o motor deste trabalho isto é saber se o pensamento de Mounier teve alguma repercussão importante em nosso país Tratase de recuperar ou tentar recuperar algo sobre o qual as fontes existentes não são muitas além de esparsas fragmentadas e principalmente esquecidas Como disse o Prof Severino são depoimentos e testemunhos que se encontram relegados à poeira do tempo Algumas não se tornaram fontes escritas como disse Luiz Alberto Gómez de Souza ao se referir a AP Fui expurgado em 1967 e Betinho saiu no começo dos 1970 Propus a ele escrever um livro que nunca produzimos 2007 p54 Outras são como relíquias preciosas produzidas nestes momentos duros sombrios e que escaparam da destruição imposta pelo Golpe de 1964 UNE UBES saqueadas e incendiadas JUCBH saqueada Jornal Brasil Urgente invadido De todo modo estavam formuladas as perguntas teria o personalismo de Mounier penetrado em nossa cultura em algum momento Se sim de que forma chegou até nós Como se difundiu Quem foram seus propagadores Teve uma fase áurea Esta quando termina Por quê Qual a contribuição do personalismo para a cultura e a filosofia no Brasil Com o final da Segunda Guerra Mundial e com a queda do Estado Novo o Brasil entrou no processo de democratização A questão social ficou na ordem do dia idéias como as de Karl Marx JeanPaul Sartre Maurice Blondel Karl Jarpers Simone Weil e Emmanuel Mounier fermentaram debates no meio universitário que logo se estenderam a outros meios nos quais se agitava a bandeira da justiça da liberdade e da dignidade humana Foi através da Ação Católica Brasileira com a adoção do modelo especializado que a partir de 1950 os movimentos desta irão se sensibilizar com os problemas concretos nacionais Nos anos de 1956 a 1961 viveuse um clima de euforia durante o governo de Juscelino Kubitschek Programa de Metas 50 anos em 5 Época em que eram lidas as obras de Lebret Congar Maritain Calvez Rahner e Mounier Assim começava uma exigência mais profunda principalmente para os jucistas quanto ao compromisso no temporal Em 215 1956 os militantes da JUC insistiram em um engajamento na realidade concreta Já em 1957 a JUC de Pernambuco adota uma orientação mais prática de atuação nas favelas Os universitários em contato com a miséria descobrem a realidade brasileira Batismo de fogo na expressão de Mounier Foi em 1959 em Belo Horizonte que se iniciou uma nova fase da JUC em torno da Necessidade de um Ideal Histórico apresentado pelo padre Almery Bezerra inspirado em Jacques Maritain Encontrou apoio no grupo mineiro que reunia Padre Luiz Viegas Betinho Antonio Otávio Cintra Henrique Novaes Paulo Haddad Vinícius Caldeira Brant e outros Mas o Ideal Histórico não correspondeu às expectativas Numa rápida passagem pelo Brasil Frei Cardonnel em uma reunião no Rio de Janeiro da qual participavam Lima Vaz jucistas de Belo Horizonte e alguns estudantes da Universidade Católica do Rio levantou a possibilidade de se criar uma revista do gênero Esprit pois era necessário promover mudanças urgentes Frei Cardonnel foi fundamental no despertar dos militantes da ACB principalmente os jucistas Buscaram ele e Lima Vaz ambos inspirados em Mounier no existencialismo realista cristão deste uma história sem servidões e uma verdade que não se contempla mas se faz Desperto com o pensamento personalista de Emmanuel Mounier o Ideal histórico essências realizáveis passa a não responder mais às expectativas da época É neste contexto que Lima Vaz recorre à consciência histórica implicando esta o dinamismo e a afirmação da pessoa no social no mundo histórico e concreto e a relação dialética do nós Entre os anos de 1961 e 1962 a consciência política no país cresceu e se aprofundou A JUC e a UNE aliaramse nos programas de educação popular alfabetização mobilização camponesa centros populares Tendo vínculos com o pensamento político cristão de Mounier nas formulações de Lima Vaz nasce a AP com uma postura engajada e radical propondose seus militantes a uma luta sem tréguas contra a desordem estabelecida A juventude ansiando participar da vida política transpôs os muros das universidades dos colégios e se envolveu com os sindicatos com as ligas 216 camponesas promoveu greves e paralisações procurando acelerar o processo do programa de reforma agrária numa efervescência jamais vista Isso causou enormes polêmicas crises dos movimentos com a hierarquia da Igreja e com a elite da sociedade essa amedrontada e surpresa diante do novo que se descobria Algo inédito acontecia na história brasileira massas populares com o apoio de intelectuais estudantes e partidos de esquerda mobilizavam o país ao confrontar as classes dominantes Viviase o período do governo do Presidente da República João Goulart cujas bases vinham sendo corroídas por adversários civis e militares enfurecidos com seu governo Através do IBAD nasceu o IPES o qual influenciou a doutrinação dos militares e dos meios patronais que prepararam o Golpe de 1964 Surgiu o SNI e os EUA apoiaram o golpe de Estado Abremse então os porões da ditadura A AP passou a atuar na clandestinidade Muitos militantes se exilaram outros ainda estão desaparecidos até hoje e outros morreram física e psicolo gicamente Um dos mais importantes movimentos brasileiros em que houve a presença do personalismo transformouse em um pequeno grupo maltratado sem forças e sem apoio diante da repressão militar Era o fim de uma época de sonhos de compromissos com a sociedade e com o outro Entravase no período sombrio nos tempos difíceis de jardins desfeitos de primaveras interrompidas Apesar de tudo a partir de 1970 a filosofia personalista de Mounier tal brasa aparentemente apagada pelo peso da cinza espessa da opressão desordem estabelecida recebeu sobre si insistentes ventos que a reacende ram passando a ser estudada numa dimensão mais especificamente filosófica Enfim para além do legado já mencionado acreditase que Mounier continua atual Seu pensamento exigente está vivo Pode atender a nossa sociedade carente à pessoa ainda vilipendiada em sua dignidade pessoal De seu passado sua filosofia da ação em torno da pessoa é algo novo Por isso pensase ser importante retomar tal passado resgatar sua memória as esperanças vivas daquele momento para um aquiagora como fonte de reflexão inspiração e orientação É aqui de suma importância o que diz Eric Hobsbawm em a Era dos extremos O breve século XX 19141991 onde 217 avalia um fato perturbador ao dizer que a memória histórica não está viva Com efeito a destruição do passado ou melhor dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal a gerações passadas é um dos fenôme nos mais característicos e lúgubres do final do Século XX Hobsbawm 1999 p13 O diagnóstico valeria também para o início deste século XXI pois é visível uma espécie de presente contínuo sem nenhuma relação orgânica com o passado público da época em que se vive Hobsbawm lembra com razão que o ofício do historiador seria o de fazer com que a história seja lembrada Quanto ao personalismo a missão histórica está no seu próprio cerne já que a pessoa é um serhistórico Cf acima p5 a pessoa imprime a cada instante a sua presença novidade absoluta na História fidelidade histórica e no infinito história progressiva A pessoa é ser encarnado e encarnação não é exterior à História e nem ao Mistério que a transcende ela se desenvolve em plena história A encarnação não é uma data um ponto mas um foco da história do mundo sem limite no espaço e no tempo Mounier 1971 p84 Retornar ao passado significa comentar ampliar e corrigir nossas próprias memórias Somos atores dos dramas da história humana por mais insignificantes que sejam nossos papéis ela é parte de nós Hobsbawm 1999 p13 Mounier pensava que a humanidade deve ser una solidária detentora da memória pois esta se move em um tempo que tem sentido que constitui uma única história e não se pode incorrer nos erros do passado para que fatos e sentimentos da miséria humana não retornem por descuido e negligência Permitimonos evocar um exemplo ilustrativo a visita inesperada de François Mitterrand então presidente da França ao epicentro da guerra balcânica campos de Sarajevo em 28 de junho de 1992 Essa visita suscitou polêmica Seria um ato político Certamente excluíase essa possibilidade pois poderia causar incidentes internacionais As notícias correram o mundo e acreditouse que fora apenas um ato humanitário pois a mando do presidente francês foram enviados também dois aviões carregados de medicamentos Sobre este ato Eric Hobsbawm escreve que quase ninguém captou a alusão 218 exceto uns poucos historiadores profissionais e cidadãos muito idosos pois a memória histórica já não estava tão viva Hobsbawm 1993 p13 O dia 28 de junho é a data do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria Hungria que ocorreu em 1914 em Sarajevo Eis aí a ligação com a data o lugar e a evocação de uma memória que preservada vinha a público mostrar a falha precipitada por erro político e de cálculo que poucas semanas depois deste incidente produziria a Primeira Guerra Mundial Não é pois descabida a ênfase de Hobsbawm ao afirmar a necessidade viva da História Se isso fosse levado em consideração em 1989 todos os governos do planeta todos os ministérios do exterior do mundo terseiam beneficiado de um seminário sobre os acordos de paz firmados após as duas guerras mundiais que a maioria deles aparentemente havia esquecido Ibid p13 No ano de 1989 operações militares se intensificam em muitas partes da Europa Ásia e África como nunca visto embora nem todas fossem oficialmente registradas como guerras muitas vezes não era claro quem combatia quem e por que nas cada vez mais frequentes situações de colapso e desintegração nacionais essas atividades na verdade não se encaixavam em nenhuma das classifica ções clássicas de guerra internacional e civil Hobsbawm 1993 p539 Como se viu no decorrer do ano da visita de Mitterrand a guerra em Sarajevo ceifou cerca de 150 mil vidas Em se falando de memória histórica pensouse ser importante reunir dentro do possível fontes relegadas à poeira do tempo comentar ampliar e quem sabe corrigir nossas próprias memórias Estão elas articuladas com o personalismo de Emmanuel Mounier o que traz para o momento presente a memória de um tempo que não deveria ser esquecido e no qual em todo caso carece insistir para existir sua novidade 219 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Obras de Emmanuel Mounier Ouevres Éditions du Seuil 1961 Tome I La pensée de Charles Péguy Paris 1931 De la propriété capitatiste à la propriété humaine Paris 1934 Révolution personnaliste et communautaire Paris 1934 Manifeste au service du personnalisme Paris 1936 Anarchie et personnalisme Paris 1937 Personnalisme et christianisme Paris 1939 Les chrétiens devant le problème de la paix Paris 1939 Tome II Traité du caractère Paris 1946 Ouevres Éditions du Seuil 1962 Tome III Laffrontement chrétien Paris 1944 Introduction aux existentialismes Paris 1947 Questce que le personnalisme Paris 1947 Léveil de lAfrique noire Paris 1948 La petite peur du xxe siècle Paris 1949 Le personnalisme Paris 1949 Feu la chrétienté Paris 1950 Ouevres Éditions du Seuil 1963 Tome IV Les certitudes difficiles Paris 1951 Lespoir des désespérés Paris 1953 Mounier et sa génération Paris 1954 Communisme anarchie et personnalisme Paris Politique collection dirigee par Jacques 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La jeunesse brésilienne à lheure des décisions In Perspectives de catholicité Bruxelles v22 n4 1963 p282290 226 Escritos de Filosofia I Problemas de Fronteira 2ª ed São Paulo Edições Loyola 1998 Escritos de Filosofia III Filosofia e Cultura São Paulo Edições Loyola 1986 Escritos de Filosofia IV Introdução à Ética Filosófica I São Paulo Edições Loyola 2002 Escritos de filosofia VI Ontologia e história São Paulo Edições Loyola 2001 LORENZON ALINO Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier Ijuí Editora Unijuí 1996 Personne et communauté essai sur loeuvre dEmmanuel Mounier Paris Université de ParisX 1972 LUSTOSA Oscar de Figueiredo A Igreja Católica no BrasilRepública cem anos de compromisso 18891989 São Paulo Edições Paulinas 1991 MANIFESTO DO DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES DA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA In SOUZA LIMA Luiz Gonzaga de Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil hipóteses para uma interpretação Rio de Janeiro Editora Vozes Ltda 1979 p98107 MARITAIN 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emmanuelmounier41705012763 La Vie Nouvelle Pour Une Alternative Personnaliste et Citoyenne Movimento de educação popular na França httpwwwivnassofr 231 Libreria Editrice Vaticana httpwwwvaticanvalholyfatherpiusxilettersdocumentshfp xilett19351027Quanvisnostraithtml LInstitut Emmanuel Mounier de Catalunya httpwwwmouniercatalunyakm8net PROCURADORIA DA REPÚBLICA DE SÃO PAULO httpwwwprspmpfgovbrprdcareadeatuacaodireitoshumanosACP PERUSOSSADASpdf Revue Esprit França httpwwwespritpressefrindexphp The personalist Forum di Buffalo New York USA httpwwweconkuleuvenacbeedefaultasp The personalist Forum Southern Illinois University Carbondale USA httpwwwsiuedutpf BREVES REFLEXÕES SOBRE O PERSONALISMO EM EMMANUEL MOUNIER BRIEF REFLECTIONS ON PERSONALISM IN EMMANUEL MOUNIER Lélio Favacho Braga1 Antônio Joaquim Severino2 RESUMO Este ensaio de cunho bibliográfico e teórico traz uma breve reflexão sobre o personalismo em Emmanuel Mounier O objetivo é de buscar o sentido que as pessoas atribuem ao pensamento desse autor como um sercomooutro e a noção de comunidade como uma estrutura social mais adequada para o ser humano efetivar sua natureza relacional Das posições personalistas concluise que a liberdade e a responsabilidade são vistas como necessárias para o sujeito não ser objetificado em seu existir real considerando que a pessoa é alguém no mundo e na relação com o outro constrói sua história É da ruptura dessa relação que decorrem os contrassensos da humanidade a alienação e a miséria material do ser humano Como o personalismo não é somente uma explicação teórica da condição existencial mas também uma vontade sobre o homem nasce daí a exigência do compromisso prático com vistas a desalienar o ser humano em Mounier Palavraschave Emmanuel Mounier Personalismo Pessoa Construção Humana 1 INTRODUÇÃO O personalismo de Mounier ficou conhecido em meados do Século XX em um contexto histórico desenhado pelas consequências da crise econômica de 1929 e do processo de ascensão do nazismo em 1933 O momento conturbado da década de 30 apontava a existência de uma crise densa na sociedade da época Nesse contexto o Personalismo mounierista é apresentado na Revista Esprit fundada no ano de 1932 quando Mounier publicou seus primeiros escritos A Revista Esprit era um excelente espaço para outros estudiosos manifestarem seus posicionamentos e reflexões Foi criada para tratar das questões voltadas para a consciência e a dignidade humana frente aos impactos concretos da realidade histórica do momento O Personalismo se apresenta 1 Doutorando em Educação Área de concentração em Teorias Políticas e Culturas em Educação pela Universidade Nove de Julho UNINOVESP sob a orientação do Prof Dr Antônio Joaquim Severino Email leliofavachogmailcom 2 Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC Brasil Professor titular aposentado de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo USP Brasil ora atuando como docente colaborador Professor contratado da Universidade Nove de Julho UNINOVESP Brasil onde integra o corpo docente do Programa de PósGraduação em Educação e lidera o Grupo de Pesquisa e Estudo em Filosofia da Educação GRUPEFE Email ajsevuolcombr DOI1022478ufpb235970032017v26n132513 ORCIDhttporcidorg0000000279229021 ORCIDhttpsorcidorg0000000208559269 Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 87 comopropostadeumafilosofiadeaçãocomprometidanãosó em interpretar essa realidade mas sobretudo em transformála Mounier 1972 vê o outro como pessoa e isso significa compreender o valor absoluto do que seja o ser humano em função do qual devem ser pensados todos os fins da organizaçãopolíticaOPersonalismoexpressa significativopotencialtantocomo filosofia quanto como pedagogia política qualificandose simultaneamente como instrumento de análise dessa realidade e como roteiro de ação transformadora SEVERINO 2009 p04 Devido à presença do ser humano no mundo ele passa por transformações causadas por sua interação social a qual consiste em transformar o outro e a si mesmo 2 O PERSONALISMO DE MOUNIER De acordo com Mounier 1972 em qualquer questão é necessário distinguir os dados vis dos dados nobres em consonância com a procura de uma perspectiva maior Devese procurar a liberdade inclusive no que tange às próprias convicções quando descobertas como equivocados no transcorrer de alguma análise Em razão disso é necessário libertarse de doutrinas que direcionem o olhar do homem ainda que isso exprima uma disposição distinta em relação à antiga compreensão para continuar a ser fiel ao próprio espírito Outra perspectiva é de que uma revolução qualquer não efetiva automaticamente a resolução da crise pela qual passa a sociedade ocidental do Século XX No pensamento emancipador do filósofo isso só aconteceria se enveredasse por uma significativa e integral revisão dos valores e mudança nas estruturas sociais e nas camadas dirigentes Que o apelo utópico que se põe no horizonte para o pensamento emancipador é o de transformar criaturas naturais em pessoas e de transformar as sociedades reificadas em comunidades de cidadãos livres capazes de tomar seu destino histórico nas próprias mãos Cabe a todos aqueles que lidam com o conhecimento não construir sistemas de significantes abstratos mas de contribuir com um pensamento criativo e crítico para a leitura da opacidade social e histórica lançando esclarecimento para sua superação tendo sempre em vista a emancipação da sociedade pela emancipação das pessoas no seu interior A idéia que me parece muito forte no personalismo mounierista é a razão de ser do conhecimento o que lhe dá sua legitimação é seu intransigente compromisso com a construção da cidadania entendida como aquela qualidade de vida que permita a todos existir concretamente fruindo efetivamente de todas as condições objetivas e subjetivas que constituem a própria infra estrutura de nossa existência real SEVERINO 2009 p0405 Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 88 No ensaio intitulado O personalismo e a revolução do Século XX Mounier 1972 assevera que o personalismo teria que se desenvolver inicialmente obedecendo àsseguinteslinhasdeaçãoa Autonomia em relação aos partidos políticos todavia sem tomar para si um caráter anárquico ou apolítico Para isso seria imprescindível analisar todos os aspectos envolvidos na prática social de modo que a opção e as ações pessoais se inserissem em um processo coletivo b As atividades e os meios de concretização precisariam ter demarcados os limites de maneira rigorosa pois só afirmar os princípios não significa consistir em vigor absurdo ou mágico Afilosofiapersonalistatemumdiferencialnosentidodequeapela para o engajamento Ela engaja um engajamento Para ela o filósofo tem que ser simultaneamente profeta e pedagogo respondendo pela denúncia pelo anúncio e pelo encaminhamento de propostas de ação histórica Não endossa o silêncio dos intelectuais seja ele o silêncio da omissão ou não Cobra necessária militância intelectual não só pela análise fria e neutra mas também pela crítica e pela proposta Dos intelectuais se espera um necessário compromisso político e que tenha discernimento competente e combatente Essa fecundidade do Personalismo deriva de sua abrangência unificadora de sua capacidade de fundarse numa concepção integral da condição humana superando tanto os reducionismos como os dualismos ontológicos que sempre marcaram a filosofia SEVERINO 2009 p04 A Filosofia de Mounier entende o homem sempre preocupado com o sentido de seu próprio existir e toda a sua história mostra o esforço para desvendálo Podese dizer que em muitos aspectos o homem ainda é uma incógnita a ser descoberta A natureza nada mais nos dá nada mais entrega ao nosso conhecimento racional do que um feixe infinitamente complicado de determinações às quais não chegamos além dossistemasqueformulamosparaassegurarnossamarchaMOUNIER2004p31 Isso quer dizer que a pessoa não é apenas corpo ela é reflexão escapa a qualquer determinismo e ultrapassa as fronteiras da natureza A transcendentalidade do homem sobre a natureza na qual está originalmente inserido vem de sua capacidade distintiva de só ele conhecêla e transformála de sua exclusiva capacidade de amor de liberdade capacidade de superar o rígido determinismo que regula a natureza SEVERINO 1974 p 54 Mounier também trata das inquietações humanas na obra O Personalismo em que ele esclarece que o homem não se define porquanto só os objetos são definíveis ou seja o homem está muito distante de ser um objeto tampouco um ser que pode ser definido Nesse sentido o Personalismo mounierista é uma filosofia da pessoa livre Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 89 criadora aberta a descobertas e a mudanças Mil fotografias sobrepostas não nos dãoumhomemqueandaquepensaequequer MOUNIER 2004 p15 A tal experiência ninguém pode ser condicionado nem constrangido Aqueles mais integralmente a realizam vão atraindo outros à sua roda despertam os que dormem e assim de apelo em apelo a humanidade vaise libertando do pesado sono em que vegetava e que ainda a amortece Quem se recusa a escutar esse apelo e a comprometerse na experiência de uma vida pessoal perde o seu sentido como se perde a sensibilidade de um órgão que já não funciona MOUNIER 2004 16 Para Mounier 2004 há um dualismo na existência criadora que em determinado momento tende à despersonalização em que o ser humano se esconde dos seus impulsos criativos e dos seus desejos e em outro ao movimento de personalização buscando se realizar como pessoa em um crescimento de construção humana transformadora O homem é corpo exatamente como é espírito é integralmente corpoe éintegralmenteespíritoDosseusmaisprimáriosinstintos comer reproduzirse é capaz de passar a artes sutis a culinária a arte de amar MOUNIER 2004 p 29 Corpo e espírito estão no pensamento de Mounier formando uma das estruturas da pessoa suas existências integradas Uma experiência rica que o mundo se insere exprimese por incessante criação de situações de regras de instituições Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza Não sendo um objeto visível também não é resíduo interno qualquer substância escondida por detrás dos nossos comportamentos princípio abstrato de nossos concretos gestos se o fosse seria ainda por qualquer forma um objeto ou um fantasma de objeto É uma atividade vivida de auto criação de comunicação e de adesão que em ato como movimento de personalização alcançamos e conhecemos MOUNIER 2004 16 Monier 2004 enuncia que a interioridade e a exterioridade existem para manter o equilíbrio no plano do ter e do ser pois do contrário os laços das relações interpessoaisseriamdesfeitosoquelevariaapessoaaoestadodeangústia As relações entre a pessoa e a natureza não são pois relações de pura exteriorização mas relações dialéticas de permuta e ascensão MOUNIER 2004 p38 Com iss o reconhecese a indivisibilidade humana ou seja o ser humano é completo capaz de transcender a natureza de ir além o que causa o movimento de personalização contra as amarras que limitam o refletir emancipado Sobre isso Mounier 2004 3241 assevera Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 90 O homem é um ser natural mas é ser natural humano E exatamente o homem singularizase por uma dupla capacidade de romper com a natureza Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele pode transformar ele o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais E o que é infinitamente mais é capaz de amar A perfeição do universo pessoal encarnado não é pois a perfeição de uma ordem como pretendem todas as filosofias e todas as políticas que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo É perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente Por isso subsiste até mesmo nas suas derrotas o caminho próprio do homem está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta De acordo com o pensador o ser humano está mergulhado na natureza e é parte dela todavia está acima dela em umaparenteparadoxo Os determinismos existem mas não são absolutos Não chegam a romper o curso do destino do homem Cada um deleslhetrazumanovapromessadeliberdadeMOUNIER apud MOIX 1968 p135 Na verdade a pessoa é dona de uma dimensão que não está reduzida à matéria É só observar os espantos causados pela liberdade criadora do ser humano aos condicionamentosdeterminantes A liberdade é um movimento de um dinamismo simultâneo e essencialmente forte e frágil Por sua impetuosidade original e quase que prometéica consegue despertar e arrancar os espíritos levados e entorpecidos pelas situaçõesqueosalienamSEVERINO1983p71 Nessa liberdade por exemplo estão os elementos de uma educação que transforma o ser humano pelo fato de não alienar pois o tempo todo está sendo construída fazendo frente aos determinismos dando o aporte para o pensamento livre em relação às amarras ideológicas nocivas ao bem comum Nesse proceder o apoderamento de sua consciência acontece no grau de compreensão como sujeito histórico capaz de transformar sua realidadenaconcretudedavida Consciência e liberdade as duas grandes marcas da transcendentalidade humana É graças a elas que toma forma a personalidade humana eelastransfigurarãotoda a existência pessoal SEVERINO 1983 p 72 Convém observar que o termo apoderarse e suas derivações como apoderamento são empregados neste estudo no sentido de a criatura humana proverse de saberes para apreender entendimento e compreensão os elementos que abarcam a realidade concreta Em seu comentáriosobreopensamentodeMounierSeverinoobservaque a existência pessoal continuará sendo uma contínua e plena manifestação da bidimensionalidade do homem Um ser imanente à natureza mas simultaneamente transcendendoa SEVERINO 1983 p 72 Nesse sentido as relações interpessoais Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 91 ocorrem por meio da comunicação que é um processo facilitador das relações Isso implica o ato de se comunicar inicialmente de forma intrapessoal buscando o diálogo consigo mesmo momento necessário para mergulhar em si na tentativa de se conhecer Num segundo momento a comunicação é feita de forma interpessoal em que o diálogo com o outro promove uma experiência de universalidade ou seja expande a comunicação Quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe percome profundamente eu próprio todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros tornome também estranho a mim mesmo alienado Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar MOUNIER 2004 p46 Segundo Mounier a comunicação é uma das dimensões mais importantes para o ser humano porque é por meio dela que o homem estabelece relações consigo com os outros homens e com o ambiente experiencia a realidade com o outro e se percebe como um ser que existe a partir do outro A comunicação consiste na face da doação através da qual a generosidade dissolve a opacidade e anula a solidão da pessoa mesmo quando ela nadarecebeemtrocaMOUNIER2004p47 3 CONSTRUÇÃO HUMANA EM MOUNIER Refletir sobre a pessoa no âmbito do pensamento de Mounier implica considerar a incompletude do ser humano e que suas dimensões não se desprendem do ser inacabado que o homem é Para destacar mais particularmente essas dimensões é preciso fazer um desmembramento metodológico delas ainda que sucintamente como por exemplo a dimensão pessoal da comunicação fundamental no pensamento do referido autor para se entender o modo como sua antropologia personalista compreende a construção da humanidade no humano Vários pensadores assinalam para a debilidade da tese de que o ser humano é construtor de sentidos na concretude da vida Essa é uma das características mais marcantes da contemporaneidade porquanto consiste em reinventar a dimensão da intersubjetividade Entre elas várias aconteceram no domínio da teoria do conhecimento especificamente sobre questões referentes à linguagem Mounier desata a referida perspectiva e revertea para o campo éticopolítico assinalando as limitações e os riscos da propositura individualista Sobre o individualismo Mounier o define como Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 92 um sistema de costumes de sentimentos de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e defesa Foi uma ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX Homem abstrato sem vínculos nem comunidades naturais deus supremo no centro duma liberdade sem direção nem medida sempre pronto a olhar os outros com desconfiança cálculo ou reivindicações MOUNIER 2004 p 4445 O individualismo é uma proposta que se contrapõe a um sistema organicista que não reconhece a existência individual da pessoa e enfatiza o todo sem levar em consideração a parte É para a massa que resvala uma democracia liberal e parlamentar esquecida de que a democracia era primitivamente uma reivindicação da pessoaMOUNIER1967p108 Despersonalizadas em cada um de seus membros e além disso despersonalizada como todo a massa caracterizase por um misto singular de anarquia e de tirania pela tirania do anônimo de todas a mais vexatória porquanto mascara todas as forças essas sim autenticamente denomináveis que se cobrem da sua impessoalidade É para a massa que tende o mundo dos proletários perdidos na servidão sombria das grandes cidades dos edifícioscasernas dos conformismos políticos da máquina econômica MOUNIER 1967 p 108 Para Mounier 2004 o homem existe como construtor de sua história razão porque também pode construir sua liberdade Essa construção deve ser feita em coletividade já que o homem é aquele que consegue interrogar e responder e responsável por unir o sujeito na coletividade Ele tem a potencialidade de criar possibilidades de fazer escolhas em seu cotidiano Portanto para Mounier 2004 108 o homem de ação realizado é aquele que vive no seu íntimo esta dupla polaridade percorre agitandose o caminho que vai de um a outro combate a um tempo para asseguraraautonomiaeregularaforçadecadaumaoutro Ao conceber a pessoa como essa permanência aberta Mounier decodifica bem a condição do homem sujeito responsável pela construção da história como garantindo uma medida comum e universal que une todos os homens ao mesmo tempo em que reconhece sua encarnação empírica As estruturas mediante as quais o Personalismo descreve o universo pessoal abrangem simultaneamente o absoluto de sua transcendentalidade tanto quando o relativo da imanência instaurada por sua encarnação no mundo material Todo o pensamento de Mounier articulase em torno dessa intuição básica de natureza antropológica qual seja a da apreensão da pessoa humana que se realiza como uma unidade dialética de imanência e de transcendência SEVERINO 2009 p04 Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 93 Inferese que o Personalismo mounierista é uma Filosofia de ação por não conceber uma distância entre teoria e prática Contrariamente nosso autor defende que a teoria e a prática devem caminhar juntas Assim pensando ele dirige um novo olhar ao estudo do homem ao conceber as questões humanistas no processo de personalização da pessoa e do coletivo Mounier 2004 não direciona sua filosofia para os mais altos graus do intelecto já que envereda seu pensamento na concretude da vida para a vida real e emancipada Refletir sobre a pessoa em Mounier é falar da construção humana que está em um processo de ida e vinda de encontrar em si as possibilidades que a vida oferece o que implica estar aberto para isso Isso significa procurar maneiras de se encontrar de não se fechar em si mesmo buscando perspectivas de mudanças para se personalizar Mounier 2004 p17 entende que só muito lentamente é que a consciência se vai libertandodomineraldaplantaoudoanimalqueemnóspesamMOUNIER1967p 21Oserhumanonãosedesenvolve somente no plano da consciência mas em toda a sua grandeza no plano do esforço humano para humanizar a humanidade MOUNIER 1967 p 21 Sob o ponto de vista de Mounier a vida é modelada por meio das ações e das inquietudes da realidade concreta que no limite é capaz de determinar as ações humanas Nesse processo abrese a possibilidade de o ser humano passar a ser o arquiteto de sua história ao determinar suas ações de forma consciente e livre de amarras ideológicas massacrantes no entrelaçar da vida como a invasão das propagandas midiáticas de cunho econômico ou político entre outros que levam sorrateiramente a mente humana à acomodação e ao consumo naturalizados por ideologias nocivas ao desenvolvimento de atitudes emancipadas Para Mounier a pessoa se institui por meio da e para a comunidade porquanto é fruto dela Comentando o pensamento de Mounier Moix refere A comunidade não nasce de pessoas que se apagam mas que se promovem plenamente O nós comunitário só se realiza a partir do dia em que cada um dos membros descobriu cada um dos outros como uma Pessoa e começa a tratála como tal a compreendêla como tal Impossível fundar uma comunidade esquivando se da pessoa MOIX 1968 p152 Segundo Mounier 2004 é na relação com os semelhantes que o ser humano se concretiza como pessoa ou seja a pessoa é construída na comunidade No mundo comunitário a ação é traçada na convivência com outras consciências na concretude da Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 94 vida Mounier 2004 concebe que a primeira ação da pessoa deve ser de criar com os semelhantes em comunidade onde as culturas as estruturas os sentimentos e até instituições estejam marcados pela sua natureza de pessoas sociedade de que apenas começamos a entrever e a esboçar os costumes Fundase numa série de atos originais que não têm equivalente em mais parte nenhuma no universo MOUNIER 2004 p46 47 1º Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si própria de se desapossar de se descentrar para se tornar disponível aos outros Só liberta o mundo e os homens aquele que primeiramente se libertou a si próprio 2º Compreender Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar numa pessoa escolhida e igual a mim não conhecer os outros apenas com um conhecimento geral mas captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser eu e de ser eu 3º Tomar sobre nós assumir o destino os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne 4º Dar A força viva do ímpeto pessoal não está nem na reivindicação nem na luta de morte mas na generosidade e na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa A economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo 5º Ser fiel A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento à morte As dedicações pessoais amor amizade só podem ser perfeitas na continuidade Essa continuidade não é uma exibição uma repetição uniforme mas um contínuo renovamento A fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora MOUNIER 2004 p4748 4 REFLEXÕES FINAIS De acordo com o que foi abordado sobre o Personalismo em Mounier 2004 intuise que o autor entende que as ações originais possibilitam o ressurgimento da comunicação no convívio das pessoas Mas aparecem entraves que afastam a possibilidade de que haja essa comunicação É a avidez de presença mas o mundo inteiro de pessoas está maciçamente ausente MOUNIER 2004 p50 Os entraves abrem possibilidades para o isolamento que em muitos casos resulta em um ser humano que ainda que esteja em meio a relações elas não o fazem ser e muito menos crescer A comunicação é mais rara do que a felicidade mais frágil do que a beleza Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas como podemos pois esperála entre um grande número MOUNIER 2004 p50 De acordo com os aspectos destacados sobre esse rico pensamento entendese que a comunicação interpessoal é uma experiência fundamental do homem como Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 95 espécie Sob esse ponto de vista as pessoas e a comunidade não se separam As pessoas se compreendem por meio da comunidade que está acima da sociedade Pensar com Mounier 2004 trouxe a percepção de que os contrassensos na humanidade são resultados da alienação do ser humano De acordo com esse pensador 2004 a miséria material decorre da alienação humana o que se configura como desalienação do indivíduo Com base nesse pressuposto o personalismo mounierista se aproxima das posições de fundo do marxismo e se contrapõe ao capitalismo quando separa a pessoa da máquina Nesse sentido a existência humana vale mais do que a ideia capitalista de imprescindibilidade do labor a despeito do trabalho consistir em satisfação e efetivação da labuta Considerando essas premissas sinteticamente apresentadas é possível vislumbrar a relevância que o personalismo atribui à educação para construir as pessoas e a civilização humana Isso se justifica porque só será possível fundar a comunidade com pessoas solidamente constituídas porquanto o amadurecimento da comunidade é vinculado ao desabrochar das pessoas A educação é fundamentalmente o aprendizado da comunidade em que a aprendizagem do eu se faz simultaneamente com a aprendizagem do tu Podese afirmar que a comunidade pessoal perfeita é historicamente uma imagem limite um horizonte que se deve manter em vista É inalcançável devido à própria contingência do existir preço da encarnação As nossas serão sempre comunidades imperfeitas Mas eis aí uma utopia fecunda para o combate ao individualismo egoísta e ao coletivismo impessoal E a educação basicamente é mediação concreta para instaurar a solidariedade malha que se tece quando o outro é reconhecido como parceiro do eu Cf SEVERINO 2001 Na condição de prática especificamente voltada para os sujeitos humanos em construção para os quais se desenvolve uma ação de intervenção seu compromisso fundamental é com o respeito radical à sua dignidade Com efeito a legitimidade da educação pressupõe necessariamente sua eticidade Esse compromisso ético da educação que se estende ao exercício profissional dos educadores por assim dizer acirrase nas coordenadas históricosociais em que nos encontramos porque as forças de dominação de degradação de opressão e de alienação se consolidaram nas estruturas sociais econômicas e culturais As condições de trabalho ainda são muito degradantes as relações de poder muito opressivas e a vivência cultural precária e alienante A distribuição dos bens naturais dos bens políticos e dos bens simbólicos é muito Revista Temas em Educação João Pessoa v26 n 1 p 8696 janjun 2017 96 desigual Em outras palavras as condições atuais de existência da humanidade traduzidas pela efetivação de suas mediações objetivas são extremamente injustas e desumanizadoras ABSTRACT This essay of a bibliographical and theoretical nature develops a brief reflection on personalism in Emmanuel Mounier The aim is to seek the meaning that people have attributed to the thought of this author as a beingwiththeother and the notion of community as a social structure more adequate for the human being to effect hisher relational nature From personalistic positions it is concluded that freedom and responsibility are seen as necessary for the subject not to be objectified in hisher real existence considering that the person consists of one in the world and in the relationship with the other builds hisher history It is from the rupture of this relationship that the contradictions of humanity the alienation and the material misery of the human being take place As personalism is not only a theoretical explanation of the existential condition but also a will over man there arises the demand of the practical commitment with a view to the disalienation of the human being in Mounier Keywords Emmanuel Mounier Personalism Person Human construction REFERÊNCIAS MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Tradução de Frei Marcelo L Simões Rio de Janeiro Paz e Terra p 135 152 1968 MOUNIER Emmanuel O Personalismo Trad Vinícius Eduardo Alves São Paulo Centauro p 1516 17 29 31 32 38 41 44 45 46 47 2004 A esperança dos desesperados Malraux Camus Sartre Bernanos trad Naumi Vasconcelos Rio de Janeiro Paz e Terra 1972 Manifesto ao serviço do personalismo Tradução de Antônio Ramos Lisboa Morais p21 108 1967 SEVERINO Antônio Joaquim Humanismo personalismo e os desafios sociais da educação contemporânea v 18 n 36 janabr Cuiabá Revista Educação Públicap0405 2009 Pessoa e existência iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier São Paulo Cortez Editora p71 72 1983 A antropologia personalista de Emmanuel Mounier São Paulo Saraiva p54 1974 Educação sujeito e história SãoPauloOlhodÁgua2001 Submetido em 21012017 Aprovado em 08032017 Publicado em 20062018 1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM FILOSOFIA DANIEL DA COSTA A EMERGÊNCIA E A INSURGÊNCIA DA PESSOA HUMANA NA HISTÓRIA ENSAIO SOBRE A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA NO PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER SÃO PAULO 2009 2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM FILOSOFIA A EMERGÊNCIA E A INSURGÊNCIA DA PESSOA HUMANA NA HISTÓRIA ENSAIO SOBRE A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE DIGNIDADE HUMANA NO PERSONALISMO DE EMMANUEL MOUNIER Daniel da Costa Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a Obtenção do título de Mestre em Filosofia Orientador Prof Dr Franklin Leopoldo e Silva São Paulo 2009 3 ÍNDICE INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO I PRIMEIRA PARTE Configurações HistóricoTeológicoFilosóficas das Noções de Igualdade e Liberdade Prolegômenos para a constituição da noção de Pessoa no personalismo de Emmanuel Mounier 38 I1 Intermezzo Fidei 51 I2 Kerygma cristão e cultura grega 89 I3 Kerygma cristão e tradição judaica 92 SEGUNDA PARTE Aproximações Veterotestamentárias na Construção das Noções de Dignidade Humana e Liberdade Humana 105 III1 Os Relatos da Criação Sumériomesopotâmicos comparados com o relato Bíblico da Criação do Livro do Gênesis III1a Introdução 110 III1b A formação do homem 118 III1c A formação da mulher 123 III1d O Paraíso 127 III1e A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e a Árvore da Vida 134 III1f O Pecado dos Primeiros Pais 139 III1g A Constituição Antropológica Hebraica da Noção de Dignidade Humana 148 III1h O Ser Humano como Imago Dei 151 III1i A Construção da Liberdade em Aproximação à Tradição Veterotestamentária 161 4 TERCEIRA PARTE A Unidade do Pensamento e a Unidade do Divino Aproximações à teologia e filosofia da Grécia antiga 169 IIII1 Os gregos Intróito 172 IIII2 A dramática interna ao ser do ser humano no alvorecer da filosofia grega 175 IIII3 A dramática interna ao ser do ser humano no alvorecer da filosofia grega em relação a alguns dos seus alcances estéticos 181 IIII4 Conclusão 190 QUARTA PARTE Aspectos da Apropriação da Tradição Judaica e Helenística pelo Cristianismo Primitivo e Sua Contribuição Específica na Formação da Cultura Ocidental Segundo o Personalismo de Emmanuel Mounier 200 IIV1 O alcance heurístico das proposições teológicas do cristianismo primitivo para a construção de uma ética e de uma cultura ocidentais 230 IIV1a Cristianismo e espaço laico 234 IIV1b Encarnação e ressurreição do Logos no cristianismo primitivo Imanência na transcendência e transcendência na imanência 238 IIV1c Desenvolvimentos cristãos da noção de mediação 243 IIV1d O autoultrapassamento da pessoa 249 IIV1e Aproximações conclusivas sobre a compreensão de Emmanuel Mounier do Cristianismo 250 CAPÍTULO II A Pessoa Aproximações aos elementos constituintes do universo pessoal segundo o personalismo de Emmanuel Mounier 258 5 II1 A vida interior da pessoa 283 II2 A vida exterior da pessoa 293 II2a O giro ético e a resolução 308 II2b O encontro 314 II3 Definições aproximativas da pessoa segundo Emmanuel Mounier a construção da Dignidade da Pessoa ou a Pessoa como Dignidade 319 II3a A igualdade da pessoa 326 II3b A especificidade ou singularidade da pessoa 328 II3c Intermezzo A alteridade da pessoa como o próximo 334 II3d A concretude da pessoa 343 II3e A liberdade da pessoa 348 CAPÍTULO III Personalismo e Liberalismo Pessoa como Singularidade Axiológica e o Indivíduo do Individualismo Liberal e Burguês Introdução o liberalismo e sua nova versão o neoliberalismo 350 III 1 A burguesia e o burguês diluídos como espírito pequenoburguês segundo o personalismo 389 III2 A moral burguesa segundo o personalismo 410 III3 A miséria e a pobreza 412 III4 O indivíduo moderno do liberalismo 419 III5 O capitalismo 430 III6 A mão invisível 440 III7 As paixões e o instinto 444 III8 O capitalismo sob um julgamento técnico e sob um julgamento moral 454 III9 Anticapitalismos e anticapitalismo personalista 464 III10 Técnica humana e técnica capitalista 467 6 CAPÍTULO IV Revolução Personalista e Comunitária e Revolução Coletivista A Pessoa como Relação e Comunidade e o Coletivismo IV1 O diálogo com o marxismo 475 IV2 A pessoa e a luta de classes 486 IV3 Bases personalistas da sociabilidade e o Contrato Social 492 IV4 Marxismocomunismo e personalismo prolegômenos à crítica personalista à revolução coletivista 502 IV5 Democracia personalista 518 IV6 Revolução personalista e técnica dos meios espirituais 524 IV7 Revolução personalista e comunitária e o que quer dizer a fórmula nem esquerda nem direita no personalismo 539 IV8 Transcendência como direito e laicidade personalista 546 IV9 Descartes a antropologia dicotômica e o voluntarismo prolegômenos à crítica de Emmanuel Mounier ao espiritualismo da dupla negação personalista nem materialismo nem espiritualismo 553 IV10 Espiritualismo gnóstico e antropologia cristã 562 IV11 Filosofia cristã ou pensamento de inspiração cristã 572 IV12 O espiritualismo coletivista prolegômenos para a compreensão do fascismo e do nazismo segundo o personalismo 584 IV13 O fascismo e o nazismo 596 IV14 Mounier sob Vichy 606 IV15 Aproximações concludentes IV15a Democracia 614 IV15b A igualdade 615 IV15c A autoridade 617 IV15d A liberdade 622 IV15e Vida privada 624 IV15f O marxismo aproximação crítica conclusiva 626 CAPÍTULO V Pessoa e Existência Introdução 630 V1 Subjetivismo e objetivismo 645 7 V2 O despertar filosófico 663 V4 O engajamento 682 V5 A dramática existencial humana 683 V6 Intermezzo moral personalista e moral hierarquista 701 V7 Crítica personalista para uma reabilitação da objetividade 734 V8 A alteridade o outro o semelhante e o próximo 741 CONCLUSÃO 764 APÊNDICE Traduções MANIFESTO DE LANÇAMENTO DA REVISTA ESPRIT DE FONTROMEU 767 EXTRATOS DO PROSPECTO ANUNCIANDO A PUBLICAÇÃO DE ESPRIT FEVEREIRO DE 1932 775 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS E DAS COMUNIDADES É NECESSÁRIO REFAZER A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS MAIO DE 1945 778 É NECESSÁRIO REFAZER A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS MAIO DE 1945 779 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS E DAS COMUNIDADES O Texto 783 BIBLIOGRAFIA Obras de Emmanuel Mounier 791 Obras de e sobre o personalismo de Emmanuel Mounier 792 Obras de apoio 795 8 Dedico essa Dissertação a minha irmã Eunice dos Reis Costa e a minha mãe Sra Carmélia dos Reis Costa Pois a esta nem mesmo a falta de qualquer instrução e as origens humildes de migrante baiana conseguiram sufocar sua dignidade de pessoa feminina neste Brasil desumanamente masculino Ela como a viúva que dando os seus últimos dez centavos dera mais do que qualquer outro porque dera tudo que tinha derame o suficiente para que eu pudesse me iniciar na lógica paradoxal e finalmente entender que é do aparentemente fraco transfigurado que surge a verdadeira força In memoriam 9 RESUMO O personalismo de Emmanuel Mounier não é nem uma filosofia do sujeito nem uma de suas expressões como filosofia do Eu ou filosofia da consciência nem uma filosofia da morte do sujeito e nem também uma filosofia do objeto O personalismo de Emmanuel Mounier é uma filosofia da relação Ao eleger a intuição da experiência originária como sendo o modo de ser da relação ele junta a conseqüente inscrição da afirmação da vida no cerne mesmo do movimento mais próprio da pessoa criadora em sua luta pelo real Isso faz com que ele perspective por sua vez sob o modo de ser do artefato a maneira pela qual a pessoa se compreende a si mesma e compreende o mundo Ou seja não somente como quer a ideologia do trabalhismo como homo faber Pois desde a manifestação do Ser em suas formas mais simples até a sua expressão mais grandiosa que é a pessoa criadora e afirmadora de vida não somente enquanto expressão empírica quantitativa mas qualitativa ou seja como afirmação do amor quer dizer Eros cativo por Agápe o personalismo vai dizer não somente homo artifex est mas homo perfectibilis est e em seguida ampliará mais ainda para omnia arte facta sunt Para o personalismo tudo está por se fazer a própria pessoa e o mundo Essa tarefa é realizada em dois níveis em mútua interação no da expressão singular em que à pessoa cabe a execução de uma tarefa que pertence só a ela como expressão de sua especificidade na realização de sua vocação singular e única em sua luta pelo real e no da expressão da pessoa em comunidade Não há aqui separação mas distinção pois se trata em suma para o personalismo de uma mesma tarefa cujas dimensões e tratamento das problemáticas específicas implicarão o êxito ou o fracasso na realização integral da vida pessoal quer dizer em sua manifestação singular e em comunidade A manifestação da pessoa singular portanto só encontrará sua realização plena quando ela tomar parte como elo insubstituível na formação de uma pessoa de pessoas a comunidade Todavia para essa tarefa coletiva cada um é convocado pois cada pessoa em sua expressão singular é para o personalismo o nó górdio que desata um mundo de criação e de sentido insuspeito Assim Mounier colocará em sua busca de diálogo como critério para avaliar e pesar a densidade das outras filosofias compreender o quanto elas permanecendo fiéis a si mesmas ou seja aos seus valores permanecerão fiéis 10 ao mesmo tempo à pessoa e o quanto os seus conteúdos cooperarão para o cumprimento dessa vocação fundamental da pessoa ou se elas não serão apenas mais um adiamento e protelação ocidentais que apesar de sua maior antiguidade Mounier prefere datar do século XVI e com o surgimento da burguesia e do individualismo reivindicador adiamento e protelação ocidentais sempre da escolha da pessoa livre e criadora por alguma outra coisa ou seja para o personalismo mais um tipo de alienação fundamental ou mais um tipo de objetificação da pessoa Assim a crítica personalista entendendo a Razão como a lógica da personalidade integral será um complemento necessário à crítica kantiana ao dogmatismo do além da razão ou seja a crítica personalista será uma crítica ao dogmatismo do aquém da razão que tem se fixado dentro do pensamento contemporâneo quer dizer póskantiano como sendo a última palavra Palavraschave pessoa personalismo comunidade relação relativo relacional artefato indivíduo individualismo burguês burguesia revolução coletivismo liberalismo capitalismo marxismo existencialismo existência alienação cristianismo cristandade esperança amor fé crença dinheiro moral moralismo razão compreensão subjetividade objetividade absoluto incontornável tolerância respeito Deus ateísmo vida interior vida exterior diálogo verdade mentira história Ungrund alma corpo unidade diversidade valor sentido emergência insurgência história manifestação ser nãoser devir dialética nada elã movimento concretude concreto abstrato abstração espírito alteridade semelhante outro próximo Eros Agápe sincronia diacronia tempo paixões instinto personalidade caráter caracterologia vida liberdade igualdade dignidade kerygma antropologia Imago Dei Novo Testamento Antigo Testamento otimismo pessimismo trágico realismo integral racionalismo irracionalismo cultura tradição mediação encarnação ressurreição imanência transcendência ética singularidade especificidade axiologia espírito pequenoburguês pobreza miséria lumpenproletariado mão invisível anticapistalismo técnica revolução coletivista revolução comunitária luta de classes contrato social democracia esquerdadireita espiritualismomaterialismo laicidade gnose gnosticismo filosofia cristã Vichy vida privada vida pública engajamento subjetivismo objetivismo dramática existencial hierarquia moral hierarquista moral personalista fenômeno fenomenologia religião paz guerra ideologia ordem burguesa desordem estabelecida ato ambigüidade ambivalência instalação conformismo escolha certeza propriedade lucro economia oîkos nómos sociologismo psicologismo 11 ABSTRACT The personalism of Emmanuel Mounier isnt a philosophy of the subject or one of its expressions as a philosophy of the I or a philosophy of consciousness or a philosophy of the death of the subject or even a philosophy of the object The personalism of Emmanuel Mounier is a philosophy of connection When He elects as a fundamental intuition of originary experience the mode of being of connection he attaches the consequent inscription of the affirmation of life into the pith even of movement more proper of creator person in its fight for the real This makes him to put in perspective consequently under the mode of being of artifact the way by means of that the person comprehends himherself and the World In other words it isnt as the ideology of labourism wants to present man only as homo faber The personalism of Emmanuel Mounier wants to go farther till the manifestation of Being in its more simple forms until its more sublime that is the creator person and affirmer of life and that not only as empiric expression or quantitative but qualitative expression it sees the manifestation of person as unconditional affirmation of love that is Eros captive for Agápe So personalism goes to say not only homo artifex est but homo perfectibilis est and in continuation it increases still more for omnia arte facta sunt In the personalism of Emmanuel Mounier all is yet to be made the person itself and the World The latter task is realized in two levels in loan company interaction in the singular expression in which only to the person belongs the action of the accomplishment task that belongs himher as a realization on the strength of the expression of hisher specific character in hisher accomplishment of hisher singular and unique vocation in hisher fight for the real and too in the expression of the person in the community There isnt here separateness but distinction for this matter in short for the personalism of Emmnauel Mounier is one same task whose specific dimensions and treatment of the specific problems will implicate the success or the ruin in the integral realization of personal life That is in its singular manifestation and in its life of the interconnection in community The manifestation of the singular person therefore only will meet its full realization when the person takes part as an irreplaceable link in the constitution of the one person of persons that is the community However for this collective task each one is convoked 12 for each person in hisher singular expression is for the personalism of Mounier the Gordianknot that unfastens a World of creation and sense unexpected Then Mounier posits in his quest for dialogue as the criterion by which he evaluates and to ponder the density of others philosophies and by which he understands how far persons have been faithful to themselves that is to their worth and at the same time have been faithful to the person If their contents announce the accomplishment of this fundamental vocation of the person or if they would be only one more occidental adjournment and procrastination that in spite of their more ancient history Mounier prefers to start from XVI century and with the appearance in history of the bourgeoisie and claimant individualism Occidental adjournment and procrastination that has been in all time the choice of other thing than free and creator person That is for Mounier one more kind of fundamental alienation or one more kind of objectification of the person Thus Personalist criticism which understands Reason as the logic of integral personality will be a necessary complement to Kantian criticism of the dogmatism of the beyond of reason that is Personalist criticism will be a criticism of the dogmatism of the below of reason that has fixed itself into contemporary thought that is posKantian as being the last word Key words person personalism community connection relative connectional artifact individual individualism burgher burguership revolution collectivism Liberalism Capitalism Marxism Existentialism existence alienation Christianism Christendom hope love faith belief money moral moralism reason understand subjectiviness objectiveness absolute uncontournable tolerance respect God atheism inner life outer life dialogue truth lie dialectic history Ungrund soul body unit plurality worth sense emergence insurgence manifestation Being nobeing to become nothing élan movement concrete abstract abstraction spirit alterity like fellow Eros Agápe synchrony dyachrony time passions instinct personality character characterology life freedom equality dignity kerygma anthropology Imago Dei New Testament Old Testament optimism pessimism tragic realism integral rationalism irrationalism culture tradition mediation incarnation resurrection immanence transcendence ethic singularity specificity axiology littlebourgeois spirit poverty misery lumpenproletariat invisible hand anticapistalism technique revolution collectivist revolution communitarian classconflict socialcovenant democracy left right spiritualismmaterialism laity gnose Gnosticism Christian philosophy Vichy private life public life engagement subjectivism objectivism dramatic existential hierarchy moral hierarchic moral personalist phenomenon phenomenology religion peace war ideology burgher order disorder established act ambiguity ambivalence settled conformism choice certainty property profit economy oîkos nómos sociologism psychologism 13 RÉSUMÉ Le personnalisme de Emmanuel Mounier nest pas une philosphie du sujet ni une de ses expressions comme une philosophie du Moi ou philosophie de la conscience ni une philosophie de la mort du sujet et non plus une philosophie de lobject Le personnalisme de Emmanuel Mounier est une philosophie de la relation Lorsque il elit lintuition de lexperience orginaire comme le mode dêtre de la relation Mounier rallie la conséquente inscription de lafirmation de la vie dans le noyau même du mouvement plus propre de la personne créatrice dans sa lutte pour le réel Ceci fait alors Mounier perspectiver à son tour sous le mode dêtre de louvrage arte factum la manière par la quel la personne compreend soi même et compreendre le monde Ça veut dire non seulement pas comme veut lidéologie du travaillisme comme homo faber Parce que dès la manifestation dÊtre à ses formes plus simples jusque son expression plus grandiose qui est la personne créatrice et affirmetrice de la vie et non seulement pas comme expression empirique quantitative mais qualitative soit disant comme affirmation de lamour ça veut dire Eros captif pour Agápe le personnalisme va dire non pas seulement homo artifex est mais homo perfectibilis est et à la suit il amplifiera plus encore pour omnia arte facta sunt Pour le personnalisme de Mounier tout est à faire la personne même et le monde Cette tâche saccomplie en deux plans en mutuelle interaction dans lexpression singulière où à chacun son role à lexecuction de une tâche qua elle seule appartient comme expression de sa spécificité en la réalisation de sa vocation singulière et unique dans sa lutte pour le réel et dans lexpression de la personne en communauté Il ny a pas de séparation mais distinction parce que il sagit en bref pour le personnalisme de Mounier dune même tâche dont les dimensions et traitement des problématiques spécifiques impliqueront le réussit ou le échec dans la réalisation intégrale de la vie personnelle soit disant en sa manifestation singulier et comunautaire Le manifestation de la personne singuliere alors rencontrera seulement sa realisation pleine lorsque elle prend part comme lien qui ne peut pas être remplacé dans la formation dune personne de personnes la comunauté Cependent pour cette tâche collective chacun est appelé parce que chaque personne dans son expression singulière est pour le personnalisme de Mounier le noued gordien qui dénoue un monde de création et de sens insoupçonnable qui dun part se manifeste individuellement comme une vocation personnelle qui aucun autre 14 singularité peut accomplir dans sa place et dautre part dans la vie en communauté Ainsi Mounier placera en sa recherche de dialogue comme critère pour évaluer et peser le densité de les autres philosophies la comprehension de combien elles resteront fidèles avec elles mêmes ça veut dire avec ses valeurs et en même temps étant fidèles à la personne et avec leur contenu coopèdant dans laccomplissement cette vocation fondamentale de la personne ou si elles ne seront pas seulement unautre ajournement et mépris occidentaux qui malgré son ancienneté reculée Mounier préfère dater dès XVIª siècle et avec la naissance de la bourgeoisie et de le individualism revendicateur ajournement et mépris occidentaux toujour du choix de la personne libre et créatrice pour une autre chose ça veut dire unautre type de alienation fondamentale ou unautre type de objectification de la personne De cette façon la critique personnaliste comprenant la Raison comme le logique de la personnalité intégral sera le complément nécessaire à la critique kantienne au dogmatisme du audelà de la raison ça veut dire la critique personnaliste sera une critique au dogmatisme du audeçà de la raison qui avoir se fixé audedans de la pensée contemporain ou poskantienne comme étant la dernière parole Motsclef personne personnalisme comunauté relaction rellactif relactionel arte factum individu individualisme bourgeois bourgueoisie révolution colectivisme libéralisme capitalisme marxisme existencialisme existence aliénation christianisme crhrétienté espérance amour foi croyance argent morale moralisme raison compréhension subjectivité objectivité absolu incontournable tolérance respect Dieu athéisme vie intérieur vie extérieur dialogue vérité mensonge dialectique histoire Ungrund âme corps unité diversité valeur sens emergence insurgence manifestation être nonêtre revenir néant élan movement concret abstrait abstraction esprit altérité semblable autre prochain Eros Agápe synchronie diachronie temps passions instinct personnalité caractère caractérologie vie liberté egalité dignité kerygma anthropologie Imago Dei Nouveau Testament Ancien Testament optimisme pessimisme tragique réalisme intégral rationalisme irrationalisme culture tradition médiation incarnation résurrection immanence transcendence ethique singularité spécificité axiologie esprit petitburgeois pauvreté misère lumpenprolétariat main invisible anticapistalisme technique révolution collectiviste révolution communautaire lutte de classes contrat social démocratie gauchedroit spiritualismematérialisme laïcité gnose gnosticisme philosophie chrétien Vichy vie privée vie public engagement subjectivisme objectivisme dramatique existentielle hiérarquie morale hiérarchiste morale personnaliste phénomène phénoménologie religion paix guerre idéologie ordre burgeoise désordre établi acte ambiguïté ambivalence installation conformisme choix certitude propriété profit economie oîkos nómos sociologisme psychologisme 15 INTRODUÇÃO O personalismo de Emmanuel Mounier neste presente estudo não é tomado nem como uma filosofia do sujeito nem como uma de suas expressões como filosofia do Eu ou filosofia da consciência nem como uma filosofia da morte do sujeito e nem tampouco como uma filosofia do objeto Neste estudo o personalismo de Emmanuel Mounier vai ser interpretado como uma filosofia da relação Todavia à intuição da experiência originária como sendo para o personalismo o modo de ser da relação juntase a conseqüente inscrição da afirmação da vida no cerne mesmo do movimento mais próprio da pessoa criadora em sua luta pelo real Isso vai fazer com que ele perspective por sua vez sob o modo de ser do artefato a maneira pela qual a pessoa se compreende e compreende o mundo Ou seja não somente como uma dimensão da experiência humana que tem servido como slogan da ideologia do trabalhismo e que recebe o seu nome como homo faber O personalismo quer ir mais longe desde a manifestação do Ser em suas formas mais simples até a sua expressão mais grandiosa que é a pessoa criadora e afirmadora de vida e esta não somente enquanto expressão empírica quantitativa mas qualitativa ou seja como afirmação do amor o personalismo vai dizer não somente homo artifex est mas homo perfectibilis est e em seguida ampliará mais ainda para omnia arte facta sunt Para o personalismo tudo está por se fazer a própria pessoa e o mundo Assim essa tarefa é realizada em dois níveis em mútua interação no da expressão singular em que à pessoa cabe a execução de uma tarefa que pertence só a ela como expressão de sua especificidade na realização de sua vocação singular e única em sua luta pelo real e no da expressão da pessoa em comunidade Não há aqui separação mas distinção pois tratase em suma para o personalismo de uma mesma tarefa cujas dimensões e tratamento das problemáticas específicas implicarão o êxito ou o fracasso na realização integral da vida pessoal quer dizer em sua manifestação singular e em comunidade A manifestação da pessoa singular por sua vez só encontrará sua realização plena quando ela tomar parte como elo insubstituível na formação de uma pessoa de pessoas a comunidade Todavia para essa tarefa coletiva cada um é convocado pois cada pessoa em sua expressão singular é para o personalismo o nó górdio que desata um mundo imprevisto de criação e de sentido o qual por um lado se manifesta 16 individualmente como uma vocação pessoal que nenhuma outra singularidade poderá cumprir em seu lugar e por outro na vida em comunidade É na vida comunitária criadora porque tensa e também ela perfectível que a pessoa então por sua vez mergulhada na natureza mas ao mesmo tempo portadora da consciência e da lucidez de uma diferença que a qualifica e específica como não totalmente natureza quer dizer como não redutível a alguma metafísica da pura identidade à morte a identidade para Mounier sob todas as suas formas é a morte melhor desenvolverá e estimulará o tom dramático dialético mesmo de seu ser no mundo Este não deixará espaço segundo a perspectiva personalista de Emmanuel Mounier nem para a resignação da pessoa segundo um aspecto do esquema social de espírito marcadamente burguês moderno por excelência como adaptação que toma a pessoa então como pura natureza como subsunção a esta e nem como segundo a outra face da decadência do espírito burguês moderno por excelência da pessoa como o indivíduo racionalista instrumentalizador possuidor reivindicador e que permite passivamente ser tomado e subsumido pelas formas sociais convencionadas pela sociedade burguesaliberal e capitalista que o utiliza prazerosamente como joguete no seu esquema abstrato de morte de esvaziamento e de neutralização de todas as suas capacidades vitais de verdadeira criação Para o personalismo de Emmanuel Mounier a inscrição do universo significativo que a pessoa inaugura com seu movimento de personalização nas estruturas do sistema mundo que pode ser constatado e cuja experiência pode ser realizada por quem tiver boa vontade coloca para a filosofia o problema que o personalismo considera inesgotável que é o problema do bem além do inesgotável problema do mal que muitos têm decorrido da história realmente trágica da humanidade mas sem razão em sua unilateralidade Quer dizer mais como sensibilidade pessoal do que uma decorrência apodítica uma última palavra As decorrências apodíticas e a última palavra em matéria de existência humana o personalismo vai considerar como uma tarefa mais apropriada para uma Divindade do que para pessoas finitas imergidas na corporeidade e na terra Estas posturas dogmáticas tingidas de bom senso vão ser sempre suspeitas ao personalismo Dissemos anteriormente que esta experiência e constatação dependem antes de uma disposição solícita de uma vontade de simpatizar enfim de uma boavontade pelo fato de que o personalismo não será ingênuo em acreditar que a respeito de uma dimensão tão 17 radicalmente profunda como esta sobre a qual ele pretende ser apenas uma aproximação uma postura e solução estritamente racionalista possa ser ou dar a última palavra Por outro lado contra o otimismo florido além das ideais claras e distintas para o personalismo há as obscuras e indistintas que são tão reais e tão presentes quanto aquelas Este sentido da intimidade é o sentido do mistério pessoal Ego sum homo absconditus Noli me tangere Há na distância espacial como que um símbolo grifo nosso imperfeito da transcendência e no comportamento do secreto como que um reconhecimento da distância metafísica1 Assim a sistemática personalista quer dizer a busca de concatenação de idéias de conceitos de esclarecimento é na verdade antes de tudo uma homenagem à inteligência humana um voto de fé na capacidade criadora da pessoa nessa sua esfera intelectiva de expressão e um convite pela via da vida intelectual a que se acesse o seu mistério Sistemática então nunca sistema Todavia esse convite pode ser feito através de outras expressões da pessoa que o personalismo considera tão dignas quanto a intelectual por exemplo pela arte pela poesia pelo símbolo religioso etc Mais do que simplesmente empírica então a vida que a pessoa afirma é vida criadora de valores e o seu ato de consciência mais próprio é o de assunção livre desses valores Estes entendidos como conteúdos elementares sobre os quais se dinamiza o movimento de emergência da pessoa na história Por sua vez dentre as estruturas nas quais ela se encontra imergida antecipadamente a qualquer consciência de si estrutura ambiente e corporal histórica e existencial que não faz todavia com que Emmanuel Mounier decorra a pessoa nem como o ser para a morte heideggeriano nem como o Eu solitário e ateu usufruidor que só num segundo momento descobre a alteridade de Emmanuel Lévinas nem como uma redução instintiva a um feixe de impulsos de pura afirmação vital Frente a Heidegger intrínseco ao movimento de personalização o personalismo inscreve a afirmação radical de um ser para a vida frente ao Eu usufruidor de Lévinas a pessoa que já se vê mergulhada num mundo e numa carne como corpo que a antecedem se vê também empenhada numa tarefa que também a antecipa enquanto luta pelo real Esta tanto pela conquista de sua singularidade contra a generalidade do sistemamundo 1 MOUNIER Emmanuel Traité du caractère Oeuvres II p 479 In loc Mounier acrescenta a seguinte nota Remetemos aqui aos prolongamentos espirituais e metafísicos do sentido do secreto em Kierkegaard da significação do pudor em Jaspers e Soloviev Sobre a noção de pudor ver abaixo o capítulo Pessoa e existência 18 quanto pela busca espiritual incessante do encontro de uma unidade dramática contra a facilidade do solipsismo Este Mounier entende como pseudoisolamento ontológico pois como dissemos a experiência originariamente radical para o personalismo é a da relação e não a do isolamento E então é como relação que Mounier entende a pessoa criadora frente à vontade de redução instintivoorgânica ou seja à identidade quer dizer à morte Para o personalismo a pessoa não é só afirmação mas inscrição nas estruturas redutoras instintivoorgânicas de um conteúdo de imprevisibilidade que se inscreve como liberdade consciente e responsável Esta tarefa o personalismo a vê como vocação a ser cumprida por cada pessoa singular em sua expressão existencial concreta irrepetível e insubstituível e nunca como tarefa de qualquer ente de razão sem densidade real históricoontológica chamado ser de exceção Para o personalismo este só tem prevalecido na história pelo que se tem tomado na verdade escolhido enquanto sendo a história só o seu lado mau e isso graças a um certo uso e compreensão da força que tem prevalecido nela interpretada com base na pobre representação metafísica do materialismo da Antiguidade advinda da mecânica antiga do choque e da fricção dos corpos Até a força segundo o personalismo por causa da pessoa imprimirlhe um conteúdo axiológico existencial real é transformada numa verdadeira qualidade e nesse sentido é também homenageada No personalismo a força não é uma quantidade de choque descontínuo à espera de um ato gratuito também descontínuo de força gratuita para hierarquizar por sua vez forças pois daí para o personalismo o lema do Senhor tirânico sobre sua presa tudo pode ser feito sobre o escravo e Auschwitz não estarão muito longe Elegendo a relacionalidade como a experiência originária o personalismo encontra sob o modo de ser do artefato o único fundamento através do qual a pessoa enquanto não inventariável pode ser respeitada ou seja como o não fundamento o verdadeiro Ungrund já esboçado pelo místico protestante do século XVI Jacob Böhme Este Ungrund para o personalismo de Mounier será a única base de um real nãofundamento que implica por sua vez uma transcendência real Quer dizer um movimento real de transcendimento o qual impedirá que essa mesma base nãofundamento seja posta de maneira última sem que ela mesma se inscreva sob o modo de ser do artefato Este modo de ser a antecede como dado originário e ontologicamente anterior em relação ao estatuto mesmo de 19 fundamento racional que o nãofundamento possa vir e tende a tomar por causa da miséria da linguagem quer dizer da lógica Perto dessa experiência originária em que a pessoa encontra a sua densidade ontológica mais apropriada tanto em relação à interioridade movimento de interiorização quanto à exterioridade movimento de exteriorização a filosofia do sujeito ou a filosofia do Eu ou a filosofia da consciência ou a filosofia da morte do sujeito ou a filosofia do objeto só podem representar para o personalismo formas racionalizadas de um adiamento ou de vontade de recusa da escolha da pessoa relacional em proveito de conteúdos cuja heurística quando afirmativa o é só em relação a entes de razão e sempre numa lógica previamente limitadora da experiência e circunscrita e quando negativa tende a correr para a afirmação puramente gratuita e violenta nos mais ativos ou à indiferença pedante e altaneira que é uma outra forma de violência Para o personalismo na verdade esta última forma decadente e mórbida da indiferença é a do burguês fariseu que não serve nem para pecar com bravura é a forma dos passivos dos adaptados dos instalados e satisfeitos Mas é também a forma dos ressentidos contra o espírito e a inteligência dos impotentes do elã espiritual ou do esforço intelectual Seu ódio não é menos primário e farisaico que o ódio dos desprezadores da vida2 O único ato de apreensão de uma verdadeira totalidade e de uma verdadeira singularidade de uma verdadeira densidade ontológica e de uma verdadeira aderência concreta só é possível para o personalismo a partir da intuição fundamental de uma experiência da imediaticidade do relacional como comandando o ser desde sua elementaridade antes de qualquer outra consciência ou inconsciência É este estado de atolamento carnal de encarnação da pessoa no plano da singularidade e o estado de pré inserimento histórico e concreto no mundo que vai gerar segundo o personalismo na pessoa criadora o sentimento da vida como um presente como um dom uma generosidade antes que o de uma derrelição antes também de uma consciência primária do eu solitário e antes que a consciência de uma pura resignação a cumprir mesmo corajosamente 2 Traité du caractère Oeuvres II p 118 20 Antes de iniciarmos a leitura de uma leitura da obra de Emmanuel Mounier tal qual empreendemos aqui e por conta de algumas cristalizações históricas sempre cômodas porque facilitadoras para alguns e incômodas porque dificultosas para outros entre os deste último grupo a minha leitura se enquadra se faz necessário apontarmos alguns aspectos do personalismo de Emmanuel Mounier que expressam o jeito diferente de encarar e de fazer filosofia que ele propõe Antes de tudo assim como em Kierkegaard é indispensável o conhecimento de alguns fatos capitais da sua vida para a compreensão de seu pensamento Vida e obra em Mounier se encontram imbricadas O que se diz de Kierkegaard pode ser dito de Mounier pois esta imbricação entre vida e obra dá a sua obra um caráter à parte no meio daquelas obras a que é costume chamar de filosofia esta com efeito é em regra considerada como uma atividade da razão desligada e até hostil a qualquer intromissão da experiência humana de cada filósofo como uma atividade que transcende o individual Não será então incompleta ilícita uma filosofia que não se baste da qual seja parte integrante a pessoa daquele que a exprime3 Eis a força e a fraqueza do pensamento de Emmanuel Mounier Além disso realizamos também aqui em nossa intenção de seguir o fio inspirador do movimento de emergência da pessoa na história tal como sugere o personalismo de Emmanuel Mounier uma aproximação às formas de pensamento antigas míticoreligioso filosóficas em que vemos nascer e se despontar o sentido do que posteriormente tem sido denominado no Ocidente de dignidade humana Sentido do qual o personalismo se faz portavoz e que vê como inserindo nas estruturas compreensivas um elemento de imprevisibilidade que contesta todo tipo de investida por parte dessas estruturas sobre a pessoa concreta no sentido de reduzíla a objeto ou a puro epifenômeno do produto de suas interações lógicas e históricas Vimos para o nosso propósito essa aproximação como imperiosa como incontornável mesmo E na medida em que formos fazendo as aproximações aos temas da crítica personalista capitalismo liberalismo burguesia individualismo marxismo existencialismo procuraremos fazer sentir os ecos desse elemento de imprevisibilidade do qual Emmanuel Mounier se vale no seu confronto com 3 Cf MONTEIRO Adolfo Casais Introdução in KIERKEGAARD Sören O desespero humano Livraria Tavares Martins Porto Portugla 1957 p 12 21 estas estruturas de interpretação para o campo da lucidez em suas especificidades mesmas e no âmbito dos problemas que levantam e que inelutavelmente tocam à pessoa Nesse sentido nosso estudo da obra de Mounier não será apenas descritivo mas problematizador Mounier no talhe do seu ato filosófico quer realizar uma aproximação entre a vida cotidiana e a filosofia Para ele os problemas dos filósofos são os problemas de todos os seres humanos Assim como Sócrates para cumprir o seu ato filosófico precisava de um interlocutor que o escutasse com paciência Mounier e sua equipe por meio da revista Esprit querem criar um público de pessoas comuns que possam se deter pacientemente no exercício em defesa da inteligência Eles querem fazer com que a pessoa comum acesse os problemas da filosofia sem que nutra o preconceito e o desdém comum pelo exercício intelectual mas também querem convocar à parte de responsabilidade nessa defesa da inteligência e no sentido de uma real instauração do campo da lucidez como Sócrates cumpria a sua parte nesse sentido se dispondo ao diálogo os intelectuais do seu tempo que com seu indiferentismo seu dandismo intelectual e pedantismo também contribuíam com essa sua parte para a manutenção desse preconceito geral contra a inteligência Um dos seus comentadores e justamente a respeito deste jeito diferente de fazer filosofia de Emmanuel Mounier diz Mounier realiza um tipo de filosofia tão profundamente original por seu estilo de exposição pelo público que ela procura atingir por seu método e sua visão pelos problemas que ela aborda que alguns hesitam às vezes em lhe reconhecer o título de filosofia Devese tentar renderlhe justiça4 Pensei bem sobre a questão do ismo de personalismo termo que o próprio Mounier reconheceu desde o início como muito inapropriado para nomear uma filosofia que se pretendia visceralmente antiideológica Todavia me intrigou este reconhecimento de Mounier e mesmo assim a manutenção de sua parte do termo em ismo não obstante a desculpa pelo uso que ele mesmo apresenta como tendo por causa a miséria da linguagem e a falta no momento de outro termo melhor5 Esta mesma inquietação forçou o amigo de Emmanuel Mounier e colaborador ativo de Esprit desde 1945 período de reconstituição da revista no pósguerra e de formação da nova equipe de colaboradores o 4 Neste caso tratase de BARLOW Michel Le socialisme dEmmanuel Mounier Privat éditeur col Pensée Tolouse 1971 p 41 5 Ver as ressalvas que o próprio Mounier reconhece em relação ao termo personalismoem Questce que le personnalisme p 181 s e Le personnalisme p 429 s ambos em Oeuvres III 22 filósofo Paul Ricoeur a escrever um artigo intitulado Morre o personalismo volta a pessoa6 em que ele vê na manutenção do termo em ismo por parte de Mounier uma estratégia de competição com outros ismos então vigentes o do existencialismo e o do marxismo notadamente que se nos mostram hoje em dia como simples fantasmas conceituais7 Não que as chamadas questões de palavra não tenham importância para o pensamento personalista8 não têm enquanto preocupação purista pedante sem dúvida mas sim enquanto busca de rigor Todavia agora se me parece que a questão do rigor importante para a reflexão personalista e que se mantém em Mounier9 quanto ao termo pobre em ismo sofre uma inflexão quanto ao sentido dessa preocupação mesma em relação ao rigor por parte de Mounier que procura dar ao seu texto antes um talhe aproximativo na forma de um gesto saudante ao movimento próprio de expressão da pessoa do que o sentido de palavra final Isso se me mostrou como uma inflexão na questão do rigor o rigor então para o personalismo não pode ser um problema unicamente vinculado ao uso das palavras Há uma pertinência anterior ao mero uso das palavras a que Mounier quer chamar a atenção Esta diz respeito ao quanto as palavras usadas expressam realmente os valores pessoais livremente assumidos pelo falante ou não são senão o subterfúgio para o mascaramento pelas palavras desses mesmos valores que eu resisto em colocar à prova Nesse sentido o problema do uso do famigerado sufixo perde muito de sua importância Tanto que ao completar a leitura da obra de Mounier me sinto à vontade para denominar o seu pensamento encabeçado pela expressão filosofia da relação também como filosofia do amor filosofia da esperança filosofia da libertação filosofia da existência filosofia dialógica filosofia do futuro aberto etc o que torna Mounier por outro lado selvagemente inclassificável Isso justifica a observação precisa que Paul Ricoeur faz em outro texto sobre o sentido do pensamento de Mounier Sua grande contribuição ao pensamento contemporâneo foi ao colocar acima de uma problemática filosófica no sentido estrito de 6 RICOEUR Paul A região dos filósofos coletânea de artigos Leituras 2 Edições Loyola São Paulo 1996 p 155 7 Falamos mais sobre essa questão abaixo p 361 s 8 Para isso ver ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains Gallimard Col Idées 1ª ed 1936 2ª ed 1972 pp 29 ss 9 São vários os momentos em que nos deparamos com a expressão de Mounier se as palavras devem ter algum sentido então 23 método e de ordem a de oferecer aos filósofos de profissão uma matriz filosófica de lhes propor tonalidades de aplicações teóricas e práticas capazes de uma ou de muitas filosofias com densidade bastante para uma ou mais sistematizações filosóficas10 Ricoeur pode falar tranquilamente e sem medo de sistematizações filosóficas justamente pelo teor libertário que a reflexão de Mounier é capaz de oferecer ao filósofo aqui como uma filosofia da libertação Não há mais porque temer o uso das palavras Elas não têm vida própria somos nós que as usamos para construir e desconstruir o mundo Com o passar do tempo pode acontecer de nossas idéias se enrijecerem e perderem a maleabilidade necessária e já não expressarem mais uma vida É então necessária uma libertação um desprendimento um desapego a nossas próprias idéias para que elas então possam se purificar e receber nova seiva de vida Tarefa nada fácil já que as idéias a que o idealismo só toma na abstração para o personalismo nunca estão sozinhas estão sempre acompanhadas de nossas seguranças e de nossos temores Sobre isso também o personalismo tem muito a dizer E já que o motivo que fez Mounier abandonar a carreira promissora acadêmica que lhe estava reservada para embarcar na aventura de animador e diretor de revista foi principalmente a impossibilidade com a qual se defronta na academia de escrever uma tese que fosse a expressão de uma vida acredito que para Mounier o que havia de pobreza no termo personalismo se enriqueceria na medida em que o seu pensamento pudesse se caracterizar e se expressar enquanto obra escrita como o que denomino neste estudo pela expressão emergência e insurgência da pessoa na história Tomando alguma indicação que Barlow nos ofereceu acima falemos do estilo Quem achar que vai encontrar na obra de Mounier do começo ao fim uma concatenação de deduções do tipo manual de filosofia vai se decepcionar Como pensador contemporâneo Mounier não vai ao mundo em busca de enquadrálo em categorias de pensamento previamente estabelecidas como quer o racionalismo e o kantismo ele procura ouvilo Sem subserviência tenta seguir as pistas que os eventos no mundo concedem com o sentimento de gratidão quando se sente no caminho certo com o sentimento de alguém que acaba de receber um presente 10 Ver RICOEUR Paul Histoire et Vérité collection EspritSeuil 1955 p 138 Este texto de Ricoeur apareceu pela primeira vez no número especial de Esprit de dezembro de 1950 Emmanuel Mounier 19051950 Aux Éditions du Seuil p 860 a 887 em homenagem a Mounier com o título Une philosophie personnaliste 24 Quanto ao público Emmanuel Mounier leva a filosofia para as ruas como Sócrates fez no seu tempo coisa que em relação a Sócrates ninguém vê nenhum problema Todavia para a filosofia de gabinete e do Olimpo da época de Mounier tratavase de um verdadeiro insulto de um rebaixamento O rigor o rigor Teremos oportunidade de voltar ainda sobre esta questão do rigor Para Emmanuel Mounier os problemas filosóficos são problemas humanos e não propriedade de qualquer grupo seleto que queira manter a prerrogativa do usufruto por usucapião ou registro em marcas e patentes Na verdade a prova do valor de um pensamento para o personalismo que tem sempre o sentido de ultrapassamento da mera prova racional de sua verdade lógica de sua analiticidade mas não obstante a compreendendo também segue no sentido do quanto a luta interna do intelectual consegue ultrapassar o nível de sua subjetividade para o passo da intersubjetividade do engajamento mesmo em matérias as mais abstratas como por exemplo as matemáticas O personalismo não pensa que o sociólogo por exemplo nesse sentido esteja em melhor situação do que o matemático Veremos que para o personalismo mesmo uma teoria sociológica pode apenas representar uma outra maneira de evasão de fuga do concreto atrás de uma teoria geral da sociedade ou de uma parte dela com o que parece pretender se safar as atuais denominadas ontologias regionais Diferentemente também de uma reflexão que parte do sonho11 de uma unidade perdida entre o homem e a natureza do tipo nietzschiano ou de um esquecimento do ser do tipo heideggeriano sobre o que se elabora a chamada crítica da filosofia da representação12 ou propõese a superação pela negação do esquema sujeitoobjeto Mounier sem negar o aspecto de verdade que há nestas intuições propõe também a sua maneira uma superação do impasse colocado pelo pensamento moderno à filosofia contemporânea quer dizer de uma maneira diferentemente matizada A superação proposta pelo personalismo procura fazer realmente jus a este nome quer dizer segundo ele não pela impossível pura negação13 em bloco dos valores da modernidade e a 11 A ilusão em Nietzsche aparece como inelutável e quiçá necessária Ver NIETZSCHE Frédéric La génélogie de la morale Mercure de France 1964 Avantpropos pp 9 a 20 12 Esta pelo menos é a fórmula geral que identifica a perspectiva interpretativa de Nietzsche da Prof Scarlet Martton e seu grupo de estudos nietzschianos GEN 13 A indicação do personalista Denis de ROUGEMONT no seu clássico LAmour et LOccidente Édition Remanée et Augmentée Plon Paris 1956 passim é esclarecedora a respeito do que constitui uma autêntica superação não pela simples negação mas por uma antecipada apropriação dos valores 25 proposta de um início ab ovo14 este sim para o personalismo ilusório mas antes pelo mergulho de corpo e alma na história humana na intenção de realizar a experiência dos valores assumidos livremente pela humanidade e provar sua densidade significativa no cadinho do fogo da busca da verdade pelo diálogo sem entraves e nem fronteiras No personalismo toda negação carrega intencionalmente o sentido de uma afirmação superior não subsumível pela negação Com isso creio ter esclarecido mais um ponto que justifica minha aproximação inicial às formas míticoreligiosofilosóficas que faço na primeira parte desse estudo Uma verdadeira transvaloração de todos os valores para o personalismo usando aqui algumas imagens bíblicas de domínio público não pode estar ligada nem ao uso de odres velhos para se colocar vinho novo nem à revogação da lei e dos profetas mas sim ao seu cumprimento Isto quer dizer para o personalismo de Mounier que não se trata nem de acomodar o novo sentido em que a emergência da pessoa na história toma aos moldes arcaicos e ultrapassados do que compõe o mundo significativo burguês como pretende a nova retórica neoliberal e nem simplesmente negar os valores como pretendem as atuais filosofias da pura desconstrução Para o personalismo a transvaloração tomada em todo o seu rigor requer uma superação dos valores que compreende por sua vez uma anterior apropriação dos mesmos e não simplesmente uma negação dos valores que mesmo como negação para ter sentido e mesmo a contragosto de quem nega só pode se dar depois de uma devida apropriação e provação dos mesmos Mas como dissemos pelo fogo do cadinho da verdade da pessoa que busca sua expressão através destes mesmos valores em 14 Como quer Descartes em relação ao pensamento anterior ao seu ver DESCARTES Discours de la Méthode éditions Garnier Frères Paris 1950 pp 31 ss Première Partie como quer Nietzsche em relação à história intelectual e cultural do Ocidente e o surgimento do Übermensch NIETZSCHE Friedrich Assim falou Zaratustra Publicações EuropaAmérica 1978 1 a 5 O prólogo de Zaratustra como quer Heidegger em relação ao fim com Nietzsche da metafísica e a volta ao ser ou melhor ao Dasein ver HEIDEGGER Martin Kant y el Problema de la Metafísica Fondo de Cultura Económica Mexico 1986 pp 173 ss A Fundamentación de la Metafísica en la Antropología B El Problema de la Finitude em el Hombre y la Metafísica del Ser Ahí C La Metafísica del Ser Ahí como Ontologia Fundamental ver também do mesmo autor El Ser y Tiempo Fondo de Cultura Econômica México 1980 pp 53 a 75 Capítulo I Planeamiento del probelma de un Análisis Preparatório del Ser Ahí e Capítulo II El Ser no Mundo en General como Estructura Fundamental del Ser Ahí Quando se fala de fim da metafísica comumente se esquece de acrescentar o seu complemento de precisão aristotélicoplatônica e isso se a leitura que tem prevalecido principalmente sobre a filosofia platônica no Ocidente que considera Platão sob a ótica do essencialismo for a última palavra sobre a filosofia platônica Esse descuido em não indicar a precisão sempre deixa no ar a impressão de que quem fala sobre o fim da metafísica pode fazêlo porque o seu discurso como uma espécie de estampa do e colada ao real já não comporte ele também uma metafísica Em poucas palavras para o personalismo de Mounier e seu grupo não há verdadeira superação somente pela negação sem enfrentamento e apropriação dos valores e nem início algum possível ab ovo 26 seu movimento de emergência na história ao qual pretendemos fazer aqui uma aproximação Em cada uma de suas expressões na história na política na educação na religião no pensamento etc Mounier e os personalistas querem provar os valores querem seguir a pista do que subsiste como inapelavelmente humano nessas expressões Eles querem perceber a linha sinuosa e criadora da pessoa em sua emergência na história que se vê forçada a transformar esse que seria o seu movimento natural de desabrochamento em revolução ou seja movimento de insurgência da pessoa na história Isso por causa dos engessamentos aos quais em períodos de seu sufocamento as estruturas carcomidas do tempo querem submeter seu movimento próprio de liberdade seu movimento natural e impedir o seu ato criador A sociedade burguesa se tornou e é para o personalismo a expressão cabal de uma estrutura carcomida e ultrapassada que ainda milita pelas formas do capitalismoliberal e neoliberal atual contra o florescimento e o despertamento social e individual da pessoa criadora É nesse sentido que Emmanuel Mounier e sua equipe se sentem já em dezembro de 1932 data de lançamento da revista Esprit em um período de revolução E é no número 6 de 1ª de março de 1933 que lemos do Mounier cristão Nós estamos muito seguros agora de que não se pode ser totalmente cristão hoje em dia tão mau o seja sem ser um revoltado O capitalismo havia ultrapassado todos os limites e se os meus sentidos mais elementares não me estão sendo mentirosos ainda continua em sua investida necrófila contra a pessoa Com capitalismo até os elementos de humanidade que ainda sempre permaneciam na relação com o tirano mesmo enquanto sentimento de ódio Mounier e sua equipe constatam que nem sequer era mais possível manter mesmo nesse nível puramente visceral não havia mais tirano mas só uma força material cega anônima e desumana que se substitui aos seres humanos como a cabeça dos Estados o capitalismo Para a equipe de Esprit o espírito burguês e o sistema capitalista realizam sobre todos os pontos a negação mais completa de todos os princípios que compõem o sentido de se viver em sociedade Para o diretor de Esprit frente a esta ordem ou melhor segundo Mounier a esta desordem estabelecida a fórmula da testemunha dizer a verdade somente a verdade nada mais que a verdade É nesse sentido que ele seguirá sua guerra sem tréguas ao espírito totalitário desde 1932 que se apresentava nas formas em que os filhos 27 bastardos do capitalismo ou seja o fascismo o nazismo e o comunismo tomavam o espaço na vaga deixada pelo seu pai comum Todavia o comunismo diferentemente do fascismo e do nazismo mantinha uma especificidade em seu apelo que fazia com que Mounier se guardasse de um enquadramento fácil de seu fenômeno com os do fascismo e do nazismo Isso para a decepção de uma certa direita ciosa e conservadora do statu quo que se dizia nutrirse dos valores espirituais mas que para Mounier não passava do álibi de uma solidarização dos verdadeiros valores espirituais com os pseudovalores do mundo do dinheiro em seu componente espírito burguês cioso por sua vez por manter suas regalias pela manutenção de todo um sistema anônimo de injustiça real e a custa do esmagamento de uma multidão de indivíduos sem face É nesse sentido que Mounier vai até à morte procurar estabelecer um diálogo lúcido com os revolucionários marxistas na intenção de lembrarlhes entre outras coisas que além da revolução social deveria haver depois a revolução dos revolucionários de que havia antes de Marx uma tradição socialista e que o marxismo não poderia auferir para si o monopólio de detentor plenipotenciário da revolução etc Para o humanismo radical de Emmanuel Mounier em que o filosofar se inscreve numa aventura de adesão total ao futuro Fiat voluntas tua 15 não há público seleto no sentido mercadológico capitalista de públicoalvo nem qualquer fuga para o aprisco consolador de um rebanho de animais solitários contra o grande rebanho dos animais gregários há prioridades senso pedagógico lucidez e sobretudo respeito16 Para Mounier como para Kierkegaard17 o ser humano verdadeiramente extraordinário é o ser humano verdadeiramente ordinário A contraposição de Mounier à noção de casta de 15 Ver MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Paz e terra Rio de janeiro 1968 p 19 Esta obra é sem dúvida a melhor introdução ao pensamento e à vida de Emmanuel Mounier 16 Desde já apontamos uma primeira substituição que o personalismo de Mounier nos convida a fazer ou superar Tratase do abandono da noção altaneira que herdamos do liberalismo de tolerância e que tem mascarado e servido para protelar uma atitude mais afim e que corresponde melhor segundo o personalismo à descrição de uma relação entre pessoas que é a noção de respeito 17 MOUNIER Emmanuel Introduction aux existencialismes Oeuvres III 1947 p 112 28 gnose de ser de exceção18 e outras que apontam para o álibi de uma suposta especificidade como argumento para um afastamento radical uma separação total um solipsismo ontologicamente visceral visão altaneira e indiferente para com a realidade humana concreta antes que simplesmente um elemento que em relação ao pensamento de Mounier poderíamos rotular de cristão como se com isso já tivéssemos dito tudo e pudéssemos ficar tranqüilos por nos acharmos em terreno seguro é antes e a fortiori como tentei mostrar no início desta Introdução um elemento claramente dedutível dos princípios da epistemologia personalista19 que decorrem da eleição da experiência originária como o modo de ser da relação Por isso para o personalismo 1 a adoção como ponto de partida prévio a qualquer diálogo de uma atitude muito bem colocada por Gérard Lurol20 de insu de de ignorância21 2 valorização da compreensão antes que da explicação22 e 3 da compreensão do ser como superabundância 18 A noção de ser de exceção todavia serve ainda ao personalista LANDSBERG quanto a sua investigação do caráter específico do santo Isso ele o faz em sua análise dos grandes místicos ver LANDSBERG Paul Louis Algumas reflexões sobre o conceito cristão de pessoa pp 16 ss in O sentido da ação Paz e Terra Rio de janeiro 1968 Em Mounier como veremos no decorrer desta nossa leitura de sua obra esta noção não é tomada no sentido da análise de uma especificidade dignatária mas poderíamos dizer em seu significado que também é do hebraico bíblico quanto à noção de santificação que recebe uma caracterização mais geral e engajada como vocação para o cumprimento insubstituível de uma função específica por parte de cada pessoa singular Em Hebraico Kâdhôsh santo Kâdesh santidade como em Grego agioj hágios santo significa separado para uma função especificamente religiosa Ela é usada tanto em relação a seres humanos que se sentem chamados para uma tarefa específica nesse âmbito como os profetas por exemplo quanto a objetos de uso cultual Ver The International Standard Bible Encyclopaedia vol III WM B EERDMANS Publisching Co Grand rapids Mich 1939 p 1403 No pensamento de Mounier a noção que ele escolhe para dar conta dessa dimensão da existência humana e que o livra de cair no exclusivismo sem deixar de fornecerlhe o essencial quanto à singularidade da pessoa é a noção como dissemos de vocação Esta é apropriada tanto para dar conta da singularidade agradeço ao professor Franklin Leopoldo pela dica do uso desta noção do sentido de destino individual cada pessoa tem uma vocação que é só sua e que só ela pode realizar como do destino comum esta vocação que se expressa no tempo como determinadas tarefas tem como expressão última e unívoca para o personalismo a vocação mais geral a que todos os seres humanos são chamados a realizar ou seja a vocação de ser pessoa em comunidade Falaremos ainda nesse estudo passim da noção de artefato que se conjuga com a de vocação e que como já vimos é também fundamental para se compreender a reflexão de Emmanuel Mounier 19 A influência da fenomenologia axiológica de Max Scheler e do método fenomenológico como um todo é na formação do pensamento de Mounier determinante 20 Ver LUROL Gérard Mounier I Gènese de la personne Éditions Universitaires Belgique 1990 pp 97 ss II Quel cogito Aqui Lurol principalmente quanto à problematização e compreensão de Mounier do cogito cartesiano e do cogito biraniano vai deduzir o que caracterizará segundo sua opinião a posição epistemológica de Mounier no trato dos problemas em sua filosofia dialógica como a assunção de um insu de de uma ignorância prévia 21 O socratismo de Mounier é sublinhado por Guy COQ em seu Préface pp 7 a 23 à nova edição avulsa do primeiro texto programático lançado por Emmanuel Mounier em Esprit em 1932 intitulado Refaire la Renaissance col Essais Éditions du seuil Paris 2000 22 Isso já desloca e inverte o quadro e o sentido de uma atitude racionalista 29 Uma palavra sobre estes três aspectos que considero os principais mas não os únicos da epistemologia personalista Diferentemente do ceticismo epistemológico da Antiguidade o assumir de uma ignorância prévia por parte de Mounier tem a ver com a sua leitura do ato filosófico de Descartes na qual procura ressaltar antes o aspecto volitivo e ativo interno ao próprio cogito que com uma certa autorização da parte do pai da filosofia moderna23 foi subsumido na história da filosofia pela interpretação unilateral que o racionalismo burguês decadente posterior lhe deu e que tem servido como motivo válido para a crítica contemporânea duvidar das capacidades criadoras da pessoa enquanto construtora também pelo ato de inteligência de um mundo mais pleno de sentido de vida Tratase de um texto inédito24 escrito no período dos estudos de Mounier como aluno de Jacques Chevalier e que serviu como título da tese de conclusão do curso de filosofia intitulado O problema do antropocentrismo e do teocentrismo no pensamento de Descartes que o jovem Mounier ao que parece por via de Pascal antes que de Edmund Husserl25 procura notar o aspecto ativo e volitivo do ato do cogito cartesiano e do ceticismo adotado por Descartes como estratégico nesta concepção ativa criadora intrínseca ao próprio cogito A compreensão fora do que o sentimentalismo barato que o discurso politicamente correto atual possa colocar é no personalismo de Mounier uma noção que implica um tremendo esforço tanto intelectual quanto existencial Em Mounier compreensão tem num primeiro momento o sentido que lhe deu Wilhelm Dilthey método de conhecimento caracterizado pelo uso da intuição e da empatia os únicos meios apropriados para a investigação das ciências sociais históricas psicológicas ou culturais que constituem as ciências humanas em contraste com Verstehen explicação que se contenta com as qualidades e características contidas na definição de um conceito com base em construtos e categorias lógicas mentais prévias e delimitadoras da experiência Todavia Mounier não para por aí pois colocando para si a tarefa de elaboração em equipe de uma reflexão crítica literária e filosófica das realidades espirituais culturais almeja alcançar o 23 Ver sobre a tese de Mounier sobre Descartes em LUROL op et loc cit Ver também PETIT JeanFrançois Philosophie et théologie dans la formation du personnalisme dEmmnauel Mounier Cerf Paris 2006 pp 77 ss La lecture pascalienne de la philosophie de Descartes 24 Não consta assim como outras conferências e entrevistas radiofônicas artigos e correspondências em nenhum dos quatro volumes de Oeuvres Éditions du Seul organizados por Paulette Mounier mulher de Emmanuel Mounier em 1961 25 Ver PETIT op et loc cit 30 mundo da vida em sua expressão concreta e pelas vivências concretas no hic et nunc da manifestação do evento ao qual vai chamar de seu mestre interior26 Neste sentido a compreensão em Mounier não se restringe ao intelectual tomado como preocupação lógiconocional apenas o que seria tendo em vista o alcance ético para o mundo da vida que esta noção toma em sua reflexão na verdade para o personalismo antes uma comodidade bem ao modo do racionalismo burguês Por isso a compreensão em Mounier vai convocar tanto o cérebro quanto as vísceras No ato de compreensão eu me vejo todo envolvido Este ato me predispõe a lutar contra o que tem se tornado o mais natural ou antes o que quer nos fazer crer que seja o natural depois de toda a propaganda e os monumentos erigidos para seu culto a modernidade burguesa Essa investida e infiltração do espírito burguês na vida privada e social têm levado muitos a crê lo como se tratando de uma metafísica da natureza humana ou até mesmo já como uma segunda natureza Na verdade e é o que o personalismo vai denunciar tratase da tendência ou hábito de colocar como centro de atração da realidade o meu eu mantendo a ilusão de que por isso tudo deve necessariamente girar em torno dele O ato de compreensão proposto pela epistemologia personalista me força a um deslocamento para o lugar do outro De maneira mais concretamente precisa para o lugar do próximo sem que eu deixe ser eu mesmo Pelo contrário pois a experiência da alteridade é para o personalismo extremamente necessária para que a pessoa consiga delinear e firmar pelo que é diferente dela as linhas e os contornos próprios do que é o mais seu as linhas deslocáveis de sua própria personalidade que em suas dimensões e limites constituem a beleza própria de cada ser humano e as bases de apoio sobre as quais a pessoa delineia sua melodia motriz em suas aderências ao concreto e em sua luta pelo real Para o personalismo a experiência originária é a relação e não o solipsismo daí a sua antropologia relacional sobre a qual o presente texto pretende traçar algumas aproximações27 26 Ver Mounier et sa génération Oeuvres IV p 637 e pp 797 ss 27 O tema da alteridade é caro e recorrente em toda a obra de Emmanuel Mounier e para o movimento personalista que procura darlhe mais densidade existencial e de encontro forçando nele o sentido de uma inflexão para o tema do próximo antes também que para o tema do semelhante Para algum sentido disso ver Mounier Traité du caractàre Oeuvres II p 12 45 95 etc e todo o capítulo IX Le moi parmi les autres pp 468 a 600 31 O ser como superabundância é uma conseqüência de se entender o futuro como aberto e de dar espaço na epistemologia compreensiva personalista para talvez uma das dimensões mais profundamente significativas do ser humano a esperança28 O público que Mounier quer atingir é o das pessoas que como vimos cruzando a qualquer momento pelo caminho se dispõem a ouvilo e a falar numa franqueza crescente que se dá na constituição da amizade como Mounier queria interna à equipe de Esprit29 no sentido de um esclarecimento de ambos dos valores assumidos fora da máfé para que se esclareça e ao mesmo tempo se fortaleça enquanto não inventariável30 a verdadeira singularidade pessoal num sentido de superação constante de toda alienação estabelecida31 O texto a seguir que é o resultado de minhas leituras da obra de Emmanuel Mounier compõem uma aproximação que por isso mesmo sem pretender ser exaustiva ou final no entanto nutre a impertinência de querer apresentar o que se destacou das leituras 28 Uma reflexão como a de Mounier que toma em consideração na reflexão filosófica a esperança pela influência do pensamento de Charles de Pèguy 18731914 como uma das dimensões mais radicalmente caracterizadoras da existência humana para isso ver LANDSBERG Paul Louis Essai sur la expérience de la mort et Le problème moral du suicide col Sagesses Éditions du Seuil pp 48 ss o ser só pode ser entendido como superabundância para que a esperança não seja sinônimo nem devaneio utópico porque toda verdadeira esperança é ancorada na realidade e nem somente uma experiência particular porque sempre ancorada na estrutura mesma do ser como superabundância Falaremos mais adiante sobre esta compreensão do ser por agora uma boa indicação seriam as noções de possibilidade e de cifra de Karl Jaspers e de mistério de Gabriel Marcel Para uma visão teológica contemporânea sobre esta dimensão tão fundamental da experiência existencial humana ver TILLICH Paul O direito à esperança in Textos selecionados Fonte Editorial São Paulo 2006 pp 67 ss 29 Sobre a noção de amizade ver Mounier et sa géneration op cit p 809 30 Ver esta noção da pessoa como não inventariável em Gabriel MARCEL segundo a análise de Emmanuel MOUNIER em Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 80 31 Falaremos do sentido da noção de artefato que a partir da nossa leitura entendemos comandar a reflexão de Mounier Tratase de uma maneira de conceber o ser também como tarefa a ser realizada Todas as coisas para Mounier podemos dizer existem sob o modo de ser do artefato Esta noção eu já havia deduzido de minha leitura da obra de Mounier quando tive a oportunidade de tomar contato com a obra de Mangabeira Ünger em que esta noção em sua reflexão política mutatis mutandis também comanda Para isto ver ÜNGER Roberto Mangabeira Política os textos centrais Argos Editora Universitária e Editempo Editorial SC 2001 pp 25 ss Quanto à noção de alienação não se pode deduzila da reflexão de Mounier como sendo uma coisa ou derivada apenas de um elemento caracterizador in perpetuum de infraestrutura A alienação como bem colocou o existencialismo é esta propensão essa tentação constante em todas as esferas da vida em seus constituintes próprios que me convida à permanência numa existência desonesta para comigo mesmo e para com os outros em minha posição diante destes mesmos constituintes Esta desonestidade existencial que Pascal chama de divertissement Heidegger chama de inautenticidade Sartre de máfé Gabriel Marcel de desespero etc em Mounier todavia vai além do aquém que as caracterizações particulares destes existencialismos propõem A alienação no personalismo se inscreve antes de tudo na recusa de um projeto anterior a toda caracterização o qual ele vê como unívoco à própria afirmação da pessoa enquanto tal em seu movimento de personalização pelo qual ela luta com o real para conquistar a si mesma e conquistálo Nesse sentido as próprias caracterizações existencialistas tomadas em si mesmas fora do quadro significativo dessa vocação fundamental e originária da pessoa podem servir elas mesmas segundo o personalismo a alienações 32 citadas antes e para mim primeiramente como os elementos mais tocantes do pensamento de Emmanuel Mounier Espero que tenha alguma ressonância enquanto tal por parte dos que já tiveram contato com a reflexão do animador de Esprit A dificuldade de leitura de uma obra tão selvagemente asistemática como é a de Emmanuel Mounier nutrida e meditada no meio do fogo dos eventos que compromete quem a lê de cara num difícil jogo de honestidade intelectual e de fidelidade ao autor levoume à necessidade da leitura integral dos textos disponibilizados em Oeuvres lançado pela Éditions du Seuil 1961 composto de quatro volumes cuja composição se deve ao trabalho de recolhimento e arranjo da Mme Paulette Mounier esposa de Emmanuel Mounier juntamente com o apoio de colaboradores da Association dAmis de Emmanuel Mounier32 Pareceume haver por parte de Mounier antes que uma preocupação de sistema que não confundimos como já dissemos com uma preocupação de sistemática quer dizer uma preocupação por estabelecer sua reflexão como uma concatenção racional dos conceitos uma preocupação por assim dizer estética Uma estética do desabrochar da pessoa em suas manifestações não redutíveis multivariadas é o que lhe interessava na religião na educação na política na economia na literatura na arte no trabalho etc enfim tudo que era humano lhe interessava Nesse sentido o exemplo do artista plástico aqui nos ajudaria Em meu contato com a pintura moderna brasileira que particularmente muito aprecio percebi que o artista pintor chega a sua maturidade quando consegue expressar sua arte enquanto conquista de uma autêntica expressão singular Sabese sempre quando se vê que este é um E di Cavalcante que aquele é um Portinari etc Todavia essa expressão singular ganha maior densidade em sua singularidade mesma à medida em que ao mesmo tempo é um apelo ao que de mais universalmente humano ressoa em cada pessoa que a vê Há por assim dizer sem desapontamentos um ganho cada vez que nos demoramos na escuta da voz destas telas que expressam a maturidade do artista Nesse sentido deixarse guiar pelo evento como mestre interior para usar a bela expressão de 32 Em apoio consegui adquirir o número especial da revista Esprit de 1950 em homenagem a Emmanuel Mounier que faleceu em 22 de março deste mesmo ano no qual se encontram correspondências e informações biográficas sobre ele que não constam em Oeuvres além de uma série de artigos de intelectuais colaboradores em Esprit que lançam muitas luzes sobre o trabalho que havia se realizado até então em Esprit e sobre o personalismo de Mounier Encontrei também um artigo de Mounier que não consta em Oeuvres em MOUNIER Emmanuel Péguy médiateur de Bergson in Henri Bergson Essais et témoignages inédits Recueillis par Albert Béguin et Pierre Thévenaz La Baconnière Neuchatel 1941 p 319 33 Mounier seria entregarse à sinuosidade ao balanço próprio do movimento de personalização que se inscreve na história ocidental33 cujo sentido pode ser percebido só por quem se demora um pouco a ouvir sua voz por quem tenha boavontade Este movimento sinuoso Mounier queria agora escrito e como testemunho de sua escuta e o registro singular de sua voz enquanto mesmo podemos dizer a arte escrita do modo próprio de desvelamento da pessoa na história Em um artigo programático de outubro de 1932 isto já se apresenta como claro para Mounier nós agiremos pelo que somos tanto mais do que pelo que faremos e diremos a ação deve nascer da superabundância do silêncio Nossa ação não é essencialmente orientada para o sucesso mas ao testemunho34 Isso se nos esclarece um pouco mais o caráter extremamente selvagem do pensamento de Emmanuel Mounier que desafia qualquer tipo de aproximação organizadora Por isso fui obrigado prazerosamente obrigado a escrever um texto sistemático no possível e tentando seguir a inspiração da linha sinuosa que caracteriza o próprio movimento que a reflexão de Mounier dá acerca da emergência da pessoa em sua obra o que procuro cumprir em fidelidade à obra do autor ora sincrônico ora diacrônico Nesse sentido como diria Landsberg a consciência imita o ser profundo35 Há uma voz a ser escutada nos textos de Mounier há uma proclamação que exige uma aproximação desarmada Em Mounier que reconhece a inspiração personalista que há no desejo de liberdade e ousadia de pensamento ainda por exemplo em Kant todavia não se deixa de perceber o quanto estes elementos ficaram comprometidos e neutralizados nesta sua inspiração de base que em seguida à vitória do modelo da pseudodemocracia ocidental parlamentar representativa a partir do século XIX fica estrangulada e com a sua fonte estagnada e envenenada36 Essa vitória não é só do liberalismo idealista é a de toda uma família que 33 Falamos de filosofia ocidental o que não quer dizer que este movimento de personalização não seja discernível em qualquer outra cultura A irradiação do movimento personalista em várias culturas que não ocidentais é uma demonstração do apelo universalmente humano que não obstante é veiculado pelos moldes de uma cultura particular como a ocidental Portanto o problema para Mounier desde o início não foi o de fazer filosofia ocidental mas antes o de fazer uma filosofia humana Ver sobre isso LUROL op cit pp 67 ss 34 Révolution personnaliste et communautaire Oeuvres I p 152 35 LANDSBERG Paul Luis Essai sur p 49 36 Esta consolidação é bem exposta por Harold J LASKI que escrevera artigos para Esprit em seu livro O liberalismo europeu Editora Mestre Jou São Paulo 1ª ed 1936 1ª edição em Português 1973 pp 117 ss 34 lhe segue Esta solidariedade histórica do liberalismo esse compromisso assumido o tornou um meio caminho uma timidez em relação à liberdade e à ousadia de pensar ao que se dizia porta voz no início e portanto uma velharia uma peça de museu cujo mofo ideológico não responde mais aos anseios profundos da humanidade que atualmente despontam na linha do horizonte apesar mesmo dos esforços de cunho intelectualista na minha opinião mais lúcidos por parte de Habermas e não tão lúcidos assim por parte de John Rawls Isso fez com que este meu estudo sobre o pensamento de Emmanuel Mounier antes que uma simples descrição tomasse o sentido como já disse de uma problematização para a qual com a total anuência do diretor de Esprit é pedido que se faça até em relação a sua própria reflexão Creio que com isso cumpro um requisito prévio colocado pelo pensamento personalista de Emmanuel Mounier o de provar os valores Nesse sentido em relação ao liberalismo na verdade fica cada vez mais claro que se tratava apenas de um álibi da sua parte de um canto de sereia que inicialmente fazendo eco às inspirações e anseios humanos mais profundos logo em seguida ao seu triunfo foram sufocadas e finalmente esvaziadas em seu conteúdo de afirmação de vida pelos laços selados de um matrimônio centenário Mas também pela reivindicação individualista egoísta mantida pelo juridismo abstrato com que procura cercear qualquer tipo de manifestação de vida na sociedade não mais em nome da justiça apesar das aparências O casamento histórico do liberalismo de que falamos segundo Mounier se deu com a burguesia com o individualismo moderno que nasce com ela e com o capitalismo O primeiro se pretende como o pensamento matriz de vanguarda a segunda como a portadora da ética o terceiro como o doador do modelo antropológico e o último como o senhor plenipotenciário do que possa existir como ensejo ou como manifestação possível ou como experiência possível37 da dimensão econômica que a existência humana venha a propor sobre a face desta sofrida Terra 37 Daí os fogos de artifício da alardeada e atual pseudocientificidade pelo neoliberalismo HAYECK Friedrich von Scientisme et sciences sociales Essai sur le mauvais usage de la raison Plon Paris 1953 pp 94 ss VIII La finalité des formations sociales Nas seções que servem de conclusão a este ensaio vamos examinar algumas conseqüências práticas que decorrem das atitudes teóricas já discutidas Seu traço comum mais característico resulta diretamente da incapacidade em que elas se encontram por conseguinte na ausência de uma teoria sintética dos fenômenos sociais de sacar como a ação independente de muitos seres humanos pode produzir conjuntos coerentes estruturas duráveis de relações que servem a importantes desígnios humanos sem que tenham sido estabelecidas com este objetivo Ver também FREEDMAN Milton Capitalismo e liberdade col Os Economistas Nova Cultural 1985 E daí também o tratamento da economia como sendo coisa de quem entende coisa de técnicos É muita coincidência que eu esteja propondo um 35 Todavia a burguesia Mounier toma como espírito burguês algo mais diluído mais volátil já embrenhado nos costumes por isso já menos capaz de ser apreendido por uma crítica estritamente estrutural como é a marxista Esta não obstante seus méritos não é tida pelo personalismo de Mounier como a única proposta de socialismo possível nem como a proprietária plenipotenciária de tudo que diga respeito aos anseios de vida social da humanidade À revolução marxista Mounier propõe a revolução personalista e comunitária que o texto que segue procura de alguma forma esclarecer Ao indivíduo egoísta e reivindicador moderno e sua antropologia solipsista Mounier propõe a pessoa criadora e sua antropologia relacional ao capitalismo Mounier propõe um regime econômico pluralista de responsabilidade pessoal descentralizado até à pessoa O capitalismoliberalismo em sua proposta de modelo de vida reduzida à posse de dinheiro após ter conquistado o domínio político e embrulhado os indivíduos nessa sua mentira tira todas as possibilidades do seu alcance reduzindo ainda mais a vida de sentido da posse real do dinheiro ao sentido de uma busca de posse não mais garantida do dinheiro Assim o capitalismoneoliberalismo tem feito com que a maioria esmagadora do povo brasileiro não consiga se elevar em qualidade de vida e em sentido de uma existência mais integralmente humana do nível precário da busca cotidiana do ganho do pão em que paralela à dificuldade cada vez maior do ganho do dinheiro cresce cada vez mais incerto Essa situação dilacerante o capitalismoneoliberalismo mantém a custo de muita ludibriação pelos meios de comunicação de massa pela pseudoreligião pela pseudopolítica democráticoparlamentar representativa pela pseudoarte popular de consumo pelo esporte alienado como show como espetáculo alienado do sentido da formação integral da pessoa etc Ao concluir a leitura da obra de Emmanuel Mounier posso resgate da obra de Emmanuel Mounier que surgiu justamente no momento da extrema crise financeira na qual o mundo havia sido colocado por causa do regime anárquico arbitrário e irresponsável do capitalismo e seu modelo econômico crise iniciada pela quebra da bolsa de Nova York em 1929 e cuja indignação é altissonante por toda obra do animador de Esprit no exato momento em que o mundo começa a passar por outra crise vinda do mesmo lugar Em relação a esta cujas proporções mais gigantescas em relação à de 1929 seus atuais gurus técnicos cientistas dizem ainda não poder ser avaliadas Será que já podem mas a não elucidação seria parte de uma estratégia por parte dos mais prudentes para não se criar celeuma no Templo Mercado de Mamon Digo isso porque como já sabemos em tempos de crise o dinheiro deve ser servido em primeiro lugar Ainda em relação a isso temos a oportunidade de tocar nos aspectos e no círculo mágico que o capitalismo consegue dar a sua anarquia ingente de regime de irresponsabilidade graças aos novos parceiros cooptados pelo liberalismo a televisão e a imprensa Sobre isso ver abaixo Personalismo e liberalismo 36 dizer que o personalismo tem propostas que se me apresentam como ainda muito pertinentes enquanto solução para estes e outros problemas Espero ter tido êxito em ter feito na medida do possível quer dizer nunca exaustiva uma aproximação minimamente esclarecedora destes temas que se apresentam tão densos na obra de Emmanuel Mounier E assim ter contribuído para o resgate de seu pensamento O qual se encontrava esquecido como filosofia e lembrado apenas como o pensamento católico do pensador católico que fora por um lado ou erronea e rapidamente confundido com o neotomismo e estigmatizado como neotomista ou instrumentalizado para o bem e para o mal pela esquerda católica brasileira da década de 1960 Com isso de maneira alguma pretendo negar ou diminuir o valor do empenho por uma reabilitação da inteligência promovida numa época de tremendo impasse intelectual pelo movimento de Jacques Maritain Etienne Gilson e outros e nem o valor e a importância do papel que o movimento das comunidades eclesiais de base tiveram e têm junto ao povo pobre desse país no qual o espírito pequenoburguês ainda não apagou de todo o sonho de uma verdadeira liberdade Verdadeira como possível de ser ainda entrevista fora do jogo selvagem em que o capitalismoneoliberalismo tem comprometido e enredado a grande maioria do povo brasileiro Mas isso obviamente mais do que uma questão de pura inteligência ou de método só para os que têm ainda boavontade Agradeço a todo Departamento de Filosofia da Universalidade de São Paulo pelo apoio a este trabalho Em particular ao meu orientador Prof Dr Franklin Leopoldo e Silva pela pronta disposição em me orientar nessa retomada do pensamento personalista de Emmanuel Mounier pela muita paciência e gentileza com que sempre me tratou e recebeu Gostaria de agradecer à Profª Dr Maria das G de Souza chefe do Dep de Filosofia ao Prof Dr Marco A Werle e ao Prof Dr Moacir A Novaes Filho pela prestatividade e ajuda num momento crucial Ao Prof Dr Antonio J Severino da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo cujo livro escrito sobre a antropologia personalista de Emmanuel Mounier Pessoa e existência Cortez Editora São Paulo 1983 me foi de muita valia no meu trabalho de compreensão do personalismo de Mounier gostaria de agradecerlhe também pelo inestimável favor de ter me emprestado de sua biblioteca particular as obras de Emmanuel Mounier e outros textos sobre o personalismo que me foram muito úteis e sem o que eu não poderia ter tido acesso Ao Prof Cosimo B 37 Salimberi pela gentileza e valiosa ajuda com o Latim Ao Prof poeta e artista plástico Bernard O Rotschild pela valiosa ajuda com o Francês Pelo incentivo e apoio ao Rev e Prof Dr Ricardo Q Gouvêa e sua esposa Lilian ao Prof Dr Adécio T de Vasconcellos ao amigo Paulo de M Correa ao Rev e Prof Marcos de C Lourenço ao amigo Rogério de L Campos ao Prof Cláudio J A Rodrigues e sua esposa Katia ao amigo Herbert P Barbosa ao amigo Djalma J de Oliveira sua esposa Sônia e seus filhos ao amigo Orlando Januzzi Filho que com o apoio do Dr James H Charlesworth e do Dr Ephraim Isaac trabalha para a divulgação no Brasil dos estudos clássicos e mais atualizados da apocaliptica judaicocristã ao Professor Gil Santos e sua família em especial ao seu filho Mauro que me ajudou num momento crítico quando da finalização desse meu estudo Agradeço enfim a minha família meus irmãos José Josué e Joel a minha irmã Ruth e a minhas cunhadas Celma Kelly e Gilda 38 CAPÍTULO I PRIMEIRA PARTE Configurações HistóricoTeológicoFilosóficas das Noções de Igualdade e Liberdade Prolegômenos para a constituição da noção de Pessoa na formação do personalismo de Emmanuel Mounier Como fica claro pelo título deste capítulo uma abordagem sobre os constituintes fundamentais da pessoa humana que não leve em conta ou que queira negar seu caráter histórico intimamente atrelado às tradições religiosa e filosófica que se fundiram como pano de fundo do pensamento ocidental não seria nem personalista e nem poderia pretender muita consistência Portanto este capítulo tem por intenção esclarecer três pontos I Apresentar os aspectos relevantes do contexto histórico das idéias que circulavam no início do séc XX e que prepararam o fundo histórico sobre o qual o pensamento de Emmanuel Mounier foi sendo tecido no sentido de uma preocupação em superar o problema da relação entre fé e razão como até então vinha sendo colocado II Apresentar os aspectos importantes do desenvolvimento da reflexão de Mounier no seu contato com a filosofia e a teologia ambientes cujos problemas contribuíram para o desdobramento de sua própria reflexão III Tentar uma aproximação aos principais elementos que podem ser extraídos dos textos bíblicos38 que portam as inspirações constituintes das noções fundamentais de dignidade 38 Tratase nas duas versões da narrativa da Criação da narrativa da crição da humanidade a primeira da fonte dita Sacerdotal Gênesis 126 e a segunda da fonte dita Javista cap 2 como também da narrativa da libertação que se encontra no livro de Êxodo vinculada à palavra de Introdução da entrega das Dez Palavras Êxodo cap 20 Os primeiros quanto à noção de Dignidade e o segundo quanto à noção de Liberdade É a abertura ao histórico por parte do personalismo que esclarece o fato de que estas noções se encontram ao longo da história do Ocidente na base de todas as transformações qualitativamente importantes em que o sentido da afirmação da pessoa o movimento de personalização se manifesta como insurgência da pessoa quer dizer revolução Isso após a vazão criadora do seu elã próprio que toma sempre o sentido de um salto qualitativo na dramática tensa e dialética afirmação da pessoa na história não mais poder ser contido pelos quadros engessados e esclerosados das formas culturais que são postas em cheque nesse seu movimento afirmativo Deixo claro que não se trata aqui nem de trabalho técnico de exegese e nem de flerte com o historicismo mas de simples aproximações a três momentos fundamentais da 39 e liberdade que por sua vez e posteriormente se apresentam na Grécia e já como reflexão filosófica e que ali recebem uma contribuição específica para o que o personalismo chama de movimento de personalização Em seguida apresentar a síntese que caracteriza a contribuição própria do cristianismo primitivo a estes dois eventos fundamentais da história da humanidade Síntese da qual Mounier se vale em sua reflexão como base também constituinte do que ele concebeu como a superação do problema entre fé e razão como até então havia se colocado e que configura sua contribuição para a formulação dos princípios que dão base para o estabelecimento de um espaço realmente laico que para o personalismo está ainda por se fazer39 I É no final do século XIX e começo do XX que a Europa se vê minada nas estruturas de sentido que até então haviam lhe propiciado o sentimento de um destino e de uma vocação o ideal de vida e os valores da burguesia decadente estavam colocados em cheque pelas análises profundas vindas de várias áreas dos estudos das humanidades as quais procuravam discernir os verdadeiros móbeis e constituintes do indivíduo burguês modelo que até então se colocava como ideal de humanidade Kierkegaard vai destronar este indivíduo muito seguro de si mesmo e apresentarlhe as faces da sua situação existencial dramática que até então haviam sido encobertas pelo sonho de felicidade de segurança tranqüilidade e conforto burgueses Nietzsche levou a fundo a análise dos elementos subconscientes moventes deste indivíduo até o nível do elementar do visceral e instintivo Freud descortinou o ser cindido que é o ser humano e tiroulhe o sonho de uma unidade consigo mesmo fácil Marx percebendo muito bem que estas críticas esqueciam de um história humana em que se ressalta a partir da leitura da obra de Emmanuel Mounier o que me interessa neste capítulo e que assim espero ficará claro quanto ao esclarecimento da reflexão do próprio Mounier 39 De antemão lembramos que isso faz muito sentido pois a idéia de lacidade de espaço laico é uma idéia originalmente cristã As primeiras condenações dos cristãos foram de que eles eram ateus quer dizer não adoradores dos deuses da religião pública Nesse sentido Mounier vai permanecer sempre contra tanto uma filosofia cristã quanto uma política cristã Ver abaixo p 207 s sobre a idéia de espaço laico como originalmente cristã e a traição da construção deste espaço de todos pelo simulacro burguês iniciado no século XVI e mantido até hoje pelo neoliberalismo e seu neopaganismo travestido de pensamento autônomo Para mais detalhes sobre a configuração desta imiscuição pseudoreligiosa por via do liberalismo e atual neoliberalismo ver abaixo o capítulo III Personalismo e liberalismo 40 outro aspecto essencial e constitutivo da história deste indivíduo burguês o seu aspecto de ser coletivo apresenta uma crítica social que escapa à tentação da restrição ao frisson da intimidade do subjetivo é com Marx que as estruturas sóciopolíticaseconômico capitalistas recebem uma análise crítica decisiva em favor da sociedade e contra as reivindicações deste indivíduo burguês que é tomado a partir de agora pelo marxismo como mero produto da sociedade de classes burguesa que como tal desapareceria junto com ela com o surgimento da cidade sem classes socialista Tirando Kierkegaard tanto Nietzsche quanto Freud e Marx têm em comum quanto à esfera individual ou coletiva uma prévia desconfiança em relação ao religioso para os quais tratase sempre de um subproduto de alguma outra coisa Ou do ressentimento Nietzsche ou da neurose40 Freud ou da ideologia dominante Marx Reduzindo o espectro ainda um pouco mais a Nietzsche e a Marx citamos a seguir dois parágrafos de um texto de 1930 de Nicolas Berdiaeff quem exerceu forte influência sobre o personalismo de Emmanuel Mounier e foi um dos grandes apoios para o lançamento de Esprit em 1932 Dois homens que dominam o pensamento dos novos tempos Frederich Nietzsche e Karl Marx têm ilustrado com uma genial intensidade as duas formas de autonegação e de autodestruição do humanismo Em Nietzsche é sob sua forma individualista que o humanismo se renuncia e se destrói em Marx é sob sua forma coletivista O individualismo abstrato e o coletivismo abstrato são engendrados por uma única e mesma causa a subtração do ser humano às bases divinas da vida a cisão com o concreto Nietzsche é o filho do humanismo dos tempos modernos e sua vítima Ele paga pelos pecados daquele No destino de Nietzsche o humanismo tornase seu contrário Nietzsche sente que o ser humano é vergonha e humilhação Ele tem sede de vêlo se superar sua vontade aspira ao superhomem A moral de Nietzsche não admite o valor da personalidade humana ela rompe com o humano ela prega a dureza em relação ao ser humano em nome dos fins sobrehumanos em nome do futuro e do longínquo em nome da sublimidade O superhomem substitui em Nietzsche o Deus perdido Ele não pode ele não quer se manter no humano no humano só Com o individualismo sobrehumano de Nietzsche a imagem do homem perece 40 NIEBUHR Reinhold A criatividade humana e a autopreservação no pensamento de Freud O século de Freud in Benjamin NELSON org IBRASA São Paulo 1959 pp 279 ss Todavia toda esta obra é importante porque faz a crítica ao freudismo sob vários aspectos da cultura 41 E sobre Marx continua Berdiaeff Da mesma forma perece o ser humano no sobrehumano coletivista de Marx Marx espiritualmente saiu da religião humanista de Feurbach Mas nele também de uma outra maneira o humanismo tornase seu contrário se transforma em antihumanismo Marx sente a individualidade humana como a herança de um velho mundo burguês ele exige que ela seja superada no coletivismo A moral de Marx não admite o valor da personalidade humana ele também rompe com o humano ele prega a dureza em relação ao ser humano em nome da coletividade em nome do estado futuro do Estado socialista A coletividade substitui em Marx o Deus perdido Ele também não pode e não quer se manter no humano há na verdade no coletivismo de Marx alguma coisa de desumano de antihumano a personalidade do ser humano desaparece a identidade do ser humano se entenebra O coletivismo de Marx não admite a individualidade humana com sua vida interior infinita à qual glorificaria há não muito tempo atrás o humanismo de Herder e de Goethe41 Nestas palavras de Berdiaeff vemos que não obstante a negação da religião nestes dois pensamentos antitéticos o religioso vai acabar se encontrando lá de alguma forma É nesse sentido e em meio a este torvelinho que surge também a fenomenologia Além das pesquisas de Husserl vai se desenvolvendo paralela e autonomamente a fenomenologia axiológica de Max Scheler para quem pelo menos para o primeiro Scheler a religião era a única que continha os elementos que possibilitavam o encontro do ser humano consigo mesmo fundamentado nas estruturas essências de sentido e significado que só ela poderia dar a sua existência concretizados nos valores assumidos que no segundo Scheler já desconfiado da Instituição é o próprio homem que se apresenta como idéia eterna de Deus tornase um mikrotheós sendo então por esta humanização de Deus que o ser humano se diviniza42 Willian Ralph Inge na Inglaterra vai lançar uma obra erudita composta por oito Conferências43 dadas em Oxford sobre a Mística Cristã Nesta obra Inge procura salvar a ciência do impasse em que o racionalismo a havia colocado mostrando como a intuição 41 Para os dois parágrafos ver BERDIAEFF Nicolas Un nouveau moyen age Réflexions sur les destinées de la Russie et de lEurope Librairie Plon Paris 1º ed 1930 1934 pp 43 s 42 STEFANO Anna Escher di Max Scheler 18741928 A dimensão fenomenológica do sagrado in Deus na filosofia do século XX Girogio PENZO e Rosino GIBELINI organizadores Loyola São Paulo pp 161 177 43 Tratase das Conferências Banptom e a obra é de INGE Willian Ralph The Christian Mysticism Considered in Eight Lectures Delivered before the University of Oxford Methuen Co Ltda London 1899 42 mística de ver tudo sob o modo de ser relacional e em uma análise na qual remonta aos mistérios gregos passando pelo PseudoDionísio Areopagita44 Mestre Eckhart Jacob Böhme Ruysbroeck Johannes Tauler João da Cruz Teresa de Ávila etc e chegando aos platonistas de Cambridge e Emerson etc Inge apresenta com base na tradição da Grande Mística uma relação entre a esfera espiritual e a material que não sucumbe nem ao monismo e nem ao acosmismo A Mística Cristã antes de O Sagrado de Rudolf Otto e outros foi o livro que inspirou uma verdadeira retomada e indicou os caminhos pelos quais se poderia compreender a essência do fenômeno religioso Franklin L Baumer nos esclarece sobre a importância e o papel central como antecessora que A Mística Cristã teve em relação aos estudos na área da pesquisa religiosa que se ergueram contra o reducionismo racionalista que queria se manter como a herança do séc XIX para o séc XX Com as suas formulações de uma teologia da cultura e com a de um Deus acima de Deus Tillich impressionou os seus contemporâneos para quem os conceitos da teologia tradicional já não tinham qualquer significado A mística a que Tillich se refere freqüentemente nos seus escritos exige algumas anotações de passagem Embora não fosse um movimento importante no pensamento religioso era altamente sintomático O Deão da Catedral de Saint Paul em Londres já falava de Um grande reflorescimento de interesse pelo assunto cerca de 1889 Às Conferências Bampton da autoria de Inge sobre a Mística cristã seguiuse uma torrente de obras da maior importância grifo nosso de William James 1902 do Barão von Hügel 1908 Rudolf Otto 1917 e Evelyn Underhill para não falar de Adous Huxley que descobriu o misticismo numa primeira fase o abandonou depois trocandoo pela nobre selvajaria de D H Lawrence e por fim regressou a ele adotandoo como uma filosofia pessoal na sua novela Eyeless in Gaza 1936 e sobretudo em The Perennial Philosophy 194545 Com isso fica clara a importância de The Christian mysticism para o início daquele século início de um séc XX que se via às voltas com o reducionismo do racionalismo que já tomara a forma de hegemonia de paradigma dominante tanto na produção teórica como na prática em termos de visão aplicativa da técnica empirismo depois positivismo e 44 O formulador da via negativa ou apofática ou seja dada a nossa incapacidade de conceber os constituintes próprios do ser de Deus o seu conhecimento só pode se dar no âmbito da experiência finita de que dispomos pelo que Ele não é e não sobre o que Ele é É com Dionísio que nasce a via indireta do conhecimento 45 Cf BAUMER Franklin L O Pensamento Europeu Moderno Edições 70 Porto Vol II Séc XIX e XX p 217218 43 racionalidade instrumental e que já começava a demonstrar suas fraquezas e insuficiências quanto à necessidade de uma compreensão mais simpática das dimensões profundas da antropologia e quanto a uma visão mais ampla em relação ao específico do fenômeno religioso intrínseco a essa mesma antropologia A outra obra importante e que funda um ramo de pesquisa com objeto próprio o da Ciências da Religião é Das Heilige46 O Sagrado de que já falamos de Rudolf Otto As reflexões de Otto vão de encontro à castração e domesticação da religião pretendida pelo racionalismo liberal A ingenuidade de todo deísmo inclusive o do iluminismo ou seja o do racionalismo do século XVIII do qual somos filhos como bem notou Berdiaeff em sua afirmação pura e simples de Deus como o Grande Relojoeiro que criou o mecanismo do mundo deu corda e o tem deixado funcionar por conta própria é a que mutatis mutandis prevalece matizada na doce condescendência ou em sua própria terminologia tolerância que o liberalismo concede à religião no seu esquema geral de organização social A religião aí é muito respeitosamente uma das instituições à qual se tolera e se permite a existência é uma das antiguidades respeitosas que deve ter como diria o liberal Locke47 o seu lugarzinho garantido As características desta religião para se acomodar e cooperar no que o liberalismo chama de democracia deve trazer conforto espiritual aos seus membros lhes inculcar os valores da família no modelo burguês é claro deve ser uma questão de foro íntimo Os valores que dela possam apontar para a subversão da decadência conformista e mórbida em vista da afirmação da vida da dignidade da pessoa e da liberdade pessoal devem ceder a sua acomodação e depois transubstanciarse no 46 Esta obra de 1917 finalmente se encontra traduzida para o Português em edição conjunta OTTO Rudolf O Sagrado Faculdades EST Editora Sinodal e Editora Vozes São Paulo 2007 diretamente do Alemão em tradução que satisfaz aos padrões científicos antes tarde do que nunca Mas penso que se isso tivesse acontecido há uns cinqüenta anos atrás e lhe tivesse sido dada em nosso meio intelectual a atenção que merece estaríamos hoje em condições de elaborar uma crítica à religião mais consistente do que os preconceitos e superficialidades de um nietzschianismo generalizante ou de um relativismo fácil de uma antropologia sem rumo certo 47 Lettre sur la tolérance 1689 citado por GARANDEAU no VadeMecum de seu livro no artigo sobre a Tolerância Le liberalisme Textes choisis présentés par Mikaël Garandeau Flammarion 1998 Paris p 241 A primeira tarefa é empreendida por Locke na Carta sobre a tolerância 1689 onde não são simplesmente distinguidos mas separados inteiramente o domínio da Igreja e aquele do magistrado cf texto n 1 O Estado tem as funções puramente temporais proteção das pessoas e das propriedades o que retira todo estatuo público às Igrejas que se tornam associações voluntárias cujos membros se reúnem para adorar a Deus como entendem Mais à frente na crítica de Mounier ao liberalismo vamos ver o verdadeiro alcance que extrapola o puro político do bomsenso lockeano em relação aos constituintes essências do religioso 44 que estes mesmos valore teriam de intenção profunda em domesticação e adaptação social Mas tudo em nome do direito de expressão religiosa e da autonomia do espaço dito político Com essa idéia de um Deus distanciado da vida comum a quem devemos adoração pelo reconhecimento de sua onipotência à qual chegamos no entanto através da constatação racional dele como Causa não causada do universo ou seja o deísmo o iluminismo pretendeu ter encontrado a chave para a solução tanto das guerras religiosas quanto para o estabelecimento de um espaço laico independente da religião no qual se poderia mais tranqüilamente tocar o projeto de ciência e tecnologia consumo e economia pelo qual a contemporaneidade hoje se vê apertada para pagar o custo Este devido aos estragos da natureza e à insuportável injustiça social causadas tanto pelo tipo e modelo mantido pelo primeiro par ciência e tecnologia como pelo tipo e modelo mantido pelo segundo par consumo e economia O fato é que como deixa bem claro Rudolf Otto48 à luz de uma fenomenologia que trata da experiência religiosa humana sempre muito variada e complexa em todas as suas manifestações nas formas de adoração e culto e na experiência particular da vida dos cultuadores em sua relação com a manifestação do Divino não se pode nem manter a simplificação racionalista e muito menos o sentido de domesticação do divino que se encontram implícitos em sua noção de Relojoeiro Otto deixa claro que os aspectos de termendum de arrepiante de avassalador e de assombroso etc são em uma experiência autenticamente religiosa quer dizer numa experiência em que a plena consciência da própria finitude da distância e da precariedade do adorador no ato de adoração são intensamente contrastadas com a infinitude a distância qualitativamente absoluta a dignidade e majestade da Divindade produziriam antes o horror e o sentimento de aniquilação que a calma e racional contemplação da divindade domesticada do racionalismo tranqüilo e burguês Por fim ainda um último fruto da fenomenologia Tratase da obra de Gerardus van der Leeuw Citamos a seguir uma passagem em que Reale e Antisere resumem os aspectos principais de sua reflexão Assim Otto procurou evidenciar as categorias da experiência religiosa a essência da experiência do sagrado como experiência do totalmente Outro acompanhada como sombra pelo sentimento de criatura do homem religioso Na trilha de 48 Cf OTTO O Sagrado op cit passim 45 Rudolf Otto situase o holandês Gerardus van der Leeuw 18901950 que em sua obra Fenomenologia da religião 1933 afirma que a essência da religião está na potencialização máxima da vida O homem religioso não aceita o mundo em que vive preocupase com ele procuralhe um sentido o sentimento último que encontra na fé Ter fé é aceitar uma verdade de outro Quem diz creio em Deus admite o fato da existência de Deus foilhe dito ele crê Quem diz fé diz verdade Mas a fé é sobretudo confiança Assim a apresenta o homem que crê em Deus obedece a sua verdade e tem confiança nele Na opinião de van der Leeuw prossegue Reale e Antiseri o homem religioso não se deixa envolver pelas ocupações e resiste ao banal49 ele não se limita a aceitar a vida que lhe é dada procura encontrar um sentido para a vida e a organiza tendo em vista um conjunto significativo Acima do diverso e do acabado o ser humano estende a sua rede regularmente organizada é assim que nasce a civilização e aparecem as obras de arte os costumes e as economias Mas o homem não se detém nisso continua a procurar sempre mais além um sentido sempre mais profundo e vasto pergunta sobre o significado último das coisas e descobre o seu significado religioso50 Mas em que consiste esse significado último das coisas Responde van der Leeuw segundo Reali e Antiseri O sentido religioso de uma coisa é aquele ao qual não pode se suceder nenhum outro sentido mais profundo É o sentido do todo é a última palavra51 O sentido último é mistério que se revela sempre novamente e no entanto permanece sempre oculto Representa um progresso até o extremo limite onde se compreende somente uma coisa isto é que toda compreensão está além O sentido último é ao mesmo tempo o limite do sentido52 O homem religioso portanto procura um sentido para a vida e encontra um limite intransponível encontra o mistério Esse é caminho segundo Reali e Antiseri que van der Leeuw chama de horizontal Mas a experiência religiosa apresenta também um caminho vertical tratase de revelação que vem além desse limite O homem religioso segundo os nossos autores sabe com certeza que algo vem em sua direção pelo 49 Bem entendido viver só para a exterioridade pois o maior exemplo de pessoa religiosa que pode ser tirado do místico é o de não só consentir em se envolver com a cotidianidade como fazer desse envolvimento algo intrínseco à verdadeira espiritualidade Ver INGE The Christian Myscticism op cit Preface p xi s 50 Cf Giovanni REALE Dario ANTISERI História da Filosofia Edições Paulinas vol III São Paulo 1991 p 578579 51 Na fenomenologia da religião não se trata da última palavra racional sobre as coisas mas da constatação de uma experiência limite no próprio ato de nomear 52 Cf Givanni REALE ibidem 46 caminho pode ser que um anjo caminhe diante dele e o guie com segurança pode ser também um anjo com espada flamejante que lhe barra o caminho53 mas é indubitável que algo de estranho está atravessando o caminho de sua potencialidade54 grifo nosso E afirma van der Leeuw ainda segundo Reali e Antiseri O estranho é que o que Otto chama de numinoso é o totalmente Outro E é com essas categorias que tentamos descrever o que acontece na experiência religiosa vivida potência estranha totalmente diversa que se insere na vida Diante dela a atitude do ser humano é primeiramente de estupefação Otto e por fim de fé 55 II Essa breve aproximação ao pano de fundo intelectual europeu quanto aos estudos sobre o fenômeno religioso dos inícios do século XX nos dá uma idéia aproximativa mas que nos ajudará a situar melhor a reflexão que Emmanuel Mounier foi desenvolvendo em vista do evento da ação filosófica enquanto ato tal como o define Denis de Rougemont Todo pensamento real age no imediato em vez de sonhar no futuro ou no passado domina as leis Pensar com as mãos designa assim um ato que tenho dito ser o concreto o ato é alguma coisa de irracional que não se pode definir com frases ele não se prova senão à medida que se produz e sobretudo ele não pode ser descrito em geral pois só existe hic et nunc e nas circunstâncias sempre particulares56 Essa irredutibilidade do ato filosófico em seu comprometimento com o concreto com o aqui e agora é o que vai marcar a preocupação de Mounier em pensar uma filosofia na qual não tivesse que abrir de convicções que se lhe apresentavam como parte de uma experiência existencial tanto mais legítima do que a permitida desde o século XVI no Ocidente pela técnica moderna de uma razão mecanizada pensar uma filosofia amputada seria para Mounier ceder ao 53 Notamos aqui a influência de Rudlf OTTO na Divindade ou melhor no numinoso coexistem tanto o que nos atrai o fascinante quanto o aspecto tremendum arrepiante que nos afasta 54 Cf Givanni REALE ibidem 55 Cf Ibidem 56 ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains Gallimard Collection Idées 1ª ed 1936 nova ed 1972 France p 200 s Este clássico personalista foi lançado primeiramente na revista Esprit laboratório de idéias onde autores jovens desconhecidos mas que tivessem algo a dizer segundo Mounier encontrariam espaço 47 racionalismo57 A marca de uma postura firme em defesa da inteligência na elaboração de um diálogo irrestrito o qual ele vai fomentar e animar através da revista Esprit desde o ano de seu lançamento 1932 será uma das marcas do seu personalismo Voltando à questão da religião percebemos se despontar em Mounier sempre em vista da ação do ato o sentido cada vez mais claro de uma inconsistência em tomar o problema entre fé e razão como se tratando de uma arena de combate entre dois tipos de fé rivais58 O que não quer dizer por parte de Mounier nem a aceitação de uma harmonia preestabelecida no plano da metafísica e nem da superioridade confessional da fé religiosa ou laica que como tal como expressões de fé racionalista na razão gerariam apenas um círculo vicioso um embate maniqueísta em que com a fé confessional religiosa aquelas de diferente nesse ponto só manteriam o complemento adjetivo Para Mounier foi se tornando mais claro que esse era o tipo de problema que não poderia ser resolvido no puro âmbito noético com se tratando de lógica da identidade A fé para Mounier se apresentava como um ato pessoal profundo o qual acontece nas entranhas da pessoa e se identifica claramente com sua característica autoafirmação diante do mundo e de suas resistências por meio da adoção de valores livremente assumidos cujo movimento denominamos aqui movimento de personalização Um outro fato importante que deve ser relatado aqui pois marcará definitivamente a concepção de engajamentodesengajamento personalista de Mounier em sua trajetória na busca de uma ação como ato se refere à cidade de Grenoble onde nasceu em 1905 Ali Mounier em apoio ao trabalho humanitário promovido pela paróquia à qual pertencia vinculado às atividades que compunham a sua intenção de prosseguir na vocação do sacerdócio decisão que tomou depois de uma bifurcação em relação à carreira da 57 Na esteira de Henry Bergson via Charles de Péguy e Pascal via leitura bergsoniana E cf PETIT Jean François Philosophie et théologie dans le formation du personnalisme dEmmanuel Mounier Cerf Paris 2006 passim poderíamos continuar a lista de transversalidades PETIT consegue perceber muito bem como a leitura do jovem Mounier dos filósofos é desde o início uma leitura transversal Na formação de Mounier os filósofos aparecem em diálogo o peso de cada autor é contrabalançado por Mounier sempre pelo peso de um outro Vemos por aí a tendência selvagem e perspectival da leitura de Mounier que o manterá em guarda tanto contra a tentação do dogmatismo quanto ao que chamo de relativismo fácil Esta característica de Mounier é relatada por ele mesmo em Mounier et sa génération Oeuvres tomo IV p 411 De índole indecisa o mais selvagem de gosto acima de tudo espontâneo e talhado para a contemplação distraída do céu e da terra mais que para os empreendimentos e os dogmatismos A visão das coisas sob o modo de ser da relação já aponta aqui seus frutos 58 Como cita Paul RICOEUR em um texto de 1956 em relação à reflexão do filósofo protestante Pierre Thévenaz amigo comum de Ricouer e Mounier em Nas fronteiras a filosofia Loyola São Paulo 1996 p 148 duas confianças desafiandose uma a outra 48 medicina visada para ele por seus pais trava conhecimento com o Mons Guerry cuja influência sobre o jovem filósofo já na época aberto a questões sociais é ponderável59 Mons Guerry atuava como coadjutor do Arcebispo de Cambrai vigário de São Lourenço que era o quarteirão mais pobre de Grenoble As visitas constantes que Mounier faz às pequenas comunidades religiosas desse quarteirão permitemno tocar com o dedo na miséria Desde então para Mounier É preciso tocar a miséria60 Disso Mounier não se esquecerá jamais A partir daí o povo contrário à concepção abstrata do liberalismo como veremos mais à frente61 representará para Mounier a saúde a verdadeira grandeza perante o espantoso espírito de seriedade62 com o qual ele se deparou posteriormente na vida universitária Após sua conclusão do curso de filosofia com Jacques Chevalier através de quem Mounier entra em contato com o pensamento de Henry Bergson que exercerá também grande influência sobre o seu personalismo63 no dia 23 de junho de 1927 com 22 anos Mounier defende a tese sobre O Conflito do Antropocentrismo e do Teocentrismo na Filosofia de Descartes O importante a ser notado é que a escolha desta questão já era motivada pela busca de uma filosofia humana no sentido de que devia abranger todos os problemas atuais64 No dia 29 de outubro deste mesmo ano Mounier chega a Paris Imediatamente entra em contato com o Pe Pouget a quem Chevalier costumeiramente enviava seus alunos Pouget era um exegeta extraordinário sob a orientação de quem Mounier trabalhou a partir de novembro de 1927 duas vezes por semana até 1933 ano da morte de Pouget a este Mounier deve sua sólida formação 59 MOIX Candide O pensamento de Emmnauel Mounier op cit p 7 60 Dentro da epistemologia personalista tocar significa mais do que a tatilidade indica Para o personalismo tratase da experiência fundante de todo ato filosófico que se queira denominar crítico da modernidade Enquanto Aristóteles podia apaziguado com sua justificação da escravidão por exemplo ver o ato filosófico ser iniciado por um espanto pelo vislumbre de uma unidade racional intrínseca ao cosmos Cf Metafísica Livro I cap 2 982b para Mounier o ato filosófico contemporâneo deve ser iniciado por um ato de indignação contra a injustiça e a feiúra em vista da restauração da justiça e da beleza ainda por se fazer Ver abaixo o tópico sobre Pobreza e miséria p 412 61 Ver abaixo Personalismo e liberalismo 62 Mounier et sa géneration op cit p 482 63 Sobre o contato de Mounier com o pensamento e com o próprio Bergson ver LUROL Gérard Mounier I Genèse de la Personne II Le Lieu de la Personne Lhartmann 2000 pp 85 ss Esta mesma obra fora primeiramente lançada por Editions Universitaires em 1 Volume 1990 Ver também PETIT op cit Chapitre III Mounier et Bergson aux fondements dune méthode philosophique pp 49 ss Chevalier professor de filosofia do jovem Mounier se declarava bergsoniano manteve sempre muita admiração por Bergson de quem era amigo pessoal e colaborador em trabalhos intelectuais 64 LUROL op cit passim Ver também PETIT op cit p 78 s 49 teológica65 O trabalho que Emmanuel Mounier realizou com o Pe Pouget versava principalmente sobre a crítica bíblica a história das religiões os místicos em particular são João da Cruz e as duas santas Teresa66 Mounier havia dedicado uma ficha de 7 de dezembro de 192867 com algumas indicações sobre essa impressionante figura que aqui transcrevemos Nascido no Cantal Em Berger até doze treze anos sua inteligência aos quatro anos descobre a demonstração da superfície da elipse Notado é enviado ao pequeno seminário Ali bem mais adiantado que seus companheiros faz de propósito grosseiramente seus deveres para ser menos bem classificado aos oitenta anos acha tudo isso estúpido Um estatuto de são Vicente de Paula decide tornálo lazarista Inicia sua carreira no ensino Ele ensina tudo matemáticas depois física geologia etc Enviado por dois ou três anos para Évreux depois volta a dirigir um pequeno seminário em SaintFlour onde funda um jardim botânico Enfim retorna à casa central em Paris onde passa todo o resto de sua vida Aí começa seus estudos bíblicos com Loisy e outros e elabora todos os seus trabalhos Não abandonando suas preocupações enciclopédicas trabalha a geologia para aprender a geologia da Bíblia hoje ele ri disso aprende o hebraico e começa a estudar as Escrituras já no texto hebraico no grego e no latino Escrituras que sabe agora de cor Em 1908 iniciase no ensino das Escrituras e tornase pouco a pouco cego68 Neste momento no âmbito da teologia Mounier pode entrar em contato com as críticas polarizadas de então entre o integrismo69 e o modernismo70 Mas é também o momento em que ele toma contato com as pesquisas na área da teologia bíblica e histórica que começavam a se delinear Estas resgatando o caráter histórico da Revelação se delineavam aos poucos como crítica aos pressupostos hermenêuticos advindos da metafísica clássica tradicionalmente tomadas sob o rótulo platônicoaristotélica que de 65 O Pe Pouget impressionara profundamente Emmanuel Mounier Em carta a Chevalier diz Eu não saberei jamais como vos agradecer por ter me feito conhecer o P Pouget Quando eu me encontro em sua presença me parece que estou em face da verdade Mounier et sa génération Ouvreus IV p 428 Em outra carta a sua irmã Mounier diz que em relação a Pouget a juventude se desenvolvia com os anos Ibidem p 422 66 LUROL Mounier I Genése de la personne op cit p 122 67 Ibidem pp 428429 68 Um outro exaluno de Pouget Jean Guitton escreveu uma biografia do mestre GUITTON Jean Portrait du monsieur Pouget Paris Ed Du Cerf 1941 cf PETIT op cit pp 99 ss 69 Ou em linguagem atual o fundamentalismo na versão católicoromana 70 Liberalismo enquanto a versão protestante da teologia dissolvente do religioso capitulada pelo racionalismo neokantiano dominante no século XIX ou ainda neokantismo 50 uma forma ou de outra na visão ocidental herdada dos gregos se interpunham entre interprete e texto Situando o cristianismo entre o integrismo e o liberalismo Mounier em um texto de maio de 1946 portanto num momento em que sua reflexão já está mais amadurecida esclarece o que neste momento de formação é plantada a semente já não se trata com efeito para ir ao encontro dos homens de deduzir das Encíclicas uma doutrina social cristã que se esforça penosamente por seu prestígio há cinqüenta anos em atraso com o desenvolvimento das idéias e dos fatos Quando o Cristo diz Meu reino não é deste mundo não diz que nós não estamos neste mundo mas que sua mensagem não é diretamente destinada à feliz administração deste mundo Para esta administração devemos trabalhar em contato direto com as dificuldades do momento e não aviltar a transcendência cristã nos tratos claudicantes ridículos perante o mundo e ridículos perante Deus Há mais de um século as condenações dos compromissos filosóficos ou sociais teóricos ou práticos liberais ou integristas se acumulam entre a Palavra de Deus e os seres humanos Elas assinalam outro tanto de esforços ingênuos e muitas vezes heróicos para estabelecer a relação do cristianismo com o mundo que deve permanecer uma zona de combate e confronto direto grifo nosso71 Não recomecemos com o cristianismo revolucionário comunismo cristão ou seja lá qual for a velharia nova Assim como para enfeitar nossas igrejas não seria necessário acrescentar coisa alguma mas suprimir maciçamente os ouropéis e as estátuas do mesmo modo para furar esta muralha de malentendidos que enche doravante a mensagem cristã não é preciso inventar qualquer novidade mágica mas reinventar o próprio cristianismo devolver à Palavra a sua nudez penetrante e com todos os seres humanos executar adequadamente nosso trabalho de seres humanos72 Por esta citação anterior podemos ver estabelecida no Mounier mais maduro uma posição que no entanto foi se delineando aos poucos em sua precisão já que as regras do jogo se encontravam totalmente viciadas pelo maniqueísmo intelectual e religioso durante todo o período de sua formação intelectual Por outro lado esta busca por situarse fora da 71 As heranças heraclitianas são evocadas aqui Tratase do elemento polêmico de pólemos guerra que deve permanecer É nesse sentido que Heráclito vai ser chamado pelos cristãos já no segundo século de o cristão antes de Cristo Cf INGE The Cristian Mysticisme op cit p 47 nota 1 72 MOUNIER Emmnauel Feu la chrétienté Oeuvres III Éditions du Seuil 1962 p 537 Este texto apareceu pela primeira vez nas Éditions du Seuil na Collection Esprit em 1950 Os textos que o compõem foram escritos durante os anos de 1937 a 1949 51 mentira para dentro da lucidez é possível a ele nesse momento tenso da história intelectual européia pelo desenvolvimento da hermenêutica histórica pelo evento de uma grande circulação de idéias em que como temos tentado apresentar tanto pelos estudos de fenomenologia da religião quanto pelos estudos históricos das fontes e das origens do cristianismo primitivo e das Ciências Humanas se colocava em cheque a onipotência da hermenêutica racionalista neokantiana e se apontava claramente os seus limites Este fato é importante para entendermos o delineamento que a sua reflexão foi tomando no enfrentamento do problema entre fé e razão que nos interessa aqui mais particularmente como problema da possibilidade de uma articulação filosófica dialógica que como notamos já o preocupava desde o seu trabalho de conclusão do curso de filosofia com Chevalier sobre o antropocentrismo e o teocentrismo na filosofia de Descartes Antes de continuarmos a descrição do ambiente intelectual e o delineamento da posição de Mounier em seu meio caberia agora um intermezzo fidei um esclarecimento sobre a noção fundamental de fé no âmbito do personalismo I1 Intermezzo Fidei Para o personalismo o ato de fé é aquele que mais especifica a relação da pessoa seja com o seu mundo interior ou o exterior Diferentemente do que possa crer o racionalismo estreito o ato de fé é o único e verdadeiro ato imparcial Do Latim impartiālis conexo negativo do Latim tardio partiālis parcial Este adjetivo deriva de pars partis parte quinhão porção região país partido facção73 Nesse sentido o ato de fé é um ato de adesão integral em relação ao todo do seu objeto ou seja nunca é um ato parcial cuja intencionalidade fundamental seria a de dividir quer dizer em outras palavras tratase do antônimo mesmo do que estamos falando como part fanático parcial O ato de fé como descrito aqui precisemos o ato de verdadeira fé é o único ato que especifica o modo de ser do universo pessoal porque só ele implica uma adesão total Falar de fé nesse sentido seria o mesmo que falar de ato filosófico como descreve Rougemont É por isso 73 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa Editora Objetiva Rio de Janeiro 2001 52 que um dos poucos méritos do racionalismo do séc XVIII o de crítica à superstição74 na verdade já é uma propriedade intrínseca a todo ato de fé verdadeiro quer dizer de adesão total em relação ao seu objeto contra a traição ao objeto que se dá por exemplo tanto na forma da superstição como no próprio modelo de apreensão racionalista do objeto que tem se perpetuado como paradigma de apreensão E isso por causa do comum sentido que toma em ambos na superstição e na apreensão racionalista sua investida sobre o objeto quer dizer o sentido de uma apreensão sempre parcial do mesmo como sendo total ou seja uma parcialidade sempre arbitrariamente afirmada Sobre isso diz o membro da primeira equipe de Esprit a razão não é somente esse instrumento de nossa dominação sobre as coisas Ela é também uma defesa necessária contra a tirania dos mitos É talvez ela quem nos tenha livrado do império das magias primitivas 75 E em nota acrescenta ainda Rougemont Ainda que a Reforma tenha feito mais que a Renascença contra suas superstições herdadas do mundo antigo pela Idade Média A verdadeira fé grifo nosso é para a magia um adversário de um outro talhe que o da razão76 Essa adesão total é a característica da intenção de presença da luta da pessoa em afirmarse no tempo em confronto com as resistências próprias impostas pelo objeto A compreensão da pessoa como prosopon como máscara a compreensão de que em cada ato da pessoa o que se apresenta é um aspecto dela que se descortina no mundo e para o mundo ao mesmo tempo em que uma oportunidade de auto descoberta e convite a um aprofundamento das suas possibilidades é o único locus segundo o personalismo que pode e deve implicar parcialidade Pois esta sempre será dependente de uma interpretação do ato de fé possível que subjaz à expressão parcial pois sua manifestação será sempre parcial ao entendimento do ato de fé mesmo que do ponto de vista personalista permanece enquanto fé verdadeira por outro lado sempre uma adesão total No ato de fé personalista há uma inversão das noções de totalidade e parcialidade em relação a como o racionalismo concebe estas noções Enquanto que no ato de fé personalista a totalidade do objeto é sempre uma promessa pois o ser do qual o objeto é expressão é superabundância e sua parcialidade ou perspectiva é a defesa contra a objetificação do objeto para o racionalismo o ato de conhecimento detentor em si da única totalidade 74 Ver ROUGEMONT Pensée avec les mains op cit p 41 ss 75 Ibidem 76 Ibidem p 44 nota 2 53 é a priori certo e seguro pois este se considera portador tanto das categorias essenciais que constituem todo o ser quanto do método certo e seguro que garante sua ação de compartimentalização onde aloja a parcialidade para a dominação77 No ato de adesão da pessoa que é total e implica uma presença real como temos visto no engajamento no tempo e espaço a parcialidade que é própria da pessoa sua máscara e que é sempre o que se deixa mostrar em seu ato de presença e expressão carrega consigo a característica também parcial dos meios que emprega nesta sua expedição ao ser que é a sua afirmação e presença Esta presença da pessoa não é um ato fácil e a priori garantido por categorias certas e seguras como o é para o indivíduo racionalista possuidor de uma unidade garantida e segura a priori e abstraída como intelecção pura A diferença radical entre o indivíduo racionalista e a pessoa é que aquele fechado em seu ato parcial intelectivo o proclama aos quatro cantos como a palavra final como o universal possível enquanto que a pessoa reconhecendo a fragilidade e parcialidade do seu ato é atenta ao que pode vir do ser como possibilidade o ser para a pessoa é transbordamento Para a pessoa sua presença no mundo é uma luta uma aventura arriscada não é uma tranqüilidade Mas este seu movimento dramático de autoconhecimento pelo qual dá se também a conhecer é a única maneira pela qual ela pode se realizar Quando Mounier diz que a pessoa insere um princípio de imprevisibilidade nas estruturas da mesma forma que o rei Midas em tudo que ela toca este princípio de imprevisibilidade se torna constituinte Nenhum engajamento pode esgotar o ser da pessoa pois todo engajamento circunscrito à temporalidade que lhe é própria é a manifestação no tempo de uma presença que é toda ela movimento de extravasamento do tempo das estruturas limitadoras tensão para o futuro em uma palavra esperança78 Portanto o ato de fé é irrefutável quer dizer não se presta às artimanhas silogísticas porque como adesão total da pessoa sua expressão própria é o testemunho Ora não se refuta um testemunho decidese algo fundamental diante dele ou não Concluímos assim que o ato de fé que começando como adesão total da pessoa é irrefutável por este seu caráter mesmo de adesão total mas que em seu desdobramento intencional no âmbito da finitude recuperando o movimento que lhe é próprio e inserindo 77 Lembrando o lema do tirano dividir para conquistar 78 Teremos a oportunidade de desenvolver melhor o tema da esperança no pensamento de Mounier no Capítulo II abaixo 54 se no tempo manifestase como testemunho do ser como transbordamento O ser não pode ser contido e exaurido pelas categorias com as quais nós o enquadramos nem pela nossa experiência sempre válida sem dúvida mas sempre parcial dele79 Nesse sentido o ato de fé se caracterizando como adesão total ao ser como transbordamento como é todo ato da pessoa insere no âmbito mesmo da parcialidade estática parmenidiana como o atributo mais próprio do ser e na experiência possível da pessoa em relação a ele que se dá no âmbito da finitude um elemento de movimento de imprevisibilidade e de risco características fundamentais do universo pessoal que impede a queda neste que é o verdadeiro nãoser ou seja o ser do racionalismo sempre subsumível sempre à disposição80 O ser no sentido do personalismo antes que um construto restrito ao nocional81 é também para a pessoa um trabalho a ser realizado O ser mesmo tomado pessoalmente ou seja como adesão total deve sêlo sob o modo de ser mais próprio da pessoa diante do mundo o do artefato Como vemos o ato que se convencionou denominar racional pelo contrário é sempre um ato fundamentalmente parcial e parcializante Esta flagrante parcialidade vem se mantendo ao longo da história da cultura ocidental pelo que a tradição vitoriosa porque a mais aderida82 a do paradigma intelectualista definiu como sendo o racional quer dizer como um ato restrito ao universo nocional O dogmatismo e a intransigência da manutenção desta parcialidade do racional tomado como ato nocional travestida de ato total pela tradição do paradigma intelectualista ocidental corresponde portanto na verdade do ponto de vista do personalismo a uma grande inversão decadente das coisas Enquanto seu ato fundante é uma parcialidade travestida de totalidade seu momento 79 Pretender isso seria como diz Ortega y GASSET fazer a propaganda enganosa que Heidegger propõe em Ser e Tempo ou seja promete falarnos do ser e falanos de um ser do Dasein É inconcebível que num livro intitulado Ser e tempo em que se tem a pretensão de destruir a história da filosofia num livro portanto escrito por um Sansão de cabelos curtos não se dê o menor esclarecimento do que signifique ser e nos deparemos porém com esse termo colocado em inúmeras modulações de flauta como Seisinn sentido do ser como Seinweise modo de ser como Sein der Seinden ser dos entes etc enfim Hiedegger procurou concentrar a atenção e esse é o aspecto mais produtivo de sua obra sobre o modo de existir desse ente do Dasein cf SAVIGNANO Armando José Ortega y gasset 18831955 Cristianismo e secularização in Deus na filosofia do século XX op cit p 229 s 80 Mais à frente veremos como Bergson inverte a questão do ser parmenediano como nãoser e do nãoser como devir como o verdadeiro ser Para tanto ver THÉVENAZ Pierre Refus du réel et espiritualité in Henri Bergson Essais et témoignages inédites recueillis par Albert Béguin et Pierre Thévenaz La Baconnière Neuchatel Suiça 1941 pp 97 ss 81 Cuja experiência fundamental e o seu esquecimento a propaganda enganosa de Heidegger em Ser e Tempo promete descrever mas que nos dá apenas a descrição de um ser o Dasein como vimos antes 82 Até aqui o princípio do número o da quantidade ao da qualidade é o que tem ditado as ordens 55 seguinte que não poderia se dar por conta mesmo de seu caráter parcial é justificado em sua vitória pela criação da hipóstase de uma razão abstrata e independente do ato pessoal83 Se no pensamento contemporâneo mas já começando em Pascal Kierkegaard e Nietzsche cada qual a seu modo denunciam esta dogmática inversão acabrunhando a sua expressão grandiloqüente por outro lado sua intenção reducionista de fundo e sua arrogância por sentirse em terreno seguro demarcado pelos valores pragmáticos e utilitaristas prevalecentes ainda permanecem e de tal forma preponderante que muitas vezes nem mesmo as filosofias que se colocam como crítica à modernidade percebemse vítimas dela84 É como se o antídoto aplicado tenha acabado se tornando para o bem do vírus um aviso de que o inoculado acabaria morrendo se ele não fosse transformado logo em hospedeiro85 Neste sentido o personalismo vai procurar precisar o locus desta hospedagem no que denominaremos sono dogmático do aquém da razão perpetuado pelo chamado pensamento contemporâneo não obstante seus antecedentes de crítica à modernidade O personalismo se propõe uma integral crítica à modernidade focando para além dos fogos de artifício seu núcleo verdadeiramente explosivo Portanto é só a manutenção de um preconceito fundado numa relação remota entre o ato de fé legítimo que definimos como adesão total da pessoa e o dogmatismo o que procura descaracterizar esta dimensão fundamental do universo afirmativo próprio da pessoa Não é por acaso que o racionalista Karl Popper em sua experiência como professor colegial percebe o ato de adesão de fé pejorativamente tomado já como dogmatismo característico da estrutura autoafirmativa do indivíduo já na adolescência Sem outro 83 O maior exemplo disso nós encontramos em Hegel cuja filosofia que representa se pretende como a autoconsciência do espírito absoluto Ver HYPPOLITE Jean Génesis y Estructura de la Fenomenología del Espírito de Hegel Ediciones Penísula serie Universitaria Barcelona Espanha 1974 pp 131 a 172 84 Elucidaremos melhor esta questão no capítulo abaixo sobre Pessoa e existência 85 Um outro exemplo da mesma situação mas no âmbito religioso é o caso da heresia docética na história do cristianismo primitivo Não obstante esta heresia ter sido ferrenhamente combatida pelos Pais da Igreja e ao longo da história do cristianismo por suas cabeças mais lúcidas ela ou seja sua inspiração de fundo tornou se algo muito mais presente do que possa imaginar nossos estritos historiadores do dogma e do pensamento religioso O docetismo todavia uma expressão religiosa eivada de inspiração gnóstica enquanto também como esta negadora da matéria em favor do espírito por isso mesmo pelo seu ódio ao corporal que dizia que o corpo de Jesus Cristo sempre tivera sido uma ilusão uma irrealidade acabou entrando pelas portas do fundo das Igrejas institucionais cristãs católicas protestantes etc o que ao mesmo tempo que justifica as críticas de Nietzsche ao cristianismo enquanto projeção sociológica por outro lado nos faz problematizála e considerar o fato de que não seria o caso antes de um erro de perspectiva de Nietzsche e que deveria antes ter dirigido sua crítica ao gnosticismo do paganismo Vamos ter ainda a oportunidade de voltar sobre essa importante questão 56 sentido como por exemplo o do sinal de resistência e necessidade de afirmação em sua luta pelo real contra os engesamentos da pessoa adolescente que todavia como é a característica da preocupação metodológica de Popper é visto antes como fatobase que o inspira a elaborar o seu método86 Por este Popper transforma o que para o personalismo aponta para o sentido de uma expressão vital de adesão da pessoa em problema epistemológico na verdade pejorativamente em dogmatismo para o qual Popper encontra solução pela aplicação do campo laboratorial para o convívio social do seu método experimental racional de tentativa e erro sobre teorias sem contestar óbvio a teoria geral do racionalismo que permanece no fundo do seu método87 Denominar pejorativamente o ato de fé de dogmatismo tem sido uma das formas pelas quais o racionalismo liberal o tem desclassificado nivelado e posto num só balaio toda adesão da pessoa que não se acomode aos seus quadros de referência88 Ora é necessário usando a fórmula de Mounier desolidarizarmos o ato de fé genuíno que é adesão total próprio do universo da pessoa de sua caricatura do seu desvio quanto esclarecermos os seus mais autênticos constituintes Falamos a pouco de juventude A juventude é um tema caro a Mounier O animador do movimento Esprit inicia sua vida pública de intelectual bem jovem num momento em que a Primeira Guerra havia consumido os homens maduros Mounier diz que era difícil encontrar um homem de quarenta anos nesse momento Todavia é o símbolo da juventude89 com o que representa de abertura ao futuro de missão e riscos de vocação assumida de vitalidade de sede de inovação de inquietude visceral para com os comodismos e simplificações tranqüilas 86 POPPER Karl Autobiografia intelectual Editora Cultrix Editora da Universidade de São Paulo São Paulo 1977 passim 87 O reducionismo biológico trataria esta questão como indicando simplesmente uma fase de explosão hormonal O racionalismo mais do que um método é uma maneira de conceber o mundo é uma Weltanschauung Daí o personalismo não criticálo apenas como lógica e insistir por estender o campo de discussão à ética e à religião 88 A maior expressão disso tem sido o esforço da chamada filosofia analítica em seu científico movimento logicista Que é verdade Karl Popper tenta de alguma forma superar Sobre isso ver POPPER Karl Sociedade aberta e seus inimigos Editora da Universidade de São Paulo Editora Itatiaia Limitada vol 2 ver as notas das pp 307310 sobre a filosofia analítica e Wittgenstein 89 Isso não quer dizer de forma alguma a desconsideração do corpóreo uma pura espiritualização do significado concreto de juventude A Mística simbólica cf INGE The Christian Mysticisme op cit pp 249 ss nos ensina que o símbolo é uma forma de comunicação válida de realidades profundas cuja aproximação não pode se dar através da comunicação direta Se não fosse o reducionismo logicista segundo a perspectiva personalista a ciência positiva e seus símbolos convencionais seriam antes uma prova da propriedade dessa forma indireta de conhecimento De qualquer forma teremos oportunidade de expandir melhor isso quando falarmos do problema da comunicação em Mounier quando do seu debate com o existencialismo Ver abaixo Pessoa e existência 57 enfim de gana pela vida de biofilia numa palavra que interessa a Mounier como a marca que caracteriza neste momento fascinante prenhe de futuro e esperança na vida de cada um o sentido afirmativo deste movimento próprio do universo da pessoa como auto afirmação de sua presença no mundo Seguindo este movimento diacrônico de exposição mas que procura seguir o sentido da pessoa O qual não pode ser traçado por uma linha reta simplesmente depois dessa digressão necessária voltemos à aproximação do ambiente intelectual que fez parte da formação de Emmanuel Mounier e que nos interessa para a compreensão da sua solução para o problema da relação entre fé e razão Em Paris Mounier prossegue em cursos na Sorbonne e na École des Hautes Études chega a fazer um curso sobre o livro de Atos dos Apóstolos com o teólogo protestante Maurice Goguel também mestre do teólogo biblista protestante Oscar Cullmann considerado um dos maiores teólogos bíblicos do século XX e principal expoente de um método de interpretação ou chave hermenêutica denominado Heilsgeschichte história da salvação90 Mounier em carta a sua irmã de 5 de novembro 90 Ao completar a leitura da obra de Mounier fiquei impressionado com a proximidade dos problemas levantados sobre a historicidade entre Oscar Cullmann na teologia bíblica cujo trabalho eu já conhecia e Emmanuel Mounier na filosofia sem conseguir estabelecer ainda nenhum elo pois Mounier nunca o cita Mas é a circulação de idéias e professores comuns ou indiretamente comuns que possibilitanos estabelecer uma relação entre suas preocupações Além de Goguel Mounier como já dissemos estudou com Pouget que fora aluno de Alfred Loisy Pois bem tanto Goguel quanto Loyse foram professores de Oscar Cullmann A área de concentração dos estudos de Oscar Cullmann 19021999 durante os seus mais de setenta anos dedicados à exegese bíblica foi a dos textos neotestamentários Sua crítica à metafísica clássica como incapaz de fornecer uma chave hermenêutica adequada para a interpretação dos textos bíblicos e o seu resgate do histórico deslocam o dualismo metafísico proposto pela metafísica clássica entre mundoalém e mundo terreno ou o dualismo metafísico entre tempo e eternidade para segundo Cullmann o único dualismo possível a partir do Novo Testamento um dualismo temporal histórico entre um já e um ainda não Tive a honra de traduzir para o Português as principais obras de Oscar CULLMANN Das origens do evangelho à formação da teologia cristã Editora Novo Século 2000 Cristo e o Tempo Tempo e história no cristianismo primitivo Editora Custom São Paulo 2003 Cristologia do Novo Testamento Editora Custom São Paulo 2003 Salvação como História Editora Hagnos São Paulo 2006 Estas três últimas obras compõem a chamada trilogia da teologia bíblica de Oscar Cullmann e contêm as bases da sua hermenêutica Todas as três se encontram atualmente lançadas pela Editora Hagnos São Paulo Traduzi também A Oração no Novo Testamento o último livro de Oscar Cullmann que como ardoroso lutador pela causa ecumênica vê na oração o sentido da unidade possível entre as diversas confissões cristãs No campo da exegese e pelo caminho da afirmação da temporalidade Oscar Cullmann vai se contrapor ao liberalismo de Albert 58 1929 relata uma série de cursos que realizaria então No total pois eu seguiria os HautesÉtudes Segundafeira 1045 Goguel Explicação dos Atos dos Apóstolos A partir de 1 janeiro terçafeira 1630 Gilson As Doutrinas da Inteligência na Idade Média Quartafeira 1430 A Mística Especulativa de São Bernardo a Dante Duas vezes por semana das 1430 às 1730 trabalho das Escrituras com o Pe Pouget91 Em 1929 Mounier inicia um contato com Jacques Maritain Tratase da primeira carta conhecida de Mounier a Maritain datada de 26 de novembro deste mesmo ano em que Mounier oferece a Maritain a publicação do seu O Pensamento de Charles Péguy92 que escreveu em conjunto com Georges Izard futuro companheiro fundador de Esprit e o filho de Péguy Marcel Péguy na coleção Le Roseau dOr dirigida por Maritain em 1931 Esta coleção representava então uma busca de superação por parte de Maritain do modernismo quer dizer do liberalismo teológico na versão católico romana Todavia essa busca de Maritain mesmo sem se tornar um completo integrismo ressentiase de uma tendência para sua queda esta superação por parte de Maritain se processava pela via do resgate do pensamento de Tomás de Aquino Há um movimento de volta às fontes históricas nessa época e do lado protestante é Karl Barth quem vai se insurgir contra o liberalismo mas que mesmo não caindo em um fundamentalismo se ressentirá por outro lado e na outra face do catolicismo de Maritain de um certo fideísmo rígido93 No entanto Barth vai empreender esta volta aos textos fundantes do cristianismo e da Reforma Protestante94 Não obstante o reconhecimento por parte de Mounier do papel higienizador da reflexão de Maritain do lado católico e de Karl Barth do lado protestante contra os reducionismos do racionalismo liberal castrador das fontes vitais da fé religiosa Schweitzer ao existencialismo de Bultmann herdado de Heidegger e à interpretação temporal da escatologia neotestamentária dada por Charles Dodd 91 Mounier et sa géneration Ouvreus IV p 452 92 Oeuvres I p 13 ss 93 Pelo menos no primeiro Barth 94 Seu comentário Römerbrief Epístola aos Romanos de 1917 iniciou uma verdadeira reviravolta no âmbito dos estudos teológicos tanto protestantes quanto católicos Nesta obra o existencialismo kierkegaardiano é o movente inspirador da teologia barthiana que se ergueu contra a camisa de força que o reducionismo neokantiano em teologia quer dizer o liberalismo teológico queria impor ao kerygma proclamação cristão E posteriormente sua vigorosa oposição ao Nacional Socialismo que se deu através de sua famosa série de panfletos denominada Theologische Existenz heute Teologia da Existência Hoje de 1934 representou um porto de convergência das mentes que se recusavam a dobrarse à mentira e abominação nazistas 59 especialmente a cristã Mounier vai manter sempre reservas tanto em relação ao intelectualismo neotomista quanto ao fideísmo barthiano95 O período dessa purificação necessária do lado do protestantismo96 iniciado pelo teólogo Karl Barth com seu Comentário à Epistola aos Romanos de um primeiro Barth bem entendido em que a radicalidade da afirmação da diferença qualitativa entre criador e criatura da total alteridade de Deus em relação ao ser humano arrebenta com a carapaça que o racionalismo liberal havia colocado sobre o cristianismo97 mas cria ao mesmo tempo uma vala entre a revelação e a cultura em que qualquer tentativa de comunicação empreendida pelo ser humano na intenção de ligar estas duas esferas se torna a priori malogro e sinal de pura arrogância humana A diferença qualitativa entre Deus e o homem em Barth impossibilitaria a priori qualquer atitude do lado humano de estabelecer uma mediação impasse que só poderia ser resolvido pelo próprio Deus que o resolve se encarnando em Jesus Cristo e assim proferindo o seu sim à humanidade Em outras 95 É fato que nenhum teólogo em sã consciência hoje com todos os avanços na área da pesquisa fenomenológica da religião e as críticas pertinentes realizadas ao neokantismo se afirme cabal e conscientemente liberal Na época em que Mounier lida com este problema o sentido que aqui notamos do liberalismo religioso reducionismo do kerygma proclamação cristão à moral racional e dos aspectos miraculosos como a priori passíveis de uma explicação racional última em sua versão protestante em sua versão católica davase como um movimento dentro da Igreja Católica Romana que visava rever os seus dogmas em relação aos avanços revolucionários das ciências e da filosofia e se denominava em vez de liberalismo modernismo considerava a religião cristã e seus livros mais como um sistema de ética inspirado por um humanismo criativo Seu principal expoente fora Alfred Firmin Loisy 18571940 mestre de Pouget com quem Mounier estudou teologia como já assinalamos No entanto é interessante encontrar hoje em dia teólogos que não se dizem liberais em teologia mas sim em política os quais parecem se esquecer de que ser liberal implica a adesão a uma certa ontologia Ora quem compra o cavalo quer a cela A visão do liberalismo político sobre o papel da religião como foi esboçado acima implica se não se quiser dar campo à esquizofrenia intelectual que pode se tornar patológica ou melhor dogmática é incompatível para o bem da saúde com uma teologia que não se nutra dos mesmos valores Inclusive a relutância em afirmar a possibilidade de se ser liberal em política sem que se seja liberal em teologia já é uma postura liberal fundada na vontade de compartimentalização da realidade ao modo liberal 96 Emmanuel MOUNIER Feu la Chrétienté Oeuvres III op cit disserta sobre a importância para sua geração jovem quase deixada órfã pela Primeira Guerra que havia consumido as cabeças mais maduras em seus campos de morte de um pensamento vigoroso como o de Maritain do lado católico e de Karl Barth do lado protestante para o estabelecimento de uma posição firme e rigorosa contra a facilidade proposta pelo moribundo racionalismo liberal e burguês que ainda tentava subjugar sob seus princípios redutores o que havia de vivo incoercível afirmativo e viril do cristianismo e da religião em si tentando castrar e neutralizar a força própria de uma fé vigorosa nos seus quadros redutores do moralismo areligioso e racionalismo redutor instrumental 97 A crítica de Barth que radicaliza o aspecto iconoclasta antidogmático amoral antiaristocrático e anti cerimonial enfim os elementos da religião organizada da mensagem cristã nesta fase de artilharia pesada segue no sentido de uma crítica à religião em geral como religare ou seja a toda tentativa pelas únicas forças humanas aventada no sentido de criar uma ponte uma mediação bastante por seus ritos seus dogmas sua moral sua hierarquia sua antiguidade suas doutrinas etc entre o humano e o divino fora da assunção de uma ação primeira por parte da divindade 60 palavras para Barth a única ação possível já fora tomada pelo Único que a poderia tomar Deus A partir dessa ação para Barth qualquer outra que a não levasse em conta como primeira e em nome do que seria uma suposta autonomia viesse a agir no sentido de instaurar uma outra mediação a partir de sua própria ação como primeira nada mais seria do que o resultado do pecado de orgulho humano em sua autoestima vaidosa Com Barth toda filosofia como pensamento autônomo estava desde início condenada como expressão de pura vaidade humana98 No outro pólo desta purificação como notamos encontramos a reflexão de Maritain Mounier sempre tornou pública sua adesão à fé católicoromana e Maritain teve papel importante no início do projeto de lançamento de Esprit apoiando a iniciativa de Mounier Todavia o animador de Esprit nunca admitiu que a revista fosse considerada uma revista católicoromana Na verdade denominar Esprit de revista católica era uma das poucas coisas que o irritava99 Todavia como lembra JeanFrançois Petit100 devese estabelecer uma relação privilegiada entre o pensamento de Mounier e aquele de Maritain Gérard Lurol101 descreveu as relações entre os dois Mounier foi sensível à passagem que se deu em Maritain de 1927 a 1934 entre Primauté du spirituel e Humanisme integral a saber a passagem de uma filosofia da cultura a uma filosofia política Nos anos 30 do século passado dáse um borbulhamento do tomismo na França Étienne Gilson ele mesmo fortemente implicado nos debates e integrante dos grupos de discussão que antecederam o projeto de lançamento de Esprit dá uma das chaves a preocupação comum de todos os tomistas era a de reencontrar na inteligência a fonte e a causa das operações da razão102 Os tomistas julgavam com efeito que o racionalismo havia se infiltrado até na escolástica e que faltava lutar incansavelmente contra o irracionalismo de Bergson Para Gilson por outro lado não havia uma contaminação do tomismo pelo bergsonismo mas antes fora a filosofia bergsoniana que teria facilitado o acesso ao pensamento de Tomás de Aquino por uma descontaminação do tomismo comum das escolas desfigurado e privado de sua eficácia pela vegetação das teologias adventícias 98 Esta posição de BARTH se altera no sentido de um abrandamento 99 Ver Mounier et sa génération Oeuvres IV p 585 100 Op cit 107 a 131 101 Mounier et Maritain Esprit 12 de dezembro de 1973 p 771782 Ibidem Mounier et Maritain em Jacques Maritain face à la modernité Colloque de Cerisy Tolousse Presses Universtaires du Mirail Toulousse 1995 p 245269 Nota citada por JeanFrançois PETIT op cit p 107 102 Cf PETIT op cit p 109 61 que o tinham esvaziado103 Maritain nutrindo uma ambição mais ampla queria contribuir para uma restauração da unidade da cultura Mounier constata isso sobretudo nas análises dos artigos de Maritain lançados na La vie intellectuel104 Em Religion et culture105 Maritain apresenta a filosofia tomista como o meio de unidade da cultura cristã Para ele a pseudociência positivista tinha querido estabelecer uma falsa unidade do espírito humano Isto se situa na exata linha do projeto cartesiano segundo Maritain de fazer do ser humano o mestre e possuidor da natureza Por outro lado o homem pode esperar reconquistála pela inteligência enquanto ela for fiel ao objeto e pelo amor verdadeiro àquele que nos une ao nosso princípio A Mounier faltava uma formação tomista de base quando chegou em Paris em 1927 Mounier era nutrido pelo ensino de Jacques Chevalier era portanto bergsoniano estudara Pascal e sobretudo Descartes Por isso ele pode compreender muito bem os ataques ao antropocentrismo cartesiano que se fazia Todavia ele foi menos sensível ao apelo a que se elevasse acima do agnosticismo e racionalismo do que à crítica radical da civilização moderna E não obstante seu reconhecimento da revalorização da inteligência aventada pelo tomismo o intelectualismo e a tendência integralista deste último lhe impedia qualquer aproximação sem reservas Para o pensamento tomista a inteligência procedia a uma apreensão direta da verdade em sua forma conceitual independente de todo índice temporal Ela se fundava unilateralmente sobre a analogia do mundo criado e seu criador barrando a rota a toda uma teologia negativa à qual Mounier mantinha por causa de sua grande ligação com a mística Qual retorno ao tomismo poderia ser operado nestas condições Para Mounier era necessário começar por proceder a um esclarecimento do conceito de analogia Étienne Gilson tinha entrevisto a solução A analogia deveria ser restaurada como uma maneira não equívoca de falar de Deus Todavia Mounier havia compreendido a historicidade do discurso teológico ele era sensível aos teólogos que sustentavam que os sistemas de noções e de representações através dos quais destacamos as afirmações eternas estão necessariamente ligados às circunstâncias de tempo e lugar Através das eras a verdade imutável se exprime por sistemas de noções que a cada vez 103 GILSON Étienne Le Philosophe et la Théologie Paris Arhème Fayard 1960 p 188199 Nota citada por PETIT loc cit 104 MOUNIER Emmanuel Le thomisme IMEC MNR2 D50402 Nota citada por PETIT op cit p 110 105 MARITAIN Jacques religion et culture Desclée de Brouwer Paris 1930 reeditado na coleção Foi vivant p 89 1991 Nota citada por PETIT op et loc cit 62 traduzem de maneira diferente as afirmações do dogma106 É sobre a influência de Newman e pelo trabalhado de tradução dos textos da patrística por Henri de Lubac e Danielou107 que Mounier encontra nos Pais da Igreja um certo número de categorias que a teologia escolástica saída de Tomás de Aquino tinha feito com que se perdessem Por estas razões Mounier terá finalmente mais comodidade com o pensamento de santo Agostinho Decepcionado com o tomismo Mounier se firma cada vez mais na compreensão de uma teologia histórica108 Na Sorbonne Mounier estuda a fundo a obra de Espinosa com Brunschivicg Do espinosismo Mounier retém a importância de sempre querer ir às causas essenciais e as distinguir das causas secundárias Do que Brunschivicg chama de primeira parte do método109 Mounier pode reter apenas para a construção do conhecimento a importância das idéias verdadeiras Só o conhecimento deste gênero permite ao ser humano darse uma verdadeira estrutura espiritual110 Quanto a segunda parte do método que tem por objetivo tentar controlar a luta entre o entendimento e o imaginário e chegar às idéias claras e distintas se a coisa é causa de si ela o dever ser por uma causa segunda111 Disso Mounier pode reter a importância de sempre querer ir às causas essenciais e as distinguir das causas secundárias Brunschivicg privilegia a busca das condições de formação das boas definições uma definição perfeita deve exprimir a essência íntima e não uma proposição sobre a coisa Estas condições serão diferentes para as coisas criadas e para as coisas incriadas Mas para as coisas eternas não há necessidade de definições abstratas e gerais Seria necessário para tanto referirse a uma ordem de existência fundada sobre as coisas móbeis e singulares Seguramente não pois permaneceríamos aqui nas demonstrações exteriores Devese seguir o máximo possível para as realidades fixas e imutáveis as únicas que dão prova de ominipresciência e onipresença Em outros termos 106 Essa era a posição que caracterizava o modernismo em relação a qual Mounier reconhecia a pertinência e o mérito Ver Feu la Chrétienté coletânea de textos de 1937 a 1949 em Oeuvres III pp 543 ss 107 Sources chrétiennes 1942 108 PETIT op cit 130131 109 Ibidem p 138 110 Ibidem 111 Ibidem 63 só elas testemunham uma forma universal de entendimento Permanece entretanto uma última dificuldade a ordem do conhecimento não pode ser tirada nem das coisas eternas atemporais nem a contrario somente da existência É necessário pois uma forma de conhecimento intermediária esta se torna pertinente quando o poder do entendimento que jamais totalmente claro em si mesmo aceita examinar as condições de seu próprio processo de esclarecimento112 Infelizmente Espinosa remete este problema para uma outra oportunidade não chegada o que deixou a Mounier o sentimento de inacabamento de sua filosofia No momento em que Mounier começa a assistir o curso de Brunschivicg sobre Espinosa começa também a estudar a Segunda Ennéada de Plotino com Émile Bréhier113 Em carta a sua irmã de 30 de outubro de 1927114 Mounier descreve sua impressão dos novos professores Hoje primeiro contato com meus mestres Primeiro curso às nove horas na École Normale Robin professor de filosofia grega o talhe clássico do Sorbonnard com calvície e barbicha pontiaguda com alguma coisa por sua vez de fino e de bom filho Às quatorze horas na Sorbonne Bréhier segundo professor de filosofia grega muito simpático este alguma coisa de jovial de sincero de paternal Às seis e trinta na École Normale de novo Brunschivicg Aqui retornamos ao tipo mesquinho com este há alguma coisa de muito burguês de muito seguro Sobre a relação de Mounier com Émile Bréhier que Mounier chama Marcel Bréhier115 quando de sua anotação da entrevista que tivera com ele em 16 de dezembro de 1928 na ocasião da busca do tema para sua tese Petit116 considera o fato como indicação da fraca familiaridade tanto com o homem quanto com sua obra para a qual os cursos de Chevalier mais centrados sobre Platão e Aristóteles não o haviam quase preparado Para Bréhier nos teólogos do fim do paganismo o mito absorve tudo que resta da ciência cosmológica dos antigos o mundo inteiro aparece sob o aspecto religioso e é unicamente destinado a servir de teatro ao destino humano É pois impossível compreender Plotino se não se vê seu sistema se desenhar sobre este pano de fundo 112 Ibidem 113 Ibidem p 147 ss 114 A Madeleine Mounier em Mounier et sa génération Oeuvres IV p 428 também citado por PETIT op cit p 147 115 Mounier et sa génération op cit p 441 116 Op cit p 147 64 religioso A via religiosa é tão inseparável de uma concepção do universo quanto de um culto que a realiza materialmente Mesmo a linguagem para Plotino tem uma dimensão simbólica A terminologia das religiões de mistério seria finalmente a mais apropriada para compreendêla117 É reconhecido que na história da filosofia Plotino realiza uma obra original118 Todavia ligada a essa originalidade de pensamento quer dizer como não mais uma simples repetição ou esclarecimento simplesmente de uma corrente filosófica mas a impressão de uma verdadeira marca diferenciadora vemos a presença do simbólico do religioso na obra filosófica de Plotino intimamente ligada com sua especulação filosófica Esta relação de internutrição entre o pensamento filosófico e o religioso como fora o caso em que se dera o surgimento da filosofia grega com os présocráticos como veremos mais à frente não seria um indicativo de que tanto o pensamento religioso tem muito a ganhar quando se deixa confrontar com as realizações do pensamento filosófico e este por sua vez quando se deixa confrontar com as realizações do pensamento religioso Nesta pergunta se encontra um dos aspectos entre outros do por que Emmanuel Mounier vai sentido que o problema ou melhor a forma do dilema como colocado pelo racionalismo entre a escolha colocada para o filósofo entre o pensamento dito laico e o religioso como se tratando de duas fés rivais se mostrava cada vez mais inconsistente e inaceitável a Mounier Esta questão para Mounier não poderia ser resolvida como puro problema de lógicas auto excludentes É o próprio Bréhier quem afirma o caráter existencial desta internutrição do religioso e do filosófico já no helenismo O problema que agita os espíritos no fim do mundo antigo era o de descobrir uma realidade inteligível superior à realidade sensível onde se pudesse encontrar paz repouso e felicidade Qual é a vida íntima dessa realidade inteligível quais são os procedimentos a empregar para que se possa participar nessa vida eis aí entre todas as questões que apaixonam cristãos e pagãos questões que também tentam resolver tanto os gnósticos no século II quanto Plotino no século III e a dogmática cristã no século IV119 117 PETIT op cit p 151 118 Giovanni REALE Dario ANTISERI História da filosofia Edições Paulinas III vols São Paulo 1990 cf vol I pp 338 a 355 119 BREHIER Émile Études de Philosophie Antique Presses Universitaires de France 1955 Paris Sur le problème fondamental de la philosophie de Plotin p 218 65 Mounier começa por reter o método de Bréhier é indispensável explicar o texto por si mesmo A Segunda Ennéada que Mounier estuda com Bréhier é consagrada essencialmente ao cosmos aos corpos à matéria abre as vias de uma passagem para a mística Isso poderia ter interessado a Mounier Mas no desdobramento dessa ascese que se ergue da ordem intelectual Bréhier assimila sumariamente o cristianismo ao estoicismo e ao gnosticismo e os refuta da mesma forma quer dizer sumariamente Essa confusão de Bréhier e o juízo generalizante que lhe segue120 teriam pois pouco confortado Mounier quanto a possibilidade de dar continuidade no projeto de tese que nutria sobre a mística Os estudos plotinianos tais como foram conduzidos por Bréhier se apresentaram pois a Mounier como uma via aparentemente sem saída Estes tomam duas vertentes a primeira aborda a ascensão mística e a segunda a refutação do cristianismo121 Quanto à primeira vertente as notas de Mounier observa Petit122 sobre o curso de Bréhier indicam que ele foi obrigado a entrar em certos aspectos técnicos concernentes à explicação do texto plotiniano A primeira parte da Segunda Ennéada discute a opinião platônica da eternidade do mundo Bréhier segundo Petit sublinha que essa tese da eternidade e incorruptibilidade do mundo é característica dos últimos representantes do pensamento grego Ela segundo Bréhier observa Petit será um elemento discriminante face ao pensamento cristão invasor Bréhier pende menos sobre o julgamento contestável hoje em dia de um final da Antiguidade que sobre a colocação em relevo da defesa platônica do Timeu contra as interpretações estóicas O objetivo dessa Segunda Ennéada que aparece mais claramente na sua segunda parte é mostrar que o céu é uma totalidade Os corpos que o compõem permanecem sempre no mesmo lugar e não têm necessidade de alimento como os corpos terrestres sujeitos à mudança estes são dirigidos por uma alma diferente da alma celeste que por causa de sua fraqueza não consegue mantêlos na existência Segundo Bréhier como nota Petit a elevação da alma sobre os corpos é um partido tomado contra o estoicismo A alma 120 E que até hoje parece ser muito comum no âmbito dos estudos acadêmicos não ligados ao estudo da teologia e especificamente por parte dos que não se dão ao trabalho de estudar um pouco a teologia cristã contemporânea para entender as diferenças gritantes dessas antropologias autoexcludentes Para tanto dois livros que já se tornaram clássicos um na área de literatura medieval e o outro na área de teologia ajudaria a elucidar esta questão O primeiro ROUGEMONT Denis de LAmour et LOccident Plon Paris 1956 e o outro NYGREN Andrés Agape and Eros Part I and II London SPCK 1954 121 PETIT op cit para todo este parágrafo pp 155 ss 122 Ibidem e para o que segue 66 tomada em sua natureza própria e fora de sua ligação com o corpo não é submetida ao movimento do universo e dos astros Por outro lado se a alma se une aos corpos ela se torna um fragmento da natureza submetese ao devir ao destino Mas este destino não transforma os corpos a matéria como em Aristóteles É necessário então distinguir uma matéria inteligível que é um ser que recebe vida e inteligência e uma matéria sensível assimilável ao nãoser que só recebe imagens e formas A oitava parte termina com efeito por uma refutação da teoria estóica da mistura total Para Bréhier Plotino teria sobretudo se recusado a reduzir a corporeidade a uma definição obtida por abstração e generalização Com isso então um dos fundamentos do combate entre o realismo platônico e os defensores de um conceitualismo aristotélico teria sido posto Com todo o rigor de análise prossegue Petit é difícil saber se Mounier foi até o fim com a explicação de Plotino dada por Bréhier Muitas de suas notas e algumas de suas correspondências mostram que ele não é desinteressado pelo terreno místico sobre o qual Plotino construiu sua filosofia Mas poderia ele estar de acordo com a carga contra os gnósticos que se encontra na última parte dessa Segunda Ennéada e sobretudo com a refutação do cristianismo operada nos passos de Bréhier123 Agora esboçaremos a segunda vertente do curso de Bréhier sobre Plotino continuando nos valendo do trabalho de Petit Esta se inicia como estudo da última parte intitulada contra os gnósticos Para Bréhier seria mesmo um dos mais belos e mais altivos protestos vindos do racionalismo helênico contra o individualismo religioso que invadira o mundo grecoromano124 Plotino de início restabelecendo uma justa descrição dos movimentos da alma reage vigorosamente contra um certo número de afirmações vindas do meio gnóstico A alma logo que se junta ao melhor dos seres logo também se vê arrastada pela sua da alma parte inferior que domina assim sua parte média Ela prova então a infelicidade de não mais estar na região de beleza onde deveria permanecer Assim ela deve ser fortificada consagrandose à contemplação pois quanto mais ela é iluminada mais ela é bela e poderosa Tudo o que desvia a alma desse movimento deve segundo a informação de Petit conseqüentemente ser descartado para Plotino Não há necessidade de 123 Ibidem 124 PLOTIN Ennéades II Paris Les Belles Lettres 1989 notice de présentation de Bréhier p 109 Citação e nota de PETIT op cit e loc cit 67 crer na existência de um outro mundo depois do mundo inteligível É inútil contestar as leis do universo criticar a temperança a justiça e a virtude Bréhier segundo Petit sublinha como particularmente nociva a crença em um grande rei dos seres inteligíveis que ele assimila ao Deus cristão II 96 Segundo Bréhier nota Petit o pensamento de Plotino é tão oposto às representações comuns das religiões de salvação quanto às religiões de mistério A visão de Plotino desenhada por Bréhier fica assim esclarecida o que não pode escapar a Mounier Plotino não é o inventor da espiritualidade mas antes de um só a só do filósofo com o Um pelo poder de sua mediação Este Um se encontra no mais profundo do sujeito quanto em todas as partes do universo O Um não tem vontade de salvar as almas A relação entre o Um e o eu é direta pois há entre eles uma identidade essencial sem apelo a qualquer divindade Isso poderia ser em certa medida aceitável Entretanto a interpretação de Plotino feita por Bréhier segundo Petit desenvolve conseqüências que parecem mais provenientes do seu projeto pessoal do que de uma autêntica explicação Com efeito o espírito plotiniano se manifestaria por conseguinte na filosofia ocidental sob a forma de uma filosofia por sua vez religiosa e racionalista profundamente rebelde ao pensamento cristão o que os estudos de Maurice de Gandillac125 de Jacques Chevalier126 ou do P Henry127 segundo Petit contestam Definitivamente nota Petit não obstante seu interesse por Plotino Mounier não pode deixar de notar a instrumentalização da qual este filósofo foi objeto Como não reparar prossegue Petit que da mesma forma que Brunschivicg Bréhier se orientava para uma afirmação sem nuance de uma completa autonomia da vida do espírito de uma vida pessoal julgada como tendo um fundo de infinitude capaz de produzir um verdadeiro destino para cada um Para tanto não obstante estas orientações incompatíveis com as convicções de fundo de Mounier este vai procurar durante um tempo uma conciliação esta será o objeto de seu projeto de tese Não devemos pensar que para Mounier o intuito de elaborar um fazer filosófico quer dizer um fazer racional reflexivo e de antemão autocrítico que se articulasse numa tensão profícua com a teologia ou melhor com o pensar de uma fé em consonância com o 125 M DE GANDILLAC La sájese de Plotin Paris Vrin 1952 Citado por PETIT op et loc cit 126 J CHEVALIER Histoire de la pensée I La pénsee antique Paris Flammarion 1955 Ibidem 127 P HENRY Plotin et le Occident Louvain 1934 Ibidem 68 seu tempo se restringisse ao âmbito da lógica como já dissemos como se se tratasse de cunhar exercícios de conciliação racional de duas esferas a priori antagônicas No momento em que Mounier caminha em busca da definição do tema a ser desenvolvido como tese sua convicção de que o pensamento tem de ser expressão de uma vida quer dizer de ser um ato já estava cabalmente estabelecido Para Mounier que havia percebido o quadro enrijecido racionalista e idealista que dominava a Sorbonne como pudemos notar anteriormente a impossibilidade de sua adequação ao quadro universitário além do fato de que neste momento sua vocação de homem de diálogo de encontro já havia também se substituído ao projeto da adolescência da vida no sacerdócio se tornava cada vez mais clara Não obstante Mounier ainda faz um último teste se apresenta e apresenta seguindo os padrões dos bolsistas diante dos seus professores da Sorbonne apresentandolhes sua idéia de desenvolver uma tese sobre a mística mais especificamente sobre a mística do místico espanhol pouco conhecido João dos Anjos O relato deste evento nos é importante para concluirmos o desenlace que Mounier dá a sua vida em relação à carreira universitária promissora que lhe estava reservada na Universidade neste momento antecedente do lançamento de Esprit e que nos aponta a direção que o problema da articulação férazão toma para ele Em uma correspondência a Jean Guitton128 Mounier delineia seu estado de espírito quanto ao seu futuro Meu futuro Eu vos rogo permitame crer que ele não é traçado com o rigor de uma curva geométrica Tudo menos a linha reta obstinada cega com uma cadeira no fim Tenho uma idéia muito clara sim do sentido de minha vida Entendo por aí uma impulsão e uma luz mais que uma direção traçada Tenho conseguido escapar de cair por um momento na mentalidade da máquina universitária A prova tem me salvado e eu tremo agora como de um perigo evitado Eu quero acolher e dar isso é tudo bem incapaz de saber mesmo se acabarei no país das cadeiras e decidido a nada fechar antecipadamente Talvez eu seja muito pouco filósofo será ser filósofo julgar uma amizade mais preciosa que uma tese Esse sentido de preservar o inesperado o inusitado na vida esse acolhimento do evento pode ser acompanhado tanto como inspiração na reflexão que Mounier desenvolveu até o fim de sua vida quanto como motivação nos eventos ligados a sua vida 128 Mounier et sa génération Oeuvre IV p 436 69 de intelectual engajado Nós podemos vêla por sua vez e de modo pitoresco em sua viagem à África quando da oportunidade que se lhe deu de escolher seguir uma viagem confortável e menos arriscada com a comitiva francesa ou o que foi sua opção seguir por mata adentro abrindose ao imprevisível da jornada para conhecer pessoas129 e ainda nesta mesma expedição africana no evento do seu encontro com intelectuais africanos Em sua carta a um amigo africano Mounier deixa de lado o academicismo em amizade por amor à África e escolhe abrir um diálogo franco com Alioune Diop sobre o terreno da lucidez antes que sobre aquele da cerimônia e lhe fala dos perigos da rota que conduzia ao culto desenfreado da diferença Ele coloca os africanos em guarda contra a adoção de um contraracismo negro oposto ao racismo branco Vossa luta com os franceses que vós combateis não é uma luta de raça contra raça é uma luta social econômica e moral da mesma forma que a luta negra 130 Falávamos de sua tese que para Mounier é uma obra humana a expressão de uma vida Nesse momento de decisão do tema este se lhe apresenta como situado na fronteira Mounier já pensa em uma filosofia de fronteiras Não seria a fronteira o lugar próprio de uma filosofia que não quer estar salva e segura num quartel bem equipado e distante Além disso reconhecerá mais tarde Mounier O conhecimento não é jamais uma atividade moralmente neutra131 Em uma carta a um futuro colaborador de Esprit Jéromine Martinaggi de 1 de fevereiro de 1929 Mounier diz uma tese é aos meus olhos uma 129 LÉveil de lAfrique Noire Ouevre III 1947 p 301 1921 de abril Eu aterrissei em Dakar ao fim de minha viagem em um estorvo de aparato militar Os ministros chegaram esta manhã o Presidente amanhã É me dada a oportunidade de escolher acompanhar durante dois dias a caravana oficial ou realizar um projeto que eu havia planejado de início de uma turnê nos fetichistas do sul O Presidente que me perdoe Eu escolhi os fetichistas Esta viagem de Mounier a África durou dois meses difíceis março e abril de 1947 130 DIENG Amady Aly Emmanuel Mounier e lAfrique Noire in Emmanuel Mounier Actes du colloque tenu à UNESCO sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Edite par Guy Coq Président de lAssociation des Amis dEmmanuel Mounier Tome 2 Parole et Silence 2006 p 461 No mesmo artigo sobre a presença de Mounier em África o autor Amady Aly DIENG conclui podese dizer que Emmanuel Mounier é tanto uma figura francesa quanto africana muito ligadas por seu amor ao humano e seu humanismo cristão os quais têm constituído verdadeiras dinamites utilizadas pelos militantes africanos por independência para fazer saltar o sistema colonial 131 Traité du caractère Oeuvre II p 723 70 obra humana132 mais ainda do que uma obra intelectual Esta será alguma coisa sobre a fronteira do domínio moral e do domínio religioso sobre questões muito atuais133 Acompanhamos então Mounier em sua tentativa junto ao quadro docente universitário Vemolo apresentar aos seus mestres na busca de um orientador suas ainda imprecisas formulações quanto ao tema da tese Do seu caráter indeciso e seu gosto selvagem ele já tinha plena consciência Como para ele a tese deveria ser expressão de uma vida tratase não somente de fixar uma escolha neutra de um exercício intelectual interessante Tratavase para Mounier de uma luta contra a sua própria personalidade o que no seu volumoso Traité du Caractère de 1946 escrito durante seu retiro forçado na prisão é colocada como a via do e o para o conhecimento do próprio caráter Para Mounier Conhecer o próprio caráter é sempre reagir contra o próprio caráter134 Vemos então em uma nota de Mounier de 17 de novembro de 1929 como foi sua experiência de apresentação de seu tema de uma tese sobre o místico espanhol João dos Anjos 15361609 a Jean Baruzi135 que apesar de uma iniciante empolgação observa dificuldades que demovem Mounier dessa sua intenção fazendoo apresentar um primeiro projeto que havia aventado o de fazer uma segunda tese sobre João dos Anjos e uma tese principal filosófica sobre uma grande questão mística em torno da personalidade da renúncia da theopatia 136 Quase um mês depois do encontro com Baruzi em um novo encontro este concorda com uma tese sobre A personalidade nos místicos A Jean Guitton Mounier diz não mudar sua intenção de uma tese sobre João dos Anjos ou como grande como Chevalier e 132 Quer dizer um ato que deve expressar no seu feitio singular no preciso ponto em que ancora uma universalidade possível vislumbrada pelo que de paixão simpatia ou ódio enfim de humano ela pode despertar 133 Mounier et sa génération op cit p 442 Já falamos como a moral racionalista neokantiana moralismo abstrato irreligioso queria restringir o que de moral poderia advir enquanto expressão de uma moral vital como veremos mais adiante da inspiração religiosa aos cânones do seu modelo decadente de razão 134 Tracté du Caracter Oeuvre III passim 135 cf PETIT op cit pp 162 ss Jean Baruzi 18811953 neste momento do encontro com Mounier gozava de um certo renome universitário estabelecido inicialmente por seu livro sobre Leibniz BARUZI Jean Leibniz et lorganisation religeuse de la terre 1907 Mas chamava a atenção também por seus trabalhos sobre a mística notadamente sobre sua tese acerca do místico espanhol João da Cruz defendida em 21 de novembro de 1924 Segundo Émile Poulat nota PETIT loc cit essa tese se caracteriza inicialmente por sua ambição noética tão totalmente estranha à crítica histórica quanto à teologia dogmática Uma das coisas que chamará a atenção de Mounier para quem uma tese é a expressão de uma vida em relação a Baruzi é sua capacidade de falar da mística sem demonstrar um mínimo de envolvimento com o objeto Ver Mounier et sa génération Oeuvre III p 453 136 Mounier et sa génération loc cit Vemos aqui como a mística leva Mounier ao problema da personalidade 71 Delacroix137 o haviam indicado ou como pequena como indicaram Laporte e Baruzi138 Isso não poupou a Mounier uma viagem à Espanha onde teve a oportunidade de falar sobre Péguy na Universidade de Salamanca139 É neste momento de impasse sobre sua situação acadêmica que Mounier paralelamente já ía preparando um ensaio sobre Charles Péguy que comporia em seguida a primeira parte de uma obra conjunta de que já falamos sobre o pensamento de Péguy É esse encontro com Péguy que será decisivo para a solução do impasse Quantas vezes me senti dolorosamente dilacerado entre duas perspectivas permanecer um homem de gabinete cuja obra não transpõe o papel em que ela se imprime ou então agir mas resignarme à prisão dos quadros ou dos partidos nos quais é preciso mentir e sacrificar um recolhimento precioso à agitação e à eloqüência Eis o prenúncio de um plano onde entrevejo a ação oferecendose a mim sem massacrarme140 A redescoberta de Pèguy141 culminará com a publicação do seu ensaio O Pensamento de Charles Pèguy142 escrito como dissemos em colaboração com Georges Izard futuro companheiro de fundação de Esprit143 e Marcel Pèguy filho de Charles de Pèguy numa obra conjunta Esta mesma redescoberta se repercutirá amplamente tanto na 137 Henry Delacroix 18731937 antigo aluno de Bergson e professor da Sorbonne depois de 1909 em 1908 cf PETIT op cit p 164 s havia declarado que o cristianismo doutrinal não poderia verdadeiramente dar lugar à mística DELACROIX H Sainte Jean de la Croix et le próblem de la valeur noétique de léxperience mystique communication à la séance du 2 mai 1925 de la Société française de philosophie Bulletin de la Société française de philosophie maijuin 1925 Para Delacroix os estados mais sublimes da mística sobressaem de fenômenos puramente naturais A experiência mística não seria outra coisa que uma atitude ou uma reação pessoal Ele afirmava claramente que a mística deveria ser considerada como uma reação contra as igrejas O místico procuraria sempre vencer os obstáculos que o conservadorismo religioso lhe impusesse Só ele era julgado capaz de fundar seja na igreja de origem seja fora dela uma nova forma de organização religiosa quer fosse uma ordem uma seita ou uma nova sociedade DELACROIX H Études dhistoire et de psychologie du mysticisme Paris Alcan 1908 Todavia os contatos de Mounier com Delacroix sobre sua tese não foram animadores Quando Mounier lhe fala de sua tese sobre João dos Anjos Delacroix com um ar banal lhe diz que este não estava mais no centro dos seus problemas e que lhe faltaria rever sua fichas Mounier et sa génération Oeuvres IV carta a Jean Guitton de 10 de dezembro de 1929 p 455 Um ano depois em 1930 Delacroix aceita orientar a tese de Mounier op cit Ouevres IV p 471 carta a Jacques Chevalier de 7 de novembro Mas era tarde demais Mounier já havia se lançado na leitura de Péguy 138 Ibidem p 455 139 Esprit Emmanuel Mounier 19051950 décembre 1950 p 954 140 Mounier et sa génération op cit p 444 141 Pois desde seus estudos com Jacques Chevalier também admirador de Péguy e que fora aluno ouvinte de Bergson Mounier já havia tomado contato com seu pensamento 142 MOUNIER Emmanuel Oeuvres I pp 11 a 125 Em Ouevres enontrase só o ensaio de Emmnauel Mounier ou seja a Introdução e a primeira parte La vision des hommes et du monde As duas outras partes desta obra são La pensée politique et social por Marcel PÉGUY e La pensée religieuse por Georges IZARD cf Ouevres I loc cit 143 Ver detalhes sobre a fundação da revista Esprit em Mounier et sa generation op cit pp 472 ss 72 vida quanto na obra de Mounier144 O que Mounier admira em Pèguy é esta amizade imperturbável no seio de uma mesma vida de homem que pensa e de homem que age145 Pèguy é um dos raros criadores desde a Renascença que é animado não pela preocupação de produzir mas pela de servir Pèguy como depois Mounier realizou com o lançamento de Esprit reuniu em torno de si católicos protestantes livrepensadores comunistas ou não que não trapaceavam146 Uma outra posição de Pèguy que Mounier herdará é sua oposição tenaz ao mundo do dinheiro Em relação a este a fórmula da testemunha Dizer a verdade toda verdade nada mais que a verdade repetia o autor de Notre Jeunesse Pèguy Para este como para Mounier o sentido da encarnação cristã do Logos ou seja da transcendência na imanência é que o espiritual está constantemente deitado na tarimba do temporal147 esta será a posição irredutível de Mounier frente ao que ele chama de idealismo desencarnado O assumir a vida plenamente para Mounier pelo exemplo de Pèguy está Em tudo nos abandonarmos a Deus mas agir como se tudo dependesse de nossa decisão Para o fundador de Esprit é o testemunho que importa antes de tudo Para Mounier o que também guardou de Pèguy o espírito cristão é uma revolução contínua148 O assumir o apelo da vida em Pèguy é assim retratado por Mounier Sua grandeza única é a de ter levado toda dor e toda alegria toda piedade e toda serenidade de ter conhecido e amado com o mesmo 144 Ao ler a obra de Mounier sobre Péguy e os próprios textos de Mounier temos a impressão de sempre ver aqui e acolá os grandes temas peguystas mas desenvolvidos em perspectivas que seriam inusitadas ao próprio Péguy que como diz Mounier continuou um homem do séc XIX ver MOIX op cit p 12 145 MOIX op cit p 10 146 A Revista Esprit é sem dúvida na história da cultura ocidental a experiência críticoliterária que realizou com sucesso a experiência do ecumenismo real antes mesmo desse nome se tornar divulgado Para isso ver LUROL op cit passim ver também PETIT JeanFrançois Philosophie et theologie dans la formation du personnalisme dEmmaneul Mounier Les Éditions du Cerf Paris 2006 passim da mesma forma ver Actes du colloque tenu à UNESCO Sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Édité par Guy Coq Président de lAssociation des Amis dEmmanuel Mounier tome 2 III Le rayonnement international pp 455 ss 147 La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 110 Esta afirmação um tanto quanto abrupta do cristianismo de Emmanuel Mounier nesta parte de sua síntese biográfica ou melhor sobre a sua declarada fé cristã que implica sempre ao mesmo tempo sua crítica sem tréguas à cristandade ocidental burguesa que como ele recorrentemente afirma havia comprometido os valores cristãos vitais com a moral hipócrita e a avareza da burguesia decadente ficará mais clara com o avançar da leitura Seria muito difícil dado o caráter intensamente engajado de Mounier tratarmos exclusivamente do seu cristianismo sem que ao mesmo tempo nos remetêssemos a uma referência situacional e em que na maioria das vezes este não é declarado Mais à frente falaremos do agnosticismo metodológico de Mounier 148 Mounier et sa génération op cit p 536 73 coração o vale de lágrimas e os jardins de graça sem que jamais nos seus cantos as harpas do céu se perturbassem pelos gemidos da terra149 Mounier entrevistado em 1938 por Domenique Auvergne explicase claramente o sofrimento dos seus vinte anos o de ver as desordens se acobertarem dos valores espirituais cristalizouse quando do seu contato com a obra de Pèguy Num texto irradiado em 1945 o diretor de Esprit não deixa pairar nenhuma dúvida Posso dar o testemunho pessoal de que a descoberta de Pèguy lá por volta dos nossos vinte anos contou muito na decisão que nos levou a buscar em torno da revista Esprit o elo entre as grandes tradições revolucionárias francesas e suas grandes tradições espirituais150 No entanto como diz Candide Moix151 um paralelo entre as duas obras a de Pèguy e a de Mounier seria muito difícil de ser estabelecida e pouco convincente Parentes próximos pelas suas atitudes diante da vida todavia é sobretudo na crítica da desordem estabelecida152 e na consciência de uma crise de toda civilização que eles se encontram Pèguy todavia continua sendo um homem do século XIX e Mounier ao mesmo tempo em que combate as desordens do mundo moderno abrese aos novos valores da contemporaneidade153 Mas é graças a Pèguy que Mounier venceu suas hesitações e se engajou na grande aventura de sua vida Ele salvouse de um rousseaunismo fácil de filosofias sentimentais e da vertigem da modernidade Sem nunca ocultar sua pertença à tradição cristã é cada vez mais sobre a tensão entre filosofia e teologia que caminhará seu pensamento Seu conhecimento teológico havia se aprofundado e suas opções pessoais amadurecido Mounier se recusa a situarse no 149 Le Pensée de Charles de Pèguy Oeuvres I p 123 150 MOIX op cit p 11 s As grandes tradições espirituais e revolucionárias francesas de que fala Mounier dizem respeito ao conteúdo de uma obra e sobre o que ainda retornaremos que projetara e esboçara Mounier et sa génération op cit p 740 mas que não realizara Ao que parece o manuscrito se perdera durante uma perseguição Tratase de uma obra sobre A tradição trabalhadora francesa Em relação a esta Mounier tinha a intenção de destacar a linha de oposição ao marxismo que ela teria interesse em retomar Nessa mesma conexão devese citar também a tradição do comunitarismo anarquista proudhoniano 151 Op cit p 12 s 152 Esta expressão cuja paternidade não se sabe se é de Denis de Rougemont ou Mounier é usada por Mounier para fazer frente aos que acreditavam que paz era sinônimo de imobilismo fixidez das formas sociais cujo produto seria o conservadorismo 153 A revista Esprit como sendo um movimento de vanguarda sempre se manteve desde sua fundação em 1932 em sintonia com a produção cultural O esforço por parte de Mounier por manter um espaço aberto na revista para a arte e suas tentativas em reunir um grupo de artistas competentes para fazer a crítica à arte dirigida foi sempre muito grande e muito malsucedidas por causa do individualismo impeditivo Todavia Mounier apóia o movimento surrealista até sua capitulação à ideologia marxista seus diálogos sobre a música que tanto amava vão ser muitas vezes retomados o espaço na revista deixado à crítica teatral ao cinema à poesia e literatura etc é marcante 74 caminho do idealismo que Brunschivicg procura estabelecer em sua interpretação da obra de Espinosa e do racionalismo que Bréhier desenvolvia via Plotino A esperança de realizar um compromisso entre suas convicções religiosas e suas escolhas filosóficas encalham Seu projeto de tese sobre a mística não se concluiu Fora da universidade totalmente tomado pela estruturação do movimento Esprit do nascimento e depois a gestão de sua revista Mounier não está ainda em condições de definir as orientações de sua filosofia personalista154 Em 1934 Maurice Blondel lança críticas pesadas contra o personalismo orientadas contra a interpretação mais corrente de matiz individualista que Renouvier também via Larousse havia difundido em França Em Le personnalisme lançado em 1949 logo na entrada Mounier apresenta um resumo da situação A palavra personalismo é de uso recente Utilizada em 1903 por Renouvier para qualificar sua filosofia caiu depois em desuso Muitos americanos a têm empregado depois de Walt Whitman em seu Democrtic vistas 1867 Ela apareceu em França lá pelos anos 30 para designar em um clima totalmente diferente as primeiras pesquisas da revista Esprit e de alguns grupos visinhos Ordre nouveau etc em torno da crise política espiritual que estourava então na Europa O Vocabulaire philosophique de Laland lhe dá direito de cidadania em sua 5a edição de 1947 Contra todo uso Larousse faz dela sinônimo de egocentrismo Como se pode ver este termo prossegue por caminhos indecisos e divergentes caminhos de uma inspiração que se procura e tenta seus rumos 155 Em 19391940 Mounier publica um texto intitulado Responsabilités de la pensée chrétienne156 no fim do qual cada vez mais encontramos o que se consolidará como a sua ruptura com a idéia de uma filosofia cristã no sentido de evitar o fechamento num debate puramente teórico157 para dar lugar à noção de pensamento cristão pensamento de inspiração cristã Ainda que ao pedido que recebera de fazer um julgamento sobre o pensamento de Sartre em nome do pensamento cristão Mounier responda O pior é que eu não sei o que seja o pensamento cristão158 Todavia para Mounier há inegavelmente uma inspiração cristã que atravessa a história 154 PETIT op cit p 169 155 Oeuvres III p 429 Sempre relançado na coleção Que saisje Le personnalisme PUF 156 Feu la chrétienté Oeuvres III p 569594 PETIT op cit p 170 observa que a Introdução e a Conclusão não se encontram em Oeuvres complètes 157 PETIT op cit p 171 158 Ibidem p 185 75 A obsessão de presença159 em Mounier o orienta para um movimento de despojamento do pensamento a uma atitude de desprendimento no nível mesmo das concepções e das idéias Esse movimento que começa na consciência terá suas conseqüências práticas ou melhor éticas na crítica sem tréguas que Emmanuel Mounier inaugura em Esprit ao mundo do dinheiro habitat natural do indivíduo reivindicador liberal e burguês possuidor do sentimento encarniçado de posse de cada coisa porque já não mais possuidor de si mesmo160 No entanto no nível mesmo do pensamento este movimento de despossessão que Mounier empreende já o permite ver o que há de homenagem à liberdade e abertura à cocriação de convite a cada um à adesão total a um futuro aberto o que coloca o mundo inteiro sub specie arte facti 161 o que para Mounier são os elementos verdadeiramente constituintes do pensamento cristão quer dizer como não passíveis de ser subsumidos por qualquer pretensa filosofia cristã O sentido do concreto do personalismo de Mounier via então pensamento de inspiração cristã não lhe permite mais evasões generalizantes Quanto a isso em uma observação sobre o pensamento de Georges Bernano162 Mounier expressa um sentido que ele mesmo acolhe A mensagem característica de Bernano é lembrar ao cristão a transcendência do cristianismo em todos os problemas do tempo e de impedilo de utilizar esta transcendência por covardia ou desonra163 Para Mounier o cristianismo não dá o gosto de idealizar Nem no plano das relações pessoais Eu não tenho nenhuma vontade de idealizar É uma destas pequenas manias que um pouco de cristianismo nos tira em muito o gosto De cada amigo 159 Lobsession de la présence é o título feliz do artigo e a fórmula precisa que comanda o desenvolvimento do tema do engajamento de Emmanuel Mounier que PAILLER Jean Marie Lobsession de la présence in Actes du colloque op cit vol II pp 7 a 27 compôs a obsessão de presença que parece melhor definir o universo mental e espiritual no qual suas decisões essenciais tomaram corpo na condição de reter que a obsessão é primeira e que a presença é em cada passo a conseqüência Mounier a todo instante aparece como um homem requisitado um homem cercado de exigências que se impõem a ele que sem cessar responde ao apelo do próximo como do distante do pessoal e do coletivo como ao apelo radiante do mais profundo de si mesmo que ele chama Deus É assim que ele define a senha do cristão Adsum eisme aqui não um ser passivo no sentido do Dasein mas o eisme aqui de quem responde porque não pode nãoresponder porque sua vocação é fazer face reconhecerse responsável e por aí mesmo convidar os outros à responsabilidade 160 Desenvolveremos mais este tema da despossessão em Mounier quando tratarmos de sua crítica ao capitalismo 161 Já dissemos que este modo de ser do artefato comanda o pensamento de Mounier no trato de todas as coisas 162 MOUNIER Emmnauel LEspoir des desesperer Oeuvres III p 360 163 Feu la chrétienté Oeuvres III p 586 Cf citação de MOUNIER R P Ducatillon em seu considerável estudo sobre o Communisme et les Chrétiens Em nota de Mounier a referência bibliográfica Plon 1937 76 verdadeiro eu espero com alegria o dia em que nós nos revelaremos um ao outro uma grande fraqueza nós estaremos então fora da mentira 164 Nem no plano da crítica social A oposição ao cristianismo só intervem indiretamente no desenvolvimento comunista por intermédio do idealismo O comunismo se constitui não tanto frente ao cristianismo como em frente ao idealismo já por si oposto ao cristianismo É preciso compreendêlo bem sob pena de erros graves quanto à oposição ao idealismo Ora a oposição do cristianismo ao comunismo é em primeiro lugar oposição do cristianismo ao idealismo e é antes de tudo na medida em que é vítima do idealismo mesmo quando pretende fugir dele que o comunismo entra em conflito com o cristianismo165 Portanto para Mounier o que o comunismo critica no cristianismo não é cristianismo ou o crístico mas idealismo e o mesmo podese dizer e sem que Mounier procure definir a história da filosofia pela redução fácil ao par idealismomaterialismo mas como a procura de elucidar uma parte do problema que deve ser esclarecida o mesmo se dá em relação à crítica do cristianismo ao comunismo ou seja deve ser uma crítica ao seu idealismo É nesse sentido que Mounier antes de tudo quer ressaltar o caráter polêmico166 da relação do cristianismo com o mundo que como já dissemos deve permanecer uma zona de combate e confronto direto167 grifo nosso Desse caráter beligerante que elege a ação e o movimento como propriedades intrínsecas ao próprio ser e como os veículos para o seu descortinamento quer dizer enquanto horizonte próprio do sentido do ser no mundo as mentes instaladas de sua época ciosas pela manutenção da paz de superfície preocupação principal da organização da sociedade pela burguesia concluem sem mais que da parte de Mounier haveria uma espécie de apologia da violência É o que vai levar Mounier contra este conformismo burguês tingido com a capa de espiritualismo a distinguir violência de estados de violência e fazer um elogio da força168 Esse pseudoespiritualismo burguês como vemos tinha do seu lado em vista da experiência recente dos eventos catastróficos da Segunda Guerra uma sensibilidade social muito favorável a essa predisposição 164 Mounier et sa génération op cit p 625 165 Feu la chrétienté Oeuvres III texto de 1947 p 586 Em nota de MOUNIER DUCATILLON O comunismo e os cristãos Plon 1937 166 De polemoj pólemos guerra 167 MOUNIER Feu la chrétienté Oeuvres III p 537 Ainda teremos a oportunidade de tecer algumas aproximações à apropriação do pensamento de Heráclito realizada pelo cristianismo no primeiro e segundo séculos pelos primeiros filósofosteólogos do cristianismo primitivo 168 MOUNIER LAffrontament chrétien Oeuvres III p 65 ss 77 espiritual pelo que podemos fazer alguma idéia da coragem do diretor de Esprit de veicular esta temática sobre as dimensões legítimas da força se valendo da tradição do pensamento cristão via Tomás de Aquino Encerramos esta seção ainda citando Petit No momento em que as ideologias e propagandas monopolizam o serviço do pensamento os esforços para se garantir a liberdade da criação filosófica devem ser aprovados Mounier não milita somente pelo respeito da atividade filosófica Ele convida também a um interrogarse sobre a guerra este verdadeiro escândalo no pensamento É a uma revisão da história da filosofia moderna no Ocidente a que os auditores ou leitores de Mounier são convidados Quanto a isso não seria suficiente apenas uma aproximação histórica Uma responsabilidade moral e intelectual sobre as formas de pensamento deve ser assumida Pois esta última sofre as influências concretas quanto mais ela se socializa mais participa nas vicissitudes coletivas nos jogos e trocas de forças nas influências maciças169 Prosseguindo neste movimento diacrônico e sinuoso da nossa aproximação aos constituintes mais fundamentais da gênese do pensamento de Mounier concernidos ao problema do delineamento pelo fundador de Esprit da relação entre fé e razão procuraremos observar outras fontes de influência que podem nos ajudar a compor o mosaico deste movimento de busca da afirmação de unidade entre pensamento e ação ou seja do ato filosófico empreendido por Emmanuel Mounier neste período de entreguerras em vista do esclarecimento e da pertinência do papel do religioso em sua reflexão que é o objeto deste capítulo Já notamos anteriormente o grande espaço e importância dadas à história ou melhor à historicidade na formação do personalismo de Emmanuel Mounier Como o constituinte próprio da finitude a historicidade para o personalismo deve receber maior acolhida do que a que o existencialismo prevenido contra os idealismos nomeadamente o do historicismo hegeliano tende a lhe conferir De uma primeira atitude de contraposição à história da parte de Kierkegaard história entendida a contragosto é claro totalmente nos 169 PETIT op cit p 171 78 moldes do hegelianismo existencialistas posteriores procuram resgatála e ver o seu papel na vida do existente Todavia analisando o tema da alienação nos existencialismos nota Mounier Não se pode falar de alienação essencial em perspectiva cristã O sentido mesmo da história é o de reconciliar o homem consigo mesmo e com a natureza170 Nessa conexão Mounier vai ver aqui que a dureza perpetrada pelo existencialismo171 e mais acentuada pelo ramo dito ateu no intuito mesmo de alcançar maior concretude maior densidade na análise da existência e contra o abstracionismo idealista acaba cedendo à tentação de estabelecer mutatis mutandis uma concepção mais radicalmente distanciadora da realidade humana consigo mesma Pois paradoxalmente a localiza constitucional e irremediavelmente e sem apelo no próprio âmago do existente ao mesmo tempo como o antípoda ao idealismo e mais rígida do que a concepção cristã Todavia uma rigidez que aos olhos de Mounier pela sua severidade deseboncará numa espécie de paralisia ontológica Todavia para Mounier a questão não será o quanto se é mais rígido mais duro como se se tratasse de um teste para carrascos pelo qual se medisse sua competência para o métier pelo tanto de flagelo que consiga impor à vítima antes de matála Nesse sentido a crítica do existencialismo ao que por exemplo a religião propõe em termos de esperança ao ser humano como se tratando de uma fuga de sua verdadeira realidade como ilusão não o impedirá por outro lado apesar dos seus pressupostos de procurar de alguma maneira postular uma resposta de propor alguma coisa ao incontornável sentido de ultrapassamento que o personalismo vê inscrito no próprio elã do movimento de personalização Desta forma para Mounier o existencialismo terá que manter de antemão para ser consistente consigo mesmo esta mesma sua proposta como a mais clara ilusão já que a priori o ser humano é para ele fracasso No cristianismo religião que como o judaísmo não abre mão da historicidade permanece guardandose as diferenças por conta mesmo da noção de escatologia contida na tradição judaica mas reapropriada pelo cristianismo primitivo sempre a esperança ou em linguagem mais filosófica a possibilidade apesar de tudo como expressão de uma adesão total ao futuro aberto no plano da singularidade É fácil perceber como na maneira pela qual Mounier lança mão da história a partir da inspiração do pensamento cristão ele 170 Introduction aux existencialismes op cit p 98 171 Sobre o que trataremos mais detidamente abaixo no capítulo Pessoa e existência 79 vai procurar manter tanto um mínimo de estrutura que fique assegurada ao ser humano contra a fuga do idealismo abstrato quanto o movimento de ultrapassamento nutrido por um futuro realmente aberto próprio do movimento de emergência da pessoa do movimento de personalização motivado por uma transcendência real quer dizer implicando um verdadeiro movimento de ultrapassamento e não um movimento do tipo esteira aeróbica O personalismo nesse sentido quer ir mais longe e procurar dar prosseguimento ao que ele vê como necessário e isso quando elucida o papel importante quiçá fundamental das estruturas condicionantes da própria possibilidade de autoafirmação da pessoa humana na história172 É nesse sentido que a emergência da pessoa na história segundo o personalismo se dá numa constante tensão em que sua afirmação pode ser expressa por um duplo movimento de engajamento e desengajamento numa constante luta contra as resistências impostas tanto por sua interioridade quanto por sua exterioridade Ademais o personalismo de Mounier vai procurar resgatar a vida interior tanto da crítica generalizante nietzschiana quanto da tendência à ruminação existencialista de tendência subjetivista mas como também do epifenomenismo da crítica materialista reducionista e quanto à vida exterior vai também procurar resgatála em seu equilíbrio próprio Este Mounier entende como essencialmente tenso nutrido pelo cultivo de um afastamento não como recusa e nem como pura resignação mas como o movimento complementar de uma vida interior que toma impulso nesse afastamento para dar o salto necessário na continuação de uma vida vivida em verdadeira dramaticidade de autoafirmação existencial com as forças de engessamento inerentes a sua expressão exteriorizada que por outro lado permanecerá o movimento complementar necessário a sua expressão interiorizada Este movimento de engajamento e desengajamento não se restringe apenas ao âmbito do singular mas alcança também o âmbito coletivo Se Mounier permanecesse só no âmbito do subjetivismo da interioridade singular cairia na tentação da ruminação interior à qual o existencialismo é sempre tentado Se por outro lado todo apelo subjetivo fosse a priori entendido por Mounier como produto do individualismo burguês fenômeno de classe cairia no reducionismo historicista marxista e seu determinismo histórico Ora estas duas posturas contendo cada qual um aspecto da verdade não podem por sua vez 172 JAEGER Werner Cristianismo primitivo e paideia grega Edições 70 Lisboa Portugal 1991 80 reduzir esta experiência fundamental da vida pessoal a suas conseqüências unilaterais Teremos oportunidade de falar mais da relação de Mounier com o existencialismo e com o marxismo Por ora interessanos apenas salientar que a noção de história no personalismo é marcada pela tensão característica que comanda o pensamento de Mounier em todas as esferas e também nessa da historicidade o personalismo de Emmanuel Mounier incorpora de um lado a vinculação do homem à esperança e de outro a concepção da existência como surgimento e transcendência de si mesma num movimento real Na perspectiva personalista de Mounier cada ser humano é chamado a cumprir mediante compromisso ativo em comunicação com os outros uma tarefa pessoal no seio da história para levar esta a ultrapassar os simples ideais humanistas de justiça social de liberdade política e de respeito aos direitos humanos É possível que para o não crente estes ideais sejam suficientes como realização histórica porém Mounier cujo personalismo não obstante pode ser também chamado de humanismo radical por causa mesmo da sua impaciência com as fórmulas e o quê de engessamento que elas como sua tentação característica engendram quando de sua efetivação sociológica173 entende que seu personalismo tem como objetivo final não um humanismo mas um transcendentalismo motivado por uma Pessoa que ele chama Deus Só Deus relevando o que já dissemos anteriormente sobre a experiência do Sagrado no cristianismo de Mounier como transcendência possível como cifra corresponde mais plenamente à noção de movimento transcendente como movimento real e não de esteira de treino aeróbico de ultrapassamento ao qual o ser humano é chamado a fazer e que constitui sua vocação e sentido próprios Essa transcendência como possibilidade aliás segundo o personalismo é aberta na história ao teste de se realmente corresponde a esse caráter de ultrapassamento do ser humano É aqui que Mounier coloca à prova todos os valores inclusive os religiosos A sensibilidade religiosa tornase extremamente atenta à arte de agnosticismo na fé174 Tratase aqui da perspectiva de uma fé amadurecida que vive ela também de e em uma tensão profícua a tensão fédúvida 173 Isso ficará bem mais claro quando tratarmos do conceito de revolução em Mounier e sua crítica aos revolucionários que depois da revolução esquecem de continuar o movimento de revolução em relação a si mesmos suas idéias seus ideais suas teorias à luz das novas configurações históricas e dos eventos 174 LAffrontament chrétien Oeuvres III 1945 p 21 81 Sobre esta importante temática na compreensão do pensamento de Mounier lemos dele mesmo Nós sabemos bem que em um sentido a fé não é mais agnóstica que gnóstica Mas é necessário às vezes as palavras violentas para despertar os espíritos adormecidos nos equilíbrios doutrinários e nos balanços objetivos O agnosticismo cristão tem a face do cristianismo que ele porta Católico175 ele fecha a porta não a toda filosofia cristã mas a todo sistema filosófico cristão não a toda certeza mas a toda instalação na certeza não a toda ordenança temporal cristã mas a toda utopia temporal cristã não à alegria mas à felicidade não à paz mas à tranqüilidade não à plenitude mas à satisfação Não faz da vida cristã uma vida substancialmente angustiada mas introduz um espinho de angústia no coração de todas as nossas beatitudes até o limite da beatitude última Ninguém sabe se ele é digno de amor ou de ódio essa ambigüidade fundamental do finito sob o olhar do infinito não introduz somente em nossa perspectiva espiritual a ambigüidade da consciência e o defeito do moralismo mas a ambigüidade da história e a derrota dos esquemas providencialistas a ambigüidade da ação e a vanidade dos projetos Ninguém sabe por qual prodígio de invenção o Infinito pode amanhã o surpreender em qual paradoxo ele vai lhe fazer apelo176 Como podemos perceber não se trata de uma questão apenas teórica o movimento próprio do pensamento de Mounier pulsa para a ação para o engajamento A transcendência em Mounier não é apenas uma idéia reguladora uma simples possibilidade concedida é uma possibilidade que se dá ao teste à prova no âmbito pessoal como convicção e no da intersubjetividade como testemunho E por outro lado o projeto personalista portanto não se satisfaz no simplesmente humano pois a pessoa é mais que sua vida empírica nem se reduz à ação social ou política porque nenhuma destas dimensões exaure as possibilidades da ação pessoal e nem podem pretender ser os únicos tipos de ações válidas Podemos dizer que o sentido da história entendido na perspectiva do personalismo engajado de Emmanuel Mounier em guarda contra os dogmatismos e as instalações tranqüilas propõe a transcendência como direito É verdade que se existe alguma coisa como uma natureza humana ela não pode ser aproximativamente enunciada senão pelo conjunto da história do homem se se admite que a história tenha um sentido que 175 Cf Mounier et sa génération Oeuvres IV p 421 em carta a Francisque Gay de 14 de março de 1926 católico quer dizer humano e universal 176 LAffrontament chrétien op cit p 22 82 não é prénecessitado toda definição que se dá dessa natureza no curso de nossa rota arriscará a tornarse falseada por um preconceito histórico radical Mas se nada no homem ultrapassa a história mesmo que essa história seja a história de sua liberdade o homem é entregue sem julgamento à história Em 1940 para a Europa o sentido da história era a servidão A liberdade dos SS177 aos seus próprios olhos era a de criar Dachau178 Por mais temíveis que julguemos a cegueira e a preguiça das pseudoessências temos que opor um muro a tais aberrações muro que só pode ser uma certa idéia do homem revelada na história mas transcendente a ela179 Cada vez mais podemos notar que em se tratando de finitude para o personalismo nunca se tratará apenas de problemas teóricos e que se resolvem pela lógica das conseqüências lógicas A sensibilidade aguçada da própria dignidade e liberdade axiológicas faz com que inevitavelmente a pessoa consciente dê o passo que alcança a ética da concretude Para Mounier a pessoa é movimento de liberdade e adesão a um futuro que é sempre aberto Enquanto é sujeita às pressões dos determinismos históricos advindos tanto do ambiente formador próximo corporeidade família escola etc quanto do ambiente formador mais remoto imprensa vida política etc Por outro lado e se o elã próprio da pessoa não ficar oculto por nenhum impedimento incontornável por exemplo presença só das funções vegetativas ou ausência de qualquer possibilidade de autodeterminação a pessoa nunca pode ser em absoluto e sem chance determinada por estes condicionamentos sem que haja a possibilidade de superação dos mesmos Pois a leitura personalista vê a liberdade como inscrita enquanto o movimento próprio da pessoa na história como história de sua libertação São as imagens da aventura do risco e da insegurança contrabalançadas pela imagem da alegria de viver da esperança e da gratidão que comandam esta dimensão da expressão da pessoa enquanto movimento de libertação Assim diz Mounier Enquanto que o ramo humano está com efeito próximo a sua inserção biológica o feixe dos instintos assegura grosso modo suas adaptações essenciais O instinto é maternal ele envolve e retém a liberdade trabalha para ela lhe evita as tarefas Mas eis que a liberdade inteligente 177 Sigla de Schutzstaffel tropa de proteção organização paramilitar e policial nazista criada em 1925 e comandada por Himmler 178 Cidade da Alemanha Ocidental Baviera ao Norte de Munique O III Reich criou ali em março de 1933 seu primeiro campo de concentração transformado após 1939 em campo de deportação Ali foram registrados 80 mil deportados e 32 mil mortos além de milhares de desaparecidos em trânsito Em 29 de abril de 1945 30 mil prisioneiros foram libertados pelas forças armadas americanas 179 Introduction aux existencialismes op cit p 155 83 mantém seu vôo com ela se desamarra o trajeto próprio do ser humano Quanto mais ela avança mais se afasta das seguranças do instinto assim como o ser humano forte se distancia da solicitude maternal e até mesmo se defende contra ela180 Para finalizar esta seção concluímos que para Mounier e o personalismo há um sentido da história mas também ele sob o modo de ser do artefato Quer dizer não acabado não concluído por se fazer mas passível de ser entrevisto e provado por quem tenha boavontade e paciência para realizar esta experiência em si mesmo Todavia e ainda sobre essa questão a observação de Mongin em seu Posfácio ao Ensaio sobre a experiência da morte e o problema moral do suicídio escritos pelo filósofo personalista e integrante da segunda equipe de articulistas da revista Esprit Paul Louis Landsberg181 acerca da falta na reflexão de Landsberg da idéia de um sentido histórico da pessoa principalmente em LProblem moral du suicide me parece conter um caráter muito geral dado o significado da noção de sentido que o personalismo lhe dá Tenho dificuldades em entender esta firmação de Mogin que todavia está claramente relacionada ao tratamento que Landsberg dá da condição da pessoa em sua circunscrição concreta singular de pessoa atolada em sua corporeidade Essa minha dificuldade se dá por conta da afirmação de Landsberg cujo sentido não obstante pode ser acompanhado tanto no Essai como no Le Probleme e em outros ensaios que ele enviou para publicação em Esprit182 do movimento de personalização como estando nos antípodas da volúpia niilista de Heidegger o qual afirma o sentido da existência do existente como do ser para a morte183 O que realmente qualquer manifestação menos complexa do que a da vida humana na vida 180 La Petiet peur du XXº siécle p 352 Tanto a expressão de Ortega y Gasset de que o ser humano tem de aceitar o seu destino quanto a imagem do peixe em aventura aberta a pela nua de Henry Bergson podem ser aqui lembradas Mounier claramente está trazendo à tona elementos estruturais que alcançando o desenvolvimento humano uma determinada fase não devem mais manter os papéis dominantes que tinham numa fase anterior Mounier é conservador no seguinte preciso sentido conservador do tipo geladeira quer dizer aquele que conserva só o que está dentro do prazo de validade humana Aqui a validade quem determina é a humanidade historicamente tomada e à luz dos eventos cuja compreensão segundo Mounier é domínio e dever públicos e responsabilidade precípua dos intelectuais A imagem da geladeira me foi sugerida pelo professor Ricardo Quadros Gouvêa que também aceita este tipo de conservadorismo 181 LANDSBERG PaulLouis Essai sur la expérience de la mort et LProblèeme moral du suicide Préface de Jean Lacroix et Posface dOlivier Mongin Éditions du Seuil Paris 1993 1ª edição publicada na coleção Esprit la condition humaine em 1951 182 Que se encontram recolhidos e que compõe uma coletânea que tem por título original Problèmes du personnalisme lançada em Portugês como LANDSBERG PaulLouis O sentido da ação Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 183 LANDSBERG PaulLouis Essai sur op cit p 42 48 e 50 84 orgânica pode ser colocada como a refutação cabal dessa idéia de ser para a morte184 Na verdade a reflexão tão densa deste coautor de Esprit185 como tomadas as devidas proporções Engels foi de Marx de uma pessoa rachada em tensão e atolada em sua corporeidade e seus instintos é por outro lado uma clara demonstração do quanto a reflexão personalista permanece sempre aberta e esquiva a rotulações programáticas Para os personalistas tudo que é humano lhes interessa A afirmação anterior do sentido que encerra a seção e nos abre à influência que a fenomenologia exerceu na formação de Mounier e que nos levará à conclusão deste capítulo com a apresentação dos constituintes históricoreligiosos que estão na composição das noções fundamentais de dignidade e liberdade pode ainda se nos apresentar como um pouco arbitrária186 Todavia na perspectiva do personalismo de Emmanuel Mounier ela deve ser entendida tanto com seu pano de fundo fenomenológico ao que esta parte introdutória pretende ser então uma aproximação quanto em relação aos constituintes próprios da reflexão mounieriana construída aos poucos e inacabada187 Mais uma vez 184 A inscrição de um elã vital cujo sentido pulsa para a vida antes que para a morte pode ser constatado já num organismo como o de uma ameba por exemplo que em sua ânsia por permanecer viva não obstante a simplicidade do seu organismo vai em busca do seu alimento 185 Em 1934 Mounier rompe com Georges Izard cofundador de Esprit com Emmanuel Mounier o qual cumpria o papel de manter o vínculo da revista com o movimento revolucionário Ordre Nouveau cuja revista era dirigida por Alexander Marc e na intenção de que a Ordre Nouveau fosse a extensão do movimento Esprit na ação política Esta ruptura com Izard dá início à chamada segunda fase de Esprit É nessa segunda fase que Paul Louis Landsberg passa a compor a nova equipe de Esprit e envia os artigos que definitivamente dão a Landsberg como diz RICOUER Paul A região dos filósofos Edições Loyola São Paulo col Leituras vol 2 p 151 ss um papel quase tão importante quanto o de Mounier no âmbito da história interior e ao pensamento do movimento Esprit Dentre os artigos de Landsberg mais influentes podemos citar Reflexions sur lidée chrétienne de personne de dezembro de 1934 Dialogue sur le Mythe com Jean Lacroix de setembro de 1937 e Les sens de laction de outubro de 1938 os quais se encontram em Português lançados pela editora Paz e Terra sob o título O sentido da ação op cit acima o qual exerceu uma ação decisiva sobre as posições teóricas da revista Esprit cf Emmanuel Mounier 19051950 Esprit décembre 1950 número especial em homenagem a Emmanuel Mounier falecido em 22 de março deste mesmo ano 186 Não tanto quanto a de Edmund Husserl de que tudo no mundo é belo e bom que este jogo de vida e de morte de guerra e de paz de amor e de ódio tem um sentido O mundo tem um sentido não apenas o mundo enquanto espaçotemporal Mas a totalidade do que existe Cf BELLO Angela Ales Edmund Husserl 18591938 Teleologia e teologia in Deus na filosofia do século XX Giorgio PENZO Rosino GIBELLINI Organizadores Editora Loyola São Paulo 2002 p 65 187 Estes constituintes serão ao longo desta exposição que pretende ter como base a reflexão de Mounier nas aproximações à noção de dignidade humana elencados quando for o caso Tratase de noções que não 85 mesmo antes da leitura das obras editadas de Husserl ter permitido que se percebesse o papel que a questão de Deus a experiência religiosa e a reflexão teológica em outras palavras as questões últimas188 desempenhavam na investigação do pai da fenomenologia189 Mounier por conta própria190 e pelo sentido intrínseco de abertura e de leitura criativa que foi a marca constante em sua trajetória de formação intelectual e de sua busca pessoal191 e que o método fenomenológico concede à análise dos fenômenos os mais qualitativamente diversos chega a uma atitude desprendida na análise das temáticas sobre as quais o preconceito racionalista havia decretado uma cisão absoluta e em nome de um suposto projeto de construção de um espaço laico neutro192 Ao ideal racionalista de objetividade de imparcialidade as filosofias existenciais opõem uma concepção militante de inteligência Diz Mounier Nietzsche e o cristão estão aqui de acordo A inteligência não é neutra Heidegger tem vivamente reagido contra a pretensão de seu mestre em colocar em parênteses as opções fundamentais sobre a existência para estudar a obstante o fazer dramático da filosofia dialógica de Mounier nutrida pela seiva dos eventos e portanto mantendo sempre um sentido inacabado se desprendem como elos seguros pelos quais é possível se perceber a atualidade em Mounier pela qual são perspectivados os grandes problemas que ainda se encontram em nossos próprios dias Só alguns exemplos o caráter de artefato em tudo que comanda a reflexão de Mounier a atitude seguida por ele de que o filósofo deve assumir previamente a toda reflexão um insu de ignorância cfLUROL Gerard Mounier Gênese de la personne op et loc cit o sentido de superação da idéia de hierarquia tão cara a toda reflexão ocidental e talvez mundial intrínseca ao pensamento político à ética à religião etc e também em Nietzsche que propõe sua filosofia como o antípoda a toda tradição intelectual ocidental o sentido de uma verdadeira transmutação de noções chaves tais como a de absoluto para incontornável de relativo para a de relacional de culpa noção importante mas difamada pelo léxico preconceituoso e reducionista da patologia segundo o racionalismo para a de responsabilidade de tolerância tão ressentida do espírito e da moral decadentes pequenoburguesas para a de respeito de refutação para a de adequação da de certeza para a de sede de verdade da de obediência para a de cooperação da de hierarquia como já notamos para a de função orgânica de desespero para a mais em consonância com o realismo integral de Mounier de sentido do trágico etc 188 BELLO Angela Ales Edmund Husserl 18591938 Teleologia e teologia in Deus na filosofia do séc XX op cit p 73 189 Ibidem p 67 Este fato explica a crítica de Mounier ao pensamento de Husserl como mantendo ainda um excesso de logicismo e estando ainda muito cativa do intelectualismo Para isso ver MOUNIER Emmanuel Introduction aux existencialismes op cit p 127 e passim 190 Não podemos deixar de notar também a influência da reflexão que se desenvolvia independentemente e paralela mesmo à de Husserl por Max Scheler quanto à análise fenomenológica da dimensão axiológica do ser humano que exerece bastante influência sobre a reflexão de Mounier cf LUROL Gerard Mounier Gênese de la perosnne op cit pp 207 ss 191 Cf PETIT Philosophie et théologie dans la formation du persoannaleisme dEmmanuel Monier op cit passim 192 O caráter liberal dessa demissão do humano é flagrante 86 existência Não se pode descrever a existência sem dispor antecipadamente de uma concepção da existência193 No entanto ainda quanto ao sentido a análise fenomenológica enquanto descrição que não se detém no dado tomado em sua atualidade mas que quer conhecer intuitiva e imediatamente o sentido desse dado faz da questão do sentido justamente uma questão fundamental194 A partir desta assunção por parte de Mounier de que há um sentido no mundo em relação ao qual a volúpia absurdista não é uma refutação mas uma espécie de demissão em profundo195 é claro mas ainda uma demissão poderemos dar o passo para um maior esclarecimento ainda quanto à compreensão da importância do histórico na reflexão de Mounier Aqui é o contato com Pèguy que vai delinear toda a questão O espiritual está constantemente deitado na tarimba do campo do temporal196 Aqui ainda a intenção de fundo que comanda é o lema da grande mística197 distinção sem separação uma visão ontológica em que a palavra chave é sinergia198 Péguy afirma com energia a irredutibilidade das duas ordens199 O abstrato escreve ele Pèguy é incessantemente nutrido pelo concreto o concreto é incessantemente esclarecido pelo abstrato Isto tem um 193 Introduction aux existencialismes op cit p 85 Retomaremos essa mesma citação abaixo e de maneira um pouco mais detida no capítulo sobre Pessoa e existência 194 Ver BELLO artigo citado in Deus na filosofia do séc XX op cit p 69 195 Isso ficará mais claro quando em outro lugar analisarmos a crítica de Mounier à vaga pessimista contemporânea 196 La Pensée de Charles Péguy Oeuvres I 1931 p 101 197 Cf INGE The Christian misticism op cit passim 198 Esta visão comandará o tratamento não a solução que Mounier dará às relações bipolares complexas da ontologia da antropologia da gnosiologia etc e que não lhe permitirão cair em qualquer uma das duas grandes tentações da humanidade depois é claro da tentação do suicídio como coloca muito bem Landesberg em Essai sur la expérience de la mort et Le Problème moral du suicide passim quer dizer a tentação do relativismo ou do seu irmão o dogmatismo A Mounier essas bipolaridades tomadas de maneira rígida como partidos detentores de toda a verdade sempre se apresentarão como uma maneira de protelar ainda a escolha fundamental que o Ocidente tem se recusado a fazer pela pessoa concreta Em Pessoa e existência abaixo vamos ver o alcance crítico da reflexão de Mounier ao pensamento contemporâneo que quanto a sua manutenção do critério bipolar parece se manter a contragosto em linha com a modernidade no que essa representa de adiamento da pessoa e adoção do indivíduo burguês volatilizado ainda mais nestas críticas mas que a Mounier não consegue ocultar sua consangüinidade e parentesco 199 La Pensée de Charles Péguy op cit 103 Todavía mais à frente o que permanece do preconceito comum de um leitura mais diacrônica da história na visão histórica de Mounier será problematizado à luz de pesquisas mais recentes e à luz do próprio personalismo de Emmanuel Mounier 87 significado de maior alcance para ele diz Mounier o espiritual é incessantemente nutrido pelo temporal o temporal é incessantemente esclarecido pelo espiritual200 Para Mounier como vimos o cristianismo não é essencialmente uma filosofia mas um testemunho trazido em um certo número de eventos de que um ser histórico o Cristo é o sentido último O universo não é para ele segundo Mounier uma espécie de eterno retorno das mesmas combinações sem objetivo pensamento grego muito menos uma sucessão descontinua de períodos estranhos uns aos outros separados por catástrofes universais pensamento oriental e gnoses Ele é para Mounier tema de uma história orientada e de um só teor que traça sob numerosas vicissitudes o progresso invisível de um Reino201 Se como já vimos esse sentido na história que se destaca do pensamento de Mounier em relação ao cristianismo não é ele também peremptório quer dizer um que não deixa margem à liberdade criadora humana e se o cristianismo não é uma filosofia202 uma crítica ao cristianismo por exemplo como a de Nietzsche ou deve ser uma crítica religiosa darse no campo próprio do religioso experiência à qual parece que Nietzsche não tem nenhuma intenção de fazer pois ficaria também e enquanto tal ou seja enquanto discurso crítico religioso sujeito à avaliação por sua vez da crítica da religião ou se for uma crítica filosófica ficaria deslocada desde o início e não diria respeito ao cristianismo enquanto tal mas sim equivocadamente a uma outra coisa203 É nessa perspectiva de um sentido passível de ser vislumbrado pelo teste dos valores históricos que aos poucos podemos ir situando a posição do cristianismo no pensamento de Mounier Continuando o raciocínio anterior de Mounier ele diz que nenhuma das afirmações essenciais do cristianismo se sustenta se o cristianismo não tiver conteúdo histórico real Assim Mounier faz as seguintes perguntas Por que se teria feito esperar a Encarnação a menos que não fosse para que a humanidade estivesse suficientemente preparada por sua maturação coletiva para a Revelação nova Por que seria adiado o 200 Ibidem p 103 201 Feu la chétienté Oeuvres III p 683 202 E o filósofo protestante Pierre Thévenaz amigo de Emmanuel Mounier vai até dizer que ele é em sua essência uma crítica à filosofia do absoluto Ver THÉVENAZ Pierre La condition de la raison philosophique col Être et Penser Cahiers de Phiolosophie Éditions la Baconnière Neuchatel 1960 especialmente pp 131 ss Deuxième Partie La condition chrétienne de la raison philosophique 203 Encerraremos este capítulo com um tratamento da questão do gnosticismo Por ora continuaremos nessa diacronia inevitável para mim concluindo sobre a influência de Péguy na bifurcação que Mounier dá a sua vida seguindo com o desenvolvimento das noções de dignidade e liberdade que se nutrem da tradição bíblica e da história de Israel 88 estabelecimento do reino se esta história não participasse positivamente no amadurecimento do Reino se a verdade não dependesse de modo algum do tempo como se poderia dizer que a letra do Antigo Testamento ao mesmo tempo portadora de uma verdade intrínseca será de algum modo obsoleta pelo advento da nova lei A verdade cristã é segundo Mounier histórica isto é feita de evolução com progressos reais envelhecimentos reais elementos de caducidade reais na zona em que ela se articula sobre a realidade cambiante da história204 Desta forma Mounier se separa de uma visão estritamente linear da história contra todo tipo de idealismo e mesmo já se descortina o que vamos ver mais à frente uma tensão na compreensão de Mounier da história quanto a tomar como última palavra o paradigma hermenêutico da polaridade entre pensamento cristão e pensamento clássico Este paradigma em termos de contraste absoluto é muito aceito é conhecido Ele costuma defender a título de contraposição estanque as concepções da história segundo o cristianismo e segundo a cultura clássica como autoexcludentes Quanto à primeira uma certa simplificação da noção de história simbolizada pela figura da linha reta contraposta à segunda por uma outra simplificação da concepção da noção de história simbolizada pela figura do círculo Ainda retomaremos este problema mais à frente Então nessa mesma perspectiva de Mounier podemos destacar que se insere também sua intenção de ressaltar que o surgimento do cristianismo na história não implica por outro lado somente descontinuidades Se o personalismo como dissemos antes procura manter uma margem de liberdade por parte da pessoa no movimento histórico mesmo no qual e pelo qual somente ela se desabrocha como livre e criadora fica entendido que continuidade e descontinuidade são vistas por Mounier como duas dimensões que compõem a expressão mesma da dialética histórica em que para o personalismo uma dimensão nunca se antepõe à outra ou melhor uma sempre equilibra a outra Assim nem continuísmo nem descontinuísmo absolutos nem idealismo histórico relativista nem o relativismo histórico absoluto Mas para Mounier tensão contínua criadora Isso quer dizer que para o diretor de Esprit a visão de uma descontinuidade absoluta que deve manter inelutavelmente em sua base confessada ou não a contragosto ou não a metafísica de um mínimo múltiplo comum existente a priori por trás de todos os 204 Feu la chrétienté op cit p 683 89 eventos históricos ou seja de uma hipótese sobre tudo o que aconteceu acontece e acontecerá no tempo e no espaço tem tanto menos chance de corresponder à verdade da necessidade de aderências da pessoa no plano do histórico Estas aderências são segundo o personalismo de Mounier as bases sobre as quais o próprio movimento de emergência da pessoa na história alça vôo Por outro lado segundo o persoanlismo de Mounier ainda ela o faz contra estas mesmas resistências Nesse sentido em matéria de história nada também de uma continuidade absoluta Pois o panteísmo que é a conseqüência inevitável desta última opção não saberia lidar com a liberdade da pessoa Essa liberdade para Mounier se dá como tensão criadora que além de implicar o sentido de inserimento da pessoa na natureza do seu atolamento na corporeidade na materialidade na concretude o que para o personalismo é o próprio sinal e a indicação da necessidade de aderências ao mesmo tempo é a revelação de um sentido de não pertença total ao mundo natural o que gera a tensão e uma esquiva da pessoa criadora ao reducionismo paralisante à identidade próprio ao estofo material Só contra o que faz sentido falar segundo Mounier de liberdade da pessoa como valor liberdade axiológica I 2 Kerygma cristão e cultura grega Como vamos mostrar até que estudos mais recentes e aprofundados da cultura helênica205 pudessem ter sido realizados e apontado nuances prevaleceu um preconceito geral e generalizante em relação à cultura grega206 e que se transformou num verdadeiro acordo universal quanto ao que seria não somente os elementos principais ou mais enfáticos mas constituidores últimos mesmo de seu pensamento Tratase do costume de se afirmar tranqüila e rapidamente que a sensibilidade grega era marcada sem nuances suficientes para criar elos históricos continuidades possíveis e quanto à noção de tempo 205 Referiremonos principalmente aos trabalhos de Werner JAEGER e de Rodolfo MONDOLFO dos quais principalmente além de outros nos valeremos aqui 206 Mantendo este preconceito mais à frente e restrito ao âmbito do tema que estamos tratando vamos mencionar tanto Kierkegaard como Nietzsche Todavia é necessário deixar claro que nem Mounier escapa desse preconceito Todavia seus estudos com Pouget como notamos antes e portanto seu contato com a atmosfera de resgate do histórico no âmbito das ciências humanas notadamente no da ciência bíblica não deixam este preconceito sem tensão como podemos ver da citação de Mounier acima pela qual ele afirma a compreensão geral que se tinha da cultura grega e em seguida faz uma crítica às concepções de descontinuidade absoluta 90 e de história que são as que mais nos interessam nesse momento apesar de sermos obrigados a tocar em outros elementos constituintes em aspectos da sua antropologia da sua cosmologia etc207 pelo tempo cíclico e pelo destino rigidamente traçado com o conseqüente sentimento de desalento do indivíduo diante do inexorável Todavia à luz das pesquisas mais recentes isso tende a parecer hoje como uma facilitação apropriada para uma leitura puramente descontínua da história Em relação à cultura grega uma das especificidades do kerygma cristão estaria sem dúvida ligada à afirmação radical da valorização e do resgate do temporal do quotidiano mas não que não houvesse nenhuma ressonância dessa sua mensagem já de alguma forma no âmbito do caldo cultural dos primeiros séculos Uma das provas é o truísmo de que se simplesmente entre a mensagem cristã e o mundo cultural ambiente não houvesse nenhuma ponte possível para se estabelecer a comunicação estamos falando não só de cristianismo e judaísmo cuja tradição veterotestamentária comum às duas tradições é patente mas entre mensagem cristã e cultura helênica ele não teria sobrevivido e alcançado a difusão que alcançou Todavia afirmando esta sua especificidade em sua radicalidade face à sensibilidade helênica difusa e difundida na época o cristianismo se colocou diretamente em face das evasões a que a metafísica grega alimentava a partir de sua estruturação do cosmos em dois níveis o terreno e o divino Para o ser humano primitivo cuja individualidade se encontra ainda imersa em proveito das prerrogativas da vida coletiva o mundo é enigmático e inquietante Todavia este mesmo ser humano vai se tornando para si mesmo à medida que a consciência de si caminha paralela ao movimento de individuação também enigmático e inquietante Juntamente com a beleza dos cosmos com a curiosidade filosófica por descobrir o princípio de sua unidade fundamental caminhará ao lado o sentimento de um destino inexorável e o pressentimento de uma dimensão obscura intrínseca ao ser sempre esquiva à razão humana organizadora E ainda como uma prova dos limites da capacidade racional organizadora do ser humano essa obscuridade incontornável vai fazer com que a superação do mito e da religião proposta pelo próprio movimento do pensamento que busca sua independência ainda tenha de 207 O modo de ser da relação que se encontra na base da ontologia e da antropologia personalistas não é apenas uma noção quer ser a expressão mesma que indica uma dimensão real do ser em nossa experiência finita e que o personalismo mantém como a experiência originária do ser contra tanto o relativismo pluralismo como o monismo panteísmo 91 deixar algum espaço para as formas religiosas e míticas de explicação Além disso quanto mais o indivíduo toma consciência de si de sua condição singular no processo de individuação mais se sente integrado e solidário às vicissitudes inelutáveis deste cosmos enquanto ele mesmo se autocompreendendo como um microcósmos Ao lado da força da natureza e da inexorabilidade do destino noções mais gerais o indivíduo sente a ação de poderes demoníacos atuando até mesmo em seus próprios impulsos e paixões208 Os gnosticismos209 orientalismos prevalecentes e o intelectualismo conseqüente com todos os constituintes cúlticos abluções oblações oferendas etc de cunho soteriológico decorrentes de sua metafísicareligiosa explicadora todavia não serão por sua vez capazes de deixar de nutrir nas vidas que vão tomando consciência de sua singularidade uma sensação de impotência e na vida social uma atmosfera que no primeiro século do surgimento do cristianismo alimentava todo um sentimento de fragilidade e desalento diante de um destino que se mostrava inexorável e contra o qual e em função de seu apaziguamento além da soteriologia e os meios de consecução pelo culto de mistérios já ditos restava o exemplo dos seres de exceção os heróis aqueles que ousavam se contrapor 208 BULTMANN Rudolf Creer y comprender vol II Stvdivm Ediciones Bailén Madrid 1976 p 55 La comprensión del mundo y del hombre en el Nuevo Testamento e en el helenismo in Theol Blätter 19 1940 pp 114 209 Werner JAEGER sublinha a relação entre os cultos de mistério e a filosofia dos primeiros filósofos gregos em La teologia de los primeros filosofos griegos op cit especialmente pp 77 ss Apesar do gnosticismo no singular ser possível enquanto expressão de elementos comuns de uma inspiração grecooriental difundida e dominante por exemplo antropologia dualista ontologia maniqueísta moral repressora e de autopunição etc quanto a esta última há um estranho fenômeno Dependendo da corrente gnóstica essa moral de purificação poderia tomar o outro extremo libertino e de rédeasolta No entanto mesmo neste outro estranho extremo o da rédea solta por conta mesmo do conteúdo implícito na noção de sacrifício e de autopunição purificadora em sua consecução o que se dava era a compreensão da necessidade de se cansar o corpo satisfazendoo e exaurindoo em seus apetites para que então se tornasse mais fácil dar vazão às prerrogativas do espírito possível agora com o corpo extenuado Todavia em ambos os extremos de purificação por causa de fundamentos comuns tais como pecados herdados em reencarnações passadas etc podemos usar a noção no plural pelo fato mesmo de gnosticismo no singular como se vê cobrir uma variedade de formas É fato que sempre existiu e ainda existe e de maneira atuante um gnosticismo cristão que por causa de sua diluição predominante no âmbito da experiência histórica e projeção sociológica do cristianismo a intenção do gnosticismo na manutenção de sua existência é sempre facilitada tanto por sua diluição como por tornarse um parasita um corpo estranho onde quer que consiga aderirse tem confundido a muitos em sua crítica a qual é feita como se tratando do cristianismo em si quando na verdade deveria ser ao gnosticismo que tem necrosado todo o tecido Sobre a complexidade do fenômeno do gnosticismo ver Cf Gerd LÜDEMANN and Martina JANSSEN Suppressed Prayers Gnostic spirituality in Early Christianity SCM Press London 1998 não obstante a visão simpática do autor pelo que ele compreende como criatividade religiosa gnóstica contra o engessamento da ortodoxia p 14 que parece impedilo de ver pela forma como coloca o problema que não se trata de escolher entre uma morte rápida e expressa pela ortodoxia ou uma mais longa e sutil portanto mais duradoura e mais difícil de superar depois de emplacada pela suposta liberdade gnóstica só porque essa se apresente com mais requintes criativos É em relação a esse tipo de visão simplista de fenômenos tão complexos que Mounier vai sempre ficar atento 92 a sua inexorabilidade divina mas cujo exemplo depois da perda do ideal grego da polis desde o início do helenismo já também não conseguia exercer uma influência empolgante210 I3 Kerygma cristão e tradição judaica Em relação à cultura judaica ambiente ao primeiro século do surgimento do cristianismo prevalecia no âmbito das pesquisas ou o preconceito de uma descontinuidade absoluta para os apologetas do cristianismo que à força de relevar a superioridade e independência da ética cristã frente à cultura judaica tendiam a desvalorizar as características próprias do judaísmo que os estudos mais recentes apontam para o fato de se manterem naquilo em que se mostravam pertinentes na apropriação que o cristianismo empreendia211 ou o preconceito contrário da continuidade absoluta que tendia a fazer do cristianismo um simples fenômeno do judaísmo tardio Novas pesquisas com efeito têm procurado apresentar tanto a existência de uma relação direta entre os textos neotestamentários e os veterotestamentários quanto não obstante os limites desta dependência no que diz respeito à especificidade para a qual o kerygma212 cristão aponta213 210 Os estóicos dos primeiros séculos da era cristã helenística vão ser ainda uma das grandes expressões de coragem diante de tal realidade A luta do neoestoicismo contemporâneo na esteira de Nietzsche para o personalismo ainda deve chegar a uma atitude mais conseqüente a uma erótica tal qual fora a dos antigos Veremos mais sobre o neoestoicismo quando falarmos de Pessoa e existência Sobre o tema da soteriologia grega ver INGE Willian Ralph op cit Apêndice A Definições de Mística e Teologia Mística p 335 Apêndice B A conexão entre os mistérios gregos e a mística cristã p 349 e Apêndice C A doutrina da deificação p 356 Ver também JAEGER Werner La teologia op cit p 60 ss cf também MONDOLFO Rodolfo La compreensión del sujeito op cit Tercera Parte La noción del pecado y la conciencia moral em la ética antigua pp 331 a 476 211 Um trabalho de cunho exegético mas que não deixa de ter importância sobre essa nossa questão pois ressalta o elemento comum diante da diversidade dos autores neotestamentários que liga ambas as tradições escriturísticas a veterotestamentária e a neotestamentária é o clássico de DODD C Harold Segundo as Escrituras Edições Paulinas São Paulo 1986 Afinal tanto o judaísmo quanto o cristianismo eram justa e juntamente pelo que o próprio islamismo antigo via neles de comum consigo mesmo e o que marcou na antiguidade uma relação amistosa entre estas religiões durante um bom tempo chamados de povo do livro 212 Proclamação 213 Nessa linha CULLAMANN Oscar Cristo e o Tempo Tempo e história no cristianismo primitivo Editora Custom São Paulo 2003 do mesmo autor Das origens do evangelho à formação da teologia cristã Editora Novo Século São Paulo 2000 Ver também MEYER Ben F The early Christians Their World Mission SelfDiscovery Michael Glazier Inc USA 1986 principalmente The Kerygma Revised Context and Cutting Edge p 36 ss Também ROBINSON James A Le kérigme de léglise et le Jésus de lhistoire traduit en français par Etienne de Peyer Nouvellle série théologique Labor et Fides Genève France 1960 93 Quanto aos estudos relacionados à cultura judaica e as suas relações com as origens do cristianismo primitivo as descobertas de Qumran214 e os novos achados arqueológicos puderam consubstanciar o que já procurava espaço para se firmar aqui e acolá por trabalhos mais antigos E mesmo esclarecendo melhor antes as especificidades de cada parte não obstante também contribuiu para melhor esclarecer os níveis em que se davam os aspectos de mútua dependência cultural Contribuiu então para o desenvolvimento da pesquisa e lançou luzes sobre 1 a história e crítica textual do texto hebraico do Antigo Testamento 2 a história das origens do Novo Testamento e 3 um melhor conhecimento do judaísmo coetâneo a Jesus Todavia na febre inicial das descobertas pesquisadores tais como DupontSommer215 na intenção de estabelecer paralelos e consequentemente por conta da anterioridade da existência da Comunidade e do culto de Qumran em relação à comunidade e culto cristãos total dependência deste em relação àqueles tirou conclusões que logo em seguida por estudos mais detidos e sobre material mais amplo se mostraram inconsistentes216 O principal paralelismo que DupontSommer procurou traçar era entre o Mestre de Justiça uma figura importante da Comunidade e culto de Qumran e Jesus Cristo217 Não obstante isso o saldo foi positivo em todas as direções Os achados de Qumran impedindo que se fundamentassem paralelos no sentido de se estabelecer prevalências desclassificadoras por outro lado possibilitou o desenvolvimento da pesquisa em aspectos ligados ao período intertestamentário e ao meio ambiente do judaísmo dos principalmente a Introduction em que o autor faz uma retomada da problemática e apresenta uma bibliografia pertinente e ampla sobre o tema do kerigma e sua relação com a questão do Jesus histórico até os seus dias Tocando mais na questão cultural e cultual do kerigma cristão dentro do meio ambiente judaico e greco romano ver SACHOT Maurice A invenção do Cristo Gênese de uma religião Col Bíblica Loyola 40 Edições Loyola São Paulo 2004 214 Uma biografia sobre esse tema levaria tantas páginas ou mais quantas compõem o presente trabalho Todavia uma obra que apresenta de maneira ordenada e sistemática todo o processo dos descobrimentos e os principiais problemas que estes achados iam suscitando dentro do período que cobriu sua descoberta de 1946 a 1956 e em in loco é o de LAMADRID Antonio G Los descobrimientos de Qumran Ediciones Marova S L Instituto Español de estudios ecclesiasticos Madrid 1956 215 DUPONTSOMMER A Apercus préliminaires sur les manuscrits de la Mer Morte Paris 1950 e 1953 Citado por LAMADRID op cit p 399 Une Seleccion Bibliografica 216 Um outro livro que não deixa de manter interesse por se situar também bem na conclusão do período das descobertas de Qumran e que faz como LAMADRID uma bela apresentação dos trabalhos arqueológicos acrescentando mais referências geográicas com mapas fotos e ilustrações é o livro de DAVIES A Powell The Meaning of the Dead Sea Scrolls The documents that Shed a Brilliant Nerw Light on Christianity New American Library New York and Scarborough Ontário The New English Library Limited London 1956 principalmente o Capítulo 4 The Scrolls and Christian Origins p 82 ss 217 Um ótimo estudo exegético sobre a relação entre o Mestre de Justiça e Jesus Cristo se encontra em CULLMANN Oscar Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã Editora Novo Século São Paulo 2000 pp 11 ss A significação dos textos de Qumran para os estudos das origens cristãs 94 primeiros séculos da era cristã que se encontravam um tanto quanto paralisados Todavia antes de Qumran em relação à relação do cristianismo primitivo e a cultura judaica desenvolviase duas correntes opostas que se nutriam cada qual de uma base de interpretação histórica afirmadora ou da continuidade ou da descontinuidade históricas Quer dizer dependência total ou independência total Todavia como dissemos mesmo antes de Qumran procuravase aqui e acolá dentro de uma visão mais dialética quer dizer histórica situar a relação entre o judaísmo e o cristianismo primitivo218 Em relação à cultura judaica percebiase a inserção por parte do kerygma cristão na noção de escatologia mesma quer dizer no âmbito mesmo da noção de tempo e história própria do patrimônio teológico judaico de sua escatologia um conteúdo de esperança mais radicalmente ligado à existência responsável e livre da pessoa singular diante de Deus responsabilidade essa que a apocalíptica judaica tendia a orientar para o plano de um despertamento ético nacional desconsiderando o papel do indivíduo219 Além disso a especificidade do kerygma cristão contrapunhase também especialmente em sua intenção de construção de uma universalidade fora dos quadros do exclusivismo soteriológico judaico ao cerceamento legalista e xenófobo do judaísmo de então Nesse sentido o kerygma cristão se colocará também em face da escatologia judaica e seu legalismo e exclusivismo soteriológico conseqüente Esta escatologia se mantinha prevalecente já como tradição aceita mantendo sobre o povo o fardo da tirania de um puritanismo legalista pesado e difundido juntamente com um certo exclusivismo religioso que ia de encontro à própria vocação israelita de chamado para o cumprimento de uma universalidade implicada como vocação nacional já como veremos mais adiante no ato de libertação do cativeiro egípcio por Iahvé Tanto em relação ao judaísmo por conta da arrogância que o fez desviarse desta sua vocação histórica de universalização baseada nos moventes de dignidade e liberdade220 que foram os alicerces de sua própria história como nação libertada do cativeiro egípcio por 218 Uam destas tentativas é exemplificada pelo livro clássico na pesquisas sobre as origens do cristianismo primitivo do exexprofessor de Oscar Cullmann e com quem Mounier realizou alguns cursos na École des Hautes Études da qual foi diretor GOGUEL Maurice Au seuil de lÉvangile Jean Baptiste Payot Paris 1928 219 CULLMANN Oscar Das origens do Evangelho op cit 220 Mais adiante vamos esclarecer as bases históricoreligiosas destas duas noções fundamentais 95 Iahvé quanto em relação ao espírito grego por sua instintiva repulsa ao cotidiano e conseqüente fuga do concreto e sua tendência ao intelectualismo abstracionista221 o cristianismo representa a radicalização de uma perspectiva de resgate do cotidiano e do concreto que ainda está longe de gerar todos os seus frutos e de apresentar todo o seu alcance radical os quais parecem ir no sentido das inspirações mais profundas já sentidas por Emmanuel mounier em seu tempo do que se delineia na linha do horizonte como movimento de construção de uma ética contemporânea Nesse sentido e só nesse fora da noção de descontinuidade absoluta que comanda sua crítica e que se afasta de uma concepção de história segundo o modo de ser da relação Nietzsche que concebe a ética cristã e o surgimento do cristianismo como uma transvaloração de todos os valores afirmativos da vida advindos da cultura grega présocrática parece todavia que se nessa parte de sua crítica não fora tão bem assim em relação a sua ética hierarquista222 por outro lado compreendeu muito bem o significado radical da expressão Deus crucificado223 Sobre esse assunto diz Mounier o cristianismo pede ao homem uma presença ativa a todo o temporal A Igreja imediatamente rejeitou a heresia gnóstica que pretendia ensinar de novo a evasão platônica e substituiu numa perspectiva total o ensinamento do Pseudo Dionísio que ameaçava arrastar toda a vida cristã no desligamento místico224 O modo de ser da relação comanda o palco da história na perspectiva do personalismo de Mounier Crer que uma metafísica deve substituir uma outra metafísica 221 Excetuando a grande exceção Heráclito de quem se diz que ao ser encontrado executando um trabalho de olaria com as próprias mãos o trabalho manual sempre fora mal visto porque sempre mais ligado à condição de escravo pela sensibilidade aristrocráticointelectualista grega diz Aqui também há deuses Cf INGE op cit passim Não é sem importância lembrar que este filósofo de Éfeso tão bem visto por Nietzsche NIETZSCHE Friedrich C Crítica moderna in Coleção os Pensadores Os présocráticos Abril Cultural 1978 pp 102 ss tratase de um texto em que Nietzsche expressa bem a importância de Heráclito para ele é o mesmo que é chamado pelos cristãos primitivos como já fizemos referência de o cristão antes de Cristo 222 Sobre isso ver abaixo p 676 Intermezzo moral personalista e moral hierarquista 223 NIETZSCHE Além do bem e do mal Prelúdio a uma filosofia do futuro Companhia das Letras São Paulo 2003 p 52 224 Feu la chrétienté op cit p 695 É interessante notarmos as observações de INGE The Christian Mysticism op cit p 87 s 104 a 122 154 244 a 257 sobre a via negativa ou apofática inaugurada pelo PseudoDionísio que propende ao acosmismo ou seja à negação da realidade do ser do mundo material Não obstante a via negativa ser cara ao método de abordagem de Mounier este é atento as suas tentações como pode ficar claro pela citação anterior 96 para conseguir um lugar ao sol da verdade é imaginar os domínios do espírito como partes que se recobririam ou se excluiriam mutuamente Mas o conjunto das grandes culturas e das grandes metafísicas é antes um concerto de vozes sobre registros diferentes que muitas vezes concertam e que noutras destoam mas que sempre ressoam225 À luz do personalismo o importante a ser notado quanto à questão da sucessão e criação das idéias metafísicas e das filosofias é antes a da manutenção de um certo nível de continuidade ou de um descaminho na história de determinada intuição original quer dizer de desenvolvimento pertinente ou não dessa intuição Destoando da diacronia nietzschiana podemos afirmar que Mounier propõe o personalismo como também como uma assunção226 de maneira determinada da prova acerca da capacidade nutridora e produtiva no âmbito mesmo do desenvolvimento da história do pensamento das intuições fundamentais com especial atenção àquela do universo que compõe a pessoa e suas implicações para a ética referimonos aqui às duas grandes intuições que têm comandado as grandes e reais revoluções conquistas e transformações na humanidade a noção de igualdade e a de liberdade Estas como veremos no desenvolvimento do presente tópico recebem seu primeiro alento da consciência de uma vocação especial e da experiência fundacional experimentada pela libertação da nação de Israel do cativeiro egípcio da qual já falamos e ambas estas experiências ligadas intrinsecamente a sua compreensão histórica das epifanias diretoras de Iahvé registradas nas narrativas bíblicas Portanto se tudo que acontece tem como palco comum a história227 então o problema da religião enquanto problema legitimamente humano228 não pode simplesmente ser tratado como superestrutura a serviço da ideologia Marx ou simplesmente como sinônimo da decadência humana Nietzsche ou simplesmente como fábrica de neuroses e de neuróticos Freud pois como propõe o método fenomenológico que está na base da compreensão de Mounier desta temática o reducionismo e esquematismo a priori nunca são boas bases para se compreender qualquer fenômeno 225 La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 43 226 E aqui está o caráter podese dizer de atitude que Mounier faz questão de lembrar mas ao qual não reduz o seu pensamento que permanece além de uma atitude uma filosofia Le personnalisme Oeuvres III p 429 O personalismo é uma filosofia não é somente uma atitude É uma filosofia não é um sistema 227 Em outro lugar serão esclarecidos os aspectos concordes próximos e distantes concernentes à dialética personalista em relação à dialética marxista Capítulo IV Revolução Personalista e Comunitária e Revolução Coletivista 228 E o personalismo de Mounier é um humanismo 97 ainda mais um tão complexo quanto o da religião Para o personalismo de Mounier O espiritual também é uma infraestrutura229 Quanto ao problema da compreensão como exigência epistemológica personalista para o ato de conhecimento da dimensão religiosa à qual temos tentado nos aproximar aqui no pensamento de Mounier ao apresentarmos o papel fundamental que a fenomenologia exerceu sobre ele não obstante a paternidade de Husserl será antes por via da fenomenologia axiológica das formas a priori da simpatia que se desenvolvia independente de Husserl por Max Scheler que receberá mais acolhida dentro do personalismo Por via de Max Scheler diz Mounier que o amor não identifica o amor pleno é criador de distinção reconhecimento e vontade do outro enquanto outro A simpatia é ainda sua afinidade de natureza o amor é uma nova forma de ser o amor é cego mas é uma cegueira extralúcida230 Como em Max Scheler o amor mais do que a simpatia que por outro lado permanece a ponte pela qual se pode alçar ao amor é para Mounier o fundamento de toda ética e epistemologia personalista Ao se investigar a essência de um indivíduo de uma família de um povo de uma nação de uma época histórica ou outra unidade social qualquer se chegará a compreendêla na perspectiva scheleriana em sua realidade mais profunda se se conhecer o sistema articulado de suas efetivas estimas e preferências Este sistema é o que Scheler denomina ethos Porém o núcleo mais fundamental desse ethos é a ordenação do amor e do ódio as formas das paixões predominantes A concepção do mundo tanto como as ações e os feitos do indivíduo ou da sociedade seguem regidas desde o princípio por estes fatores231 Portanto se estas realidades em suas manifestações em suas expressões fenomênicas têm na base tais fatores a filosofia personalista de Mounier na análise destes fenômenos porque pretende realizar no plano do engajamento o diálogo irrestrito e sem entraves elegerá o fator predominante do amor como aquele que melhor cumpre a significação pela qual poderemos conhecer o valor interno e próprio que as coisas possuem e pelo qual devem ser amadas232 Por aqui podemos ver que a dimensão pessoal por excelência que dá conta das expectativas de 229 MOUNIER Emmanuel Le personnalisme Oeuvres III 1949 p 446 230 Ibidem p 454 231 MARCOS Manuel A Suances Max Scheler Principios de uma ética personalista Herder Barcelona 1986 pp 83 ss 232 MARCOS op cit et loc cit 98 construção de uma nova epistemologia e ética contemporâneas ou seja que ressaltem na contramão do racionalismo nivelador e homogeneizante a diferença no que ela é em si mesma e não no que tem de relativo a outra mas tomada em sua relacionalidade com o que lhe é outro é o amor Será por este caminho do amor que o personalismo de Mounier ira propor a elaboração desta nova epistemologia e ética Todavia em Max Scheler nas formas a priori da simpatia e da fenomenologia como postura espiritual quer dizer como postura própria no trato dos fenômenos históricos e religiosos tais como estamos tentando fazer aqui A fenomenologia não é o nome de uma nova ciência nem uma palavra de substituição para filosofia mas uma postura espiritual com que se recebe algo para ver ou para viver grifo nosso algo que sem ela permaneceria oculto um dirigirse para aqueles fatos puros que o homem em geral e mesmo o cientista não sabe captar233 Mas também como inspiração presente na parte pouco conhecida do próprio Edmund Husserl todavia com uma certa hesitação e imprecisão234 Por um lado em Husserl a filosofia deve ser considerada um via atéia de pesquisa235 como afirma em seu ensaio de 1934 A tarefa atual da filosofia Husserliana Kluwer Holland vol XXVII uma total autonomia da investigação 233 Cf STEFANO Anna Escher di Max Scheler A dimensão fenomenológica do sagrado in Deus na filosofia do século XX op cit p 161 cf citação em nota SCHELER Max Phänomenologie und Erkenntinistheorie in Schriften aus dem Nachlass Sob os cuidados de M S Frings Bern München 1957 p 381 234 BELLO Angela Ales Edmund Husserl 18591938 Teleologia e teologia in Deus na filosofia do século XX op cit p 68 ele Husserl considera que se possa e se deva num primeiro momento aperfeiçoar o método fenomenológico mas num segundo momento buscar através dele as vias do Absoluto Há aqui ao que parece o problema comum de uma reflexão que não tomou consciência da necessidade de autocrítica e que ainda procura nas trilhas da negação do Absoluto e pela afirmação posterior de si como o fundamento uma recolocação do Absoluto que já se tornaria impossível pela negação de si como tal Vamos ver em outro lugar como já indicamos em nota no Capítulo sobre o Pessoa e existência como se desdobrará o problema do fundamento do Absoluto na reflexão de Mounier que adota a autocrítica como postura programática A questão do Ungrund que é cara ao pensamento de Nicolas Berdiaeff e que ele retoma do místico alemão Jacob Böhme 15751624 a quem Hegel chamava de o Platão germânico era conhecida de Mounier mas que em sua tarefa engajada toma antes a forma de uma atitude constante antes que o de apenas uma discussão conceitual Essa tarefa quem tomará para si será o filósofo protestante amigo pessoal de Mounier e de Paul Ricouer ver RICOUER Paul Nas fronteiras da filosofia Leituras 3 Loyola São Paulo 1996 p 147 ss e colaborador de Esprit Pierre THÉVENAZ que ao meu ver é a continuação conseqüente de um desenvolvimento conceitual ou melhor anticonceitual da obra engajada de Emmanuel Mounier tratase em Pierre THÉVENAZ da elaboração de uma filosofia protestante sobre as bases de um cristianismo ateu Vale lembrar então que Nietzsche também não é o primeiro nem o único a falar do pensamento Ungrund Ver sobre esta importante noção no pensamento personalista do existencialismo de Nicolas Berdiaeff em LUROL op cit pp 177 ss 235 BELLO op cit p 65 99 filosófica em relação à Revelação judaicocristã 236 Por outro lado aperfeiçoar o método fenomenológico mas num segundo momento buscar através dele grifo nosso as vias para o Absoluto237 Ainda em Husserl e voltandonos agora para o tipo de atitude que compunha sua disposição em compreender que com efeito é o aspecto positivo da fenomenologia em relação ao fenômeno religioso de que estamos tratando este tipo de atitude se encontra tanto nos seus escritos pouco conhecidos como nos seus escritos mais conhecidos pois se dá como índole geral do seu método Em dois documentos um dedicado ao tema da teologia enquanto ciência e outro por uma carta dirigida ao filósofo e teólogo E Przywara vemos a disposição solícita e positiva por parte de Husserl em compreender a especificidade do fenômeno religioso No primeiro238 Husserl reafirma a validade de uma pesquisa teológica que parta dos princípios revelados e portanto supraracionais239 No segundo uma carta a Przywara em 1932240 Husserl escreve o método fenomenológico satisfaz a todos os genuínos problemas da evidência isso vale também para as evidências religiosas Temos agora a oportunidade de mencionar novamente a importante obra do fenomenólogo Rudolf Otto que lançou as bases das pesquisas a que chamamos atualmente Ciências da Religião Husserl leu Das Heilige e em carta a R Otto de 5 de março de 1919 escreve o estudo dos fenômenos e de sua análise essencial deveria ser realizado muito antes de uma teoria filosófica poder instituirse 241 O livro de Otto é considerado importante por Husserl porque ele é um início e volta aos inícios e às raízes é este o seu 236 Ibidem p 68 237 Ibidem loc cit Vemos o quanto de aporia um problema tão fundamental causa quando se força tratálo como apenas problema teórico Essa limitação do pensamento de Husserl é percebida por Mounier que se conduz cada vez mais para a formulação de uma filosofia engajada 238 BELLO op cit p 65 Em nota A V 21 Etsches Leben Theologie Wissenschaft Vida ética Teologia Ciência 1924 239 Mais à frente veremos como essa tarefa foi levada eficientemente a cabo por Rudolf OTTO em Das Heilige Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen O Sagrado Os aspectos irracinais na noção do divino e sua relação com o racional Verlag C H Beck München Alemanha 1979 240 Por acaso esse é o ano de lançamento da revista Esprit Por aí podemos perceber o quanto a solução racional que o iluminismo e o kantismo propunham para o fenômeno religioso estava sendo contestada enquanto que ao mesmo tempo buscavase refletir sobre o estatuto próprio de cada uma dessas esferas ambas genuinamente incorporadas ao legado da experiência históricoaxiológica da humanidade 241 BELLO op cit Deus na filosofia do século XX op cit p 72 100 significado original no sentido mais genuíno da palavra242 e de nada nosso tempo sente maior necessidade do que voltar atrás243 É neste ambiente de uma crítica comum à incompetência do racionalismo em lidar com as questões mais profundas da existência humana dentre elas a questão da religião desta abertura ao histórico244 como temos feito notar que devemos perspectivar o delineamento das preocupações do jovem filósofo Emmanuel Mounier não somente em relação as suas convicções pessoais245 mas quanto à inserção na arena intelectual e religiosa a sua volta muito ainda desencontrada digase de passagem desta volta às questões fundamentais que representava para ele e o grupo de Esprit a oportunidade de construção de um diálogo amplo e sem fronteiras a não ser a da mávontade na convicção da capacidade agregadora e mobilizadora destas questões por conta mesmo do seu caráter comum intrinsecamente humano todo diálogo para o personalismo é ao mesmo tempo lucidez e participação246 Uma outra expressão de Jean Lacroix quanto a isso é precisa Mounier não foi do personalismo à pessoa mas da pessoa ao personalismo e o personalismo jamais foi para ele um sistema filosófico mas o meio de chamar cada um a si mesmo e aos outros 247 Assim para entendermos o alcance da reflexão e da crítica que Mounier inaugura com o lançamento de Esprit seria interessante percebermos o quanto o pensamento contemporâneo já em forma de cultura carrega em si estruturas fundamentais advindas de áreas como a religiosa Em relação às quais é possível com esforço e paciência estabelecer uma aproximação e um acesso ainda que mínimo nem por isso inválido248 Isto por meio da analogia e da comparação não obstante as inspirações básicas religiosas e os elos de ligação pelo costume e pelo uso já se mostrarem perdidos e irreconhecíveis pelas 242 Ibidem em nota p 72 Carta de Husserl a R Otto de 15031919 243 Ibdem p 72 244 Não poderíamos deixar de citar o resgate do histórico do historicismo hegeliano empreendido por Wilhelm Dilthey motivado por seu diálogo com a obra do pai da nova hermenêutica o pastor protestante Friedrich Ernst Daniel Schleirmacher 245 Mounier afirmase claramente cristão 246 LACROIX Jean Emmanuel Mounier Um testemunho e um guia in Presença de Mounier Livraria duas Cidades São Paulo 1969 p 32 Ensaios extraídos da revista Frères du Monde 247 Esprit 1905 a 1950 op cit p 841 248 Apesar da ilustração não ser boa para significar a pessoa que para Mounier não se define como um ponto matemático todavia serve aqui no plano da ação para exemplificar o quanto para o personalismo de Mounier um mínimo que pode ser considerado irrisório na verdade pode ser tudo portanto como diria Arquimedes Dême uma alavanca e um ponto mediano de apoio e eu movo o mundo 101 névoas antepostas das eras históricas e o caráter já remoto dos elos apesar da unidade perceptível de inspiração249 Se realmente estas analogias se mostrarem pertinentes no alcance é claro que se pode esperar de um tal método analógico sem querer eliminar as específicas contribuições e nem cair em nenhum tipo de reducionismo religioso perceberemos o quanto uma correta consideração do fenômeno religioso é importante tanto para elucidarmos como essa problemática se manteve na formação do pensamento de Emmanuel Mounier quanto para entendermos a história do pensamento ocidental em seu movimento mesmo de procura de emancipação destas mesmas estruturas religiosas O fato é que um tipo de método como este e que fundamenta a compreensão personalista tem na sua base o pressuposto de que o desenvolvimento do conhecimento é possível graças ao estabelecimento de mediações aproximativas necessárias para que haja qualquer relação possível entre o antigo e o novo Em outras palavras o modo de ser da relação que comanda a compreensão personalista da experiência originária faz com que um início ab ovo para ele tomando com rigor as palavras se torne impossível Tanto uma postura propositiva como a cartesiana só se tornou real e possível por causa da possibilidade por vínculos reais do que propunha como novidade em relação ao que já existia antes se não houvesse nenhuma estrutura que possibilitasse a mediação entre a novidade cartesiana e o pensamento anterior Descartes não conseguiria sequer comunicar seu pensamento A novidade de Descartes está no modo como ele lidou com a tradição conseguindo imprimirlhe seu gênio sua singularidade que só por isso conseguiu alcançar uma universalidade como o artista que mesmo utilizandose dos elementos historicamente comuns no desenvolvimento de sua arte quando consegue no auge de sua maturidade criadora imprimirlhe de tal maneira sua especificidade no mesmo instante pela possibilidade mesma da comunicação desta especificidade transformase em uma expressão universal Desta condição não está fora mesmo que o queira um pensamento como o de Nietzsche pois mesmo como dúvida hipercartesiana250 para se manter como 249 É a elucidação destas formas religiosas na cultura dita profana ou laica que vai movimentar os trabalhos de Paul Tillich Ver TILLICH Paul História do pensamento cristão ASTE São Paulo 2004 principalmente Capítulo I A preparação para o cristianismo pp 24 ss e do mesmo autor Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX ASTE São Paulo 2004 principalmente Capítulo II O iluminismo e seus problemas e Capítulo III A reação clássicoromântica contra o iluminismo pp 56 ss 250 Esta não é a expressão que Paul RICOEUR usa para denominar a crítica nietzschiana mas expressa bem o seu sentido Para tanto ver RICOUER Paul O simesmo como um outro Papirus São Paulo pp 22 ss O cogito partido 102 tal deve se nutrir da existência de algo anterior que quer negar Desse mergulho na história desse diálogo ininterrupto com o passado o personalismo pelo contrário não vai abrir mão Em um texto de maio de 1949 que tem o título A história cristã Mounier no que pode se relacionar ao que temos dito acerca do preconceito quanto ao pensamento grego sem que se negue os aspectos de verdade e que parece ainda se manter nele todavia mais especificamente quanto à questão do tempo e que em relação ao tema da singularidade do movimento de individuação próprio ao movimento de personalização e na economia geral de sua reflexão se torna vacilante e não peremptório diz o seguinte251 Ora esta idéia252 seja qual for não é uma evidência do espírito humano Está ausente no pensamento oriental Era totalmente estranha ao pensamento grego Para o pensamento grego o ser verdadeiro era a imobilidade Como não negava que o mundo existisse realmente assim como o faz o pensamento hindu o único meio de o restringir à realidade era conceder ao tempo ao final de contas este movimento circular que é a imitação menos ruim da imobilidade Onde imaginamos a duração como uma reta estendida diante de nós ao infinito a imaginação grega tinha a necessidade incoercível de limitar esta trajetória descabida Pensava neutralizar a irracionalidade da história figurandoa como um eterno retorno Acreditase não raro que o aspecto borbulhante do acontecimento a novidade que daí jorra contradiz a idéia de uma significação que dele decorre Os gregos apercebem se do contrário em conjunto e ao mesmo tempo negam a existência de uma unidade da história e lamentam a infelicidade de um mundo em que nada jamais é verdadeiramente novo253 Como notamos anteriormente realmente é este tipo de compreensão que parece prevalecer no pensamento grego mas não de maneira tranqüila para as afirmações peremptórias a seu respeito Rodolfo Mondolfo254 mostra que outras concepções existiam paralelamente a esta mais difundida e que se toma por oficial O cristianismo sem dúvida radicaliza a idéia de sentido da história como já notamos e nesse sentido faz valer no universo tranqüilo da dominação de um pessimismo da intranqüilidade da Antiguidade um 251 No Capítulo abaixo Pessoa e existência vamos retomar essa questão do problema da construção da subjetividade Lá também lançaremos mão de um outro texto de Mounier em que a manutenção vacilante do preconceito comum em relação aos gregos ainda se dá em Mounier 252 De que há uma história 253 Feu la chrétienté op cit p 596 254 Voltaremos sobre esta importante questão no capítulo sobre Pessoa e existência abaixo como dissemos Lá nos valeremos das pesquisas de Rodolfo Mondolfo 103 elemento de inusitado convidando os seres humanos cada um deles a pensar os fatos de maneira cocriadora por conta da história como futuro aberto e participativa na construção deste mesmo futuro pelo dom da liberdade intrínseco a cada um Essas observações servem para entendermos o papel fundamental que o histórico tem na perspectiva personalista Mas também para chamar nossa atenção para o elemento de vascilo por parte do próprio Mounier em seguir as conseqüências quanto a esta questão do histórico que se encontram justamente em seus próprios escritos e que decorrem do seu próprio método do qual nos valemos para fazer aqui também a crítica autorizada de Mounier a ele mesmo Assim aqui chegamos à apresentação dos constituintes escriturísticos veterotestamentários que fundamentam essa nossa aproximação pela via mesma do fenômeno religioso às noções de dignidade e de liberdade a cujas inspirações históricas fundantes pretendemos então nos aproximar Em relação a isso citamos uma passagem de Mounier Só os judeus na Antiguidade reconheceram na humanidade uma destinação histórica ligada a fatos peculiares e irreversíveis do Gênesis à consagração de Abraão e à série profética movida no sentido consagrador da história o advento do Messias O cristianismo herdou a concepção judaica espiritualizoua ainda pela universalização255 da missão redentora até aqui restrita ao povo judeu e pela subjetivação do reino256 Não se assinalou suficientemente o quanto a mensagem cristã centrase na história Esta mensagem 255 É importante desde já estabelecermos uma diferença entre o que o personalismo entende por universalização e o que o racionalismo moderno concebeu como universal O universal para Emmanuel MOUNIER antes que uma questão fechada e acabada é um sentido intrínseco ao movimento mesmo de personalização que se confunde com o sentido mais próprio da vida pessoal em sua afirmação através das formas culturais Cf MOUNIER Le personnalisme Oeuvres III p 523 Enfim toda cultura é transcendência e ultrapassamento A partir do momento em que a cultura se detém transformase em incultura academicismo pedantismo lugar comum A partir do momento em que não tenha mais em vista a universalidade perdese na especialidade A partir do momento em que confunde universalidade com totalidade bloqueada ela se enrijece em sistema Portanto como vermos universalidade não quer dizer para Mounier um construto teórico acabado baseado num projeto particular como foi o da modernidade em sua paixão e seu otimismo para com a ciência e sua razão como redentoras Tratase como em tudo na análise personalista de um movimento inacabado de um universal a ser construído mas cujo movimento não pode ser negado pelo perigo de se negar o próprio sentido da pessoa ou da vida enquanto afirmação dos valores mais densa e pertinentemente fundamentais e que seguem no sentido de uma universalização Ou antes no sentido de uma ingênita propensão de saída de si para o outro de uma capacidade de descentralização por um movimento de encontro com o próximo Tratase mais de uma noção da ética personalista conseqüente com sua antropologia relacional do que de um conceito ideológico programático como é o universal da modernidade liberal burguesa 256 Como já dissemos pelo indivíduo como expressão axiológica singular frente a sua cultura e nação particulares 104 não traz à humanidade uma gnose uma ciência nova do mundo ou do ser humano nem uma filosofia no sentido próprio ela lhe conta uma história a história de Cristo e da humanidade no Cristo Esta perspectiva a herança da Antiguidade misturou nela suas águas turvas as formas da inteligência grecolatina em que o cristianismo lançou primeiramente suas luzes não foram de chofre transfiguradas por ela Um sistema de noções primeiro platônicas depois aristotélicas veio oferecer tradições sem dúvida verídicas porém restritas da mensagem cristã e graças à negligência humana as idéias persistentes que se formaram na superfície deste profundo trabalho da inteligência foram depressa aceitas como idéias eternas Esta divinização inamovível do sistema das idéias assume forma definitiva em Hegel É nele tão sábia que chega a construir um sistema da própria história e que parece lhe dar a primazia no momento mesmo em que a petrifica o cristianismo trouxe a história ao mundo que a Verdade é também o caminho e Vida isto é a evolução interna e externa257 257 Feu la chrétienté op cit p 597 105 SEGUNDA PARTE Aproximações Veterotestamentárias na Construção das Noções de Dignidade Humana e Liberdade Humana Segundo Cordero258 a história bíblica veterotestamentária como um todo desenvolvese dentro de um pano de fundo históricogeográfico bem determinado na área do Oriente Próximo justamente em um cruzamento geográfico em que se vêem citados os impérios e focos culturais da Antiguidade ou seja o mesopotâmico e o egípcio É pelo fato de Canaã cenário da trama bíblica ser o ponto de união e o lugar obrigatório de passagem entre Ásia e África que essa franja geográfica no Mediterrâneo oriental é de uma importância de acordo com Cordero capital no desenrolar das inquietudes políticas e culturais que surgem nas orlas do Nilo e da planície mesopotâmica Por isso segundo esse autor a história da Bíblia longe de estar isolada no contexto da marcha das grandes civilizações encontra seu esclarecimento à luz dos descobrimentos arqueológicos que têm estabelecido com bastante clareza a história dos povos do Crescente Fértil e seu meio cultural De fato muitos dos grandes monarcas e protagonistas desta encruzilhada geográfica agora perfeitamente datados ainda de acordo com Cordero aparecem mencionados na Bíblia em relação com suas grandes invasões259 Estas primeiras linhas indicadoras de Cordero nos possibilitam vislumbrar não só a inserção da história de Israel na história da humanidade como também a pertinência de sua consideração mesmo num trabalho de filosofia dado o fato desta inserção se dar em relação a duas civilizações a mesopotâmica e a egípcia tão incontestavelmente importantes na configuração histórica da humanidade260 e principalmente no delineamento do próprio judaísmo que exerceu por meio do cristianismo grande influência na formação do que 258 CORDERO Maximiliano Garcia La Biblia y el legado de antigo oriente El entorno cultural de la historia de salvación Biblioteca de Autores Cristianos Madrid 1977 pp 3 a 40 259 Ibidem 260 Como também são as civilizações Grega e Romana de cujo produto expresso pela junção grecoromana caracteristicamente mais afim com a história da filosofia ocidental e também a propósito do nosso tema falaremos mais à frente 106 chamamos civilização ocidental Só uma visão intencional ou ingenuamente eurocêntrica crítica ou apologética gostaria de reduzir os fenômenos representativos e significativos desta história aos quadros limitados de compreensão histórica herdados pela abordagem historicista que tende a medir o valor e alcance destas expressões a partir de seus próprios pressupostos e de sua situação atual261 Ao lidarmos com a narrativa de Gênesis sobre a Criação entramos na dimensão do mito que exige muito mais do que quadros racionalistas modernos preestabelecidos de compreensão Com efeito entraríamos nesta dimensão do mito também mesmo que se tratasse em vez de uma narrativa mitológica propriamente dita de uma teoria cosmológica física do tipo bigbang que não obstante todo seu esforço explicativo em sua racionalidade e os seus nexos causais construídos com base em experimentos físicos que procuram reconstruir em laboratório a situação original ainda assim tratarseia sempre de uma hipótese cuja pertinência se manteria sempre também em função de sua adequação aos experimentos que justificariam apenas as analogias eleitas no seu famigerado círculo hermenêutico próprio A pesquisa natural nunca explicará a origem do universo ou mesmo da terra pois a criação permanece além dos limites do território interno a sua busca262 Por outro lado visto que pretendemos fazer algumas observações sobre o mito da criação de Gênesis como uma das fontes da Antiguidade inspiradora das noções fundamentais de dignidade e liberdade que têm movido em suas mudanças mais qualitativas a história da humanidade e para não dar o ar de arbitrariedade ou de fins apologéticos sou obrigado a fazer algumas comparações da tradição bíblica com outras tradições ambientes a sua elaboração que se nos apresentam como pertinentes quanto ao que nos interessa desenvolver nesta parte e que se inscrevem mesmo num trabalho de filosofia Para tanto por não ser especialista me valho aqui do trabalho de outros 261 Essa segundo a perspectiva personalista é a tentação do hegelianismo e todo positivismo histórico que sempre espreita aos que não abrem mão do histórico como uma espécie de objeto contenível Tratase à guisa de exemplo do mesmo preconceito de um físico atual que não consideraria conveniente e pura perda de tempo estudar a noção de átomo dos antigos por considerála ultrapassada em relação à teoria atual ou do médico alopata de não ler os textos de Hipócrates ou Galeno ou mesmo dos Egípcios sobre medicina por considerálos ultrapassados Se estritamente de um ponto de vista pragmático estas ciências práticas encontram justificação social para este tipo de atitude já em relação às ciências do espírito para retomar a denominação de Dilthey esse tipo de atitude dentro da perspectiva personalista não se justifica 262 C F KEIL e F DELITZSCH Commnetary on the Old Testament in Ten Volumes Vol I The Pentateuch Three volumes in one William B EERDMANS Publishing Company Grand Rapids Michigan p 41 107 Em relação à narrativa do Gênesis que é a que nos interessa aqui estamos lidando em nossa preocupação por relevar os diferenciais da história do Gênesis em relação a outras narrativas da Criação anteriores e contemporâneas a ela como expressões humanas que tocam numa esfera cujo móbil que as fez surgir são os questionamentos profundos de um ser humano que se vê na contingência não mais só de manterse vivo de garantir sua vida empírica o que se justificaria como atitude de um ser orientado só pelos seus instintos naturais de sobrevivência mas sim de situarse como pessoa no mundo Não obstante tratarse de um texto da Criação do Bereshit ou Archê Princípio dado o caráter existencialmente último das questões263 que o movem e que levanta por isso mesmo seu conteúdo tornase ahistórico enquanto não propondo nenhuma teoria da história como poderíamos conceber e ao mesmo tempo e eis o diferencial da narrativa de Gênesis das demais fazendo valer no que poderia se perder nas nuvens do lendário do imaginário da curiosidade arqueológica o caráter densamente histórico de sua intenção ou seja propriamente existencial ou concreto Como observa Delitzsch264 Se olharmos simplesmente na forma deste documento a narrativa da criação seu lugar no começo do livro de Gênesis é suficiente para permitir a expectativa de que nos será narrada uma história e não uma ficção ou especulação humana E mais à frente em relação a elementos exegéticogramaticais relacionados ao primeiro versículo e este seu lugar em Gênesis diz ainda Delitzsch Que este versículo o primeiro não é meramente um cabeçalho é evidente pelo fato de que a narrativa seguinte do curso da criação começa com w e que conecta os atos diferentes da criação com o fato expresso no versículo 1 como a primária fundação sobre a qual o resto radica TyviareBe Bereshit no princípio é usado absolutamente como evn avrch en archê no princípio em Jo 11 e Tyviareme Mereshit desde o princípio de Is 4610 A cláusula seguinte não pode ser tratada como subordinada nem ser traduzida como no princípio quando Deus criou a terra era etc ou no princípio quando Deus criou quando a terra era então um caos etc Deus disse haja luz Ewald e Bunsen A primeira tradução é oposta à gramática da linguagem a segunda é um simples propósito de fugir da creatio ex nihilo que é tão 263 Ver quanto ao caráter último das verdadeiras questões humanas e sua correlacionalidade em TILLICH Paul Systematic Theology vol Two Existence and the Christ The University of Chicago Press 1957 pp 13 ss 3 Independence and Interdependence of Existential Questions and Theological Answers e passim 264 C F KEIL e F DELITZSCH op cit p 37 108 repulsiva ao pensamento moderno265 Será esse caráter histórico que toma a narrativa de Gênesis que pontuará justamente uma diferença fundamental entre a tradição veterotestamentária e outras tradições antigas que pretendemos aqui ressaltar Sobre isso Shreiner diz Se considerarmos a evolução da sagrada Escritura desde o seu começo aparece logo em primeiro plano a tradição oral Somente o homem moderno pode vêla com ceticismo porque sabe que não pode mais confiar somente na sua memória Pensese que na Índia os hinos do Rigveda foram transmitidos durante dois mil anos sem erro E mais à frente do mesmo autor O Antigo Testamento não caiu do céu como se narra dos chamados livros sagrados de outras culturas Ele se formou mediante longo e complicado processo que a ciência pode desemaranhar ao menos em parte Este processo nos mostra a formação de uma fé em Deus que não é uma posse imperturbável mas que precisa sempre ser defendida de dificuldades internas e externas por outro lado justamente com essa espécie de luta ela se preserva e se consolida É um sinal de verdadeira vitalidade266 É algo interessante que o fato dos dados arqueológicos encontrados consubstanciarem a história da Bíblia para a historiografia267 em certo sentido também dão força a sua história Quer dizer como não se tratando simplesmente como gostaria que fosse a sensibilidade iluminista e o racionalismo de pura fantasia e invencionice de sacerdotes Pois como fruto da experiência coletiva dos povos em seus primeiros ensaios de comunicação é justamente neste desabrochar das perguntas últimas que essa história levanta as quais continuam sendo últimas para nós também seres humanos do século XXI que nos interessa aqui nos colocarmos distantes tanto do espírito de apologética como do de indiferença altaneira do racionalismo ou do irracionalismo268 Isso para vermos nos primórdios mesmos da civilização humana a marca indelével deixada nas brumas de eras remotíssimas deste sentimento caracteristicamente humano que chega fixado nos relatos mitológicos a um nível de sua maturidade e que representa a busca de autoafirmação em um nível real de consciência de sua situação como pessoa em seu movimento de 265 Op cit p 46 266 SHREINER J Palavra e mensagem do Antigo testamento Teológica Paulus São Paulo 2ª edição 2004 pp 38 ss 267 Para mais informações sobre os achados arqueológicos destes tempos tão antigos que tanto alegram os apologetas quanto confirmam o ceticismo dos céticos ver CORDERO op cit Prólogo p XV 268 Com relação à questão da apologética e da indiferença creio já ter ficado claro que porque as desconsideramos no entanto vale aqui o que já dissemos em relação ao testemunho não se refuta um testemunho tomase uma decisão vital diante dele ou não as decisões que estão na base tanto da indiferença quanto da apologética não são as do personalismo de Emmanuel Mounier do qual tratamos aqui 109 individuação num ambiente em relação ao qual começa a se sentir e refletir dramaticamente e ao mesmo tempo pertencente e estranha269 Justamente no período que Karl Jaspers chama de axial270 ou seja a partir do séc VIII aC quando surgem as cosmogonias e a mitologia é que as conexões com a história da mesopotâmia são mais abundantes já que na Bíblia se pormenorizam as incidências das invasões dos grandes reis a partir de Teglatfalasar III até Assurbanipal e que se confirmam pelos anais reais cuneiformes da época271 Cotejando em distribuição paralela os acontecimentos bíblicos e os avatares da história do Oriente Próximo segundo os textos cuneiformes no primeiro milênio aC é de acordo com Cordero fácil encontrarmos as coincidências entre ambas as séries de textos e deduzirmos fundamentação histórica272 dos fatos narrados na Bíblia no sentido que já fizemos notar antes Ou seja não se trata273 de pura invencionice de sacerdotes oportunistas Isto em relação à historiografia No campo da literatura também a comparação dos livros didáticos da Bíblia com os textos sapienciais egípcios e mesopotâmicos permitenos segundo Cordero ver hoje o elemento de originalidade dos primeiros não obstante admitindose certa dependência em determinados textos em relação à literatura extra bíblica274 Desse modo já no século XIX da nossa era ao se descobrir na Biblioteca de Arsubanipal o Poema da criação e o relato do dilúvio babilônico da epopéia de Gilgamesh podese deduzir ainda segundo Cordero ao narrarmos os acontecimentos do Paraíso e das origens da cultura antediluviana que os autores bíblicos trabalhavam sobre lendas mesopotâmicas já existentes Igualmente no campo da literatura sapiencial podese hoje estabelecer estudos comparativos entre determinados textos bíblicos e outros egípcios como o Hino a AtonRa e o Salmo 104 a Sabedoria de Amenemopet e o livro de Provérbios e outros de procedência mesopotâmica como o Poema do justo sofredor e o Livro de Jó ou Sabedoria de Ahiqar E mesmo o gênero profético tão peculiar à Bíblia 269 Não é demais lembrar aqui a atualidade deste problema 270 JASPERS Karl Origen y meta de la historia Revista de Occident Madrid 1950 I El TiempoEje pp 7 ss 271 CORDERO loc cit p XVII 272 Ibidem Cordero diz Antes desta confrontação com os textos orientais se afirmava alegremente que a Bíblia era formada por uma centena de lendas sem consistência histórica alguma 273 Para a infelicidade do racionalismo estreito 274 CORDERO loc cit para todo este parágrafo Os antigos eram muito menos afeitos à originalidade como a concebida pelos românticos 110 pode ter segundo Cordero275 antecedentes protoaramaicos e cananeos se bem que em estado embrionário Por um lado este elemento de apropriação do existente tão comum entre as culturas antigas e poderíamos dizer ao humano deram ensejo no século XIX a teses276 que viam nos relatos bíblicos um mero eco de lendas mesopotâmicas Por outro lado esta apropriação que sempre foi um problema só para os cultivadores dos seres de exceção para o gênio do romantismo que concebe a originalidade sempre como verdadeira criação humana ex nihilo e que também sempre serviu de base para o ceticismo racionalista tendo sido avaliada pelo estudo sereno dos textos orientais que chegou a sua maturidade fez com que a obsessão comparatista ficasse confinada a seus frágeis limites e assim os especialistas do campo puderam chegar a pontos de substancial convergência quanto à interpretação da Bíblia à luz dos textos orientais III1 Os Relatos da Criação Sumériomesopotâmicos comparados com o relato Bíblico da Criação do Livro do Gênesis III1a Introdução O primeiro livro de Moisés que tem a superinscrição TyviareBe Bereshit no princípio no original Genesij Kosmou no Códice Alexandrino da LXX277 Septuaginta e é chamado Liber creationis pelos rabinos tem recebido o nome de Gênesis por seu inteiro conteúdo278 O livro de Gênesis da Bíblia composto de acordo com o método histórico crítico279 de narrativas cujo contexto de criação datam de períodos diversos apresenta 275 Op et loc cit 276 Tais como a de A Jeremias Der Bibel im Lichte des Alten Orients citada por CORDERO loc cit 277 Abreviatura para Versão dos Setenta ou Septuaginta Esta é a mais antiga tradução grega do Antigo Testamento diretamente do Hebraico que se deu entre 250 e 130 aC no Egito Este título está ligado à lenda segundo a qual ela foi elaborada por 72 tradutores seis de cada uma das doze tribos de Israel enviados para Alexandria por Eleazar o principal sacerdote de Jerusalém a pedido de Ptolomeu II Philadelphus 285247 aC para sua célebre biblioteca 278 DELITZSCH op cit p 33 279 Deixamos claro que como todo método humano o método histórico crítico não obstante as grandes contribuições para o desenvolvimento dos estudos bíblicos não é infalível Mas fora os seus exageros e preconceitos racionalistas que caracterizaram a atitude geral do velho liberalismo teológico do século XVIII XIX em meio ao qual este método surgiu apresentanos provas textuais e históricas incontestáveis quanto ao caráter para ser anacrônico experiencial coletivo da produção dos textos Para uma visão geral e breve dos 111 duas versões da criação A primeira todavia a mais recente historicamente denominada Sacerdotal P se encontra a partir de Gênesis cap 1 e segue até o cap 24a a segunda a mais antiga se encontra a partir do cap 24b ao versículo 25 O primeiro relato da criação reflete já uma teologia muito elaborada devida às escolas sacerdotais posteriores ao exílio babilônico séc VIIVI aC Neste todas as coisas emergem majestosamente a partir da massa aquosa primitiva pelo impulso do espírito de Elohim v 2 que pairava sobre a face das águas abismais para plasmar os desígnios ordenadores da inteligência divina que faz todas as coisas em número peso e medida280 quer dizer de uma maneira que reflete uma preocupação de apresentação organizada da descrição dos níveis dos reinos em suas variadas espécies e das qualidades específicas das criaturas Ainda neste no qual nos deparamos com a ação criadora divina não de maneira simplesmente antropomórfica mas em uma similitude com a intuição da pessoa criadora que na evolução criadora como apresenta Henry Bergson281 vê o meio que lhe faz resistência como oportunidade instigadora para sua ação criadora como nota Cordero a criação de todos os seres não emana da divindade mas são expressão de sua vontade manifestada na palavra dixit et facta sunt282 O segundo relato da criação Gênesis 24b25 denominado javista J que não obstante ser colocado no texto depois do relato Sacerdotal mais elaborado e portanto segundo o método histórico crítico mais recente como já notamos é o mais antigo cronologicamente é fruto de uma elaboração teológica de séculos a partir de tradições mais antropomórficas De fato a versão que nos dá o javista da origem do homem supõe um princípio do Cosmos mais em consonância com as tradições folclóricas do mundo mesopotâmico ambiente283 Não obstante tudo isso como Delitzsch diz a Torah284 está aspectos positivos e negativos do método histórico crítico e seu atual uso pelos estudiosos da bíblia CÉSAR Ely Éser Barreto Método Histórico crítico hoje in Método históricocrítico Martin Volkmann org CEDI São Paulo 1992 pp 77 ss e passim 280 HEINISCH P Das Buch Genesis Bonn 1930 p 96 281 BERGSON Henry A evolução criadora Editora Delta Rio de janeiro 1964 p 42 A verdade é que estamos mudando sem cessar e que o próprio estado é já mudança e passim 282 CORDERO op cit p 3 283 CORDERO op et loc cit 284 Ou seja o conjunto dos cinco primeiros livros do Antigo Testamento Gênesis Êxodo Levítico Números e Deuteronômio 112 com certeza pressuposta em toda a história e literatura pósmosaica como a raiz está para a árvore285 Falamos acima do elemento de apropriação do existente tão comum entre as culturas antigas portanto como nota muito bem Cordero286 Não há nada de inverossímil em que um gênio religioso superior hebraico tenha buscado uma síntese religiosa em consonância com a tradição monoteísta de seu povo porém expressa algumas vezes com módulos literários e religiosos arcaicos que são ecos de concepções mítico religiosas dos povos mesopotâmicos sumérios acádicos e assírios E ainda nos onze primeiros capítulos de Gênesis encontramos muitas alusões a antigas lendas mais ou menos míticas que têm sido desenterradas nos sítios arqueológicos do último século Portanto segundo Cordero é fácil notarmos os panos de fundo míticolendários de procedência mesopotâmica nos relatos bíblicos míticos da criação do paraíso do dilúvio Gênesis 611 ss e da confusão das línguas Gênesis 11 Falamos antes da tradição monoteísta A literatura de uma nação como nota Delitzsch287 não é uma coisa aparente que deve ser posta e usada como uma vestimenta ou adotada como algum costume particular ou hábito até algo mais conveniente ou aceitável induzir a uma mudança e também há uma considerável diferença entre politeísmo e mitologia pagã por um lado e monoteísmo e religião revelada por outro que nos proíbe determinar a origem dos escritos religiosos dos israelitas pelo padrão do Veda e Purana indianos ou de diferentes porções do Zendavesta Assim ressaltamos novamente esse caráter histórico que é para o Antigo Testamento sua fraqueza e sua força Não é necessário lembrar aqui o quanto os estudos históricos ligados à crítica bíblica contribuíram para o desenvolvimento de métodos de estudo de outros textos antigos religiosos e não religiosos inclusive filosóficos o que já seria suficiente para percebermos o caráter profícuo destes estudos cujo alcance cultural extrapola o âmbito religioso288 285 DELITZSCH op cit p19 286 CORDERO op cit p 4 287 DELITZSCH op cit p 18 288 Para uma apreciação que ao mesmo tempo serve como uma introdução à interpretação do Dogma cristão e que para tanto apresenta o desenvolvimento da hermenêutica que se deu no século XIX na Alemanha e que influenciou decisivamente os estudos históricobíblicos ver do teólogo protestante PANNENBERG Wolfhart Teologia Sistematica Universidad Pontifícia Comillas Madrid 1992 vol 1 notadamente Capítulo I La verdad de la doctrina cristiana como tema de la teologia sistematica pp 3 ss 113 Assim o que consideramos que deve ser pontuado nesta parte do capítulo e que se inscreve dentro da preocupação geral desse trabalho de estudo sobre a obra de Emmanuel Mounier no desenvolvimento do tema geral que move o mesmo estudo e que nos interessa nesta parte enfatizar é esclarecer o sentido da busca de um princípio de unidade na diversidade em que ao longo do processo de individuação a pessoa criadora vai tomando de modo dramático em relação ao ambiente circundante enquanto consciência de pertença e diferença específica Consciência sempre e cada vez mais ampla de ser ela mesma a fonte desse princípio289 Seguimos aqui a indicação de Mounier Pelo fato da pessoa não ser um objeto que se separa e que se olha mas um centro de reorganização do universo objetivo nos é necessário fazer voltar a análise em torno do universo edificado por ela a fim de esclarecer as estruturas sobre diversos planos dos quais jamais se deveria esquecer de que eles não são senão incidências diferentes sobre uma mesma realidade290 Aqui veremos quanto ao relato de Gênesis dentro realmente de uma preocupação de elucidação de matiz mais teológica do problema que estamos levantando o quanto o desenvolvimento do princípio de unidade da divindade será o motor pelo qual a tradição judaica até os últimos profetas procurará delinear suas preocupações quanto à relação da vontade do seu Deus único com as instituições que comandarão a história desse povo como nação e que justamente na unidade do seu Deus buscará a força de unidade e de convicção de sua própria vocação à qual será sempre chamada a retomar na história de acertos e desacertos que caracterizará desde então a busca do ajuste ético de suas ações ao projeto fundante e universalizante de Iahvé inscrito como parte essencial desde os primórdios da história do povo de Israel O primeiro relato da criação de Gênesis põe as bases religiosas de um monoteísmo estrito Reflete portanto um estágio já muito elaborado segundo o método histórico críticio quando as antigas tradições religiosas antropomórficas já haviam se decantado e tinham sido aperfeiçoadas nas escolas levíticosacerdotais posteriores ao exílio do século 289 Ao que retornaremos e retomaremos também como tema na próxima seção quando tratarmos da cultura grecolatina A nosso ver e à luz do personalismo esse nível de consciência é o que começa e dá início à cosmologia grega e vai delinear toda dialética do gênio grego em sua busca de especificação e por conseguinte de consciência autônoma Ali essa busca vai ser delineada como começando primeiro pela compreensão da unidade do cosmos até depois tornarse autocompreensão do homem inserido nestes cosmos mas já com Sócrates Ali também este fato caracterizará o gênio intelectual grego o qual nós ocidentais herdamos 290 Le personalisme Oeuvres III p 438 114 VII aC depois de uma ampla pregação moralizante dos profetas Nele é possível constatarmos certo material mitológico de procedência mesopotâmica A começar pelo estado amorfo caos da criação este já é parte da criação é efeito do ato criador primordial que tinha por resultado a formação dos céus e da terra o mundo visível em geral Autores que apóiam esta interpretação são Delitzsch Welhausen Gunkel Procksch e G von Rad291 Porém é nesta concepção teológica monoteísta na qual se destaca a transcendência do Deus criador em relação à criação que se nota os elementos contrapostos às versões que as cosmogonias do Antigo Oriente nos dão as quais são antes de tudo teogonias quer dizer tratam de explicar primeiro a origem dos deuses a partir de uma massa aquosa indiferenciada e abismal para logo relatar a origem dos seres em geral e finalmente do ser humano292 Estas outras narrativas da criação são ou hylozoistical deduzindo a origem da vida e dos seres vivos de alguma matéria primordial ou panteística considerando o mundo todo como emanação de uma substância divina comum ou num sentido específico da noção ahistórica de mito mitológica delineando tanto os deuses como os seres humanos de um caos ou ovocósmico Elas não concebem a noção de criação e muito menos o conhecimento de um ElShaddai quer dizer Deus onipotente como o criador de todas as coisas tal como a que oferece o mito da Criação do Gênesis da Bíblia293 291 CORDERO op cit p 6 s 292 Ibidem 293 Cf Delitzsch op cit p 39 De acordo com Berosus e Syncellus o mito caldeo representa o Todo como consistindo de trevas e água cheio de criaturas monstruosas e governado por uma mulher Markaya ou Omorwka Homóroka Oceano Bel dividiu as trevas e cortou a mulher em duas partes e das gotas de sangue formou os homens De acordo com o mito fenício de Sanchuniathon no princípio do Todo havia um movimento de ar tenebroso e um tenebroso caos aquoso barrento Pela união do espírito com o Todo Mwt Mót isto é delgado foi formado de quem toda semente de criação e o universo foram desenvolvidos e os céus foram feitos na forma de um ovo do qual o sol e a lua as estrelas e constelações surgiram Pelo aquecimento da terra e do mar surgiram os ventos as nuvens e a chuva relâmpago e trovão o estrondo do qual despertou os seres sensitivos até que as criaturas de ambos os sexos se moveram nas águas e sobre a terra Em uma outra passagem Sanchuniaton representa Kolpia provavelmente tyPi lAq qol pita o sussurrar sopro do vento e sua esposa Báau bohu como produzindo Aivwn e prwtogonoj Aión e protógonos dois homens mortais de quem surgiu Gemnoj Genea Gemnos Geneá os habitantes da Fenícia É bem conhecido da Teogonia de Hesíodo como o mito grego representa os deuses como vindo à existência ao mesmo tempo em que o mundo As numerosas invenções dos indianos novamente todas concordam nisso que eles pintam a origem do mundo como uma emanação do absoluto através do pensamento de Brahma ou por meio da contemplação de um ser primevo chamado Tad isso O budismo também não conhece nenhum Deus como criador do mundo e não ensina nenhuma criação mas simplesmente descreve a origem do mundo e os seres que o habitam como uma conseqüência necessária dos primeiros atos realizados por aqueles próprios seres 115 Com efeito como nos apresenta Cordero294 no Poema da criação ou Enuma elish sumério falase dos princípios eternos coexistentes às águas doces dos rios apsû e as águas salgadas marinhas tiamât Da união de ambas surge a tríade sumérica Anu deus do céu Enlil deus da terra e Ea deus do mar Logo surge uma luta entre os deuses descendentes destes e Tiamât abismo primordial de águas salgadas o tehôm de Gênesis 12 a mãe da totalidade a criadora de todas as coisas295 porque os deuses jovens querem viver em liberdade Depois de uma confrontação de forças o representante dos deuses da nova ola Marduk deus da babilônia vence o exército de Tiamat e depois de matar esta divindade primordial mãe da totalidade a parte em duas metades como se fosse um pescado de uma parte faz o céu e de outra a terra A isso completa Cordero a diferença entre ambos os relatos radica no enfoque teológico do conjunto o Deus criador Elohim não emerge dessa massa aquosa mas a domina e a modela conforme sua vontade já que os autores bíblicos jamais delineiam o problema da origem do Deus único e transcendente que está antes e fora de tudo o que é criado296 Um outro elemento a ser notado é que em todo relato de Gênesis há um otimismo teológico acerca de todos os seres criados a serviço do ser humano e este a serviço de IhavéElohim como seu representante Esta perspectiva está muito longe de toda concepção dualista radical que supõe certas coisas criadas essencialmente más Pela aplicação do termo bom a tudo que IahvéElohim fez e a repetição desta palavra com a ênfase muito no encerramento de toda criação a existência de qualquer mal na criação de IahvéElohim é absolutamente negada e a hipótese de que a obra dos seis dias simplesmente domina e agrilhoa um mal um princípio maligno que já havia forçado sua entrada é inteiramente contestada pelo autor bíblico297 294 CORDERO op cit p 6 s 295 Poema de la creación II 19 in J B PRITCHARD ANET Princeton 1950 p 63 Nota citada por CORDERO op et loc cit 296 Ibidem p 8 297 Ver DELITZSCH op cit p 67 Antecipamos aqui algo sobre o qual ainda falaremos Em relação a esta clara contraposição por parte do autor bíblico ao maniqueísmo ambiente seria interessante notar que na base da idéia de superior e inferior que na metafísica da ontologia da mitologia antiga se expressa pelo que nós modernos denominamos de metáfora do acima e abaixo o que era a sua visão de como se constituía o mundo terreno abaixo e o celestial acima encontrase atrelada a postura religiosa sobre a qual se constrói a noção de hierarquia idéia de matiz claramente religioso e que prevalecente ainda hoje é a extrapolação para o âmbito do mundo da vida o mundo das relações concretas de uma metáfora combatida já neste antigo texto de Gênesis mas que não obstante se tornou a coluna vertebral na forma de um câncer inevitável da estrutura de poder que tem se estabelecido no Ocidente aureolada de cientificidade em todos 116 Tudo é bom para o autor bíblico porque tudo é expressão da vontade divina a qual por sua vez é reflexo da inteligência ordenadora de Deus que atua por sua palavra298 Por outro lado como nota Delitzsch299 conseqüentemente se no começo Deus criou os céus e a terra não há nada pertencente à composição do universo nem na forma nem na matéria que tenha uma existência fora de Deus antes deste divino ato no princípio Como já notamos o caráter absoluto do ato criador ex nihilo de acordo com a concepção do autor de Gênesis e procurando seguir sua compreensão nos impede de levantar um problema de ordem metafísica ou quanto à eternidade da matéria ou da emanação da mesma pelo Uno etc Isto ficará mais claro quando esclarecermos mais a concepção histórica que está por trás e que é a principal carcaterística da narrativa de Gênesis Como nota Delitzsch300 em relação à criação do céu e da terra compreendida como história do céu e da terra Gênesis 24 426 De acordo com este uso da palavra nós não podemos entender por tholedoth301 dos céus e a terra a narrativa da origem do universo visto que de acordo com a visão bíblica as diferentes coisas que perfazem os céus e a terra não podem ser consideradas nem como gerações ou produtos das evoluções cosmogônicas ou geogônicas nem ser classificadas junto com a posteridade dos céus e da terra Todas as criaturas nos céus e sobre a terra foram criadas por IahvéElohim e chamadas à existência por sua palavra não obstante o fato de que Ele criou algumas delas como vindas da terra Em suma tholetdoth é a noção hebraica que demitiza a criação transformandoa no que poderia ser uma cosmogonia ou teogonia em história A cosmogonia egípcia segundo Cordero supõe também a preexistência de uma massa aquosa eterna a água tenebrosa e abismal chamada Nou na qual existem os germes de todas as coisas Dela saiu o ovo cósmico que deu origem primeiro ao deus solar Ra os ramos de pesquisa atuais denominados laicos Por exemplo no da chamada ciência política cujo problema fundamental é resolver no âmbito da organização do poder o problema que se mantendo como tal depois da vitória da burguesia no século XVI ela coloca sempre como o mais emergente o problema quanto a quem manda e quem obedece Isso num mundo em que as relações humanas hierarquizadas já não são mais questionadas nesta sua fundamentação claramente míticoreligiosa Sobre isso ver abaixo Pessoa e existência 298 CORDERO op cit p 10 299 DELITZSCH op citp 47 300 DELITZSCH op cit p 70 s 301 Na Bíblia de Jerusalém Gênesis 24a Em hebraico tholedoth propriamente descendência depois história de um ancestral e de sua linhagem cf 69 2519 372 Pelo emprego dessa palavra aqui a criação é demitizada tratase mesmo do começo da história e não é mais como na Suméria e no Egito uma seqüência de gerações divinas 117 segundo a escola teológica de Hielópolis Em seguida esta divindade primitiva proveniente da mesma forma da massa aquosa indiferenciada criou outras divindades subsidiárias as quais unidas foram criando o universo em toda sua variedade e distinção de seres Segundo a escola de Hermópolis foi Toth a primeira divindade que por sua vez criou logo outras com sua palavra não obstante nestes relatos teológicos se vê que estas divindades subsidiárias provêm da divindade primordial por emanação panteísta da mesma forma que todas as demais coisas criadas302 Como podemos ver não aparece pois nesses relatos egípcios a idéia de criação tal como se reflete nos relatos bíblicos onde as coisas emergem pelo imperativo da vontade de Elohim mantendo sua transcendência e preexistência a tudo que é criado A esse afastamento de IahvéElohim da criação afastamento enquanto distinção e ao sentido de unidade da Divindade que o monoteísmo judaico de fundo procura enfatizar vemos ligarse também um outro sentido da irredutibilidade do ser de Deus à matéria criada como expressões que estarão na base mesma da constituição da noção de pessoa que a reflexão cristã posterior elaborará Vemos aqui os primeiros frutos da inspiração míticoreligiosa à noção de pessoa que em seu movimento de individuação em sua consciência densamente dramática de pertença à natureza e ao mesmo tempo de diferença essencial dela ou melhor possuidora de algo em si mesma que não se deixa reduzir à natura imita a própria Divindade em seu ser e em sua atividade Esta imitação da Divindade comporá a vocação da pessoa na história de Israel como expressão de seu caráter cocriador a Deus diante de uma natureza demitizada ou melhor uma natureza existindo sob o que denominaremos modo de ser do artefato A escola teológica de Menfis segundo Cordero destaca como deus primordial antes de tudo a Ptah que sendo o primeiro de tudo como tal concebe em seu coração os elementos que vai criar e logo os plasma com sua palavra Assim Ptah criou primeiro com a palavra a Atum totalidade e depois transmitiu em cadeia um poder criador aos outros deuses Por isso Horus e Thoth segundo Cordero costumam simbolizar respectivamente o pensamento e a palavra Ainda segundo o nosso autor através das descrições antropomórficas do texto menfítico da criação vemos a expressão da divindade superior e primordial antes gestandose por emanação ou enéadas ao estilo 302 MASPERO G Histoire ancienne des peuples de lOrient classique 1895 p 88 LAGRANGE M J Études sur les religions sémitiques Paris 1905 p 407 Autores citados por CORDERO Ibidem p 10 118 neoplatônico e encarnandose primeiro nas divindades subsidiárias e logo em seguida em todas as coisas como expressão de seu coração sua mente e de sua palavra303 Não se salva a distinção radical entre o criador e a criatura como vemos nos textos bíblicos Já na cosmogonia fenícia segundo a descrição de Filo de Byblos séc I dC quem por sua vez faz eco das elucubrações de um certo Sanjuniatião sacerdote fenício do séc IV aC de acordo com Cordero se supõe também a preexistência de uma massa aquosa primordial no princípio existiram o caos e pneuma tenebroso Da união de ambos surgiu Mot que é como uma massa aquosa argilosa na qual estavam os genes de todas as coisas Dela surgiu o ovo cósmico como nas cosmogonias egípcias e logo emergiram o sol a lua e as estrelas Depois surgiram todos os seres vivos O primeiro par humano Aiwn e Protogoj Aión e Protógos procede por sua vez segundo Cordero de Kolpia Kolpía e Báau que tem sido relacionado com bohû do relato de Gêneses como se relaciona Aiwn Aión com Eva que aparece tomando um fruto da árvore304 Nesta última confusa e eclética cosmogonia parece que se misturam conceitos da cosmogonia egípcia e a bíblica Isto não tem nada de particular levandose em consideração a redação tardia desta cosmogonia fenícia quando a versão hebraica do relato bíblico já se encontrava difundida na região305 e o que já dissemos a apropriação interculturalreligiosa muito comum destas culturas remotíssimas III1b A Formação do homem Encontramos nos relatos bíblicos em cada uma das narrativas da Criação duas versões também muito diferentes sobre a formação do homem Com efeito no capítulo 1 de Gênesis atribuído à tradição sacerdotal como já dissemos o homem aparece como o remate da criação e como a coroação da grande pirâmide de toda obra criadora que foi se manifestando gradualmente partindo do mais elementar até o mais complexo e perfeito com base em certas categorias lógicas convencionas Porém o momento da aparição do 303 CORDERO op cit p 10 s 304 Ibidem p 12 305 Cf EUSÉBIO Praep evang I 10 PG 2175 LAGRANGE M Études sur les religions sémitiques Paris 1905 p 405 Nota citada por CORDERO op cit p 12 119 homem no mesmo dia em que os quadrúpedes é solene e o autor bíblico para narrar a diferença em relação a tudo que fora criado até então narra um colóquio íntimo divino já que Elohim ia criar a criatura cume da criação306 Diz o texto bíblico Façamos o ser humano a nossa imagem conforme a nossa semelhança tenha ele domínio sobre os peixes do mar sobre as aves dos céus sobre os animais domésticos sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra Criou Deus pois o ser humano a sua imagem à imagem de Deus o criou macho e fêmea os criou Gênesis 12627 grifo nosso A concepção é enobrecedora já que o homem e a mulher emergem instantaneamente do nada como fruto de uma intervenção criadora do Deus único transcendente e preexistente ao próprio caos primitivo como já notamos Já podemos notar também o mesmo sentido de distinção do Criador do criado ser aplicado em seu nível mesmo de criatura ao ser humano que ao mesmo tempo em que assegura uma dimensão última de irredutibilidade de redução do ser humano ao natural como já notamos aponta como veremos mais à frente para a comunidade de destino de todos os seres humanos enquanto chamados à cocriação de Deus Em suma tratase de um modo de dizer a especificidade do ser humano em sua diferença essencial em relação a tudo que fora anteriormente criado como emergido das águas e da terra como fruto de uma eclosão natural promovida por uma ordem divina v 2425 Segundo Delitzsch O ser humano é feito à imagem e semelhança do próprio Deus concepção grandiosa única na história do pensamento humano grifo nosso O que é um modo de dizer que no ser humano há algo superior que se assemelha ao criador pelo que se distingue de todos os seres criados anteriormente e pelo que se torna capaz de dominálos ao seu serviço Justamente a coroa real do ser humano se caracteriza por essa supremacia sobre todo o criado307 No Sexto dia este ato de criação também como todos os precedentes é apresentado com a divina palavra bom por ser de acordo com a vontade de Iahvé Mas a benção pronunciada é omitida o autor apressa a narrativa da criação do ser humano em que a obra da criação culminou A criação do ser humano não acontece por uma palavra dirigida por Deus à terra mas como o resultado como já notamos de uma divina decisão Façamos o homem a 306 CORDERO op cit p 12 307 Ibidem p 13 120 nossa imagem e semelhança é o que proclama a preeminência do ser humano acima de todas as criaturas da terra308 No cap 2 devido à tradição javista como já notamos encontramos uma versão da origem do homem mais primitiva e antropomórfica já que IahvéElohim é apresentado como um oleiro modelando de sua argila o primeiro homem Então formou Iahvé Elohim o ser humano do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida e o ser humano passou a ser alma vivente Gênesis 27 A concepção do Deus oleiro é segundo Cordero comum a todos os povos da Antiguidade já que é da experiência universal que o homem depois de morto se torna pó e assim segundo uma avaliação popular o homem é feito de pó309 Nesse sentido o deus egípcio Khnum de acordo com Cordero é apresentado como um oleiro formando ao seu redor os corpos dos seres humanos ante cujas narinas se coloca o hieróglifo expressivo da vida como sinal de animação Na literatura clássica é também comum esta concepção do homem formado da argila310 o mesmo que em numerosos povos da Antiguidade e dos primitivos atuais311 Esta concepção antropomórfica é plasticamente expressa do modo seguinte no relato do Poema da criação babilônico Quando Markud ouviu as palavras dos deuses seu coração o excitou a modelar obras artísticas e abrindo a boca se dirigiu a Ea nestes termos para comunicarlhe o plano que havia concebido em seu coração Vou amassar o sangue e farei com que existam os ossos vou suscitar um selvagem cujo nome será homem certamente vou criar o homem selvagem para que se encarregue do serviço dos deuses de modo que estes sejam aplacados312 Depois Marduk decide que seja Kingu o chefe dos Tiamat que lutarão contra ele a vítima que porta o sangue para a modelação do homem Ataramno e o mantiveram preso diante de Ea colocaram sobre ele o peso de sua culpa e abriram os vasos de seu sangue assim com seu sangue fabricaram a humanidade313 Segundo Cordero em diversos textos sumérios dãose outras versões coincidentes do mesmo fato a formação do homem com o sangue de uma divindade o que é um modo 308 DELITZSCH op cit p 61 309 CORDERO op cit p 13 310 PAUSANIAS X 34 OVÍDIO Metamorf I 82 JUVENAL Sátiras XIV 35 Citado por CORDERO ibidem 311 Cf FRAZER Le folklore dans lAncient Testament Paris 1924 p 8 Citado por CORDERO ibidem 312 Poema da criação VI 18 ANET 68 Labat op cit p 143 Citado por CORDERO 13 s 313 Ibidem VI 3033 ANET 68 Citado por CORDERO ibidem p 12 s 121 de destacar sua categoria excepcional de ser humano que segundo a Bíblia é feito à imagem e semelhança do Deus criador Aqui com um crasso antropomorfismo chegase a expressar algo parecido Assim em um texto sumério se diz Matemos dois deuses Lamga artesãos formando com seu sangue a humanidade314 Em outro texto sumério falase da necessidade de se misturar o sangue com a argila315 Esse elemento plástico relacionado ao ato da criação do ser humano já é uma intuição míticoreligiosa do seu caráter de artefato À própria constituição do ser humano está implicado um caráter de artefato Todavia em todos estes textos querse destacar também que o homem foi formado de algo muito frágil como a argila que é a matéria prima da olaria antiga Isso liga esta expressão mítica ao caráter fugaz da vida do pó vieste para o pó voltarás Por outro lado como também podemos ver não há matéria mais adaptável dócil flexível nesse período primitivo da fabricação humana pelo que a metáfora se presta muito bem também para expressar a vontade ilimitada dos deuses o que já anuncia a necessidade do culto organizado para fazer cumprir ordenadamente essa vontade ilimitada deles Em um texto sumérioacádico segundo Cordero se diz que Marduk depois de criar Eridul sem templo amontoou os juncos sobre o mar e logo criou o pó formando um bloco com ele dando assim origem à humanidade316 Em outro texto similar dizse que o deus Ea arrancou um pedaço de argila do abismo e depois formou todas as coisas317 Porém ao mesmo tempo se insiste em que o homem foi formado com um ingrediente superior o sangue dos próprios deuses o que justifica a dignidade pessoal do homem Assim pois comparando o texto bíblico de Gênesis 27 atribuído à tradição javista mais antiga como vimos segundo o método histórico crítico com os textos das cosmogonias mesopotâmicas podemos dizer que o sangue deste é substituído pelo sopro rûah que IahvéElohim da Bíblia infunde no corpo formado da argila portanto no sentido de uma expressão mais complexa da natureza do ser humano Quer dizer mesmo no âmbito de uma narrativa de cunho ainda bem antropomórfico o javista vê dois princípios na constituição do ser humano um material e adaptável a argila e outro superior divino o sopro com a dignidade que este carrega deduzida da noção de 314 Ver Errandonea Éden y paraíso Madrid 1966 p 7 Citado por CORDERO ibidem p 14 315 Ibidem p 24 Citado por CORDERO ibidem 316 Cf Cuneiform Textes from Babylonian Tablet in the Britsh Museum XIII 3538 ERRANDONEA J op cit p 8 Citado por CORDERO p 15 317 Cf Weissbach Babylonische Miszellen p 12 ANET pp 3393412 Citado por CORDERO p 15 122 transcendência absoluta de IahvéElohim Criador a todo o criado Por outro lado enquanto todos os povos primitivos têm se considerado em relação de sangue com as divindades totêmicas no entanto este estágio religioso aparece já totalmente superado nos relatos bíblicos ainda que nos mais arcaicos como vemos em relação ao relato javista o antropomorfismo esteja bem presente Porém sob estes símiles mais ou menos crassos e antropomórficos permanece a grande realidade de que o homem é superior aos animais porque é feito à imagem e semelhança do próprio Deus Por outro lado para os hebreus a vida se manifestava sobretudo no sangue por isso não era permitido tirála pois ela pertencia à própria divindade que é senhora da vida318 Contudo o autor bíblico não diz que o homem é formado do sangue de Deus o que seria blasfemo Por isso a tradição hebraica ambiente à mesopotâmica em vias de constituição substitui o sangue pelo sopro rûah ou hálito vital infundido diretamente por IhavéElohim Isso não comprometia sua transcendência Em troca a tradição folclórica sobre a origem do corpo humano a partir do pó é mantida pela tradição hebraica Esta idéia conforme Cordero acima que temos visto no Poema da criação na realidade já aparece nos textos sumérios mais primitivos Assim o deus Enki se dirige a sua mãe Nammu nos seguintes termos Oh Minha mãe A criatura cujo nome tens pronunciado o ser humano já existe forma sobre ela a dos deuses Mistura a substância da argila que se encontra encima do abismo Os bons e nobres modeladores condensam a argila Tu vais trazer os membros à existência Ninmah atuará sobre ti os deuses te assistirão em tua tarefa de modelar o ser humano319 Por isso no Antigo Testamento morrer é voltar ao pó Se tu Iahvé lhes tirar o espírito rûah eles morrem e voltam ao pó320 pois Deus conhece nossa feitura e não se esquece de que somos pó321 Assim colocase na boca do desafortunado Jó as seguintes palavras Tuas mãos me fabricaram Lembrate de que como argila me fizeste e ao pó me farás voltar322 conforme a sentença divina dada ao primeiro homem Pó eras e ao pó 318 Gênesis 937 319 KRAMER Sumerian Mytholgy p 70 n 71 citado por ERRANDONEA J op cit p 25 Citado por CORDERO op cit p 16 320 Salmos 10429 Eclesiástico 171 Salmos 2216 3010 10314 Jó 171315 321 Salmos 10314 322 Jó 1089 123 voltarás323 É esta trágica realidade que faz surgir em todas as literaturas da Antiguidade o sentimento de angústia vital que como podemos ver não é propriedade nem da psicologia contemporânea e nem do existencialismo tratase da intuição fundamental da condição humana já totalmente esboçada nesse período chamado primitivo E é no poema de Gilgamesh segundo Cordero324 que o herói se apresenta em busca do hálito da vida III1c A formação da mulher No segundo relato bíblico o do javista a mulher aparece como o complemento natural do homem na ordem psicológica e fisiológica O autor bíblico javista se move dentro da perspectiva da verdade patriarcal na qual o varão mantinha a direção e a esposa lhe era subordinada se bem que em uma mesma dignidade pessoal325 Isso no entanto em contraste com a primeira versão da criação de Gênesis 126 onde a mulher aparece juntamente com o varão tirados do nada e no mesmo instante já que se complementam em relação à transmissão da vida No relato de Gênesis 21824 o autor bíblico apresenta primeiro a formação do varão depois da mulher para estabelecer as bases da hierarquia na sociedade doméstica de então Não é bom que o homem esteja só Vou fazer uma ajuda proporcional a ele ou à altura dele Aqui o autor javista procura dar sua explicação sobre os complexos sexuais do eros da libido e do sex appeal fazendo com que encontrem seu desenlace normal no matrimônio já que o homem e a mulher estão destinados a formar uma só carne326 A lenda da formação da mulher da costela de Adão corresponde de certo modo à primeira lenda dos andróginos o macho e fêmea estiveram primeiro unidos corporalmente 323 Gênesis 319 cf também Eclesiástico 171 324 CORDERO ibidem p 15 325 Ver DE VAUX Roland Instituições de Israel no Antigo Testamento Editora Teológica São Paulo 2003 principalmente Segunda Parte Instituições Familiares p 41 a 86 326 Cf Gênesis 224 Na história de Israel seguiuse o sentido de uma monogamia relativa enquanto sendo a monogamia em si um modelo mais afim com as necessidades impostas pelas instituições familiares semíticas e sua ordem de herança etc Nesse sentido os patriarcas de Israel Abraão por exemplo seguiram os costumes de seu ambiente Segundo o Código de Hamurabi por volta de 1700 aC o marido não podia tomar uma segunda esposa a não ser em caso de esterilidade da primeira Cf DE VAUX Roland Instituições de Israel op cit p 46 124 e depois separados tão difundida entre os povos da Antiguidade327 nota Cordero que também entre os aborígines da Polinésia e da Birmânia encontramos lendas similares a do relato bíblico328 se o varão e a mulher buscamse em todos os tempos e em todas as atitudes é que antes estiveram corporalmente unidos como dois siameses329 Contudo o autor bíblico quer destacar que a mulher ao ser formada do homem e não obstante a estrutura patriarcal sobre a qual se move o relato tem uma dignidade humana em tudo igual à do homem e é por isso que ela é mais que o animal imperfectum animal imperfeito ou o mas occasionatum macho que não deu certo de Aristóteles330 A palavra stao adam como nota Delitzsch331 indica que Deus criou o homem e a mulher como dois seres humanos e se contrapõe totalmente à idéia de que o ser humano fora no início andrógino Nota ainda Delitzsch Como a natureza espiritual do ser humano é descrita simplesmente pelo ato de respirar que é discernível pelos sentidos então o nome que Deus lhe dá Gênesis 52 é baseado no lado terreno do seu ser ADAM de hmda adamah terra o elemento terreno como homo de humus ou de cama camai camaqen para guardálo da autoexaltação não da cor vermelha do seu corpo visto que isto não é um caráter distintivo do ser humano mas comum a ele e a muitas outras criaturas O nome ser humano do Alemão Mensch por outro lado do Sânscrito mânuscha manuschja de man pensar manas mens expressa a natureza espiritual interna da nossa natureza332 Não encontramos nada similar nos relatos mesopotâmicos já que a cortesã que se encontra no poema de Gilgamesh a quem o herói envia para seduzir Enkidu o homem selvagem da estepe não é a primeira mulher como tampouco Enkidu é o primeiro homem Aquela segundo Cordero representa simplesmente a atração da vida corrompida da cidade frente à vida animalesca do homem da estepe por quem todavia Gilgamesh sentia predileção e com quem depois tem relações amorosas homossexuais conforme sua mãe havia predito Está para chegar um robusto colega que salva o companheiro ele nunca te 327 Assim aparece em BEROSO no Rig Veda e em ANTÍGONAS Cf CORDERO op cit p 26 Mas também em PLATÃO Banquete 189e s 328 CORDERO op cit p 26 329 Assim os habitantes de Maori Polinésia crêem que a mulher foi feita da costela do primeiro homem O mesmo se diz dos karenos da Birmânia uma divindade formou o homem da terra e fez a mulher tomandoa de uma costela os de Taaroa dizem iwi osso Ewa Cf Frazer op cit p 67 M CORDERO Garcia CT 1951 p 474 Citação de CORDERO op cit p 26 330 CORDERO p 26 331 DELITZSCH op cit p 65 332 DELITZSCH op cit p 80 Cf Gênesis 218 ss 125 abandonará Quando o virdes o abraçarás como a uma esposa333 É o que ainda diz sua mãe Porque o tem feito paralelo a ti ou a tua altura334 Esta é uma frase como podemos ver similar e paralela à que a Bíblia põe na boca de Deus em relação à formação da mulher Vou fazer uma ajuda semelhante a ele Adão335 Porém aqui se alude à atração para com o outro sexo em relação à constituição do patrimônio para a transmissão da vida conforme o padrão familiar semítico antigo Deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá a sua mulher e passarão a ser os dois uma só carne336 Por outro lado no relato mesopotâmico segundo Cordero contamse os amores homossexuais dos heróis conforme o ideal moral da sociedade sedentária e não da estepe quer dizer de uma sociedade decadente É o que Gilgamesh diz a sua mãe O amei como a uma esposa me lancei sobre ele como sobre uma esposa337 Enkidu segundo Cordero ao ser seduzido pela cortesã começa a adquirir uma nova consciência e sente laços de sociabilidade novos já que se sente distanciado dos animais os quais fogem dele Porém essa solidão interior não será preenchida por uma mulher como no caso de Adão mas por um homem Enkidu no entanto segundo Cordero não se encontrará a si mesmo em sua nova amizade com Gilgamesh e por isso ao morrer se revolta furioso contra a cortesã que o havia arrancado da companhia dos animais com os quais se sentia feliz O deus Shamash trata então de acalmálo Segundo Cordero não se trata pois só de vinculação por idéias afins ou por interesses comuns mas por uma atração sexual deformada segundo os padrões da constituição familiar da antiguidade que se conta neste poema no qual se reflete os refinamentos de uma sociedade urbana em decomposição moral338 O importante e interessante a ser notado é que frente a esta correlação direta do texto sumério o texto bíblico é mais propositivo e não faz uma crítica ao homossexualismo mas afirma o casamento heterossexual Por outro lado é o texto mesopotâmico que faz esta crítica pelo ato de homossexualismo como sinal de decadência social da vida civilizada Isso não quer dizer que o homossexualismo fora bem acolhido pela tradição 333 Gilgamesh II ii21 Citado por CORDERO op cit p 26 334 Ibidem VI vi2022 Ibidem 335 Gênesis 218 336 Gênesis 224 337 Gilgamesh II ii3235 I v3647 V 41419 338 CORDERO op cit p 28 126 veterotestamentária339 O que não deixa de marcar na narrativa de Gênesis o aspecto mais propositivo de sua intenção quanto à constituição da família que se inscrevia mesmo nesse momento mítico fundante do primeiro casal já como o start da história da nação de Israel e que nessa narrativa busca constituir as origens de sua vocação como nação Segundo de Vaux a família do semita compõese daqueles elementos unidos ao mesmo tempo pela comunidade de sangue e pela comunidade de habitação Como o termo família em nossas línguas modernas o termo bêt casa é suficientemente elástico para abranger inclusive o povo inteiro a casa de Jacó ou a casa de Israel ou uma fração importante do povo a casa340 de José a casa de Judá341 Com essa simples e limitada comparação entre o relato bíblico e a narrativa mesopotâmica todavia já é possível vermos refletir o enfoque diferente de cada uma no primeiro tratase do primeiro homem que ao não encontrar afinidade nem possibilidade de vida social com os animais sentese só isolado e Deus preocupado com o grande vazio que há no coração do homem lhe dá um complemento o preenche com uma ajuda semelhante a ele ou proporcional a ele quer dizer conforme certas exigências misteriosas e específicas de sua condição Por outro lado no texto sumério Enkidu se sentia à vontade com os animais sem complexo de solidão nem diferença de vida com eles Só quando estes o abandonam é que ele sente a necessidade de buscar sociabilidade em outro ambiente Por outro lado no relato bíblico aparece Adão como um ser sumamente inteligente já que dá nomes a cada um dos animais conforme sua natureza específica342 enquanto que Enkidu como homem selvagem ainda não elevado se encontra em um estado animalesco sem ciência superior claramente humana Só quando entra em relações com a 339 Ver a interessante coletânea de ensaios Homossexualidade e perspectivas cristãs Fonte Editorial São Paulo 2008 A maioria dos artigos vai fazer referência às passagens veterotestamentárias e também neotestamentárias usadas comumente como base de crítica à homossexualidade e tirando as superficialidades estadounidenses todos os artigos são escritos por autores norteamericanos muita coisa pode ser aproveitada notadamente o último capítulo 11 BROWNING Don A homossexualidade reconsiderada p 169 que na verdade é a resenha de The Construction of Homossexuality de David GREENBERG University of Chicago Press 1990 635 páginas Nesta obra segundo Browning Greenberg vai problematizar contra a opinião popular ou o chamado discurso politicamente correto defendendo que a homossexualidade não é uma condição estática não é como ser negro ou branco ou canhoto Nem é mesmo em geral uma orientação psicológica profundamente estabelecida p 169 Podese dizer que essa crítica segue o sentido de uma problematização da homossexualidade dentro da perspectiva do personalismo que vê como já notamos tudo sob o modo de ser do artefato quer dizer não essencialista 340 Tribo 341 DE VAUX op cit p 42 s 342 Gênesis 219 No pensamento antigo o nome expressa a essência do ser nomeado 127 cortesã adquire uma ciência estranha343 que o faz sentirse fora do lugar entre os animais Por isso a cortesã lhe diz segundo Cordero depois de têlo seduzido Agora que tens juízo e tens te tornado semelhante a um deus por que vais seguir rondando pela estepe na companhia dos animais silvestres Como nota ainda Cordero vemos então que não há nenhum motivo para relacionar o relato bíblico com o famoso poema mesopotâmico344 III1d O Paraíso O relato bíblico javista seguindo sua propensão ao folclórico e colorido apresenta o homem recém formado do pó e animado pelo hálito vital em um lugar privilegiado que é tanto um pomar frutífero quanto um lugar virtuoso ao qual segundo Cordero dá o nome de gân palavra suméria que significa terra frutífera e que a versão dos LXX345 traduzem por paradeisoj paradeísos que é a transliteração para pairi daeza termo que significa primordialmente a paliçada que rodeia um jardim e logo por sinédoque o jardim ou lugar de recreação E o texto hebraico diz que este paraíso gân estava no Éden palavra suméria que os LXX traduzem por um lugar geográfico en Edem en Édem enquanto que em Gênesis 32324 traduzem por paraíso das delícias paradeisou thj trufhj paradeísou tês truphês o paradysum voluptatis da Vulgata346 Os lexicólogos antes relacionam eden com o sumério edîn e assíriobabilônico edinû que parece significar estepe Deste modo o paraíso é considerado no relato de Gênesis como um oásis em meio à estepe e de fato o homem depois da desobediência será lançado do Éden para a hostilidade da terra de estepe segundo o realato bíblico Com efeito o termo edîn ou edina segundo Cordero parece designar a zona de estepe da planície de aluvião demarcada entre os rios Tigre e Eufrates ao sul da atual Bagdá Segundo a tradição literária em alusões do III milênio aC o Éden ou edîn se interpunha entre os sistemas de irrigação fundamentalmente derivados de Eufrates cada um dos quais 343 CORDERO op cit p 29 344 Ibidem p 27 345 Ou Septuaginta a versão grega da bíblia hebraica 346 Tradução da maioria dos textos veterotestamentários do Hebraico para o Latim por são Jerônimo com exceção do Livro de Salmos Em relação a este fez revisões da tradução já existente a chamada Vetus latina ou Itala aproveitando também esta mesma tradução existente em relação ao Novo Testamento Este trabalho ele terminou em 405 da nossa era 128 incorporava seis grupos de cidades que haviam surgido do seu abrigo Mas além do âmbito coberto pelas irrigações o Éden era livremente percorrido pelos animais silvestres que nele moravam quando suas extensões abertas em todas as direções ainda não serviam de pastagem aos rebanhos de gado procedentes das cidades sumérias tais como Uruk e Zabalam onde se encontrava o culto de Tammuz deus pastor Com o apelativo anedin Alto Éden os documentos e léxicos têm designado o planalto ou parte elevada do mesmo que sem solução de continuidade se estende pelo centro do Iraque constituindo a região que hoje se chama Gezireh347 Nota ainda Cordero348 que na Mesopotâmia se percebia particularmente o contraste entre a zona de população sedentária que vivia da agricultura baseada na irrigação pesada com toda classe de produtos frutíferos e a esquálida vida do nômade vivendo no misérrimo território de estepe Esta contraposição é justamente a que encontramos na dramatização do relato bíblico o primeiro homem é colocado por Deus em um lugar excepcional de águas abundantes e árvores frondosas e lançado em seguida como dissemos na estepe para ganhar o pão com o suor do seu rosto349 Como podemos notar o relato de Gênesis foge ao que seria mais natural quer dizer a passagem da vida selvagem à civilizada Ou seja a representação de uma promoção humana da vida nômade dura à vida sedentária prazerosa350 A Bíblia por outro lado apresenta um problema inverso primeiro o homem viveu em uma zona prazerosa de oásis e foi lançado como castigo para a estepe Nota Cordero que os textos sumérios supõem que no processo da promoção humana houve um lento processo de hominização para adaptarse o homemselvagem Enkidu aos refinamentos da vida civilizada que surge precisamente nas regiões privilegiadas de irrigação fruto do trabalho e do talento do homem é o gân ou pomar frutífero351 A perspectiva bíblica é diferente Plantou Iahvé Elohim um jardim gân no Éden edîn estepe ao oriente e pôs o homem que havia formado352 O autor bíblico está assim preparando o cenário para montálo aos 347 ERRANDONEA J op cit p 48 e citação Cuneiform Textes XV 272123 Citado por CORDERO op cit p 18 348 CORDERO op cit p 18 349 Gêneisis 319 350 Tirando Rousseau parece que todos os contratualistas enxergam a passagem da vida do estado de natureza para a vida socializada como uma promoção antes que uma decadência 351 CORDERO loc cit 352 Gênesis 28 129 protagonistas de um drama que terminará em tragédia para a história da humanidade segundo seu ponto de vista eminentemente teológico Para a literatura suméria o processo foi o inverso o homem primeiro viveu com os animais em um regime claramente animalesco e logo ascendeu à vida civilizada e culta Na mitologia mesopotâmica este labor de criar as bases da agricultura se atribui ao deus Enki No relato bíblico encontramos a versão monoteísta dessa mesma tradição lendária antes desta intervenção direta de IahvéElohim na conformação do terreno tudo era uma imensa estepe353 Portanto na perspectiva bíblica a trajetória do homem longe de ser uma promoção de um estado mísero a outro de bemestar é o inverso queda de uma situação privilegiada de colono354 de Deus em um oásis para a de um beduíno que tem de lutar com a hostilidade do ambiente de estepe e em luta pela simples sobrevivência355 Assim nota Cordero tornase pois insustentável a hipótese de que o relato bíblico esteja calcado na lenda da epopéia de Gilgamesh356 pois o autor bíblico trata de dar uma explicação da presença do mau físico a enfermidade e a morte e do mau moral na sociedade humana considerando tudo isso como algo que não fazia parte dos planos divinos Claramente diferenciandose de seu meioambiente religioso o autor bíblico começa a delinear aqui distanciandose do plano de tentativa de constituição de uma metafísica sobre o mal de uma explicação do problema do mal nomeadamente o que não será o caso das demais religiões ambientes que procurarão por suas especulações explicálo e pelos seus ritos aplacálo etc as noções de responsabilidade pessoal e de trabalho a ser feito num mundo que existe todo ele sob o modo de ser do artefato de que temos falado Esta tarefa à qual o ser humano é convocado a realizar como parte de sua vocação enquanto cocriador de Deus só é possível porque este mundo criado é um mundo demitizado Mas também porque há uma contraposição entre um estado de inocência a 353 Gênesis 256 Cf 354 Denominaremos mais à frente com PANNENBREG de jardineiro o que faz uma grande diferença e se relaciona melhor a nosso ver com o locus dos primeiros seres humanos segundo o relato de Gênesis um jardim 355 CORDERO op cit p 21 356 Que é a opinião de ERRANDONEA J op cit pp 123 ss Citado por CORDERO p 21 130 outro de culpabilidade357 na consciência do primeiro ser humano Bem entendido não se trata da noção de culpa que a moderna psicanálise torna fonte de recalques Vemos bem que a moral advinda de uma explicação do problema do mal que gera em religião a necessidade de purificação e em relação à religião ambiente ao escrito bíblico enquanto faz do mal uma entidade hipostasiada em um deus ou em um princípio tão eterno quanto o bem maniqueísmo tende a desviar a responsabilidade pessoal quanto ao mau concreto ou moral em escapatórias rituais e abstratas que sempre acabam impedindo o ser humano de ter tanto uma visão mais dramaticamente apropriada de sua diferença essencial em relação à natureza quanto por conta dessa mesma diferença da busca de uma sua porque ligada a sua especificidade enquanto ser humano relação mais adequada com ela Da tentação de fuga desta tarefa como vocação essencial não escapará a história da religião de Israel Todavia na tradição bíblica que estamos analisando essa culpabilidade se inscreve como veremos mais à frente numa consciência mais ampla tanto por parte de Israel como povo como por parte do indivíduo Em ambos como uma vocação de cocriação e que para o pensamento do autor veterotestamentário constituiria o movimento fundamental de uma sensibilidade ética que deveria crescer paralelamente à tomada de consciência da própria dignidade como nação e como criatura Sob esses aspectos nota Cordero não há nada de parecido entre o Adão da Bíblia e o homem selvagem Enkidu que vive na estepe levando meramente uma vida zoológica com os animais em familiaridade com eles porém sem sentir a ânsia de superação que instintivamente sente o ser humano em seu processo de desenvolvimento psíquico Por outro lado segundo o relator do poema sumério Enkidu não é o primeiro homem mas aparece quando já está desenvolvida a vida sedentária com os refinamentos da cidade de Uruk regida por Gilgamesh Em segundo lugar os costumes animalescos de Enkidu não encontram paralelo com Adão que longe de sentirse à vontade com os animais sentese só e aborrecido quando desfilam diante dele por ordem divina358 Neste ingênuo relato tratase só de destacar a superioridade de Adão sobre todos os animais e apresentar as exigências internas de uma companhia em consonância com a sua natureza humana É 357 Culpabilidade não é sinônimo de falta Todo nosso espírito reflexivo protesta contra semelhante identificação que vem destruir as tensões essenciais características da consciência de culpa Cf RICOEUR Paul Finituded y culpabilidad Col Ensaystas de Hoy Taurus Madrid 1969 pp 365 ss 358 Gênesis 21920 131 totalmente o contrário do homemselvagem Enkidu segundo Cordero que se sentia à vontade às margens dos rios com os animais desconhecendo todos os costumes humanos mais elementares Com gazelas se nutre de ervas e com os animais luta nas margens dos rios em companhia das bestas selvagens as águas recreiam sua alma359 Segundo Cordero nunca se diz de Enkidu que ele seja o primeiro homem da humanidade mas simplesmente que ele representa o puro da estepe Em Gênesis depois de provavelmente uma condenação eufemística do vício da bestialidade imediatamente se relata a formação da mulher do corpo do homem que é concebida por Deus como uma ajuda apropriada a Adão ou literalmente frente a ele no sentido gráfico de rabodeandorinha360 enquanto é o complemento fisiológico e psíquico do varão sua metade da laranja361 Por outro lado como nota ainda Cordero362 Enkidu se sente à vontade com os animais sem experimentar sobre si nenhum impulso de superação e só se distancia deles quando tem a experiência sexual com uma cortesã que lhe é enviada pelo herói Gilgamesh É então que descobre sua dignidade superior humana e a ponto dos animais o abandonarem363 É então que Enkidu começou a perder o vigor físico na medida em que ia descobrindo uma ciência que o tornava um deus364 Por isso a reação de Enkidu foi de decadência física365 À medida que sua inteligência ia se despertando e ia adotando costumes tipicamente humanos perdia as forças físicas próprias dos animais robustez agilidade que em tudo confiam nelas Logo seguese um processo de feminização até entrar em relações amorosas homossexuais com o próprio Gilgamesh seu amigo ato este muito corrente na civilização sedentária366 Todavia para os sumérios o símbolo da vida elevada frente à primitiva da estepe se caracteriza por comer pão Ao mesmo tempo Enkidu aparece sem roupa coberto de pelo por todo corpo como os animais Assim trata se da contraposição da estepe edîn e a terra fértil regada gân367 359 Poema de Gilgamesh I ii 3942 Citado por CORDERO p 21 s 360 Tratase para quem tem conhecimentos de mecânica industrial de duas partes que se encaixam em uma forma de rabo de andorinha 361 CORDERO op cit p 21s 362 Ibidem 363 Gilgamesh IV 2326 Cf CORDERO ibidem 364 Ibidem I iv 2935 II ii 1213 365 CORDERO p 23 366 Ver Errandonea J op cit p 200 Citado por CORDERO loc cit 367 CORDERO p 25 132 Porém este processo de hominização de Enkidu não tem nada a ver com o problema da aparição do primeiro ser humano que é justamente o tema do relato bíblico368 Todavia pela afirmação da intenção do relato bíblico como sendo a de apresentar o primeiro ser humano ou casal humano não se quer aqui fazer da Bíblia um livro de teoria científica pró ou contra a teoria da evolução ou a do criacionismo Quanto a isso devemos relembrar o fato já mencionado de que Bereshit princípio do versículo 11 do livro de Gênesis não é simplesmente o título do livro pois a conexão com a continuação da narrativa indica a intenção que é o caso de todo mito de se narrar uma história das origens e não do começo Não podemos confundir origem com início O sentido de bereshit é a afirmação de um ato divino gratuito que encontra justificação em si mesmo Quer dizer enquanto sendo revelação do ato criador de Deus dependerá sempre da fé Ou seja não busca justificação em uma outra coisa como seria o caso da racionalidade da causalidade além de si mesmo pois é narrado como a expressão da vontade onipotente criadora e amorosa do Deus segundo a Bíblia Enquanto tratando das origens portanto o conteúdo que se seguirá não tem preocupação cronológica pontual como é a maneira de encarar o tempo que herdamos dos gregos mas com os eventos significativos que corroboram na economia revelacional também significativa para a mente hebraica Um bom exemplo desta concepção hebraica do tempo como tempo dos atos divinos tempo histórico salvífico significativo despreocupada com o tempo pontualcronológico jornalístico se encontra no relato da criação dos luminares sol lua e estrelas Estes luminares divinizados por todos os povos em Gênesis são apenas o seguinte luzeiros que iluminam a terra e fixam o calendário O fato é que a narrativa bíblica na contramão de uma concepção pontual cronológica do tempo coloca a criação destes luzeiros no terceiro dia e não no primeiro como seria o caso em uma preocupação do tempo visto como pontual Não obstante estes luzeiros segundo Gênesis 11418 permanecem os sinais tantos para as festas como para os dias e os anos369 368CORDERO op cit p 24 369 A retomada desta estética hebraica não pontual do tempo em nossos dias vai se dar pela fenomenologia de Edmund Husserl de Max Scheler e pelo tempo vivido pela duração bergsoniana Todavia em Husserl e como superação do cartesianismo se dá como consciência interna do tempo em que o primeiro termo da expressão ou seja a consciência é o que determina a sua fenomenologia e permanece sendo o principal em sua apreensão do fluxo prétemporal Este enquanto trabalho antepredicativo e portanto indicando mais do 133 Assim a minha opinião pessoal é a de que o relato bíblico não obstante e porque trata do universo próprio do mitológico ou seja do tema das origens coadunase plenamente com a perspectiva evolucionista que sem solução de continuidade afirma a necessidade de ter existido pelo menos um casal de filo genético pelo qual se tornou possível o surgimento do homo sapienssapiens tal como nós conhecemos hoje Ora para o que representa a noção em biologia evolucionista de homo sapienssapiens o relato bíblico não só não se choca como vai além e nos apresenta como temos visto elementos de uma análise profunda dos constituintes psicológicos e espirituais do que seria este primeiro casal que em minha opinião uma análise de preocupação puramente científica como a da própria teoria evolucionista não saberia e não teria condições de captar em toda sua riqueza significativa simbólicopoéticoreligiosa370 Além disso é um fato que a Bíblia não é um livro de teoria científica e por conta disso mesmo não pode respaldar nenhuma teoria científica enquanto tal seja ela evolucionista ou criacionista etc mesmo que esta última se utilize da noção de criação que é realmente bíblica mas que o faz para fazer valer na verdade seus pressupostos fundamentalistas bem racionalistas portanto não bíblicos ou até antibíblicos Pois enquanto teorias científicas estas estarão sempre desfocadas como vimos quanto à intenção fundamental da narrativa bíblica Como apoiando tal ou qual teoria ela ficaria vista como também disputando um lugar ao sol com as teorias científicas modernas o que sendo uma preocupação própria das disputas teóricas por outro lado não é a da Bíblia Seria mesmo ridículo confrontar as categorias e os critérios do semita antigo com os do cientista moderno O semita primitivo mas também as pessoas do Novo Testamento não que uma sucessão de agoras Mas antes a constituição prévia à experiência do senso comum de uma totalidade objetal em que as propriedades apreendidas as determinações do objeto serão apenas perfis de uma totalidade sempre presente Ver a respeito desta posição de Husserl o interessante artigo do professor Carlos Alberto ribeiro de MOURA Sensibilidade e entendimento in Racionalidade e crise Estudos da História da filosofia moderna e contemporânea Discurso Editorial e Editora UFPR São Paulo e Paraná 2001 pp 337 ss 370 Para mais informações como uma tentativa de sair do impasse de uma análise puramente quantitativa para uma análise dos constituintes além do biológico sociais culturais e psicológicos ver Nova antropologia O homem em sua existência biológica social e cultural Gadamer Vogler org Antropologia biológica vols 1 e 2 Antropologia social vol 3 Antropologia cultural vol 4 Antropologia psicológica vol 5 EPU EDUSP São Paulo 1977 Para uma problematização da teoria da evolução pelas próprias ciências biológicas ver MAIA Newton Freire Teoria da evolução de Darwin à teoria sintética Itatiaia EDUSP vol 2 São Paulo 1988 Para uma problematização da ciência e das teorias científicas em perspectiva histórica e do ponto de vista humanista ver LALOUP Jean A ciência e o homem Editora Herder São Paulo 1966 especialmente todo Capítulo 1 Gênese antiga e 1 A projeção mítica pp 17 ss 134 pensavam nos termos pelos quais a modernidade ocidental desde o século XVI tem estabelecido as categorias e os critérios quantitativos típicos do pensamento científico para a análise dos fenômenos Portanto toda discussão sobre qual teoria científica sobre o surgimento da humanidade é a bíblica é uma questão fora de propósito pois é deslocada da intenção fundamental da narrativa da Bíblia que não tem nenhuma preocupação com isso A Bíblia é um livro de testemunho e de fé O Antigo Testamento narra a história da experiência viva dramática e tensa das intervenções históricas de um Deus durante o processo de formação e assentamento de um exgrupo de tribos nômades transformado em Nação com a qual pactua A experiência do povo de Israel com este Deus que intervém este Deus da história será tão impactante que a partir dessa experiência crucial o povo de Israel não poderá contar sua história sem que se narre como parte integrante sine qua non dela os relatos salvíficos destas intervenções III1e A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal371 e a Árvore da Vida Na trama teológica do relato bíblico parábola em ação dita árvore simbólica assinala a linha divisória entre o bem e o mal imposta pela divindade Por isso a sugestão da serpente encarnação do princípio antiDeus que nos textos bíblicos posteriores se identificará com o diabo afetar o mais íntimo do ser humano quer dizer a ânsia de escalar a esfera superior até poder determinar por si mesmo o que é bom e o que é mau privilégio até agora da divindade372 O autor bíblico põe na boca de IahvéElohim as seguintes palavras satíricas Eis que Adão se tornou como um de nós conhecedor do bem e do mal373 371 No que se refere a essa expressão da narrativa bíblica diz A Bíblia de Jeruslém Edições Paulinas Nova Edição Revista 1985 comentário a Gênesis 217 Não se trata pois nem da onisciência que o homem decaído não possui nem do discernimento moral que o homem inocente já tinha e que Deus não pode recusar a sua criatura racional É a faculdade de decidir por si mesmo o que é bem e o que é mal e de agir conseqüentemente reivindicação de autonomia moral pela qual o ser humano nega seu estado de criatura cf Isaías 520 O primeiro pecado foi então um atentado à soberania de Deus um pecado de orgulho Esta revolta exprimiuse concretamente pela transgressão de um preceito estabelecido por Deus e representado sob a imagem do fruto proibido 372 Cordero p 30 373 Gênesis 322 135 Para os antigos semitas e sobretudo para os hebreus as coisas são boas ou más permitidas ou proibidas porque assim o determina um poder superior extramundano Não podemos transportar à mentalidade semítica às concepções helênicas sobre a noção do dever ou do ilícito com base em uma idéia filosófica baseada nos meros princípios da solidariedade e convivência humanas Como muito bem nota Cordero374 A filosofia nasce nas orlas do mar Egeo mas não nas terras quentes e soporíferas do Oriente Médio onde falta o mais absoluto voluntarismo Assim o Decálogo é imposto por Iahvé sem consultar os destinatários de seus preceitos bem concretos e as credenciais que apresenta são suas ações salvíficas em favor de Israel para tirálo do Egito375 Na perspectiva teológica dos escritores do Antigo Testamento Deus é onipotente e é totalmente livre na imposição de seus mandamentos Por isso ele é quem assinala a divisão entre o que é bom e o que é mau o permitido e o proibido de tal forma que querer apropriarse desta faculdade é atentar segundo o pensamento veterotestamentário contra os direitos inalienáveis da própria divindade Todavia notemos que os deuses helênicos por exemplo impunham leis porém estavam acima delas e não eram obrigados a cumprilas376 Mas como vemos na nota abaixo o Deus da Bíblia se compromete com o cumprimento de sua lei ou seja a sujeitar se a ela pois ela constituise como expressão mesma de sua vontade do seu ser no que no plano histórico no plano da finitude quer ser concretizada como justiça além disso o meio pelo qual esta promessa de Deus de que será fiel para consigo mesmo e o povo de Israel se dá através como vimos de um pacto ou aliança cujas implicações de obrigação são bilaterais377 374 Cf CORDERO op cit p 30 375 Êxodo 201 s 376 As leis se tornam uma expressão cósmica do Logos em Heráclito e todas as suas observações sobre a relação do homem com Deus tratam insistentemente de manter Deus livre de todo traço de humanidade Cf JAEGER La teologia de los op cit pp 117 ss e p 127 Por outro lado na visão veterotestamentária como já vimos Iahvé se compromete a cumprir suas próprias leis quer dizer a limitar a sua ação onipotente dentro do pacto ou aliança que estabelece com o povo de Israel Essa limitação de Iahvé não obstante a reorrente desobediência de Israel em sua história das normas do pacto quer dizer de sua quebra do pacto moverá Iahvé ao cumprimento da justiça Todavia esta mesma ação de justiça se manterá limitada por sua vez aos termos do cumprimento de suas promessas anteriores à Lei dadas aos primeiros pais Eis que o Deus do Antigo Testamento é mais propriamente um Deus entranhado na história 377 O sentido histórico dessa aliança do ponto de vista de Oscar CULLMANN está em seu movimento de concentração e de expansão Cf CULLMANN Cristo e o Tempo op cit pp 159 ss Assim a história da salvação em sua totalidade compreende dois movimentos a passagem do Único à pluralidade que é a Antiga Aliança com o povo de Israel e a passagem do Único à pluralidade que é a Nova Aliança com a Igreja constituída por seres humanos independentemente de raça condição social sexo etc 136 Nota Cordero378 que nós não encontramos nos relatos mesopotâmicos algo similar a este delineamento do texto bíblico Pois no poema de Gilgamesh se diz que Enkidu o homem selvagem depois que teve a experiência sexual com a cortesã adquiriu uma ciência superior que lhe revelou sua categoria humana acima do ambiente animalesco em que vivia Diz a cortesã Tu tens te tornado semelhante a um deus no sentido de adquirir uma consciência da dignidade humana Por outro lado no texto do poema mesopotâmico não se alude para nada a um preceito determinado cuja transgressão leve consigo a aquisição de uma ciência superior na ordem moral E segundo o relato bíblico Adão não adquiriu consciência de sua categoria humana ao comer do fruto proibido mas consciência de sua culpabilidade que se reflete em uma íntima frustração e decepção já que perdeu as relações amistosas e familiares com IahvéElohim o proprietário daquele campo de recreio do qual Adão era somente um colono usufrutuário ou como diria Wolfhart Pannenberg379 um jardineiro que devia guardálo e cultiválo380 No poema de Gilgamesh tratase de encenar a promoção social do homem faunístico da estepe que vive à vontade com os animais à vida cidadã sedentária com suas comodidades e vícios refinados Adão se encontra em uma situação privilegiada em um oásis feliz com sua companheira e por transgredir um preceito perde essa situação e se vê obrigado a decair a uma situação de relações inamistosas com IahvéElohim e intimado ao mesmo tempo a sair do paraíso a superfície regada para ser lançado na estepe381 Essa transgerssão de Adão assentindo às íntimas ânsias de uma exagerada autonomia é o que poderíamos chamar de uma ubrij hýbris hebraica uma ultrapassagem da medida um excesso Em outras palavras uma autonomia que fundada nele mesmo como criatura e baseada em sua criaturalidade se tornava em si um autonomia inconsistente Do ponto de vista literário a conclusão que Cordero chega é a de que não há pois nenhum indício de dependência literária do relato bíblico em relação às lendas mesopotâmicas neste caso também 378 Op cit p 31 379 Teologia sistemática pp 236 ss Pannenberg vincula o que implica a carga semântica da noção de jardineiro relacionada ao ser humano no trato do mundo de domínio humano sobre o mundo com o ser imagem de Deus 380 Gênesis 215 381 CORDERO op cit p 32 137 Segundo Cordero em sua comparação literária da narrativa de Gênesis e a epopéia do herói sumério não é difícil estabelecer uma relação conceitual entre a árvore da vida382 que devia conferir imortalidade e a planta da vida que confere o rejuvenescimento e que em busca da qual seguiu Gilgamesh na desembocadura dos rios depois que se viu presa de imensa angústia vital ao constatar a morte de seu amigo Enkidu Segundo o relato da lenda mesopotâmica Gilgamesh depois de havêla encontrado no profundo do mar quando voltava a sua terra se põe a banharse em sua lagoa deixando na beira a planta da juventude Porém enquanto se banhava uma serpente a arrebatou traiçoeiramente e assim o herói sumério perdeu a ilusão de seu rejuvenescimento383 No relato bíblico a árvore da vida está fixa como um símbolo da imortalidade à disposição de Adão e de Eva384 se não tivessem pecado por outro lado a planta da vida está no profundo do mar e é transportada por Gilgamesh podendo comer dela quando quisesse para conseguir não a imortalidade mas o rejuvenescimento já que a imortalidade era algo privativo dos deuses Segundo Cordero nos tempos de Gudéia385 prestavase culto a um deusserpente chamado Ningiszida que significava justamente senhor da árvore da verdade que está colocada à porta do céu onde moram os deuses junto à árvore da vida E na mitologia posterior caldéia falase também da árvore da verdade que está na estrada da morada dos deuses386 Tudo isso pode dar pé ao cenário teológico do relato bíblico ainda que não implique dependência literária direta das tradições mesopotâmicas Porém podemos admitir que sobre uma lenda mítica antiga um autor inspirado pode estruturar uma trama teológica encenada conforme o esquema monoteísta hebraico que salve a transcendência de IahvéElohim apesar de suas relações familiares com os primeiros pais387 382 Gênesis 322 383 Gilgamesh XI 305 Cf CORDERO op cit p 32 384 Bíblia de Jerusalém O nome Eva mãe de todos os viventes Gênesis 320 Havvah é explicado pela raiz hayah viver 385 Governador de Lagash c 2150 aC Constituiu um pequeno estado sumério cujos recursos serviram notadamente para restaurar e embelezar o grande templo de Girsu Gudéia é conhecido por estatuetas que se encontram no museu do Louvre Cf Encyclopaedia Britannica Micropaedia vol IV 15th Edition USA 1979 386 Cf P Dhorme Larbre de vérité et larbre de la vie RB 4 1907 pp 99121 Citado por CORDERO p 33 387 De acordo com a narrativa antropomórfica javista de Gênesis 38 Deus passeava no jardim à brisa do dia 138 Querubins um novo ingrediente do folclore mesopotâmico são segundo a narrativa de Gênesis388 colocados à porta para guardar o Jardim O nome Kerub do texto hebraico está relacionado segundo Cordero com os karibâti da mitologia babilônica que eram uma espécie de gênios alados que ficavam às portas dos palácios e dos templos para guardar o lugar Seu nome significa intercessor orante porém em sentido derivado guardião que é justamente o ofício que se assinala no texto de Gênesis que constatamos389 Em outros textos bíblicos estes querubins aparecem como guardiões da arca da aliança390 e como escabelo do trono de Deus com a aparência quadriforme corpo de leão e de touro asas de águia e face humana sintetizando assim as manifestações mais nobres dos seres vivos391 Nessa nossa seqüência temática devemos fazer menção ao Mito de Adapa onde se relata a ocasião desperdiçada pelo homem para conseguir a imortalidade sua máxima aspiração Há várias recensões a mais antiga é a dos arquivos de Tell Amarna As outras são da Biblioteca de Asurbanipal séc VII aC porém refletem tradições muito arcaicas392 Adapa393 na mitologia mesopotâmica é o sábio legendário e cidadão de Enridu uma cidade suméria cujas ruínas se encontram ao sul do Iraque Dotado de uma vasta inteligência por Ea o deus da sabedoria ele se tornou o herói de um mito no qual lhe foi negada a imortalidade O mito relata que Adapa que havia quebrado as asas do vento sul foi intimado por Anu deus da guerra a receber punição Preocupado Ea advertiu Adapa a que não tocasse no pão ou na água que lhe fossem oferecidas Os dois guardiões celestes Tammuz e Nigishzida no entanto intercederam por ele e Anu mudando de intenção ofereceulhe o pão e água da vida eterna aos quais ele recusou então a humanidade tornou se mortal Não encontramos aqui nenhum paralelo com o relato bíblico já que Adão neste é privado de ter acesso à árvore da vida que lhe conferiria a imortalidade enquanto que Adapa é privado desta porque recusou comer o pão da vida e a água da vida O 388 Gênesis 324 389 CORDERO op cit p 33 390 Êxodo 251821 1 Reis 623 2 Crônicas 3710 391 Ezequiel 11 ss 392 CORDERO op cit p 30 ss 393 Cf Encyclopaedia Britannica Micropaedia vol I 15th Edition USA 1979 139 paralelismo é antitético porém nos relatos se reflete a problemática da angústia vital no ser humano quem consciente de ser mortal busca o meio de querer prolongar sua vida indefinidamente Sob este aspecto a planta da vida do poema de Gilgamesh e o pão da vida e a água da vida do mito de Adapa e a árvore da vida do relato de Gênesis respondem à mesma problemática humana delineada nos distintos textos conforme o esquema religioso de cada autor a pessoa humana é um ser para a vida É preciso também fazer alusão ao texto sumério de Nippur chamado Poema de Eenebaam394 Em relação a este como nota Cordero As analogias com o relato bíblico sobre a queda dos primeiros pais são muitas ainda que não se fale da intervenção da serpente nem da mulher nem da tentação diabólica e não se justifique a Ira de Enki contra os homens que não aparecem como pecadores tampouco se alude à árvore da ciência do bem e do mal que exerce um papel tão importante no relato bíblico da tentação e menos se alude à árvore da vida395 Cordero aponta o fato de que muitos orientalistas como A Ugnad e A Jirku duvidam da correção da leitura deste famoso texto pois se embasa em hipóteses não provadas Poderíamos supor que o autor o javista quando monta a encenação teológica em forma de diálogo no relato de Gênesis fez eco a determinadas lendas antigas nas quais se falava de uma idade de ouro no alvorecer da humanidade na qual não existia o sofrimento a velhice e a morte como dão a entender os clássicos grecolatinos Nesse sentido precisamente uma das características admiráveis da religião israelita estaria em sua capacidade de assimilar elementos heterogêneos sem intoxicarse com eles adaptandoos e inserindoos nos esquemas do seu monoteísmo tradicional Os elementos assimilados adquirem assim um novo sentido que supervaloriza sua procedência original396 Portanto seguindo o princípio fundamental do que poderíamos denominar anacronicamente estética da história para o gênio hebraico não importa se se é o primeiro ou seja a originalidade como entendida pelo romantismo importa o como se organiza as coisas o que nos faz perceber novamente o elemento de artefato no trato das realidades históricas pelos autores de Gênesis 394 Cf LANGDON S Sumerian Epic of Paradise the Food and the Fall of Man 1915 Citado por CORDERO op cit p 34 395 CORDERO op et loc cit 396 Ibidem p 34 140 II17 O Pecado dos Primeiros Pais Como vimos na perspectiva bíblica o primeiro pecado se apresenta como a transgressão de um preceito concreto em torno do fruto de uma árvore misteriosa ao que se denomina enfaticamente como a árvore da ciência do bem e do mal que simboliza a linha divisória teórica entre o permitido e o proibido por imposição divina No fundo trata se de um pecado de insubordinação e de orgulho já que conforme a instigação da serpente os transgressores aspiram ser como Elohim conhecedores do bem e do mal397 quer dizer determinar o que é bom e o que é mau prerrogativa que até agora como já notamos era exclusiva da divindade O Espírito maligno encarnado na serpente sedutora e traidora aponta e ao mesmo tempo é o portavoz por assim dizer da parte mais fraca do espírito humano de um lado a ânsia de superação sem limites e de outro o desejo de uma autonomia absoluta frente a toda imposição exterior ainda que venha do próprio Criador Por outro lado esta atitude de condenação à atitude do ser humano julgada como insubordinação que de imediato fere os nossos sentimentos de independência e de busca de autonomia os quais se estabeleceram no Ocidente como apanágio de sua história moderna deve ser observada dentro da perspectiva dialética que a própria história da Bíblia nos aponta Antes de tudo a atitude de desobediência lembrando o que está em jogo não leva Iahvé à aniquilação das criaturas humanas o que ficaria justificado pelo sumo poder e justiça de Iahvé e pela sua prerrogativa como o Criador No entanto o que vemos é o despertar da consciência do primeiro casal para uma realidade agora rompido o cordão umbilical fora da segurança uterina do jardim de delícias numa terra inóspita sobre a qual não obstante o projeto original de cocriação com Iahvé continuará só que em condições mais dificultosas tanto para o homem quanto para a mulher Segundo a concepção de estrutura familiar do semita antigo e em sua linguagem simples que resume os papeis de cada cônjuge À mulher diz Iahvé Multiplicarei sobremodo os sofrimentos de tua gravidez em meio de dores darás à luz filhos o teu desejo será para o teu marido e ele te governará E a Adão disse Visto que atendera à voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te ordenara não comesses maldita é a terra por tua causa em fadigas obterás dela o sustento durante os dias de tua vida Gênesis 31617 397 Cf Gênesis 35 141 O gênio hebraico expressa muito bem a nova situação Ela é o resultado e o preço a ser pago pela liberdade que quando da inconsciência infantil era como que unívoca à existência tranqüila no jardim mas que agora deve ser reconquistada na posse de uma consciência lúcida Iniciase o sentido histórico da tensa conquista da liberdade humana Pois ao mesmo tempo empreendida na consciência de sua construção por meio do trabalho sofrido será realizada também em parceria com Iahvé que continua o seu projeto de Criação pela participação cocriativa do ser humano A maioridade que a humanidade alcança com a queda a ampliação de sua consciência ética sobre a qual o autor antigo indica pela consciência da descoberta de que estavam nus ou seja a descoberta do pudor podese dizer faz desta queda da humanidade uma queda para cima Não há destruição aniquilação mas um recomeço em bases diferentes mais exigentes para a criatura sem dúvida mas que não deixarão de implicar o Criador que continua o seu projeto A abertura histórica à vocação do ser humano de cocriador com Iahvé é o que vai marcar a história da liberdade de Israel símbolo para a busca da liberdade humana como luta a ser conquistada tanto frente a um mundo agora inóspito como em tensão com Iahvé Luta que se expressará na história de Israel dialeticamente Pois se dará dentro do projeto inicial de Iahvé ou seja sempre frente a qualquer tipo de instalação artificial criada pelo ser humano seus ídolos e que se traduzirá como a verdadeira luta por emancipação a qual será também luta com o próprio Deus O projeto inicial de Iahvé em que o ser humano existia para usar uma linguagem contemporânea fora da alienação no jardim deve ser prosseguido de agora em diante não como sonho de uma volta à inocência mas como uma luta contra todo tipo de instalação falsas identidades seus ídolos fabricadas pelo ser humano rachado mas responsável De agora em diante a luta com Deus não será um entrave mas antes um prérequisito para a conquista de uma verdadeira liberdade ou seja a liberdade conforme o projeto inicial de IahvéElohim o DeusCriador do homem como cocriador agora nessa nova situação de liberdade responsável que ele mesmo decidiu por seu ato livre de desobediência Tratase da abertura da revelação em uma perspectiva histórica que em teologia se chama revelação progressiva O ponto de partida mesmo desta revelação progressiva já é dado no próprio texto de Gênesis na concepção que está por trás da maneira pela qual a narrativa descreve como o ser humano é criado Nela apresentase como já notamos a 142 dignidade do ser humano enquanto a criatura cume da criação Essa sua dignidade é observada até no momento mesmo da transgressão em relação a qual o julgamento da parte de IahvéElohim de expulsálo do paraíso toma como princípio o ato voluntário e livre do ser humano que determinando uma nova configuração das coisas e do projeto inicial já não pode lançar mão de nenhum determinismo natural ou metafísico que pudesse comprometer sua responsabilidade e desculpálo nesse seu ato livre do começo ao fim Se não fosse assim ou seja se o ser humano pudesse justificar sua escolha como em última instância como não livre a própria idéia de justiça que implica a ação de um sujeito responsável ficaria comprometida Desde então a história de Israel será como diz Mounier sobre a história da humanidade a história da paciência de Deus e de sua homenagem à liberdade humana398 Diferentemente das outras concepções ambientes o gênio israelita vai se afastar de colocar a questão de uma metafísica determinista materialista ou espiritual Todavia conseqüências similares geradas por este tipo de metafísica no âmbito da vida religiosa quer dizer a solução pela saída do dualismo maniqueísta e a conseqüente moral de purificação pelo ato meritório do sacrifício ritual399 transportando a responsabilidade pessoal para uma dimensão abstrata e acessível em vista da busca de estabelecer o seu apaziguamento apenas pelos ritos corretos e conhecimentos secretos será mutatis mutandis um problema constante na história da religião de Israel Como é o problema com o qual toda verdadeira religião ou seja toda religião que queira fazer valer o seu sentido mais essencial segundo a fenomenologia da religião tem de lidar Tudo isso mais afim com a transferência da responsabilidade pessoal para um campo metafísico com vistas ao apaziguamento das consciências pelo sentimento de total impotência contra o destino inflexível e inexorável não deixará de ser uma tentação nos caminhos da história do povo de Israel A partir de então sua história será a história da tentação constante de uma queda senão na metafísica em si sem dúvida nas suas conseqüências as quais representarão sempre um antípoda em termos de instalação contra a retomada na realização da vocação de liberdade responsável diante de Deus de acordo com o projeto inicial a cujo retorno os profetas serão os grandes arautos Em outras palavras aquele projeto de Iahvé que por ser 398 Manifest aux service du personnalisme Oeuvres I p 524 399 Essa vai ser ao longo da história da religião de Israel uma das suas grandes tentações 143 o criador do ser humano segundo a Bíblia tem consigo os constituintes próprios que fazem valer o que há de mais específico desta sua criação a sua dignidade e a sua liberdade Desta forma para a consciência israelita a autonomia do ser humano é unívoca à vontade diretiva de Iahvé que por ser justo a concebeu de acordo com o que há de mais específico com a natureza humana Longe de um plano que poderia permanecer puramente metafísico a religião israelita elegerá como o campo de teste do projeto inicial de Iahvé para o ser humano e como única dimensão que respeita o caráter finito do ser humano a história Não encontramos nada similar nos textos mesopotâmicos Pois a ciência que Enkidu adquire é simplesmente a consciência de ser homem capaz de avaliarse e conviver com os homens civilizados inclusive com o rei de Uruk filho de uma deusa A ciência que os primeiros pais adquirem segundo o relato de Gênesis é a de seu afastamento de Deus perdendo uma situação anterior privilegiada é um processo de degradação mas que paradoxalmente como temos colocado pode ser considerado uma queda para cima pois é neste momento que os primeiros pais abrem os olhos para a dimensão de uma vida ética responsável400 Já no caso de Enkidu tratase de um processo de promoção social de um estado de selvagem ao da vida cidadã Nesta comparação chegamos à interessante constatação de que em Gilgamesh tratase de uma elevação social que implica uma queda moral401 e que em Gênesis é a queda de uma situação confortável que implica ao mesmo tempo um ato de liberdade como desobediência e uma elevação de consciência ética pela consciência mesma desse ato como livre Por isso Adão e Eva sentem uma profunda frustração com a nova ciência que adquirem e que é satirizada como vimos pela Divindade segundo o autor bíblico A partir desse momento tudo se torna hostil e trágico na vida dos primeiros pais enquanto que a Enkidu com o acesso à vida civilizada se lhe abre um horizonte de superação podendo acompanhar seu amigo Gilgamesh para 400 Ver sobre isso BONHOEFFER Dietrich Ética EST Sinodal Porto Alegre 8ª ed 2008 p 19 s Pudor e consciência 401 Em Rousseau não se trata de uma queda moral mas da perda de uma inocência que implica a degeneração da humanidade que se vê na necessidade de promover na vida civilizada degenerada a constituição pelo que ainda suspira nela de sua constituição fundamental algo que seja a expressão e que atualize o seu sentido mais íntimo que é o da liberdade 144 realizar o grande feito heróico gesta da conquista do bosque misterioso guardado pelo monstro Jumbaba402 O termo fruta em muitos textos cuneiformes segundo Cordero é um eufemismo para designar o prazer sexual Ishtar403 a deusa do amor diz a Gilgamesh Vem Gilgamesh ser meu amante dáme tua fruta e acrescenta Sê tu meu marido e eu serei tua esposa404 Não há nada parecido com isso no relato bíblico Nele se diz que Adão foi seduzido pela mulher que lhe ofereceu o fruto proibido A mulher que tu me destes deume da árvore e comi Gênesis 312 Realmente a noção de fruto como se referindo ao sexo tem aqui seus ecos Todavia isto mais em relação ao relato javista pois quanto ao relato sacerdotal a procriação por meio do sexo e da fecundação plantas e animais existiu desde o início O relato sacerdotal é em tudo antimaniqueísta o javista mais antigo e conseqüentemente mais antropomórfico lança mais mão do imaginário ambiente mas ainda assim configurandoo em sua nova perspectiva405 Levandose em consideração toda a estrutura do texto e a maneira pela qual o autor javista lança mão da cultura ambiente em função do seu esquema teológico não se pode concluir que o pecado por comer o fruto proibido tratese como quer o preconceito popular simplesmente de relação sexual O encargo da multiplicação em Gênesis 128 crescei e multiplicaivos e enchei a terra e dominaia parece se contrapor à noção de que o pecado original em relação ao fruto proibido como evocando o ato sexual tenha a ver com a relação sexual Ora se o maniqueísmo é combatido pelo autor de Gênesis no que diz respeito a toda criação o sexo deve também fazer parte deste combate justamente por sua relação direta ao corporal que o texto conclui com a ênfase muito bom e que representa para o semita o meio de continuação da descendência cujo número acrescido lhe será sempre sinal de benção de 402 Cf CORDERO op cit p 35 s 403 Em muitas tradições semíticas chamada de Lilith Ver HURWITZ Siegmund Lilith A primeira Eva Aspectos históricos e psicológicoas do lado sombrio feminino Fonte Editorial São Paulo p 2006 parte I Seção históricoreligiosa o mito e sua história pp 33 ss 404 CORDERO op cit p 35 s 405 Todavia teremos a oportunidade de falar sobre os exageros dos cristãos Jerônimo e Agostinho via Plotino que cederam ao intelectualismo grego e seu maniqueísmo intrínseco ódio às exigências do corporal em favor das do intelectual condenando o sexo e atandoo sem nenhuma autorização da antropologia bíblica vétero e neotestamentária no Ocidente à importante noção teológica de pecado causando assim enormes estragos nas já frágeis e complicadas relações humanas enfim fazendo algo por conta e risco próprios e que não é de forma alguma uma decorrência apodítica como tem sido costume afirmar dos textos bíblicos 145 Iahvé Talvez numa relação remota o sexo poderia ser visto como o veículo tanto de uma benção que para o semita está ligada à geração de uma família numerosa como da transmissão por solidariedade criatural às futuras gerações não só da maldição da queda mas da responsabilidade na continuação do projeto de Iahvé de cocriação com base no pacto na aliança sob a nova configuração que o ato de desobediência causou de uma vida livre e responsável num mundo inóspito fora do jardim de delícias e do sonho de uma volta ao período de inocência Por outro lado em Gênesis 36 se diz da árvore proibida que era boa ao paladar formosa à vista e apetecível para alcançar sabedoria Como nota Cordero406 não se pode dizer que o escritor bíblico tenha baseado sua história no poema mesopotâmico Porém há um detalhe que se presta a certa similitude Adão e Eva depois da transgressão começaram a ter o sentimento do pudor pelo que se envergonharam de estarem nus No caso de Enkidu este sente o problema de sua nudez justamente porque começa a descobrir sua dignidade de ser racional407 No relato bíblico se diz que foi o próprio Deus quem fez a primeira roupa para Adão e Eva sem dúvida para destacar a importância do pudor na vida social humana como já notamos408 De fato a origem da vestimenta em todos os níveis tem tido diversos motivos um utilitário outro estético e finalmente outro moralreligioso Este para a mentalidade semítica para salvaguardar o pudor em função do que não obstante é o caso da vida na maioria das chamadas sociedades civilizadas quer dizer o da possibilidade de ocorrência de atrações sexuais moral e socialmente inadequadas conforme a estrutura social e as leis que decorrem precisamente das estrutura de parentesco Na realidade todos estes diversos motivos nota Cordero409 seguem implicados nos relatos bíblicos e cuneiformes que acabamos de comentar Porém respondem a razões comuns como vimos quanto à preocupação da manutenção da estabilidade social que surgem instintivamente 406 Op cit p 37 407 Ibidem 408 Gênesis 321 Teremos a oportunidade de falar do sentido existencial da experiência do pudor quer dizer fora da crítica social ao moralismo e à hipocrisia social em Emmanuel Mounier abaixo no capítulo sobre a pessoa e existência além de conectar outros sentidos que ao do pudor ligamse à autodefesa da pessoa contra os olhares redutores e obejtificantes O pudor para o personalismo é a maneira pela qual a pessoa expressa eu sou mais do que o meu corpo 409 Op cit p 38 146 sem que isso implique dependência literária por parte do relato bíblico em relação ao mesopotâmico ainda que este seja mais antigo De fato a serpente é instrumento em ambos os relatos para tirar de Adão e Gilgamesh o direito à imortalidade deste último no entanto enquanto capacidade de rejuvenescimento A semelhança é clara e não há por que excluir que o autor bíblico tenha se utilizado de uma lenda mesopotâmica para distribuir os papéis do drama teológico entre os distintos protagonistas utilizando a serpente por seu caráter tradicionalmente repulsivo e traiçoeiro como encarnação da astúcia e da sedução Porém o desenvolvimento do relato é diferente em ambos no poema de Gilgamesh a serpente arrebata a planta da vida quando Gilgamesh se entrega a um banho reparador como vimos e aproveitando um descuido do herói Por outro lado segundo o relato bíblico a serpente seduz primeiro a mulher como mais vulnerável mas que governa o coração do homem para estar mais segura de seu êxito Ora se a serpente contava em sua estratégia com a capacidade de domínio do coração do homem pela mulher isso já se dava antes da queda E todavia esse domínio do coração do homem por parte da mulher é colocado como parte da condenação depois da queda teu desejo te impelirá para o teu marido e ele te dominará410 Agora o narrador bíblico sob o ponto de vista histórico que inaugura vai colocar antes que perguntas que pudessem justificar a paralisia da ação tais como as perguntas metafísicas sobre a origem do mal do determinismo etc o como das ações avaliadas com base na reapropriação hermenêutica da tradição à luz dos eventos e no sentido do cumprimento de sua vocação Concluímos novamente que o que está em jogo na narrativa bíblica não são os determinismos possíveis mas a escolha pessoal livre e responsável 410 Bíblia de Jerusalém O texto não quer dizer que sem o pecado a mulher daria à luz sem dor e que o homem trabalharia sem o suor do rosto Isso seria o mesmo que concluir que antes do pecado as serpentes teriam patas O pecado transtorna a ordem querida por Deus em vez de ser associada do homem e sua igual 21824 a mulher se tornará a sedutora do homem que por sua vez a sujeitará para ter filhos em vez de ser jardineiro de Deus no Éden o homem lutará contra um solo hostil Mas o grande castigo será a perda da familiaridade com Deus 323 Nós completaríamos o qual sabendo como criador do homem segundo a Bíblia qual é o ótimo dessa expressão de existência chamada humana colocará essa ciência de criador como tema recorrente Segundo o Antigo Testamento na base da convocação por parte de Iahvé através do profetas ao povo de Israel a cumprir a vontade de Deus seu criador Será na base de um convencimento da verdade do projeto de Iahvé que se dará a relação tensa e cheia de percalços entre o povo de Israel e Iahvé Pois esta pregação profética da vontade de Iahvé se fundamentará numa condição que se esclarecerá sempre à luz dos eventos passíveis de serem julgados pelo povo em relação às promessas Portanto a desobediência do povo será sempre tratada como um ato de escolha livre o qual implicará as suas conseqüências Numa outra conexão para uma interessante análise arquetípica da mulher fatal da mulher sedutora que a mitologia judaica e semítica como um todo chama Lilith ver a obra já citada de Siegmund HURWITZ sobre Lilith 147 Por outro lado não há dúvida de que no relato bíblico há certas alusões ao complexo sexual pois dentro da mentalidade dos antigos hebreus o pudor a maternidade a concupiscência estão rodeados de uma atmosfera de mistério Sabemos o quanto promessa e descendência estão ligadas no Antigo Testamento e que o sexo é o meio pelo qual dáse continuidade à história da solidariedade Porém o que não está provado segundo Cordero é que o culto à serpente na Mesopotâmia e em Canaã esteja relacionado aos ritos afrodisíacos ainda que esteja bem demonstrado o fato de que o culto à serpente em Canaã411 no entanto não conste como sendo emblema fálico Seria aferrarse demasiado segundo Cordero às exigências da religion geschichtlich buscar alusões comparativas que não se embasam em fatos mais precisos mas em um calhamaço de fatos dispersos e desconexos muito discutíveis412 Tampouco podese levantar o suposto clima sexual do relato bíblico como se fosse uma preocupação central do autor bíblico só porque é algo que aflora nos detalhes porém a atenção central do drama como temos visto se dirige para o fato da insubordinação e desobediência de Adão e Eva a um preceito concreto que longe de ser um Kindersünde pecado infantil é o símbolo de um ensino bastante elevado quer dizer da submissão dos primeiros pais a um poder superior ou ainda em outras palavras como já vimos a maneira pela qual o pensamento hebraico resolve o problema que os gregos também pressentiram da hýbris caracteristicamente humana Agora que nos encontramos munidos da compreensão de algumas especificidades quanto ao texto e ao pensamento hebraico em relação ao seu meio ambiente cultural religioso nessa aproximação comparativa que fizemos nos valendo do trabalho de outros podemos então enviesar nossa pesquisa para o âmbito da antropologia e daí entrarmos nas considerações quanto à noção de dignidade mais relacionada à noção de imagoDei como estabelecida pela narrativa da Criação de Gênesis e de liberdade que vamos ressaltar da experiência de libertação realizada pelo povo de Israel a partir do texto de Êxodo 20 411 Ver exemplos em COPPENS J La conneissence du bien e du mal et lê péché du paradis Louvain 1948 pp 21 e 88 ss Citado por CORDERO op cit p 39 s 412 Ver sobre essa teoria VOSTÉ J em Angelicum 25 1948 p 272 IGLESIAS S Muñoz La ciencia del bien y del mal e el pecado do paraíso Gregorianum 30 1949 p 490520 31 1950 p 3562 362390 Citado por CORDERO loccit 148 III1g A Constituição Antropológica Hebraica da Noção de Dignidade Humana O aspecto histórico da experiência de Israel com Iahvé marcada pelos eventos salvíficos e a compreensão do tempo413 que o semita mantém a partir da sua leitura dos eventos à luz da tradição que se formou e da necessidade de compreensão do significado do evento para o momento presente pelo qual então ele pode perspectivar o futuro deixou os escritores bíblicos à vontade quanto a uma descrição não puramente cronológica e pontual dos fatos Pois aqueles escritores ressaltam os aspectos mais significativos dos mesmos para a história nacional que com o aparecimento da profecia vai firmase definitivamente como vocação para uma história universal ao mesmo tempo em que cresce a consciência de uma chamada de responsabilidade vocacional de cocriação como um projeto de Iahvé para toda humanidade Quer dizer sentimento e consciência do caráter universal desse chamado cobrindo não só o plano nacional como o individual414 Esta noção de tempo semita que vai se elaborando e tomando sua forma a partir da releitura do passado pela luz dos eventos do presente é muito bem esclarecida por Wolff em sua famosa Antropologia do Antigo Testamento415 Assim No escrito sacerdotal encontramos a noção de tempo refletida e diferenciada Em primeiro lugar ele mostra interesse por datas cronológicas e de calendário como quadro da história As genealogias até se tornam o princípio de estruturação para o plano geral do escrito sacerdotal416 E ainda Wolff Com o javista o problema do tempo ainda não o ocupa teoricamente o dia não é introduzido como espaço de tempo do calendário portanto não como conceito físico do tempo mas exclusivamente como o espaço de um acontecimento e em primeiro lugar do acontecimento de uma ação 413 Expandiremos mais esta explicação da concepção semítica de tempo que o resgate do histórico e sua valorização nas pesquisas atuais do pensamento ocidental a respeito do tema parecem fazer justiça em contraste com a nossa mais tradicional concepção cronológica pontual do tempo herdada dos gregos 414 Com relação a esse último ponto o profeta Jeremias vai ser paradigmático Tentaremos seguir a pista sinuosa deste movimento de universalização movimento e não acabamento como quis a modernidade ocidental Nesse sentido é importante notar o resgate personalista dessa estética hebraica da história Assim no personalismo a universalização ou melhor o sentido da universalização é uma tarefa uma obra a se cumprir perpetuamente e não um estado ou substância acabada Quando tratarmos do sentido de universalização em relação ao surgimento da filosofia grega como implícito ao seu ideal de Paideia e a tomada radical para si deste projeto de universalização pelo cristianismo quanto a estes dois últimos desenvolvimentos nos remeteremos mais à obra de Mounier 415 WOLFF Hans Walter Antropologia do Antigo Testamento Edições Loyola São Paulo 1975 p 117 a 127 416 Ibidem p 120 Esta observação de Wolff diz respeito à perspectiva geral da fonte P Sacerdotal ao longo da tradição veterotestamentária e não se restringe somente à narrativa de Gênesis da qual tratamos aqui o mesmo vale para suas observações quanto à perspectiva de J Javista 149 divina417 E ainda Assim para o javista a história é uma sucessão mutável e causadora de mudanças orientadas para uma meta que como tempo oferece antes de tudo a possibilidade da vida doada ao homem Entretanto o javista usa poucas vezes a palavra tempo eth418 E acerca da fonte deuteronomista D conclui Wolff Os pregadores deuteronômicos refletem profundamente sobre a relação entre o passado e o futuro Estão interessados apaixonadamente no hoje419 Podemos dizer que é a imbricação destas três principais perspectivas do pensamento hebraico que vai configurar ao longo da história de Israel sua concepção para nós ocidentais mais afeitos à leitura do tempo pontual de inspiração grega estranha que se denominará escatologia Será justamente a tensão criada na própria experiência de sentir o tempo pelo judeu primitivo que o fará sentirse dramaticamente pertencente a uma história da qual faz parte e na crescente consciência da execução de um papel a cumprir insubstitível a história do descortinar de um propósito ao mesmo tempo transcendente em seus alcances últimos pois que se encontram no conselho de Iahvé e imanentes através dos eventos do passado dos quais a tradição se apropria e que pelos quais o indivíduo pode ver confirmado e atualizado em sua própria vida cotidiana Além dessa dramática individual a dramática coletiva do povo de Israel caminhará ligada à consciência da obrigação do cumprimento do seu papel como nação no projeto de universalização inscrito nas ações criadoras e libertadoras de Iahvé e a sua recusa em cumprir esse sentido do universalismo sotereológico salvífico restringindoo aos ditames dos quadros particulares de sua expressão cultural étnicoreligiosa Por isso nota Wolff É característico para o Antigo Testamento o fato de estarem lado a lado providências concretas e projetos utópicos cf por exemplo as leis dos escravos e o espelho dos juízos no livro da aliança com a lei da realeza no Deuteronômio e a prescrição do ano jubilar na lei da santidade Melhoramentos relativos provisórios e a esperança da liberdade plena não se excluem mas são elementos que devem estar unidos420 Essa tensão própria inserida na experiência do tempo esse não abrir mão do inusitado possível no confronto com o evento presente é a outra face da moeda que no Ocidente via cristianismo vai contrabalançar a face do 417 Ibidem p 117 418 Ibidem p 120 419 Ibidem p 121 420 Ibidem p 256 150 determinismo É com isso que se abrirá a possibilidade de um confronto direto com o que poderia advir como corolário próprio de sua sensibilidade e metafísica conservantismo letargia conformismo indiferentismo etc Tudo isso em relação ao sentimento de impotência e de nenhum vislumbre por parte da pessoa concreta existente de pertença a um projeto transcendente a ela e em relação ao qual na imanência possa nutrir o sentimento de poder influir de alguma forma sobre ele e por conseguinte ser parte integrante do mesmo E isto mesmo pelos dados que recebe da própria tradição que confirmam ao mesmo tempo sua dimensão criatural pó mas também sua dignidade pessoal de cocriadora imagem e semelhança de Iahvé421 agora como fato histórico que pela apropriação e seu legado deixado pelo pensamento cristão recebe uma propriedade heurística Como pudemos notar é justamente essa tensão própria na experiência do ser humano que procura se situar no mundo como pertencente e ao mesmo tempo diferente do mundo que se dá e para a qual queremos apontar na narrativa da criação de Gênesis na qual nos deparamos de modo impressionante422 num texto tão antigo com os constituintes fundamentais da noção de dignidade que será a partir de então nos níveis e desníveis da história tanto de Israel quanto da humanidade a base sobre a qual as inspirações mais profundas quanto ao anseio de elevação e libertação humanas poderão encontrar apoio Sempre presente e a atualidade está aí para demonstrar a sua força o movimento de personalização423 será a marca da inserção de um elemento de imprevisibilidade nas estruturas temporais engessadas e carcomidas que militam em sua estagnação confortável mórbida para a contenção deste que é o movimento mais próprio da pessoa424 421 É o estoicismo antigo e o neoestoicismo contemporâneo na esteira de Nietzsche que serão as posturas mais corajosas de confronto à morbidez latente dessa metafísica incontornável do gênio do paganismo e não do cristianismo como todavia entendeu Nietzsche que fosse 422 Creio que depois do que temos concluído esta minha expressão se justifique um pouco Creio também que com isso essa inspiração personalista pode ser vista como situada na tradição filosófica pois para Aristóteles a filosofia começa justamente com um espanto Talvez a salvação da filosofia para quem ainda acredita nisso e o personalismo de Mounier acredita esteja na capacidade de recuperarmos o exercício da capacidade de se espantar com as coisas no sentido de Aristóteles e da mística é claro e não no sentido do inusitado dos eventos da situação de risco da guerra de todos contra todos inaugurada e mantida pelas instituições do racionalismo liberal e burguês que torna a vida da maioria esmagadora das pessoas mais do que um espanto um inferno 423 Que nesta dissertação definimos pelo movimento de emergência e insurgência da pessoa na história e à luz do personalismo de Emmanuel Mounier 424 Esta é uma das compreensões que Emmanuel Mounier tem da inserção por arte do personalismo da noção de pessoa no âmbito da análise das estruturas Ver MOUNIER Emmanuel Le Persoannalisme Oeuvres III p 151 III1h O Ser Humano como Imago Dei A essa nossa tentativa de empreender uma aproximação ao pensamento hebraico e perceber o que se constitui como suas contribuições próprias para a elaboração de uma antropologia que repercute na história do Ocidente pela via da apropriação e que perdura como legado do cristianismo tanto para a história da teologia quanto da filosofia concluiremos traçando algumas considerações da noção de imagem de Deus relacionada ao ser humano que temos constatado no texto de Gênesis já referido e portanto ainda a partir do escopo da narrativa bíblica nomeadamente a veterotestamentária No salmo 856 está escrito Fizesteo no entanto por um pouco menos do que Deus e de glória o coroaste Destelhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste Este salmo deixa claro que o senhorio do ser humano sobre as demais criaturas é o sinal de proximidade que este mesmo ser humano guarda com Deus na verdade tratase do senhorio de Deus sobre a criação do qual o ser humano é chamado a participar e não pura e simplesmente do senhorio do ser humano Isso fica mais claro no relato da criação do Código Sacerdotal Gênesis 126 ss como já vimos em que a responsabilidade de domínio dada ao homem é expressamente remetida ao domínio do próprio Deus sobre sua criação enquanto responsabilidade que se relaciona ao fato do ser humano ser imagem de Deus Em relação a esta noção de domínio que se destaca da narrativa bíblica Wolff425 responde à seguinte pergunta De que modo a humanidade como imagem de Deus exerce este domínio da seguinte maneira A condição é um mundo desmitificado como o relato da criação o mostra no todo e em parte à maneira de polêmica contra os mitos do ambiente Afirmandose que tudo e cada coisa em particular que se encontra no mundo é criação de Deus para o ser humano que compreendeu isto não há nem uma terra divina nem animais divinos nem astros divinos ou outros âmbitos inacessíveis em princípio ao ser humano Todo o mundo desmitificado pode se tornar o ambiente do ser humano o seu espaço vital que ele pode modelar Para nós mas também para o Antigo Testamento isto 429430 Mas com sua afirmação central sendo a existência de pessoas livres e criadoras ele introduz no coração das estruturas um princípio de imprevisibilidade que desloca toda vontade de sistematização definitiva 425 Op cit p 215 152 parece um paradoxo Quanto mais conseqüentemente o mundo é visto como criação com tanto mais conseqüência podese falar da sua natureza de mundo426 Essa observação de Wollf como já vimos pode ser estendida em seu alcance ao próprio ser humano Segundo o Antigo Testamento quanto mais esse se reconhece em sua finitude em sua criaturalidade mais ele conseguirá atualizar em sua existência frágil e dramática o plano que melhor responde a suas características especificas Estas mantêm na base a sua vocação fundamental de cocriador a qual repõe em sua verdadeira perspectiva segundo o Antigo Testamento o sentido da dramaticidade existencial contida em seu sentimento de pertença e diferença ao meio ambiente natural Uma outra questão de pronto seria a seguinte Onde fica o mistério entendido como a noção declaratória do limite da ação humana em seu aspecto de domínio já que a criação fica desmitificada na concepção hebraica e que o autor hebraico não é desatento para o elemento de hybris que se insere na ação humana Fazemos menção aqui desta noção de mistério porque era ela também que no âmbito da mística advinda da teologia antiga e mitologizada das outras religiões especialmente aqui a do culto de mistérios grega configurava o elemento impeditivo e limitador da ação humana no mundo antes da vitória do racionalismo independente da filosofia427 Quanto a isso é bom lembrar que estamos tratando de uma concepção a do pensamento hebraico como já dissemos que insere um elemento de tensão em tudo graças aos constituintes próprios ao seu monoteísmo que como também já vimos estabelece um distanciamento ontológico do Criador em relação ao criado Todavia os ritos de purificação e a moral derivada são outras conseqüências cerimoniais desta noção fundamental de mistério ou seja de limite Um outro fator concomitante das religiões não judaicas é que esta organização da religião gera a gnose o conhecimento secreto acessível só aos iniciados e pelos meios da meditação regulada e do êxtase daí a conseqüente hierarquização do corpo sacerdotal sempre detentor e curador do segredo428 426 RAD G v Christiliche Weisheit p 151 Citado por WOLFF op et loc cit 427 JAEGER op cit passim 428 Enquanto que na Grécia a religião institucional e organizada em corpo sacerdotal existirá sempre em concorrência por outro lado nas culturas assíriobabilônica egípcia persa indiana chinesa e japonesa suas instituições e práticas de purificação convertidas como regras da vida moral vão alcançar um status mais independente e influente mais determinante sobre a vida política e as relações sócioculturais Sobre isso ver SERTILANGES AD Le probleme du mal lHistoire Aubier Éditions Montaigne Paris 1948 pp 19 a 101 ver também MOORE George Foot op cit vol 1 passim 153 Ora não obstante o culto de Iahvé comportar elementos rituais de purificação moral cultual e a conseqüente manutenção de uma casta sacerdotal escolhida especialmente para servir no Templo Êxodo 28 o elemento que fará toda a diferença no culto a Iahvé da religião judaica em relação às outras religiões será justamente este seu caráter histórico Quer dizer dependente dos eventos que como tais serão o modo de expressão dos conselhos de Iahvé que por outro lado permanecerão sempre inescrutáveis em seu caráter último mas que enquanto eventos históricos serão portanto abertos à interpretação Nesse sentido conjugarão em um mesmo nível de valor de verdade na busca de compreensão do sentido do evento por parte do intérprete tanto a ação individual do sacerdote do juiz do profeta quanto a experiência coletiva nacional situadas à luz de uma mesma tradição Esta conjugação este círculo hermenêutico entre o individual e o coletivo no âmbito mesmo da experiência religiosa em Israel vai ser em sua história sempre o estopim que acenderá a pólvora para a explosão de quadros unilaterais tanto individuais quanto coletivos que a si arroguem o título de possuidores da última palavra que sempre será apanágio de Iahvé guardado todavia em seu conselho inescrutável Não obstante a noção de mistério como expressão do limite ontológico da ação humana não é apanágio da misteriosofia grega ela está inscrita na essência mesma de toda manifestação religiosa Portanto também no judaísmo A questão é saber quais são as cores próprias que esta noção toma dentro da experiência religiosa humana qual é o seu locus e como se constitui as vias para a sua compreensão tanto em relação a Israel quanto em relação às outras religiões o que nelas determina a posição ontológica do ser humano no mundo Assim A natureza da administração humana do mundo e sua superioridade incondicional Gênesis 128 kibshuha subjugação total da terra designa uma ação na qual o ser humano com o emprego de força faz com que alguma coisa lhe sirva Josué 181 E prossegue Wolff a dignidade do domínio real absoluto é atribuído a todos os seres humanos grifo nosso A significação de dominar talvez tenha se originado da significação de pisar que descreve a ação de pisar o lagar onde se fazia o vinho Assim se exprime uma ação transformadora como se dá no lugar da preparação do mosto de uvas O ser humano está autorizado para transformações úteis semelhantes429 429 WOLFF op cit p 216 A noção de jardineiro enfatizada por Pannenberg parece ser mesmo a que melhor caracteriza o tipo de domínio que a narrativa de Gênesis parece permitir ao ser humano em relação ao mundo 154 Já dissemos antes que da Adam é um termo genérico para humanidade e Gênesis 126 conclui Eles grifo nosso devem dominar sobre os peixes do mar as aves do céu os animais domésticos todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra Há uma observação exegética que Delitzsch nota em relação à extensão do domínio permitido ao ser humano de acordo com a narrativa de Gênesis que estamos tratando e que queremos reproduzir Tratase da concepção mais restrita deste domínio que a versão siríaca430 apresenta em relação à concepção massorética431 esta mais extensa e que se vale de fontes mais antigas Para tanto o texto massorético trás e sobre toda terra e o texto siríaco e sobre todos os animais da terra Nota Delitzsch432 A mudança na expressão indica a diferença de significado e como o texto massorético é baseado sobre as autoridades críticas mais antigas a versão siríaca deve ser rejeitada como nada mais do que uma conjetura e o texto massorético deve ser entendido da seguinte maneira Deus determinou dar aos seres humanos por todos os lados ser criado a sua semelhança a supremacia não somente sobre o mundo animal mas sobre a própria terra e este acordo com a benção de Gênesis 128 onde o ser humano volitivamente criado é exortado a encher a terra e dominála enquanto que de acordo com a conjetura siríaca o domínio do homem sobre a terra seria omitido do decreto divino Mais à frente apresentaremos como se dão os limites desta dominação que na verdade se relacionam antes ao tipo de dominação ao como como já dissemos exigido em seu exercício num mundo totalmente desmitificado segundo a narrativa Bíblica em relação ao qual já apontamos o modelo do jardineiro como paradigmático Antes porém é necessário a essa altura iniciarmos uma demarcação de terreno no sentido de fazer um contraste que nos possibilite um melhor esclarecimento ainda quanto a 430 Chamada de Peshita quer dizer simples Tratase da versão da Bíblia usada na Igreja Cristã Siríaca escrita com um elaborado aparato crítico cuja tradução data de manuscritos escritos antes do século V sendo uma revisão da Antiga Versão Siríaca feita de acordo com os princípios textuais gregos 431 Tratase da versão cuidada pelos massoretas eruditos judeus que do século X ao século VI aC trabalharam nas academias talmúdicas que se encontravam na Babilônia e Palestina para reproduzir tanto quanto possível o texto original do Antigo Testamento Nessa intenção de salvaguardar a verdadeira Palavra de Iahvé eles tanto cuidaram dos manuscritos como foi através deles que a tradição oral foi garantida às futuras gerações Seu extremo cuidado com os textos fez com que em suas cópias os caracteres hebraicos tomassem a forma mais quadrada tal como conhecemos hoje Além disso os massoretas inventaram os chamados sinais massoréticos quer dizer sinais que pudessem garantir a pronúncia correta já que os caracteres hebraicos não os tinham originalmente e a condição de cativos e a diáspora eram situações que dificultavam a manutenção do idioma por parte das gerações exiladas 432 DELITZSCH op cit p 64 155 este nosso assunto O tipo de dominação que se desenvolveu a partir do séc XVI da nossa era e com base em sua própria afirmação de autonomia da religião só recebe algum fundamento no tipo de dominação colocado por Gênesis de uma maneira muitíssimo remota Para o racionalismo moderno a noção de mistério como já dissemos cujo o sentido aponta para a limitação ontológica da ação humana e a noção de superabundância433 como exuberância do ser como inacabamento essencial estão fora de cogitação e não lhe fazem nenhum sentido A racionalidade instrumental tem a intencionalidade de circunscrição dentro dos seus moldes para a dominação imediata e definitiva de um ser que se lhe apresenta sempre à disposição e que lhe aparece também sempre como totalmente cativo e passível de ser exaurido no próprio ato de contenção racional para a dominação Se não ou seja frustrandose essa primeira tentativa seguese um novo movimento mas na mesma intenção e intensidade de investida Por conta da diferença específica que queremos tornar clara na seqüência e que se integra nessa conexão à crítica personalista à modernidade entre o tipo de dominação advindo do pensamento judaicocristão e que passou para o Ocidente transmutado em sua deformação burguesa como progresso seria muito temerário deduzirmos a destruição do meio ambiente e a conseqüente e possível catástrofe ecológica que ronda os nossos dias justamente dessa ordem de Iahvé segundo o Antigo Testamento que via cristianismo transmitiuse como cultura no Ocidente como vocação ao homem de dominar Pois o que se coloca em pauta na perspectiva de Gênesis não é como já dissemos simplesmente o domínio do homem mas o de Deus ao qual o homem deve seguir como padrão enquanto cocriador Tratase em última instância de uma compreensão que a narrativa veterotestamentária permitenos já entrever mas que o kerygma cristão vai radicalizar em sua apresentação do ser de Deus definindoo como essencialmente amor434 Apresentamos a seguir a tradução de uma interessante análise do teólogo protestante Pannenberg sobre os problemas exegéticos dos termos imagem e semelhança tal como aparecem na narrativa de Gênesis que contribuirá para nossa compreensão sobre o tipo de domínio que segundo Gênesis é deixado ao ser humano O conceito de imagem zelem utilizado em Gênesis 126 s designa especialmente a imagem 433 Teremos mais oportunidade de expandir e esclarecer esta noção tão importante para a compreensão da ontologia personalista 434 1 João 48 156 dos deuses a estátua de Deus cf 2 Reis 1118 Amós 526 A expressão dmut ligada à anterior é um plural abstrato e denota semelhança A investigação exegética sobre a relação entre ambos os conceitos se inclina preponderantemente a considerar que não se pode estabelecer uma distinção de significado entre eles Se existisse tal distinção esta se daria antes no sentido de que dmut limita a correspondência entre a imagem e o representado que ela torna presente à mera semelhança A função da imagem é a apresentação do representado reproduzido na imagem Modelo desta função da imagem era a imagem do rei exposta em seus territórios no Egito segundo Werner H Schmidt ela representava o reinado do próprio Faraó enquanto este como imagem viva de Deus na terra encarnava o reinado divino de AmónRe A aplicação que o Código sacerdotal faz deste conceito à situação do ser humano na criação quer significar o seguinte o que em outros contextos é dito apenas do rei ampliase aqui a toda a humanidade Se a função de imagem de Deus consiste na representação do senhorio de Deus na criação nem por isso imagem e domínio podem sem mais ser identificados Se o conceito de imagem compreende a fundamentação e ao mesmo tempo também a limitação do encargo de domínio dado ao homem temos que qualificar a função de domínio antes como conseqüência da semelhança do ser humano com Deus Objetivamente em que consiste esta semelhança não está dito em Gênesis 126 s nem tampouco faz falta pois a intenção da expressão se centra na fundamentação da posição de domínio do ser humano No máximo talvez poderíamos considerar se o que se acrescenta ao conceito de semelhança não tem de ser explicado a partir de sua intenção dando portanto a entender que o senhorio do ser humano sobre a criação é semelhante ao do próprio criador435 É ainda Delitzsch436 quem nos dá mais esclarecimentos Sobre a imagem e semelhança os comentadores modernos têm observado corretamente que não há razão para a distinção traçada pelos Gregos e depois deles por muitos Pais latinos entre eivkwn eikón imago imagem e omoiwsij homoíosis similutudo semelhança pelo primeiro das quais eles supõem representar o aspecto físico da semelhança com Deus pelo último a ética mas isso pelo contrário os mais antigos teólogos luteranos foram corretos em declarar que as duas palavras são sinônimas e são meramente combinadas para dar mais 435 PANNENBERG Wolfhart Teologia Sistematica vol 1 Universidad Pontificia Comillas Madrid 1992 p 219 s 436 DELITZSCH op cit p 63 157 intensidade ao pensamento437 E ainda A imagem de Deus consiste portanto na personalidade espiritual do ser humano embora não simplesmente em unidade com a autoconsciência e a autodeterminação ou no fato de que o ser humano foi criado um Ego conscientemente livre pois a personalidade é simplesmente a base e forma da semelhança divina não sua real essência Esta consiste antes no fato de que o ser humano dotado com personalidade livre autoconsciente possui em sua natureza tanto espiritual quanto corporal grifo nosso uma cópia criatural da santidade e bemaventurança da vida divina438 Portanto e concluindo com Delitzsch a dominação do ser humano sobre a natureza é inquestionavelmente designada nele simplesmente como a conseqüência ou efluência de sua semelhança com Deus O ser humano é a imagem de Deus em vista de sua natureza espiritual do sopro de Deus pelo qual o ser formado do pó da terra tornouse alma vivente Alma vivente como diz Wolff traduz a palavra hebraica nefesh Assim nefesh significa em geral a pessoa individual o indivíduo em oposição ao conjunto do povo cf também Levíticos 198 223 Números 56 913 etc Não será por acaso que o israelita considerará a nefesh na qualidade de garganta que comendo e respirando satisfaz as necessidades vitais de cada pessoa em particular precisamente também como a designação apropriada de indivíduo439 Por aqui podemos ver o problema que é tentar estabelecer um locus uma localização dessa imagem e semelhança no ser humano cujo ser para o pensamento hebraico é sempre tomado em sua apreensão imediata como para usar o jargão filosófico uma unidade substancial uma integralidade Se a semelhança do homem com Deus constitui o critério de seu destino a dominar a criação segundo a tradição veterotestmentária pelo que é prévia a tal destino em que consistirá realmente esta semelhança com Deus Karl Barth em sua Dogmática da Igreja440 vinculou o plural do autoimperativo divino de Gênesis 126 Façamos o ser humano com a observação que se segue no versículo 27 sobre a criação do ser humano como na realidade tratandose da criação do varão e da mulher concluindo que o homem é imagem de Deus precisamente em sua condição plural de respectividade interhumana e concretamente em sua forma fundamental de distinção e relação enquanto varão e mulher 437 Não estaria isso dentro da intenção do chamado paralelismo hebraico 438 DELITZSCH op cit p 63 s 439 WOLFF op cit p 35 440 Apóiome no que segue sobre a analise de PANNENBERG Teol Sist op cit vol II p 221 e ss 158 Todavia observa Pannenberg esta posição de Barth não pode ser justificada exegeticamente Pois a menção da criação do ser humano como varão e mulher é uma precisão que se segue à afirmação de sua criação à imagem de Deus441 Portanto da seqüência de ambas as afirmações podese juntar que varão e mulher são de igual maneira imagem de Deus porém não que tal imagem consista na relação dos sexos Se quiséssemos com Barth conceber a relação dos sexos como réplica correspondente à relação trinitária de Pai e Filho teríamos que ver fundada como faz o próprio Barth e antes dele Agostinho442 na subordinação do Filho ao Pai também uma subordinação da mulher ao varão no entanto e pelo contrário a afirmação do Código Sacerdotal implica neste aspecto antes uma igualdade de princípio entre varão e mulher pois a semelhança com Deus se refere à humanidade sem distinção da diferença de sexos e portanto de igual modo a ambos os sexos Não obstante no pensamento cristão443 e isso já por conta de sua queda para o lado do intelectualismo grego a interpretação que se tornou clássica é a de que é a alma espiritual humana o que circunscreve a semelhança do homem com Deus Essa interpretação já é encontrada no livro da Sabedoria 92444 Filo de Alexandria em correspondência com o duplo sentido da idéia de sabedoria como preexistente Sabedoria 99 e como dom concedido ao homem referiu a idéia da semelhança com Deus por um lado ao Logos preexistente e por outro ao noûs humano como sua imagem445 Seguindo Filo a teologia cristã alexandrina também circunscreveu a semelhança do homem com 441 Da mesma forma como é o caso na criação dos animais à qual segue a precisão segundo sua espécie Gênesis 121 e 24 442 AGOSTINHO A Trindade Coleção Patrística Ed Paulus pp 374 ss A Escritura diz nesse texto que a natureza humana enquanto tal e que se compõe dos dois sexos foi criada à imagem de Deus Com efeito ao afirmar que Deus fez o homem à imagem de Deus acrescenta criouo homem e mulher ou segundo outra versão Criouos homem e mulher Como então ouvimos o apóstolo afirmar que o varão é imagem de Deus o que o leva a proibir cobrir a cabeça mas não a mulher à qual é preceituado o contrário 1 Coríntios 117 Creio que a razão está no que já disse ao tratar da natureza humana ou seja que a mulher é com seu marido a imagem de Deus de modo que forma uma só imagem a totalidade da natureza humana Mas enquanto é considerada como auxiliar do homem o que diz respeito somente a ela não é imagem de Deus E pelo que se refere ao varão o que se refere somente a ele é imagem de Deus tão plena e integrantemente como o é em conjunto com a mulher 443 E não bem entendida da teologia do Novo Testamento quer dizer dos textos fundantes e na verdade já como um afastamento de suas inspirações antropológicas mais afins 444 e com tua Sabedoria formaste o homem para dominar as criaturas que fizeste é importante notarmos que este livro é marcadamente influenciado pelo pensamento helenístico escrito em c de 50 aC o que já aponta sua forte ênfase intelectualista como será a de toda tradição que perfaz esse tipo de interpretação que se tornou clássica 445 Citado por PANNENBERG Teol Sist op cit vol II p 222 FILON De opif mundi 69 159 Deus a sua razão446 Esta concepção se impôs tanto no Oriente quanto no Ocidente através de Gregório de Nissa e de Agostinho447 Mediante as reflexões patrísticas sobre a imagem do Deus Trinitário na diferenciação interna da alma espiritual humana esta concepção chegou a deixar uma marca particularmente relevante no agostinismo da teologia ocidental A idéia de que o homem é imagem de Deus única ou primariamente por sua alma espiritual foi ressaltada explicitamente pela Escolástica Latina448 e a teologia reformada e pós reformada a teve por subentendida449 As modificações da concepção tradicional da imagem de Deus propostas pela teologia reformada todavia movemse no marco desta idéia fundamental No entanto seguese o fato de que esta idéia não responde à afirmação fundamental do Código Sacerdotal em Gênesis 126 s que se refere ao ser humano em sua totalidade sem fazer diferença entre corpo e alma e sem uma localização nem mesmo prioritária da semelhança com Deus na alma450 Em outras palavras repetindo o ser humano é visto na narrativa de Gênesis como uma unidade substancial um integralidade Isso não quer dizer que na constituição da antropologia do Antigo Testamento não haja um tratamento didático que compartimente a fim de compreensão o fenômeno humano A questão é não confundir os níveis da compreensão didática elaborada com os da apreensão imediata ontológica intuitiva 446 Ibdem p 223 CLEMENTE Strom V 945 ORÍGENES princ I 1724 447 Ibdem p 223 De hom Opif 5 MPG 44137C Em relação a AGOSTINHO podemos citar De civitate Dei La Cité de Dieu de Saint Augustin traduction nouvelle par L Moreau 4º ed Avec le text latin Paris 1899 XIII 242 Sed intelligendum est secundum quid dicatur homo ad imaginem Dei Illud enim secundum animam rationalem dicitur Devese compreender o que se diz acerca do homem como imagem de Deus Que se diz segundo sua alma racional Cf também de AGOSTINHO A Trindade Coleção Patrística ed Paulus p 449 Decorre daí o modo como apresentávamos a trindade da alma cf X11 1718 a memória onde colocávamos o que informa o olhar do pensamento a forma que reproduz a imagem impressa na memória o amor ou vontade que enlaça um a outro É pois ainda por esses três termos que cremos se insinuar a trindade da alma memória inteligência e vontade Agostinho nesta mesma obra já havia estabelecido e fecha sua definição de uma trindade criada intelectual e que prescinde do corpo em sua formulação como a que melhor refletia a imagem trinitária divina no homem 448 Obra citado por PANNENBERG op cit vol II p 222 AQUINO Tomás de ST I 936 cf também I 933 ad 2 449 Contra OSIANDER escreveu CALVINO Inst Chr Rel I 153 Quamvis enim in homine externo refulgeat Dei gloria propriam tamen imaginis sedem in anima grifo nosso esse dubium non est Ainda que de fato na parte exterior do homem resplenda a glória de Deus todavia não há dúvida que o próprio modelo imagem resida na alma CR 30 136 Se bem que a teologia reformada via na comunhão atual do homem com Deus a verdadeira essência de sua condição de imagem de Deus os luteranos tardios no entanto reconheciam que o caráter espiritual da alma era a raiz de sua condição de imagem de Deus em sentido estrito D HOLLAZ Examen theol acroamaticum I Stardart 1707 pars II 3 obra citada por PANNENBERG Teol Sist vol II op cit p 223 ou antes constituía sua sede Cf PANNENBERG HOLLAZ op cit p 18 q 13 450 Para maiores desenvolvimentos ver PANNENBERG Wolfhart Teol Sist vol II op cit pp 219 ss 160 Fizemos anteriormente referência ao secularismo moderno que se fundamenta com razão em sua emancipação dos elos que ligavam a sociedade enquanto espaço político com o poder religioso No entanto este mesmo secularismo não pode gloriarse de sua emancipação das amarras religiosas e ao mesmo tempo jogar a responsabilidade das conseqüências de sua absolutização da ânsia por bens terrenos sobre essas mesmas origens religiosas de cujas limitações diz terse libertado Pois o domínio exigido ao homem por Deus de acordo com que o temos visto a partir da narrativa de Gênesis e relacionado a sua imagem e semelhança com o próprio Deus da Bíblia não inclui portanto o direito a uma utilização e exploração da natureza como um todo até onde possa alcançar o seu domínio de maneira arbitrária e irresponsável Nesse sentido a função que compete ao ser humano do ponto de vista da Bíblia poderia ser melhor caracterizada como a função de um jardineiro que segundo o mais antigo relato da criação foi justamente o que foi confiado à humanidade um jardim451 No entanto recordamos que a ordem de domínio do ponto de vista do israelita não se torna nunca independente de sua visão histórica da revelação Tratase para o israelita primitivo de um tipo de domínio que se insere no campo de visão de sua compreensão de pertencente enquanto pessoa singular a uma nação que por sua vez enquanto pessoa coletiva tem uma vocação a ser realizada e cujos constituintes vão se esclarecendo e se descortinado na história no tempo revelação progressiva à luz dos eventos atuais que possibilitam sempre uma nova apropriação dos eventos passados e que preparam e perspectivam os novos caminhos de um futuro sempre aberto como chamada da criatura à cocriação da terra junto com o Criador quer dizer em consonância com o seu projeto inicial Além das conseqüências advindas da noção de jardineiro para a orientação da prática humana no cuidado com a natureza é impressionante repito o fato de encontrarmos neste texto antiqüíssimo de modo expressivo e sem dubiedade uma atribuição devida somente ao Faraó o dono senhor e deus do mundo452 relacionada a 451 Cf também com PANNENBERG op cit vol II pp 121 ss Gênesis 215 Tomou pois o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do Éden para o cultivar e o guardar 452 Com mundo queremos dizer o reino animal incluídos os seres humanos o vegetal e o mineral Ver MOORE George Foot History of Religions T T Clarck Edinburgh 1914 in two volumes vl 1 Religiões politeístas pp 144 a 167 161 toda humanidade ou melhor a cada um dos seres humanos singularmente tomados453 É claro que pela leitura da história de Israel com sua recorrente fuga desta sua vocação nacional de universalização que converge ao mesmo tempo para uma ampliação da consciência da dignidade singular e o que vai ser o tema das invectivas dos sacerdotes juízes e principalmente dos profetas comprometidos com a vontade de Iahvé como já dissemos percebemos que a noção de dignidade construída sobre estas bases foi sempre um problema para as autoridades judaicas quando eram lembradas de ter de levar em consideração as suas conseqüentes prerrogativas que temos apresentado aqui em suas tomadas de decisão A narrativa bíblica nos ensina e insere na história o fato de que não há verdadeira construção da universalidade fora de uma consciência paralelamente crescente da dignidade inalienável de toda singularidade humana III1i A Construção da Liberdade em Aproximação à Tradição Veterotestamentária A fonte Sacerdotal P em que Gênesis 126 se enquadra compõe a narrativa da criação da humanidade mas como já vimos enquanto uma releitura por parte desta tradição específica da tradição comum à luz dos eventos presentes O nosso objetivo agora é elencar alguns constituintes da noção de liberdade que se destacam da narrativa da entrega da Lei Mosaica que consta no Livro do Êxodo evento este fundante e marco decisivo da transformação de um povo recém saído da escravidão egípcia e errante nômade na nação de Israel Neste sentido interessanos observar uma inversão que a nosso ver se destaca da relação que a narrativa de Êxodo 20117 narrativa da entrega ao povo por Moisés das Dez Palavras de Iahvé estabelece entre o Prólogo e os Mandamentos Essa inversão não deixará de influir via apropriação do cristianismo sobre o modo de se entender a relação entre lei e liberdade que tem vigorado ao longo da história do Ocidente que tendo recebido uma ratificação num primeiro momento num segundo momento recebe por sua vez uma retificação pela filosofia moderna contratualista a qual tem 453 Relembrando a palavra hebraica para homem ou melhor ser humano é adam em Gênesis 126 e de 27 do Código javista em ambos no primeiro e no segundo relato da criação é um nome coletivo que justifica na seqüência por exemplo de Gênesis 126 o que eles dominem adam significa portanto humanidade e o nome próprio do primeiro ser humano criado 162 permanecido como o eixo principal em relação ao trato que a jurisprudência atual dá à questão da liberdade Dado o entrecruzamento destas tradições antigas na formação do pensamento ocidental e dado também o papel fundamental que o histórico tem no pensamento personalista como vimos antes consideramos necessário tentar aqui uma aproximação a estas fontes que se dispõem neste momento do nosso trabalho na forma da tradição escriturística veterotestamentária Mas também em vista da nossa intenção de reconstituir alguns elementos inspiradores do sentido que está na base da noção de dignidade humana que para nós é a noção que resume o complexo significativo da antropologia personalista Em linhas gerais tratase de perceber no texto de Êxodo 20 a inflexão quando da entrega da Lei ao povo que a noção de liberdade toma a partir da palavra de introdução Eu sou Iahvé teu Deus que te tirei do Egito da casa da servidão Em vista desta introdução o que se pretende destacar é o aspecto fundante da liberdade em relação à lei e não viceversa como tem vigorado de fato veementemente a partir da vitória do contratualismo liberal Aqui tratandose de uma liberdade absoluta da qual gozava o chamado homem selvagem454 no âmbito de uma vida a todo tempo arriscada à morte violenta com base na idéia reguladora de um denominado estado de natureza hipotético Em Êxodo a liberdade se antecipa à Lei como valor fundante e não como dimensão derivada quer dizer liberdade de acordo com a Lei O passar por alto este aspecto diferenciador é o que tem dado azo a todo juridismo a toda vontade de contenção do real pela lei positiva que é uma propensão que está na base de toda moção de caráter totalitarista Este aspecto da liberdade como valor não passou despercebido pelo 454 Confesso a minha dificuldade em entender o sentido dessa expressão homem selvagem ou melhor ser humano selvagem nos filósofos que lançam mão de uma suposta análise racional de uma hipotética experiência originária anterior à vida cidadã que eles denominam estado de natureza Mesmo que a antropologia a etiologia a biologia e a teoria da evolução ainda não tivessem conquistado o aprofundamento em suas pesquisas a que chegaram hoje no período do contratualismo moderno do séc XVII período em que em nome do rigor científico racional aplicado à teoria política se cunhou essa estranha expressão muito me impressiona o uso tão frouxo que estes filósofos racionalistas fazem aqui da noção de ser humano em relação ao que já se entendia por tal noção E não obstante esta noção sempre ter implicado na história da filosofia desde sua origem como sentido latente senão não seria possível sua evolução como sentido patente na reflexão posterior e mais claramente quando Sócrates lançou o problema antropológico justamente a negação de tudo o que os filósofos modernos contratualistas afirmam acerca dos constituintes do estranho e antitético par ser humanoselvagem E não obstante também a elucidação semântica pois os contratualistas continuaram tranquilamente usando a famigerada expressão antitética A eles a pergunta que considero oportuna seria a que os mesmos racionalistas gostam tanto de observar nos outros quanto ao rigor Tudo isso a nosso ver nos dá ainda mais a impressão do caráter arbitrário da fundação desse pensamento que quer se colocar ao abrigo do rigor científico e da objetividade em nome da autonomia depois de detratálas 163 personalismo de Emmanuel Mounier que sofreu a influência da axiologia de Max Scheler como vimos antes Para tanto encontramos antecipadamente como intuição religiosa esta mesma inspiração axiológica nesta primitiva narrativa de Êxodo 20 que nos servirá de base para traçarmos algumas aproximações quanto à compreensão da liberdade como valor aqui como advindas da experiência e da intuição religiosa mítica Em Êxodo também a leitura diacrônica dos eventos por parte do seu autor é clara Antes que uma preocupação lógicocronológica que se dá realmente no caso da antecipação da organização histórica da narrativa da Criação que vem antes da narrativa da libertação enquanto constituição da dignidade por ser mais originária e fundamental antes que da liberdade o que o narrador de Êxodo pretende é afirmar ao mesmo tempo uma interpretação correspondente das narrativas da criação já existentes e comuns ao meio ambiente semítico455 e depois com a inserção dos elementos distintivos da releitura do mito pela tradição javista456 criar o vínculo necessário para que se pudesse entender à luz da posse da experiência atual de libertação os elos desta com o evento anterior e de caráter universal contido na afirmação da humanidade cada ser humano como imago et similutudu Dei estabelecida pela narrativa da Criação de Gênesis457 Nesse sentido juntamente com a noção de dignidade já esboçada a de liberdade seria sua conseqüência e a pedra de toque458 para a constituição dos elementos que compõem e dão arranque ao movimento de personalização de que já falamos aqui do qual tentamos seguir a pista sinuosa nesse momento fundacional humano a partir da experiência religiosa registrada na história do povo de Israel Ainda na tradição hebraica antiga da narrativa bíblica à luz da experiência de libertação do Êxodo vemos uma configuração da noção de liberdade que nos impressiona 455 Parece que tendo como grande paradigma a Saga de Gilgamesh como já vimos 456 A partir de Gênesis 24b ss 457 Podemos perceber uma tendência contra a visão maniqueísta que todavia já se esboçava nas circunvizinhanças e que teve seu ponto culminante no dualismo religioso ou filosófico em matéria de bem e mal pela religião dominante da Pérsia o mazdaísmo Ver SERTILLANGES AD Le probleème du mal Lhistoire op cit pp 19 a 43 Ver também MOORE George Foot op cit pp 201 a 242 Essa posição antimaniqueísta é claramente expressa na afirmação inicial de Gênesis 11 de que No princípio criou Deus os céus e a terra Ou seja não é um demiurgo que cria a expressão do mal concretizada pela matéria pois esta parte da criação é justamente vista por Deus como boa ver Gênesis 110 e Deus viu que isso era bom 458 E de tropeço para todo poder despótico na história quando do seu movimento natural de emergência a pessoa passa a ser movimento de insurgência na história quer dizer revolução 164 pelo seu caráter tão atual459 Todavia sabemos segundo o narrador que é a doação da Lei por Deus a Moisés que é o ponto culminante da experiência da libertação de Israel É pela Lei que Israel se reconhece como povo como nação Mas o que nos interessa na narrativa de Êxodo sobre o Decálogo ou Dez Palavras é única e exclusivamente a leitura que se nos apresenta dele feita à luz da palavra de introdução Eu sou Iahvé teu Deus que te fez sair da terra do Egito da casa da servidão460 O impressionante é que só depois desta afirmação do motivo da liberdade manifesto expresso de Iahvé contra a escravidão e como que estando na base mesma da ação salvífica de Iahvé é que vemos seguiremse as Leis do Decálogo ou das Dez Palavras461 A questão é que a leitura da Lei à luz dessa introdução faznos ver de pronto a inserção do elemento de imprevisibilidade e de incontinência o qual temos notado como característica da compreensão diferenciada do pensamento hebraico quanto ao posicionamento dramático e tenso do ser humano no mundo em relação ao seu meioambiente no instante mesmo da proclamação da Lei antepondose ao espírito legalista e de juridismo sempre cioso de contenção das realidades vivas por seus construtos e racionalizações que foi posteriormente462 e ao longo da história de Israel463 também a marca da vontade de engessamento destas realidades vivas e transformadoras em favor da manutenção das seguranças de uma casta ciosa por manter suas tranqüilidades construídas sobre a injustiça 459 Ora é justamente esse caráter sempre passível de ser compartilhado que faz do mito antigo e das narrativas fundantes do tipo da do livro do Êxodo experiências históricas com as quais somos capazes de simpatizar de compreender 460 Êxodo 2012 Não obstante em minha pesquisa em biblioteca teológica constatei a grande falta de estudos sobre perspectivas abertas pela releitura da narrativa do Decálogo à luz de sua introdução Valernos emos aqui como apoio ao que nos interessa do pequeno livro de MUELLER Enio R Teologia cristã em poucas palavras Editora Teológica EST São Paulo 2005 pp 91 ss que por sua vez se vale de CRÜSEMANN Preservação da Liberdade o Decálogo numa perspectiva históricosocial 1983 1993 cf citação de MULLER na p 91 461 Aqui numa apresentação eloísta e em Deuteronômio 5621 numa recensão deuteronomista Todavia em ambas as apresentações constase esta introdução A forma primitiva que pode ser remontada ao tempo de Moisés devia ser uma seqüência de dez fórmulas breves ritmadas e fáceis de ser decoradas 462 Ao que os profetas principalmente Jeremias e Jesus Cristo de maneira mais radical vão ferrenhamente combater 463 E não só de Israel pois a sede de contenção juridista das realidades vivas parece ser a tara a tentação própria de todo juridismo de todo legalismo O liberalismo com seu abstracionismo insuportável tem se valido tanto dessa tara juridista para manter seus postos que quase a tem tornado natural misturandose ao nome de jurisprudência com o qual o personalismo de Mounier não confunde São os estudos do Direito Cultural e principalmente os de Georges Gurvitch que muito influenciaram o pensamento jurídico de Emmanuel Mounier que vão apontar as fontes vitais e a origem social e comunitária do direito como a que deu origem este o exemplo clássico ao direito trabalhista 165 A Lei do ponto de vista da Introdução seria a expressão declaratória em forma de manifesto por parte já e antecipadamente do próprio Iahvé do móbil fundamental de sua ação quer dizer antes e primariamente como realização da liberdade464 O mais interessante é que essa antecipação de Iahvé ao ser humano quem deveria ser o mais interessado é tomada por conta das indicações do resultado da experiência de quarenta anos de peregrinação do povo no deserto Esta já havia indicado claramente o medo da liberdade por parte do povo de Israel em seu recorrente arrependimento por ter que assumila sempre tendo como amparo o desejo de voltar à segurança do cativeiro Novamente somos remetidos ao caráter histórico do evento da Lei ou seja seu caráter de pertença a uma linha e conjunto de eventos que se nutrem de uma mesma inspiração qual seja a da realização da vocação da pessoa como imagem de Deus em sua auto afirmação de cocriadora no plano da sua expressão singular e coletiva e em seu movimento próprio de expansão na intenção de universalidade que essa vocação leva consigo e à qual toda pessoa é chamada a fazer parte Relembramos que não obstante o caráter inusitado e atual da constituição destes dois elementos já na experiência da antiguidade bíblica os mesmos não tiveram uma veiculação fácil na história do povo de Israel Basta uma leitura do Antigo Testamento para percebermos o paradoxo de que a afirmação destes elementos mais concretos foi sempre tema mais de um ideal do que de uma realidade de fato Mas eis que eles haviam sido ditos afirmados e a partir de então a história não poderia mais ser a mesma O professor de teologia Enio R Mueller em seu pequeno e belo livro465 onde aborda a mesma questão que estamos levantando observa o problema da falta na interpretação do Decálogo466 de se dar atenção à intenção original dos mandamentos467 não obstante o consenso na exegese bíblica de que as palavras do prólogo não só situam os Mandamentos num contexto sóciohistórico e também teológico mas que lhe dão as coordenadas para a sua interpretação468 Todavia Mueller referese à ausência de qualquer referência ao prólogo o qual já citamos que antecede a enumeração dos Mandamentos na 464 Vamos desenvolver mais a noção de liberdade que se destaca desta perspectiva fora da liberdade concedida pela lei que é sempre a tara da vontade juridista do liberalismo 465 MUELLER op cit pp 89 a 110 466 O que MUELLER circunscreve aos catecismos de Lutero ou seja à tradição teológica luterana à qual pertence mas que me parece fenômeno geral na interpretação das Dez Palavras 467 Op cit p 90 468 Ibidem p 91 166 interpretação dos mesmos que para ele resultaria numa entonação diferente da tradição ética que se formulou desde então apresentandoos desta vez enquanto preservação da liberdade469 Diz Mueller O Deus que faz exigências éticas é o Deus que antes libertou o povo da escravidão As exigências éticas então devem ser vistas como parte do processo de libertação470 A abordagem que fazemos aqui no entanto sem deixar de reconhecer a verdade das observações de Mueller firmase com efeito em algo que antecede a preocupação propriamente teológica deste autor Não temos dúvida de que a maneira em que perspectivamos o lugar do prólogo e sua relação com os Mandamentos aqui corresponde ao que já assinalamos quanto às descobertas que se deram no início do século XX no âmbito da fenomenologia da religião das quais tivemos a oportunidade de falar quando procuramos situar o pensamento de Emmanuel Mounier em sua evolução dentro da problemática da elaboração do que se havia posto até então como problema da relação entre fé e razão Nós perspectivamos a relação do prólogo com os Mandamentos dentro do que a análise fenomenológica da religião tem nos esclarecido quanto à essência da religião em geral O que nos parece haja vista que lançamos mão deste texto específico da tradição veterotestamentária ter se tornado patente e da maneira radical como encontramos no evento do êxodo e somente na expressão da religião de Israel tratase da expressão do incontido fundamental e irracional do movimento de liberdade próprio da essência criadora da divindade que o prólogo apresenta no âmbito da experiência humana finita e numa intenção de contenção de sua unilateralidade e falando aqui dentro da perspectiva do realismo integral de Emmanuel Mounier como liberdade sob condições471 Nesta conexão Rudolf Otto se expressa em sua análise do numinoso no Antigo Testamento do seguinte modo Se em toda religião já atuam os sentimentos do irracional e numinoso isto se dá principalmente na religião semita e mais ainda na bíblica Ali o misterioso vive e atua vigorosamente nas noções do demoníaco e angélico que como totalmente outro envolve eleva e permeia este mundo ele assoma com toda a força na 469 Título da obra de CRÜSSEMANN citado por MULLER op et loc cit Os mandamentos foram dados para a preservação da liberdade recém conquistada 470 Op cit p 96 471 MOUNIER Emmanuel Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 153 MOUNIER aqui situa a liberdade sob condições no âmbito de sua crítica à noção de liberdade em Sartre Teremos oportunidade de retomar essa crítica de Mounier quando tratarmos do tema da Pessoa e existência abaixo 167 expectativa final e no ideal do reino de Deus que em parte como temporalmente futuro em parte como eterno porém sempre como prodigioso e totalmente outro por excelência se opõe ao natural tornandose marcante na natureza de Iahvé e de Elohim472 E ainda A venerável religião de Moisés inicia então o processo cada vez mais intenso de moralização e racionalização geral do numinoso e de sua consumação como santo no sentido pleno Esse processo é levado a termo no profetismo e no evangelho encontrandose aí a particular nobreza da religião bíblica que lhe permite reivindicar já no estágio alcançado em DêuteroIsaías a categoria de religião universal Entretanto essa moralização e racionalização não é superação do numinoso mas superação de sua preponderância unilateral grifo nosso Ela ocorre no próprio numinoso e é por este abrangida473 É nesse sentido de autocontenção do numinoso que busca se comunicar no plano da criatura que o prólogo apresenta e reforça o que é o mais original na experiência mesma da liberdade humana possível que é chamada a imitar a liberdade divina mas em sua vocação de cocriadora sob as condições limítrofes na forma de leis impostas pela condição de finitude própria da existência humana Nesse sentido as Leis representam em seu caráter coercitivo a experiência de liberdade possível dentro do projeto divino à nação de Israel que compreende a sua vocação enquanto nação mas que também alcança o âmbito da vida individual como já notamos É por isso que só mesmo no caráter restritivo da Lei que aponta nessa sua intenção restritiva para a experiência original da liberdade divina como movimento incontido em seu elã criador que Israel pode encontrar as aderências necessárias para realizar sua vocação de nação eleita por Iahvé Vocação que compreende o sentido de universalização desta liberdade cocriadora imitativa da liberdade infinita de IahvéElohim Liberdade cocriadora que além da nação de Israel dever imitar deve ser tomada como sua vocação Tomada nessa sua tendência universalizante a vocação de liberdade cocriadora confundese nesse seu movimento intencionalmente universalizante ao elã próprio do movimento de personalização Movimento da pessoa que se experimenta nessa perspectiva teológica da questão como imagem e semelhança da divindade como já assinalamos e o que fundamenta sempre com o sentido da plena 472 OTTO Rudolf O Sagrado ESTE Sinodal e Editora Vozes São Paulo e Rio Grande do Sul 2007 p 111 473 Op cit p 113 168 anterioridade axiológica de uma experiência mais originária de liberdade incontida a liberdade humana possível 169 TERCEIRA PARTE A UNIDADE DO PENSAMENTO E UNIDADE DO DIVINO Aproximações à teologia e filosofia da Grécia antiga Deixando o cenário religioso semítico entramos num outro momento da história e da cultura humanas no qual vamos nos deparar com uma maneira diferente em que o movimento de personalização no seu anseio de emergência que pode se transformar em insurgência vai se dar Tratase de um outro fato inédito na história474 o do surgimento da filosofia ou mais especificamente da maneira como esse se deu na Grécia475 Todavia não pretendo aqui dar um tratamento exaustivo do tipo história da filosofia grega Tomos I II e III das correntes que compõem o pensamento dos primeiros filósofos gregos Minha intenção é muito mais modesta Pretendo apenas tocar em alguns pontos que me parecem pertinentes para o que tenho proposto para esta parte e que se vinculam à configuração e posição do religioso no pensamento personalista de Emmanuel Mounier Esta parte será bem mais reduzida que a parte relacionada anteriormente à narrativa bíblica e a explicação é obvia Por este tratarse de um trabalho de filosofia as questões aqui levantadas que se apresentam claramente vinculadas à tradição iniciada pelo pensamento grego serão retomadas a todo tempo dentro da perspectiva dessa tradição enquanto que as relações com o pensamento hebraico bíblico por não serem normalmente tão enfatizadas levounos a um maior tratamento tópico e específico a fim de destacar alguns pontos fundamentais que a nosso ver fazem também parte da tradição intelectual que 474 Conforme a rejeição personalista do ab ovo em matéria de cultura pois esta procura encontrar a originalidade do evento não no quanto ele se dá como isolado o que segundo o critério relacional do personalismo é sempre impossível mas no como se deu na forma em que se deu A filosofia relacional personalista procura essências que se apresentem sob a perspectiva da qualidade pois não existe para esta filosofia fatos isolados mas só fatos que nós isolamos O livro de COOPER David E As filosofias do mundo uma introdução histórica Edições Loyola São Paulo 2002 que analisa outras formas de pensamento além das ocidentais também nos ajuda a manter sob suspeita a originalidade romântica em matéria de criação cultural humana 475 Já ficou claro que estamos elegendo pontualmente estas experiências da humanidade porque são as que mais diretamente tocam a formação da cultura ocidental Mas já pudemos perceber pela citação anterior do maniqueísmo persa etc a dificuldade de nos atermos somente e especificamente a estes quadros Em matéria de cultura as coisas segundo a ótica personalista estão muito mais em relação do que o racionalismo raso separador quer dar a entender É como se pudéssemos falar agora dos présocráticos sem fazermos menção ao orfismo e aos mistérios falar da antropologia de Platão sem nos referirmos à noção de alma do orfismo falarmos do cristianismo sem nos referirmos ao judaísmo e ao pensamento grego falarmos do pensamento grego sem nos referirmos ao pensamento semítico e oriental falarmos da mística cristã sem nos referirmos ao neoplatonismo e à mística asiática ad infinitum 170 se desenvolveu no Ocidente e que se constituiu através da contribuição cristã que tomou como legado tanto a tradição judaica quanto a grega Portanto para os que já conhecem história do pensamento antigo significará apenas um relembrar Todavia indo além da simples rememoração pretendo destacar alguns aspectos do gênio filosófico grego que se apresentam a nosso ver como os constituintes também fundamentais além dos que já notamos em relação ao pensamento hebraico do que denominamos emergência e insurgência da pessoa na história ou mais precisamente movimento de personalização agora relacionados às especificidades do gênio grego em sua dramática histórico existencial Nesta parte de antemão afirmamos que não se tratará da manutenção do preconceito comum a Kierkegaard Nietzsche e também de certo modo a Mounier476 e parece que à boa parte da produção intelectual ocidental mas de uma tentativa de probelmatizálo Tratase do preconceito comum de se afirmar tranquilamene que os gregos pensavam o tempo como circular de que a noção de individualidade é cristã e não grega que a imagem grega para a perfeição é o finito e não o infinito etc Afirmações estas cabal e consistentemente contestadas em seu caráter arbitrário e unilateral pelas pesquisas mais atuais477 Todavia e no final das contas é sempre a indisposição muito demasiadamente humana de se ver na condição de repensar as concepções basilares sobre as quais formulamse as generalizações para a compreensão de eventos tão amplos e tão complexos quanto são os do surgimento de formas de vida na história o que acaba prevalecendo O caráter unilateral destas afirmações generalizantes e portanto simplificadoras tende a nos dar tanto o sentimento de segurança por sua vez bem frágil 476 Crítica essa que o próprio sentido da reflexão do animador de Esprit autocrítica do começo ao fim não somente nos autoriza a fazer como nos pede que seja feita 477 Com relação à contestação dos preconceitos citados me valerei dos seguintes trabalhos JAEGER Werner Cristianismo primitivo e paidéia grega Edições 70 Lisboa 1991 também do mesmo autor La teologia de los primeros filosofos griegos Fondo de Cultura Económica España 1978 MONDOLFO Rodolfo La comprensión del sujeto humano en la cultura antigua Ediciones Imán Buenos Aires e também El infinito en el pensamiento de la antiguidad clásica Ediciones Imán Buenos Aires também do mesmo autor O pensamiento antigo Vols I e II Editora Mestre Jou Universidade de São Paulo São Paulo 196465 Mas também de Michael ERLER e Andréas GRAESE Orgs História da filosofia Filósofos da antiguidade Vols I e II Editora Unisinos 2003 Giovanni REALE Dario ANTISERI História da filosofia Edições Paulinas Vol I São Paulo 1990 Frederico KLIMKE e Eusébio COLOMER Historia de la filosofía Editorial Labor S A Barcelona Madrid Buenos Aires Rio de janeiro México Montevideo 1961 INGE Willian Ralph Christian mysticism Methuen Co Ltd London 1899 CASSIRER Ernst Filosofía de las formas simbólicas Fondo de Cultura Económica México Vol I 1979 vol II 1998 vol III 1976 RIVAUD Albert Histoire de la philosophie Presses Universitaires de France Tome I 2a édition 1960 Des origines a la scolatique Tome II 1a édition 1950 De la escolastique a lépoque classique 171 quanto a posturas assumidas de uma vez por todas em relação a uma compreensão que é tomada sempre como um tipo de acordo comum tácito que se deve obedecer como se se tratasse de uma espécie de lei quanto a nos fazer esquecer os elementos ideológicos muito pouco científicos portanto que por se localizarem num fundo que já se tornou remoto pelas crostas do convencional queiramos ou não acabam estendendo o seu alcance segundo o personalismo de Mounier ao campo das relações ao campo da ética No fundo somos ainda muito ciosos da noção romântica de originalidade do gênio e de uma certa prevenção que se destaca da obra de Descartes quanto à originalidade como sempre um começar do zero ab ovo Se há uma originalidade possível no âmbito da existência humana finita segundo a perspectiva personalista ela só pode se dar no como conseguimos dispor de uma maneira nova criadora e pertinente o que há de vida e de afirmação da pessoa singular na história que as formas engessadas do tempo tendem a recobrir e paralisar por seus reumatismos478 Portanto na base do nosso tratamento das formas de vida na história se encontra a visão personalista que permeia a obra de Emmanuel Mounier de uma inversão do sonho romântico do ser de exceção Nesse sentido é em Kierkegaard que Mounier vai perceber um caminho a seguir apontando alguns ajustes necessários Não há em Kierkegaard uma moral de exceção no sentido nietzschiano479 pois cada um é chamado a tornarse este único grifo nosso A solidão não aparece aqui como um objetivo mas como um meio necessário para o recolhimento na multidão não se alcança a tensão necessária à existência autêntica Só o indivíduo pode receber conhecer e transmitir a verdade É necessário aqui com Kierkegaard escrever Indivíduo com I maiúsculo480 O que ele significava por este termo não é o indivíduo isolado e anárquico 478 Esta é a maneira pela qual Emmanuel Mounier e o movimento personalista vão se aproximar dos eventos históricos 479 A opinião de Nietzsche sobre o indivíduo segue uma curva sinuosa Zaratustra declara formalmente que uma mulher só pode estar grávida do seu próprio filho IV parte 2 Mas em Vontade de Poder ele interrogase sobre se o indivíduo não será simplesmente um erro mais refinado do que a espécie a unidade imaginária de um conflito de forças múltiplas ed Gallimard 162 Contudo afirma finalmente que nos faltam finalidades e as finalidades só podem ser os indivíduos L III 402 Simplesmente temos que nos precaver e não correr o risco de afirmar em princípio que muitos homens possam ser pessoas Muitos têm personalidade e a maioria não tem nenhuma L III 728 Eis porque finalmente Nietzsche apenas crê no ser excepcional que leva aos outros trazendoa consigo a humanidade por exemplo 1 IV 348 Nota de MOUNIER Emmanuel Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 112 480 Retomaremos a crítica personalista de Emmanuel Mounier à noção de indivíduo da modernidade e veremos o flerte que as filosofias contemporâneas ainda mantêm com este ente de razão apesar de proclamaremse tanto como sendo seus adversários como representarem o seu desaparecimento Por ora afirmamos que o I maiúsculo que Mounier pede para que se acrescente ao indivíduo kierkegaardiano 172 atual o indivíduo empírico mas o homem transfigurado em sua relação com Deus Ousar ser um indivíduo nesse sentido religioso é a mais alta significação do homem O acento não é posto sobre o isolamento do eu mas sobre a intensidade da relação o interesse apaixonado que ele sustenta com Deus e por ele com os seres e as coisas481 o demoníaco é o indivíduo que se fecha em si mesmo pois significa eo ipso a mentira enquanto que o bem é a manifestação482 O indivíduo não é a exceção é o extraordinário483 o que talvez não seja ainda inteiramente correto A grandeza não se designa na singularidade O heroísmo não reside no excepcional nem no extraordinário o herói talvez seja aquele pai de família em que ninguém repara484 O cavaleiro da fé apresenta muitas vezes visto de fora uma impressionante semelhança com o que a fé mais despreza o espírito burguês Aqui ainda surpreendemos Kierkegaard detendose à beira das suas próprias inclinações Dirá no Diário O mais importante é salvar numa vida de indivíduo o maior número possível de categorias humanas de ordem geral485 IIII 1 Os gregos Intróito A intenção precípua deste tópico é a partir de estudos mais atualizados da cultura clássica nomeadamente os realizados por Rodolfo Mondolfo e Werner Jaeger apresentar alguns elementos que corroboram com a perspectiva da leitura histórica dos eventos que comandada a visão global personalista de Emmanuel Mounier Nesse sentido tomar os seguindo a trilha mesma de Kierkegaard e procurando ir além da sua hesitação resultaria para o personalismo de Mounier na necessidade definitiva da afirmação do nome pessoa 481 Em nota de MOUNIER Postscriptum 97 482 Em nota de MOUNIER Le concept dangoisse 187 483 Em nota de MOUNIER Christ Ed Tisseau 191 484 Em nota de MOUNIER Ou bien Ou bien 571 485 Introduction op et loc cit Ou seja Kierkegaard sempre percebe a tentação de construir uma subjetividade fechada isolada mas não cai nela No entanto é necessário ver que a forte ênfase de Kierkegaard na transcendência como alteridade absoluta ainda apresenta um resquício da tradição intelectualista de desprezo pela concretude e isso não obstante o seu cuidado Quanto à noção de temporalidade fundamental para se entender a teologia do Novo Testamento Oscar CULLMANN observa a tendência à negação desta temporalidade que se encontra na noção kierkegaardiana de contemporaneidade cf CULLMANN Oscar Cristo e o Tempo tempo e história no cristianismo primitivo Editora Custom São Paulo 2003 pp 91 189 212 s Para CULLMANN parece que nem Karl BARTH fugiu a esta tentação de negação da temporalidade Isto por conta dos resquícios de queda à metafísica da tradição filosófica que se encontram em suas primeiras reflexões ainda muito marcadas pela influência de KIERKEGAARD Para isso ver CULLMANN op cit p 98 173 resultados desses estudos como base para se pensar dialeticamente a diacronia e a sincronia históricas Com isso quer se relevar na leitura personalista a sua contraposição à visão mais dominante de uma leitura da história em termos de oposições irredutíveis com maior ênfase ora na diacronia histórica ora na sincronia A primeira leitura todavia tem permanecido o modo mais comum de compreensão na contemporaneidade da interrelação das culturas que préformaram o Ocidente a saber a cultura judaica a grega e a que se seguiu como apropriação do cristianismo Isso em relação aos constituintes do tempo que retomaremos na segunda parte deste tópico Com relação a esta primeira parte elencaremos alguns resultados das pesquisas já mencionadas que também vemos seguirem no sentido de apoiar a visão tanto da ontologia quanto da antropologia personalistas da qual para este estudo sobre o pensamento de Emmanuel Mounier queremos ressaltar tanto o modo de ser relacional como sendo a experiência préreflexiva originária da compreensão ontológica personalista cujo alcance não obstante não deixa tocar em sua compreensão da antropologia Esta na perspectiva personalista vai se dar pela constatação de uma dramática dialética que apontará antes para um estado de tensão sem solução de continuidade no âmbito mesmo do surgimento da filosofia grega e que a elite dos filósofos posteriores a Sócrates resolve pela adoção comum do paradigma intelectualista Nesse sentido a partir desse momento da história grega às tensões profícuas entre intuição míticoreligiosa e pensamento reflexivo subjetividade e objetividade etc tomarão um tom prevalecente mas não único e nem definitivo de uma solução pelo viés conceitual noético486 É nesse sentido então que poderemos perspectivar melhor a compreensão que damos aqui tanto da apropriação dessas culturas pela tradição cristã quanto da sua contribuição específica sua originalidade não romântica quer dizer não como se tratando de um início ab ovo na formação da cultura ocidental O cristianismo não inicia do nada Um mundo antes dele já está criado Não só um mundonatureza mas um mundocultural O elemento diferenciador do cristianismo a sua originalidade estará na 486 Um exemplo disso é a discussão aristotélica com a academia platônica acerca do Uno parmenediano que Aristóteles procura perspectivar contra a teoria das idéias platônicas procurando fazer valer a singularidade concreta em sua apreensão mas que todavia permanecerá um problema expressamente gnosiológico Ver sobre isso SPINELLI Miguel O Um existe em si ou é uma exigência da razão in Caderno de Atas da ANPOF Primeira reunião da Sociedade Brasileira de Plantonistas Suplemento ao BOLETIM DO CPA N 10 Agostosetembro de 2000 IFCH UNICAMP pp 65 ss 174 promoção segundo o Novo Testamento em meio às estruturas enrijecidas de uma vida transfiguradora pelo amor agápe Agápe não sabe destruir mas não consegue deixar do mesmo jeito e intacto o que toca O início que o cristianismo vai propor na história na verdade é o da possibilidade constante de um recomeço transfigurado do que já existe em linguagem teológica escatologia neotestamentária Esta contribuição específica do cristianismo se dará então na forma que tomará a radicalidade de sua mensagem no sentido de fazer valer sem desmerecer as conquistas já dadas na esfera do pensamento pelo contrário apropriandose também delas487 por outro lado os constituintes da concretude da vida humana tanto em sua manifestação histórica cultural quanto existencial Isto o cristianismo o fez segundo os textos neotestamentários pela afirmação da universalidade e incondicionalidade do amor de Deus através do Logos encarnado e como corolário uma inserção em todas as estruturas compreensivas da concretude e do valor supremo de cada pessoa humana concreta singular enquanto decorrência de ser imagem e semelhança de Deus Estas atribuições na mensagem cristã tornamse possíveis e tomam seu aspecto definitivo histórico segundo o Novo Testamento como dissemos pela Encarnação do Logos A partir da Encarnação segundo o Novo Testamento a humanidade vê concretizada e resgatada numa vida histórica singular a de Jesus Cristo ao mesmo tempo e como ato definitivo evfapax ephápax de uma vez por todas tanto a singularidade da concretude humana como a universalidade de um conteúdo comum a cada ser humano na pessoa de Jesus Cristo que efetiva por seu ato sua vida e obra a imago Dei A partir deste ato singular histórico segundo os textos neotestamentários as atribuições de filiação a Deus com base na relação de amor e paternidade demonstradas pela vida de Cristo passam a ter fora do plano simplesmente dogmático conteúdo heurístico quer dizer histórico Segundo o personalismo será pelo fato da inserção da noção de pessoa no âmbito da formação cultural ocidental e como a noção representativa desta sua intuição fundamental que o seu valor heurístico será sentido como extrapolando o campo da 487 Isso é o que apresenta a conclusão sobre a possibilidade da apropriação do ideal de cultura e educação gregas pelo cristianismo primitivo que toma para si tal responsabilidade mas dentro de um projeto e perspectiva universalista de educação ou seja sem os preconceitos comuns xenófobos da cultura grega antiga Sobre isso ver JAEGER Werner Cristiansimo primitivo e paideia grega Edições 70 Lisboa 1991 Todavia já vimos que esse universalismo cristão vai se contrapor também à xenofobia também comum à cultura hebraica 175 simples discussão teológica por compor um conteúdo axiológico próprio para inserirse em todas as diversas áreas que compõem o conjunto e as possibilidades criadoras da cultura humana como uma contribuição especificamente cristã IIII2 A dramática interna ao ser do ser humano no alvorecer da filosofia grega Rodolfo Mondolfo488 após passar em revista as principais teorias acerca das épocas e continuidade na história da cultura sem deixar de tocar no suposto determinismo grego tanto quanto a questão da constituição da subjetividade489 que se atribui à Antiguidade clássica nos apresenta suas próprias conclusões resultado de sua extensa pesquisa e que convergem com as de Werner Jaeger Sobre o que temos chamado aqui de dramática existencial do ser humano que se sente no mundo que o antecede e no qual está inserido ao mesmo tempo parte da natureza e portador de uma especificidade qualitativa que o diferencia dela e que aqui perspectivamos em relação aos desdobramentos que ela toma na experiência existencial do grego antigo na forma que ela toma como surgimento do pensamento reflexivo filosófico Sobre isso Mondolfo diz490 que devemos acrescentar que ali as manifestações espontâneas da própria individualidade constituem o prelúdio e a preparação necessárias dessa manifestação refletida mais madura que é a introspecção Em nota491 Mondolfo acrescenta que esta consideração pode ser aplicada também à poesia de Píndaro cujo forte sentido da personalidade tem sido evidenciado por vários críticos particularmente por F Martinazzoli492 Segundo Mondolfo in loc este autor diz que na Nemea V de Píndaro o poeta não parte de algo objetivo exterior agones gnome mito mas da realidade do eu daquela realidade interior e pessoal que lhe é oferecida porque ele é um poeta493 Este autor segundo Mondolfo logo generaliza esta afirmação para toda a lírica píndara manifestando que antes de tudo é uma submersão que ele Píndaro realiza 488 MONDOLFO Rodolfo La comprensión del sujeto humano en la cultura antigua Ediociones Imán Buenos Aires sd p 67 s 489 Esse problema específico para o que nos interessa aqui será retomado abaixo em Pessoa e existência 490 Op et loc cit 491 Ibidem 492 Ibidem Cf a nota citada de MONDOLFO F MARTINAZZOLI Ethos ed eros nella poesia greca Firenze pp 335 ss 493 Ibidem Cf MONDOLFO MARTINAZZOLI p 346 ss 176 em seu próprio eu494 Este autor ainda segundo Mondolfo acrescenta que por seu egocentrismo Píndaro exalta o culto da personalidade com um calor apaixonado e subjetividade totalmente análoga à mais ardente lírica eólica495 Tudo isto não é ainda subjetivismo segundo Mondolfo porém se encontra em vias de sêlo No mesmo lugar nota Mondolfo que não há dúvida de que o olhar dirigido ao homem e seu mundo a tendência antropocêntrica ou antropomórfica segundo a feliz expressão de Jaeger antropoplástica que caracteriza os gregos não é ainda um subjetivismo porém é certamente o começo do caminho que desemboca nele e como tal há que se reconhecêlo e avaliálo Estas reflexões de Mondolfo se aplicam precisamente aos filósofos présocráticos em cujos fragmentos segundo ele podemos encontrar às vezes a partir de Anaximandro496 a afirmação enérgica da personalidade ou o alívio das paixões como também ocorre em Heráclito Todavia segundo nosso autor encontramos sempre e é o que ele julga o mais interessante a consideração do mundo humano como meio de interpretação do mundo natural mas sem que não obstante tenhamos o direito de atribuir a essa filosofia como o faz Joël um verdadeiro caráter subjetivista considerandoa antes filha do sentimento e procedente da interioridade subjetiva497 Sobre isso diz Mondolfo Jaeger e eu em oposição a Joël e a Zeller respectivamente498 temos posto em relevo a necessidade de vincular a filosofia naturalista com a reflexão anterior e contemporânea dos poetas jônicos499 Nesse mesmo sentido como nota nosso autor acerca deste mundo humano e o que Mondolfo já havia escrito em outra oportunidade500 derivam e se projetam na natureza juntamente com as idéias de Eros e da Discórdia das uniões e das lutas também os conceitos da injustiça ou prevaricação violenta e insolente e de sua expiação certa na ordem temporal pelo que se afirmará a lei eterna de justiça dike cuja introdução segundo Mondolfo permite também ao conceito de cosmos nascido da esfera dos fatos humanos 494 Ibidem MARTINAZZOLI p 335 495 Ibidem P 363 496 MONDOLFO La comprensión del sujeto humano op cit p 68 497 Ibidem 498 Ibidem Em nota de MONDOLFO Ver Paideia t II p 36 e ZellerMondolfo La filosofia dei Greci II Nota sulla filosofia presocratica processo di formazione carcatteri sviluppi 499 La comprensión op et loc cit 500Ibidem Em nota de MONDOLFO En los orígenes de la filosofia de la cultura Ediciones Imán p 23 177 transferirse à representação da natureza física e da ordem de suas vicissitudes fenomênicas Os primeiros cosmólogos segundo Mondolfo in loc já haviam se adiantado na realização dessa mudança As teogonias cujo caráter mítico consistia precisamente em extrair totalmente do mundo humano das experiências da vida das relações familiares e sociais união geração luta os elementos essenciais para a interpretação do devir cósmico representarão as relações entre os seres e forças da natureza como vínculos entre personalidades concebidas antropomorficamente É verdade nota Mondolfo que na filosofia naturalista este caráter mítico se atenua porém o cosmos sempre aparece com sua legalidade como uma projeção da polis no universo físico Assim por exemplo segundo nosso autor a aplicação cósmica que Anaximandro faz da lei de talião procede evidentemente de sua experiência acerca do domínio dessa lei no mundo humano e a mesma idéia de Anaximandro segundo a qual de onde procede o nascimento dos seres ali se realiza também sua dissolução conforme uma lei necessária B I501 e a de Heráclito de que tudo se engendra e tudo se destrói em virtude da discórdia B 80502 constituem segundo Mondolfo uma evidente transferência ao cosmos das experiências sociais e políticas das cidades jônicas que por um lado se engrandeciam com as diferenciações e as lutas intestinas e exteriores expandindose por meio de conquistas colonizações e intercâmbios comercias e por outro preparavam por este mesmo caminho sua dissolução e ruína finais503 Porém o humano contemplado não é ainda interioridade subjetiva nota Mondolfo mas a exterioridade objetiva do devir social cujo conhecimento claro antecede naturalmente ao da subjetividade interior Segundo uma frase de Feurbach citada por Mondolfo o ser humano quer dizer o outro o próximo é o primeiro objeto para o ser humano que só chega à consciência do mundo e de si mesmo mediante o conhecimento de seus semelhantes Assim como o olho segundo uma passagem de Alcibíades primeiro se quer verse a si mesmo tem de olhar outro olho também o ser humano para verse a si mesmo deve olhar outro ser humano ou antes como sugerem os Magna Moralia para 501 Ibidem p 69 502 Ibidem 503 Ibidem Em nota de MONDOLFO Cf a análise que realizei no cap I do meu livro En los orígenes de la filosofia de la cultura reelaboração do capítulo sobre o Problemi del pensiero antico ao qual remete W Jaeger The theology of the eraly Greek Philosophers 2 ed Oxford 1948 p 207 178 conhecerse a si mesmo cada qual deve olhar o amigo que é por assim dizer outro eu cap 15 1213504 Com efeito o caminho para a apreensão de si mesmo para a conquista da autoconsciência assim como da consciência moral conclui Mondolfo vai do alter ao ego Este processo de formação da autoconsciência com relação à psicologia e ética gregas arcaicas tem sido analisado e evidenciado também segundo Mondolfo por W Jaeger que observa que em Homero as ações dos heróis não aparecem como motivadas por uma análise de seus sentimentos e pensamentos interiores mas pela intervenção exterior das sugestões e atos de uma divindade505 e do mesmo modo a educação arcaica do espírito está confiada especialmente desde Homero até Píndaro ao exemplo dos heróis e personagens míticos506 e a consciência valorativa que cada um tem de si mesmo de suas obras e de sua areté se embasa na honra que recebe dos demais como o admite Aristóteles como nota Mondolfo em relação às deduções de Jaeger a respeito da orientação espiritual da maioria507 Todavia como podemos ver extrair um puro objetivismo destas manifestações seria tão unilateral como a posição que extrai por outro lado como Joël citado por Mondolfo o subjetivismo Para Mondolfo o mundo humano que os gregos contemplam e o mesmo pode ser dito de qualquer outro povo na fase arcaica de sua cultura é realmente um mundo objetivo exterior cuja consideração não equivale ainda a uma penetração consciente na interioridade espiritual a um reconhecimento e uma compreensão conscientes da subjetividade No entanto precisa Mondolfo que e já tendo anotado a mesma dedução em outro lugar508 também no conhecimento do humano objetivo que historicamente se desdobra com anterioridade cronológica e espontaneidade imediata cada ser humano interpreta e compreende os outros enquanto ele mesmo é um ser humano quer dizer enquanto interpreta ou advinha nas manifestações alheias os motivos interiores afetos e intenções paixões e exigências desejos e vontades que tenha já experimentado por si mesmo em situações análogas e enquanto os tenha experimentado 504 Ibidem Em nota de MONDOLFO Esencia del cristianismo cap IX 505 Ibidem p 70 Em nota de MONDOLFO Paideia I pp 83 ss da edição castelhana 506 Ibidem Em nota de MONDOLFO Paideia I pp 59 ss 507 Ibidem I pp 31 ss 508 La comprensión op cit p 70 Em nota de MONDOLFO En los orígenes de la filosofía de la cultura pp 27 ss 179 É certo que esta experiência interior do sentimento não chega a ser todavia segundo Mondolfo conhecimento verdadeiro nem é tampouco objeto direto do conhecimento que por outro lado é constituído pela atuação dos demais seres humanos O que corrobora por outro lado com a perspectiva personalista de conhecimento participativo possível pelas formas a priori da simpatia e pelo amor porque mais conseqüente com o modo de ser originário segundo o personalismo que é o da relação antes que de pura retenção cerceadora para a explicação racional Assim segundo nosso autor esta atuação depende sempre dos afetos e dos impulsos desejos e paixões que cada um conhece por sua própria experiência interior e aplica à interpretação e previsão das ações alheias Assim cada um lê nos outros o que sente dentro de si mesmo lê ou crê ler com certa evidência nos outros o que em si mesmo sente ou só tem sentido obscuramente no entanto ainda que só possa aprender a ler em si mesmo depois de haver adquirido o hábito de ler nos demais ainda que a consciência reflexa do ego tenha que formarse através da experiência do alter e ao conhecimento claro da própria interioridade tenha de preceder o das manifestações alheias não é menos certo segundo Mondolfo que o meio para interpretar estas manifestações é necessariamente o sentimento interior que se apresenta na forma de instinto obscuro e não de reflexão consciente Porém é sempre efetivo e tornase imprescindível para todo conhecimento humano509 Esta dedução de Mondolfo converge como dissemos antes para a compreensão personalista do modo de ser da relação como experiência originária que não é irracional só pelo sentido do preconceito pejorativo do juízo racionalista mas porque procura carregar um conteúdo mais fundamental da experiência de inserção do ser humano como ser no mundo que enquanto préracional ou seja préreflexiva não obstante apresenta nesse seu caráter necessariamente interrelacional os constituintes e as características de uma dialética sem solução de síntese que não obstante se apresenta a mais profícua ao mesmo tempo que a mais próxima do modo de ser originário da pessoa Em outras palavras o conhecimento humano em sua forma explícita começa como conhecimento objetivo exterior com uma espécie de psicologia behaviorista avant le lettre porém implica necessariamente uma subjetividade em ação da qual o sujeito tem pelo menos uma consciência instintiva e obscura A apreensão objetiva está condicionada 509 La comprensión op cit p 71 180 por uma consciência subjetiva510 cuja existência resulta por fim documentada e provada por aquela511 E se bem que seja verdade que não se deve confundir a contemplação do humano com uma orientação subjetivista explícita é necessário reconhecer igualmente que esta última existe na primeira como potencialidade implícita documentando uma capacidade e tendência espiritual que terá sucessivo desenvolvimento e manifestação aberta quando a acrescentada maturidade cultural o permitir e determinar512 Portanto segundo Mondolfo do fato de que os gregos desde os poetas teogônicos até os naturalistas présocráticos tenham alcançado uma representação e interpretação da natureza cósmica valendose de conceitos derivados do mundo humano demonstrase não somente que neles a reflexão sobre o humano tem prioridade em relação à contemplação da natureza como também e ao mesmo tempo que existe um subjetivismo potencial como tendência espontânea que se desenvolverá em condições adequadas A interpretação subjetivista de Joël segundo Mondolfo consequentemente na pode ser aceita na forma em que ele a apresentou ou seja na forma de um verdadeiro caráter subjetivista porém tampouco pode admitirse a tradicional caracterização contrária dos gregos como objetivistas baseandoa no naturalismo dos jônicos e outros físicos présocráticos513 Vemos que mesmo nesse nível da experiência individual enquanto relação subjetividadeobjetividade que não deixará de imprimir alcances na compreensão do histórico prevalece uma dialética profícua entre diacronia e sincronia sem que se possa em absoluto estabelecer noções de precedência estanque sem que se depare com dificuldades colocadas pelo outro pólo da relação Segundo Mondolfo podemos agora compreender plenamente o significado da afirmação de W Jaeger quando diz que o descobrimento do cosmos como legalidade das coisas não podia ter se realizado senão no profundo da alma humana514 Deste modo 510 Como podemos ver não se trata de um condicionamento lógicoontológico mas só lógico aqui para fins de esclarecimento Em matéria de psique segundo Emmanuel Mounier tudo é ao mesmo tempo causa e efeito Vamos retomar esta questão mais à frente 511 Tratase das fontes pesquisadas com base em amplo e diverso material por Mondolfo em sua pesquisa 512 La comprensión 513 La comprensión op cit p 71 514 Ver JAEGER Werner La teologia de los primeros filosofos griegos Fondo de Culrua Económica Mexi Madri Buenos Aires 1977 CapítuloV El origen de la doctrina de la divindad del alma pp 77 ss 181 Mondolfo por outro lado reconhece a possibilidade de uma conciliação parcial entre a posição de Joël e da Jaeger515 Em fim em um estudo de Mondolfo citado por ele mesmo acerca das Sugestiones de la técnica en las concepciones de los naturalistas presocráticos516 ele afirmava que não existia nos antigos filósofos gregos essa incompatibilidade entre a contemplação do mundo da natureza e a do mundo do ser humano e suas criações que Platão apresenta na anedota de Tales que por olhar as estrelas do céu não via à frente sob os seus pés o poço que os homens haviam cavado na terra e caia nele sob a zombaria de sua criada517 Ao contrário diz Mondolfo devese reconhecer que em todos os naturalistas présocráticos de Tales em diante o uso múltiplo e constante das sugestões precedentes das técnicas humanas para compreender a natureza e explicar seus processos confirma também nesse aspecto as conclusões de W Jaeger e as de Mondolfo acerca da projeção dos conceitos do mundo humano transferidos ao cosmos universal como meio para a interpretação deste518 IIII3 A dramática interna ao ser do ser humano no alvorecer da filosofia grega em relação a alguns dos seus alcances estéticos No outro volume que compõe a grande pesquisa e os resultados de Rodolfo Mondolfo519 quanto a aspectos da estética grega que ele vai elucidar a partir dos alcances da problematização da noção de infinito desde a formação do pensamento grego encontramos elementos que podem contribuir para a elucidação da perspectiva histórico hermenêutica do personalismo Esta diferenciandose das posições que elegem ou a sincronia ou diacronia históricotemporal na forma de oposições irredutíveis vai por sua vez se colocar fora do espectro tanto do relativismo quanto do idealismo históricos O personalismo de Mounier vai ver nestas posições não obstante o aparente antagonismo uma comum consangüinidade de fundo Ambas relativizam o histórico para absolutizar 515 La comprensión op cit p 71 516 Ibidem p 72 Em nota de MONDOLFO Vêlo em meu livro En los orígenes de la filosofía de la cultura 517 Vamos retomar esta anedota e especificamente quanto ao sentido de plésion próximo que Platão põe ali na boca de Sócrates no diálogo Teeteto e quanto ao que nos interessará in loc ressaltar sobre o sentido de próximo em relação ao de outro e semelhante em Pessoa e existência pp 741 ss 518 Ibidem p 72 519 MONDOLFO Rodolfo El infinito en el pensamiento de la antigüedad clásica Ediciones Imán Buenos Aires 1952 182 alguma dimensão conveniente ao seu sistema de idéias e o conseqüente esquecimento do conteúdo própriamente histórico Nestas ora o histórico é visto como uma espécie de volatilidade para refutar o dogmatismo histórico e aqui já não se fala mais de história como compondo qualquer densidade possível ora o dogmatismo histórico nega a total volatilização afirmando uma relativização na exata medida em que possa justificar como final da história a época que ele elege como sendo tal em relação às outras Geralmente essa época é a sua própria Como Kant que relativiza todos os sistemas de metafísica anteriores ao seu para absolutizar o sistema metafísico de sua razão onipotente ou como Hegel que relativiza as épocas para absolutizar aquela em que a sua filosofia aparece como Auguste Comte etc A hermenêutica histórica do personalismo hermenêutica da participação vai olhar a história como a forma pela qual a pessoa manifesta nas mais variadas expressões o sentido de sua emergência A história nesse sentido personalista não é vista como um objeto entre outros passível de ser apreendida em sua complexidade fenomênica por um conceito que se faça dela a priori Nem será também essa volatilização que para o personalismo é mais uma facilidade típica da época de decadência de um paradigma racionalista ultrapassado do que verdadeira escuta a esta voz da pessoa que ecoa por todos os seus eventos Como o modo de ser originário para o personalismo é o da relação a pessoa antes de pensar a história encontrase vivendo a história Quando a pessoa toma consciência do tempo histórico o que ela percebe é uma história dada que se lhe apresenta ao mesmo tempo individual e coletiva e diante da qual tem de se posicionar como partícipe É com a contribuição do universalismo cristão quer dizer da noção ampliada de uma história que de circunscrita apenas à predominância de uma cultura como era o caso da xenofobia comum às culturas antigas de Israel e da Grécia a pessoa ganha uma consciência de sua pertença cósmica como vocação a ser cumprida Nesse sentido o personalismo não pode ceder às facilidades do racionalismo ou do irracionalismo Sua maneira de entender a história vai procurar seguir este modo original de sentir o histórico da pessoa O personalismo vai procurar provar os valores que resistem ao tempo e que são verdadeiros testemunhos dessa emergência da pessoa ao mesmo tempo que o seu legado para outros tempos Estes valores para serem superados devem antes de tudo ser assumidos apropriados única maneira de avaliálos de provar o valor do valor pois para 183 o personalismo os valores não são entes abstratos entes de razão refutáveis pela lógica dos conceitos Os valores são realidades com densidade históricoontológica própria assumidas livremente pela pessoa aliás só são realidades na medida em que são assumidos livremente por ela A polaridade fácil e infrutífera entre sincronia e diacronia é superada pelo personalismo nesta sua maneira de perspectivar a história como lugar de provar os valores Não se trata de responder se os valores são entes substanciais ou se só são entes de razão lógicos520 Esta dicotomia para Mounier é rejeitada porque já representa um distanciamento do sentido mais próprio ao universo axiológico Os valores só podem ser revelados na medida em que são provados não se é livre porque se pensa a liberdade ése livre porque decidese viver a liberdade Todavia não se trata de pura decisão gratuita mas de uma decisão cujo ato sintético que a representa oé por uma escolha livre da liberdade Assim no personalismo a sincronia segue no sentido da consciência de minha própria historicidade como antecedendo ontologicamente à consciência de minha condição de ser histórico e em uma história da qual eu participo e que me provoca a uma participação A diacronia segue ao mesmo tempo nessa minha disposição de provar os valores e superá los pela criação de novos valores sem o que estes novos continuariam não desvelados Estes só poderão ser desvelados pela possibilidade de descortinos axiológicos mais profundos e densos na história porque enquanto tais só o poderão ser como afirmadores da pessoa nessa sua jornada axiológica pela qual ela também vai se desvelando em sua emergência é pelos valores assumidos que a pessoa se faz a si e ao mundo Nesse sentido logo no primeiro capítulo Mondolfo vai delinear a maneira pela qual se desenvolverá o seu trabalho Apresentamos aqui o problema Haveria uma falsa concepção segundo a qual o espírito grego se caracterizaria de uma maneira singular por sua exigência de limitação e de finitude contrariamente ao que parecia ser o sinal do espírito moderno todo ele impregnado do conceito de infinito O autor que Mondolfo cita e que também levanta e enfrenta esse problema Frank521 se empenhou para demonstrar a 520 Ver a exposição do nível de influência da axiologia de Max Scheler no personalismo de Emmanuel Mounier e alguns aspectos de sua crítica à axiologia de Max Scheler em LUROL Gerard Mounier I Gênese de la personne op cit pp 207 ss 521 MONDOLFO El infinito op cit p 13 Em nota de MONDOLFO No livro Plato und die sogenannten Pythagorer Halle a d Saale Verlag v M Niemeyer 1923 cap II Die Entwicklung des Begriffe vom Unendlichen pp 46 ss 184 ilegitimidade de tão abstrata oposição mas unicamente no terreno dos conceitos racionais e exatos das matemáticas e da astronomia E é a este respeito que pareceu a Frank segundo Mondolfo precisamente grego o conceito de infinitesimal assim também como o sistema heliocêntrico e a intuição da infinitude do espaço universal criações todas do pensamento helênico e que a ciência moderna não descobriu mais tarde por si só mas mediante a sugestão dos pensadores da Antiguidade Porém Frank nota Mondolfo não trata de forma alguma de excluir a possibilidade de que a característica essencial que diferencia a alma moderna da alma grega possa ser expressa mediante sua capacidade de compreensão do infinito Mas contanto segundo este autor citado por Mondolfo que semelhante expressão seja aplicada não ao domínio do conceito racional exato mas ao do sentimento subjetivo da sensibilidade e dos valores estéticos Todavia semelhante manutenção de uma cisão em uma mesma vida espiritual em duas esferas separadas tão claramente e independentes uma da outra ao extremo de que aceitem ser caracterizadas em sentido mutuamente antitético parece a Mondolfo inadmissível522 O tempo cronológico é a ação da apreensão racional para a contenção do fluxo todavia o racionalismo instrumental ultrapassa esse limite e quer conter também a duração O eternoretorno é uma crença que não pode ser nem refutada e nem provada Todavia mesmo a aceitação de um eterno retorno do mesmo como uma maneira do indivíduo se portar corajosamente diante da vida sem arrependimentos por um passado sobre o qual é impotente só restandolhe então o futuro não deixará num segundo momento de prover inelutavelmente uma metafísica É nesse sentido que a constante inflexão lógica no pensamento de Mounier vai considerar ingenuidade acreditar que a existência humana se bastará apenas por um ato de explicação como quer o racionalismo ou de pura afirmação por mais corajoso que seja Há razões que até a razão desconhece quer dizer sempre haverá razões Nesse sentido diz Mondolfo a determinação da ciclicidade enquanto reconhecimento distinto dos ciclos singulares dos ritmos parciais dia mês ano etc é atribuída por Damascio à necessidade subjetiva da alma de fixar em idéias quer dizer em termos descontínuos aquele movimento que é continuidade infinita porém a linha do desenvolvimento real deste movimento ainda em sua continuidade ininterrupta permanece 522 MONDOLFO El infinito op cit p 13 s 185 sempre como a linha do círculo que retorna infinitamente sobre si mesmo Círculo aqui não como símbolo da perfeição mas da infinitude do movimento bem entendido523 Todavia com esta figuração do círculo segundo Mondolfo eleita para representar a infinitude do movimento e do tempo o pensamento antigo se colocava na condição que Duhem segundo Mondolfo considera como sua característica diferencial mais ainda como sua posição irredutível frente ao pensamento moderno Ao pensamento antigo diz Duhem524 era estranha a idéia de uma perpetuidade que não consistisse nem na imutável permanência nem no incessante retorno cíclico únicas formas concebíveis para ele mas sim que consistisse por outro lado em um infinito tender a um limite aproximandose a ele sem descanso ainda que sem nunca alcançálo aquela perpetuidade cuja imagem em lugar de estar em círculo fechado percorrido infinitas vezes525 está na hipérbole que se aproxima sempre mais à assímptota526 sem confundirse nunca com esta A impossibilidade de repetição dos processos a impossibilidade estabelecida por nossa termodinâmica de que o mundo torne outra vez a um estado precedente o infinito caminho progressivo que todas as diversas teorias modernas da evolução afirmam para um termo ideal que não será nunca alcançado são diz Duhem segundo Mondolfo todos conceitos estranhos ao pensamento antigo e não podiam ser alcançados sem a intervenção do cristianismo527 Duhem e seus pressupostos como vemos claramente se mantêm na perspectiva da manutenção de uma visão mais diacrônica Duhem é também citado algumas vezes por Mounier com aprovação Todavia estes mesmos pressupostos mais relacionados à questão do tempo do que da subjetividade na obra de Mounier se mantêm indecisos Sobre isso faremos algumas observações críticas mais à frente à luz do próprio personalismo de Mounier528 523 El infinito op cit p179 524 Ibidem p 179 Em nota de MONDOLFO Le systeme du monde I 261 525 Ibidem E se deveria acrescentar como se viu a propósito dos atomistas na reta infinita que se prolonga ilimitadamente em direção tanto ao passado quanto ao futuro 526 Etimologia grega asúmptôtos o que não se reduz não coincide Houaiss Dicionário da língua portuguesa dá a origem francesa de asymptote 1683 e a seguinte definição Linha que se aproxima indefinidamente de uma curva sem jamais cortála mesmo que se suponha uma e outra prolongadas ao infinito com uma distância menor que toda quantidade finita determinada 527 El infinito op cit p 179 528 Ver capítulo Pessoa e existência Algo como Mounier versus Mounier o que na perspectiva dialógica personalista não tem nada a ver com a segurança exigida pelo racionalismo que só é seguro dentro dos seus castelos de conceitos concatenados fora da vida é plenamente aceitável num pensamento como o dele que tanto se coloca sob o modo de ser do artefato como no da perfectibilidade Mounier faleceu muito jovem e já 186 Deste plano de uma estética do tempo do histórico passamos para o plano de uma estética teológica Nesse sentido a deificação do éter infinito e sua exaltação à divindade suprema entre todas não representa uma posição pessoal do poeta Eurípides segundo Mondolfo por mais significativa que seja mas antes a expressão de toda uma corrente de pensamento religioso voltado para buscar em uma divindade infinita o objeto da mais alta adoração por uma potência universal Um documento e segura confirmação disso segundo Mondolfo é um fragmento de Ésquilo de evidente inspiração órfica no qual o poeta trágico vai mais além da identificação que tanto Xonófanes quanto Píndaro529 faziam do Deus único e máximo com a unitotalidade do universo530 e seguindo o costume órfico de proclamar o Deus supremo como princípio meio fim de tudo soma e continente de tudo o que existe declara compreendido nele não só todas as partes do universo mas também aquilo que há fora de tudo e mais além dele531 Zeus é o eter Zeus a terra Zeus o céu Zeus todas as coisas e o que há mais além delas532 grifo nosso Pergunta Mondolfo Quem pode ser aquele que existe fora de todas as coisas senão a infinita envoltura do universo aquele apeiron periéchon que estava também nas tradições do orfismo Sobre isso Mondolfo observa que por sua mesma infinitude assim o apeiron periéchon pertence ao conceito do Sumo Deus de maneira que frente à religião politeísta segundo Mondolfo que o neoclassicismo de W F Otto define como religião da forma ou seja da determinação perfeita que confere à divindade a limitação ainda quando esta tornase engrandecida pela transcendência há por conseguinte já na Grécia pré socrática também uma religião do infinito que não é menos grega que a outra que o exalta em sua infinita unidade com a qual o crente aspira misticamente a reunirse Religião do infinito segundo Mondolfo cujo sinal evidente aparece na especulação dos cosmólogos quando da unidade e da infinidade constituem os atributos de todo divino atributos se apresentando cada vez mais em vias de nos dar uma reflexão mais densa ainda e profunda Como ele mesmo diz começou a falar quando era tempo de aprender e nós hoje dissemos nos deixou quando era o tempo de dizer o que tinha a nos dizer 529 In loc segundo Mondolfo Fragm Inc 23 ed Puech 530 Ibidem p 280 Em nota de MONDOLFO Cf fragms 23 e 24 em Diels op cit cap II na 4 ed 21 na 5º Cf Aristóteles Metafísica I 5 986b e Teofrasto citado por Simplício Física 22 Diels cap II 21 A 30 ss 531 El infinito op cit p 280 s 532 Ibidem p 280 Em nota de MONDOLFO Cf NAUCK fragm Tragic Graec 70 Cf também KERN Orphic Fragm no número 21 dos Fragm Veteriora 187 igualmente essenciais e conexos entre si assim Anaximandro ao afirmar que o infinito é o divino imortal e indestrutível e isto é o divino imortal e indestrutível como o declaram Anaximandro e a maioria dos filósofos naturalistas533 e que é pecado toda separação em relação a ele pecado que deverá ser expiado na ordem temporal534 Empédocles ao manter a mesma mística condena da mesma forma toda cisão que transgrida a perfeita unidade e infinitude de sua divina esfera e ao exaltarse na ideal contemplação desta535 Por isso Bignone536 segundo Mondolfo tem razão ao colocar Empédocles entre aqueles um dos primeiros diz ele que tem concebido na Grécia a idéia de um deus infinito mais ainda não há razão alguma para considerar a este como um conceito quase estranho ao espírito grego Segundo Mondolfo a palavra da Bíblia os céus dos céus não podem contêlo537 haveria resultado ao ouvido de um grego menos estranha do que geralmente se julga e em todas as vezes que Ésquilo também fazia ressoar uma palavra similar Segundo nosso autor o divino não pode segundo uma concepção religiosa que se remete às mais antigas tradições gregas ser contido nos céus porque é ele por outro lado que os contém como disse Aristóteles Metafísica XII 8 1074 a pelos antigos na verdade antiqüíssimos pampalaiôn tem sido transmitido em forma de mito a nós posteriores que o divino abraça periéchei a totalidade da natureza E ao declarar que divinamente theiôs aqueles antigos tinham chamado eterno a este divino continente Aristóteles em De coelo I 9 279 b o define como continente do céu de todo o tempo e da infinitude Diante dessas afirmações vemos também que uma solução rápida pelo panteísmo é mais e antes de tudo uma facilidade racionalista do que uma verdadeira expressão da estética teológica complexa da Grécia arcaica Segundo Mondolfo não podemos por conseguinte com Diès538 reafirmar a antítese tradicional entre o espírito antigo e o moderno O espírito moderno alia naturalmente em conjunto os conceitos de infinito e perfeito O espírito antigo fazia 533 Ibidem p 281 Em nota de MONDOLFO ARISTÓTELES Física III 4 230 534 Ibidem In loc em nota de MONDOLFO SIMPLICIO Física 24 13 em Diels 2 12 9 Tenho explicado em outros trabalhos ZELLER MONDOLFO vol II Nota su Anassimandro En los orígenes de la filosofia da la cultura pp 41 e ss Edciones Imán as razões pelas quais não creio contra outros recentes críticos que tenha de ser repudiada esta interpretação Cf também em Empédocles o paralelo entre o erguerse da divisão no cosmos e do pecado na alma daímon segundo DIÈS Le cycle mystique pp 85 ss 535 Ibidem Fragm 28 536 Ibidem Empedocle Torino 1916 p 97 537 1 Reis 827 538 MONDOLFO El infinito op cit p 282 Em nota Le cycle mystique p 5 188 exatamente o contrário O grego essencialmente artista amava antes de tudo a beleza essencialmente realista ele definia a beleza pelas condições ordinárias da vida a apropriação a adaptação a medida Diante da imensidade indefinidamente aumentada ele não provava o horror sagrado o frisson do mistério e da poesia que deteriora o espírito moderno diante destas turbulentas prospectivas Ele exprimia o infinito pelo indeterminado e o indeterminado pelo inacabado quer dizer pelo imperfeito Se deveria aí haver no mundo qualquer coisa de divino não poderia ser para o grego sua grandeza mas a completude e a disposição de suas partes Todavia conforme Mondolfo que para os gregos fosse perfeição a completude e a proporção ninguém certamente negará porém que os gregos todos e sempre considerassem como incompletude e imperfeição a infinitude e que por isso a excluíssem do conceito da divindade como atributo contrário à natureza divina é uma asserção que os documentos citados até ali por ele não permitem que se mantenha Todavia Mondolfo acrescenta ainda um outro documento segundo o qual a infinitude se encontra de modo mais explícito identificada com a completude absoluta na qual nada falta tal como só a divindade pode possuíla É o fragmento sobre a divindade da Aletheia Verdade do sofista Antifonte539 a divindade não carece de nada e nada deve receber pois é infinita e sem defeito540 Mondolfo recorda como em outro lugar já fizera menção a propósito da eternidade que nem Aristóteles creu possível negar um atributo de infinitude a infinitude da potência sem a qual não saberia como explicar a eternidade da ação ao seu Deus ato puro e perfeição absoluta541 Porém se para Aristóteles segundo Mondolfo a infinitude da potência divina significava exclusão do atributo da espacialidade para o pensamento dos poetas teólogos que identificam Deus com o universo ou antes com a parte mais excelsa deste ela significava infinita grandeza E a afirmação desse conceito segundo Mondolfo que encontramos nos poetas do século V para os quais o infinito precisamente em sua 539 In loc segundo MONDOLFO Diels Frag 10 98 ed Sauppe 540 MONDOLFO El infinito op cit p 283 Em nota Mantenho com NORDEN Agnos Théos DIÈS e DIELS Fragm D Vors BIGNONE etc a interpretação já dada por SUIDA que nos conservou o fragmento não obstante as objeções de UNTERSTEINER I Sofisti Torino 1949 p 285 541 Ibidem em nota Cf Metafísica XII 1073 a e Física VIII 15 266 ss onde se demonstra antes que é impossível que uma força finita mova por um tempo infinito e que uma magnitude finita possua força infinita do que Aristóteles quer extrair a prova de que Deus ao qual pertence a força infinita não pode ter magnitude extensa 189 infinitude chegou a ser o divino por excelência não é nada mais que o desenvolvimento e ponto de chegada de toda uma tradição continuativa que desde as primeiras teogonias das quais Hesíodo no século IX é antes um compilador do que o iniciador segundo Mondolfo até àquelas do orfismo reconhece no imenso e no infinito algo de divino mais ainda segundo nosso autor o divino originário de cujo seio surgiram todos os deuses limitados542 Ora toda esta estética teológicotemporal grega não vai deixar de estabelecerse em seu alcance existencial Este se inscreverá sob a apreensão significativa do instante na verdade como o aborda Mondolfo no problema da infinitude do instante543 Segundo ele544 a pura imediatez do estado de consciência tal qual se apreende na sensação na carne não conhece aquelas limitações e distinções de medida que só mais tarde a reflexão vai sobrepor Atentos à consciência pura e imediata segundo Mondolfo neste instante pode haver tanto de plenitude espiritual e eficiência quanto e ainda mais se encontra disperso na vida inteira O instante é real como consciência pura pois bem a idéia de instante como consciência pura implica logicamente uma idéia do infinito Exclui com efeito a finitude em seu conteúdo Estas palavras citadas por Mondolfo são de Tarozzi em relação a quem Mondolfo remete ao seu estudo Richerche sullinfinito temporale linstante leterno presente545 As palavras deste autor e para o que importa nessa nossa inflexão conclusiva desse tópico Mondolfo acredita que poderiam ser aplicadas à afirmação epicuréia e estóica da infinitude do presente psíquico Mondolfo faznos notar também que outras afirmações em Tarozzi referentes a esta mesma infinitude do presente psíquico para Epicuro poderiam ter por outro lado aplicação ao presente físico aparecerá então a verdadeira infinitude do instante produtividade originária abismo e voragem profunda fonte perene546 Segundo Mondolfo a concepção epicuréia na qual estas palavras de Tarozzi poderiam adaptarse muito bem é aquela da summa vis infinitatis que em todo instante dá lugar à mesma infinitude de formas e desenvolvimentos de nascimentos e mortes que se desenvolve por outro lado em todo o infinito curso da sucessão temporária O instante se torna igual em sua produtividade e 542 El infinito op cit p 283 543 Ibidem pp 521 ss 544 Ibidem p 528 545 Ibidem in loc em nota de Mondolfo in Rivista di filisofia de 1933 546 El infinito op cit p 528 190 capacidade infinita de fonte e de voragem na duração infinita o que significa547 segundo Mondolfo a eterna identidade do universo infinito não como contraposição à infinita capacidade de geração e variação mas mais ainda como deduzida precisamente dela por sua mesma constante imanência em outras palavras segundo Mondolfo o infinito possest que Nicolau de Cusa e Giordano Bruno transferem logo da summa vis infinitatis à infinitude de Deus Na verdade segundo Mondolfo no capítulo conclusivo da sua obra duas infinitudes a parte ante quer dizer realizada no tempo passado e a parte post que deve se realizar no futuro duas infinitudes cuja soma o cristianismo sintetizará depois mediante o conceito de uma eternidade divina que encerra sempre em ato na unidade do instante e do imutável presente aquela dupla infinitude como posse simultânea sempre íntegra e perfeita de uma vida interminável em sua totalidade interminabilis vitae tota simule et perfecta possessio548 IIII4 Conclusão Como poderemos notar os pares complexos que se apresentam como constitutivos do fenômeno religioso e cuja tendência a um tratamento ora mais unilateral ora mais pela manutenção e visão da existência de uma tensão dialética entre eles em teologia vão gerar o que se convencionou chamar por sua vez grosso modo de heresia e ortodoxia Todavia este fenômeno tem o seu paralelo na história da filosofia quanto ao tratamento dos pares complexos que se apresentam dentro de sua alçada de tratamento dos fenômenos Dentre eles parece que o par unidadepluralidade é um dos mais instigadores e profícuos da história da filosofia Parece que é da compreensão do relacionamento deste par que a especulação filosófica dos antigos recebe seu impulso orientado primeiramente pelo problema cosmológico e por conseguinte do ser unidade ou diversidade estático ou móvel etc 547 O que Mondolfo já havia dito no capítulo 18 da parte IV de Lo infinito pp 508 ss 548 El infinito op cit p 570 In loc segundo MONDOLFO Boecio De consolatione philosophiae lect 5 pros 6 191 Uma questão fundamental na verdade e que faz parte da elaboração do conceito do divino na Antiguidade e que não pode ser visto neste momento fundante separado do problema ontológico é o surgimento da idéia de unidade do divino Obviamente seguindo uma trajetória paralela à que ocorreu no âmbito do pensamento filosófico vemos a passagem da explicação mítica do cosmos à explicação racional já como uma tendência no âmbito mesmo da experiência de se explicar o mundo em termos de racionalidade de se buscar entre pólos estanques em dicotomias racionais termos intermediários que do ponto de vista do seu papel na elaboração das conclusões não seriam nada mais do que conceitos de unidade ou ainda usando a linguagem personalista a busca da concretude Como pressuposto a esta busca da unidade dos conceitos há a idéia da totalidade que já é um conceito de unidade a totalidade seria a idéia que fundamenta a intuição que está na base da possibilidade de se relacionar o cosmos diverso com a divindade é a idéia do cosmos como expressão sensível do divino Quando a analogia entre a diversidade de formas na natureza que é explicada e mantida em paralelo com a diversidade dos deuses no pensamento mítico cada vez mais se apresenta também na relação entre a idéia de totalidade e do divino a afirmação da especificidade do divino enquanto unidade vai tomando uma forma mais racional ao que a tradição intelectualista vitoriosa perspectivará de modo unilateral como necessidade racional de unidade do pensamento549 No entanto não se trata apenas de uma questão de racionalidade Os exemplos de hipóstases no caso do um do dois do três estão na superfície mesma do solo no pensamento não só dos primitivos mas em todas as grandes religiões cultas O problema da unidade que brota de si mesma se converte em outra segunda entidade e que finalmente torna a se reunir consigo mesma em uma terceira natureza é um problema que pertence ao patrimônio espiritual comum da humanidade550 grifo nosso Se bem que é na filosofia especulativa da religião onde primeiro recebe esta formulação puramente intelectual no entanto a difusão universal da idéia do deus trino e uno indica que esta idéia tem que ter fundamentos emotivos concretos e últimos aos quais remete e dos quais continuamente volta a brotar de novo Brinton551 segundo Cassirer faz notar que a idéia da trindade se encontra em estágios completamente primitivos do desenvolvimento religioso no entanto 549 JAEGER op cit pp 27 s 110 119 etc 550 Quem diz isso é um dos maiores representantes da escola neokantiana Cassirer op cit vol II p 186 551 Cf citação de CASSIRER op et loc cit BRINTON Religions of Primitive Peoples pp 118 ss 192 busca uma explicação completamente abstrata deste fenômeno querendo deriválo de atos fundamentais puramente lógicos da forma e peculiaridade das leis do pensamento fundamentais552 Nessa conexão é interessante notarmos como o orfismo foi determinante na elaboração de conceitos importantes da filosofia grega o que como observa o filósofo personalista Paul Louis Landsberg553 se tem geralmente pouca disposição em afirmar Nesse sentido diz Werner Jaeger A teoria órfica da alma é um antecedente direto da idéia da natureza divina da alma ou espírito de Platão e Aristóteles ainda que estes tenham eliminado todos os elementos materiais que lhe eram aderentes Desde os tempos de Platão e Aristóteles a teologia filosófica tem completado suas provas racionais da existência de Deus insistindo na realidade da íntima experiência que a alma tem do Divino porém o desenvolvimento desta idéia remonta às doutrinas e cerimônias dos mistérios A regra de vida pitagórica nos recorda a bioj bíos vida da comunidade órfica ainda que não se pareça com ela em todos os detalhes e os pitagóricos têm além disso uma boa porção de peculiaridades próprias Parmênides Heráclito e Empédocles mostram estar familiarizados com a doutrina órfica da alma E quando Sócrates afirma que preservar a alma do homem do mal é a coisa mais importante da vida e que em comparação a isto tudo o mais deve ceder este fato o de ressaltar o valor da alma tão incompreensível para a Grécia de idades anteriores seria inexplicável se a religião órfica não tivesse dirigido a atenção daquele povo para a interioridade com aquela fé que expressa o lema desta bioj Eu também sou de raça divina554 Werner Jaeger que faz um estudo liberto das amarras do kantismo555 deixa claro um constante trânsito e intercâmbio entre as intuições religiosas e o momento inicial do fazer filosófico uma nutrição mútua na verdade que neste momento fundante a filosofia 552 A pesar da crítica de CASSIRER ao reducionismo do psicologismo e do empirismo sabemos em que sentido o seu neokantismo faz força para dar fundamento ao verdadeiro locus da unidade sintética das experiências Ao lermos a magnífica obra desse autor temos a impressão do seu êxito em desbancar as pretensões reducionistas do empirismo e da psicologia nas análises dos fenômenos culturais formas simbólicas mas que todavia por outro lado e no final das contas se apresenta como a estratégia de em nome da busca de um tratamento da esfera específica das formas simbólicas defender uma outra que está sempre aquém do objeto tomado um ausente presente que é o verdadeiro movente de sua reflexão 553 LANDSBERG Paul Louis Essai sur lexperience de la mort et Le problème moral du suicide op cit passim 554 JAEGER op cit pp 91 s 555 O que não é o caso de CASSIRER como já notamos em nota anterior 193 recebe das intuições religiosas e que vão determinar o efeito direto sobre a concepção do divino que se manterá ao longo do tempo como especificidade religiosa mas que para a qual a filosofia por sua vez é quem vai contribuir E no seu movimento próprio de crítica de busca de emancipação e tomando sua forma peculiar como pensamento autônomo Será na verdade o teste de fogo do fazer filosófico ocidental tomado como reflexão556 crítica fazer a crítica do arbitrário no religioso E assim neste sentido e ao mesmo tempo purificar o religioso de suas próprias tentações areligiosas de instauração do fundamento último a aprtir de suas intuições engessdas em doutrinas ou dogmas Pois isto segue na contramão do movimento mais interno ao fenômeno religioso que é o desvelamento Ou seja a experiência própria ao religioso em seu ato de relação com o divino no âmbito da finitude enquanto um movimento sempre inacabado enquanto devir Isso enquanto a reflexão crítica purifica a si mesma para não cair na mesma tentação de instauração de um fundamento último a partir de si mesma de suas próprias intuições as quais devem sempre ser avalizadas em seu caráter fugaz diante do mistério que permanece incontido na Divindade quer dizer no que seria o fundamento último Com isso chegamos à interessante conclusão de que enquanto a religião que aparentemente teria todos os motivos para ceder a esta tentação de instauração do fundamento último pela afirmação arbitrária dos seus dogmas muito humanos muito finitos é quem pela força própria de expressão do numinoso557 que a alimenta como o incomensurável o incontido é que pode nutrir a filosofia de forças para não cair na tentação da qual aparentemente estaria isenta pelo sentido do movimento próprio de emancipação e de autonomia do qual se vale em sua justificativa histórica Para encerrar esta seção é interessante notar dentre várias algumas observações de Emmanuel Mounier que nos ajudam a entender a maneira diferente de fazer filosofia que ele inaugura com o lançamento de Esprit e que podem nos ajudar na compreensão da superação proposta por sua reflexão do problema que nos toca aqui nessa conexão da relação entre fé e razão em sua formação no momento mesmo em que Mounier busca situarse diante do ambiente intelectual de seu tempo A primeira diz respeito à crítica ao 556 Tomando aqui a noção de reflexão em todo o seu rigor como é a marca da filosofia protestante do filósofo correspondente do círculo de Esprit e amigo de Emmanuel MOUNIER Pierre THÉVENAZ Para tanto ver THÉVENAZ Pierre What is phenomenology 4 basic essays by Pierre Thévenaz Edited with an introduction by James M Edie A Quadrangle Paperback Original Chicago 1962 557 Sempre nos valendo das pesquisas de Rudolf OTTO ver O sagrado op cit passim 194 dogmatismo da ciência discussão recente nos meios científicos e em relação a qual Mounier estava atento crítica à ciência pela ciência viva crítica científica contemporânea contra o totalitarismo científico Assim diz Mounier O debate ciência e religião parece o mais envelhecido de todos Foram os sábios por si mesmos aliás que se encarregaram de liquidálo no longo julgamento do valor da ciência em que determinaram as funções e os limites do conhecimento científico558 O dogmatismo da ciência exigia do método hipotéticodedutivo das ciências experimentais por sua vez uma revelação exaustiva da realidade e o monopólio de investigação de toda realidade cognoscível A ciência viva hoje renunciou à ambição de deduzir a natureza em sua totalidade e de abarcar toda inteligibilidade possível A crítica contemporânea pôs em evidência o aspecto incerto e vacilante dos conceitos fundamentais sobre os quais se apóia toda ciência particular conceitos de choque valência evolução a indiferença com a qual ela envolve sem as resolver as dificuldades que lhe advém do real Jacques Rivière observava a propósito das provas da religião o quanto se assemelhavam à explicação em psicologia que se dá sempre do mais claro pelo mais obscuro Mas este aí é também observa Meyerson o procedimento mais geral da ciência que se serve sempre de entidades mais ou menos fictícias energia potencial entropia força viva aceleração éter calor etc para explicar os fenômenos palpáveis por todos Em sua ordem o processo explicativo da ciência apresenta esta analogia com o processo tão desacreditado da reflexão religiosa ele multiplicava a obscuridade multiplicando entretanto a inteligibilidade559 grifo nosso Mounier observa que o grande problema é o quanto além de apenas uma analogia há na ciência em sua ação uma dependência justamente daqueles elementos que constituintes da religião são negados por ela enquanto afetando seus constituintes próprios que se circunscrevem a um âmbito relacionado na verdade a sua vontade de objetividade a sua vontade de instauração de um fundamento injustificado que com razão critica na religião mas que sem razão parece não querer fazer o mesmo em relação a si mesma 558 Basta lembrar as obras de Emile Meyerson Henri Poincaré Duhem Édouard Le Roy Gaston Bachelard Nota de MOUNIER Emmanuel Feu la chrétienté Oeuvres III p 575 s 559 MOUNIER Emmanuel Feu la chrétienté Oeuvres III p 575 s 195 Percebemos no texto anterior de Mounier escrito no inverno de 19391940 intitulado Responsabilités de la pensée chrétienne560 a percepção do diretor de Esprit da relevância das intuições advindas da experiência religiosa que como já vimos para a fenomenologia tratase de uma experiência autêntica do sernomundo cujas noções do ponto de vista da analogia apresentam o quanto essas intuições preparam o solo fértil sobre o qual a ciência pode plantar as sementes da sua independência e construir o seu caminho de autonomia Como já vimos em matéria de espírito e o gênio científico aqui se inclui o início ab ovo cartesiano é uma quimera Estendendo ainda um pouco mais estas observações podemos ampliar a observação de Delizsch quanto à criaturalidade do mundo561 ao próprio ser do ser humano quanto mais este se reconhece como criatura mais o seu caráter de ser humano e o seu modo de ser próprio o da finitude se evidenciam Enquanto é a dessacralização do mundo indicada no mito da Criação de Gênesis que libera o ser humano para cumprir a sua vocação de cocriador do mundo e por onde quer que haja mundo é também por outro lado este seu caráter solidário de criatura que compartilha com o próprio mundo que inspirará a sabedoria antiga na indicação tanto dos limites desta sua ação no mundo Tu és pó e para o pó voltarás como a qualidade exigida desta sua ação pelo elemento diferenciador intrínseco que o seu ser mantém em relação ao próprio mundo imagem e semelhança da Divindade Este elemento diferenciador é o que dramaticamente inspirará no ser humano o sentimento de uma experiência mais originária de não pertença absoluta ao mundo cuja angústia conseqüentemente gerada será sempre para o pensamento personalista o ponto de partida ou de uma ação criadora portanto profícua heróica e exigida sem exceção de toda pessoa ou para usar uma expressão favorita de Emmanuel Mounier de demissão562 de 560 In Feu la chrétienté Oeuvres III pp 569 a 594 561 Ver acima Capítulo I Segunda Parte Aproximações Veterotestamentárias na Construção das Noções de Dignidade Humana e Liberdade pp 105 ss 562 O volumoso e denso Traité du caractère Oeuvres II de Emmanuel MOUNIER escrito em grande parte durante suas detenções pelo Governo de Vichy que o tinha como sendo o principal promotor espiritual do movimento de resistência Combat vai tratar dos constituintes caractereológicos dessa demissão humana de sua vocação criadora No plano da singularidade em termos de recusa do real ou no outro extremo de vida marcadamente exteriorizada Ou enquanto atitude geral de indiferença em relação ao próximo e ao mundo Ou enquanto egoísmo disfarçado de altruísmo etc em seu aspecto coletivo ou político do qual Mounier vai tratar de maneira extensa e multifacetada em seus escritos políticos Essa demissão no plano da vida coletiva da civilização será vista por Mounier como uma espécie de reposição histórica cuja última tem sido a da modernidade burguesa que com suas instituições carcomidas e envelhecidas ciosa por perdurar transforma pelos hábitos que engendra na vida social através de suas instituições e suas leis a 196 recusa desta sua vocação por covardia e desejo de manterse seguro na instalação geral Esta dramaticidade própria de sua experiência originária no mundo como diferente e pertencente ao mundo é o específico de sua condição de criatura Mais especificamente sobre a influência da idéia de unidade divina na de unidade da natureza ou seja de uma idéia religiosa na história da ciência como ressaltam cada qual a sua maneira Cassirer e Jaeger como vimos antes observa Mounier Duhem tem mostrado através da história das ciências como não somente a idéia de Ser Absoluto mas a idéia de Mundo uno e consistente é formada na e pela religião563 A idéia de unidade portanto gera verdadeiros avanços no trato da humanidade com o mundo ambiente Já vimos como no pensamento hebraico esta idéia de unidade do divino que tem história no desenvolvimento da teologia do Antigo Testamento564 está intimamente ligada à dessacralização do mundo e portanto abertura do mundo ao trabalho transformador humano profícuo565 É pregado o Deus único que não tolera qualquer adoração subordinada ao mesmo tempo como demonstrou Duhem a ciência se liberta do espírito mágico e tornase possível uma vez assim garantida pela unidade de Deus a unidade do mundo566 grifo nosso Aqui somos remetidos à noção de unidade de Deus e unidade do pensamento da Grécia antiga como notamos antes Ou seja à constatação da influência do pensamento teológico como fundamental para a formação da própria autonomia do pensamento científico A relacionalidade que é para o personalismo a experiência originária por excelência mesmo que na história do desenvolvimento da ciência moderna em sua busca sociedade como seu dúplice da postergação do adiamento da humanidade desta sua mais urgente e elevada vocação criadora que para Emmanuel Mounier só pode encontrar o seu locus e as aderências concretas apropriadas para sua realização no cumprimento das exigências mais íntimas e mais originais advindas da vocação comunitária da pessoa singular como existência coletiva vida comunitária 563 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 160 564 O monoteísmo não é um dado acabado desde as origens do pensamento hebraico e nem algo que tenha impedido o sentimento que se estabeleceu por parte dos judeus de exclusivismo que como veremos abaixo Capítulo V Pessoa e existência Intermezzo moral personalista e moral hierarquista pp 701 ss é algo contra o qual a essência do monoteísmo caminha Nos inícios da história de Israel impera o henoteísmo ou seja culto a uma única divindade considerada suprema mas sem a negação da existência dos outros deuses e é só a partir da retomada da reapropriação constante pela reinterpretação do sentido dos eventos à luz da promessa interpretação que vai se estabelecendo como tradição e que a evolução do pensamento religioso hebraico que caminha paralela à consciência do caráter universal da revelação de Iahvé fora das restrições cúlticas e étnicas vai levar à noção de um Deus único Todopoderoso 565 Já vimos isso acima em nossa aproximação ao mito da Criação do Gênesis 566 Feu la chrétienté Oeuvres III p 699 197 por emancipação do pensamento religioso menos que na da ciência antiga como vimos tenha se perspectivado do ponto de vista do confronto da refutação foi só por meio deste confronto enquanto permaneceu frutífero quer dizer não como refutação racional que a ciência pode sempre mais e mais definirse a si mesma estabelecendo os seus próprios contornos à luz do que reconhecia como não sendo da sua alçada mas da de outro Nesse sentido e por outro lado o cristianismo contribui mais especificamente ainda como nota Mounier para a dessacralização do mundo da natureza quando libera a ciência do paradigma contemplativo em que se via estagnada por exemplo pelo preconceito grego em relação ao trabalho manual todavia mais pelo fato deste estar ligado à condição de escravo Vulgar dizia Sêneca é a arte dos trabalhadores que trabalham com as mãos ele é sem honra e não saberia vestir mesmo a simples aparência de honestidade E Cícero Nada de nobre jamais poderá sair de uma oficina ou de um atelier567 As idéias cristãs só corroerão lentamente essa mentalidade São Tomás justifica ainda a escravidão A oposição das artes servis às artes liberais se mantém e a palavra mecânica fica ligada a servil por um tipo de desvio interior das noções cristãs ela se reforça na oposição entre vida contemplativa e vida ativa A cavalaria depois a nobreza fazem dessa mentalidade uma de suas razões de ser A própria burguesia triunfante em tudo cantando a glória das obras mecânicas difunde a mística das mãos brancas nas classes modestas distribui um ensino secundário totalmente acetificado de toda atividade manual Um empregado de banco um professor um pequeno comerciante aí puderam tirar um horror à máquina mais vivo que aquele do trabalhador Este preconceito social arraigado sobre as gerações e conservado por muitas sobrevivências sociológicas marca ainda profundamente a afetividade do ser humano de hoje568 Este fato todavia posterior não obstante nos remete a análise de alguns elementos precisos do mito da criação do Gênesis o que procuramos fazer antes e esclarece um pouco mais e justifica a sua inserção num trabalho de filosofia E por fim para exemplificar as ressonâncias possíveis no plano das relações humanas no da intersubjetividade que esta superação do problema da fé e da razão problema que o racionalismo colocara como se tratando de uma fé contra outra o qual 567 Sobre isso Mounier nota La petite peur du XXº siècle Oeuvres III p 368 M A Aymard chegou a sustentar a tese Journal de Psychologie 1938 nº I Lidée du travail dans la Grèce archaïque de que o trabalho na Grécia não era desprezado como trabalho mas porque ele estava ligado à condição servil 568 La petite peur du XXº siècle Oeuvres III p 368 198 Mounier vai rejeitar recebe no personalismo de Emmanuel Mounier um caráter pelo qual entrevemos o alcance marcadamente ético que toma no ecumenismo real concretizado de fato na história intelectual ocidental pelo laboratório de idéias chamado Esprit Lendo uma correspondência bem interessante que Mounier endereça a um correspondente ateu notamos o seu sentido Tu tens o dever humano de me tornar mais cristão Eu creio no valor na necessidade da direção e não em um sacerdote que eu tenha podido tornar amigo e do qual tenha a necessidade de fazer entrar na barca Mounier Amigos descrentes que desejam o Cristo mais violentamente que tantos de nossos irmãos habituados vos sois os pobres despojados pelos fariseus da plenitude espiritual como os outros o são pelos ricos da segurança material vós sois o Corpo de Cristo vós também e se eu não contasse com vossa benevolente indulgência para me resgatar da corvéia eu não estaria bem seguro de que não teria de enxugar no outro mundo a sola de vossos sapatos569 A impaciência de Emmanuel Mounier para com todo dogmatismo sua sede de verdade e não vontade de certeza sua fé purificadora570 primeiro de si mesmo e não o fanatismo sua obsessão por presença e conseqüente abertura à voz do evento seu testemunho de uma ignorância previamente assumida o que o força à humildade no trato com os outros que pensam diferente dele mas sem subserviência e fora das dubiedades fazem Mounier procurar a verdade onde quer que ela esteja e nos andrajos em que ela se lhe apresentar571 Estas características tornam o ato filosófico de Emmanuel Mounier extremamente atraentes para os que buscam a meu ver o que também me serve como argumento para este trabalho de recuperação de sua reflexão hoje uma proposta que tem seu valor como indicação de caminhos para uma saída possível do impasse o ouou 569 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 580 Carta de Emmanuel MOUNIER a PierreAimé Touchard de 7 de março de 1936 570 Repetimos a observação de Denis de ROUGEMONT Penser avec les mains op cit p 44 s de que uma das coisas positivas do iluminismo foi sua crítica à superstição por outro lado nada que a verdadeira fé já não traga em si mesma e em sua própria autoafirmação Cf ROUGEMONT em nota em relação à crítica racionalista à superstição Ainda que a Reforma tenha feito mais que a Renascença contra as superstições herdadas do mundo antigo pela Idade Média A verdadeira fé é para a magia um adversário de um outro talhe que a razão loc cit 571 Como cristão Mounier afirma que a verdade para ele é uma Pessoa que é caminho ou seja que está em processo em vias e manufatura e vida quer dizer integrada à experiência existencial humana na verdade o seu ato de expressão mais integral Em outras palavras podemos dizer que verdade para Mounier não se trata de simples proposição lógica ou de argumento para refutação mas de presença de testemunho que implica antes como é o movimento próprio da verdade entendida como vida de uma atitude de comprometimento ou seja um ato que implica uma integração entre pensamento e ação Ver sobre a noção de ato em ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains op cit pp 200 ss 199 decisivo diante do qual a sociedade atual está colocada a decidir ou sua busca das verdadeiras veredas de sua mais autêntica vocação e o conseqüente assumir dos riscos em sua situação finita e precária mas na crença das potencialidades ainda adormecidas em sua finitude ou por outro lado em sua estagnação e permanência nos moldes necrófilos herdados pela sociedade envelhecida e caduca burguesaliberal em nome da vontade de instalação na segurança geral resignação neoestóica quer dizer sem Eros à metafísica do determinismo ao chamado factum 200 QUARTA PARTE Aspectos da Apropriação da Tradição Judaica e Helenística pelo Cristianismo Primitivo e Sua Contribuição Específica na Formação da Cultura Ocidental Segundo o Personalismo de Emmanuel Mounier Temos tentado mostrar que muito mais além do que razões pessoais não obstante elas estarem presentes no estabelecimento do diálogo lúcido fora da mentira que Mounier e sua equipe propõem fomentar como o projeto maior de sua revista Esprit Mounier pretende observar no cristianismo elementos que possam se integrar em sua filosofia personalista através de valores seus afirmados historicamente e que possam se prestar à prova Não há porque temer em falar de razões pessoais presentes pois elas para o personalismo se encontram por trás de qualquer texto filosófico seja de um crente de um descrente ou de um agnóstico Na verdade como já definimos o que é ato filosófico segundo o personalismo ou seja a unidade entre pensamento e ação quanto mais estas razões valores pessoais forem assumidas quer dizer deixarse tocar numa dialética tensa dramática e produtiva fora do esconderijo da quimera denominada pensamento objetivo mais se poderá avaliar a densidade existencial de sua afirmação como ato É pelo caminho desta prova histórica dos valores e não pelo da apologética e antes também de querer corroborar qualquer Confissão religiosa particular que Mounier tenta perceber o movimento sinuoso de emergência da pessoa a partir mesmo das projeções sociológicas que o cristianismo toma na história e mesmo frente a alegada vinculação aos valores da pessoa que estas projeções se afirmam como portavozes em seu pseudo espiritualismo Nesse sentido para Mounier tratase da proposição de um pensamento de inspiração cristã contra o engessamento do cristianismo que ele vê em suas projeções sociológicas na verdade antes representar uma resistência em parceria com o esquema do mundo burguês à pessoa livre e criadora que deve emergir nesse seu movimento próprio também de suas amarras institucionais Pensamento de inspiração cristã portanto que consequentemente militará contra o cristianismo institucionalizado no que ele oferece de 201 resistência ao que deveria ser por outro lado sua própria vocação apoiar e dar testemunho da pessoa criadora livre e responsável conforme as fontes e as origens históricas do cristianismo nos esclarecem e nessa sua dimensão própria quer dizer religiosa em que a pessoa também se expressa se manifesta É a partir desse pensamento de inspiração cristã que se deve perspectivar o lugar do cristianismo no pensamento de Emmanuel Mounier Como diz Paul Fraisse antigo colaborador de Esprit Mounier é profundamente cristão mas não de todo um apóstolo Ele descobriu no aprofundamento de sua fé o valor de toda pessoa humana Sua mensagem é então a de lutar pelo reconhecimento desse valor através dos caminhos tortuosos da história É necessário dizer que não somente cristãos de todas as confissões são encontrados em Esprit como também muitos agnósticos e judeus ateus e maçons Que seu pensamento sua presença sua palavra tenham atraído da esquerda muitos católicos certamente é verdade mas não para agir sobre o catolicismo e sim para estar com aqueles que combatiam por mais dignidade humana e estes não se encontravam do lado dos burgueses e dos proprietários572 É nesse sentido que temos de configurar a maneira pela qual Mounier vai colocar tanto a questão da noção de criação tipicamente judaicocristã quanto à noção mais tipicamente pagã de eternoretorno que em seu personalismo mais do que um problema circunscrito ao mito pura e simplesmente se perspectiva dentro de sua preocupação em ver nessas metafísicas onde se encontram os elementos de maior afirmação da concretude da pessoa humana e sua dignidade existência dramática em um mundo dentro do qual a pessoa se sente pertencente e ao mesmo tempo portadora de um elemento irredutível aos determinismos materiais Já dissemos que a ciência quando entra na problemática das origens tentando explicar com seus métodos é menos feliz do que o mito e a religião que nessa esfera ficam muito mais bem à vontade e conseguem oferecer um tratamento mais adequado a essa esfera problemática que se oculta em uma nuvem de mistério intransponível ao pensamento quantificador Portanto a ciência é menos competente nessa área religiosomitológica por excelência que por tratar das origens envolve questões últimas ligadas à existência profundamente dramática da pessoa em seus primeiros 572 Resenha de FRAISSE Paul Livres Thèses et Articles in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier numéro 59 Février 1983 p 20 ss sobre o livro Hellman John Emmnauel Mounier and the New catholic Left 19301950 University of Toronto Press Toronto 1981 357 p 202 momentos de ensaio reflexivo Por isso a necessidade de provar nessas metafísicas paradigmáticas incontornáveis para o personalismo nesse nível de tomada do problema existencial da pessoa finita no mundo qual pode oferecer os elementos de maior resistência à demissão abstrata que se encontra como tentação fundamental nos alcances éticos inelutáveis a que estas mesmas metafísicas dão fundamentação e expressam em suas apropriações históricas ou ainda como formas de vida já transformadas em explicação do mundo em Weltanschauung Assim em um texto em que Mounier tenta apresentar os elementos mais característicos do cristianismo primitivo em relação principalmente ao pensamento grego ambiente lemos que seria necessário tomar em ralação à pessoa uma primeira e grosseira aproximação Por exemplo a afirmação de um certo incontornável de existência de um certo valor de singularidade de uma certa independência inalienável em relação a todo coletivo para que possamos rapidamente perceber algumas das contribuições específicas do cristianismo ao pensamento e à vida espiritual do Ocidente573 Mounier como veremos em outro lugar574 de maneira menos confortável é certo ainda mantém o flerte com o preconceito tradicional que generalizava e ainda tende a generalizar determinados aspectos da sensibilidade grega e de sua metafísica os quais são tomados como determinantes sem nuances de tensão nas avaliações finais que geralmente são propostas como definidoras do seu espírito Todavia e seguindo as indicações de Mondolfo e Jaeger não desmerecendo o aspecto de verdade dessas tipificações clássicas de compreensão do pensamento grego mas não concordando com suas generalizações definidoras o que nos importa aqui nessa avaliação do cristianismo frente ao helenismo feita por Mounier é relevar os aspectos da contribuição cristã para a cultura humana em sua radicalização do que se encontrava segundo Mounier apenas esboçado apenas em germe na cultura helênica motivo de sua quase ausência Mas também frente à presença predominante dos outros aspectos que além de se apresentarem mais aparentes e predominantes tendiam a negar os elementos ligados à emergência da pessoa em proveito 573 Aqui e para o que segue MOUNIER Emmanuel Personnalisme et christianisme Oeuvres I p 729 ss O estudo de que nos valemos I La bonne nouvelle se encontra a partir da p 731 ss Este livro fora lançado primeiramente por Mounier em Inglês em dezembro de 1939 O título que Mounier escolhera primeiramente era Personnalisme catholique o qual ele mudou por perceber o risco de dar a um estudo pessoal uma cor de ortodoxia que ele não tinha autoridade de conferir 574 Ver abaixo Capítulo V Pessoa e existência 203 das prerrogativas coletivas e que o cristianismo parece ser o único naquele período a dar lhes voz da maneira enfática como o fez Além disso não entenderíamos por mais paradoxal e por mais estranha que seja a mensagem cristã o porquê de sua aceitação por parte de uma multidão cada vez mais crescente se não fosse o caso da mensagem cristã ter tocado numa dimensão profundíssima da pessoa Em outras palavras em sua dimensão axiológica E a tal ponto de fazer com que pessoas vindas de todas as camadas da sociedade arriscassem tudo até a vida empírica frente a toda uma estrutura social pesada religiosopolítica em nome desses novos valores descortinados e radicalmente enfatizados pelo kerygma cristão que lhes parecia abrir perspectivas até então imprevistas Nesse sentido Mounier entende que para a alma grega a aparição do singular no curso harmonioso da razão universal é uma infelicidade quase que uma falta do universo Nós precisaríamos seguindo Mondolfo que seria uma infelicidade para os valores predominantes na alma grega os quais colocavam o valor da singularidade em nível mais baixo Mas Mounier não deixa de notar na alma grega a singularidade que faz força para emergir Ali é a pessoa em seu movimento de personalização é a humanidade em seu movimento de individuação que ecoa mesmo num pensador representante da elite intelectual grega que não obstante nunca poderá ser tomado como a voz da unanimidade grega Platão entrevia uma bela sorte lançada ao ser humano à beira da morte que se interroga sobre o destino pessoal Mas ele deixa a prisão do Sócrates moribundo e esquecido dessa emoção de juventude por seu sonho contemplativo ele só garante a imortalidade às Idéias ou à Alma que além disso no hades se despersonaliza progressivamente a fim de assimilar seus modelos divinos575 Cremos que uma importante observação que podemos fazer dessa palavra de Mounier é uma que segue no sentido da que já fizemos antes com Wollf sobre a consciência no pensamento semíticojudaico da criaturalidade do mundo como o requisito pelo qual o mundo se torna cada vez mais o que ele deve ser ou seja mundo576 Vemos que em Platão uma noção que se apresenta como enobrecedora da pessoa como é a noção de imortalidade da alma acaba convergindo para o esvaziamento e a conseqüente aniquilação do que de singularidade havia em seu apelo inicial Essa noção de 575 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 731 576 Ver acima as nossas aproximações ao Antigo Testamento 204 imortalidade que não implica criação ligada em Paltão à alma humana para o pensamento judaicocristão só pode ser referida como prerrogativa específica como já vimos ao ser da Divindade577 Pois a alma humana juntamente com o corpo na antropologia judaicocristã é como tudo o mais uma criação Aqui portanto mutatis mutandis vale o que Wollf diz acerca da criaturalidade do mundo quanto mais o ser humano se conscientiza do seu caráter criatural em linguagem filosófica personalista de sua finitude mais ela fica livre das evasões metafísicas e consegue especificar e realizar o que há de mais intrínseco ao seu ser finito Segundo Mounier depois de Platão Aristóteles esvazia mais rigorosamente ainda o universo de todo valor pessoal578 O Deus de Aristóteles segundo Mounier é um Deus infinito que não pode nem conhecer essências singulares nem querer vontades particulares Ele não conhece nenhum ser por si mesmo não opera nenhuma providência ele assinaria seu destronamento se condescendesse em verter essa gota de sangue por mim em um canto da Judéia579 Mounier se pergunta em relação a Aristóteles se não seria bom desde então saber que não há real senão o individual justamente porque o individual tomado como tal não poderia ser nem objeto nem sujeito seja de conhecimento pleno seja de amor eleito580 Segundo Mounier não é surpreendente que o platonismo tenha edificado uma cidade mais integralmente comunista que ter ousado um comunismo trabalhando sobre a resistência ou sobre a praça de vinte séculos de sufoco cristão Não é espantoso que o aristotelismo que funda sua cidade sobre a amizade tenha acabado em apologia da escravidão581 Vemos assim que o intelectualismo grego nutrido por uma metafísica de negação da concretude quer dizer da pessoa mesmo em sua tensão por estabelecer alguma aderência aos valores inelutáveis da emergência da pessoa que forçam sua entrada no palco da história como singularidade se vêem colocados na economia geral dessas filosofias em segundo plano que como pólo dialético servirá apenas para criar uma tensão necessária na exata medida em que todavia sempre se resolverá na lógica interna abstrata de seus sistemas intelectualistas 577 Ver sobre isso EM CULLMANN Oscar Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã Editora Novo Século São Paulo 2000 Capítulo VIII Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos 578 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 731 579 Ibidem 580 Ibidem 581 Ibidem 205 É verdade que essa Razão impassível dos filósofos segundo Mounier encontra o seu contrapeso em uma expressão mais dramática da alma grega no teatro do que pelos Decretos surpreendentes do Destino Mas o Destino antigo segundo Mounier não é em face da razão imanente senão um outro poder impessoal e cego e se ele fere os indivíduos em sua individualidade é por acidente e sem intenção582 Aqui Mounier conclui claramente no sentido das atuais investigações sobre a cultura grega que como diz Mondolfo583 concebem a fonte de criação ligada antes à expressão popular que aos refinamentos acabamentos e sínteses intelectuais que se destacam da elite intelectual grega dos filósofos os quais compõem apenas uma pequena parte da população e não toda e que portanto não podem ser tomados como a voz da unanimidade cultural da Grécia antiga584 Já no helenismo do segundo século Mounier procura ver na linguagem plotiniana ainda que não estranha às influências cristãs o que pode haver de sugestivo Segundo o diretor de Esprit o neoplatonismo introduz certamente uma história no mundo Mas qual história Por um tipo de fraqueza que responde às seduções da matéria a alma do mundo se vê lançada numa queda que a fragmenta em almas individuais Mas essa queda diz Mounier é ela mesma muito pouco voluntária e temporalmente decisiva como fora a queda dos primeiros pais segundo o Antigo Testamento ela se assemelha muito a um abandono solicitado por alguma surda necessidade para dar nascimento a seres autônomos Segundo Mounier Plotino deu belamente um fundamento racional à individualidade pessoal em sua admissão da existência tanto de Idéias quanto de seres singulares todavia segundo Mounier seus indivíduos inconsistentes encarnam por sua vez muitas personagens aí reunindo uma memória múltipla na qual não há senão o desejo de que ela se despersonalize um dia desembaraçandose de suas passividades e remontando 582 Ibidem p 732 583 MONDOLFO Rodolfo La comprensión op cit passim 584 Realmente será nesse sentido que Esprit empreenderá todos os esforços por manter na revista um espaço de crítica cultural como também por parte de Mounier o estabelecimento de um grupo de artistas que pudesse se reunir periodicamente e discutir a situação do artista e da arte na sociedade de consumo Desde o primeiro número de Esprit em Octobre de 1932 na parte de Crônicas temos Chronique artistique André Déléage lInternational de lArt p 150 Cf Bulletin des amis dEmmanuel Mouiniere Numéro 58 octobre 1982 p 11 Todavia o projeto de reunir o grupo de artistas para tal tarefa foi sempre uma frustração para Mounier Em Mounier et as génération Oeuvres IV p 549 lemos numa anotação Entretiens VIII de Mounier de 27 de maio de 1934 seu descontentamento quanto a uma nova tentativa de reunião com os artistas Reuni os artistas sextafeira à noite Segunda tentativa depois dos malogros de 1932 Malgrado os esforços de Gromaire Goerg Humeau Labsque Bazaine para engatar eu sentia diante de mim uma enorme massa de pessoas imóveis que esperavam afiveladas sobre o seu individualismo 206 além da falta primitiva que é a origem de toda individualização Em Plotino a consciência individual segundo Mounier e mais profundamente que a consciência a nossa memória e a nossa duração não são senão relaxamentos da contemplação impessoal Segundo Mounier não há salvação em Plotino senão para quem retorna a essa contemplação Mas como esta não está propriamente falando neste universo escorregadio seu retorno além do pecado não será uma conversão um ajuntamento e uma transfiguração suprema de todo seu ser atual como o que se inscreve na noção de metánoia neotestamentária mas um êxtase uma evasão imersa do tempo para o atemporal585 Segundo Mounier tais eram os maiores pontos de nivelamento da consciência pagã quando o cristianismo veio trazer a cada ser humano tomando um a um a sua mensagem de libertação586 A partir daqui Mounier começa a elencar alguns dos aspectos dessa mensagem cristã desse kerygma De início ele observa que essa mensagem não começou como as escolas morais da Antiguidade por uma filosofia dirigindose aos doutos mas por um apelo lançado a cada um metanonte mudai o coração do vosso coração Dii estis por meio do qual cada um de vós se tornará um Deus587 Essa convocação cristã segundo Mounier atacava a alma pagã em dois pontos sensíveis Os gregos tropeçavam duas vezes quando abordavam a alma do homem uma primeira vez na multiplicidade das almas que lhes parecia fragmentar no espaço a pura essência do pensamento uma segunda vez na origem das almas que lhes parecia uma ferida no curso da eternidade588 A partir do kerygma cristão perguntase Mounier Como exprimir a partir de então por meio de uma dedução pura o que tem por origem uma escolha uma crise um ato de amor589 Essa pergunta se relaciona fundamentalmente ao sentido do ato de criação ex nihilo como descrevemos em nossa aproximação à narrativa de Gênesis no qual nos deparamos com um ato criador que compreende o contingente e o absoluto quer dizer a experiência possível e a impossível demonstrada pelo escândalo de um tempo criado logo finito de uma ordem universal suspensa em uma psicologia divina e elevando 585 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 732 Em nota de MOUNIER Cf Jean GUITTON Le temps et leternité chez Plotin et S Augustin Boivin 586 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 732 587 Ibidem p 732 s 588 Ibidem p 733 589 Ibidem 207 o individuo infinitamente acima dos valores passageiros da Cidade590 Por aqui vemos também se delinear os contornos da noção de ultrapassamento cara ao personalismo Vemos suas fontes e suas raízes numa noção de transcendência que implicando um verdadeiro movimento realmente propõe ao ser humano as possibilidades reais que o personalismo vê como incontornáveis e que se encontram calcadas mesmo na base de todo projeto de ultrapassamento que o ser humano tem de assumir diante de si mesmo Essa radicalidade do ultrapassamento da pessoa segundo o personalismo de Mounier pode ser percebida diante do exemplo da Polis que Mounier nos dá Ou seja diante do exemplo da instituição mais representativa do gênio criador grego da Antiguidade que se sobrepunha a qualquer prerrogativa do indivíduo591 que perto das prerrogativas da polis era ínfima ou tendia a nada Por outro lado serão justamente estas prerrogativas da pessoa em seu ato de autoultrapassamento o que o kerygma cristão inaugurará no meio da história pelo tipo de transcendência que propõe implicada como e imitando a própria transcendência do Deus cristão criador único em relação a todo criado como já vimos em nossa aproximação à narrativa do mito da Criação em Gênesis Citamos em nota a obra clássica de Coulanges cujo interesse no que corrobora com a presente questão está principalmente na ênfase que o autor dá sobre a relação entre a religião e as instituições públicas que prevaleceram na Antiguidade o que também nos possibilita uma melhor compreensão da situação dos cristãos primitivos dentro de uma realidade em que religião e vida pública praticamente não se dissociavam Isso também nos esclarece porque os primeiros cristãos como uma das acusações da qual também Sócrates foi vítima eram culpados de ateísmo Por aí também percebemos o grau de influência do cristianismo sobre a noção e o esforço por se criar o chamado espaço laico uma noção primordialmente de inspiração cristã que para o personalismo como veremos ainda está por se fazer 590 Ibidem 591 A obra clássica que não obstante seu hegelianismo de fundo apresenta os constituintes da cidade antiga que determinaram em sua evolução histórica o seu caráter prioritário em relação ao indivíduo é COULANGES Fustel A cidade antiga Martins Fontes São Paulo 1998 principalmente o Livro Terceiro A Cidade p 123 208 Todavia sobre esta questão do espaço laico como uma idéia originalmente de inspiração cristã e que destoa de certo senso comum muito aceito sobre o assunto uma palavra de esclarecimento Antes de tudo essa constatação histórica já fora delineada pelo teólogo Henri de Lubac à qual Emmanuel Mounier faz referência Ouvres III passim Assim com o que segue não queremos nem afirmar e nem deixar subentendido que o espaço laico pertença ao cristianismo Quer dizer seja propriedade dele ao modo do proprietário pelo qual a burguesia do século XVI o toma para si é continuado pelo liberalismo histórico e mantido por sua atual suposta nova versão chamada neoliberalismo Esta burguesia que se dilui hoje em dia segundo Emmnauel Mounier como espírito como espírito pequeno burguês e que ganhou espaço e foi vitoriosa pela mentira do emplacamento do seu pensamento no Ocidente como autônomo em relação ao domínio religioso e que se apresentou como um golpe de oportunismo histórico aproveitando a vaga deixada pelo ocaso da decadente Idade Média592 O que pretendemos é antes de tudo problematizar uma posição muito aceita de que a experiência de um espaço comum e de todos realizado na história política ocidental seja apanágio da modernidade burguesa ou mesmo de qualquer outra ideologia política ou religiosa Quer dizer como possível fora da ação pessoal livre e responsável Não obstante em vista disso procuramos apresentar as fontes de sua verdadeira inspiração e apontar alguns dos principais eventos que a nosso ver compõem seus primeiros delineamentos seus esboços Pois para o personalismo o espaço laico tomado sob o modo de ser do artefato está ainda por se fazer na verdade ele é como dissemos uma tarefa a ser realizada exclusivamente pela pessoa livre e responsável que a coloca para si mesma como tarefa sempre inacabada Isto é o que temos procurado apresentar desde o início deste estudo seguindo então a inspiração personalista que se destaca da nossa leitura da obra de Emmanuel Mounier Esta como também temos dito nos apresenta a adoção da experiência originária como o modo de ser da relação A partir dessa intuição personalista de maneira insuspeita aos próprios escritores religiosos podemos entender o alcance significativo heurístico 592 Isso ficará mais claro com o decorrer deste nosso estudo Todavia ressaltamos que o oportunismo será a partir de então a marca de toda política neoliberalburguesa com seus joguinhos de partido suas polêmicas rabugentas intramuros etc partes ingênitas do jogo viciado de sua alardeada democracia parlamentar representativa 209 mesmo em todos os sentidos destas palavras das afirmações de cunho religioso ao mundo da intersubjetividade cívica para o bem e para o mal como tem sido o caso de toda a produção cultural humana Como já dissemos homo artifex est mas também homo perfectibilis est Assim as experiências religiosas humanas são partes integrantes de uma experiência autêntica da pessoa no mundo em sua luta pelo real Tanto quanto são as experiências que se especificam por parte também da pessoa nessa sua luta como ensejo para a realização da vida política da vida coletiva da vida comunitária Portanto aos teólogos e filósofos de plantão não queremos afirmar nem que a essência do kerygma cristão seja a política e nem que de sua proclamação soteriológico revolucionária inédita pela maneira radicalmente universalista como se deu ou seja dirigida a toda e qualquer pessoa concreta sem distinção e já afastando aqui então o substancialismo do universalismo moderno burguêsliberal não tenha decorrido o sentido de uma liberdade que extrapole o âmbito da fé religiosa propriamente dita e alcance como sentido doador de um conteúdo possível o âmbito da vida na cidade Na verdade a história do Ocidente é uma grande prova de que isso tem acontecido Portanto este primeiro ensaio de um espaço laico afirmado pela primeira vez na história ocidental contundentemente pelo cristianismo primitivo quer dizer a partir de um âmbito da experiência religiosa humana mesma é aqui considerado não obstante como uma contribuição para uma tarefa mais ampla e ao mesmo tempo específica Mais ampla enquanto tarefa humana histórica de constituição pela busca criação e adoção por parte da pessoa livre e criadora no mundo dos valores atrelados à essência mais específica e que corresponda à vida coletiva à vida política pela qual a pessoa também busca sua realização Na verdade este fenômeno do intercâmbio frutuoso que aponta para o sentido de uma autêntica interdisciplinaridade antes da letra tem sido mais comum na história do pensamento ocidental desde a sua gênese como temos tentado apresentar até aqui do que a prevenção do racionalismo de espírito marcadamente burguês muito comum tem se disposto a conferir e aceitar Assim testamos aqui o que de hipótese possa decorrer dessa intuição personalista que decorre do modo de ser da relação quanto ao tema do espaço laico que é uma das preocupações que compõem a reflexão política do personalismo como um todo e em especial do de Emmanuel Mounier do qual estamos aqui tratando mais especificamente 210 Assim antes do surgimento do cristianismo no primeiro século o Império Romano com sua Pax Romana fora obrigado a abrir uma exceção no alcance do seu poder sobre o povo judeu593 Exceção diretamente ligada ao controle no âmbito mais estrito da esfera religiosa do judaísmo que o Império deixara a cargo das autoridades judaicas Pois diferentemente das demais outras religiões pagãs e seu politeísmo ingênito o que as tornava de fácil adaptação ao sistema de absorção sincretista empreendido como estratégia de dominação e anexação pelo Império Romano e sua religião também sincretista e politeísta do Estado o judaísmo com sua concepção monoteísta ligada estritamente as suas tradições como já vimos na segunda parte do primeiro capítulo deste estudo se mantinha assim inassimilável plenamente pela política do Império Todavia Israel se situava numa região da palestina que interessava à estratégia da política do Império para aquela localidade Quer dizer como uma pedra no sapato de Roma que fora da idéia do puro extermínio devia ser tolerada Assim a história da dominação romana empreendida sobre o povo judeu fora sempre um plano de difícil execução no âmbito geral do projeto da Pax Romana ligado àquela região Ao longo dessa história turbulenta e de resistência do aguerrido povo judeu o Império Romano foi então forçado a abrir concessões às autoridades religiosas judaicas em matérias ligadas mais especificamente ao ensino de suas tradições e seu culto Todavia essa atenuação romana nunca fora suficiente para coibir os levantes e as revoltas que se davam periodicamente entre os grupos revoltosos judeus594 Como nós já notamos mesmo a religião estando fortemente imbricada na constituição da sociedade judaica o monoteísmo bíblico implicando uma conseqüente consciência de submissão última à vontade de Iahvé sempre fora também um problema para as próprias autoridades judaicas Pois o sentimento desse compromisso último com Iahvé tanto por parte do indivíduo quanto por parte da nação israelita perspectivava e portanto enfraquecia todo projeto pessoal de poder dos líderes de Israel por causa da vontade última a ser considerada para com o povo ser a de Iahvé e nenhuma outra Vontade cujo descortinar 593 Para mais detalhes sobre o assunto ver GUNNEWEG Antonius H J História de Israel op cit principalmente o capítulo XIII A época romana pp 281 ss 594 A Judéia havia sido subjugada e dominada por Roma desde 63 aC ano em que Pompeu tomou Jerusalém O paroxismo da dominação romana sobre a Judéia se dá em 70 dC com a destruição de Jerusalém por Tito Ver WAND op cit passim e GUNNEWEG op et loc cit 211 se dava na história possibilitando uma interpretação sempre aproximativa ao que por fim permanecia sempre como mistério dentro do conselho de Iahvé Pois bem esse mesmo monoteísmo fora também um problema para o projeto de dominação integral pela agregação submissa conduzido pela tradicional política de anexação do Império Romano Todavia graças ao caráter exclusivista que a religião judaica havia tomado implicando um cerimonial um culto um conjunto de prescrições e de leis de cumprimento estrito e legalista595 foi possível se estabelecer a partir desta esfera do legalismo cúltico restritivo a dita limitação do poder pelo Império em comum acordo entre ele e as autoridades judaicas que auxiliariam na manutenção da Pax dentro das atribuições ligadas a esta sua esfera religiosa de atuação e no que ela poderia exercer de influência sobre o povo No entanto o Império guardaria a aplicação da força e manteria o poder de polícia nos casos não contidos pelas manobras de equalização empreendida pelas autoridades judaicas e que implicassem afronta revolucionária e contestação direta ao poder hegemônico romano Por outro lado estas restrições da religião judaica ou seja o que chamamos aqui de legalismo e quanto a um outro aspecto que nos importa ressaltar aqui tornandose um forte impeditivo a sua adesão por parte do postulante estrangeiro quer dizer do não judeu acabaram se estabelecendo no judaísmo como também um neutralizador do sentido do cumprimento real da vocação universalizante contida e descortinada na história da revelação progressiva da religião de Israel a que os profetas especialmente Jeremias como já vimos sempre traziam à memória Assim com o surgimento do cristianismo e sua radicalização dessa vocação de universalismo por sua mensagem kerygma enquanto dirigida a toda e qualquer pessoa singular sem distinção de condição e classe social de sexo de idade de formação ou de etnia logo foi percebido pelo Império Romano596 que diante do caráter extremamente 595 Com esta noção entre parênteses não queremos nem carregar o sentido de uma definição última e nem tipológica do complexo que compõe as manifestações da religião no âmbito da vida de Israel até àquele período O que nos interessa simplesmente é ressaltar com esta noção de legalismo o ponto de apoio no qual o Império Romano conseguiu encontrar base suficiente para entabular com base em um nível de concessão alguma negociação diferenciada em sua típica política de anexação para aquela região O que durante algum tempo como mostra a historiografia conseguiu manterse 596 O Império Romano permaneceu com dificuldades em entender que havia uma distinção entre a nova fé e o judaísmo até aproximadamente o ano 51 Todavia as dificuldades que implicavam uma religião monoteísta como é o cristianismo seu declarado universalismo no âmbito de uma sociedade politeísta em que religião e vida civil se dinamizavam de maneira muito ligada e seu rápido crescimento entre os pagãos serviram como 212 subversivo deste universalismo cristão não poderia haver nenhum ponto de acordo e concessão quanto a questões de submissão última Quer dizer no cristianismo o Império não encontrava nem a facilidade da tradicional anexação religiosa sincrética e nem conteúdo doutrinário legalista Como encontrou no judaísmo e que acabou servindo como vimos de impeditivo para adesão de estrangeiros ao mesmo tempo em que alimentação e manutenção do seu exclusivismo étnicoreligioso Assim foi ficando cada vez mais claro que a mensagem do único Deusamor do kerygma cristão e seu alcance ingênito e radicalmente universalista não se coadunava com nenhuma das duas vertentes religiosas com as quais a experiência romana havia até então lidado Opostas em um certo nível quer dizer o paganismo e o legalismo judaico pois com elas o Império e sua religião estatal conseguia ainda entabular alguma negociação e concessão Tanto o sincretismo típico de todo paganismo que neutraliza todo e qualquer valor específico religioso que seja transformador pela anexação castradora ao seu panteão cooptador quanto o legalismo exclusivista eram negados pelo kerygma cristão cujo conteúdo específico permanecia indomável597 Assim a religião que para a pragmática do Império Romano tinha a função tanto de soldar as fissuras de sua Pax Romana como a de legitimar como divinas suas instituições políticas quer dizer suas instituições de poder e que encontrava no legalismo judaico ainda um elo possível para este seu projeto de dominação universal com o kerygma cristão se deparava com um adversário de um outro talhe Assim os cristãos não poderiam tal como os judeus exigir qualquer consideração especial sob o pretexto de que eles representavam um culto nacional de uma exclusividade particular598 À dominação universal romana o kerygma cristão representava a libertação universal Libertação religiosa sim e de cunho soteriológico porém que não deixou de imprimir o seu alcance à esfera da vida política ou cívica em geral desde então Quer dizer libertação de cada pessoa singularmente tomada em sua situação concreta que não obstante a expressão dessa liberdade cristã se dar como procura e manutenção de um padrão moral de vida social elevado cobrindo o cumprimento dos deveres de cidadão e até alimento para uma desconfiança sempre crescente em relação aos cristãos por parte dos romanos e que fora habilmente utilizada por Nero para justificar o grande desastre de 64 Cf WAND op cit p 29 597 Num paralelo com a história do pensamento podemos dizer que em religião o sincretismo substitui o que seria na ordem do exercício de reflexão o relativismo ou sua forma conciliadora o ecletismo e o legalismo substitui o dogmatismo 598 Cf WAND op cit p 47 s 213 mesmo de respeito à autoridade constituída599 permaneceria no fórum íntimo de cada cristão individual o sentido de que em sua consciência última esta sua expressão de vida mantinha suas raízes como obediência primeiramente a Deus em sua posição última de estar diante de Deus Será este outro talhe cristão então que marcará na história do Ocidente o primeiro movimento no sentido de uma proposição até então inédita na história da humanidade de ensaio de criação de um espaço laico antes da letra Quer dizer desmitificado ou melhor sem a existência da religião como justificadora última das instituições humanas Pois estas com a afirmação do valor infinito da singularidade de cada pessoa concreta nesta contribuição do cristianismo para o movimento de personalização deverão permanecer num âmbito de legitimação restrito Este então demarcado e legitimado não por qualquer instituição ou convenção mesmo religiosa pura e simplesmente mas como constituinte prévio às próprias instituições pela marca da liberdade de engajamento responsável da pessoa singular em sua fidelidade aos valores livremente assumidos por ela Ou seja como fruto próprio da ação livre e criadora da pessoa em sua natural disposição para a vida cidadã A partir do cristianismo inscrevese então na história do Ocidente o fato de que estas instituições passam a ser avaliadas à luz de uma busca de qual seja sua real especificidade a serviço e como expressão do movimento de emergência da pessoa humana Enquanto instituição política então no sentido do cumprimento e realização de sua essência própria dentro do conjunto representativo da cultura e comunidade social humana que são as expressões as manifetações pelas quais a pessoa se desvela Nisso fica incluída a religião que com o surgimento do cristianismo toma uma outra perspectiva a que sempre comandara até então na história do poder a relação muito estreita entre ela e a política600 Nesta nova perspectiva inaugurada pelo kerygma mensagem do cristianismo primitivo a pessoa humana singular ganha voz e deve influir como ato de liberdade sobre a construção desse espaço laico o qual só pode ser fruto e resultado não de decreto nem de lei pura e simplesmente como dissemos quer dizer como um evento não implicando a participação livre e responsável da pessoa concreta mas como fruto do 599 O que tem motivado a meu ver por uma análise muito unilateral do fenômeno a equivocada acusação do paulinismo e de muitos dos textos neotestamentários como instauradores da subserviência ao poder romano 600 Ver COULANGES op cit passim 214 ato livre e de engajamento pessoal O espaço laico deverá ser uma conseqüência desse ato de liberdade engajada Quer dizer ato responsável da pessoa singular que levando consigo suas fidelidades últimas será a expressão desta sua disposição em descentralizarse para o encontro com a alteridade com o próximo na intenção de construção de um universal possível Ou ainda na intenção da consecução da objetividade das aderências necessárias pelas quais a pessoa possa se firmar e encontrar o apoio que ela precisa para o cumprimento de sua vocação garantida a de vida singular de vida comunitária Será por essa razão que os cristãos primitivos não terão problemas em respeitar a autoridade existente como já dissemos mas todavia não consentirão em prestarlhe adoração culto O que permanecia e acabou fazendo parte todavia dos últimos recursos de alguns imperadores romanos quando do paroxismo do que permanecera sempre em germe e incubado no interior mesmo da economia geral do Estadoreligioso romano e que na verdade vai continuar sendo a tara própria na história de todo tipo de totalitarismo601 Esta situação levou os cristãos primitivos sob as mãos de um Estadoreligioso senhor da vida e da morte à condenação capital acusados sugestivamente de ateísmo e assim a servirem de espetáculo e entretenimento na arena romana602 Com isso não é difícil ver que a Idade Média com a tomada para si por parte da Igreja Instituição Romana 601 A primeira investida direta contra os cristãos foi empreendida pelo imperador Trajano 98117 e a última no Oriente pelo imperador Diocleciano 284305 mantida por mais seis anos por seu sucessor Galério que por sua vez fora vencido por Licínio Este em 313 em acordo com Constantino Edito de Milão decide não mais dividir o Império e seguir uma política comum Cf WAND op cit pp 145 ss Segundo INGE op cit p 481 A concepção de salvação como aquisição pelo homem de atributos divinos é comum a muitas formas do pensamento religioso Esta concepção amplamente difundida no Império Romano no tempo da Revelação cristã foi se firmando cada vez mais em importância durante os primeiros séculos da nossa era Os Mistérios Órficos tinham ensinado por um longo tempo essa doutrina Sobre as lápides erguidas por membros da irmandade órfica nós encontramos tais inscrições como estas Feliz e abençoado Tu serás um deus em vez de um mortal olbie kai makariste qeoj dV esh avnti brotoio ólbie kaì makáriste theòs d ése antì brotoîo Tu és um deus em vez de um desprezível homem qeoj ei evleeinou evx avnqrwpou theòs eî eleeinoû eks anthrópou De fato tem sido dito que a deificação foi a idéia de salvação ensinada nos Mistérios Harnack E na página à frente diz INGE O gênio teutônico está nesta matéria mais em simpatia com o grego mas nós somos ocidentais enquanto os gregos do último período foram meio orientais e há muito em seus hábitos de pensamento que nos é estranho e ininteligível Tome como exemplo a divinização dos imperadores Este era um modo genuinamente oriental de homenagem que para o verdadeiro europeu permaneceu ou profano ou ridículo No entanto o último chiste de Vespasiano 6979 Vae Puto Deus fio Ai Acho que estou me tornando um deus não soaria cômico em grego Todavia como veremos e o que a idéia personalista de espaço laico ainda por se fazer quer indicar com a instauração do dito pensamento moderno autônomo e emancipado da religião da dita laicidade moderna ocidental se essa matéria não é afirmada ali tão claramente pelo Ocidente e principalmente pela modernidade como fora pelo gênio teutônico não obstante o seu núcleo essencial permanecerá intacto transportado e veiculado sob novas formas à espera do tempo de sua saída da encubação 602 Ver WAND J W História da Igreja primitiva até o ano 500 op cit passim 215 do projeto de Imperium Mundi legado pelo Império Romano portanto uma renovação perigosa da junção do religioso e do político em síntese da continuação da história não da política mas do poder constituirá uma traição ao ensejo de vida comunitária por parte da pessoa livre e criadora que o cristianismo afirma e faz despertar na história do Ocidente naquele primeiro século Num segundo momento por conseguinte não é difícil ver também e ao que retornaremos mais detidamente à frente que a modernidade burguesa com a instauração do seu individualismo reivindicador e seu ente de razão chamado indivíduo será a outra face de uma traição ocidental à pessoa no seu ensejo por vida singular Este ensejo se nutre também como vimos de uma fonte de inspiração cristã e que no século XVI transformado em movimento de insurgência da pessoa humana na história quer dizer revolução assumida pela burguesia nascente e sabotada em seguida pela burguesia instalada se desperta contra a traição medieval anterior É por isso que a história do racionalismo moderno e todo o espectro representativo de seu esquecimento da pessoa individualismo reivindicativo moral burguesa neoliberalismo economia capitalista etc dentro da perspectiva personalista pode ser tratado de maneira apropriada como seguindo no sentido e sob a mesma índole de neutralização castradora dos valores assumidos pela pessoa concreta empreendida pelo sincretismo romano antes descrito e cujo desfecho fora a arena Este espectro que permanece em germe nas instituições que constituem o conjunto da modernidade liberal burguesa é o que vai possibilitar por sua vez segundo Mounier como veremos à frente ainda mais detidamente o surgimento das pseudoreligiões autoritárias do nazismo do fascismo e do comunismo Ou seja o racionalismo moderno pode muito bem ser entendido como uma pseudoreligião uma expressão do paganismo na verdade um neopaganismo Ou ainda como a traição mesma do ensejo por criação de um verdadeiro espaço laico Quer dizer segundo o personalismo possível apenas como fundado no ato livre da pessoa criadora contra o qual o racionalismo neoliberal e burguês tem militado em prol de sua frustração esvaziamento e neutralização com seu Contrato suas convenções e instituições criadas a sua decadente imagem e semelhança Assim para concluir o maior problema para o cristianismo primitivo não fora a arena mas sempre esta dominação sutilizada que quer se enxertar imiscuirse em substituição no mais recôndito da pessoa No núcleo mesmo dos valores que ela assume e pelos quais ela se lança em seu movimento 216 de libertação Isso no âmbito político No âmbito religioso propriamente dito será a investida de tendência neutralizadora e anuladora do kerygma cristão por parte do gnosticismo o grande adversário do cristianismo com o seu ódio ao corpóreo e ao concreto Todavia a história de toda tirania de todo totalitarismo será sempre a história desta vontade de invasão íntima Assim a Idade Média cedeu à tentação da utopia da implantação de um Reino cristão temporal e não prosseguiu o sentido de artefato que o cristianismo lhe dera Também a modernidade racionalista burguesa e liberal não cumpre o sentido do que se constitui como espaço laico o que prometera e tem alardeado por toda sua história como uma conquista própria já realizada pelo esquema liberal atual neoliberalismo Quer dizer como conquista acabada de independência do seu pensamento chamado de laico do religioso ou antes como se convencionou chamar genericamente da metafísica603 Todavia e será uma das intenções deste estudo ressaltar esta pretensão de um pensamento laico como já instaurado e resolvido dentro do esquema social moderno liberal e burguês que o toma como apanágio seu e mesmo como antonomásia segundo Mounier deve ser ainda problematizada Mounier em relação ao ambiente grecoromano e o cristianismo primitivo contínua a perguntarse Como manter a supremacia da Idéia atemporal do desdobramento necessário em um mundo semeado de momentos essenciais uma criação uma falta uma Encarnação em um mundo cuja explicação se centra desde então sobre uma história de personagens604 Nesse momento segundo Mounier o ser humano se liberta do destino cósmico Pelo fato de haver um começo absoluto605 fundado sobre um ato de amor desde então como elemento intrínseco à convocação do ser humano a uma cocriação com Deus 603 Por exemplo em um Habermas Ver HABERMAS Jurgen A inclusão do outro estudos de teoria política Edições Loyola São Paulo 2002 passim 604Personalisme et christianisme Oeuvres I p 733 605 Portanto absoluto porque fora do alcance da experiência finita enquanto experiência possível Por outro lado dentro da experiência própria do religioso e do mítico quanto ao seu trato do problema das origens 217 se tornarão possíveis estes começos incontornáveis606 que são o nascimento de uma alma um ato livre607 A influência do pensamento do paleontólogo Teilhard Chardin608 sobre Emmanuel Mounier além da influência de Henry Bergson609 é ponderável E os seus ecos podem ser ouvidos no seguinte Mais tarde quando se desenvolver a ciência da contingência depois da ciência do necessário a préhistória do universo aquela que precede a aparição do ser humano do cristal ao vertebrado esclarecerá essa ontologia Ela revelará uma vasta curvatura do espaçotempo para a formação dos centros de consciência e de autonomia mais e mais independentes cujo sentido não será dado senão no dia em que eles se tornarem instrumentos da vida pessoal610 Como bem notou Karl Popper há duas maneiras entender a evolução Uma que vê a evolução como a expressão da luta encarniçada pela sobrevivência em vista da manutenção da vida empírica em que o mais adaptado num regime de força diríamos o mais forte leva a melhor e uma outra em que vê o resultado da evolução mais no sentido do desenvolvimento de consciência da cooperação Todavia ainda veremos se esse segundo sentido que Popper quer fazer valer como sendo o que decorre de seu pensamento realmente se mantém sem problematização possível dado o visível atrelamento à ideologia liberal do que ele chama por outro lado de método científico racional racionalismo crítico que nos parece ser bom para o laboratório mas cujos princípios seu agnosticismo cientificista não deixa de estender às relações humanas na sociedade como valor611 Todavia Mounier sem estabelecer teorias para isso mantém se no nível da experimentação axiológica aberta que se dá dentro da fenomenologia das 606 Mounier usa aqui a palavra absolu que nesse trabalho a partir do próprio sentido que se destaca da reflexão de Mounier como filosofia de uma finitude transfigurada será substituída pela noção que se nos apresenta como mais adequada de incontornável Na experiência da finitude mesmo transfigurada é impossível uma experiência com o absoluto pois no mesmo momento em que tal experiência se dá no âmbito da experiência finita contingente ele se torna relativo Portanto só nos são possíveis segundo a inspiração personalista do relacional como experiência originária experiências com o incontornável 607 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 733 608 Ver o que Mounier diz acerca da solidariedade entre a sorte do universo e o destino do ser humano na perspectiva de um cristianismo cósmico como o de Teilhard Chardin em La petite peur du XXº siècle Oeuvres III p 402 e passim Ver sobre isso o clássico de CHARDIN Teilhard O fenômeno humano Editora Herder São Paulo 3ª ed 1970 Ver também Blondel e Teilhard Chardin correspondência comentada por Henri de Lubac Moraes Editora 1968 609 Sobre o lançamento em 1932 de Les deux sources de la morale et de la religion de Henri BERGSON e a euforia por tal acontecimento pela geração de Mounier e alguns detalhes da aproximação pessoal de Mounier a Bergson ver Esprit Emmanuel Mounier 19051950 décembré de 1950 op cit pp 949 ss 610 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 733 611 POPPER Karl Sociedade aberta e seus inimigos ItatiaiaEDUSP 2 vols Rio de janeiro 1974 notadamente o segundo volume passim Ver abaixo Personalismo e liberalismo 218 formas a priori da simpatia e nesse nível da análise das formas sociais numa disposição em crer nas capacidades criadoras e organizadoras de formas sociais como inscritas no movimento mesmo de personalização Estas capacidades à manifestação da singularidade completamse pelo ensejo de criação das formas de vida comunitária como amparo necessário e sustentação das condições pelas quais a pessoa singular pode dar continuidade ao seu movimento incessante de personalização De liberação das condições pelas quais somente num nível de vida comunitária afim a este seu movimento ela consegue realizarse O sentido da evolução no que este permite entender como inscrevendo e definindo um movimento que imprime um plus real qualitativamente diferente à identidade própria ao estofo puramente material conforme a intuição de Chardin para Mounier é o de convergir para formas que liberem indefinidamente a singularidade das estruturas condicionantes612 Se por um lado como dissemos a pluralidade pagã sofre um ataque por conta das afirmações e decorrências do monoteísmo judaicocristão por outro lado este monoteísmo já esquecido de suas origens vai gerar o que se manteve na Idade Média como um novo esquecimento da pessoa Este baseado justamente e em nome desse mesmo monoteísmo mas agora desvirtuado como despotismo como vontade de tirania como ideal do governo de um só como problema do poder Quer dizer e por outro lado o problema tradicional que a filosofia política ocidental se propõe quanto a quem manda e quem obedece papal ou régio Em plena Idade Média diz Mounier Averróis não conseguia ainda justificar diante da razão a pluralidade das almas sendo o mundo eterno pensava ele era necessário admitir a existência de uma infinidade atual de almas O que é absurdo Ele imaginou então uma só alma comum à espécie humana613 Por que os indivíduos se sucederiam em vez de um só homem existindo eternamente A essa pergunta de espírito averroísta responde Mounier Porque a espécie não pode se realizar de uma vez Assim cada indivíduo só existe em vista dessa realização global ele é uma conseqüência efêmera dessa sorte de avareza do Ser614 O Deus cristão ao contrário é segundo Mounier um Deus suntuoso e pródigo de amor Se sua superabundância tem multiplicado indefinidamente os universos bem mais 612 Ver para isso mais significativamente denso do que um livro de teoria científica pura na verdade um verdadeiro poema científico da evolução por isso mais significativo o já citado anteriormente CHARDIN Pierre Teilhard de O fenômeno humano Editora Herder São Paulo 3º ed 1970 613 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 734 614 Ibidem essencialmente ainda ele se compraz segundo o diretor de Esprit em multiplicar indefinidamente e de maneira indefinidamente variada essa imagem mais perfeita da divindade que é a alma humana Mounier então vai observar no âmbito mesmo do pensamento cristão se esboçar a resistência a este desvirtuamento do sentido do monoteísmo cristão que compreendia Deus como amor quer dizer generosidade ou ainda superabundância E é já o que se encontrará em são Boaventura segundo Mounier em sua resposta à espiritualidade um pouco altaneira e parcimoniosa de um Averróis O Logos da tradição joanina é fecundidade e geração615 Sendo expresso no Verbo de toda eternidade segundo Mounier não há absolutamente mais esgotamento em seu poder de criação Transbordante em sua bondade esse poder quer se dar ainda em uma infinidade de imagens em que cada uma não será senão um pedaço quebrado do espelho universal mas uma imagem única e total de sua divindade Quanto mais ele terá almas para receber as formas inesgotavelmente novas de sua graça segundo Mounier mais sua Bondade se glorificará e se regozijará de se dar Essa multiplicidade de pessoas chamadas à vida divina que não encontram nenhuma justificação racional em um mundo deixado à eternidade implacável de um Deus impessoal eis aí justificada pelo Amor Essa ligação ao amor e à graça de um tipo de exuberância divina conclui Mounier os doutores e os poetas cristãos dos Pais gregos até Péguy e Claudel têm evocado a cada vez que o retorno de um tipo de avareza intelectual ameaça empobrecer a visão cristã616 Eis aí um mundo segundo Mounier onde não somente tornamse plausíveis centros de ação livre e autônoma mas onde sua multiplicação é requisitada pela natureza mesma do 615 João 115 Εν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος καί ὁ Λόγος ἦ πρὸς τὸν Θεόν καί Θεὸς ἦ ὁ Λόγος Οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν Θεόν πάντα δι αὐτοῦ ἐγένετο καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ὃ γέγονεν ἐν αὐτῷ ζωὴ ἦν καὶ ἡν ἡτὸ φῶς τῶν ἀνθρωπων καὶ τὸ φῶς ἐν τῇ σκοτίᾳ φαίνεϊ καὶ ἡ σκοτίᾳ αὐτὸ οὐ κατέλαβεν En archê ên ho Lógos kaí ho Lógos he pròs tòn Theón kaí Teòs ên ho Lógos Hoûtos ên en archê pròs tòn Theón pânta di autoû egéneto kaì chorìs autoû egéneto houdè ên hō gégonen en autò zoè ên kaì he zoè èn tò phôs tôn antrôpôn kai tò phôs en tè skotiá phaíneí kai he skotiá autò ou katélaben No princípio era o Logos e o Logos estava com Deus e o Logos era Deus Ele estava no princípio com Deus Todas as coisas foram feitas por meio dele e sem ele nada do que foi feito se fez A vida estava nele e a vida era a luz dos seres humanos A luz resplandece nas trevas e as trevas não prevaleceram contra ela As partes grifadas apresentam justamente a inserção da ação da mobilidade por parte do evangelista ao que permaneceria tomando a primeira parte do texto isoladamente o ser à maneira parmenidiana Esta passagem de uma inserção no âmbito mesmo da metafísica de um elemento de mobilidade juntamente com a passagem do plano noético ao plano histórico é muito marcante na teologia joanina principalmente se considerarmos sua disputa contra a principal heresia cristológica de inspiração gnóstica com a qual a Igreja Primitiva teve que se deparar desde o seu nascimento ou seja o docetismo doutrina do corpo aparente de Jesus Cristo Para isso ver CULLMANN Oscar Cristo e o tempo Editora Custom São Paulo 2003 pp 167 ss 616 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 734 219 220 ato criador Para Mounier cada vez que nos surpreendemos com uma época ou uma escola tal como a jansenista a aceitar uma concepção muito sórdida da divindade ou a deixar o universo a algum ídolo do necessário e do impessoal dureza esta rigor este que sempre se ressentirá no fundo axiológico que o comanda de verdade de uma vontade de instalação última e que caracterizará as formas que o espírito burguês tomará posteriormente em suas manifestações sempre difusas como algumas formas do racionalismo e do coletivismo contemporâneos nós aí veremos tanto mais enfraquecer o sentido e os costumes da pessoa617 Importa segundo Mounier tanto mais valorizar essa cosmologia da generosidade implicada pelo personalismo cristão nas formas irreligiosas que têm sido mais fortemente marcadas por ela por exemplo a da mentalidade trabalhadora contemporânea formas que a relevam na verdade do preconceito que lhe é diretamente contrário Todavia o fundamento de toda religião diz Proudhon segundo Mounier é a prescrição de toda personalidade em nome da divindade sua essência retoma Bakunine é o empobrecimento o aniquilamento e submetimento sistemático absoluto da humanidade em proveito da divindade Deus é o espoliador absoluto Parece a estes teóricos da tradição anarquista segundo Mounier que a soma das perfeições realizáveis seja estritamente mensurada de tal maneira que a infinitude que os cristãos renunciam e deixam a Deus é tomada sobre as reservas do ser humano cuja soma reduz a zero Mesma perspectiva em Feurbach e em Marx quando eles descrevem a religião como uma alienação que suga a realidade do ser humano para dissolvêla acima de sua cabeça em um mundo de nuvens e o deixa impotente resignado diante do seu destino618 Apesar das boas intenções vai ser uma constante da crítica de Mounier a estas teorias ver nelas um deslocamento indevido subreptício do argumento de que se valem e que lhes dá veracidade para realizarem sua crítica na exata medida em que num segundo momento a tornam apêndice quando então retomam cada qual em sua versão a manutenção sobre o ser humano do que criticavam agora como posse anteriormente como sendo a essência da religião Isso é o que Mounier vai chamar de otimismo para com a doutrina e pessimismo para com o indivíduo Por isso Mounier pergunta se estes homens que sinceramente falam 617 Ibidem p 735 618 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 735 221 da eminente dignidade do ser humano teriam alguma idéia da supereminência que a vida e o kerygma cristão lhe conferem Os espíritos habituados a uma outra abordagem dos problemas pontua Mounier poderiam se admirar anunciando aqui reflexões principalmente orientadas sobre problemas de civilização nós seguiremos mantendo bem auto nosso ponto de partida619 Na verdade segundo Mounier as exigências temporais do personalismo só são a rigor adstringentes se a pessoa for ontologicamente transcendente ao biológico e ao social e que só uma metafísica cristã consegue assegurar essa transcendência620 Ou seja uma que implique um verdadeiro movimento de ultrapassamento Isso se explica pelo fato de que não obstante Mounier afirmar com o marxismo a necessidade das aderências e portanto da necessidade conseqüente de se pensar a organização dessas aderências necessárias e pelas quais a pessoa encontra os sustentos para a realização de sua vocação o que quer dizer para o personalismo repensar uma reabilitaçã da noção de objetividade por outro lado a pessoa será sempre mais do que estas mesmas aderências Elas nunca poderão para o personalismo servir a qualquer ideologia laica ou religiosa como expediente de subsunção da pessoa a suas diretivas sejam elas de cunho programático metodológico ou teórico Para o personalismo a transcendência da pessoa não é somente sobre o universo material mas sobre toda consciência objetiva que eu possa manter em recuo ao seu mistério Todo personalismo inclui uma crítica das filosofias que deixam só à consciência o testemunho da verdade Se a pessoa do cristão é constituída pela vida de uma intenção divina singular se prolongando em um diálogo inexprimível de avanços e de respostas entre uma vontade livre insondável e o insondável passo da Providência segundo Mounier a ponte será a definição inacessível e a essência inexprimível Um segredo do coração diz Mounier ao qual ninguém tem acesso nem anjo nem ser humano mas só Deus Em nosso século de análise segundo Mounier isso significa sobretudo que as determinações psicológicas as mais sutis poderão indefinidamente encher nossa consciência empírica das manifestações da pessoa mas em tudo deixando escapar o foco inexprimível de onde partem as únicas decisões que sem falta a engajam Este secreto segundo Mounier 619 Ibidem 620 Ibidem p 736 222 pertence a cada pessoa quem quer que seja ao descrente como ao santo Ele é mesmo para o cristão uma excelente prova do seu sentido da pessoa quanto de sua atitude face ao descrente é o escândalo dos devotos que professam a infinita variedade da santidade621 e que estão à espera dos menores movimentos da graça ou da sensibilidade religiosa na vida das almas piedosas e que se correspondem diante do mistério dos descrentes com seus slogans morais pesados e partidos tomados pueris622 Vemos que a verdadeira santidade quer dizer a consciência da posse de uma responsabilidade insubstituível de uma separação especial para o cumprimento da vocação de ser pessoa em sua expressão singular segundo Mounier implica em si tanto uma crítica à religião como à irreligião Como poderemos conhecer pergunta Mounier algo da pessoa se ela escapa a toda determinação formulável da sensibilidade ou da consciência E a essa pergunta ele mesmo responde Por um conhecimento grifo nosso precisamente sem relação com o ajuste de dados objetivos e de sinais exteriores que nos entregam ao acesso do mundo sensível623 Como vemos não através de fantasia mas de um determinado tipo de conhecimento talvez um do qual estejamos pouco acostumados e que nos exige chegados a este momento do nosso estudo muito mais empenho e rigor e que não tem nada a ver com o tipo pobre de conhecimento veiculado pela ciência quantitativa que tem feito maior fama e se mantido por causa da relação fabril que tem se tornado o seu móbil essencial no trato dos objetos quantificáveis Relação baseada nos valores preponderantes que vêm sendo assumidos e afirmados pelo Ocidente liberal e burguês o pseudovalor do utilitarismo contra o valor do útil o pseudovalor do pragmatismo contra o valor do prático o pseudovalor do hedonismo contra o valor do prazer de usufruição de uma vida pessoal mais plena etc Para o personalismo o modelo difundido no Ocidente de conhecimento não pode auferir para si o direito plenipotenciário por uma espécie de usucapião sobre o que venha a se estabelecer como conhecimento humano possível A 621 Como vemos santidade aqui ligada ao universo existencial da pessoa deve ser entendida no sentido bíblico Quer dizer tomada de consciência de uma vocação singular e portanto adesão total a esta vocação com todas as alegrias e os riscos que ela comporta Em linguagem cúltica bíblica separação para a realização de uma obra sagrada É necessária essa precisão pois esta noção tem sido esvaziada pelo costume que a pieguice religiosa tem estabelecido de pensála só em termos de atributo relacionado ao ser de exceção chamado santo o que segue totalmente na contramão da inspiração cristã neotestamentária que vê a santidade como atributo de todos cada qual a realizando em sua vocação singular como pessoa diante de Deus e do próximo 622 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 737 623 Ibidem 223 existência pessoal segundo Mounier pertence a esse tipo de realidade que nós captamos somente em um ato de adesão vivida através dos passos pelos quais nós lhes conferimos pouco a pouco em nós uma existência de mais ser Pergunta Mounier Onde está o problema da morte enquanto ele não for o problema emergente de minha morte ou o problema de meus mortos da morte dos entes queridos624 O problema do mal enquanto eu não tiver sofrido ou pecado Como tudo o que não é deste mundo a realidade transcendente de cada uma de nossas pessoas nos escapa em sua essência mas nós podemos conhecêla em enigma e como que por um espelho625 pela prova de uma vida conforme os seus apelos pela irradiação dos que perto de nós trazem seu testemunho626 A noção cartesiana de conhecimento obscuro segundo Mounier nos leva a crer que o conhecimento que nós temos das realidades que ultrapassam as capacidades de nossa experiência ou as apreensões de nosso entendimento não diferem do conhecimento intuitivo e claro senão por meio de um obscurecimento uma diminuição da luz O conhecimento mesmo natural de toda transcendência segundo Mounier movimentase de uma maneira totalmente diferente tão logo fica admirado de certezas bem rápido fica embaraçado de ambigüidades e de ambivalências entrecortado de vertigens de noites de securas de desprezos627 Para Mounier nada é mais irritante que essa segurança com a qual o primeiro vem fazer profissões de personalismo Assim diz Mounier Ninguém sabe se ele é digno de amor ou de ódio diz o Eclesiástes628 Segundo Mounier ninguém saberia se lisonjear muito rapidamente por saber o que protege com uma veemência sagrada contra as ameaças dos tiranos Ninguém diz Mounier é mais maligno que Joana dArc Se estou aqui Deus aqui me guarda se aqui não estou Deus aqui me coloca629 É significativo que a palavra que designa em Latim a pessoa persona indique ao mesmo tempo a máscara do ator esta máscara que pode dissimular a pessoa como pode sustentar a 624 Sobre este tema da morte do ponto de vista personalista ver LANDSBERG Paul Louis Essai sur op cit 625 Na Primeira Epístola aos Coríntios 1312 e na Segunda Epístola aos Coríntios 318 vemos o apóstolo Paulo usar a metáfora do espelho para indicar o nível de nosso atual conhecimento espiritual Esta metáfora será recorrentemente emprestada por toda tradição da Mística Cristã Sobre isso ver INGE The Christian Mysticisme op cit p 67 s e todo capítulo V Lecture V Practical and Devotional Mysticism pp 106 ss O sentido do espelho é o da reflexão de algo em nós que não se esgota na reflexão aparente em que esse algo não obstante deixase mostrar na própria reflexão 626 Personalisme et christianisme Oeuvres I p 737 627 Ibidem 628 Ibidem 629 Ibidem 224 sua expressão Que eu procure apreenderme a mim mesmo conclui Mounier eu me escapo a mim mesmo a matéria que eu creio ter se degradado entre as mãos vem interpor indivisivelmente os véus sem forma da mentira interior Assim conclui Mounier Nós conhecemos estes dias onde nosso monólogo mais íntimo é ferido por uma suspeita radical por uma exigência mais secreta ainda é nessas turbulências do conhecimento que se repara a introdução de uma transcendência630 Fica entendido que o personalismo mais do que uma descrição aproximativa bem feita do mistério da transcendência da pessoa é antes um convite à experimentação dessa transcendência nas formas em que ela se presta a algum desvelamento tanto na história quanto na experiência existencial singular do próximo quer dizer em seu alcance numa ética do concreto Como podemos ver se há alguma originalidade por parte do cristianismo esta só pode estar portanto no modo pelo qual ele consegue se apropriar do legado judaico e helênico radicalizálo e tornar práticas suas inspirações mais profundas como inspirações da humanidade Inspiraçõe que por sua vez constituem no movimento de personalização intrínseco ao sentido profundo destas duas manifestações destas duas formas de vida das quais estamos tentando descrever alguns passos na verdade as exigências de sua essência mais ingênita Esta exigências por um lado deixadas aos cuidados do legalismo e moralismo hipócrita e exclusivismo étnico dos fariseus e por outro aos vôos do abstracionismo do racionalismo intelectualista dos gregos não conseguiriam dar o salto necessário para o início da nova configuração axiológica sobre a qual estas grandes inspirações da humanidade como movimento intrínseco e contínuo de emergência da pessoa na história não encontrariam suas novas bases de apoio e as aderências concretas necessárias para sua manifestação Assim Quem sustenta o argumento das fatalidades da natureza para negar as possibilidades do ser humano se abandona a um mito ou tenta justificar uma demissão Essa emergência da pessoa criadora pode ser lida na história do mundo Ela aparece como uma luta entre duas tendências de sentido contrário uma tendência permanente à despersonalização um movimento de personalização que 630 Ibidem 225 começa a rigor com o ser humano mas cuja preparação pode ser reconstruída através da história de todo o universo631 Podemse fazer todas as críticas ao Ocidente632 e se manter com razão numa certa desconfiança dos projetos humanos esta é uma atitude respaldada por todas as religiões pela filosofia e pelo bomsenso Todavia não se pode negar que o projeto de civilização empreendido no Ocidente e que tomado nas mãos pelos missionários anônimos junto aos povos e tribos bárbaras que estão na base da formação histórica da atual Europa nas condições de precariedade estrutural e cultural daqueles tempos antigos que sem uma noção muito clara do que se estava fazendo movidos unicamente pelo desejo e pelo sentido de alcançar uma humanidade universal a partir das inspirações que recebem da nova configuração advinda da comissão de evangelização do cristianismo quer dizer fora de reivindicações territoriais étnicas lingüísticas ou mesmo religiosas633 é realmente um ato de coragem inaudita de um tempo em que o Ocidente assumira o destino que lhe era proposto Neste momento através do cristianismo ou melhor em continuidade à assunção por parte do cristianismo da responsabilidade pelo projeto de educação universal já constando como legado da tradição veterotestamentária como vimos antes e ampliado pelas contribuições específicas advindas da tradição helênica o Ocidente o toma para si como sua responsabilidade própria634 Por outro lado usar do argumento das perversidades históricas do tipo apresentado pela coletânea de artigos dirigidas por Guy Richard635 para fundamentar uma metafísica do pessimismo ou como argumento para a queda na tentação do relativismo fácil ou na do dogmatismo autoritário das rédeas curtas e conseqüentemente na confiança última 631 Le personnalisme Oeuvres III p 444 Sobre esta preparação ver os escritos de TEILHARD CHARDIN nota de Emmanuel MOUNIER 632 E um livro como A história inumana massacres e genocídios das origens até os nossos dias Direção de Guy Richard Instituto Piaget Lisboa Portugal 1992 está aí para confirmar 633 Como ficou claro refirome aqui aos anônimos aos que realmente fizeram e não aos poderosos que aliás com raras exceções nunca agiam como Alexandre Magno preferindo ficar em seus palácios seguros a seguirem para o campo de batalha Ver POPPER Sociedade aberta e seus inimigos op cit vol II p 267 ss Capítulo 25 Tem a história alguma significação 634 JAEGER como estudioso da cultura grega se atém à relação entre paideia cristã e paideia grega Mas já vimos o quanto o sentido de um apelo à humanidade já é parte intrínseca da história do povo de Israel como sua vocação 635 Op cit 226 depositada no poder de polícia do Estado636 negando neste ato a parte que deveria ser dada ao problema do bem e da existência responsável da pessoa livre que são segundo o personalismo tão reais e perceptíveis na história como diria Freud para quem quer ver quanto o problema do mal será uma meia verdade Nesse sentido segundo o personalismo tratase antes de tudo de uma atitude de uma posição de vontade que se ressente sociologicamente da decadência do espírito pequenoburguês do qual segundo o personalismo atualmente somos todos de alguma forma tocados637 Também segundo o personalismo não se trata por outro lado da eleição de um otimismo ingênuo Quanto ao livro La Petite Peur du XXe Siècle de Emmanuel Mounier638 Paul Ricoeur faz a seguinte observação sobre a opção que Mounier propõe aos pólos puros pessimismootimismo Todo este livro tende a substituir na alma do leitor ao regime afetivo do pessimismo ativo o humor contrário do otimismo trágico quer dizer o modo da confiança corrigido pela experiência do combate indeciso e sombreado pela possibilidade do fracasso639 Para Mounier compreender o mundo e transformálo é 636 Este é um fenômeno sobre o qual Emmanuel Mounier não cansa de fazer referência em sua obra Há uma relação contígua in perpetuum entre as concepções que não se fundamentam na noção de regime baseado na responsabilidade pessoal ou seja concepções que continuam a tradição ocidental de adiamento da opção pela pessoa concreta responsável em suas teorias e crítica políticas e a conseqüente adoção desesperada da centralização do poder de polícia pelo Estado visto como último recurso quando a bomba preparada por estas mesmas concepções explode De fato este não é simplesmente o último recurso delas na verdade somente ele é sempre contado como o primeiro recurso no caso do liberalismo por exemplo por causa da desconfiança sistemática liberal das capacidades da pessoa criadora Essa tendência pode ser seguida claramente nos mais diferentes matizes em que o liberalismo ideologia que tem tomado para si o apanágio de defensora da liberdade no Ocidente se expressa atualmente como neoliberalismo Aliás parece que o poder de polícia é o único que a ideologia liberal não deseja ver minimizado como atribuição do Estado cooptado eis um sinal do totalitarismo ingênito desta ideologia Veremos mais sobre isso quando tratarmos da crítica de Mounier à ideologia liberal e que se estende a sua nova versão 637 Fora dos casos realmente patológicos o chamado pessimismo absoluto em relação ao qual eu pessoalmente nunca conheci um seu apologeta minimante conseqüente estes costumeiramente acordam de manhã para tomar café costumam ir aos encontros fazem planos para o futuro etc é um sentimento tipicamente pequenoburguês De uma burguesia ciosa por manterse ao abrigo das seguranças sem a preocupação de uma existência mais envolvida na busca das soluções dos problemas mais amplos que a sua visão egoística a força a não ver Essa decadência chamada pessimismo para encobrir e adiar as conseqüências que seu sentido último obrigaria o seu apologeta a assumir se matiza então de várias maneiras ora como indiferentismo altaneiro ora como relativismo fácil que gera sempre o conservadorismo em matéria social ora como metafísica determinista que dá um certo ar de cientificidade às declarações etc Falaremos mais dessa decadência atual quando tratarmos do tema Pessoa e existência abaixo Como diz Paul Louis LANDSBERG em relação à tentação do suicídio op cit pp 105 ss onde se apresentar uma tentação é dever da filosofia esclarecer Parece ser esta uma missão que MOUNIER toma para si como filósofo 638 Cf Oeuvres III aparecido em 1949 em Neuchâtel Editions La Baconnière e em Paris Editions du Seuil na coleção Les cahiers du Rhône Tratase de três ensaios pronunciados respectivamente nas conferências da UNESCO em Paris nos encontros internacionais de Genebra e na Semana de Sociologia de 1946 a 1948 639 RICOUER Paul Une philosophie personaliste in Esprit Emmanuel Mounier 1905 1950 Décembre 1950 p 875 Edição especial em memória de Emmanuel Mounier falecido em 22 de março de 1950 Este 227 fundamentalmente a mesma coisa640 Isso quer dizer que para ele a ação começa na consciência e a consciência atenta espera o momento exato para inserirse na história para fazer história Ação e consciência nutremse mutuamente Sem aceitar a apatia do pessimista que no plano incontornável da ação necessária do engajamento que compõe o ser do ser no mundo sempre dá azo ao pessimismo ativo dos fascismos nem a frivolidade do otimismo que é sempre movido por uma metafísica que desculpa e repõe o concreto sempre num plano além metafísica otimista em relação à teoria e pessimista em relação à pessoa como é o caso também do móbil do pessimismoativo641 que o liberalismo também entranha apesar do seu suposto e alardeado otimismo sempre muito confiante na sua atualmente inconfessada mão invisível na sua crença na estabilidade natural dos sistemas etc mas da mesma forma sempre em detrimento e descrença nas capacidades da pessoa responsável concreta Emmanuel Mounier propõe a partir do seu realismo integral o otimismo trágico Não se trata portanto de fazer vistas grossas ao problema do mal642 certamente a consonância entre expressõeslimite segundo Paul Ricoeur não se traduz necessária nem exclusivamente em experiências de catástrofes como por exemplo as situaçõeslimite de Karl Jaspers a falta o fracasso a morte a luta As experiênciaslimite segundo Ricoeur podem ser também experiências culminantes de criatividade e de alegria Mas todas elas têm em comum comportar uma superação da ética e do político às expensas do papel positivo ainda que sempre precário e provisório dos modelos analógicos643 Temos aqui da parte de Ricoeur a mesma intenção de fazer valer no âmbito da vida além da dimensão do malogro a priori que parece ser a inspiração do artigo se encontra em Português em RICOUER Paul História e verdade Forense Rio de Janeiro 1968 pp 135 a 165 640 Esta afirmação deve ser entendida à luz da epistemologia personalista para a qual a ação começa na consciência e o engajamento é um dado primitivo cuja escolha não pode se dar em relação ao engajamento em si estamos previamente engajados mas apenas em relação a qual e ao como do engajamento 641 Aqui nos deparamos com um exemplo claro do famoso dito os extremos se encontram Todavia a questão é que o personalismo de Mounier é desconfiado em relação ao quanto estes ditos extremos são realmente existencial e axiologicamente extremos 642 Como nota MOUNIER em Mounier et sa génération Oeuvre IV p 625 Eu não tenho nenhuma vontade de idealizar É uma destas pequenas manias que um pouco de cristianismo nos tira em muito o gosto De cada amigo verdadeiro eu espero com alegria o dia em que nós nos revelaremos um ao outro uma grande fraqueza nós estaremos então fora da mentira 643 Ver RICOUER Paul Leituras 1 Em torno ao político 1995 leituras 2 A região dos filósofos 1996 Leituras 3 Nas fronteiras da filosofia 1996 Edições Loyola São Paulo passim 228 inexistencialismo de catástrofe também o problema do bem A título de ilustração isso pode ser percebido na tensão entre cumprimento da lei e ato de misericórdia que compõe a trama das experiêciaslimite que permeiam o clássico de Victor Hugo Les miserables O caso é conhecido Jean Valjean vítima da sociedade preso por dezenove anos desde menino por roubar comida um pão doce consegue escapar do cárcere de Toulon e acaba sendo recebido na casa do bispo que o acolhe com hospitalidade Da casa do bispo Valjean rouba pratarias com as quais é encontrado pela policia e levado no dia seguinte à casa do bispo onde se dá um desenlace inesperado Para espanto de todos contrariando as expectativas naturais num caso como este que implicaria naturalmente a acusação da vítima foragida e sua nova reclusão o que se dá é a quebra brusca da lógica racional do cumprimento da lei pelo ato inusitado de misericórdia por parte do Monsieur Bienvenu em relação a Jean Valjean Este ato imprevisto e inusitado que leva as características próprias do ato criador pessoal aqui rompendo com o determinismo do imperativo legal é o que vai como marca indelével escrita a fogo na alma de Jean Valjean daí por diante gerar uma das tramas mais tensas jamais escrita entre o zelo pelo cumprimento da lei pelo mau registrado personificado na pessoa do agente de polícia Javert por um lado e a existência vivida como busca de retribuição em gratidão pelo ato de um bem transfigurador total por parte de Jean Valjean quer dizer de um palco de miséria em um presente generosamente dado A partir de então as ações de Jean Valjean vão dar testemunho de uma mudança qualitativa inesperada Mas que nunca serão suficientes para demover Javert de sua incumbência de fazer cumprir a lei A tal ponto a tal paroxismo que o empedernido Javert possuidor de uma consciência retilínea escravo do dever para quem nada havia de desconhecido nada era obscuro pois tudo estava definido coordenado concentrado preciso exato circunscrito limitado encerrado tudo previsto desconhecedor em fim da possibilidade de um sentenciado responder com o bem a ponto de salvar sua própria vida num momento fatídico à pergunta Que fazer pois Javert acabara de aceitar um favor das mãos de um homem a quem ele deveria entregar às mãos da lei ele responde por outro lado de modo conseqüente com o suicídio Estes dois antípodas limites são impressionantemente compostos pelo gênio de Victor Hugo em uma tensão axiológica que atravessa do começo ao fim sua obra Todavia eles recebem do autor um desfecho em cada personagem justo em relação ao que cada qual 229 assume como valores vitais Javert foi conseqüente com os seus valores e Valjean também É nesse sentido que a denúncia à sociedade hipócrita burguesa juridista liberal que Emmanuel Mounier e sua equipe empreendem em Esprit vai também ser uma exigência a que se seja conseqüente com os valores ditos assumidos para não cair sob o crivo da crítica à hipocrisia Todavia seguese sem saber se os do partido da dureza implacável da lei seja ela na forma jurídica metafísica religiosa ateia moral etc conseguem ser conseqüentes como Javert ou permanecendo na zona cinzenta na postergação no adiamento à escolha de si pela substituição a uma outra coisa que nunca é uma escolha verdadeira cairão sob o crivo da crítica do hipócrita sempre digna de todo fariseu Esta palavra no plural hipócritas no Novo Testamento significa na boca de Jesus atores mascarados Uma atitude que além da redução costumeira à crítica puramente moralista comportamental para o personalismo não deixa de dar tema para a crítica filosófica enquanto marca uma pretensão de posse de um estatuto ontológico de superioridade por parte do fariseu em relação ao povo comum Principalmente nessa nossa conexão com o pensamento cristão e Mounier no caso dos fariseus do Novo Testamento os separados em relação aos párias da sociedade leprosos prostitutas mendigos estrangeiros publicanos cobradores de impostos judeus dos judeus para os romanos etc Ainda nessa conexão e a fim de uma melhor compreensão da indignação que o hipócrita mantém em relação aos que considera na intimidade como inferiores a si é paradigmática uma crítica do século II ao cristianismo realizada por Celso Ali ele diz Os que nos convidam a tomar parte em outras festas fazem primeiro as seguintes recomendações aquele que tiver as mãos limpas e seja pessoa educada pode entrar aquele que estiver sem mancha que não tenha a consciência de qualquer pecado em sua alma e que leve uma vida justa e honrada pode assistir à festa Agora vejamos a que classe de gente esses cristãos convidam Qualquer que se sentir pecador o insensato e ingênuo enfim qualquer desgraçado será aceito no reino de Deus Por pecador se entenda pessoa injusta um bandido um salteador um envenenador um que comete sacrilégios um ladrão de cadáveres Enfim se alguém quisesse fazer uma assembléia de ladrões seria essa precisamente a classe de gente que procuraria644 644 MACKAY John A Eu vos digo Edição de Jorge César Mota e Junta Presbiteriana de Cooperação em Portugal Lisboa 1962 p 166 s 230 Como temos tentado colocar para o personalismo a questão é mais profunda do que o moralismo hipócrita quer dar a entender Nesse sentido e para concluir este tópico esclarecendo um pouco mais o significado do otimismo trágico de Emmanuel Mounier e perspectivando o problema para o nosso tempo um outro fator interessante a ser notado em relação ao catastrofismo de que falamos antes é que buscando o apelo da razoabilidade ele se enfeita de bomsenso para dar a idéia de que a única outra possibilidade a ele seria o otimismo ingênuo ou interesseiro do liberalismo por exemplo Como vimos este otimismo do indivíduo abstrato contra a pessoa concreta no fim gera o mesmo resultado do otimismo coletivista contra o indivíduo abstrato dos totalitarismos como também já notamos Uma prova contundente e atual disso são os campos de concentração sem nome e a céu aberto nas nossas próprias cidades neoliberais sofisticadamente administradas capitalistas de economia de mercado denominado livre de democracia chamada representativa defensora de direitos ditos inalienáveis etc Estes campos de concentração ao ar livre estão aí todos os dias para quem quiser ver com olhares não falseadores e compromissados Estes atuais ajuntamentos de indivíduos sem face que vivem nas ruas da metrópole de São Paulo por exemplo em comparação com imagens dos campos de concentração nazi e comunistastalinista em uma sobeja flagrante e objetiva analogia entre si mostram claramente o sentido de expressões que vamos encontrar ao longo da obra de Mounier como as seguintes a briga do liberalismo e do comunismo é uma querela de família o comunismo é o filho bastardo do capitalismo o comunismo é a física da nossa falta o capitalismo não responde à definição clássica do tirano pois ele a ultrapassa em capacidade de destruição e de permanência no anonimato etc645 IIV1 O alcance heurístico das proposições teológicas do cristianismo primitivo para a construção de uma ética e de uma cultura ocidentais Diante dessa realidade complexa cujas rédeas se encontram nas mãos de instituições que se constituíram a partir do século XVI e que usaram como argumento para sua legitimação a sua alegada autonomia da religião quer dizer se apresentaram como laicas apresentamos a seguir alguns elementos da ética teológica cristã pelos quais poderemos 645 Teremos a oportunidade de pontuar estas afirmações no decorrer desse estudo 231 ampliar nossa visão tanto em relação ao lugar do religioso no pensamento de Emmanuel Mounier quanto ao papel das instuições religiosas principalmente cristãs na formação da cultura e ética ocidental e assim podermos melhor avaliar também o nível de autonomia do religioso ou do metafísico o qual é tomado como certo pelo que os discursos neoliberais atuais se esforçam ao seu modo para elaborar como proposição de uma ética contemporânea desvencilhada destas amarras646 O que nos interessa nessa aproximação além do que fora dito antes é também lançar luz sobre a noção de uma laicidade que para o personalismo de Mounier está ainda por se fazer Para tanto nos valeremos mais à frente do trabalho de outros647 nomeadamente de um teólogo protestante da tradição teológica chamada teologia da história cujas inspirações hermenêuticas se encontram na mesma linha de interpretação teológica que surgiu na época da formação de Mounier e que se contrapôs tanto por parte das críticas católicas quanto protestantes como já vimos ao modernismoliberalismo dissolventes da época e que foram bem aceitas por Mounier Portanto não se trata de apologética mas de destacar alguns elementos fundamentais que tendem a passar despercebidos na crítica filosófica mas que a nosso ver e para o nosso fim aqui constituem aspectos importantes e relevantes nessa nossa retomada do pensamento personalista de Emmanuel Mounier que tem o intuito de esclarecer o papel do religioso em seu pensamento filosófico Na perspectiva cristã como já vimos partese da declaração de que Deus é o Criador do mundo A contraposição dita laica especificamente a partir de Kant afirmaria a impossibilidade de se estabelecer por conta da antinomia lógica sem problemas tal declaração O que deixa claro que para Kant uma antropologia só pode ter seus constituintes a partir das condições objetivas nas quais qualquer conhecimento possível é possível ou seja sob as formas a priori de tempo e espaço Ora o conceito de Deus da Bíblia implica em um primeiro movimento mas não no todo da economia revelacional648 como temos tentado mostrar aqui a transcendência de Deus em relação a estas formas a priori mas que é como já temos também visto temperada pelo caráter histórico de seu desvelamento como revelação progressiva ao povo de Israel Por ouro 646 Refirome ao pensamento de Harbemas principalmente em HABERMAS Jürgen A inclusão do outro op cit passim 647 PANNENBREG Wolfhart Teologia sistematica op cit 648 Refirome ao que o conceito de encarnação do Logos implica como temos tentado mostrar enquanto afirmação de densidade históricotemporal 232 lado se à idéia de Deus está implicado intimamente o princípio de unidade do pensamento racional649 sobre o qual se construiu o legado racional ocidental a partir dos gregos do qual a contribuição kantiana faz parte poderíamos tentar perceber em que sentido a Razão kantiana representa realmente um ajuste e superação de concepções que extrapolam suas próprias condições objetivas entre as quais se encontraria a representação bíblica de Deus sem que ao mesmo tempo constatemos em que outro sentido levandose em consideração que esta mesma concepção bíblica não deixa de guardar alguma relação com o princípio e inspiração de unidade do pensamento racional a própria Razão kantiana não poderia ser colocada ainda como um outro nome para identificar este mesmo princípio e portanto estarmos falando na perspectiva que nos interessa tratar a contribuição da antropologia cristã aqui de um outro termo que no frigir dos ovos quer significar justamente a mesma coisa que o termo Deus quer enquanto relacionado intimamente com o princípio de unidade do pensamento ou seja fundamento A decisão kantiana de fundar o conhecimento na funcionalidade lógica do sujeito teórico realiza assim o deslizamento da subjetividade do centro lógicometafísico presente ainda em Descartes para um centro definitivamente lógico a unidade da síntese cognitiva Dessa forma perdeuse a ordenação metafísica do sujeito ao absoluto e perdeuse também o próprio estatuto metafísico do sujeito650 No entanto esse ardil kantiano como vemos não escapa de fundar um outro sujeito o lógico e um outro absoluto o da razão kantiana A questão é se esse novo absoluto tem as propriedades capazes de garantir o direito à substituição proposta por Kant enquanto um novo absoluto da Razão Nesse sentido a fim de problematizar um pouco mais ressaltamos que a noção Theos com a qual Kant tem de lidar dentro do quadro de referência teológica do século XVIII que lhe era disponível e com o qual pensa o problema da metafísica quer dizer noção já engessada pelas disputas dogmáticas dentro de quadros doutrinários confessionais restritos é bem diferente do que sempre a concepção de Theos representou em termos de fluidez dentro da experiência religiosa da Antiguidade inclusive na da cristã Nesta a fluidez da noção segue de tal maneira no sentido de negar qualquer nome essencial a Theos que o fim certo podemos 649 É o que faz notar como vimos acima de uma maneira bem erudita o filólogo Werner JAEGER La Teologia de los Primeros Filosofos Gregos op cit principalmente capítulos II e III sobre Anaximandro Anaxímenes e Xenofonte 650 SILVA Franklin Leopoldo e Ética e razão in A crise da razão Adauto Novaes Org Companhia das Letras São Paulo 1999 p 355 233 dizer é o ateísmo651 Na verdade segundo Rudolfo Otto em O sagrado a consciência de uma diferença qualitativa intransponível entre criatura e criador é um elemento essencial de todo fenômeno religioso e que vai pautar sempre os limites do cultuador em sua intenção de denominação de Deus como se tratando da posse de uma essencialidade definidora do ser da Divindade a qual permanecerá sempre como o inatingível mas que por outro lado será a tentação constante de toda dogmática Gostaríamos que estas observações fossem levadas em consideração para o que segue a fim de prevenir quanto ao teor fortemente teológico das afirmações que virão contra qualquer idéia de apologética ou de que estaríamos nos desviando do problema filosófico que nos interessa aqui Para o personalismo o logicismo kantiano não tem condições como estamos vendo e como veremos de auferir para si esse locus Já falamos da incompetência da ciência laboratorial em dizer a última palavra ou mesmo alguma com propriedade e densidade existencial se quisermos fazer jus ao sentido que é inerente e próprio a essa esfera de fenômenos sobre as questões que se ligam mais propriamente ao universo do simbólico do mitológico e do religioso como são as questões ligadas à origem do universo ou em linguagem judaicocristã à criação Portanto nos sentimos à vontade para utilizarmos aqui o termo Deus em vez de Razão como quer Kant e já que sua filosofia se coloca como o divisor de águas na história da filosofia E mesmo no trato do que se constitui como equivalência na dinâmica da construção do discurso e na medida em que o problema pode se circunscrever a problema discursivo quanto à unidade de sentido para a qual o discurso sobre o ser humano nesses níveis de significação que queremos ressaltar possa apontar Não obstante a nossa consciência de que o seu ponto de partida se dá ou melhor porque justamente se dá a partir do mito e da religião sendo esta esfera como já vimos à luz do personalismo vista como muito mais competente para o trato desse nível de problemática espiritual do que o racionalismo Portanto não esqueceremos de que não se trata pura e simplesmente como quer o neokantismo da busca de uma unidade conceitual do ponto de 651 Não podemos desenvolver esta questão aqui Mas sobre a fluidez da noção de Theos na religião grega na misteriosofia grega ver INGE Willian Ralph The Christian Mysticism op cit pp 356 ss Appendix C The Doctrine of Deification Sobre uma crítica da razão como reflexão ver também THÉVENAZ Pierre La condition de la raison philosophique col Etre et Penser cahier de philosophie nº 51 Éditions de La Baconnière Neuchatel 1960 passim Sobre a nominação de Deus na Bíblia ver também RICOEUR Paul Nas Fronteiras da filosofia col Leitura 3 Edições Loyola São Paulo pp 165 ss 3 Ensaios de hermenêutica bíblica 234 vista kantiano ou seja cognosciológico pura e simplesmente652 Mas na verdade de entender o sentido profícuo sempre marcante na história do pensamento humano como temos visto tanto em relação ao judaísmo quanto em relação à tensão frutuosa que fez parte do surgimento e do desenvolvimento da filosofia grega e que se destaca dessa unidade em movimento que integrada à noção de pessoa que o cristianismo segundo o personalismo depreende da noção de Pessoa divina coloca como legado frutuoso inspirativo da cultura e ética ocidentais Assim diz Mounier A humanidade una e solidária movese num tempo que possui um sentido Doravante a história não se resolve mais em leis atemporais ou em mitos cíclicos Está pregada a um acontecimento a Encarnação653 IIV1a Cristianismo e espaço laico Assim como toda descrição leva consigo uma prescrição como toda negação leva consigo uma afirmação na própria negação do que se nega toda crítica enquanto ataque é uma defesa do que fica afirmado como o negativo ao que se critica Não querendo forçar nenhum tipo de apologética cristã e a própria idéia de apologética cristã enquanto defesa de dogmas estabelecidos não segue uma inspiração cristã654 mas somente com o fim de ampliar o espectro para uma crítica ao cristianismo que faça jus aos 652 Como se destaca da obra de CASSIRER Filosofía de las formas simbólicas vol II op cit 653 La Petite Peur du XX Siecle Oeuvres III 1949 p 401 Ver sobre isso CULLMANN Oscar Cristo e o Tempo op cit passim 654 Para Kierkegaard o ato de fé é um ato incomunicável ou seja não racionalizável cf Temor e tremor Nos Pais da Igreja a idéia de Dogma e de apologia não têm o sentido de defesa de corpo fixo de doutrinas estabelecido de uma vez por todas como se costuma entender principalmente os apologetas do gnosticismo em sua interpretação da posição do teólogo do cristianismo primitivo Irineu de Lyon século II em sua atuação contra o gnosticismo no seio do cristianismo nascente Todavia será uma tendência que vai se afirmar aos poucos enrijecendose por parte tanto dos protestantes quanto do catolicismo romano com a Reforma e a ContraReforma Os primeiros na procura do estabelecimento e legitimação escriturística das confissões independentes e o segundo quanto a um recuo intramuros fortemente dogmático que tomará como antonomásia de apologética do cristianismo a apologética de suas doutrinas e tradição As guerras religiosas do século XVII e XVIII que vão dar muita razão às críticas dos filósofos racionalistas à religião como superstição a ser extinta vão com o surgimento e aplicação na interpretação dos textos bíblicos do método de inspiração racionalista denominado histórico crítico juntamente com a busca de neutralização e redução do fenômeno e da moral religiosa à moral racional do neokantismo do século XIX dar surgimento e caracterizar o que denominamos hoje de fundamentalismo Como vemos tratase de uma longa história Para uma exposição detalhada destas mudanças na concepção de Dogma e doutrina ocorridas na história intelectual do cristianismo em sua existência no Ocidente ver PANNENBERG op cit vol I Capítulo I La verdad de la doctrina cristiana como tema de la teologia sistematica e Capítulo II La idea de Dios y la cuestion de su verdad pp 1 ss 235 seus constituintes e suas inspirações reais quer dizer ligadas as suas fontes textuais gostaria de começar propondo à luz do personalismo e munidos de todas as recomendações anteriores uma questão que toca na dimensão do político Questão que se destacada da tão alardeada democracia que Mounier completa com formal liberal e parlamentar que já não tem mais nada a ver com as inspirações fundamentais que a engendraram na história ocidental655 O Estado moderno se diz emancipado da tutela da religião a sociedade se denomina laica suas instituições públicas se declaram laicas suas decisões se declaram baseadas numa idéia de condução científica do chamado jogo político esta aqui uma estranha noção para o que se pretende ser ciência Para tanto suponhamos que os denominados cristãos por sua representação numérica superior aos demais grupos representativos religiosos quisessem lançar mão pelas vias democráticas pelo sufrágio como meio de impor suas vontades enquanto expressão de uma política denominada cristã em relação a qual as outras deveriam então se submeter Do ponto de vista político mesmo ou seja da democracia tal qual existe por este caminho esse ato estaria justificado e a minoria discordante de ateus e agnósticos etc logo apelaria para o princípio de laicidade quer dizer de uma separação das esferas como alardeia e quer o neoliberalismo cioso por dominação mas que aqui tem como fundo o lema do tirano Dividir para conquistar Ora para o personalismo que juntamente como o liberalismo não concordaria com tal projeto teocrático cristão por outro lado proporia uma idéia de laicidade fundamentada numa distinção sem separação das esferas como já vimos a qual é originalmente uma idéia cristã Portanto contra toda política denominada cristã Indo um pouco mais além todavia essa esperança personalista de que o público não seja tomado pela hegemonia de nenhuma ideologia em particular cristã ou não deve continuar não menos viva em relação a quaisquer outras metafísicas que queiram ter ou se manter nesta hegemonia Essa tensão que o personalismo vê como frutuosa é a mesma que o neoliberalismo vê por outro lado como palco de guerra de todos contra todos a ser mantida sob as condições do jogo de 655 Cf MOUNIER Emmanuel Appel a une rassemblement pour une démocratie personnaliste in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p 9 s Se nos perguntam se somos pró ou contra a democracia respondemos nós somos pró a democracia que está por se fazer e contra a democracia que está feita Fazer soprar o espírito republicano de acordo mas fazêlo soprar inicialmente sobre os fariseus da República 236 sua dominação ideológica Há aqui portanto uma diferença axiológica gritante entre personalismo e liberalismo656 Contra a tirania do número da democracia representativoparlamentar tal como existe hoje o pluralismo frutuoso a favor das minorias modelo de democracia que se encontra na base da proposta que se mantém na concepção de democracia por se fazer do personalismo de Emmanuel Mounier que não abriu mão de ser cristão nessa convocação de todos os que sem distinção ainda se lembram da liberdade democracia personalista portanto é algo que deve também ser levado em consideração aqui nessa nossa avaliação do cristianismo de Emmanuel Mounier657 Indo um pouco mais além como vemos se há uma ideologia que tenha que provar não estar postulando uma metafísica ou melhor que tenha de esclarecer melhor os princípios de sua metafísica incontornável fora da hipocrisia do discurso da pseudoobjetividade científica hoje esta ideologia é a do liberalismo e não o cristianismo histórico como entendido pelo personalismo Quer dizer cristianismo em cuja essência se encontra arraigado como temos visto o desejo mesmo de que se estabeleça um afastamento distintivo não ontológico do político Um afastamento necessário como meio para se estabelecer uma melhor perspectiva para que melhor se possa ver o cenário e pela relação quer dizer distinção sem separação melhor influir sobre um verdadeiro espaço de todos criado pelo ato de liberdade de cada pessoa e não por decereto da ideologia liberal e burguesa Não espaço neutro como canta a mentira neoliberal para melhor comprometer o espaço laico com a sua metafísica decadente Mas espaço comprometido com a criação das condições necessárias para o desenvolvimento das capacidades criadoras da pessoa singular como veremos mais à frente Estas observações não podem ser tomadas como parte da tagarelice acerca da fragilidade da democracia formal no Ocidente Elas se ligam à crítica de Mounier ao 656 A ideologia liberal ou sua versão supostamente atualizada chamada neoliberalismo está tão entranhada na civilização brasileira que os liberais nos postos avançados já se sentem como que possuindo pelas suas idéias o espelho da natureza o reflexo unívoco de como as coisas são De tal forma que tratam de modo pejorativo como ideologia só as ideologias dos outros Um exemplo recente disso eu tive quando na televisão um repórter conhecido perguntou se a motivação do movimento de uma minoria no Senado brasileiro que milita contra a diminuição da menoridade penal e que insistia em não levar em consideração os anseios do povo nessa sua atitude intransigente etc não seria ideológica Como se a diminuição da menoridade penal pela qual estes repórteres liberais tanto anseiam não fosse ela também fruto de uma ideologia de uma visão de mundo de uma maneira que se possui e pela qual se concebe a solução dos problemas 657 Cf MOUNIER Emmanuel Appel a une rassemblement pour une démocratie personnaliste in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier op cit 237 vício de origem deste modelo cuja metafísica de base e que o alimenta a do indivíduo isolado e reivindicador liberal e burguês já não responde às demandas exigidas pela própria noção de laicidade que para o personalismo de Mounier e seu método agnóstico deve continuar vinculada ao processo de personalização e em seu apoio E através de estruturas renovadas em vista de uma reabilitação da objetividade à dialética da dramática pessoal de movimento ascendente no sentido de autoultrapassamento da pessoa criadora A laicidade não é uma conquista dos ateus apesar da sua presença ou dos deístas apesar da sua presença ou dos cristãos a pesar da sua presença ou dos agnósticos apesar da sua presença ou de quem quer que seja Como parte de uma inspiração humana profunda de liberdade no caso liberdade das peias de uma Instituição políticoreligiosa esclerosada e sufocante afirmada como vimos pelo cristianismo primitivo marca num período em que a emergência da pessoa transformada na forma de insurgência para a liberdade foi sentida de maneira muito marcadamente revolucionária por Mounier e sua equipe quando do lançamento de Esprit O evento da laicidade não pode ser retido como fato petrificado de um período Isto só faria voltar o erro que o seu espírito a sua mística sempre combateu e pelo qual se mantém como ideal Ou seja combateu o erro das forças de conservação caracterizadas por constituintes em relação aos quais a crítica personalista pretende contribuir para que sejam trazidos à luz Podemos dizer que para o personalismo estes constituintes são hoje os que preformam a ideologia neoliberal e burguesa Grosso modo o intelectualismo o racionalismo instrumental a metafísica do indivíduo isolado reivindicador e egoísta a impessoalidade absoluta de suas estruturas seu regime de irresponsabilidade etc que fazem força ainda hoje para permanecer Portanto segundo o personalismo não se pode admitir para sermos laicos precedência do ateísmo ou qualquer outra ideologia como sendo a expressão da laicidade A religião deve ser ouvida publicamente e criticada da mesma forma publicamente e de maneira científica quer dizer de maneira pertinente e honesta ao objeto como deve ser o caso para o personalismo de qualquer discurso público e em relação a qualquer outro objeto E não como pretende o neokantismo em geral e juridista em particular ao reduzir os fenômenos à unidade sintética lógica A laicidade não é propriedade de nenhuma ideologia mas uma conquista da humanidade que ainda está por se fazer 238 Todavia o espaço laico para o personalismo não pode ser uma espaço neutro Deve dinamizarse na perspectiva da criação e realização de estruturas sociais políticas econômicas culturais educacionais etc como dissemos condizentes com as exigências implicadas no desenvolvimento e desabrochamento da pessoa concreta em suas capacidades criadoras e no desenvolvimento de sua vocação específica Com Unamuno Mounier poderia dizer que o grande problema social não é o da distribuição das riquezas mas o da possibilitação do desenvolvimento das vocações658 O problema econômico para o personalismo se tornou urgente e primário por causa das circunstâncias Mas ele não tem um fim em si mesmo serve a um ideal superior garantir a cada pessoa humana concreta um mínimo pelo qual cada qual possa se realizar em sua singularidade expressiva Esta realização se manifesta e vinculase intrinsecamente ao desenvolvimento de sua vocação que é o sentido superior da pessoa IIV1b Encarnação e ressurreição do Logos no cristianismo primitivo Imanência na transcendência e transcendência na imanência Com a finalidade de esclarecimento do sentido que a noção de Encarnação toma na história do pensamento cristão cujos alcances heurísticos avançam os limites do religioso propriamente dito alguns dos quais já temos tentado aqui pontuar poderíamos lembrar que a afirmação de Habermas659 quanto à superação da idéia de História da Salvação na contemporaneidade por conta do nosso pensamento atual não se mover mais sobre a metafísica não encerra a questão É necessário ver a que metafísica Habermas se refere como finada pois o mesmo problema o de fim e exaurimento se dá para o personalismo justamente com o tipo de metafísica neokantiana de matiz liberal e ainda muito ligada à tradição intelectualista que está na base não obstante profunda e sincera da busca de uma unidade de princípio para além das diferenças que se dão no mundo da vida mas que todavia permanecem fincadas ideologicamente no âmbito do gnosiológico Justamente com o que Habermas conta em sua tentativa de superar ou ocultar esta redução problemática com o que ele chama de ampliação do conceito de razão O fato é 658 Citado por MACKAY John A op cit p 241 Del Sentimiento Trágico de la Vida p 266 659 HABERMAS Jurgen A Inclusão do Outro op cit passim 239 que a idéia de História da Salvação como concebida por Mounier e pela teologia contemporânea da história de quem recebe o nome não se relaciona à metafísica clássica que Habermas diz criticar e ter sido superada pela sociedade atual Na verdade no âmbito da história do pensamento cristão a noção de história da salvação inaugura e converge dentro deste pensamento como crítica a esta metafísica clássica Ou seja e já esclarecendo e precisando o que geralmente não se costuma fazer abusando das generalizações a história da salvação em teologia cristã inaugura uma crítica à metafísica aristotélicoplatônica conforme interpretada em geral com o seu dualismo acentuado entre tempo e eternidade que permaneceu por quase dois mil anos como chave hermenêutica na interpretação do kerygma cristão e que tem sido sobejamente contestada pela hermenêutica bíblica contemporânea Esta metafísica é negada como pertencente ao núcleo original da mensagem do cristianismo primitivo graças ao aprofundamento atual da análise das fontes escriturísticas fundantes Como sempre o problema fica mal colocado quando não se faz uma avaliação cuidadosa660 660 Não é possível que além de utilizar uma noção tão importante dentro da atual pesquisa bíblica fora de contexto e de maneira imprecisa Habermas acredite que sua reflexão não se ampare em nenhuma metafísica contestável também ela e acredite que o seu discurso seja a expressão de univocidade com o real Habermas insiste na afirmação de que nossa época é pósmetafísica no sentido de ter superado a metafísica clássica da qual a metafísica do cristianismo que Habermas chama de História da Salvação integra Para isso ver HABERMAS Ürgen A inclusão do outro Loyola p 22 s As doutrinas religiosas e da história da salvação haviam fornecido razões epistêmicas grifo nosso para que os mandamentos divinos não fossem vistos como advindos de uma autoridade cega mas sim como razoáveis ou verdadeiros grifo nosso Ora quando a razão se retira da objetividade da natureza ou da história da salvação e se transfere para o espírito de sujeitos atuantes e julgadores tais razões objetivamente razoáveis para os julgamentos e atos morais têm de ser substituídas por outras subjetivamente razoáveis É impressionante a intenção neokantiana de reduzir expressões complexas da existência humana a dados razoáveis ou verdadeiros no sentido de refletirem o núcleo da razão neokantiana que se quer defender É clara a tentativa de Habermas de neutralizar o conteúdo do discurso religioso reduzindoo a razões epistêmicas para fazer valer o seu racionalismo neokantiano Com essa neutralização bem à moda da ideologia e metafísica neoliberais fica preparado o terreno para a substituição respeitosamente necessária das razões objetivas razoáveis bem no estilo da tolerância liberal para com o religioso pelas quais ele pretende classificar o papel da história da salvação pelas outras razões subjetivamente razoáveis que sem dúvida devem ser as razões que comandam o seu método Habermas está muito seguro do seu fundamento gnosiológico de característica marcadamente neokantinana como vemos como não sujeito às mesmas críticas que se faz a esta escola e a sua metafísica Por considerála como sendo a opção válida para a construção da ética contemporânea pois diz superar a metafísica subentendese que ela não implica ela também uma metafísica de fundo Usando metafísica aqui no sentido muito geral já que é o próprio Habermas que nos dá essa condição de uso Pois ele mesmo lança mão dessa noção como referida a de história da salvação como vemos de maneira muito imprecisa Portanto a partir do que tem sido exposto dentro do campo de discussão pertinente onde foi cunhada a noção de história da salvação que é o da teologia bíblica e teologia dogmática histórica contemporâneas concluímos que ou Habermas não a entendeu muito bem ou desconsidera o que significa essa expressão no âmbito em que ela foi pensada e a usa de uma maneira diferente e livre quer dizer ao seu modo pessoal Em ambos os casos fica claro que os seus interesses já estão marcados pelo pragmatismo pelo qual não lhe interessa também esclarecer realmente o que ele quer dizer com crítica à metafísica Pois poderíamos perguntar Qual 240 Outro fato também é que uma crítica a determinada metafísica não leva consigo intrinsecamente uma absolvição da metafísica de quem critica já que ter uma metafísica no âmbito da vida finita é para o personalismo um incontornável Assim uma das subversões da mensagem cristã para a Antiguidade estava justamente em sua afirmação da dignidade de cada ser humano independentemente de sua posição social idade ou sexo isto se chocava tremendamente com a escravidão assente sobre a qual se estruturava a sociedade de então com o domínio masculino e a inferioridade ontológica feminina assumida como fato natural com a eugenia familiar praticada pelos romanos e os gregos que matavam os filhos indesejados por causa de problemas físicos etc ou simplesmente porque nasciam meninas661 chocavase com o direito de vida e morte dos senhores romanos em relação aos seus escravos e com o direito de vida e morte do pai sobre os filhos Consta na história da influência do cristianismo nos costumes antigos que após ter se tornado para o bem e para o mal a religião oficial do Império Romano até a maneira dos carteiros tratarem os animais foi afetada foi proibido aos carteiros espancar os animais662 Com a crença na encarnação do Logos o cristianismo propôs uma nova perspectiva também da relação entre o homem e a Divindade Antes da encarnação o homem perante a Divindade poderia buscar sua justificação mediante os meios pelos quais a tradição hebraica da Bíblia por exemplo coloca como revelacionais Mas não só esta tradição todo metafísica A do seu neokantismo de base também entra no crivo da crítica ou está isenta Ligar esta importante noção da teologia cristã contemporânea à interpretação substancialista que tem vigorado o que não quer dizer que esta interpretação substancialista esteja certa nomeadamente a respeito do platonismo mas que nos parece ter mais razão em relação ao aristotelismo e entender que e noção de história da salvação subscreve tal metafísica é afirmar justamente o que o sentido desta importante noção no âmbito dos estudos exegéticos e dogmáticos contemporâneos realizados principalmente nessa conexão sobre os textos neotestamentários quer negar Isso é mais surpreendente vindo de um pensador de origem alemã Onde os estudos teológicos sempre seguiram a par com os estudos filosóficos e viceversa Essa imprecisão tirando a hipótese de que HABERMAS não tenha lido nenhuma obra de Karl BARTH Emil BRUNNER Paul TILLICH Oscar CULLMANN VON RAD DELITZSCH Wolfhart PANNENBERG Jürgen MOLTMANN para citar alguns nomes protestantes ou católicos tais como Hans KÜNG SCHILLEBEECKX Hans Urs von BALTHASAR Karl HANNER etc para citar só alguns de origem germânica só pode nos soar como a capitulação de HABERMAS Capitulação ao estilo próprio da ideologia do neoliberalismo de tratar as coisas como ultrapassadas considerandose como o suprasumo do pensamento contemporâneo para tratar das exigências atuais que relevam do mundo da vida Exigências estas que surgem da vaga deixada por esta mesma ideologia decadente que não pode e não tem nenhuma condição de responder aos anseios atuais da vida contemporânea Com HABERMAS apesar do seu esforço não há nenhuma inovação pois tratase do velho e impedernido gnosiologismo neokantiano 661 Ver WAND J W C História da Igreja Primitiva até ao ano 500 Editora Custom São Paulo 2004 pp 109 ss e 156 ss 662 Ibidem 241 aparato cultícosacrificial de todas as religiões sempre tiveram essa mesma intenção mediadora663 Enquanto uma criatura cujo valor se processava com base no cumprimento das normas de culto664 era assim que a relação entre o ser humano e a Divindade se processava Isso implicou o crescente sentimento muito humano de particularismo de exclusivismo de posse que defendidos pelos que na hierarquia da casta sacerdotal se apresentavam como os capacitados escolhidos e possuidores das regras palavras e atos cúlticos sacrificiais corretos seguiu no sentido da resistência e do não cumprimento da exigência mais profunda de universalização intrínseca ao próprio conteúdo da Revelação que no caso do judaísmo se encontra já nas palavras de promessa dadas aos pais de Israel Abraão Isaque e Jacó665 No que diz respeito à tradição interpretativa judaica que vai se estabelecendo ao longo de sua história esse conteúdo universal da mensagem de Iahvé também acompanhado pela noção histórica de nação e povo escolhido666 como pela de cumprimento da Lei ao longo dessa mesma história vai se tornando apanágio e prerrogativa de uma tradição interpretativa que se afirmava de maneira legalista como já vimos contra o espírito mais profundo da própria Lei667 até se tornarem por antonomásia a vontade de Deus negando assim também o sentido universal contido como promessa na promessa mas constantemente lembrado pelos profetas em seu chamado ao arrependimento É segundo o Novo Testamento com a encarnação do Logos portanto que a mediação paradoxal que vai representar na verdade um escândalo para os judeus e 663 Ou seja prover por meios materiais e simbólicos as ações cúlticas bastantes para manter ou restabelecer uma relação amistosa e de proteção por parte da divindade tanto no âmbito privado como no público Todavia é especificamente em relação à religião de Israel onde poderemos ver instituições também religiosas resistentes a essa tendência ver DE VAUX Roland Instituições de Israel op cit pp 471 a 520 664 Usase distinguir para fins de clareza didática lei cerimonial lei do shabat lei da guerra lei do levirato lei da hospitalidade etc mas fazemos uso da noção geral de lei sem fazer distinção pois para o hebreu antigo uma se relaciona com a outra como os ramos estão para o tronco que é a Torah Não há ainda a noção de lei como um princípio de unidade abstrata racional que se possa destacar tanto como regularidade natural ou sentimento moral a obediência incondicional a Iahvé é a disposição volitiva que comanda o sentido da ética do judeu primitivo Nesse sentido mesmo o Decálogo do ponto de vista puramente histórico é sub ético diante desse princípio de obediência incondicional a Iahvé Conhecendo o hebreu antigo em que o verdadeiro bem consiste não é difícil entender que não pode haver nenhuma concepção uniforme de Lei de Deus porque o genuíno Bem não pode ser entendido como obediência à lei Ver BRUNNER Emil The Divine Imperative New York The Macmillan Company 1942 p 144 665 Gênesis 123 666 A palavra Israel quer dizer aquele que luta com Deus Gênesis 3228 667 Do qual os profetas de Israel não se cansaram de lembrar ao povo 242 loucura para os gregos como expressa o apóstolo Paulo668 vai encontrar sua expressão mais apropriada Mediação paradoxal do Infinito na particularização em uma pessoa concreta de nascimento comum em um estábulo669 cuja maior parte da vida é obscura e levada em região periférica desprestigiada670 sobre cujo nascimento e como boato como é costume em vilarejos pequenos como eram os da antiga palestina não faltava quem não levantasse a suspeita de que se tratava de um fruto de estupro ou fornicação671 que leva uma vida de pessoa comum passível de ser encontrada e vista em lugares comuns e que tem o nome comum de Jesus Segundo o Novo Testamento este homem comum faz com que o ser humano como criatura de Deus encontre sua suprema e definitiva realização como filho de Deus Em relação a isso e que nos soa ainda tão estranho como soou aos ouvidos de Celso como já vimos há implicações quanto à mudança em relação a toda compreensão da ontologia clássica Mas também no âmbito da ética no das relações da intersubjetividade implicará e requererá transformações qualitativas para os que recebem é claro o seu kerygma e crêem nele até na maneira mais comum que o ser humano tem de estruturar a realidade Não há nada semelhante ocorrido na história das religiões672 Para o que aponta enquanto especificidade na relação entre o ser humano como sua criatura e Deus com a noção cristã de encarnação este mesmo homem recebe uma outra consideração em que a comunidade de espécie agora com o Filho definirá um estatuto de filiação para com Deus que também o alcançará Segundo a visão cristã Por seu destino à comunhão com Deus que se realizou definitivamente na encarnação do Filho o próprio ser humano enquanto tal e portanto cada ser humano concreto elevase acima do mundo natural e em certo sentido também acima das relações de violência da vida social na qual 668 I Coríntios 123 669 Não é desinteressante nessa conexão notar que a palavra shmeion semeîon sinal que no Novo Testamento serve para indicar atos portentosos milagres se refira no Evangelho de Lucas 212 para designar o ato mais corriqueiro e comum do nascimento de uma criança e ainda mais num estábulo 670 Nazaré 671 É o que LÜDEMANN Gerd Virgin Birth The Real Story of Mary and her son Jesus SCM Press Ltd 1998 p 131 interpretando a réplica dos judeus a Jesus Nós não somos bastardos temos um pai que é Deus João 841 como uma acusação em relação a Jesus de ter nascido em adultério Uma acusação gravíssima dentro do ambiente moral e cultural judaico da época 672 Ver para isso a obra clássica do professor de História das Religiões da Universidade de Harvard MOORE George Foot History of religions II vols T T Clarck Edinburgh 1914 Esta obra que trata no primeiro volume das religiões politeístas cujo surgimento é focado em termos de civilização China Japão Egito Babilônia Assíria Índia Pérsia Grécia e Roma pois numa mesma civilização podiam coexistir várias expressões religiosas particulares e no segundo volume das monoteístas Judaísmo Cristianismo e Islamismo o que já se encontra traduzida por mim em parceria com outros tradutores e em processo de revisão para entrar no prelo para edição 243 se encontra O destino à comunhão com Deus torna a vida do ser humano na pessoa de cada ser humano concreto inviolável673 Este destino fundamenta a intransferível dignidade que corresponde a toda pessoa humana674 IIV1c Desenvolvimentos cristãos da noção de mediação Podemos ainda perspectivar esta questão da dignidade intrínseca a cada ser humano como a que está relacionada à intuição fundamental da existência do infinito e que faz parte também do patrimônio comum do pensamento antigo675 e conseqüentemente do problema da mediação entre o finito e o infinito Isso pode ser feito partindose de alguns dados conceituais e consensuais obtidos a partir do registro histórico no qual paradigmaticamente um pensador fundamental como Agostinho estava inserido os quais considero precípuos para a compreensão desta problemática Quer dizer partindose do pressuposto de que a mediação como tópico filosóficoteológico corrente no helenismo mais especificamente do neoplatonismo era uma questão da qual Agostinho não poderia se abster Não que fosse este o único fator que o tenha levado a sua construção filosófica pois sabemos a partir da leitura das Confissões acerca do ato de fé da sua convicção em Jesus como o Cristo o Mediador Por outro lado também para os filósofos deste tempo tal necessidade da mediação não se baseava pura e simplesmente no fato de ser uma querela da moda com a qual aquele que quisesse participar do círculo intelectual vigente devia inevitavelmente depararse Repetimos aqui a citação de Émile Bréhier O problema que agita os espíritos no fim do mundo antigo era o de descobrir uma realidade inteligível superior à realidade sensível onde se pudesse encontrar paz repouso e felicidade Qual é a vida íntima dessa realidade inteligível quais são os procedimentos a 673 A fundamentação legal dada em Gênesis 96 segundo PANNENBERG op cit cf nota 1 p 190 para a proibição do homicídio se refere à criação do ser humano à imagem de Deus Nesse sentido tem um caráter mais geral que a fundamentação cristológica que Pannenberg apresentara antes Com efeito em 2 Coríntios 44 só em Jesus Cristo a imagem de Deus apareceu em figura humana quer dizer plenamente realizada e em todo caso só aqui se pode descobrir o destino do homem à comunhão com Deus como o sentido de sua condição como imagem de Deus comunhão apresentada no texto de Pannenberg como fundamento da inviolabilidade da pessoa e portanto de sua dignidade 674 PANNENBERG Teo Sist op cit p 190 675 MONDOLFO Rodolfo El Infinito en el Pensamiento de la Antigüedad Clásica Ediciones Imán Buenos Aires 1952 244 empregar para que se possa participar nessa vida eis aí de todas as questões que apaixonam cristãos e pagãos questões que também tentam resolver tanto os gnósticos no século II quanto Plotino no século III e a dogmática cristã no século IV676 Portanto esta questão estava ligada a apreensão de convicções profundas que quando adotadas pelo agente imprimiriam uma configuração axiológica incontornável em sua compreensão da vida ética onde a partir da qual e de maneira também incontornável delinearia seu modus vivendi sua existência677 Daqui portanto não podemos negar o fato da peremptoriedade da questão acerca da definição do que seria por exemplo a verdade necessária na época de Agostinho tanto para o enfoque sobre a mediação como para o fato que fornece elementos à questão da interioridade no agostinismo onde a verdade se encontra dentro de cada um de nós sendo Deus esta verdade de que o Sitzimleben filosófico da época nutria a defesa de verdades religiosas que se julgavam reveladas ao homem ab antiquo e por ele passíveis de serem redescobertas na intimidade da consciência678 Este fato é importante pois também nos ajuda a melhor situarmos a contribuição do cristianismo em relação ao seu meio ambiente nascente Vemos então conforme temos enfatizado que a contribuição do cristianismo se dá mais no sentido do como ele radicaliza intuições axiológicas que jaziam arraigadas na profundidade dos anseios humanos apresentadas até aquele momento com muita reticência e timidez por parte tanto do pensamento hebraico quanto do grego Portanto essa sua contribuição como temos dito não pode ser entendia nem no sentido da originalidade como entende o romantismo e nem no sentido de início ab ovo como quer o racionalismo Por fim é interessante notarmos também como em um outro registro no da Mística Cristã especialmente a especulativa a necessidade da mediação vai tomar uma dimensão tão abrangente em especial a partir de mestre Eckhart quer dizer extrapolando as circunscrições subjetivas do indivíduo que vai fazer com que os místicos pensem a mediação como um evento de caráter natural como intrínseco mesmo ao ser da natureza ao cosmos Da natureza enquanto ocultando uma esperança secreta de ser restaurada pela 676 BRÉHIER Émile Études de Philosophie Antique Presses Universitaires de France Paris 1955 Sur le problème fondamental de la philosophie de Plotin p 218 677 É interessante notar a este respeito o que escreve Etienne GILSON em A Filosofia Na Idade Média ed Martins Fontes 1998 São Paulo p 105 Capítulo II Os padres Latinos e a Filosofia sobre a conversão ao cristianismo de pagãos cultos tais como Tertuliano Minúcio Félix Arnóbio Lactâncio santo Ambrósio e o próprio Agostinho 678 ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia Editora Mestre Jou São Paulo 1970 Artigo Neoplatonismo 245 Divindade cujas marcas nela podem ser vistas por toda criação do ser do ser humano como mantendo em si como elo de ligação a Fünklein a centelha divina que não se apaga mas como também intrínseco ao ser de Deus que busca movido pelo amor relacionarse com sua criação679 Com a Mística o modo de ser da relação que para o personalismo de Emmanuel Mounier680 constitui a experiência mais originária da existência humana681 também extrapola a finitude e invade a própria infinitude estabelecendo o desejo latente de comunhão nestas dimensões díspares ao que Mounier vai denominar com base na noção de encarnação do cristianismo de transcendência na imanência682 e com base na noção de ressurreição para o Novo Testamento há um corpo no céu a imanência na transcendência completando assim a totalidade que no cristianismo nunca será um ente de razão estático uma substância uma idéia lógica compensadora de uma outra idéia mas uma totalidade viva pulsante em interação dialética na história No entanto quanto à mesma problemática da mediação quer dizer do estabelecimento de um locus pelo qual se pudesse alçar a fundamentação e legitimação das instituições e da cultura humana na época précristã como já vimos já existe a idéia de uma dignidade dignitas não só aplicável aos indivíduos destacados por sua ocupação ou autoridade mas ao ser humano em geral O De oficiis I 30 106 de Cícero a fundamentava na excelência da razão que obriga ao homem a comportarse racionalmente683 Contudo em Cícero diferentemente do alcance que se dá ao uso deste termo a idéia de dignidade não leva consigo todavia a inviolabilidade da vida humana de cada indivíduo Esta idéia só se dá com a ordenação do ser humano a uma instância superior que o subtrai ao poder de 679 Ver INGE Willian Ralph Christian Mysticism op cit especialmente o capítulo que trata do elemento místico na Bíblia Lecture II onde o autor analisa o Evangelho de João p 9 e as Conferências sobre a Mística Especulativa Conferências III Christian Platonism and Speculative Mysticism I In the East p 77 e IV Christian Platonism and Speculative Mysticism II In the West p 125 680 Com BUBER Martin Eu e Tu Editora Moraes São Paulo sd 681 Contrapondose nesse sentido ao primeiro momento da reflexão de Emmanuel Lévinas que funda a experiência originária na fruição gozoza do mundo por parte do eu solitário que parece representar um flerte perigoso com o solipsismo ingênito do seu mestre Heidegger frente a quem por outro lado contrapõe a experiência de felicidade no âmbito mesmo da experiência originária sobre a qual o Dasein de Heidegger não tem nada a dizer Ver SUSIN Luiz Carlos O homem messiânico uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas coedição Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes RS e Editora Vozes Ltda RJ 1984 682 Deitado na tarimba do campo do temporal Cf La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 101 683 Cf LEONHARDT Jürgen Cícero Filosofia entre ceticismo e confissão Filósofos da Antiguidade II Do Helenismo à Antiguidade Tardia Michael Erler Andréas Graeser orgs Editora Unisinos 2003 p 81 246 disposição última de outras instâncias e de um modo especial também à disposição sobre ele de outros homens e da sociedade Nesse sentido foi com razão portanto que a tradição teológica ocidental buscou o fundamento da dignidade pessoal do ser humano em sua criação à imagem de Deus684 O destino do ser humano à comunhão com Deus constitui nessa tradição também o pressuposto inevitável da função da dignidade humana como o conteúdo de um princípio jurídico supremo e como base dos diversos direitos humanos que se encontram afirmados nas modernas declarações destes direitos 685 Segundo Pannenberg na Carta das nações Unidas de 26 de junho de 1945 põese a fé em the dignity and worth of human person em imediata conexão com a fé nos direitos fundamentais do ser humano686 No Preâmbulo da Declaração dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948 segundo Pannenberg o reconhecimento de uma inherent dignity de cada um dos membros da humanidade fundamenta a afirmação de uns direitos iguais e intransferíveis de cada ser humano687 Podese observar também que a idéia de dignidade humana tem também raízes mais atuais em elaborações que procuram se distinguir das cristãs Assim a idéia de Cícero segundo Pannenberg de uma dignidade derivada da razão humana e que obriga o ser humano em seu comportamento foi assumida e reelaborada especialmente por Samuel 684 Cf Texto destacado em PANNENBERG Wolfhart Teologia Sistematica op cit vol II p 190 s Assim já Teófilo de Antioquia ad Autol II 18 posteriormente também por exemplo Gregório de Nissa em seu escrito sobre a criação do homem MPG 17 11051108 O ponto de vista da dignitas da natureza humana por sua condição de imagem de Deus se encontra posteriormente no entanto em Leão Magno Sermo 242 MPL 54205 A cf 276 ibid 220 B em Gregório Magno Moralia 949 MPL 75900 Na teologia escolástica foi especialmente ressaltado por Boaventura I Sent 2521 opp 2 Opera ed Quaracchi 1442 Em Tomás de Aquino a idéia da dignitas aparece em conexão com o fim do destino do homem ao conhecimento e ao amor de Deus ScG III 111 e também como característica da pessoa por sua natura intellectualis De pot 84 e 93 e outros lugares porém de outro modo não tem papel algum na doutrina do homem como imagem de Deus 685 Para uma discussão mais detalhada do desenvolvimento histórico e jurídico aplicativo da Declaração Universal dos Direitos Humanos em âmbito atual ver em Direitos Humanos Construção da Liberdade e da Igualdade Governo do Estado de São Paulo Centro de Estudos Outubro de 1988 vários artigos 686 Cf citação de PANENNBERG Teol Sist op cit vol II p 191 HARTUNG F Die Entwicklung der Menschen und Bürgerrechte Von 1776 bis zur Gegenwart 1972 130 687 Ibidem 144 para ulteriores referências a respeito cf PANNENBERG op cit vol II 264 e 283 A Lei Fundamental alemã de 1949 vai inclusive mais além enquanto constitui a inviolabilidade da dignidade humana afirmada no artigo 11 em um ponto de partida explícito por isso da obrigatoriedade dos direitos humanos no artigo 12 As constituições modernas como a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha de 1949 evitou um reconhecimento explícito desta realidade No final desta dissertação Apêndice encontrase traduzida a Declaração dos Direitos das Pessoas e das Comunidades elaborada por Emmanuel Mounier e que foi objeto na época de discussão com outros intelectuais e serviu como uma das bases de partida da Comissão da Constituição da França de 1945Ver Les certitudes difficiles Oeuvres IV p 99 247 Pufendorf e também por Immanuel Kant no sentido de sua fundamentação da ética sobre a autonomia da razão como já vimos688 Com respeito a Kant689 contudo a sua exigência de que cada ser humano seja considerado sempre como fim em si mesmo e nunca como simples meio690 dificilmente pode ser deduzida pura e simplesmente da natureza racional do ser humano Em Kant segundo Pannenberg vemos por outro lado realmente a herança do espírito cristão todavia sua tentativa de darlhe uma fundamentação puramente racional granjeou um êxito antes duvidoso Para esse teólogo contemporâneo algo parecido se dá com a concepção moderna de que a dignidade humana constitui o critério supremo do direito A conexão desta concepção com a idéia de uma inviolabilidade da pessoa de cada ser humano concreto segundo Pannenberg não pode desligarse de sua origem bíblica sob pena de verse privada de uma fundamentação sólida Pois a fundamentação bíblica ultrapassa a idéia jusnaturalista da igualdade dos seres humanos como seres racionais691 e também a exigência jusnaturalista de reciprocidade692 a regra de ouro graças ao caráter incontornável e que prevalece como exigência fundamental que nela a instância constitutiva da dignidade humana tem693 Em vão a razão tentará reivindicar este caráter incontornável como temos visto A autolegislação da razão sobre a qual Kant queria fundamentar a idéia de uma inviolável dignidade de todo ser humano já há muito tempo tem feito em pedaços os altares da autodeterminação por conta do arbítrio individual e o conseqüente pluralismo Porém de algum modo a fundamentação religiosa segundo Pannenberg dos direito humanos segue todavia viva no respeito do moderno Estado de direito pelos direitos pessoais que correspondem a cada ser humano694 688 Sobre a fundamentação que Pufendorf faz dos direitos humanos na idéia de dignidade humana do ser humano cf citação de PANNENBERG Teol Sist op cit vol II p 191 H Welzel John Wise und Samuel Pufendorf Rechtsprobleme in Staat und Kirche Hom R Smend 1952 387411 392s 689 PANNENBERG op et loc cit KANT I cf seu Grundlegung zur Metaphysik der Sitten 1785 Akademieausgabe 4 434ss 690 Cf PANNENBERG op et loc cit Op cit 428s 691 A razão não é toda a pessoa 692 Como vimos no caso do personagem Jean Valjean de Victor Hugo graças ao problema do bem acima da lei há a misericórdia 693 Não se trata simplesmente de apologia ao cristianismo mas da problematização da idéia de dignidade humana no sentido de recuperar suas verdadeiras fontes históricas e fazer ressaltar seu conteúdo axiológico e seu caráter heurístico que na formulação que lhe dá o personalismo de Emmanuel Mounier como relacionado intrinsecamente à idéia de igualdade também dado o caráter universal de sua intencionalidade se coloca como base para se pensar os constituintes de uma cultura e ética da pessoa 694 Falamos antes da Declaração de Mounier depois de algum tempo o diretor de Esprit passou a desconfiar da eficácia de tais Declarações Todavia ligada ao nosso contexto brasileiro ver o que a Declaração 248 Um aspecto importante a ser destacado da idéia de dignidade humana advinda do cristianismo é que ela concedida por um Deus que se define segundo o cristianismo por Amor nenhum ser humano possui por próprio merecimento e tampouco a deve de outro ser humano como tampouco também ninguém pode priválo dela nem segundo a teologia bíblica da promessa o próprio Deus695 Para a teologia cristã o fato que caracteriza a dignidade do ser humano é o seu destino à comunhão com Deus que definindose como Amor de acordo com o Novo Testamento696 é o elaborador e conhecedor do verdadeiro projeto de vida para o ser humano de quem é o Criador Portanto de acordo com o pensamento cristão é o desvio deste projeto o qual converge para a comunhão com Deus a alienação deste projeto fundamental o que caracteriza a miséria do ser humano na verdade uma oposição de vontade radical entre a conduta do ser humano e o seu destino mais ingênito Fora do âmbito teológico e no âmbito filosófico esse destino se definirá segundo o personalismo como a luta conjunta e plural pelo estabelecimento das condições de fato pelas quais a pessoa humana possa assumirse como projeto e encontrar as condições apropriadas para a sua realização No conceito de autoalienação tanto Hegel como Marx destacaram a atividade humana como origem da alienação Em comparação com a idéia de alienação no cristianismo segundo Pannenberg talvez possamos ver alguma semelhança entre a alienação hegeliana a marxista e a cristã no sentido de que nas duas primeiras pressupõemse uma originária autoidentidade do homem da qual este teria prescindido pelo autodespojamento e autoalienação o que se parece com uma reminiscência da idéia cristã do estado original e a queda como já vimos No entanto em uma perspectiva cristã segundo Pannenberg o ser humano nunca esteve diretamente e por si mesmo em posse da própria identidade pois antes a tem conseguido unicamente por sua relação com Deus com o próximo e a todo o finito697 Em linguagem personalista a identidade do ser humano também se dinamiza sob o modo de ser do artefato Essa identidade não é uma tarefa fácil Universal dos Direitos Humanos tem fomentado em termos de conquista humana em Direitos Humanos Construção da Liberdade e da Igualdade op cit 695 Isso é expresso em termos do que já dissemos como promessa em relação a qual a Divindade fiel consigo mesma segundo a Bíblia fica também comprometida 696 E de maneira mais pontual e quase como uma definição em I João 48 Deus é amor 697 PANNEMBERG op cit vol II p 193194 249 ou pronta ela se dá à pessoa segundo Mounier como uma tarefa constante e numa luta pelo real698 IIV1d O autoultrapassamento da pessoa Esta maneira de entender a alienação pelo cristianismo enquanto afastamento de um projeto que segue na direção da realização de uma natureza perfectível do ser humano vai nos levar às noções personalistas fundamentais das quais temos falado Dentre elas a de historicidade quer dizer de natureza humana mas fora da compreensão da metafísica clássica ou seja como algo inacabado quer dizer sob o modo de ser do artefato Só uma compreensão da natureza humana como intrinsecamente inacabada em outras palavras como perfectível e que siga neste seu movimento próprio de autoconstrução de uma identidade sempre dramática o sentido de um projeto que implica realmente fora de todo círculo infernal do reducionismo espiritualista materialista biológico instintivo etc um verdadeiro movimento de transcendência é que pode garantir um sentido adequado à noção de ultrapassamento que no personalismo de Emmanuel Mounier se mantém ligada como tarefa colocada a todas as pessoas Em outras palavras tarefa que implica tanto que o ser humano tem de ultrapassarse a si mesmo no plano da sua expressão singular contra suas instalações psicológicas como no plano de sua expressão social contra os engessamentos criados pelas instituições que ele mesmo cria O ultrapassamento tal qual propõe o personalismo encontra então seu equilíbrio enquanto um duplo movimento um contra a tentação das instalações internas ao ser humano e o outro contra a das instalações externas temporais um contra o psicologismo e o outro contra sociologismo Por outro lado essa noção fundamental de ultrapassamento que muito antes de Nietzsche declarála não obstante o mérito de ter sido ele quem o fez da maneira mais firme na história da filosofia ocidental pertence como temos visto ao núcleo mesmo do sentido mais essencial embutido já na manifestação do mito e da religião Nomeadamente a cristã pela maneira como a transcendência do Deus da Bíblia vai se fazendo enquanto 698 Vamos ver mais sobre isso Todavia ver MOUNIER Emmanuel Traité du caractère Oeuvres II Cap VII La lutte pour le réel pp 327 ss 250 revelação progressiva Como já vimos na história de Israel como promessa e no Novo Testamento como Encarnação e Ressurreição do Logos ou seja em linguagem filosófica transcendência na imanência e imanência na transcendência Assim cumprindo o sentido relacional que se dá como experiência originária do ser contra todo tipo de dualismo metafísico Já falamos como a tradição da Grande Mística intuindo dessa experiência originária do ser como relacional concebe a Encarnação com todos os seus elementos paradoxais e absurdos como um evento natural Segundo o personalismo o ato de ultrapassamento caracteriza a verdadeira fé como temos tentado mostrar enquanto ato Porque este não implica as taras próprias a toda vontade de reducionismo quer dizer de qualquer ação que em nome seja da objetividade da cientificidade da compreensão certa de como as coisas realmente são do aprimoramento da espécie da fatalidade natural das demandas do mercado do equilíbrio científico social da eugenia da vontade de Deus etc como também de qualquer ação seja por parte da família da sociedade do Estado do partido da religião igreja da escola enfim de qualquer instituição que carregue a marca do homo artifex qualquer ação que fira de alguma maneira as prerrogativas pertencentes a cada ser humano afirmadas segundo o Novo Testamento evfapax éphapax de uma vez por todas como conseqüências dele ser imagem e semelhança de Deus Assim o sentido fundamental do ultrapassamento tomado da filosofia dialógica de Emmanuel Mounier apresentará a transcendência antes que como uma noção de implicações puramente metafísicas na verdade como uma noção portadora de um alcance ético preciso uma noção que indicará um direito699 À natureza humana Mounier preferirá assim a noção de condição humana mais afim ao seu personalismo IIV1e Aproximações conclusivas sobre a compreensão de Emmanuel Mounier do Cristianismo As obras em que Emmanuel Mounier se detém especificamente sobre o que ele entende ser o papel do cristianismo na história são Personnalisme et Christianisme 1939 699 Teremos a oportunidade de desenvolver mais essa noção de transcendência como direito abaixo em Pessoa e existência Todavia nela se encontra o sentido pelo qual as Declarações dos Direitos tem de depararse com o seu limite enquanto construção meramente racional ou como produto do homem racional e manifestar da sua parte uma certa dependência de estruturas axiológicas mais profundas do que a da pura racionalidade e que no âmbito de suas manifestações como conquista humana devem permanecer abertas ao aprimoramento como aberto é o próprio movimento de personalização segundo o personalismo 251 Les Chrétiens devant le Problème de la Paix 1939700 LAffrontment Chrétien 1945 e Feu la Chrétienté 1937 a 1949 pela Editions du Seuil 1950701 Não obstante as referências à religião e ao cristianismo em particular abundam em sua obra Mounier nunca negou sua adesão ao cristianismo Como vimos anteriormente tratase para ele de entender como fazer cumprir as exigências de uma filosofia do engajamento702 que envolve um ato que implicando toda a pessoa levará consigo inevitavelmente sua fé a qual como já vimos mesmo fora das ressonâncias religiosas para o personalismo é o elemento que mais especifica a relação da pessoa seja com o mundo interior ou o exterior Pois o ato de fé segundo o personalismo703 é o único que especifica de modo mais exato o modo de ser do universo pessoal Pois só ele como é o caso de toda verdadeira fé implica uma adesão total704 Para tanto a fé não propõe à pessoa como não propôs a Mounier uma solução confortável Como nota muito bem Francis Jeanson em relação ao diretor de Esprit um homem pode ser plenamente crente presente em todos os lugares com sua fé sem cessar por isso de estar em conflito consigo mesmo no seio dessa fé705 Já vimos também que não se trata de apologética Como observa Henri Marrou não se passa o tempo a demonstrar a verdade do cristianismo Este é para ele Mounier um fato de onde parte para avançar atrevidamente706 Marrou loc cit observa a dificuldade de Mounier em elaborar no fogo dos eventos em que surgiam os seus textos uma expressão precisa para o que queria dizer Isso deve ser levado em consideração aqui em relação à noção de cristianismo dentro de sua filosofia dialógica Todavia Mounier graças 700 Ambas em Oeuvres I 701 Ambos em Oeuvres III 702 Os textos de LANDSBERG Reflexões sobre o engajamento pessoal de 1937 e O sentido da ação de 1938 lançados em Esprit vão determinar o sentido do engajamento como o personalismo difundido pela revista Esprit procurou imprimir nessa noção Mounier na época já chamava estes textos de LANDSBERG de clássicos do personalismo Todavia o sentido já vinha se construindo anteriormente com Mounier LALAND André Vocabulaire technique et critique de la philosophie Presses Universitaires de France 1951 em nota sobre esta noção de engajamento apresenta o seguinte Sobre engajamento Esta palavra foi tomada sobretudo no sentido especial indicado acima no grupo da revista Esprit fundada em 1932 Ver Emmanuel MOUNIER Révolution personnaliste et communautaire 1935 notadamente p 33 70 73 e 9091 onde o engajamento é relacionado à fidelidade A palavra separada do engajamento cai na eloqüência e o farisaísmo está mesmo imperceptivelmente no coração de toda eloqüência moral Ibid 255 Todavia se tornou muito usual na literatura filosófica contemporânea 703 Ver sobre o ato de fé segundo a perspectiva personalista em LACROIX Jean O personalismo como anti ideologia Coleção Substância RÉS Editora Limitada Porto Portugal 1977 pp 43 ss Capítulo II Personalismo e fé 704 Cf acima Intermezzo fidei p 51 705 JEANSON Francis Une pensée combattante in Esprit 1905 1950 op cit p 858 706 MARROU Henri Un homme dans lEglise in Ibidem p 897 252 aos sólidos conhecimentos teológicos e de teologia contemporânea da história em particular como já notamos que recebeu quando da sua formação sob a orientação do exegeta Pouget procura diferenciar o cristianismo de suas projeções sociológicas Em relação ao cristianismo Mounier busca suas inspirações fundamentais nos textos do Novo Testamento e em suas fontes mais primitivas707 Desde os Pais da Igreja prosseguindo em sua trajetória ao longo da história cujas pistas podem ser encontradas por quem queira ter a paciência de buscálas nas mais diversas expressões oriental e ocidental Atravessando a Idade Média até a moderna e a contemporânea em que as inspirações da Grande Mística servirão para Mounier como as bases sobre as quais se dará sua compreensão acerca da relação entre Revelação Cristã e Natureza Por conseguinte da cristandade como projeção sociológica ou seja cristandade formada pelas Instituições cristãs presentes na sociedade e o seu cristianismo subsumido pelas formas sociológicas preponderantes e do cristianismo como portador do movimento sinuoso do crístico na história A projeção sociológica da cristandade ou o cristianismo in perpetuum para muitos mas não para Mounier para o qual também dirige sua crítica é o que se construiu a partir do século XVI e ao qual ele chama de cristandade burguesa Esta maneira de perspectivar o problema da compreensão do cristianismo não é nova É recorrente em todas as áreas em que há boavontade para se fazer a boa crítica O revisionismo marxista é uma tentativa de resgatar o marxismo dos engessamentos históricos que se apresentavam como sendo sua expressão última a crítica da psicanálise testando a pertinência do freudismo tenta salvar a psicanálise dos seus determinismos e de si mesma708 os comentadores simpáticos a Nietzsche tentam encontrar as linhas mestras do pensamento nietzschiano para mostrar que há uma coerência interna ao pensamento de Nietzsche709 capaz de ser delineada e tentam desolidarizar Nietzsche de ideologias e métodos que comprometeriam a isenção e autonomia do projeto de crítica radical afirmado por Nietzsche se estas críticas são pertinentes e cumprem o que propõem é uma outra questão pois da mesma forma quanto a que Mounier faz em relação ao cristianismo 707 Mounier manteve sempre amizade com o teólogo católico Henri de Lubac que junto com o Pe Daniélou lançaram a coleção Sources chrétiennes tradução dos textos da patrística para o Francês 708 Mesmo Karl Popper reconhece méritos na psicanálise Ver POPPER A sociedade aberta e seus inimigos op cit vol 2 p 370 nota 7 709 O que não se sabe se o próprio Nietzsche autorizaria mas enfim 253 depende de um pouco de boavontade para se fazer a prova estudandoas em seu lugar próprio A abordagem que Mounier faz do cristianismo é histórica O cristianismo é um princípio de vida e se ele é também um princípio de verdade é na vida que ele o comunica710 Mounier não parte do dogma propriamente dito no sentido de avalizar determinada confissão em detrimento de outra por considerar aquela mais ortodoxa que esta Podese dizer que ele parte da inspiração que fundamenta o Dogma não obstante sua manifesta adesão ao catolicismo romano e seus às vezes esclarecimentos quanto a esta sua adesão lembrando que ser católico é antes de tudo para ele ser humano e universal711 Isso corrobora portanto com o que temos falado acerca da tensão entre os aspectos de sentido universal intrínsecos ao sentido mais profundo da Revelação e das resistências retentoras deste sentido por parte da religião e do dogma institucionalizados Portanto podemos deduzir o catolicismo de Mounier da seguinte maneira quanto mais católico se é menos romano se é e quanto mais romano se é menos católico se é Todavia Mounier parece ver na tradição do catolicismo romano enquanto expressão antes de uma inspiração caracterizadora geral da sua espiritualidade do que uma localização espaço temporal de sua instituição um sentido histórico de busca de equilíbrio no trato das questões que muito o atrai O que todavia não impede também suas críticas a este equilíbrio tomado como segurança Há um ateísmo confortável como há um cristianismo confortável A perspectiva da aniquilação pessoal não inquieta mais o sono satisfeito do radical socialista mediano quanto o horror da transcendência ou o terror da reprovação perturba as digestões espirituais dos freqüentadores da missa do meiodia712 Mounier não deixa de fazer duras críticas ao catolicismo mancomunado com a burguesia instalada Um católico francês imaginaria naturalmente nos cem últimos anos que as prisões possam ser um lugar mais normal para ele que a benevolência 710 LAffrontament chrétien op cit p 25 711 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 421 Essa obra é um retrato feito com as correspondências e anotações pessoais de Emmanuel Mounier da vida e do movimento personalista animado por ele juntamente com outros Foi recente e separadamente relançada acrescida de textos que não constam em Oeuvres IV como Emmanuel Mounier e sa génération Lettres carnets et inédits Parole et Silence França 2000 430 páginas 712 LAffrontament Chrétien op et loc cit Contra uma compreensão do dogma baseada numa concepção de Divindade restrita aos limites de sua afirmação acrescenta Mounier esta nota ao texto acima A crença contrária é portanto freqüente Denis de Rougemont Politique de la personne 93 não escreve que o sistema romano fornece ao fiel um equilíbrio durável mesmo se a fé desapareça 254 tranqüilizadora dos discursos oficiais Que a pessoa por nome cristã não conte pois com seus títulos históricos eles são manchados de más lembranças e os pergaminhos são um frágil argumento em plena batalha Que ele espere pouco de seus hábitos e de sua eloqüência e dessa panóplia713 de razões que fazem parte do seu conforto714 Mas também ao catolicismo propenso à subserviência e muito condescendente com os desmandos e a doutrinação do partido comunista Constituise entre vários intelectuais por desencorajamento inércia leviandade ou indigência doutrinal certa corrente de complacência com Moscou que nos contornos envolveu alguns intelectuais católicos isolados No instante em que o pensamento livre morria aos poucos por sufocação na URSS e em que esta asfixia espiritual pesava sobre milhões de homens obscuros denunciávamos tão indigna omissão da inteligência715 E ainda homens de ação que colaboraram mais ou menos estritamente com as forças de esquerda censurados por não terem tido suficiente confiança no peso de suas idéias ou na seriedade de seu compromisso no sentido de apoiar com todas as suas forças a direção contrária à arrancada comunista Poderiam fazêlo porque deviam e não tenho conhecimento de que a fraternidade de ação tenha sugerido ao Partido Comunista delicadezas iguais as suas716 Como também a uma certa moralidade com nome de espiritualidade cristã Em lugar disso tanta serenidade e tanta mansidão tanta fidelidade e tanta virgindade tanta compreensão tanta tolerância não serão antes envelhecimento precoce717 Todavia e por outro lado estas críticas cabem muito bem a toda e qualquer expressão cristã seja ela católicoromana gregaortodoxa protestanteevangélica copta etc pois não deixam de portar o sentido ecumênico em seu alcance pois tocam em questões fundamentais que vão além das confissões Um outro fato interessante e que realça ainda mais o caráter singular do catolicismo absolutamente ecumênico de Mounier antes que esta palavra estivesse difundida é justamente sua íntima relação de amizade irrestrita com os cristãos protestantes aos quais apóia e pelos quais é apoiado e com os nãocristãos e descrentes que da mesma forma 713 Armadura completa 714 LAffrontment Chrétien Oeuvres III p 9 715Tentations du commnunisme Esprit junho de 1934 Alerte à la cultura dirigée novembro de 1936 Le Temps du mépris julho de 1937 Nota de Emmanuel MOUNIER ao texto acima em Feu la chrétienté Oeuvres III p 34 716 Feu la chrétienté op cit p 556 s 717 LAffrontament chrétien op cit p 37 255 participam todos no diálogo franco e aberto do laboratório de idéias chamado Esprit718 Parece mesmo que Mounier procura ver e fazer a experiência da atualidade que perdura da inspiração cristã719 e que é anterior ao dogma formulado no âmbito mesmo das formas históricas cristãs em que esta inspiração se encontra como parte ofuscada e opaca na esmagadora maioria das vezes mas ali presente Antes que dar atenção aos engessamentos históricos que são e devem ser sempre objeto da crítica sociológica lúcida Mas que todavia se tornam o prato cheio dos que não resistem ao reducionismo sociológico na análise dos fenômenos não estritamente sociológicos mas sociologicamente tomados a tentação do sociólogo será sempre o sociologismo Um exemplo desta aproximação histórica do cristianismo por parte de Mounier é o seguinte Os teólogos arremessamse nos abismos da Trindade dois séculos se empolgam em favor ou contra a procissão e a ladainha por um turbilhão de concílios e de heresias insinuase na história pela definição das pessoas divinas e suas relações o duplo princípio personalista e comunitário que daí por diante regulamentará os percalços das sociedades Gerações de energia espiritual se gastam para manter no Verbo encarnado a integridade da natureza humana e a plenitude da Encarnação graças a que a única de todas grifo nosso a civilização européia não fugirá do mundo e reunirá o ativismo do trabalho humano com o sentido arraigado da contemplação720 A fé em um Deus infinito e que conclama o homem a sua perfeição dá curso a uma civilização infinitamente ativa e progressiva que contrasta com as pesadas imobilidades da Ásia ou do Islã Poderseia comparar esta relação da inspiração cristã nas realizações práticas das civilizações com a das matemáticas transcendentes nas invenções tecnológicas São as pesquisas matemáticas em aparência as mais insensatas e mais distantes na intenção dos pesquisadores de toda aplicação prática 718 Além do projeto de crítica cultural geral empreendido pela revista Esprit houve por parte de Mounier junto com outros personalistas esboços de projetos conjuntos de elaboração de centros Esprit para empreendimentos de projetos culturais criação de pequenas comunidades em que pelas quais se pretendia aplicar e testar de maneira mais concreta na vida comunitária os princípios personalistas de respeito integral à vida íntima com a abertura corresponde e respeito também integral às exigências essenciais da vida relacional da vida comunitária Viver comunitariamente e no máximo de liberdade e solidão Para isso ver a correspondência de Mounier com o correspondente protestante suíço ÉmileAlbert Niklaus em Esprit Emmanuel Mounier 19051950 op cit pp 1002 ss Sobre a relação e o diálogo de Mounier com os protestantes ver HEBDING Rémy Dialogue avec les protestants in Emmanuel Mounier Actes du colloque tenu à UNESCO op cit vol 2 pp 367 ss 719 Já falamos da preferência de Mounier em vez de filosofia cristã denominar pensamento cristão ou pensamento de inspiração cristã 720 Feu la Chrétienté Oeuvres III p 698 s Eis o ato de coragem do Ocidente de que falamos em aceitar a vocação civilizadora 256 que afinal como as pesquisas sobre a natureza das ondas ou a constituição do átomo deram ensejo às mais surpreendentes utilizações É que os matemáticos iam procurar mais intimamente que as combinações do engenheiro e em dimensões outras que suas dimensões mecânicas um segredo da matéria que revelado desgostava os tímidos com suas revelações Assim é que o cristianismo contribui mais para as obras dos seres humanos e mais externas quando crê em intensidade espiritual do que quando se perde em tática e em desmatamento Kierkegaard pensava que ele só conhecesse a comunicação indireta Poderseia dizer que ele só conhece a fecundidade indireta Tangenciamos aqui uma estrutura mestra da história divinohumana que dá pleno sentido à palavra evangélica Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça e as demais coisas vos serão acrescentadas721 Como vemos a abordagem histórica do cristianismo dá a Mounier uma total liberdade e portanto maior responsabilidade já que estando o plano da apologética descartado só lhe resta o plano do testemunho É assim que em Mounier o que encontramos é sobretudo o acento doutrinário sem corpo de doutrina a sistematização sem sistema o encontro com temas que merecem e justificam existências722 E ainda interessa o próprio e muito outro nível a que a obra se coloca interessa aquilo que nela constitui a unívoca dimensão de Mounier a entrega duma vida e de um exemplo a entrega duma pessoa nos caminhos sem retorno duma opção e de um destino723 Com estas palavras podemos dizer que Mounier é um dos exemplos da filosofia contemporânea que cumpriu o ideal antigo entre a busca por pensar o que se vivia e viver o que se pensava O que mais nos impressiona na contra mão mesmo do ideal de autarquia e ataraxia das filosofias helenísticas do epicurismo e do estoicismo por exemplo mas sem dúvida mais eróticas mais combatentes e mais vibrantes do que o frisson do neoestoicismo contemporâneo é o fato de que é na mais flagrante e declarada fraqueza e precariedade que Emmanuel Mounier pôde tirar a força do seu testemunho e de um mínimo mas suficiente para irradiálo amplamente724 Para alguém cujo futuro é sempre aberto e a força 721 Feu la chrétienté op cit p 699 722 COSTA João Bernard Introdução in Personalismo Edição Portuguesa Livraria Martins Fontes Brasil Lisboa p 8 723 Ibidem p 9 724 Em Actes du colloque tenu à lUNESCO Tome I Sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Edite par Guy Coq Président de lAssociation des Amis dEmmanuel Mounier Parole et Silence 2003 um 257 de um grande testemunho é provada constantemente em sua própria existência Mounier era consciente de que Quando já não tivermos possibilidade de sucesso restanos testemunhar Não se perde a vida daqueles que souberam dar amplo testemunho Conhecemos a fragilidade de nossas forças e do sucesso mas conhecemos também a grandeza do nosso testemunho725 Eis porque conduzimos sem hesitação a nossa tarefa na certeza da nossa juventude726 Para Mounier a grandeza do ser humano está em não romper com a infância com a juventude enquanto significando aventura fragilidade indignações totais ingenuidade e dom sem cálculo da eterna infância Isso só é possível com o triunfo sobre a morte dos hábitos a que se chega e se alcança paradoxalmente lentamente com os anos727 Este testemunho nos atrai porque é a expressão em termos de uma existência singular da exigência que temos tentado esclarecer ligada à grande incumbência da qual o Ocidente em particular porque assumiu os valores da liberdade e da dignidade como essenciais e a humanidade em geral têm nas mãos e a responsabilidade de cumprila também como a opção do seu destino dos organizadores Jacques DELORS copresidente do comitê da associação do Colóquio Emmanuel Mounier actualité dun grand témoin em nota de apresentação p 9 diz Em uma época em que não se fala senão de criação de valor financeiro estamos aqui para falar da criação de valores E em uma época em que é necessário tanto dinheiro é o que parece para fazer qualquer coisa de válido Isso nos lembra o caso da situação financeira inicial de Emmanuel Mounier e Georges Izard Consta nos anais históricos de Esprit que Mounier e Georges Izard seu sócio no empreendimento de lançamento da revista não tinham dinheiro algum para tal e que fora o dinheiro da venda de uma de duas cartas que Mounier recebera de Henri Bergson não se sabe qual que possibilitara a compra da máquina de escrever pela qual Mounier iniciou seu trabalho de redação Cf Esprit Emmanuel Mounier 19051950 decembre 1950 p 973 s 725 Para se ter uma idéia da irradiação como Emmanuel Mounier preferia que se dissesse acerca dos componentes da equipe de Esprit do seu pensamento na contemporaneidade ver Emmanuel Mounier Actes du Colloque tenu à UNESCO sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Édité par Guy Coq President de lAssociation des Amis dEmmnauel Mounier Vol I 2003 vol 2 2006 Parole et Silence Paris 726 MOIX op cit pp 3 ss passim 727 Révolution Personnaliste et Communitaire Oeuvres I p 130 258 CAPÍTULO II A Pessoa Aproximações aos elementos constituintes do universo pessoal segundo o personalismo de Emmanuel Mounier Ao percorrermos a obra de Emmanuel Mounier sempre nos deparamos em seus escritos polêmicos ou seja os nascidos em meio ao fogo dos eventos com alguma aproximação a alguma dimensão do universo pessoal Em obras mais sistemáticas728 tais como Traité du Carctère de 1946 Questce que le Personnalisme de 1947 e Le Personnalisme de 1949 podemos encontrar aproximações já mais bem elaboradas no sentido de definições mais lapidadas Falamos da noção de universo e agora dizemos outra a de aproximação Não se trata em Emmanuel Mounier nunca de definições ao modo do racionalismo cuja intenção é exaurir as possibilidades Como nota Mounier sobre Gabriel Marcel Gabriel Marcel tem sublinhado o erro tradicional que assimila o conhecimento pessoal a um círculo de luz que seria ele mesmo transparente ao máximo a alma mais fácil de conhecer que os corpos e que distribuiria em torno de si uma zona decrescente de luz729 No personalismo para usar uma imagem que ainda nos é muito 728 Emmanuel MOUNIER como o filósofoteólogo Paul TILLICH ver deste autor Textos selecionados op cit passim não tem medo desta palavra Todavia em Mounier sistema e sistemática se diferenciam não dizem a mesma coisa A primeira é tomada mais como uma afirmação de acabamento de exaurimento em relação à segunda adotada por Mounier que é tomada como possibilidade de sistematização quer dizer de concatenação de idéias de relacionamento de conceitos capaz de esclarecimento etc Cf Le personnalisme Oeuvres III 1949 p 429 O personalismo é uma filosofia não é somente uma atitude É uma filosofia não é um sistema Ele não foge à sistematização Pois o pensamento precisa de ordem todavia conceitos lógica esquemas de unificação não servem apenas para fixar e comunicar um pensamento que sem eles se diluiria em intuições opacas e solitárias eles servem também para perscrutar essas intuições em toda a sua profundidade grifo nosso são ao mesmo tempo instrumentos de descoberta e de exposição J LACROIX Sistème et existence Vie Intellectuelle Junho de 1946 Porque define estruturas o personalismo é uma filosofia e não apenas uma atitude Mas sendo sua afirmação central a existência de pessoas livres e criadoras ele introduz no coração das estruturas um princípio de imprevisibilidade que desloca toda vontade de sistematização definitiva 729 Intrduction aux existencialismes Oeuvres III p 80 Hegel e Descartes colocam o problema da verdade do lado do objeto e o da certeza do lado do sujeito O personalismo coloca problema da verdade como problema geral pois no plano da finitude a verdade é uma tarefa a ser realizada e a certeza é um problema da vontade Nesse sentido esclarecese a suposta objetividade do racionalismo que a querendo como um dado na verdade circunscrevese marcadamente como um problema da vontade racionalista Por outro lado o personalismo de Mounier se caracterizará como sede de verdade e não como vontade de certeza 259 atual não há esta intenção de madeireiro mas antes a de um expedicionário que respeita a floresta Portanto consideramos a noção de aproximação como a mais adequada para expressar o movimento próprio daquele que pretende adentrar nesta dimensão fundadora que é a pessoa Pois A pessoa não é uma célula mesmo social mas um ápice de onde partem todos os caminhos do mundo730 Não é o caso também de definições ao modo de manual de filosofia Para um personalista falar da pessoa não é nunca falar de uma coisa dentre outras Para usar a fórmula de Gabriel Marcel quanto ao ser que Mounier aprovaria em relação à pessoa e que pode ser estendida para tal a pessoa é o nãoinventariável Quanto a isso elabora Mounier a seguinte aproximação A pessoa não é uma coisa que se encontra no fundo da análise ou uma combinação definível de aspectos Se ela fosse uma soma ela seria inventariável ela é o lugar do nãoinventariável Gabriel Marcel Se fosse inventariável ela seria determinável ela é o lugar da liberdade Ela é uma presença antes que um ser um ser exposto uma presença ativa e sem fundo A psicologia contemporânea tem explorado algumas regiões infernais de suas profundidades Todavia a mesma tem sido menos atenta ao que poderia se chamar de seus abismo superiores aqueles em que mergulham a exaltação criadora e a vida mística Os seus conceitos as sugestões da arte não conseguem senão parcialmente evocar umas e outras731 Uma tentativa recente de descrição da diluição do sujeito ocidental ou seja das passagens que compuseram a chamada morte do sujeito de uma aproximação histórica na verdade ao que resistiria a isso como centro de irradiação a essa presença que neste nosso trabalho seguindo Emmnauel Mounier denominamos pessoa foi realizada por Charles Taylor Todavia este autor preferiu usar a figura do ponto geométrico que a nosso ver e à luz da reflexão de Mounier não pode fazer jus e não pode evocar o caráter de presença transfiguradora ao que a noção de pessoa cunhada com esmero ao longo do desenvolvimento da humanidade em suas intuições mais densamente profundas e significativas tem se demonstrado como muito mais apropriada Nesse seu trabalho todavia Taylor se esforça para compor o incoponível dessa presença à qual ele chama de self intraduzível em português Charles Taylor estabelecendo o self como um ponto 730 Questce que le Personnalisme Oeuvres III p 181 731 Le personnalisme Oeuvres III p 463 260 descreve assim seu status de caráter lógicognosiológico O sujeito que pode adotar esse tipo de postura radical de desprendimento para si mesmo com vistas à reforma é o que chamo de self pontual Adotar essa postura é identificarse com o poder de objetificar e refazer e por meio disso distanciarse de todas as características particulares que são objetos de mudança potencial O que somos essencialmente não é nenhum desses últimos mas o que é capaz de consertálos e elaborálos É isso que a imagem do ponto pretende comunicar com base na definição geométrica O verdadeiro self não tem dimensão não está em parte alguma que não nessa capacidade de consertar as coisas como objetos732 Não obstante os esforços de Taylor a imagem do ponto geométrico não consegue expressar a vida e a irradiação desse centro inexaurível de liberdade e criação que é a pessoa733 No entanto a pessoa de Mounier como nota muito bem Guy Coq só encontra consistência no entre dois na relação que Coq vê também como o anúncio das análises do outro Emmanuel o Lévinas734 que nós por outro lado a vemos em Lévinas segundo as indicações do trabalho de Susin sobre Lévinas735 como derivada segunda parte da análise que em Lévinas é precedida pela real experiência originária como sendo a do Eu usufruidor solitário e ateu Neste nosso trabalho como temos tentado apresentar a relação é no personalismo de Mounier a experiência originária e não a derivada E como dissemos na Introdução o personalismo aqui não é considerado nem como uma filosofia do sujeito nem como uma filosofia de seus desdobramentos possíveis como filosofia do Eu ou filosofia da consciência nem como uma filosofia da morte do sujeito e nem também como uma filosofia do objeto O personalismo aqui é tomado como uma filosofia da relação Todavia em conexão com a problemática aqui das aproximações que pretendemos fazer em caráter conceitual definidor ao universo da pessoa livre e criadora 732 TAYLOR Charles As Fontes do Self Edições Loyola 1994 São Paulo p 223 733 Taylor como podemos ver pela citação acima permanece fiel aos valores da tradição filosófica anglo saxônica que o personalismo também afronta Todavia ao ler a obra de Taylor pude notar como inspiração de fundo a influência do pensamento personalista Essa minha percepção se confirmou quando tive a oportunidade de ler e vêla confirmada em COQ Guy Pour un retour à Emmanuel Mounier in Actes du colloque tenu à UNESCO Sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Edite par Guy Coq Presidente de lAssociation des Amis dEmmanuel Mounier Éditions Parole et Silence vol 1 p 13 Ali infelizmente nos informa Coq que Charles Taylor não pode comparecer ao Colóquio 734 COQ Guy Pour un retour à Emmanuel Mounier op cit p 12 s 735 SUSIN Luiz Carlos O homem messiânico Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas co edição Escola Superior de teologia São Lourenço de Brindes e Editora Vozes Ltda RS e RJ 1984 261 problemática ligada à real capacidade comunicativa desse centro de irradiação podemos relevar um aspecto menos confiante que se dá pela imagem da opacidade percebida por Gabriel Marcel e reconhecida por Mounier Opacidade que em Marcel move no plano do conhecimento sua compreensão do ato mesmo de pensamento como sendo um mistério736 Não obstante em Mounier ela não constitui impedimento para o reconhecimento do sentido afirmativo é claro que sempre frágil tacanho aproximativo sujeito aos impasses à inconsistência etc do conhecimento humano que na compreensão do diretor de Esprit tende a ser desvalorizado mais do que o devido em suas capacidades Ou antes valorizado mais do que o devido em suas incapacidades que para Mounier tem por causa uma prevenção inerente não só a Marcel como aos existencialismos em geral Prevenção em relação à comunicação737 a ponto de criar uma vala intransponível uma polaridade inconciliável graças ao pressuposto comum da incomunicabilidade apriorismo diante do qual Emmanuel Mounier vai se colocar sempre com suspeita e em guarda em suas análises dos existencialismos Todavia esse sentido da fragilidade inerente a todo ato de conhecimento implicará para Mounier por outro lado também ela perspectivada sob o modo de ser do artefato todos os esforços na elaboração dos constituintes necessários de uma epistemologia propositiva possível personalista que faça justiça ao seu rico universo em vez de uma postura de pura negação resignação e recusa a priori É nesse sentido que todos os esforços empreendidos nessa direção vindos dos mais diversos lugares e pelas mais diversas perspectivas serão bem acolhidos dentro do espectro inclusivo da filosofia dialógica do diretor de Esprit Para Mounier o conhecimento não se coloca em lugar retirado do mundo diante do mundo para olhar o mundo como um espetáculo e caracterizálo de fora Caracterizar um ser humano ou uma coisa é segundo Mounier o ato mais superficial do conhecimento Quanto mais acessamos a realidade mais ela deixa de ser assimilável a um objeto colocado diante de nós sobre o qual tomamos os ajustes Em seu fundo segundo 736 Daqui em diante cf Introduction op cit p 80 Esta noção de mistério é fundamental na obra de Gabriel Marcel É por ela que Marcel vai caracterizar os limites inerentes à condição do existente no mundo é por ela expressão de fronteira por excelência que o filósofo desenvolverá a crítica que apresenta como a dramática essencial de um ser que não obstante a opacidade inerente na compreensão de si para consigo mesmo empreende um movimento de afirmação no conhecimento de si e do mundo que tem se esquecido dessa sua condição frágil fundamental Para isso ver RICOUER Paul Gabriel Marcel et Karl Jaspers philosophie du mystère et philosphie du paradoxe Éditions du Temps Présent Paris 1947 737 Vamos tratar do problema da comunicação no capítulo acima intitulado Pessoa e existência 262 Mounier ela é incaracterizável738 O ser é um inesgotável concreto739 que não pode ser constatado mas somente reconhecido como se reconhece uma pessoa e mesmo menos reconhecido que saudado740 Segundo Mounier seguindo Marcel a imagem da posse não chega a estabelecer o contato entre aquele que conhece e o ser Só se possui o que é inventariável contável Ora se o ser é inesgotável segundo Mounier ele o é até em sua menor parcela o não inventariável Tudo o que eu acumularia de saber a seu respeito o saber sendo um ter do conhecimento permanecerá sempre uma quantidade ínfima em relação ao que eu ignoro Desta forma conclui Mounier com Marcel o inventariável é o lugar do desespero741 Podemos dizer então que o complemento de Mounier seria o não inventariável o ser como transbordamento seria o lugar mesmo da esperança Resvalamos aqui numa dimensão que caracteriza a ontologia de base do existencialismo de Gabriel Marcel e que é bem vinda no personalismo de Emmanuel Mounier Tratase da ontologia da esperança que se contrapõe às ontologias do desespero com a ressalva de no existencialismo de Kierkegaard haver um desespero fechado e um desespero aberto um pendendo para uma queda no solipsismo que na verdade é a tentação de todo existencialismo e outro para uma vida exteriorizada que é uma outra manifestação do desespero um solipsismo de contato Pois na vida do desespero exteriorizada não há verdadeira relação há uma imitação barata desse modo de ser originário da pessoa há apenas fricção O primeiro segundo Mounier se encosta a uma recusa e se fecha sobre uma concentração egocêntrica uma crispação do eu um moi je emitido sobre o eixo da reivindicação e da possessividade Ele nasce de uma indisponibilidade primitiva em que o ser humano não pode receber nenhuma revelação da existência porque ele aí está precisamente cheio de si Pouco importa segundo Mounier desde então que ele se satisfaça com pouco e transborde de otimismo ou que submergido pela decepção da existência deslize para o desespero A atitude fundamental conclui Mounier é a mesma nos dois sentidos Cada um dos dois tipos considera o mundo em face de si como um ter inventariável e contábil O otimista segundo Mounier é aquele que conta sempre com o futuro o desesperado do finito é aquele que não conta mais com nada 738 MARCEL Gabriel Être et Avoir 179 Nota de Emmanuel MOUNIER cf Introduction op cit p 80 739 Em Mounier o ser vai ser tomado como superabundância Teremos a oportunidade de falar mais sobre esta noção fundamental no personalismo de Emmanuel Mounier 740 MARCEL Gabriel Du refus p 96 Nota de Emmanuel MOUNIER cf Introduction op et loc cit 741 Introduction op et loc cit 263 nem com ninguém Mas todos os dois contam Dispõem das coisas e de si e julgam o jogo Lembremos diz Mounier desta palavra já citada O inventariável é o lugar do desespero A ansiedade o temor do futuro sentimentos mais modestos são já as doenças do ter segundo Mounier na esteira de Marcel A esperança ao contrário para ele é primitivamente um desarmamento do eu uma recusa de querer dispor de mim mesmo de avaliar as minhas possibilidades uma distração ontológica voluntária um abandono Ela não é uma maneira de beatificar meus desejos pois é tanto mais autêntica quanto mais se distancia do desejo e se recusa a imaginar a substância da coisa esperada742 Mas ela é segundo Mounier paciência quer dizer renúncia à pressa à indiscrição do que no mundo pode nascer independentemente de minha ação possível Ela não considera o mundo como inventariável e portanto esgotável mas como inexaurível743 Ela se recusa segundo Mounier a calcular as possibilidades e geralmente medir os poderes em jogo Neste sentido e sobre este plano segundo o diretor de Esprit ela é uma distância tomada em relação ao mundo funcional das técnicas formado a serviço dos meus desejos ela afirma a ineficácia última das técnicas na solução do destino do ser humano744 Ela se situa no oposto do ter e da indisponibilidade segundo Mounier Ela dá crédito dá tempo dá campo à experiência em curso Ela é o sentido da aventura aberta ela trata a realidade como generosa mesmo se esta realidade deva aparentemente contrariar os meus desejos Nós podemos nos recusar à esperança como ao amor Todavia segundo Mounier a esperança é antes uma virtude e não uma consolação uma facilidade Mas ela é também mais que uma virtude pois segundo o diretor de Esprit ela entra no estatuto ontológico de um ser definido como transcendente no interior de si mesmo745 Aceitála ou recusála é aceitar segundo Mounier ou recusar ser um ser humano 746 742 Quando tratarmos da crítica do personalismo de Emmanuel Mounier à modernidade vamos apresentar como o personalismo em relação à crítica do desejo moderna e pósmoderna se coloca como crítica do hábito É esse sentido que está na base da crítica personalista em relação ao que entende como crise de civilização e para cuja revolução ele convoca todas as áreas de criação humana educação arte literatura ciência religião política etc 743 Para o personalismo o ser é transbordamento 744 Que digase de passagem para o personalismo é do que realmente se trata 745 O preconceito científico e acadêmico de Bergson o impediu de cantar a esperança o que foi feito por Péguy Nota de Emmanuel MOUNIER Introduction op cit p 109 746 Até aqui Introduction op cit et loc cit Observamos apenas que uma filosofia da esperança já deveria ter tido a mesma divulgação que teve e permanece tendo a filosofia do desespero Ela parece corresponder pelo próprio movimento de personalização de que temos falado Par isso ver também LANDSBERG Paul Louis Ensaio sobre a Experiência da Morte e O Problema Moral do Suicídio op cit passim ao nível da 264 No início dessas palavras de Mounier vemos o quanto a reivindicação egocêntrica a possessividade a crispação sobre si mesmo aproxima o indivíduo do existencialismo do indivíduo burguês da modernidade Essa consangüinidade de intenção não passará despercebida pelo diretor de Esprit para quem não obstante sem cair na tentação coletivista a tarefa do personalismo será ir além pois não se trata de ecletismo da polaridade infrutífera indivíduosociedade Em relação a isso segundo Mounier parece que o que se poderia chamar de revolução socrática do século XIX o assalto contra todas as forças de despersonalização do ser humano tem se dividido em dois ramos um por Kierkegaard chama o ser humano moderno aturdido pela descoberta e exploração do mundo à consciência de sua subjetividade e de sua liberdade o outro por Marx denuncia as mistificações a que as estruturas sociais enxertadas sobre sua condição material o arrastam e lhe lembra que o seu destino não está somente em seu coração mas em suas mãos Conclui Mounier Funesta ruptura As duas linhas não fizeram em seguida senão divergir e a tarefa do nosso século é talvez não a de as reunir ali onde elas não podem se encontrar mas a de e ir além de sua divergência grifo nosso para a unidade que elas têm exilado747 Deixando por hora o que nos remeteria à questão do método de Mounier748 voltemos sobre o tema da esperança que na verdade se articula com tudo o que temos dito749 Para tanto os acontecimentos que marcaram a história contemporânea do Ocidente têm feito desacreditar a esperança como coisa de tolos É como se pelo cansaço e a impaciência com o projeto falido da modernidade sem se conseguir no entanto propor algo novo substituto tivesse se estabelecido um consenso no mundo intelectual ocidental mascarado pelos nomes de objetividade de realismo de descrição certa de como as coisas são de desconstrução etc como substancial e aprioristicamente ligados a esferas e que é para o personalismo a dimensão mais original da existência humana em sua autoafirmação em sua luta pelo real e que é por assim dizer a filosofia mesma que está na base do personalismo 747 Le personnalisme Oeuvres III p 436 748 Retomaremos ainda esta questão Todavia ver de MELCHIORRE Virgilio Il método di Mounier ed altri saggi Feltrinelli Editore Milano 1960 p 7 Sem subtrairse à escolha essencial buscava o além da conciliação ainda que com o risco de parecer um eclético ou de ser mal entendido pela parte diversa Mounier buscava contrapor um sentido bem amplo da liberdade e um discurso muito vivo muito atual 749 Não me sinto traindo o método de abordagem de Mounier pelo contrário A expressão da pessoa nem sempre é sincrônica a diacronia é parte essencial de sua manifestação Isso força um olhar mais criativo sobre suas possibilidades e sem dúvida uma certa frustração quanto à espera de uma conseqüência silogística sempre apodítica 265 apreensões negativas da realidade que resultariam o seguinte lema pensa mais quem nega mais Eis um novo e inconfessado substancialismo travestido e invertido Não que a via negativa cara ao método de Mounier estivesse condenada desde o início A via negativa derivada da tradição mística da qual Mounier lança constantemente mão para realizar as aproximações ao universo da pessoa é também uma forma de conhecimento Indireta é verdade mas implica uma via catafática como complemento necessário à via apofática O caráter não inventariável da pessoa sua recusa ingênita de se tornar puro objeto é o que forçará em Mounier um método de aproximação pela negação Essa riqueza íntima do ser da pessoa lhe confere uma continuidade não de repetição enfadonha segundo Mounier mas de superabundância A pessoa é o nãoinventariável G Marcel Eu a experimento sem cessar como transbordamento O pudor diz o meu corpo é mais que meu corpo a timidez diz eu sou mais que meus gestos e que minhas palavras a ironia diz a idéia é mais que a idéia Em minha percepção o pensamento desordena os sentidos no pensamento a fé desordena a determinação como a ação desordena as vontades que a colocam e o amor os desejos que o despertam O homem disse Malebranch750 é movimento para ir sempre mais longe grifo nosso O ser pessoal é generosidade Também funda uma ordem inversa da adaptação e da segurança Adaptarse é reduzirse a sua superfície ameaçada e se tornar semelhante ao que se é ao preço do que se pode ser A vida em nós sobretudo diante do perigo não pede mais do que a adaptação e ao preço mais barato é o que se chama felicidade A pessoa por outro lado se arrisca e assume sem olhar o preço751 Todavia a inspiração de fundo deste método e do movimento que inicia é a afirmação criadora pois seu movimento de aproximação não é nem gratuito e nem elege a metafísica do pessimismo como a priori por isso Mounier define sua posição como otimismo trágico como já tivemos a oportunidade de ver Pois no universo pessoal há tanto o abismo quanto há também o paraíso752 Este borbulhamento do ser pessoal pergunta 750 Nicolas MALEMBRANCHE 16381715 só para desmistificar um pouco percebemos portanto que Nietzsche 18441900 não foi o primeiro nem o único a fazer valer o movimento intrínseco ao ser do ser humano não obstante ter sido ele sem dúvida quem o afirmou de maneira talvez a mais enfática 751 Le personnalisme Oeuvres III p487 752 Já vimos na primeira parte em nossa aproximação ao universo do mitológico e do religioso o quanto na intuição da divindade habita o infernal e o abismal ao mesmo tempo em que o céu e a redenção Para isso ver o clássico OTTO Rudolf O Sagrado op cit Apesar da reflexão engajada de Mounier terlhe proporcionado pouco tempo para a realização de uma crítica literária enquanto tal não vai faltar análises agudas e pontuais sobre a irresponsabilidade por parte de uma certa produção literária contemporânea tomada sempre pelo personalismo como moral e socialmente responsável quando destila de modo unilateral no seio da sociedade 266 Mounier será ele orientado A projeção perpétua de si mesmo adiante de si por um ser sem finalidade em um universo sem significação para Mounier não é uma orientação e nem uma verdadeira transcendência O ultrapassamento da pessoa por si mesma não é somente projeto ele é elevação Jaspers surpassement753 O ser pessoal é um ser feito para ser ultrapassado segundo Mounier Como a bicicleta ou o avião diz Mounier que só têm seu equilíbrio em movimento no sentido do além de uma certa força dada o ser humano só se mantém de pé com um mínimo de força ascensional Se ele perde altura não se rebaixa ao nível de uma qualquer humanidade ou como foi dito da animalidade mas conclui Mounier muito abaixo do animal nenhum ser vivo a não ser o ser humano inventou as crueldades e baixezas em que este ainda se compraz754 Mesmo a realidade tão presente do mal não autoriza Mounier a subscrever uma metafísica pessimista que diante da afirmação da vida inscrita no próprio movimento de personalização que se dinamiza num futuro sempre aberto e que corresponde a dimensões não previstas pela experiência prescrita pelo racionalismo estreito tais como esperança amor amizade solidariedade compreensão simpática humildade generosidade acolhimento etc além da experiência possível e real do bem terá sempre a característica para Mounier de uma meiaverdade Por isso o seu otimismotrágico Em seu diálogo filosófico Mounier não deixou de perceber esta tendência de um a priori pessimista também em certas reflexões existencialistas Constitui o ser do homem como futuro e aceita como último destino para ele um evento a morte que o transfigura em passado pelas vias da sensibilidade pela estética literária uma única dimensão do infernal e abismal da existência Apoiando por sua vez a manutenção de toda uma atmosfera de indiferença mórbida no âmbito das relações pessoais e sociais por parte das singularidades e das coletividades sem se sentirem por isso de alguma forma responsáveis Esta produção por sentirse apenas descrevendo objetivamente as coisas como elas são apóiase então como vemos ao fim e a cabo no preconceito moribundo do positivismo não obstante alegar se contra o positivismo Ela não deixa de ressentirse mesmo em sua afirmada crítica radical de um certo espírito burguês decadente que tomando interesseiramente a face de uma volúpia niilista para citar Landsberg acaba flertando e finalizando já enquanto formas sociais de violência sistemática como é o caso já que a ação para o personalismo é inevitável no desespero que decorre na forma do pessimismo ativo Esta decorrência radicalizada na sociedade atual em sua forma de individualismo reivindicativo liberal e burguês todavia mantém encubadas mesmo nesta sua expressão individual as soluções características advindas da sensibilidade fascista e totalitária que em sua expressão coletivista se apresenta como a saída desesperada do túnel sem saída que o liberalismo burguês constrói é nesse sentido que para Mounier o fascismo o nazismo e o comunismo stalinista são filhos bastardos do capitalismo Todavia em LEspoir des Desesperes Oeuvres IV Mounier com a paciência que caracteriza sua escuta vai procurar admirar em alguns representantes da estética antes afirmada o que há sempre de absolutamente pessoal de inalienável e pois de maravilhoso na adesão de tal ou qual homem em sua última razão de viver 753 No sentido de ir além de 754 Le personnalisme Oeuvres p 487 267 puro Não há na base desse estupefato uma evidência mas uma recusa uma negação ativa de um amplo aspecto da experiência humana a eternidade que qualquer ato de amor que qualquer fidelidade implicam755 Vemos o quanto um discurso que não tome em seu devido lugar a dimensão fundamental da esperança enquanto esperança genuína756 sobre a qual tentamos esboçar aqui alguns elementos corre o risco de no intuito de criticar a esperança vendoa somente como coisa de tolo pelo fato de tomála como sempre baseada em quimeras ver apontada para sua constatação a mesma crítica que como notamos antes observa Mounier Constitui o ser do homem como futuro e aceita como último destino para ele um evento a morte que o transfigura em passado puro No personalismo as noções que indicam movimento mantêm seu rigor significativo O personalismo vendo a pessoa como um universo a toma com todas as suas possibilidades inusitadas757 através de uma constante afirmação do que para muitos dos que estão acostumados a facilmente rotular tudo em que não acreditam só porque ultrapassa o seu raiozinho particular de visão como utopia na verdade sempre se encontra num raio de possibilidade oferecido pela dimensão original da existência humana que se dá pela esperança autêntica A esperança segundo o personalismo está tão intrinsecamente ligada à existência humana ao movimento de personalização de que falamos que me permito citar algumas passagens longas deste filósofo alemão aluno de Max Scheler ferrenho oponente do nazismo desde 1930 tão injustamente esquecido e cuja reflexão é sempre tão profunda que é Paul Louis Landsberg Este personalista que segundo Paul Ricoeur está ligado à história interior e ao pensamento do movimento Esprit quase tanto quanto Emmanuel Mounier 758 em relação à esperança em sua análise do ato de suicídio por entendêla tão expressivamente ligada ao próprio movimento de personalização propõe uma aproximação fenomenológica desta dimensão profunda da existência pessoal que não deixa de ser elucidativa Assim Landsberg diz A própria angústia nos revela que a morte e o nada 755 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 100 756 TILLICH Textos selecionados op cit pp 67 ss 757 É nesse sentido tmabém que o ser para personalismo é transbordamento 758 RICOEUR Paul A região dos filósofos Leituras 2 Edições Loyola São Paulo 1996 p 151 268 se opõem à tendência a mais profunda e a mais inevitável de nosso ser759 Nós não falamos aqui da impulsão em durar inerente à vida em geral da vontade de viver de Schopenhauer Eu afirmo no momento mesmo em que formulo esse pensamento a impulsão da pessoa humana a se realizar e a se eternizar No fundo do ser há um ato a afirmação de si mesmo Na pessoa que se sabe única nós encontramos a afirmação desse elemento único a se realizar afirmação que implica a tendência a ultrapassar o tempo A fé em uma sobrevivência pessoal não é somente uma promessa consoladora ela é também uma expressão ela é sobretudo a atualização deste fator ontológico A morte interpretada como definitiva a morte física interpretada como negação universal da nossa existência não é senão o reflexo da descrença desesperada uma negação da pessoa por ela mesma Se a natureza humana tem necessidade da sobrevivência não é nem por egoísmo nem por capricho e nem por um atavismo histórico qualquer Esta necessidade mesma testemunha uma estrutura ontológica fundamental a consciência imita o ser profundo Se nenhuma verdadeira possibilidade correspondesse a essa tendência a existência humana inteira se precipitaria no nada Unamuno quem depois de são Paulo vê na fé a substância das coisas esperadas760 tem redescoberto na esperança infinitamente mais que um sentimento do ser humano A esperança constitui o sentido de nossa vida e prolonga a afirmação contida na estrutura íntima do ser em geral Pois a esperança é o fruto mais nobre do esforço que o ser no sentido próprio da palavra produz e que lhe dá realidade761 Uma filosofia da existência que nega os fundamentos ontológicos das três virtudes do ser humano762 é uma filosofia contra a existência763 A esperança ato da existência pessoal 759 A volúpia da angústia é em alguns pensadores uma volúpia niilista Nota de LANDSBERG Essai sur op cit p 48 760Epístola aos Hebreus 22 Nota de LANDSBERG ibidem p 49 761 M de UNAMUNO Vida de Don Quichote y de Sancho Vida de Dom Quixote e Sancho 1905 Cap XLIV 1935 Unamuno exprime essa convicção da qual ele raramente fala no fim do soneto místico La sima La vida nuestra vida verdadera La vida esta esperança que se immola Y vive asi immolandose em espera A vida nossa vida verdadeira A vida essa esperança que se imola E vive assim se imolando em espera Nota de LANDSBERG ibidem p 49 762 Fé esperança e amor 763 V A STERNBERGER Der Verstandene Tod Eine Untersuschung über Martin Heideggers Existentialontologie A Compreensão da Morte Um Exame acerca da Ontologia Existencial de Martin Heidegger Leipzig 1934 p 83 131 143 Esta obra representa a crítica fundamental do niilismo heideggeriano que se tornou necessária para a destruição de sua sedução funesta Nota de LANDSBERG ibidem p 50 Por essa razão também Mounier sobre Heidegger e Sartre vai considerar a possibilidade de se denominar estas reflexões de inexistencialismos antes que existencialismos Para tanto ver Introduction aux existecialismes Oeuvres III p 94 Na verdade é por um singular paradoxo que esta doutrina lançou a palavra existencialismo Conviria antes falar de inexistencialismo 269 difere essencialmente destes sentimentos múltiplos que nós chamamos de as esperas de alguma coisa Isso não quer dizer que a estes falte um conteúdo intencional A esperança possui pelo contrário um conteúdo mas o que ela não possui são os conteúdos intercambiáveis precisamente porque ela possui seu conteúdo de uma maneira incomparavelmente íntima Ela constitui uma estrutura do ser transcendendo o sujeito psíquico Seu conteúdo lhe é imanente este é verdadeiramente o seu Este conteúdo só existe nela e ela só existe no sentido deste conteúdo 764 E além disso Landsberg arrisca um paradoxo sobre o suicídio que certamente destoa de um certo sensocomum muito ressentido de espírito burguês Em sua esperança decepcionada na vida o homem encontra um lugar imaginário do outro lado do túmulo Werther aí encontra Lotte Morte túmulo diz ele eu não compreendo estas palavras Na maior parte dos casos aquele que se mata não procura de maneira alguma sua perdição ou mesmo o nada ele prefere a uma vida muito conhecida alguma coisa de vago e de desconhecido mas certamente alguma coisa grifo nosso O pecado teológico do desespero não se define pela perda de tal ou qual esperança empírica mas pela perda da esperança fundamental em Deus e em sua bondade que é a vida mesma do coração humano A perda da esperança é mesmo um estado necessário do itinerário espiritual dos mestres É pois falso pretender que todos os suicídios seriam de desesperados no sentido teológico Pessoalmente eu creio mesmo que o ser humano não se desespera jamais que desesperar é um ato impossível que é contra sua essência Desesperare diz são Tomás non est descendere in infernum Desesperar é não descer ao inferno Ele não fala do suicídio no capítulo agitado onde trata do pecado do desespero Na minha visão o desespero não pertence ao ser humano sobre a terra mas talvez unicamente no Inferno e ao demônio Nós não sabemos mesmo o que seja isto O ato de suicídio não exprime o desespero pareceme mas uma esperança talvez louca e desviada que se dirige à grande região desconhecida além da morte Eu ousaria o seguinte paradoxo o ser humano se mata muitas vezes porque ele não pode e não quer desesperar É por isso que a idéia de Inferno que ocupa o lugar do além desconhecido é de tal maneira forte para impedir o suicídio765 764 LANDSBERG Paul Louis Essai sur op cit p 50 765 Sobre isso a história das religiões está aí para nos esclarecer E é interessante notarmos o que destoa um pouco da compreensão costumeira como o inferno cristão descrito no Novo Testamento distante portanto dos exageros medievais já bem tocados pela sensibilidade pagã perto do inferno sumério ou do grego ou 270 Mesmo Shakespeare falandonos pela boca de Hamlet deixase ainda tomar por essa angústia de um além terrível766 E para concluir ainda do mesmo filósofo personalista Landsberg A esperança tende em princípio para a verdade o esperar em princípio à ilusão767 O esperar admite um tempo que pertence ao mundo e ao acaso a esperança constitui um outro tempo que pertence à própria pessoa e à liberdade Assim a esperança não é de forma alguma um mundo indeterminado do esperar uma tendência da alma em esperas diferentes Sua determinação e sua indeterminação comportam uma gradação que lhe é própria segundo o nível de clareza no qual ela se sabe e se compreende a si mesma Seu contrário não é tal ou qual decepção mas a desesperança que forma da mesma maneira uma unidade indissolúvel com o conteúdo que lhe é próprio768 Ainda em relação à esperança mas perspectivando o seu alcance na ação a palavra de um teólogo contemporâneo Paul Tillich sobre os eventos pelos quais Emmanuel Mounier também passou e que marcaram a reflexão de ambos pode nos ajudar a entender a esperança que o personalismo procura delinear quer dizer a esperança lúcida Sobre esta diz Tillich Nós devemos concordar que quando olhamos tanto para nós mesmos quanto para a história da humanidade ficamos admirados por que tão raramente grifo nosso filósofos e teólogos falam a respeito dela de sua origem e de sua justificação Eles não perguntam sobre que tipo de força cria e mantém a esperança mesmo se tudo parece contradizêla Em vez disso eles desvalorizam a esperança chamandoa de pensamento mesmo do inferno do budismo original é pela quantidade de referências que faz e pelo tom passageiro com que o faz na verdade para quem se dispõe a estudar os textos neotestamentários um paraíso Enquanto a ênfase na punição do inferno pelos sumérios gregos e pelo budismo original tomam o tom de um argumento para o discurso de incentivo ao cumprimento moral por parte do indivíduo com vistas à purificação religiosa muito ligada à manutenção da equalização social por parte dos sumérios ao cumprimento das leis da polis mais radicalmente afirmado ainda pelo atomista ateu Demócrito por parte dos gregos ao cumprimento de uma purificação prescrita em mínimos detalhes por causa do karma a mulher por ser considerada no seu sexo como expressão já de queda karmática por Sidartha Gauthama fez com que ele fosse muito relutante em ceder ao pedido de outros monges homens pela criação de uma ordem feminina Sobre o inferno dos gregos ver MONDOLFO Rodolfo La comprensión del sujeto humano op cit pp 338 ss Capítulo II La conciencia del pecado en el mundo clásico Sobre o inferno e os ritos de purificação sumérios e de outras civilizações primitivas ver SERTILLANGES AD Le problème du mal LHistoire Aubier Éditions Montaigne paris 1948 pp 19 ss Sobre o inferno do budismo original ver MOORE George Foot History of religions Edinburgh T T Clark London 1914 pp 79 a 92 o budismo na China 115 a 143 o budismo no Japão 279 a 314 as grandes heresias da religião do Veda na Índia 766 LANDSBERG Essai sur op cit p 125 767 Paul Valéry o tem dito muito bem no livro que leva o título Variété Variedade Paris 1926 La crise de lEsprit p 10 Nota de LANDSBERG Essai sur op cit p 51 768 Ibidem p 51 271 ansioso ou de fantasia utópica Mas ninguém pode viver sem esperança nem se for somente em relação às coisas mais pequenas que possam proporcionar alguma satisfação em condições as piores possíveis na pobreza na doença e sob o colapso social Sem esperança a tensão de nossa vida em relação ao futuro seria vã e com isto a própria vida Nós acabaríamos em desespero uma palavra que originalmente significa sem esperança ou em indiferença mórbida769 E mais adiante Nós sabemos que é necessário prosseguir mesmo contra por todos os lados os limites impostos por um doloroso e corajoso apesar de A esperança não pode ser verificada por meio dos sentidos ou de prova racional Isto nos leva a alguma outra coisa que torna a esperança muito difícil Esperar é fácil para todo tolo mas algo difícil para o sábio Todo mundo pode sucumbir em esperanças tolas mas a genuína esperança é algo raro e grandioso Como então poderemos nós distinguir a genuína esperança da tola Muitas vezes sentimos dúvida não somente em relação aos outros como em relação a nós mesmos como se a deles ou a nossa própria esperança fosse tola ou genuína Podemos claramente calcular o futuro e concluirmos que nossas expectativas se justificam no entanto elas são tolas Todavia fomos justos em nossa esperança Há uma diferença que não permanece oculta se procurarmos por ela Onde há uma genuína esperança aí mesmo o que esperamos já possui alguma presença De alguma maneira o esperado está ao mesmo tempo aqui e não está Não é ainda realizado e pode permanecer inconcluso Mas está aí na situação e em nós mesmos como um poder que dirige aqueles que esperam o futuro Há um começo aqui e agora E este começo orienta em direção a um fim A esperança mesma se estiver enraizada na realidade de alguma coisa já dada torna se um direcionamento um poder de realizar não de maneira infalível mas possível Onde um tal começo do que é esperado está ausente a esperança é uma tolice770 Estas citações a primeira em um âmbito mais interno ao fenômeno e a outra em seus alcances na ação compõem todavia linhas esclarecedoras quanto ao sentido que a esperança inspirada em Charles Péguy toma na reflexão personalista de Emmanuel Mounier O personalismo como uma filosofia da esperança o é na medida em que parte da esperança lúcida como o móbil da projeção e da ação da pessoa e que implica uma adesão 769 TILLICH Paul O direito à esperança in Textos selecionados op cit pp 67 ss 770 TILLICH ibidem 272 total ao futuro que é sempre aberto e implicando uma liberdade responsável A pessoa não sendo o ser é todavia no personalismo movimento para o mais ser Assim em uma correspondência771 a sua futura mulher Paulette Leclercq em 25 de junho de 1933 diz Mounier a propósito dos homens ou das mulheres que são feitos para crer772 não para colocar em questão e a cada momento o conjunto A crítica mesma no sentido kantiano lhe é um meio de completar o edifício de lhe dar a delicadeza da verdade não de deixar a batalha mas de excitar o inimigo O drama mesmo é uma oscilação da subida uma luta entre o ser e o menos ser não entre o ser e o nada grifo nosso773 Essa luta entre o ser e o menos ser que caracteriza o movimento de personalização não é a expressão da liberdade representada pelo jorro mas antes a de um movimento de lucidez A esperança que Mounier encontra em Gabriel Marcel mas que já havia bebido de Charles Péguy 18731914 como já vimos e que tem sido pouco relevada pelo pensamento contemporâneo774 nutre o sentido de um ato lúcido da pessoa porque para ser verdadeira esperança e não simplesmente um ato gratuito775 se ancora em dados da realidade passíveis de ser constatados É claro que esta constatação se diferencia da constatação parcial do racionalismo como notou bem como vimos antes o teólogo filósofo Paul Tillich pois como em tudo na pessoa tratase de um envolvimento total Na base da esperança está um ato de fé que é como já vimos também um ato de adesão total ao futuro que é sempre aberto contrabalançado pela esperança que se funda numa lucidez 771 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 426 772 Ver o que dissemos sobre a fé em Intermezzo Fidei acima p 51 ss Para o personalismo a afirmação da vida e a crença estão intimamente ligadas E este movimento do ser para a vida é o que se inscreve originalmente segundo o personalismo no elã da pessoa criadora está inscrito no próprio movimento de personalização do qual temos falado ver para um contraste com a volúpia niilista do ser para a morte de Heidegger LANDSBERG Paul Louis Essai sur op cit passim 773 Como podemos ver os temas se entrelaçam no personalismo como os órgãos de um organismo vivo ou como as melodias de um contraponto É difícil resistir à tentação de ampliar uma pista que Mounier sempre nos concede em seus textos mas isso nos desviaria do objetivo Cada coisa por sua vez Por ora nos interessa fixarnos sobre o tema da pessoa como movimento para o mais ser Todavia o texto acima já apresenta a base para pensarmos o despertar do sono dogmático proposto por Mounier do qual falaremos mais detidamente quando situarmos o seu pensamento no âmbito do pensamento contemporâneo ver abaixo Pessoa e existência do aquém adotado por uma perspectiva da filosofia contemporânea que depois da crítica do além da filosofia kantiana tem se mantido como a saída da contemporaneidade para se pensar em termos de finitude 774 Com a honrosa exceção de Ernst BLOCH Das Prinzip Hoffnung de 1959 e em Teologia pela tese de doutorado de Rubem Alves Cf ALVES Rubem Religião e Repressão Teológica Loyola São Paulo 2005 passim o que não tem impedido a afirmação da paternidade da chamada Teologia da Esperança como sendo do teólogo contemporâneo MOLTAMNN Jürgen Teologia da Esperança de 1968 lançado pela Editora Teológica São Paulo 2003 775 Como a idéia de jorro deixa transparecer 273 de constatação de suas possibilidades e aderências possíveis Para o personalismo não há como pensar qualquer dimensão do universo pessoal sem que se releve alguma aderência necessária A pessoa não é um ente de razão ela é o concreto por excelência Concreto dizse não é o que é sensível sob as mãos mas o que é percebido como uma presença e um apelo776 Como tal se forja no fogo dos embates e das resistências impostas como veremos mais à frente pela interioridade e pela exterioridade Falamos da pessoa como o concreto por excelência Precisamos elucidar esta noção tão importante A pessoa é o único concreto porque só ela pode ser no discurso de sua relação ao mesmo tempo sujeito e objeto A analiticidade tão sonhada pelo logicismo que jogando o jogo interno de sua própria lógica é no âmbito da escolha que faz do problema da linguagem como o problema filosófico na verdade para o personalismo o adiamento da única analiticidade que gera ganhos reais a que é produzida pelo looping777 da pessoa que em toda as suas extensões toca na ética Antes de analisar as estruturas do universo pessoal Mounier diz Pelo fato da pessoa não ser um objeto que se separa e que se olha mas um centro de reorganização do universo objetivo énos necessário fazer voltar a análise em torno do universo edificado por ela a fim de esclarecer as estruturas sobre diversos planos em que jamais se deverá esquecer de que eles não são senão incidências diferentes sobre uma mesma realidade Cada qual só tendo sua verdade religada a todos os outros778 Tudo na finitude é passível de se tornar apenas objeto É por isso que a objetificação da pessoa é uma degradação dessa sua posição ontológica de o concreto por excelência enquanto que como a intenção da pessoa é uma relação com a alteridade ou seja com uma 776 Révolution personnaliste et comunautaire Oeuvres I p 180 777 O significado que nos interessa desta palavra em Inglês é o de deixar cair mas de modo recorrente Isto se aproxima da inserção do movimento próprio que implica a analiticidade que a pessoa como fonte e ao mesmo tempo núcleo aferidor força no âmbito mesmo da lógica da identidade cujos ganhos são auferidos pela tensão dialética própria ao seu movimento de reapropriação de recuperação na repetição do e no movimento É interessante ver como Paul RICOEUR estabelece uma aproximação à filosofia analítica em seu clássico O si mesmo como um outro Papirus Editora São Paulo 1991 Ali a noção de pessoa e seu alcance ético vai propor uma desestabilização ao círculo fechado da tradicional analiticidade da filosofia anglosaxônica Eis como se dá o caráter irrefutável do personalismo em relação a sua fé na pessoa criadora O personalismo como Nietzsche não é uma filosofia da refutação Mas no exato sentido em que não é frente a Nietzsche uma negação absoluta mas uma convocação e abertura plena e irrestrita à experimentação dos valores assumidos pela pessoa na história Experimentação que ele vê como possível pelas formas a priori da simpatia e através ds multiformes expressões da pessoa na história Como já vimos também o personalismo fundamenta o looping da pessoa em um movimento próprio que é o de recolocar sempre em questão as estruturas que ele mesmo propõe em nome da pessoa para fazer valer as exigências da própria pessoa através e por quem ele as elabora 778 Le personnalisme Oeuvres III p 438 274 outra pessoa o tratamento das coisas no plano da finitude só como objetos seria já uma traição tanto da vocação de personalização do mundo implícita na condição de pessoa quanto da própria condição fundamental de relacionalidade constituinte inerente à idéia de personalidade Não se trata apenas do reflexo de um cogito sobre si mesmo de uma mente que pensa o seu próprio pensamento mas de uma extrapolação desta experiência da auto referência do lógico para o concreto da condição ontológica própria da pessoa e que antecede ontologicamente a sua própria consciência de si que é a relação Frente ao arbítrio do recorte analítico do sujeito o personalismo propõe o continuum indicado pela análise fenomenológica do modo de ser da relação em que se incluem também os objetos É necessário nos desembaraçar do preconceito de que a vontade de permanecer fora do objeto seja sempre favorável ao conhecimento Exceto o caso do conhecimento por sinais que é notadamente aquele da ciência o conhecimento está ao contrário ligado a uma participação grifo nosso íntima pelo conhecimento na vida do objeto a um risco corrido com seu objeto779 Aqui tocamos em um problema fundamental e divisor de águas entre o personalismo e a perspectiva existencialista de Heidegger por exemplo Antes de se considerar a relação sujeitoobjeto como uma traição do Ser levandose em consideração a supervalorização do objeto em detrimento do sujeito ocorrida na Idade Média antes também da supervalorização contrária do sujeito em detrimento do objeto ocorrida na modernidade e isto em nome de uma unidade do Ser perdida e esquecida780 esta relação enquanto expressando e indicando o modo de ser mesmo da pessoa e que caracteriza a antropologia personalista ou seja o modo de ser da relação denuncia algo de fundamental e incontornável integrante ao ser mesmo de cada um dos componentes da relação em questão Isto em termos personalistas nos força a um desvio do caminho de um tratamento ontológico do tipo heideggeriano que nos forçaria a negar e abandonar decididamente a relação sujeitoobjeto O que nos leva por outro lado a uma apreensão 779 Introduction op cit p 85 Ver LANDSBERG Paul Louis Réflexions sur lengagement personnel Esprit novembre 1937Nota de Emmanuel Mounier loc cit Este texto se encontra traduzido em Português em LANDSBERG Paul Louis A Ação Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 pp 21 ss 780 Para isso ver HEIDEGGER Martin El Ser y Tiempo Fondo de Cultura Económica Mexico 2ª ed 1980 passim especialmente pp 30 ss 6 El problema de uma destrucción de la historia de la ontologia 275 existentielle781 ou melhor dramática desta relação e da qual o personalismo não abre mão para fazer valer o princípio fundamental do modo de ser relacional que Emmanuel Mounier junto com Martin Buber782 elege como a experiência originária da pessoa Aquele sendo anterior ao plano ontológico de tratamento do Ser como realmente quer Heidegger e portanto mais primitivo em sua apreensão existentielle na verdade para o personalismo é o mais apropriado para dar conta da exigência de concretude que a dimensão da pessoa finita exige Sendo assim há no tratamento personalista existentielle desta relação a busca da manutenção de uma densidade própria ao sujeito enquanto tal e ao objeto enquanto tal do que o personalismo também não abre mão Não se trata de uma negação cabal por causa de afirmações também cabais de precedência ora do objeto ora do sujeito como se pode destacar e como tem sido o caso na história ocidental desta relação Tratase antes para o personalismo de Emmanuel Mounier e seu grupo de colaboradores de destacar e fazer valer o elemento de radicalidade no âmbito mesmo desta relação que apontando para uma experiência fundamental da pessoa que é o seu modo de ser relacional expressa a condição prévia a todo conhecimento possível a experimentação ou a participação É obvio que em termos de personalismo a noção de experimento é ampliada em relação a sua compreensão reduzida pelo empirismoracionalismo que tem prevalecido e contra a qual também é verdade Heidegger se ergue Parece então que podemos deduzir da caractereologia personalista a possibilidade de estabelecer um paralelismo entre a experiência psicológica do sujeito com o mundo exterior e a experiência lógica do pensamento e a realidade sobre a qual ele reflete Nesse sentido enquanto que a qualidade em termos de saúde segundo Mounier é medida em relação ao quanto na experiência psicológica o sujeito que experimenta e o objeto 781 Em uma nota de rodapé na página 36 da tradução portuguesa de Introdução aos existencialismos Livraria Morais editora Lisboa col O Modo e Tempo 1963 encontramos a seguinte explicação que o tradutor João Bérnard da Costa apresenta destas importantes noções existentielle e existentiale que aqui reproduzimos por entendermos que contribuem para entender a escolha de Mounier de existentielle pela qual toma a pessoa já inserida no mundo e na corporeidade e cuja experiência originária é a da relação em vez de existentiale Tornase impossível encontrar equivalência em português para a diferença entre os vocábulos existentielle que Heidegger apõe à filosofia de Jaspers e existentiale que ele considera correto para a sua Enquanto para Heidegger o problema fundamental é o problema do Ser não podendo uma teoria do existente e da existência humana ser mais que o capítulo de e introdução àquela problemática a filosofia existentielle de Jaspers renunciaria a uma ontologia e considera radicalmente impossível para nós abordar o problema do Ser mas tãosó a perspectiva que dele pode ser captada pelo existente singular 782 Ver o clássico personalista da análise fenomenológica do modo de ser da relação como experiência originária de BUBER Martin Eu e Tu Editora Moraes São Paulo sd 276 experimentado se mantém num equilíbrio dramático em que tanto o objeto como o sujeito mantêm a presença conveniente a cada um nesse nível de relação o mesmo deve se dar em relação à experiência do pensamento e o objeto pensado com a única observação de que pelo fato deste ser um ato mais subjetivo realizado na interioridade com o que ele deve manter de aderência com o exterior o perigo de um afrontamento do objeto em proveito do sujeito por causa justamente da fuga da dramaticidade própria desta relação que asseguraria a densidade ontológica de cada componente parece mesmo ser um perigo constante de crispação subjetiva É nesse sentido que se perspectivará a crítica de Mounier ao idealismo à dúvida exagerada ao cinismo ao relativismo e ceticismo absolutos etc como se tratando nessas carcaterizações absolutas de fugas da realidade E desta possibilidade não ficará de fora o idealismo religioso Este recuo diante do real está na origem de muitas atitudes semelhantes Contase aí o idealismo religioso que substitui às exaltações interiores e às religiosidades vagas o corpo sólido de uma religião por sua vez metafísica social jurisdicional sacerdotal e ritual783 Mounier reverte toda consideração em relação à subjetividade e objetividade procurando ver em cada uma destas expressões o sentido intencional mais profundo Em relação a sua crítica à subjetividade como crispação em si Mounier declara seu intrínseco ensejo de comunhão em relação à objetividade Mounier mostra o quanto ela pode ser superficial Estamos aqui diante de uma proposta de sobriedade filosófica784 Todavia com a ampliação da noção de experimento que se mantém no personalismo como fundamental para o ato de conhecimento como experiência de participação e pela eleição como dimensão primitiva do ser da pessoa finita do modo de ser da relação o personalismo em vez da supressão propõe nestas bases que lhe parecem mais concretas e mais fundamentais inserir um elemento de dramaticidade na relação sujeitoobjeto a fim de tornar a densidade residual própria a cada termo e sua possível compenetração frutífera Não há para o personalismo de Mounier simplesmente sujeito e objeto assim estanques como a relação expressa pela conjunção e aponta mas antes sujeitoobjeto em que o hífen expressa sim uma unidade mas dramática na qual a densidade ontológica de cada termo se mantém sempre numa tensão frutífera de produção 783 Traité du caractere Oeuvres II p 744 784 Ver mais sobre isso em Traité op cit p 658 277 de um plus de um mais ser anterior à relação refletida785 Aqui vale ainda o lema da Grande Mística distinção sem separação No plano da finitude para Mounier nunca nas relações fundamentais ou existentielles à qual faz referência786 11 será exatamente 2 Ainda neste plano na civilização atual tem prevalecido sempre o 2 O personalismo seria justamente a proposta de uma experiência possível em que na soma 11 forcemos um resultado do que 2 já que a univocidade ou melhor a identidade é como nota bem o existencialismo no plano da finitude impossível ou segundo Mounier possível apenas como morte restandonos escolher nesta conexão entre o mais ser ou o menos ser787 e não entre o ser e o nada A identidade absoluta é a morte ela só é encontrada na uniformidade estéril da energia elementar no fim do processo de degradação da matéria ou no vazio da negação lógica O eu não é idêntico nesse sentido ou só tende a sêlo nas aproximações de maior pobreza psicológica O eu é idêntico como se é constante ou como se é fiel por um ato contínuo de engajamento788 Vemos que o tema da identidade no personalismo só faz sentido enquanto fidelidade a si mesmo ou melhor aos valores livremente assumidos A unidade que a pessoa busca em si mesma é também uma unidade dramática em nada pronta e em nada acabada Ela como vimos no tema da esperança é expressão de toda uma vida e mesmo assim não se contenta alça seus vôos ao infinito Ela se expressa enquanto existência que faz jus ao seu movimento criador como fidelidade como constância Reduzir o tema da unidade ou identidade nesse nível existencial em que o problema se coloca a problema lógico aos olhos de Mounier é demitirse do movimento de unificação da vida intrínseco ao movimento mesmo de personalização e que a pessoa confecciona aos poucos em seus malogros e em suas conquistas em suas fidelidades ou em suas infidelidades ao projeto fundamental inscrito em seu próprio ser como afirmação e como ultrapassamento Já falamos da intuição de um movimento intrínseco à noção de unidade desde o mito789 Essa unidade não pode ser uma unidade de identidade por 785 Ou na linguagem da dialética de um terceiro mas não como síntese acabada 786 Se é que não se poderia ampliar até mesmo para o âmbito das ciências duras e matemáticas ao menos enquanto o que as fustiga para o desenvolvimento e progresso de suas teorias 787 A opção pelo menos ser que caracteriza as metafísicas os critérios e apriorismos pessimistas da contemporaneidade como temos descrito é que vai fazer do personalismo uma crítica ao sono dogmático do aquém da razão que pretende complementar a crítica kantiana do além da razão 788 Traité du caracter Oeuvres II p 576 789 Ver no primeiro capítulo as nossas aproximações aos textos veterotestamentários 278 definição a pessoa é o que não pode ser repetido duas vezes790 É dessa indevida extensão ao plano da vida de uma experiência limitada que é a da lógica que o personalismo vai seguir os passos não somente nas investidas do racionalismo sobre os níveis da existência que não são de sua alçada como nos alcances incontornáveis e mesmo não admitidos para o campo da ética de reflexões que se colocam como puramente descritivas e também como críticas à filosofia da identidade791 Para Mounier um pensamento que tem por essência recusar o sistema deve ser atento a não sistematizar suas descobertas mais vivas É esta passagem ao sistema e nós diríamos com Mounier ao menos ao espírito de sistema que marca o salto de uma experiência dilacerada e obscura ao imperialismo do absurdo e do nada Se bem que se defenda de pronunciar qualquer julgamento moral sobre o homem que não vive autenticamente segundo seus cânones Heidegger segundo Mounier tende a desconsiderar toda atitude metafísica que porte atenuação ao seu niilismo O vale de lágrimas segundo o diretor de Esprit esse exagero da baixacristandade não é mais suficiente para representar a vida é necessário agora o geena Kierkegaard segundo Mounier é excomungado porque no fim da noite coloca o dia da ressurreição Mounier se pergunta Será necessário retomar a análise de Sartre Essa raiva contra o ser não traduziria senão o ressentimento de ter faltado o que Gabriel Marcel chama diz Mounier o vínculo nupcial do homem com a vida792 Além disso Mounier ainda diz Unimonos aqui parcialmente à crítica marxista Falase muito de compromisso Mas onde é que esse engajamento nos oferece a ocasião para tal Engajarse em coisa alguma ser fiel a nada abraçar alegremente a morte ou ao absurdo talvez seja um projeto excitante para o espírito Todavia é de se temer que ele só excite espíritos desabituados das alimentações básicas e que só nutra delírios antes que pensamentos O novo pessimismo as aceita de frente O ativismo que ele professa é uma posição de vontade à qual por outro lado a sua ontologia retira os alicerces Ora essa ontologia não é ela também menos voluntária Na raiz deste pessimismo há um projeto a priori uma decisão na origem de olhar a existência como inexorável Não há 790 Le personnalisme Oeuvres III p459 Mais à frente quando falarmos da exterioridade da pessoa e tocarmos em sua dimensão corporal de existência vamos precisar melhor o aspecto dessa unidade no pensamento de Emmanuel Mounier da qual o corpo participa o que indica que o personalismo não é uma gnose 791 Ver abaixo Pessoa e existência 792 Introduction aux existencialismes op cit p 107 279 uma constatação mas uma recusa É verdade que este desafio à alegria existencial pode não ser propriamente negativo Mas para lhe atribuir uma positividade qualquer temos que inverter a sua negação negála como negação pura embora assumindoa como desafio793 Para Mounier o que estaria na origem das perspectivas heideggerianas e sartrianas é uma atitude prévia de recusa não decorrente como fato universal constatado mas como sensibilidade particular opção pessoal Enquanto desafio expressam uma parte da verdade Todavia o alcance ontológico que pretendem dar o que fundamenta o seu apriorismo é negada em sua pretensão científica ou seja em sua intenção de universalidade pela possibilidade que na economia geral negam da experiência e da realidade também constatável segundo o personalismo além do problema do mal do problema do bem Este segundo o personalismo de Mounier lhes deveria servir por sua vez também como desafio Podemos ver então como o paradigma da modernidade contestado por estas reflexões ecoa mutatis mutandis seus sons numa espécie de contraponto nos baixos e acaba compondo não obstante uma mesma sinfonia Vemos paradoxalmente que a vontade de universalidade do otimismo liberal burguês da modernidade em seu sonho de estabelecer o paraíso terrestre pelas conquistas da ciência e como o único mentor de suas produções otimismo que se impôs de modo parasita como possuindo o apanágio das produções humanas e tanto mais pelo álibi da verificabilidade histórica positiva destas conquistas claramente comprovadas na área do conforto retornam nestas filosofias da inexistência794 nestes neoestoicismos na forma agora de uma negação pura como pessimismo universal como dureza Nesse sentido a pessoa como a entende o personalismo em sua dramática mesmo não se deixa subsumir sob estas classificações últimas otimistas ou pessimistas Seu movimento próprio de autosuperação nas e em resistência às formas pelas quais os meios por um lado necessários e que por sua vez prestamlhe aderências também necessárias procuram engessála tanto em relação a sua nãoidentidade fundamental como também em relação a sua identidade dramaticamente manufaturada são na verdade segundo o personalismo de Emmanuel Mounier suas armas É desta aparente fraqueza que a pessoa tira sua verdadeira força É nessa fraqueza que ela se assume como finitude criadora e 793 Introduction op cit p 107 794 Vamos expandir mais estas críticas de Emmanuel Mounier quando falarmos de pessoa e existência 280 cumpre a sua vocação Há uma coisa que se chama viver e há uma coisa que se chama existir eu tenho escolhido existir795 O meu ser não se confunde com a minha vida sou anterior a minha vida ela não me esgota estou para além dela A pessoa é um movimento para a ultrapassar no que ela é e no que ela não é796 Como podemos ver para Mounier não se trata de identidade pura lógica o que seria a morte mas de infiltrar no âmbito do ser como o personalismo procura fazer em todas as esferas que toca o movimento o elemento de imprevisibilidade de artefato e de criação Aqui também podemos ver o quanto as noções ricas de artefato e de provisório estão sempre mantidas na base do pensamento de Emmanuel Mounier As lógicas clássicas são lógicas do impessoal Assim a lógica clássica vai dissolvendo ou objetivando o sujeito Uma lógica personalista não pode ser mais uma lógica da pura identidade o ultrapassamento introduz no sujeito a negação e a divisão a ambivalência ou tensão de contrários797 Vemos que é possível falarmos de um parentesco de fundo uma certa consangüinidade entre a lógica clássica e o pensamento contemporâneo que se diz crítico a ela e em muito por causa do seu essencialismo Ora a lógica clássica essencialista tanto objetiva quanto dissolve o sujeito Desse modo o pensamento personalista quer fundamentar a possibilidade da alegria de viver no reconhecimento mesmo do caráter finito das possibilidades limitadas e do malogro dos projetos que caracterizam a existência humana finita Seria o caso por outro lado de pensarmos se à inversão que o otimismo toma como pessimismo no pensamento contemporâneo não ocorreria uma outra inversão Esta enquanto impossibilidade da alegria existencial a fortiori pelo fato desta crítica ao otimismo burguês porque redunda numa metafísica de um mundo além não ser ela mesma uma atitude conseqüente com a assunção às avessas desta mesma metafísica só que na crença de um mundo aquém Isto por conta do aprirismo pessimista que caracteriza sua reflexão e que seria mutatis mutandis a declaração de aceitação como única possibilidade de metafísica A metafísica que por outro lado rejeitam e que acaba se tornando a base e o motivo de sua crítica mas também do seu tormento Para o personalismo toda negação implica uma afirmação assim 795 MARCEL Gabriel Etre et Avoir 162 Nota de Emmanuel Mounier Introduction op cit p 114 796 Introduction loc cit p 114 Vemos que Mounier força o ultrapassamento da pessoa até no que ela não é equilibrando o que a partir de um ultrapassamento do tipo nietzschiano poderia ser tomado com razão como reducionismo biológico material ou instintivo 797 Ibidem p 492 281 como toda descrição implica uma prescrição Por outro lado é a circunscrição também a esse caráter lógico que a questão tende a se manter que se mostra para o pensamento engajado do personalismo o caráter mais nocional mais intelectualista dessa crítica do que o que exigiria uma apreensão mais concreta das realidades existenciais que o personalismo tenta propor e pelas quais perspectivar as questões em seus alcances éticos A pessoa segundo Mounier só é apreendida já situada e comunicada nessa inserção original Ela não deve ser imaginada à maneira de um conteúdo de uma identidade abstrata segundo Mounier ela não é definida ela surge se expõe e afronta Ela não é uma substância dada por trás dos fenômenos ainda segundo Mounier Um mundoalém mas uma existência criadora de existência no e através do fenômeno mas por uma quarta dimensão de transcendência798 Por fim tocamos na extensão ideológica que pode tomar esta crítica contemporânea que de uma forma ou de outra no mínimo já como sensibilidade geral e uma espécie de consenso tácito tem se colocado e se mantido Segundo Mounier Jean Lacroix designa o imperialismo ideológico como o primeiro risco corrido hoje pela pessoa Esse imperialismo é o de um certo racionalismo que nos habituou a não mais acreditarmos no que construímos é racionalismo porque contra a lógica da identidade se vale dela para celebrar o seu maior postulado a morte do sujeito A razão segundo Lacroix só pode tornarse objetiva tornandose impessoal O connaissance conhecimento assim entendido não é um conaissance nascimento com um enriquecimento diz Mounier mas verdadeira alienação em um mundo de pessoas se deveria a este saber preferir a compreensão que é o modo peculiar do conhecimento das pessoas pelas pessoas Os seres humanos desaparecem para dar lugar às ideologias às entidades ora a lógica das idéias abstratas é uma lógica de exclusão ao passo que a lógica do ser é uma lógica de participação Ademais toda ideologia é totalitária por sua natureza suas categorias vitais são o triunfo e o esmagamento seu império é a unidade sem a diversidade Um outro francês é cada vez menos para nós um ser pessoal e cada vez mais representante de sua classe de seu partido de uma mentalidade que nos agrada ou nos desgosta799 798 Quest ce que personnalisme Oeuvres III p 209 799 Feu la chrétienté Oeuvres III p 671 s Parece que é por aí com tudo se tornando uma questão de gosto que se quer decretar o fim da filosofia transformada também ela numa questão de gosto ou melhor de uma 282 A noção de universo de que falamos no início e que Mounier usa como expressão mais adequada de tratamento da dimensão infinita e inesgotável que compõe a vastidão de sentido que toma o movimento criador por trás das expressões facetadas em que a pessoa se deixa desvelar no tempo e espaço como temos visto é realmente a mais apropriada para o trato do que representa para o pensamento personalista o verdadeiro núcleo gerador e doador de sentido das expressões da existência humana em seus mais variados matizes Ao falarmos do universo pessoal tocamos na dimensão explosiva no nó górdio mesmo cujo desatamento confere um mundo Estabelecidos então à luz do pensamento de Emmanuel Mounier alguns constituintes que julgamos os mais fundamentais para estabelecermos uma aproximação e compreensão do universo inspirador do pensamento personalista que é a pessoa concreta podemos agora tocar nas duas dimensões fundamentais que constituem como que os dois pólos da experiência possível em que a pessoa se desvela em sua história dramática de conquista do mundo e de si mesma em sua insurgência ante às resistências próprias impostas por cada um desses pólos refirome ao movimento de interiorização e ao de exterioriorização Para a análise desta importante constituição nos valeremos mais do grande Traité du caractère800 escrito por Emmanuel Mounier em grande parte durante seu retiro forçado na prisão de ClermontFerrand801 certa sensibilidade que não deixa de querer ser o espelho do mundo a última palavra Ver o que o personalista Denis de ROUGEMONT diz a respeito em Penser avec les mains op cit 1936 passim 800 Oeuvres II Éditions du Seuil aparecido pela primeira vez por esta editora em 1946 Emmanuel Mounier por não considerar este estudo acabado acrescentou posteriormente notas e referências que queria que fossem acrescentadas em uma nova edição e que já constam na de 1947 que é a edição de que nos valemos aqui O Traité du carcatère todavia desde o contato de Emmanuel Mounier com aquele que seria seu segundo maior amigo desde 1933 depois da morte do seu amigo de infância Georges Barthélémy o francomaçom Jacques Lefrancq vai começar a fermentar como projeto de livro Lefrancq empolgado pelo Péguy de Emmanuel Mounier e mais ainda pelo prospecto de anúncio da revista Esprit Ver abaixo os anexos em Apêndice convida Mounier para uma conferência em Bruxelas cidade da qual Lefrancq vai ser a antena para Esprit Jacques Lefrancq se torna o animador da revista Esprit na Bélgica depois de abdicar do seu projeto próprio e já em andamento de uma revista chamada Équilibres Ele trabalha com sua companheira J Brunfaut na elaboração de técnicas para a exploração do caráter cf seu artigo de janeiro de 1941 em Esprit Os elementos fundamentais do caráter e a influência do regime intelectual Durante muitos meses Lefrancq junto com Mounier escreve uma crônica muito suave e cheia de humor na revista Esprit chamada O diário de Ernest Noirfalize Uma coletânea de escritos de Jacques Lefrancq foi editada sob o título Oser penser ed La Baconnière em 1961 Esta obra assim como os quatro números da revista Équlibres se encontram na biblioteca de ChâtenayMalabry Para mais informações ver LUROL Gérard Mounier Gènese de la personne Editions Universitaires 1990 p 303 801 Para maiores detalhes sobre as condições nas quais Mounier escreveu esta obra ver Esprit Emmanuel Mounier 19051950 op cit pp 1030 ss Ver também Mounier et sa génération Oeuvres IV p 721 pp 734 ss 283 II1 A vida interior da pessoa Como nota o professor Antônio Severino802 Enquanto não se superar esta distinção muito rígida entre objetivo e subjetivo a psicologia não conseguirá centralizarse no ser humano Porque mais que toda ciência a psicologia depende da concepção que se tem do ser humano É por isso que Mounier em seu Traité du carcatère se engaja numa filosofia do ser humano e até mesmo numa vontade quanto a ele Sobre a noção de vida interior começaremos por tocar num preconceito muito difundido depois da crítica de Nietzsche à religião que tem sem dúvida suas razões de ser mas também seus limites e que tomado em sua unilateralidade acaba servindo como impedimento para uma compreensão mais ampla desta dimensão própria como vimos da vida pessoal e até como álibi para muito comodismo e indiferentismo pequenoburguês em nome de não se sabe qual aristocratismo ontológico farisaico A vida interior forçando o significado para seu aspecto de movimento e de tensão antes que de localização espacial e por causa mesmo da pobreza da nossa linguagem para o personalismo por ser parte constituinte da afirmação da pessoa em sua expressão existencial dramática requer uma abordagem mais ampla e que releve os aspectos incontornáveis de seus constituintes próprios não redutíveis Desde já nos remeteremos ao Traité du caractère obra em que percebemos Mounier expressarse melhor sobre o que pretendemos nos aproximar agora O cristianismo segundo Mounier tem sido muitas vezes acusado depois de Nietzsche de servir à defesa dos vencidos e divinizar as necessidades dos fracos Essa crítica segundo Mounier se apóia sobre alguns fatos parasitas que se desenvolvem nas épocas de religiosidade fraca Uns vão procurar na fé a consolação de um coração sem apoio outros uma audiência junto de quem possa gemer outros ainda uma segurança contra a angústia de uma vida sem objetivo e contra os riscos de uma aventura dos amanhãs incertos ainda outros um meio de não se defrontar com os problemas urgentes da vida E a fé é com efeito segundo Mounier um potente sustentáculo para as naturezas fracas Por outro lado segundo ainda o diretor de Esprit os que têm feito a experiência de uma religião mais viril e mais ofensiva contestarão que se possa reduzila a funções de hospital A 802 SEVERINO Antônio Joaquim Pessoa e existência Iniciação ao personalismo de Emmanuel Mounier Cortez Editora São Paulo 1983 p 42 284 fraqueza da vitalidade é tão pouco solidária do fato religioso que ela se desvia da fé tanto quanto aí se engaja grifo nosso803 É nesse sentido que Mounier tentando observar o aspecto essencial do religioso vai procurar distinguir os seus elementos mais característicos das tendências latentes e próprias da esfera dos instintos que não são para Mounier como ainda veremos nem bons nem maus Com a sua dupla tara de egoísmo e de automatismo o instinto fechado sobre si mesmo fareja no espírito religioso uma ameaça muito direta para não tentar reduzilo pela astúcia e a domesticação quando ele não pode eliminálo O erotismo porta um elã e um mistério que o tem sempre associado em tumultuosas combinações às formas mal esboçadas do sentimento religioso804 Já tivemos a oportunidade nas partes iniciais desse nosso estudo de tocar em algumas dimensões essenciais do religioso e vermos o quanto suas intuições fundamentais estão ligadas às questões últimas que tocam na condição dramática pela qual a vida do ser humano se processa no mundo em que vive Ou seja em um mundo em que sua autoconsciência de pertença milita dramaticamente com a sua também clara consciência de diferença essencial do sistemamundo Esta situação lhe proporciona uma situação bem incômoda angustiosamente original Por um lado pode leválo à recusa corajosa da vida adaptada de um animal ou por outro à demissão dessa sua situação dramaticamente tensa Poderia tomar o sentido de uma vida produtiva e criadora ou sucumbir à vontade de instalação essa o grande pecado para o personalismo de Emmnauel Mounier Esta condição humana que Mounier prefere à expressão estática do racionalismo de natureza humana gera uma situação de tensão cujo equilíbrio será uma conquista constante dada num estado de força cuja principal característica será para o personalismo seu apelo às dimensões criadoras da pessoa livre É nesse sentido que poderíamos elencar aqui a fim de elucidação quanto ao caráter afirmativo da vida que Mounier vê como o que mais caracteriza o sentido da ação da pessoa dramática os dois eternos que o poeta Tomas Carlyle viu como colocados à frente de si mesmo O eterno Sim e o eterno Não Em Carlyle a afirmação da sua liberdade e por conseguinte do seu valor intrínseco perante o Universo foi o passo que deu para galgar o eterno Sim E então ele diz o que pode ser definido como a base da moral personalista de Emmanuel Mounier que não se 803 Traité du caractère Ouevres II p 741 804 Ibidem p 739 285 confunde com sua caricatura o moralismo Quero afirmar que a incerteza a dúvida a perpétua luta com o mistério do nosso destino final o desespero mental e a falta de um sólido e estável princípio dogmático podem ser fundamento de moral805 Já vimos que esse sentido afirmativo da vida é o sentido mesmo essencial do fenômeno religioso e é só por uma falta de compreensão do sentido paradoxal que a fraqueza toma na manifestação religiosa que faz com que se entenda a mansidão como sinônimo de passividade pusilanimidade e covardia Pelo contrário O manso é o ser humano que se opõe resolutamente a fazer caso do ultraje para quem o código de honra de Cabriñana não existe Aceita sem rancor nem gesto vingativo todos os embates da inimizade brutal não por covardia mas por estar cheio de espírito de amor para com o inimigo Apesar da ofensa recebida procura ativamente ocasião de responder ao mal com o bem Só assim ficará vencida a mávontade e o ódio será transformado em amor Os mansos herdarão a terra porque serão os primeiros que a terão de fato conquistado806 Mas todas estas atitudes afirmativas que integram o movimento da pessoa só são possíveis como vemos a partir de uma atitude de disponibilidade quer dizer mais do que um posicionamento teórico E isso segundo o personalismo tanto pelo tipo passivo que sem procurar o evento transformador ao se defrontar com ele deixase mudar qualitativamente e ao rumo de sua existência quanto pelo tipo ativo que sempre procurando o evento transformador ao encontrálo também se deixa ser transformado por ele porque fora de qualquer sentimento de posse Dentre estes dois tipos gerais o indiferente para quem o evento nada diz e nada muda será para o personalismo a representação mesma da demissão da vida no que ela tem de mais original o pecado mortal mesmo Em relação ao texto de Mounier anterior a respeito da acusação do cristianismo de defesa dos vencidos ele se situa numa parte em que Mounier no Traité du caractere fala do ato de autocontrole e busca de equilíbrio interior pelo asceta807 cujo esforço demanda uma alta tensão no encontro interno de forças opostas a combater ou seja os seus próprios demônios interiores Essa luta não tem nada a ver com debilidade e morbidez nem com ruminação interior Ela é segundo o persoanlismo um estado de força antes que de 805 Cf MACKAY John A op cit p 85 Vemos então que a base de todo verdadeiro ceticismo é moral antes que gnosiológica 806 Ibidem p 118 807 A palavra ascetismo quer dizer originalmente exercício Para uma visão sobre a relação do ascetismo com a mística ver INGE The Christian Mysticism op cit pp 11 ss 286 fraqueza Para a pessoa em sua luta por afirmação contra neste momento do nosso texto as suas resistências internas o que segue na contra mão de um preconceito positivista muito difundido do qual parece que nem Nietzsche escapou em sua avaliação externa ao evento essa luta interior implica antes um estado de tensão e de muita força do que de comodidade e de adaptação Tanto mais pelo fato de suas resistências e obstáculos se encontrarem para a pessoa como que impregnadas e como que as mais imediatas nessa sua experiência de confronto interior808 Não há a priori preponderância de pressões internas ou externas ambas as dimensões imprimem sobre a pessoa pressão e resistência enormes A emergência da pessoa em sua autoafirmação na sua luta pelo real segundo o personalismo não é só um estado dramático é um estado de força Por outro lado se a decisão da pessoa frente às solicitações do real comporta segundo o personalismo um equilíbrio tenso esta mesma decisão não é em si mesma um equilíbrio de neutralidade é um ato central de poder da pessoa que escapa a toda análise psicológica redutora809 Para uma aproximação à dimensão de força da dramática própria da vida pessoal Mounier dá boas vindas à ambivalência em matéria de eventos psicológicos contra os esquematismos fáceis de uma abordagem unilateralmente causal muito ciosa do preconceito positivista Para Mounier Em matéria de psicologia tudo é por sua vez causa e efeito 810 A unidade de uma vida que no âmbito de uma experiência pessoal lúcida e segura de sua liberdade é uma unidade de balanço e por ser frágil pelos riscos que corre de ceder às determinações é ao mesmo tempo segundo Mounier um estado de força por sua liberdade que torna qualquer de suas determinações como não determinantes A existência da pessoa é uma existência dialética isto é ela não se prende a um dado definitivo Por isso não se reduz a uma natureza substancial a um esquema fixo e rígido de ser A existência pessoal não é o desenvolvimento mecânico de potencialidades predeterminadas ou predefinidas mas uma contínua pulsação uma ininterrupta disputa entre a exteriorização e a interiorização811 É da seguinte forma que Mounier vê a unidade de uma vida e sua exegese oposições interiores ambivalência Temse visto fazer de Dostoievski um tipo de 808 Quanto às resistências externas falaremos no próximo tópico 809 Traité op cit p 422 810 Ibidem p 354 811 SEVERINO Antonio Joaquim Pessoa e existência op cit p xvi 287 apologeta do caos e da absurdidade Mas estas contradições saídas das profundezas ele não as opõe à unidade espiritual da pessoa mas à absurdidade e à desordem bem mais fundamental sob sua ordenação aparente do homem acabado como uma peça máquina lógica cuja solidez ilusória saltará um dia por causa de alguma falha interna A unidade de uma vida não é uma unidade de disposição dos assessórios transparente a explicações causais mas a unidade de um gesto gracioso que pode ser alcançado apenas na última hora desbaratando a exegese mais bem intencionada nossa consistência psíquica não se mantém senão tencionada por estas oposições interiores desarmálas ou sacrificar um dos seus termos é nos abandonar às adaptações medíocres Depois que Bleuler812 deu à ambivalência direito de cidadania depois que o freudismo tem crido encontrar na ambivalência afetiva da criança e notadamente em sua ambivalência sexual na primeira idade a raiz de todas as ambivalências posteriores a psicologia a faz saltar por todos os lados813 Vemos o quanto Mounier reconhecendo o elemento heurístico por assim dizer que a noção de ambivalência trouxe para a psicologia afrontando o império do positivismo que dominava as análises neste início do século XX não deixa de ficar atento no âmbito mesmo de um discurso que elege a ambivalência como companheira às acomodações teóricas tranqüilizantes que num segundo momento mais ciosas por defender a teoria param a meio caminho do que pelo sentido mesmo da ambivalência segundo Mounier poderia abrir novos horizontes sobre o não inventariável universo pessoal Mounier em seu Traité du caractère ficou atento à tendência estatizante e final de conceitos e tipificações que no intuito mesmo de uma descrição cabal traiam o modo de ser próprio destas dimensões tão fugidias que se expressam por ambivalência no plano do psíquico Segundo o diretor de Esprit pode acontecer que ela a ambivalência seja apenas um fenômeno de perspectiva e não de estrutura Toda impulsão é forte não somente por sua própria força diz Mounier mas da fraqueza das impulsões antagônicas assim a castidade a calma a bondade tanto quanto as condutas positivas podem ser apenas segundo 812 Eugen BLEULER psiquiatra suíço Zollikon perto de Zurique 18571939 tornouse célebre por seus trabalhos sobre a esquizofrenia termo por ele criado para distinguir sua patologia da demência precoce descrita por Emil KRAEPELIN psiquiatra alemão 18561926 BLEULER deu valioso apoio a FREUD no início de sua carreira e sobretudo introduziu no pensamento freudiano seu assistente C G JUNG 813 Traité op cit p 64 Cf as comunicações de Minkowisk no Encéphale 1921 e na Société de Philosophie 1927 Nota de Emmanuel Mounier loc cit 288 Mounier o efeito supervalorizado de uma ausência de paixões enérgicas Neste nível nota Mounier é ainda muito fácil de resolver a ambigüidade a impulsão direta e profunda é reconhecida em sua riqueza em sua originalidade na amplidão de sua expressão e de seus efeitos o pseudopoder em seu andar terno banal inexpressivo ou quando ele consegue simular no caráter forçado e na fragilidade de sua simulação814 Ainda segundo Mounier para esclarecer estas ambivalências não basta fazer apelo com Klages a uma diferença de nível e de plenitude vital As profundas diferenças de valor que estão em jogo na maior parte dos casos diz Mounier escapam à simples descrição empírica Toda indicação psicológica pode assim segundo ele representar itinerários psíquicos radicalmente opostos se bem que confundidos sob sua aparência expressiva Assim a influenciabilidade pode registro inferior traduzir a inconsistência pessoal e a debilidade psíquica ou ao contrário registro superior um grande poder de assimilação ou transformação O gosto do secreto exprime tanto registro inferior a dissimulação a dissonância a proteção afetada do vazio interior quanto registro superior a reserva que denota um sentido agudo da interioridade As ciências da expressão grafologia morfologia etc conhecem bem essa ambigüidade que torna tão delicadas suas interpretações finais Observamos desde já que ela desenha por trás das determinações aparentes o campo mesmo da liberdade espiritual815 grifo nosso Segundo Mounier uma ambivalência mais emaranhada se liga a uma lei fundamental do psiquismo toda intenção psicológica provoca em seu surgimento o despertar da tendência contrária toda força psicológica suscita em sua raiz mesma a força antagônica Segundo o diretor de Esprit há ambivalência cada vez que as duas consciências sem se fundir vêm em superimpressão ou as duas forças em composição incompleta A ambivalência se aproxima então do equívoco e sua interpretação é muitas vezes de uma dificuldade inextrincável Logo a vida mantém mais ou menos misturadas entre si as duas tendências contraditórias na razão ela nos força a admitir estados com dupla face escândalos para lógica unindo o sadismo ao masoquismo a timidez ao orgulho o sentimento de inferioridade à afirmação superior a certeza à dúvida um e outro se entranham se exasperam e se recobrem mutuamente Podese por sua vez amar 814 Em Traité op cit p 65 Em nota de Mounier KLAGES La loi de la rivalité des móviles Nietzsche é o analista por excelência deste tipo de ambivalência mas ele aí se deixou prender 815 Traité op cit p 65 289 conscientemente e odiar inconscientemente o mesmo ser e viceversa e temse mostrado que se mataria como Julien Sorel816 por ódio e por amor misturados sobre o mesmo objeto817 Estas descrições da ambivalência que Mounier faz em sua análise caractereológica expressam como vemos o caráter aproximativo problemático e provisório do ponto de vista de Emmanuel Mounier de nossas conclusões sobre a vida psíquica Todavia veremos que esta constatação não leva o personalismo a cair na tentação do relativismo fácil ou no ceticismo radical os quais para ser conseqüente deveriam levar os seus defensores ao silêncio818 Ora a descoberta da ambivalência intrínseca ao psíquico recebe acolhida no personalismo enquanto por um lado esclarecedora das tendências unilaterais distantes de uma aproximação adequada da vida psíquica que predominava na psicologia racionalista e positivista da gestalte da comportamental que viam o ser humano como uma peça a ser ajustada e adaptada ao meio e por outro enquanto um sinal das possibilidades promissoras do universo inexaurível da vida pessoal livre Na nota de apresentação do Traité du carcatère escreve Mounier Tratado do caráter e não Tratado de caractereologia Nós não temos em nossa pesquisa apenas desejado tratar do ser humano mas combater pelo ser humano 819 Quanto à primeira precisão Mounier diz que se trata de um tratado do caráter porque o seu livro pretende preencher uma considerável lacuna existente na literatura psicológica francesa e quanto à segunda é porque não se trata da parte dele de pura descrição mas de entrever as possibilidades e o sentido de expansão que o movimento da pessoa poderia imprimir neste campo ainda tão engessado pelo dogmatismo racionalista e positivista Da mesma forma e por isso também para Mounier a ambivalência não poderia se tornar um álibi para o esquecimento da pessoa e suas prerrogativas Nesse sentido a ambivalência se coloca para ele como um sinal da irredutibilidade da pessoa aos quadros esquemáticos últimos de quaisquer teorias Ela se apresenta a Mounier como o sinal no âmbito mesmo do tratamento de sua expressão pessoal íntima enquanto psique de seu caráter não 816 Tratase do herói de O vermelho e o negro romance de Sthendal Esta personagem é a expressão de uma luta contra sua natural fraqueza e a timidez mas que acaba se impondo por sua vez como homem enérgico e ambicioso 817 Traité op cit p 65 818 Nesse sentido não posso deixar de notar o quanto os céticos antigos eram mais consistentes do que os atuais 819 Traité op cit p 7 290 inventariável Mounier quer provar o caráter dialético do ser da pessoa também nesse lugar e em sua expressão psíquica Esta é uma primeira constatação Uma segunda constatação é que a ambivalência usada ali como arma dos discursos da desconstrução tomada então como inspiração de um discurso que acabaria fechado em si mesmo e bloqueando por seus novos preconceitos as aspirações do movimento de personalização em sua manifestação de liberdade desvinculada portanto do campo de quem a constitui e fora do movimento próprio de sua afirmação como luta pelo real quer dizer desvinculada como característica própria do universo da pessoa acabaria como o racionalismo que prendia combater como uma espécie de feitiço que se volta contra o feiticeiro sujeito às mesmas críticas das quais se pretendia portavoz A ambivalência tomada apenas como fonte de desconstrução fora das suas aderências próprias e constitutivas em relação às exigências propositivas e afirmativas do movimento de emergência da pessoa também ela se torna um engessamento numa intenção que comanda o seu dizer como estancamento ou palavra final A ambivalência não é só um objeto de descrição ela mesma para Mounier se inscreve na constituição do próprio sujeito que a descreve A ambivalência por outro lado não impede Mounier de perceber as aderências de que se vale a pessoa nesse nível de sua manifestação O interior de que falamos aqui e que Mounier contrapõe a exterior antes de um lugar como quer a geometria deve ser entendido por causa da miséria da nossa linguagem e do caráter aproximativo dessas experiências com a profundidade humana de uma maneira poderíamos dizer metafórica de expressão Mounier não vê nenhum problema no trato destas expressões como metáforas pois reconhece que o nosso psiquismo invade o meio ambiente para Mounier há sempre muito mais de nós mesmos nas coisas do que estamos dispostos a admitir Este é um fato natural pois o movimento de personalização como temos visto quer invadir o infinito Para tanto também a pessoa neste seu movimento próprio fica sob o modo de ser do artefato A sua emergência enquanto afloramento e sua insurgência enquanto luta pelo real não podem ser concebidas de outro modo senão pelo do feitio A pessoa se faz o seu equilíbrio é tenso sua autoafirmação deve ser sempre retomada ela deve ser superada no que é e no que ainda não é 291 Oposições espaciais nota Mounier tais como alto baixo exprimem o movimento ascendente e a queda do elã vital e espiritual Adler820 continua Mounier pensa que esta é reforçada pela estação vertical e a representação do firmamento Ele Adler lhe dá uma importância central O mesmo fenômeno é notado por Mounier em relação à oposição esquerdadireita A direita e a esquerda enfim de importância média materializam a facilidade e o embaraço Seu uso político é puramente acidental mas sua persistência rebelde atesta nossas disposições essenciais em estabelecer no espaço até nas oposições mesmas as idéias821 Nessa nossa projeção psíquica inevitável nos espaços o personalismo vê se perfazer antes que um incômodo para nossas tranqüilas e seguras descrições de como as coisas são um apelo ela indica a necessidade de se falar das aderências necessárias da pessoa que este fenômeno apresenta ao personalismo como uma mensagem do ser profundo Já dissemos a pessoa não é um ente de razão a pessoa é o concreto por excelência Neste sentido falar da vida interior levanos a falar das aderências essenciais a esta dimensão da vida pessoal Sua expressão como movimento pode se dar na forma de uma retração de um retorno É o momento da pessoa nuclear suas forças em vista de um novo impulso Como vimos antes em sua ambivalência pode se dar em nome desta retomada de si necessária para um novo impulso uma crispação do individuo sobre o eu uma recusa uma fuga Perto do movimento de concentração necessário como vimos para retomada das forças e também para melhor medir o tamanho e a impulsão do salto pela distância do obstáculo a ser ultrapassado pela pessoa a crispação do indivíduo sobre si mesmo e sua ruminação egoísta não passa de uma caricatura que no entanto segundo Mounier não pode nos confundir O impotente segundo Mounier não foge da realidade para o nada mas para um universo interior que ele substitui ao mundo real com o qual ele lida mais que com a realidade Estas construções imaginárias oferecem uma grande variedade de figuras 820 ADLER Le tempérament nerveux Payot Nota de Emmanuel MOUNIER Traité p 308 Vamos voltar a esta projeção do nosso psiquismo quando tratarmos de uma noção muito corrente que é a de hierarquia que nos parece ser no plano da sociedade laica e na suposta autonomia do político em seu dito espaço laico uma extensão injustificada de uma metáfora mitológica que com estas origens camufladas pelas ideologias tem sido proposta e aureolada como discurso científico Ver mais abaixo p 701 Intermezzo moral personalista e moral hierarquista 821 Traité op cit p 309 292 mas elas têm em comum o fato de que substituem sempre uma adaptação laboriosa por uma adaptação fácil822 Como temos notado se a pessoa for entendida como unidadedialéticodramática doadora de sentido não se pode falar simplesmente de mundo interior e mundo exterior sem mais não levando em consideração a fraqueza da nossa linguagem e o caráter metafórico do qual nos vemos obrigados a lançar mão para estabelecermos alguma aproximação a esta dimensão expressiva e tão importante da existência pessoal Tanto mais pelo fato de que tanto um quanto outro impõem à pessoa cada qual a seu modo como já dissemos igualmente resistências Para o personalismo o movimento de personalização pode ser descrito como uma luta pelo real823 O sentimento do real nasce ao contato da resistência que as coisas nos oferecem quando avançamos sobre elas e do impulso com que nosso esforço sólido corpo e alma misturados lhes afrontam824 Mounier fala de corpo e alma misturados esta expressão é lapidar pois caracteriza a base de apreensão da antropologia personalista e do seu realismo integral quanto à tomada possível do ser da pessoa em seu ato de presença como sempre e somente em seu caráter sintético de unidade substancial Voltaremos a falar destes constituintes importantes da antropologia relacional personalista Por ora concluiremos nossa aproximação à dimensão psíquica da pessoa em seu movimento de interiorização que como veremos mais à frente se complementa pelo seu oposto movimento de exteriorização Portanto para Mounier Se a vida interior é para alguns uma glutonaria perigosa ela é ao contrário o que falta ao extrovertido para lhe dar as perspectivas profundas necessárias a uma vida plena Tudo o que lhe dá gosto deve lhe ser proposto na linha de suas disposições próprias e na medida em que ele pode tolerar825 Não se trata de tipificações estanques mas de encontrar cada qual o seu ponto certo A personalidade essa síntese provisória da beleza de cada pessoa delineia os primeiros passos no conhecimento da silhueta psíquica própria de cada um A impaciência com nossos limites vem em grande parte do fato de nós os olharmos muito ordinariamente sob o aspecto negativo O limite é ao mesmo tempo o desenho a superfície sensível e a beleza mesma 822 Traité p 373 s 823 Ibidem 327 ss 824 Ibidem p 328 825 Traité op cit p 334 293 da personalidade Como a silhueta de nosso corpo é a imagem recuada da força que opera em nós826 Todavia assim como a busca da aderência necessária pode ocultar a vontade de instalação a indiferença altaneira que simula superioridade pode dissimular um quadro patológico de incapacidade de lidar com o real de tal forma que chegamos à conclusão que o quadro psíquico de um indiferente é próximo ao de um quadro patológico Assim ao mesmo tempo em que se destaca do real o enfermo se impessoaliza e concebe todos os seus semelhantes sobre um modelo uniforme Estas indicações da patologia lançam uma luz decisiva não somente sobre a psicologia normal mas sobre toda metafísica da ação Bem distante da preocupação de que a vida pessoal deve nos desviar de nossa presença no mundo essa presença é a condição primordial da interioridade827 II2 A vida exterior da pessoa Já dissemos que o tempo em que Mounier e a equipe de Esprit vivem é filho do século XIX século do coroamento do idealismo com o sistema de Hegel e ao mesmo tempo século do surgimento na filosofia com Kierkegaard primeiro e depois Nietzsche828 Marx e Freud este no campo da psique propriamente dita do tempo da contestação Época caracterizada pelas perspectivas pelas quais cada uma destas críticas partiria em sua busca da afirmação do que se lhes apresentava como o concreto No pacote do idealismo vinha naturalmente o racionalismo com sua já histórica reivindicação de senhorio do que dissesse respeito à dimensão humana chamada razão O personalismo de Emmanuel Mounier e sua equipe em Esprit e de outros movimentos personalistas pares não deixando de procurar ouvir o que havia nestas críticas da voz da pessoa não obstante vão denunciar o meio caminho delas frente ao dogmatismo e vontade de sistema do idealismoracionalismo e se recusar a tomálas como a última palavra quer dizer o fim da crítica Pois na verdade aceitálas como tal lhes parecia então ceder e cair no mesmo erro de cunhar sistemas Erro para os personalistas representado pela pertinência de uma 826 Ibidem p 717 s 827 Ibidem p 361 s 828 Mas que de acordo com Mounier ver a árvore genealógica do existencialismo em Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 71 tem raízes ainda na modernidade a partir de Pascal 294 verdade que se recobria naquelas críticas pela mistura interesseira ao erro da falta de adequação e de uma intenção sentida nos seus discursos particulares em suas perspectivas que tomavam o sentido de instauração de novos dogmatismos mas que agora de maneira sutilizada pulverizada em novas formas ideológicas E isso no sentido mesmo para o qual já apontavam enquanto falência e incapacidade das ciências sociais em pensar e refletir qualquer possibilidade de elaboração conjunta de uma cultura enquanto expressão de uma comunidade de destino e que já seguiam no sentido da forma das hoje chamadas ontologias regionais Essa possibilidade de crítica da crítica se dá para Mounier graças à contribuição mesma da análise de Marx do jovem Marx principalmente e sobre o tema da alienação Por outro lado parar no exame dessa sutileza era algo que o personalismo não queria fazer Pois mesmo assumindose como filosofia crítica quer suscitar e fazer valer juntamente com a crítica um papel tão importante à autocrítica Isso no meio mesmo de uma crítica secionada que os personalistas já percebiam no seu tempo correndo para bem se instalar e com segurança como que entrincheirada cada qual em seu território particular como notamos antes Estas chamadas ontologias regionais tendiam a compartimentalizar a realidade com o álibi da crítica como crítica à ideologia dos outros Ora para o personalismo essas críticas nestas suas tendências também à instalação confortável em lugar seguro assim podiam fazer porque participavam cada qual a seu modo de uma questão de fundo que não se ousava tocar por causa do caráter esguio do seu objeto o que já denunciava o preconceito racionalista e objetivista do qual essas críticas se ressentiam cada qual a seu modo e contra o que se arvoravam em críticas últimas Tratase do adiamento histórico829 mas que Emmanuel Mounier como crítico da modernidade data a partir do século XVI da opção pela pessoa que para o personalismo é o único concreto em favor das reivindicações do indivíduo burguês agora matizadas como tendências constantes não assumidas e em suas inspirações de fundo nestas novas críticas regionais Fato é que o socratismo de Mounier em relação a esta questão não o deixa consolarse como que em lugar seguro Assim como Sócrates que não sabendo nada ao menos sabia disso Mounier que era burguês como todos os outros ao menos tinha 829 Como vimos já em nossas aproximações do mito e da religião Ver acima Capítulo I 295 consciência disso E é assustador ver como o tempo burguês se infiltra em nossa vida interior830 Por outro lado lidando com a outra vertente à instalação em carta a Jean Marie Delettrez um correspondente de esquerda de 17 de fevereiro de 1945 escreve Mounier como ele via a desconfiança sistemática e o sentimento de conspiração que acaba fora da lucidez Essa maneira bem francesa de colocar os problemas políticos da qual vossa carta está cheia toda em nervosidade em ressentimentos em paixão me parece desculpeme a palavra detestável por sua subjetividade Será que nós não saberemos pois um dia olhar lúcida e calmamente os problemas que nos interessam a todos sem ver aqui os chifres do diabo ali o grande Inquisidor acolá o Complô da Mão Negra e todas as futilidades parecidas Se nós nos chamamos revolucionários não é por excitação verbal nem por gosto de teatro É porque uma análise honesta da situação francesa nola mostra revolucionária Se nós dizemos que a burguesia tem maciçamente se demitido de sua honra e de suas responsabilidades não é por sentimento de classe nós somos todos burgueses nem por demagogia eu vomito a demagogia mas porque a evidência é mais que evidente por mais simpáticas que sejam as exceções831 Mounier mesmo reconhecendo antecipadamente sua inelutável pertença ao mundo burguês ninguém escolhe a época e nem o tipo de sociedade em que vai nascer não quer parar a meio caminho sob alguma cobertura feliz mesmo denominada crítica nem se vê impedido de tentar uma critica lúcida à sociedade em que vive Já falamos que o florescimento da pessoa no tempo e espaço não é uma tarefa simples a relação da pessoa com o real é uma relação de luta de embate e de força Nesse sentido assim como ligado ao movimento de interiorização da pessoa de que falamos antes para o personalismo de Emmanuel Mounier conhecer o próprio caráter é combater o próprio caráter e em função de potencializar o próprio caráter no que ele mantém de sua parte como responsabilidade na liberação do movimento de personalização conhecer os próprios condicionamentos históricosociológicos cultura burguesa por exemplo é combater estes próprios condicionamentos Esse modo de ser do artefato que comanda o pensamento personalista é bem claro no tratamento que Emmanuel Mounier dá a esta dimensão de 830 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 530 831 Ibidem p 799 296 profundidade diferente do preconceito positivista que é sempre muito cioso pelo espírito pequeno burguês que o comanda de instalação E esta como uma espécie de pacto primeiro do analista como o possuidor do conhecimento certo de como as coisas são e depois do analisando cujos problemas pessoais acabam sempre reduzidos a algum tipo mais direto como na Gestalt ou mais remoto como na psicanálise de problema de adaptação social quer dizer de encontrar um lugarzinho ao sol na sociedade burguesa para esse indivíduoobjeto Todavia o modo de ser do artefato pode ser percebido até nas bases sobre as quais Mounier constrói o seu Traité du caractère Ali lemos Podemos modificar o nosso caráter A resposta deslizaria insidiosamente já nessa maneira de colocar a questão A partir do momento com efeito em que o psicólogo não dá crédito senão ao dado morto da objetivação ao caráter visto abstração feita do caráter vivido ele não pode dar à essa questão senão uma resposta negativa832 Portanto o personalismo quando rejeita definitivamente o adiamento pela opção da pessoa não propõe simplesmente uma crítica final propõe também uma ação na forma de retomada de uma vocação esquecida Ele quer que se retome nas mãos a obra humana conquistadora que fora no início da modernidade a da burguesia heróica que depois de ver nas gerações seguintes as prerrogativas de sua classe estabelecidas já nas mãos dos filhos herdeiros se instala e tornase a partir de então graças à maquinaria juridista construída para garantir a passagem tranqüila dos bens herdados uma reivindicadora egoísta apoiada por todas as estruturas que como legado dos esforços dos seus primeiros pais que se nutriam ainda de um apelo humano agora se tornam matéria de reivindicação Ora isso se apresenta aos olhos de Emmanuel Mounier e sua equipe como uma escolha da civilização ocidental pelo estancamento no indivíduo burguês em detrimento e continuação do adiamento da opção pela pessoa e que lhes é visível ainda na crítica contemporânea como uma continuação uma opção que não esconde seus interesses o círculo em que esta crítica quer comodamente enveredarse e caracterizar qualquer outra crítica ressentese para Mounier de todas as suscetibilidades do indivíduo burguês que por ouro lado pretende atacar o personalismo quanto a isso e tudo mais propõe o partido da lucidez833 832 Traité op cit pp 52 ss Ver todo o tópico Caractère donné et caractère voulu loc cit 833 Já dissemos toda descrição implica uma prescrição toda negação implica uma afirmação aqui acrescentamos que para o personalismo a única e autêntica dialeticidade o único círculo não vicioso que pode gerar ganhos reais é a dialeticidade movida pela pessoa por sua vez fonte e aferidora de tudo o nó 297 Tendo esboçado estes matizes podemos situar melhor o plano em que a exterioridade se encontra no personalismo de Emmanuel Mounier antes como movimento complementar necessário da pessoa ao de interioridade do que o locus da chamada única objetividade possível como querem os reducionismos cada qual a seu modo do materialismo dialético ou do instintivo pulsional ou do biológico etc que parece constituir a tentação própria também das metafísicas contemporâneas Para Mounier juntamente com Karl Jaspers O objetivo da filosofia é uma nova posse da objetividade Não se trata da morte da objetividade mas somente da sua agonia834 A pessoa não tem necessidade apenas de aderências interiores no plano do psíquico mas de aderências exteriores no plano de sua manifestação no e diante do mundo Ao falar de movimento de exteriorização o personalismo não muda o foco de inspiração que continua sendo a pessoa mas muda a perspectiva em que essa inspiração agora em seu movimento de saída de si toma O espaço em que vivemos não é uma grandeza quantitativa e exterior mas uma maneira íntima de ser de nós mesmos e onde se dá a nossa ação Segundo Mounier Utopia e ucronia835 são dois aspectos pelos quais nós procuramos górdio que desata um mundo Não posso deixar de tocar aqui na relação entre Agápe e Eros levantada na área da crítica da literatura medieval por Denis de ROUGEMONT LAmour et lOccident Plon Paris 1939 e em teologia por Anders NYGREN Agape and Eros SPCK London 1954 relação esta que a meu ver se apresenta nessa conexão como um outro nó górdio da história ocidental Enquanto Eros representa um movimento incontido e avassalador e que uma certa reflexão contemporânea difusa temno concebido como pulsando para a morte e que nos atrai justamente pelas simpatias que nutre com nossas profundidades mais obscuras de vontade de abismo Agápe seria a possibilidade de resgate e redirecionamento desta força incontida e deste ímpeto erótico em uma perspectiva tanto mais construtiva e afirmadora da vida em suas expressões mais cotidianas Portanto não somente pelo álibi da necessidade da contenção de sua impulsão de morte pela sublimação em vista da organização e criação das formas civilizadoras que digase de passagem é uma compreensão que não deixa de ocultar uma certa inspiração e vontade burguesas que têm sido expressas pelo seu ideal de indivíduo adaptado O personalismo a esta dimensão erótica da existência não propõe outra coisa na contramão do argumento burguês sociológico como vimos que um tratamento que respeita esta dimensão em sua expressão essencial A Eros o personalismo propõe o domínio biófilo de Agápe É nesse sentido que o personalismo pode ser chamado de uma filosofia do amor A opção pela pessoa segundo Emmanuel Mounier se identifica com a opção pelo amor enquanto Eros cativo por Agápe em filosofia pois como já dissemos o movimento de personalização é o do ser para a vida Para isso ver Révolution personaliste et communautaire Oeuvres I p 148 obra lançada pelas Éditions Montaigne em 1935 cujos capítulos com exceção do cap VIII e do Posfácio são artigos publicados primitivamente na revista Esprit entre 1932 e 1935 Há bem mais de mediocridade que de verdadeira paixão nos vícios do mundo moderno e é para restaurar o amor que se deve gastar hoje a generosidade dos seres humanos 834 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 162 Vamos voltar sobre esse assunto abaixo no capítulo sobre Pessoa e existência 835 Em nenhum lugar e em nenhum tempo Todavia para Mounier o fato de não se estar em nenhum lugar não implica necessariamente que não possa existir em algum tempo Para o personalismo se há um caráter objetivo nestas duas formas a priori da experiência possível este está em sua irredutibilidade uma a outra o que frustra todo reducionismo tanto idealista espiritualista quanto materialista O caráter tenso dialético e profícuo destas duas dimensões em sua relação irredutível só pode ser percebido quando nos deparamos com 298 escapar da nossa condição dandonos as aparências abstratas da eternidade Mas nosso destino é um destino espacial e temporal Não há um só de nossos atos que não seja talhado nesse estofo estendido e durável cuja reflexão moderna tende a pensar que não é senão um mesmo tecido sob duas iluminações Acolher esta dupla realidade e nos agregar a ela situarmonos em nosso lugar e em nosso tempo é assegurar nossa solidez espiritual ao mesmo tempo em que nossa orientação elementar Toda tentativa de escapar a este enraizamento de base nos lança em uma forma de desequilíbrio psíquico É para traduzir a impossibilidade de colocar o eu fora de suas condições espaciais e temporais de existência que os psicólogos alemães designam às vezes o eu encarnado sob a expressão composta e indissociável de euaquiagora836 Todavia para dar maior densidade existencial a esta expressão euaquiagora Mounier propõe uma outra mais longa mas com maior apelo à concretude Eu não sou um euaquiagora seria necessário talvez ainda dar maior densidade um euaquiagoracomo esteentre os seres humanoscom este passado837 Segundo Mounier ainda O aqui deste complexo vital é o ato pelo qual eu aceito e assumo a riqueza de meu espaço vivido838 A noção de espaço vivido só tem ainda uma curta carreira Ela se encontra sufocada entre a noção geométrica de espaço que está intimamente misturada à imaginação do sensocomum e a brilhante reabilitação por Bergson da duração vivida que parece rejeitar o espaço fora da vida Quando o apóstolo Paulo invocando os abismos do espiritual fala da altura da largura e da profundidade quando nós falamos do sentido da grandeza a linguagem só estaria emprestando uma metáfora superficial ao espaço geométrico ou estaria exprimindo antes a intuição de qualidades puras cujas dimensões geométricas não seriam senão as aparências A patologia nos orienta claramente nesta última direção o paralítico geral é desorientado no espaço clínico que o entorna e entretanto ele guarda a percepção do euaquiagora É que o espaço em que vivemos não é uma grandeza quantitativa como que exterior a nós mas uma maneira de ser íntima de nossa ação grifo nosso sua expansão é vivida do interior Há uma maneira de se figurálo como pura exterioridade e de nos situar defora dele o que a experiência possível da pessoa em relação a estas estruturas e não pelo desvio idealista do kantismo que desloca o seu verdadeiro núcleo motor 836 Traité op cit p 299 837 Cf Bulletin des Amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p29 838 Ver por exemplo MINKOWISK Le Temps vécu pp 74 s 366 e passim Collection de LEvolution psychiatrique dArtrey 17 rue de La Rochefoucauld ParisIXe e as análises de Heidegger e Jaspers Nota de Emmanuel MOUNIER Traité op et loc cit 299 nos coloca ainda em situação de exterioridade a seu respeito coisa entre as coisas Nós podemos por outro lado olhálo de dentro Não é sem razão que empregamos a expressão de dentro para designar a mais profunda intuição espiritual O de dentro é o lugar interior onde se unificam pertença domínio intimidade e irradiação No sentido pleno das palavras do espaço como da duração é verdade dizer In eo vivimos movemur et sumus839 Percebemos o quanto falar da pessoa é falar de um poder unificador poder que se coloca além do objetivismo e aquém do idealismo É quando a pessoa perde esse seu poder de maestria sucumbindo ou à interioridade ou à exterioridade que a luta pelo real a condição própria de seu caráter afirmativo fica comprometida A ênfase por outro lado por parte de Mounier no de dentro aponta para o sentido em que o personalismo repõe a noção de precedência do contemplativo ao ativo Qewrein Theorein dizem os gregos para designar a parte de nossa atividade que explora os valores e se enriquece estendendo o seu reino sobre a humanidade Tradução clássica ação contemplativa840 E mais à frente diz ainda Mounier sobre a contemplação não é somente uma ocupação da inteligência mas do homem inteiro não é evasão da atividade comum para uma atividade escolhida e separada mas aspiração a um reino de valores invadindo e desenvolvendo toda atividade humana Sua finalidade é perfeição e universalidade mas através da obra finita e da ação singular841 Para o personalismo a ação já começa na consciência e o tempo como receptáculo dessa ação longe de categorias meramente numéricas é tempo vivido resgatado de sua morte lógica pela vida que lhe é insuflada pela pessoa Já dissemos que é a partir da compreensão da dramática da existência pessoal como luta pelo real e poder unificador que esta palavra de ordem personalista de precedência do contemplativo ao ativo até então apanágio do intelectualismo aristotélico deve ser entendida no personalismo de Emmanuel Mounier Ao mesmo tempo em que se diferencia da intenção intelectualista o personalismo procura situarse como filosofia da ação do engajamento frente também à palavra de ordem de Marx Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras o 839 Atos dos Apóstolos 1728 expressão do discurso do apóstolo Paulo em Atenas acerca do altar vazio que os atenienses sempre mais preventivos do que a arrogância moderna deixavam ao Deus desconhecido em relação ao qual sugestivamente diz Paulo nele vivemos nos movemos e existimos 840 Le personnalisme Oeuvres III p 501 841 Ibidem p 502 300 que importa é transformálo842 que não deixam de apontar na economia geral do materialismo dialético uma queda para a pura exterioridade Ampliaremos mais estes contrastes quando falarmos mais à frente843 da relação entre o personalismo e o marxismo Por ora fica patente que uma ação sem a maestria da pessoa ou seja uma ação que não se nutra de sua fonte e não se depure pelo seu crivo aferidor tende a estabelecer um novo adiamento da opção pela pessoa Com Marx segundo Mounier este adiamento se dá em proveito de uma teoria que gera um método o materialismo histórico e sua dialética materialista Estas ganham vida própria e autonomia diante e contra as prerrogativas fundantes e de maestria da pessoa segundo Mounier como sendo a expressão mesma do funcionamento intrínseco último da matéria quer dizer para o idealismo marxista da realidade Aquela então recebendo as honras devidas de verdadeiro centro de reorientação da realidade que só pode ser segundo Mounier a pessoa concreta é tomada segundo o método do marxismo como o estofo último da realidade que em sua manifestação sócio políticoeconômica carrega a chave hermenêutica da realidade humana que se esclarece segundo o marxismo pela relação que lhe é a mais essencialmente pertinente a luta de classes Dessa forma nessa metafísica mesmo como esforço de elaboração nomeadamente contra uma queda ou no pragmatismo ou no intelectualismo de uma filosofia da práxis segundo Mounier não há espaço e nem necessidade da pessoa844 Tendo apresentado estas maneiras de construção da objetividade nas quais a pessoa é sempre preterida em favor de alguma outra coisa que na perspectiva personalista não deveria ocupar o seu lugar podemos nos aproximar pelo tema aqui da vida exterior do enfrentamento da pessoa em seu movimento de luta pelo real com as resistências 842 K MARX F ENGELS A ideologia Alemã I Feurbach 6ª ed Editora Huciter São Paulo 1987 p 14 XIª Tese contra Feurbach 843 Ver abaixo p 452 Revolução Personalista e Comunitária e Revolução Coletivista A Pessoa Como Relação e Comunidade e o Coletivismo 844 Uma boa exposição que se esforça por apresentar a concepção marxista como filosofia da práxis é VASQUEZ Adolfo Sánchez Filosofia da Práxis Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 especialmente pp 46 ss A práxis como categoria filosófica fundamental Ver também outra boa exposição em KOSIK Karel Dialética do concreto Paz e Terra Rio de Janeiro 1969 Ao nosso ver a atenção dada por estes textos à práxis e à dialética se apresenta como a opção por um método e portanto um adiamento pela opção da pessoa em seu caráter analítico como quer o personalismo A única dialética válida para o personalismo tem sua fonte de origem na pessoa e se conclui nela O método tem um estatuo sempre posterior e implica uma densidade ontológica inferior ao da pessoa A apresentação da filosofia da práxis e da dialética marxistas parecem perder de vista este estatuto fundamental da pessoa e hipostasiar uma lógica em um método que tomado em si acaba tendo vida própria independente da pessoa 301 colocadas pelo mundo exterior e do sentido concreto e fundacional que ela tem no pensamento de Emmanuel Mounier Nesse sentido os obstáculos colocados pelo real à pessoa criadora lhe são estimulantes Frente aos tipos ativo e inativo a ação da pessoa se perspectiva como ato de verdadeira coragem A verdadeira coragem não segue normalmente em uma ignorância absurda do obstáculo a não ser que um secreto instinto a advirta da certeza de sua vitória mas o corajoso não é às vezes senão um presunçoso que tem tido êxito A ação mais modesta assume os riscos e a natureza psicológica dos riscos é a de ser uma improbabilidade muito mais que uma probabilidade Na há ação sem um toque de loucura sem uma desrazão soberana que mofa das razões Que não se discuta com o pusilânime ele tem razão em cada uma de suas razões pois a razão prevê tudo salvo o milagre mesmo do ato criador E continua Mounier Não se segue que toda loucura seja criativa O sucesso da ação pertence àquele que junta o máximo de audácia ao máximo de preparação 845 Para Mounier o elo estreito que une o dom da iniciativa ao espírito criador fora dos casos de uma forte inibição por causa de inatividade patológica faz da iniciativa a elasticidade da criatividade846 Percebemos assim como a ação criadora é tecida dentro do raio de domínio da pessoa e como tal confeccionada sob os constituintes próprios de equilíbrio e domínio da pessoa Da mesma forma que a decisão a iniciativa para regular a ação se compõe com as solicitações e as limitações do real São estas que lhe dão uma infinita flexibilidade Nosso corpo mesmo é já um instrumento maravilhosamente dócil às nuances da ação As coisas tecem o homem enquanto o homem tece as coisas847 Todas estas aproximações de Mounier ao modo como se dá o afrontamento do obstáculo e as regulações da ação por parte da pessoa que ao mesmo tempo expressam sua luta com o real em sua busca de construção de uma unidade e equilíbrio psíquico deixam claro o papel onipresente deste eu que se descobre e se constrói em seu confronto com as resistências do real Falamos do eu e de sua afirmação que não se confunde para o personalismo com a pessoa e em relação ao qual Mounier reconhece o mérito de Freud em desmontar o caráter objetivista que a psicologia de seu tempo queria lhe dar dessa figura por sua vez fluida antes vivida que vista 845 Traité op cit p 426 846 Ibidem p 427 847 Ibidem p 428 302 Sobre isso diz Mounier O eu foi longamente estudado pelos psicólogos como um objeto entre os outros Para assegurar sua existência através de suas metamorfoses incessantes procuravase sofregamente estabelecer de fora sua identidade Faziase apelo para extrair essa identidade à consciência mas seguindo o mesmo método que seria objetivo pelo fato de que reduzia toda experiência às condições da experiência sensível e notadamente da visão se lhe retirava por assim dizer do jogo da consciência viva e se lhe constituía em observatório registrando impessoalmente o filme dos estados de consciência Ora a identidade e a impessoalidade são por definição as propriedades mesma da coisa Todavia mesmo com nenhum prestígio somado aí nenhuma virtuosidade dialética a partir de uma exposição objetiva análoga àquela sob a qual a ciência positiva apreende as realidades psíquicas podese fazer com que se reencontre a realidade pessoal que é desde o inicio afirmação O eu é vivido antes de ser visto e não é conhecido adequadamente senão em sua atividade vivida O mérito capital do freudismo848 e das primeiras psicologias personalistas alemãs é o de ter denunciado essa ilusão secular comum às psicologias idealistas e às psicologias materialistas e mostrado que de um feixe de constatações na terceira pessoa a síntese mais mental que se queria imaginar jamais tirara uma existência na primeira pessoa849 Como vemos Mounier reconhece os méritos de Freud que foi definitivamente quem introduziu a história da pessoa na psicologia contemporânea850 E logo no início do Traité du carcatère como já notamos Mounier vai procurar situar este seu tratado do caráter e não de caractereologia em vista da pretensão de preencher uma lacuna nos estudos de psicologia em França Mounier fala das ilusões da linguagem e do laboratório O melhor e o pior do espírito francês tem resistido ao freudismo um certo bomsenso uma incontestável saúde de espírito o gosto do rigor mas também o contorno mesquinho tomado das ciências humanas que não têm mais a idéia precisa do humano e têm medo da aventura E nossa psicologia permanece esterilizada por dois preconceitos parentes que ela guarda obstinadamente de uma herança já caduca o preconceito analítico e o 848 Sobre este aspecto ver Politzer Introduction à la psycologie Rieder Nota de Emmanuel MOUNIER Traité op cit p 523 849 Traité opet loc cit 850 Ibidem p 36 303 preconceito objetivista851 O alcance ético que Mounier quer dar as suas pesquisas seria a maneira de fazer valer no lugar mesmo em que o preconceito analítico e objetivista se instauram e para além deles o elemento de descontinuidade de imprevisibilidade e portanto de criação atributos específicos do modo de ser da pessoa Esse inconformismo por parte de Mounier em relação ao estancamento característico destes preconceitos quanto à dinâmica viva da manifestação da pessoa na tentativa de subsumir seus caracteres mais próprios sob o álibi da análise objetiva é o que vai caracterizar a aproximação de Mounier a estas pesquisas e o nível do seu reconhecimento dos méritos dessa análise incluindo os da de Freud Sobre isso diz Mounier Não se pode censurar o freudismo por ter negligenciado o estudo da vida normal Ele se louva não sem razão de ter sido o primeiro a proclamar a onisignificação dos atos cotidianos aparentemente os mais desprovidos de sentido Não há com ele um só de nossos gestos seja o cantarolar com um ar descontraído ou a maneira de torturar um cachimbo entre os dedos um único sequer de nossos tiques ou de nossos esquecimentos que não deva se ligar no mesmo título que os atos conscientemente motivados às estruturas mais íntimas de nossa história e de nossas disposições pessoais852 Ora não obstante os méritos o freudismo acaba por suas vias próprias cedendo também à tentação do objetivismo Todo fato psicológico é um evento na primeira pessoa e não pode ser formulado senão na primeira pessoa Ele é inseparável de uma história de uma afirmação de uma significação e de uma valorização pessoais É o que tem compreendido a psicanálise Ou antes é o que ela tem começado a compreender Ela tem visto a necessidade de religar a explicação à história e às significações acumuladas no sujeito individual a anamnese procura nos cursos tumultuosos dos efeitos os temas diretores e por trás dos temas os eventos individuais que a cada vez abrem o sentido de uma situação psicológica dada Mas nem Freud nem a maior parte dos freudianos têm reconhecido o papel da afirmação e da valoração Isto se dá porque a psicanálise finalmente caiu na explicação853 sobre um material de processos na terceira pessoa Pulsões complexos desagregações mecanismos de transferência de substituição etc Freud no final das contas leva consigo todos estes novos utensílios a uma nova substituição 851 Ibidem p 9 852 Ibidem p 35 853 Grifo nosso 304 impessoal a energia afetiva que se transfere se transforma se regula e se desregula toda como um fluxo material é o velho mana854 das religiões primitivas uma vez mais rebatizado855 Assim segundo ainda Mounier a explicação psicológica não se completa como a explicação física no nexo causal no estabelecimento das relações objetivas constatadas de fora entre os elementos ou as funções Ela é essencialmente uma compreensão a interpretação pessoal pelo observador de uma significação pessoal só a pessoa conhece adequadamente a pessoa O paradoxo da compreensão de um incontornável856 individual por um outro incontornável individual não se resolve senão neste ato de conhecimento direto da pessoa por seu semelhante Scheler Não é nem uma alienação nem uma introjeção em que todas as duas compusessem um ter dissolvente em uma negação do outro ou em uma negação de si É uma comunhão grifo nosso ou para retomar o trocadilho saboroso de Claudel um conaissance nascer com daquele que conhece com o conhecido Eis aqui pois uma volta ao frescor do subjetivismo Se for subjetivo exigir um ato de compreensão pessoal para extrair adequadamente os atos que vêm da pessoa ou as palavras perdem seu sentido corrente ou não é menos subjetivo da parte de um psicólogo de laboratório afirmar a necessidade de órgãos sensoriais intactos e de um julgamento perceptivo são para receber as impressões das coisas857 Assim num movimento que começou com o sentido de uma promessa de recolocação da pessoa Mounier constata a sua recusa de fundo a tomar este reconhecimento e suas conseqüências Os balbuciamentos do laboratório não são a única causa aqui Segundo Mounier é exigida do estudioso uma ascese subjetiva muito dura para considerar seus resultados como válidos ele deve se despojar da precipitação e da prevenção e prestar a verdadeira homenagem de uma paixão capaz de vencer qualquer 854 Temos uma explicação acerca da origem dessa palavra em GUSDORF Georges Mito e metafísica Editora Convívio São Paulo 1980 p 53 Capítulo IV Mana p 52 ss Título original em Francês Mythe et Métaphysique Fammarion Éditeur 1953 O missionário Codrington que pôs em uso a noção de mana a definia assim em 1891 em sua obra sobre os melanésios potência ou influência sobrenatural que entra em ação para realizar tudo aquilo que está para além do poder ordinário do homem fora do processo comum da natureza 855 Traité op cit p 45 s 856 Mounier usa a noção de absoluto que além de outras nesse nosso estudo e a partir do sentido mesmo do personalismo que depreendemos da obra de Mounier como já dissemos será substituída pela noção de incontornável que consideramos fazer mais jus à inspiração personalista cujas justificativas estamos ainda esclarecendo 857 Traité op cit p 45 s 305 outra paixão O conhecimento do ser humano se pergunta Mounier seria ele menos exigente que aquele da natureza Esse também segundo Mounier se recusa a quem não aceita render a seu objeto a homenagem prévia de uma pessoa a uma pessoa Assim A caractereologia temse escrito de maneira justa não é uma hermenêutica dos sonhos Jamais em desagrado aos peões ela se venderá em tabelas dicotômicas como as flores e as faunas que de abraço em abraço conduzem às dimensões que se tem nas mãos O abade de Épée858 já mostrou que é em se dirigindo a suas latências individuais profundas que ele educava o surdomudo e não em lhe impondo os quadros lingüísticos exteriores Binet859 e todos os que se ocupam com os deficientes mentais tem afirmado a mesma exigência assim vemos a prática psicológica confirmar a exigência ontológica860 Segundo Mounier essa exploração impelida para o lado do inefável conduz o psicólogo aos limites de uma metapsicologia sem a qual a psicologia é inconsistente mas para o estabelecimento da qual ela é incompetente Uma psicologia geral como aquela de Freud pode se arruinar finalmente pela impotência metapsicológica ou se quiser metafísica de seu autor É sobre a metapsicologia que no final das contas a estrutura do caráter se coloca em perspectiva A pessoa como temos visto é unidade significativa e o caráter a forma geradora e determinante de uma melodia estrutural Se as palavras têm um sentido é perseguindo essa totalidade que nós tocamos na objetividade quer dizer na plena adequação do conhecimento ao objeto861 Com isso podemos ver que sentido toma a objetividade no personalismo de Emmanuel Mounier Uma objetividade de aproximação que será tanto mais objetiva quanto mais render a homenagem devida ao objeto Esta objetividade construída pois se encontra também ela sob o modo de ser do artefato se distancia do realismo ingênuo pois o objeto que se oferece nela em relação a sua apreensão implica um transbordamento um excesso um resíduo ontológico inapreensível escândalo com o qual a lógica da contenção não quer se deparar Distanciase também do subjetivismo pois a acomodação exigida entre conhecimento e objeto aqui implica o reconhecimento de uma dignidade axiológica 858 CharlesMichel Épée 17121789 educador francês notado por seu trabalho em favor dos surdosmudos 859 Alfred Binet 18571911 psicólogo que exerceu um papel dominante no desenvolvimento da psicologia experimental francesa e que apresentou contribuições fundamentais na área da medição do coeficiente de inteligência 860 Traité op cit p 46 861 Ibidem 306 ao objeto que se antecipa aos construtos teóricos De tal forma que a subjetividade terá mais consistência enquanto tal ou seja enquanto saída de si real de um sujeito quanto mais esse seu ato se deixar nutrir da seiva do objeto Quanto mais seu conhecimento for um nascer com como lembrou Mounier antes pela fórmula de Claudel Para completar a aproximação que Emmanuel Mounier faz a Freud reconhecendo os seus méritos mas também suas limitações apresentamos alguns aspectos das observações de Mounier sobre a estruturação do ego cindido freudiano que realmente veio contestar a posição segura em que se encontrava o sujeito psicológico apresentado pela tradição racionalista Esta muito confiante em suas capacidades sintetizadoras em seus conceitos muito claros e evidentes e em sua unidade muito incontestada Pois depois de Descartes e Hegel enquanto alma o eu passa a ser mais fácil de conhecer do que o corpo De início Mounier faz notar que o tipo de estruturação escalonada como probidade honestidade coragem polidez etc que procura fazer valer o aspecto rítmico da melodia da alma em sua tensão própria pela necessidade de estruturação do mundo diverso social o que Klages segundo Mounier considerava como pseudotipologias sociais chamandoas qualidades pseudotípicas catalogam as conseqüências sociais do caráter mas não designam as estruturas essenciais862 Segundo Klages nota Mounier essa disposição em profundo jorraria de uma força vital inconsciente e cósmica A vitalidade total comporta dois estágios o corpo e a alma essa ultima estendida como eflorescência do instinto Em face dela se dirige seus inimigos perpétuos o espírito e a vontade poderes de dissociação e de morte vindos de não se sabe qual antiuniverso863 Segundo Mounier tratase de uma estrutura sobreposta do mesmo tipo da que nós encontramos em Freud e em muitos de seus discípulos Segundo Mounier o Si ou o Id estágio infernal das pulsões em seu encontro com a realidade dá nascimento ao Ego que é a personalidade agindo em adaptação ao real no curso de seus contatos sociais este se destaca e se opõe um SuperEgo que o torna superior mas como uma força não como um valor Mounier também observa que essa arquitetônica já complicada se complica ainda mais em certos discípulos de Freud e chega segundo Mounier a um verdadeiro 862 Ibidem p 49 863 Ibidem 307 barroquismo psicológico que mantém suas fantasias decorativas como se tratando de profundidade de análise Segundo o diretor de Esprit Jung o abandona e não opõe senão dois grandes planos o si enfronhado nas profundezas do Inconsciente individual ao qual se junta por amplas extensões o inconsciente coletivo não é mais somente como em Freud o inferno das pulsões más mas o reservatório total da personalidade cujo eu empírico é só a fachada864 A noção de níveis ou de estágios do caráter é segundo Mounier evidentemente apenas um esquema de representação865 Seu perigo segundo Mounier é fixar em vez de sugerir e de orientar assim uma mentalidade mecanicista sobre o plano das estruturas Não se deve jamais perder de vista que ela não é senão um meio de figurar a profundidade da personalidade e a simultaneidade sobre cada iniciativa psíquica de feitos de impulsões de ressonâncias saídas dos planos muito diversos e em número teoricamente infinito em relação aos quais toda classificação seja ela estrutural não é senão um ajuste grosseiro A realidade permanece sempre a firmação de uma totalidade dinâmica aquela do processo vital da personalidade Também estamos plenamente de acordo com Petermann em atrair o vocabulário advindo da noção de planos para a noção de dimensões globais da personalidade tomada existencialmente como um todo agindo em um só gesto em seus diversos níveis de organização são estas dimensões que nós estudaremos sob o nome de acolhimento vital e veremos que cada uma engloba o homem concreto de alto a baixo desde sua espiritualidade até às disposições de seu corpo866 As noções de estruturas e de estágios segundo o diretor de Esprit definem o que os alemães têm nomeado com uma expressão que não tem deixado de encorajar alguns abusos psicologia profunda Tratase ainda de psicologia diz Mounier mas que cedendo à inspiração do psiquismo por sua transcendência íntima constitui um encaminhamento para uma metapsicologia empurrada para um além das formas da experiência e conservando por sua vez a humildade e o fervor inventivo do caracterólogo 864 Traité op cit p 51 865 Pode ser encontrado em muitos metafísicos psicólogos as ordens de Pascal as esferas da existência em Kierkegaard etc Nota de Emmanuel MOUNIER Traité op cit p 50 866 Estas pesquisas recentes estão ainda longe de chegarem a seus resultados e a um vocabulário comum Por exemplo Kretschner distingue as formas do movimento da realidade espiritual como o tempo psíquico o ritmo interno da conduta o domínio em seguida a nota afetiva de base e enfim a capacidade de experiência Pfahler a vivacidade de assenhoreamento a capacidade de reação afetiva e a energia vital de sua combinação ele forma doze tipos fundamentais Nota de Emmanuel MOUNIER Ibidem p 51 308 Diz Mounier Seguimos bem com ela na exata perspectiva da pessoa Ficamos em guarda no entanto para que ela não encoraje seguindo as duras palavras de Jaspers867 um tipo de tagarelice sobre as possibilidades que não chega a ser em alguns senão pura impulsão e antecipação vazia e sem crítica A psicologia profunda não ganha nada em se comprazer na noite É mergulhando seus resultados mais válidos nas nuvens mais ou menos metafísicas que ela tem atraído a desconfiança durável dos espíritos para os quais a luz também é uma dimensão do espírito868 A pessoa segundo Mounier não é uma arquitetura imóvel ela dura ela se prova ao longo do tempo Sua estrutura é na verdade mais semelhante a um desenvolvimento musical que uma arquitetura pois ela não pode figurar fora do tempo Perguntase Mounier Seria ela por isso um fluxo líquido onde o pensamento não teria onde se ancorar Não Como um contraponto ela guarda sob sua mobilidade sempre nova uma arquitetura axial feita de temas permanentes e de uma regra de composição O tempo mesmo em suas três dimensões lhe fornece suas medidas Ela é inseparável de um presente pessoal e é por isso que toda iniciativa psicológica encobre com uma escolha uma afirmação e um engajamento é inseparável de um passado pessoal e é por isso que não se pode compreender uma situação psicológica independentemente da história do sujeito é inseparável de um futuro pessoal e é por isso que o presente de um comportamento prenhe do passado que o preparou só apreende o que resulta como seu sentido último por meio do futuro que ele se dá quer dizer pelos valores que ele aceita Uma caracterologia personalista exclui o hábito comum de fixar os traços do caráter em um tipo de atemporalidade objetiva e indiferente independentemente da afirmação e da recusa do passado vivo e das opções de valor Mas aqui conclui Mounier nós chegamos à virada que nos leva da caracterologia à ética869 II2a O giro ético e a resolução Estas passagens de uma obra pouco conhecida de Emmanuel Mounier que é o Traité du carctère deixam claro a sua preocupação em não se deixar levar pelo plano da 867 Karl JASPERS Psychopathologie genérale p 250 Nota de Emmanuel MOUNIER Traité op cit p 51 868 Traité op cit p 51 869 Ibidem p 51 s 309 elaboração de estruturas ao esquecimento do concreto que está sempre em suas bases a pessoa Mounier vê este esquecimento como sendo a tentação própria também do psicologismo E seguindo o conselho de Landsberg870 onde há tentação é papel da filosofia esclarecer Não há explicação psicológica válida ali onde sua cadeia é desconhecida E também a geografia das amizades de um ser humano é mais essencial para o conhecimento dele do que o balanço de suas secreções871 O discurso sobre a ética dimensão para a qual o personalismo vê sempre um giro inevitável o é não por mera dileção mas porque para o personalismo o sentido possível e mais próprio de sua elaboração se dá somente em seu vínculo essencial à pessoa como liberdade e relação Aqui entramos na esfera complexa da resolução Não tocamos no coração da ação nem no da deliberação como o querem os intelectualistas nem nos movimentos do corpo como o afirmam os positivistas mas no da decisão pela qual se exprime o ato872 criador da liberdade873 A fonte deste ato criador o discurso liberal tem desviado e querido reduzila à esfera da decisão política a qual privilegia como esfera própria da ética porque já a tem antecipadamente subsumido sob seus construtos jurídicos previamente comprometidos com suas intenções e valores de base874 Ora esse desvio para o personalismo é inaceitável Primeiro porque a ação política não é para o personalismo de Mounier o único tipo de ação possível e nem o mais válido Sobre isso diz Mounier O liberalismo tem decomposto a ação dissociando na pessoa espírito e matéria inteligência e eficácia ideal e real Conseqüência uns aceitam os confortos da vida material outros os confortos da vida espiritual estas duas demissões se equivalem se bem que os da segunda sejam comumente respeitados como uma elite pelo farisaísmo burguês Duas outras categorias de desarranjos crêem agir são os realistas que reduzem a ação à tática improvisada e os idealistas que crêem na fecundidade automática da tinta do estilo Assim a ação cai entre uma agitação inútil e uma cogitação ineficaz Para lutar contra as 870 LANDSBERG Paul Louis Le problème moral du suicide segunda parte Èditions du seuil Paris 1993 pp 107 ss 871 Traité op cit p 113 872 Já falamos sobre a noção de ato no personalismo 873 Traité p 416 874 Trataremos das principais características destas intenções difusas do liberalismo e de sua nova versão o neoliberalismo quando falarmos da relação entre personalismo e liberalismo Ver abaixo 310 necessidades massiças cuja sombra se estende pela história nós só teríamos que escolher então entre os gesticuladores e os pregadores875 O giro ético pelo qual o personalismo milita como preocupação constante no seu pensamento é assim porque considera a dimensão ética humana como a região por excelência pela qual se é possível fazer valer de maneiras mais próximas possível as prerrogativas da pessoa como liberdade e relação e assim a sua concretude Esse giro não é portanto fortuito No personalismo de Mounier não se trata nem de moralismo espiritualista e nem do último recurso da metafísica materialista que através dos seus incontornáveis reducionismos seja sociológico político econômico em suas tomadas mais coletivistas ou mesmo instintivo em suas tomadas mais individualistas procuram sempre situar a ética num outro locus que o da dramática pessoal Isso numa espécie de acordo velado entre estes dois inimigos históricos que faz com que nem um nem outro tenha que lidar com o que acabaria com o sonho idealista do primeiro e com sonho pseudo científicopositivista do segundo Temos falado do adiamento da pessoa que caracteriza estas famílias ideológicas A preocupação com a ética no personalismo depende de uma clara compreensão do lugar próprio do ato lúcido de resolução que para este por sua vez não se perde nem no ativismo cego nem se enrijece em dogmatismo À fenomenologia própria do si de Jung que procura fugir ao enrijecimento do esquemático freudiano que vimos antes diz Mounier Nós acrescentaremos que ela se prolonga em ética experimental É neste nível que nós nos colocaremos aqui Não perderemos jamais o contato com o ato vivo de afirmação do eu que está incluso no mais exterior destas manifestações mas o reencontraremos em diversos níveis de atualização percorrendo a atividade do eu da periferia ao centro depois o eu em extensão derramado sobre as coisas e sobre os seres humanos de que ele tem se apropriado até o eu em intenção chefe e alma deste domínio A tomada de consciência do eu aparece assim no oposto do totalmente natural como uma prova progressiva como um esforço espiritual Bergson e Heidegger sob ângulos diferentes têm esclarecido em nós uma tendência incoercível em nos interpretarmos sobre os objetos que nos preocupam876 E ainda É a pessoa que se faz livre depois de ter 875 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 637 876 Traité op cit p 524 s 311 escolhido ser livre Em nenhum lugar ela encontra a liberdade dada e constituída Nada no mundo assegura que ela é livre se ela não entra audaciosamente na experiência da liberdade877 grifo nosso O sentido da ação que aqui tentamos enviesar para o movimento de exteriorização da pessoa não obstante compreender também o movimento de interiorização de que falamos antes a ação para o personalismo começa na consciência se dá pelo experimento da liberdade que é ao mesmo tempo experimentarse como pessoa Na antropologia personalista o ser humano é o ser do artefato por excelência assim a liberdade não é um teorema é também como tudo uma obra a ser realizada Experimentar se como pessoa contra a queda na objetificação e experimentar a liberdade como modo de ser essencial da vida pessoal se confundem Assim a decisão lúcida tem o seu balanço próprio e sua qualidade é medida pela tensão captada pelo sentido concreto de uma vida ou seja histórico878 entre a manutenção consciente dos valores que motivam sua ação e o quanto ela cede ou não às resistências ou às comodidades que o real lhe apresenta para o seu julgamento decisivo julgamento em que estão implicas todas as alteridades e si mesma A resolução verdadeira para o personalismo de Mounier parece ser o produto de uma química mental que só opera em altatensão Segundo Mounier ela é equilíbrio e deve ser sustentada por todos os lados por um tipo de harmonia dos componentes da ação ela quer que os automatismos sejam suficientemente dominados assim como a espontaneidade propulsiva que o instinto seja vigoroso a cabeça sólida e esclarecida a consciência desperta e sensível ao real exige um olhar que não seja nem muito acomodado nem muito tacanho muito distante a realidade não oferece a tomada na ação muito perto ela a encobre a decisão é ato de síntese e de salvaguarda que tende à sobrevivência do maior número possível de dados interiores e exteriores É por isso que ela não é como crêem alguns da família da rigidez do dogmatismo autoritário ou da arbitrariedade cega e despreocupada Ela comporta um tipo de universalidade profunda que dá fundamento e firmeza na tomada de partido e a situa no oposto da parcialidade Ela implica a prudência 877 Le personnalisme Oeuvres III p 478 878 Personnalisme et christianisme Oeuvres I p 768 A pessoa do ser humano é colocada ontológica e historicamente em uma certa situação que faz parte de sua definição mesma tanto quanto de suas virtualidades últimas 312 que não é o cálculo estreito e lento da circunspeção própria dos secundários879 mas uma sensatez muitas vezes implícita e às vezes fulgurante880 O realismo integral de Emmanuel Mounier comprometido com a pessoa enquanto o locus por excelência da ética não lhe permite no entanto nutrir a esperança da posse de uma última palavra A não ser a da intransigência radical em não adiar mais a pessoa em proveito de outro locus qualquer que seja o que é para o personalismo a tara essencial da modernidade Isso teria forçado sem dúvida Emmanuel Mounier a mudar o nome de sua filosofia personalista ao reconhecer a impropriedade do nome a uma filosofia que escolhe como chave um tão digno objeto a essa exigência de uma experiência fundamental o personalismo acrescenta uma afirmação de valor um ato de fé a afirmação do valor incontornável da pessoa humana881 Já falamos do ato de fé enquanto tal este do personalismo não é o primeiro em matéria de chave filosófica Podemos encontrálo no racionalismo e seu ato de fé na razão no materialismo e o seu ato de fé nas capacidades criadoras do estofo material e na possibilidade de redução da realidade não material a epifenômeno desta matéria onipotente no vitalismo e seu ato de fé fundamental no que se refere à crença no incontrolável e gratuito que comanda o elementar da vida etc Por outro lado diferentemente de qualquer outro objeto quer se tome por estofo o espírito ou a matéria a pessoa nas aproximações que Mounier lhe faz em sua diversidade infinita de expressões de manifestações não lhe dá espaço nem para o dogmatismo o movimento da pessoa é o próprio movimento da liberdade nem para o relativismo fácil todavia estas suas expressões são sempre históricas dependentes de aderências sobre as 879 Em caracterologia tratase da repercussão dos processos psíquicos caracterizada por sua lentidão profunda e durável Em Traité op cit p 292 a 322 Tópico Le retentissement persévération et rebondissemnt primeritésecundarité A ressonância perseveração e salto primariedade secundariedade Mounier trata dessas caracterizações típicas em relação ao acolhimento vital da vida pessoal que emerge de um fluxo vital sacudida ainda pelos impulsos do organismo e se mistura aos encadeamentos que remontam à terra à estirpe e aos séculos até no sangue que vem martelar as minhas têmporas p 257 Na p 292 do Traité du caractère Mounier assim diferencia primariedade e secundariedade Eu encontro um amigo Ele me diz uma palavra um pouco viva Eu respondo e a conversação continua sobre o tema começado Mas uma vez tendo nos separado eu sinto um malestar manifestarse dentro de mim A causa me escapa num primeiro instante Eu me surpreendo então com um singular trabalho subterrâneo em torno das palavras do meu amigo Elas vão procurar outras esquecidas juntas a atitudes furtivas o dizse e durante muitos dias eu sinto amadurecer em mim a angústia de uma amizade que se rompe De minha primeira resposta se dirá que ela responde à função primária da representação ação que os elementos do conteúdo psíquico exercem enquanto permanecem na consciência De minha ruminação consecutiva que ela nasce da função secundária da representação soma dos efeitos que estes elementos continuam a exercer uma vez terem deixado o campo atual da consciência 880 Traité op cit p 421 881 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 524 313 quais ao mesmo tempo constrói a si mesma e o mundo em sua luta pelo real Portanto aderências necessárias mas num movimento constante de superação das estagnações e propensão objetificante ingênitas à matéria Realmente nenhuma outra noção se apresenta melhor a Mounier pela leitura da filosofia de Gabriel Marcel para caracterizar o modo próprio de desvelamento da pessoa fora de qualquer ressonância gnóstica882 mas dentro da tradição da Grande Mística do que a noção de mistério Este sentido da intimidade é o sentido do mistério pessoal Ego sum homo absconditus Noli me tangere Há na distância espacial como que um símbolo grifo nosso imperfeito da transcendência e no comportamento do secreto como que um reconhecimento da distância metafísica883 Como diz Landsberg a consciência imita o ser profundo884 Todavia Mounier é atento tanto à tendência por parte de um pensamento que tende a extrapolar indevidamente o sentido simbólico metafórico que é possível de ser captado pela experiência da distância espacial para uma hierarquização indevida do ser ou seja já metafísica ontológica elegendo assim na economia geral advinda das conseqüências para a ética por parte de suas elucubrações a separação ontológica como experiência originária do ser e o distanciamento altaneiro como decorrência que deve prevalecer e comandar as relações Mas também é atento quanto à subtilização de uma ruminação interior que tem granjeado o nome de pensamento profundo e que tende necessariamente à fuga do real em nome de uma suposta busca de vida interior Fuga ao apelo de suas densidades e aderências de seus choques e resistências verdadeiro lugar da pessoa concreta em sua luta pelo real Sem dúvida para o pensamento engajado de 882 Teremos mais oportunidade de falar sobre a propensão gnóstica de apropriação do espiritual que inaugura o ódio ao corporal na história e que entrando pelas portas do fundo da Igreja Cristã Institucional apesar de toda sua resistência o docetismo doutrina gnóstica do corpo aparente de Jesus como já dissemos foi sem sombra de dúvida o maior inimigo do cristianismo primitivo e não os Imperadores romanos e suas arenas Para isso ver CULLMANN Oscar Cristo e o tempo op et loc cit graças a certas teologias de capitulação total ao gênio do espírito grecooriental o gnosticismo vigorou e tem vigorado como pensamento dominante durante a história do Ocidente tendo sido confundido com o kerygma cristão com a essência da mensagem cristã e posterior e finalmente tomada como sendo a mensagem cristã mesma que é pelo contrário a afirmação paradoxal e escandalosa irracional numa palavra no sentido da fenomenologia religiosa de Rudolf OTTO da dignidade do corporal do visceral do cotidiano e das coisas pequenas no próprio âmbito e como base necessária da manifestação do espiritual contra a subtilização espiritualintelctualista do preconceito dos filósofos gregos e de muita especulação religiosa congênere Não é demais dizer que este foi também o grande erro de Nietzsche em sua crítica geral ao cristianismo Cf ROUGEMONT Denis de LAmour et lOccident Plun 1936 p 217 883 Traité op cit p 479 In loc Mounier acrescenta a seguinte nota Remetemos aqui aos prolongamentos espirituais e metafísicos do sentido do secreto em Kierkegaard da significação do pudor em Jaspers e Soloviev Sobre a noção de pudor ver abaixo o capítulo Pessoa e existência 884 Ver acima p 268 314 Emmanuel Mounier esse frisson interior que como seu pior se manifesta como indiferença altaneira885 não pode tomar o lugar da verdadeira vida interior da pessoa Esta é ela também luta estado de força De equilíbrio sim mas equilíbrio dramático de paz sim mas de paz com justiça ou seja nesse nosso atual contexto cuja intenção extrapola o psíquico e alcança o político mesmo no movimento de exteriorização paz com a salvaguarda do maior número possível de dados interiores e exteriores Enfim em Traité du caractère Mounier se pergunta Além do esforço voluntário e dos resultados conscientes e aquém dos milagres da gratuidade que o crente reconheceria aos poderes sobrenaturais quem medirá o campo do mistério pessoal886 E mais à frente Os elementos do caráter são a cifra de uma linguagem secreta que não vem de trás dos fenômenos mas de sua inesgotável fecundidade e sem a qual toda antropologia tornase incompreensível O mistério ama a luz contrariamente à confusão ele aspira se precisar em palavras claras e em formas acessíveis Mas quanto mais ele se diz e mais se povoa de formas mais se aprofunda ao mesmo tempo como mistério e torna mais pesado seu secreto887 Eliminar o esforço por determinação seria abandonar a ciência do caráter à confusão e o futuro dos caracteres às pusilanimidades que nascem dos relaxamentos do espírito Eliminar o mistério seria condenarse a suprimir de nossa experiência os atos irracionais as irrupções de liberdade e de graça as crises os encontros as partilhas dramáticas que constituem o seu gosto e o seu preço A vocação mais profunda do gênio francês não é sem dúvida reduzir todas as coisas aos limites da razão mas a de colocar o mistério em plena luz humanizandoo sem diminuilo888 II2b O encontro Os limites que se apresentam como os pressupostos constituintes a uma ética personalista compreendidos na noção de mistério enquanto ética seguem o impulso que é inerente ao seu movimento de desvelamento de autoesclarecimento e de translucidez que 885 Traité op cit p 474 Toda atitude social negativa implica alguma forma de recusa responsável In loc Mounier coloca a seguinte nota Proust A lombre des jeunes filles I 2278 evoca por exemplo a recusa mundana de contato com o outro proteção contra o mistério da vida ambiente 886 Op cit p 62 887 Prefiro traduzir a palavra francesa secret por secreto antes que por segredo pois esta última me parece mais pobre para expressar a idéia enquanto que secreto em Português se me parece mais apropriada 888 Traité op cit p 70 s 315 só é possível na experiência do encontro Tanto no que ele tem de graça quanto no que ele tem de possibilidade de malogro É no encontro que para o personalismo implica uma densidade ontológica superior a qualquer contato com objetos que a pessoa se manifesta e é manifestada Toda vida autêntica é um encontro889 Nesse sentido e já perspectivando o sentido comunitário da relação como experiência originária diz Mounier A experiência primitiva da pessoa é a segunda pessoa O tu e nele o nós precede o eu ou ao menos o acompanha890 O encontro que não é nem decidido nem realizado por mim pelo seu caráter de gratuidade apela a todo o meu ser E segundo Mounier essa convocação integral do ser que é a marca do encontro é o que caracteriza qualquer relação bem sucedida da pessoa pois a pessoa faz bem tudo em que vê convocado para a obra todo o seu ser Na verdade nesse tipo de experiência original da pessoa sendo mesmo o que ela quer a vontade e a inteligência se encontram em uma harmonia mas em uma harmonia frutuosa Pois o ato 889 BUBER Martin Werke W I p 85 Ver também seu livro Ich und Du de 1922 traduzido em Português como Eu e Tu Editora Morais São Paulo sd 890 Le personnalisme Oeuvres III p 453 Não é desinteressante observar até porque serve para elucidar a própria posição de Emmanuel Mounier que estamos tentando apresentar que esta afirmação de Mounier se coloca no antípoda da análise de Emmanuel Lévinas para quem a experiência original como já notamos banhada pelo gozo e usufruto pela felicidade é a do eu solitário e ateu É interessante uma comparação destas perspectivas parece que Lévinas se opõe ao pessimismo heideggeriano ao compor o gozo e a felicidade na experiência original do eu solitário e ateu que antecede sua descoberta e abertura à alteridade Todavia pode ser destacado que tanto pelo caminho do pessimismo heideggeriano quanto pelo do declarado otimismo de Emmanuel Lévinas em seu primeiro movimento de análise do eu portanto caminhos antagônicos no entanto desembocamos no solipsismo com a ressalva de que no segundo movimento da reflexão de Lévinas há realmente a tentativa de superação desse solipsismo mas que parece tomar a forma de inevitável Por outro lado o realismo crítico de Mounier o impede de uma análise puramente noética da experiência originária que não leve em consideração o caráter precário deste eu humano que no seu florescimento mesmo infância já se apresenta totalmente em dependência de uma alteridade para que esta fruição possa se dar Isso quer dizer que o personalismo ao enxergar este prévio condicionamento não simplesmente natural mas cultural já nas bases mesmas da constituição do eu tende a considerar um tipo de análise como a de Lévinas como parcial e justamente quanto a uma parte que é para o personalismo anterior e mais fundamental do que a experiência da solidão O complemento de Mounier quanto ao eu que ao menos acompanha a experiência primitiva da segunda pessoa do tu é uma clara concessão à participação do eu mas sem o desconhecimento desta sua dependência e inserção fundamental antecipadamente originária e a base mesma sem a qual o eu nem sequer poderia pensarse a si mesmo como solitário e ateu Por aí percebemos o flerte intelectualista que Lévinas mantém em sua análise do eu Sobre o pensamento de Emmanuel Lévinas ver SUSIN O homem messiânico Uma introdução ao pensamento de Emmanuel Lévinas op cit notadamente a Introdução e Iº Parte O homem no reino do ser pp 31 ss Ver também do outro Emmanuel o Mounier em Traité du carcatère II III e IV Les provocations de lambiance pp 72 ss IX Le moi parmi les autres pp 468 ss X Laffirmation du moi pp 523 ss III Todavia para Mounier o contrário do pessimismo não é o otimismo É uma indescritível mistura de simplicidade piedade obstinação e de graça cf La petite peur du XXº siécle Oeuvres III p 424 A essa mistura que se contrapõe ao pessimismo Mounier vai chamar otimismo trágico Cf La petite op cit passim 316 como temos tentado mostrar é para o personalismo sempre expressão de uma totalidade de uma harmonia portanto o que não quer dizer que seja uma harmonia em uníssono mas em contraponto Segundo o personalismo uma harmonia de acordo com os pressupostos que compõem um equilíbrio buscado pela pessoa em sua síntese psíquica na luta pelo real A vontade está por toda parte da personalidade Ela está tão estreitamente ligada à inteligência quanto a obstinação está à obtusão do espírito891 É nesse sentido que a razão para o personalismo em vez de constituir uma dimensão autônoma e regente segundo o modelo da metafísica hierarquista do racionalismo é uma noção muito mais ampliada ainda do que pretende Habermas por exemplo para o personalismo a razão é a lógica da personalidade integral892 Com isso vemos que aqui é a alteridade que joga o jogo893 O respeito894 pelo outro segundo Mounier é proporcional ao valor que se atribui ao mistério do ser humano em sua qualidade mesma de mistério O sentido do mistério que nós lhe opomos designa não a cobertura fraudulenta dos problemas mas o 891 Traité op cit 459 892 Essa noção que se destaca do pensamento de Emmanuel Mounier na verdade provêm da tradição mística Já falamos da influência da mística na formação do jovem Emmanuel Mounier que o levou a cogitar a realização de uma tese sobre o tema quando do seu período na Sorbonne Todavia INGE Willian Ralph The Christian Mysticism Methuen Co Ltd London 1899 p 19 s O místico então não é enquanto tal um visionário nem tem algum interesse em apelar a uma faculdade acima da razão se a razão for usada em seu sentido próprio ou seja como a lógica de toda personalidade grifo nosso Uma revelação que transcenda totalmente a razão é um absurdo nenhuma tal revelação poderia se quer ser realizada Senhor eu não oponho o racional ao espiritual escreve Whichcote um dos platonistas de Cambridge a Tuckney pois o espiritual é o mais racional O que podemos e devemos transcender não é a razão mas aquele racionalismo superficial que considera os detalhes sobre os quais podemos raciocinar como se tratando de uma quantidade sempre fixa um conhecimento completo e que se baseia em uma lógica formal expressamente inapropriada para uma visão espiritual das coisas Percebemos que para a mística lúcida qualquer revelação que não possa ser comunicada deixa de ser revelação Esta lição da mística deveria por em alerta não só muito sobrenaturalismo quanto um certo ceticismo inconseqüente que se dizendo radical de maneira empedernida negando qualquer possibilidade de uma comunicação com êxito não obstante continua escrevendo sobre isso 893 Trataremos mais à frente ver abaixo p 328 A especificidade singularidade da pessoa de uma noção mais afim com a ética personalista ética do engajamento a qual responde melhor à exigência de concretude que vem da pessoa tratase da noção de próximo Nesta primeira aproximação a noção de alteridade do Latim alter outro que é a que mais comumente se impõe em filosofia como o que caracteriza o oposto à identidade serve para uma primeira aproximação Todavia a ética personalista ética da concretude e do engajamento não se contenta com a relação simétrica e intransitiva que define a alteridade como negação lógica pura e simples da identidade do Latim idem o mesmo O personalismo conhece a tentação que se tem de tratar a experiência original da transitividade da intersubjetividade da reciprocidade das consciências para citar Maurice Nédoncelle enfim do relacional o elemento mais fundamental da antropologia personalista como um problema de ordem puramente noética de que toda vontade solipsista tem sempre se nutrido 894 Como já vimos esta é a palavra que a ética personalista substitui à liberal tolerância Para isso ver abaixo pp 334 ss 317 reconhecimento direto abaixo dos problemas de um centro inesgotável de problemas O sentido do outro é inseparável do sentido da interioridade O outro é meu semelhante895 e um outro eumesmo896 A noção de mistério aponta então como podemos ver para a experiência de limite tão real para o personalismo quanto a experiência de conquista proclamada pela ciência moderna com a qual o pensamento reflexivo sempre se depara e à qual tem de responder sem subterfúgios com uma resposta à altura do estatuto ontológico que as pesquisas personalistas tem levantado Aqui por parte de Emmanuel Mounier no âmbito mesmo da caracterologia O aspecto de inacabamento intrínseco ao pensamento de Emmanuel Mounier é por isso o que desnorteia toda intenção puramente acadêmica toda acabada bem ajustada com sua lógica interna sempre à disposição para brincar o seu jogo O que há em seu personalismo é mais sede de verdade do que vontade de certeza Colocar o mistério em plena luz sem que ele perda seus recursos e sua sedução de mistério é a mais elevada conquista do pensamento e da arte897 Os heterônimos de Stendhal e Kierkegaard por exemplo têm a intenção segundo Mounier de proteger o mistério dos malentendidos engendrados pelo público das vulgaridades e da avidez do sucesso898 Por outro lado para Mounier estas condutas de retração tomadas em sua intenção mais profunda não exprimem senão o desejo de uma comunhão mais real Como filosofia da afirmação da vida parece que o personalismo defende o mistério pelo fato mesmo de que a sua ausência que redunda em disponibilidade total como objeto impedindo o ato livre de doação de si aqui no plano da intersubjetividade representa a 895 Vemos pelos parênteses como essa noção de semelhante ainda que sendo melhor que a noção de outro todavia ainda não faz plena justiça à concretude exigida por uma ética personalista engajada que como dissemos em nota anterior a palavra próximo é a que melhor corresponde A noção de semelhança mantém realmente o sentido não de uma igualdade de fundo axiológica que é como o personalismo vê a igualdade pois sua principal força parece ir no sentido de expressar alguma propriedade em que se possa localizar esta igualdade e que ficaria então limitada aos seus constituintes de semelhança Com isso teríamos não só uma igualdade objetificada como designada por uma autoridade que como tal estaria acima do que é intrinsecamente axiológico ou seja do que é sem fundamento racional e próprio da noção de igualdade axiológica como vê o personalismo A igualdade como valor proposta pelo personalismo não pode limitar sua ética a esta noção tacanha de semelhança que tem nutrido toda sorte de hipocrisia altruísta religiosa e não religiosa e que tem servido de apaziguador e tranqüilizador das consciências cauterizadas pela decadência do espírito burguês cuja principal ambição é encontrar os álibis que tranqüilizem sua consciência em relação aos crimes perpetrados e mantidos por sua real indiferença 896 Traité op cit p 516 897 Ibidem p 647 898 Ibidem p 657 Em nota loc cit Mounier observa Levantase cento e vinte e nove em Standhel e se os aproximará a seu esforço para a raridade e o egotismo Em Kierkegaard não se conta senão uma dúzia mas sua significação é bem mais profunda ele aí exprime a necessidade da testemunha de se desfazer por trás do testemunho que a ultrapassa e de a cada vez marcar sua relação perspectiva em sua obra 318 morte Como vimos para Mounier a identidade é a morte e essa morte tem a lógica própria lógica da identidade Enquanto relacionada ao objeto seria a morte do objeto na possibilidade do seu manuseamento indiferente enquanto relacionado ao eu à morte deste e o seguimento de obsessões patológicas e de passividade mórbida masoquista Parece que a primeira deformação tem a ver com a hybris característica do racionalismo que está na base da metafísica do liberalismo moderno No tipo de relação que sustenta com o mundo exterior e que tem seu alcance ético em certas posturas contemporâneas de insensibilidade e cinismo em relação ao mundo exterior no que ele possa conter como expressão de sofrimento sadismo social Parece então que podemos deduzir da caracterologia personalista a possibilidade de um paralelismo entre a experiência psicológica do sujeito com o mundo exterior e a experiência do pensamento e a realidade sobre a qual reflete Pois o pensamento longe da autonomia que lhe dá o idealismo é segundo o personalismo um ato que integra a personalidade e se destaca por sua característica própria enquanto ato humano quer dizer responsável Enquanto que a qualidade em termos de saúde na experiência psicológica é medida em relação ao quanto o sujeito que experimenta e o objeto experimentado se mantêm num equilíbrio dramático em que tanto um quanto outro afirmam uma presença conveniente nesta relação conforme a visão peesonalista da relação sujeitoobjeto de que já falamos o mesmo se dá quanto ao pensamento e o objeto pensado Com a única observação de que pelo fato de ser este um ato mais subjetivo realizado na interioridade com as aderências de que se nutre fornecidas pelo exterior o perigo de um afrontamento do objeto em proveito do sujeito que caracteriza uma fuga da dramaticidade parece ser um perigo constante idealismo cinismo relativismo absoluto899 ceticismo absoluto etc serão para o personalismo alguns nomes dessa decadência 899 Outra maneira de denominar esta decadência seria chamála de relativismo fácil Esta demissão atual que insiste em se travestir de vanguarda na verdade é expressão cabal do velho conformismo pequeno burguês Se a situação atual tem em relação à que sou convocado a criar o mesmo valor de verdade se são inteiramente relativas por que devo transformar a presente Quando falarmos do personalismo e a contemporaneidade vamos apresentar não somente alguns argumentos lógicos contra o relativismo fácil e também contra o seu irmão de leite o chamado argumento em termos de absoluto como algumas críticas a suas extensões estéticas inevitáveis para a vida ética 319 II15a Definições aproximativas da pessoa segundo Emmanuel Mounier a construção da Dignidade da Pessoa ou a Pessoa como Dignidade Depois das aproximações de caráter mais geral dadas anteriormente tentaremos aqui aproximações menos gerais em caráter de definição da pessoa as quais se destacam da obra de Emmanuel Mounier Todavia dado o caráter proposital de abertura e inacabamento da reflexão de Mounier pelo que denominamos filosofia da libertação permanecerão apenas como aproximações sujeitas a aprimoramento Para Emmanuel Mounier como vemos o ser humano não é pessoa pelo mero fato de possuir autoconsciência e de ser capaz de distinguir e afirmar o próprio eu frente a tudo o mais como queria a tradição intelectualista que ainda reduz o eu ao eu lógico Aquele não deixa de ser pessoa nem sequer quando essa identidade não exista já na autoconsciência ele tampouco carece de personalidade quando esta no entanto não tenha se manifestado A pessoa é mais do que a consciência que ela e os outros possam fazer dela mesma Contudo primeiramente elencaremos algumas definições que encontramos na obra de Emmanuel Mounier e que podem corroborar para uma melhor compreensão de tudo que temos dito em seguida algumas idéias que podem nos ajudar a pensar a especificidade ou singularidade a concretude a igualdade e a liberdade da pessoa de que temos falado antes de uma maneira mais orgânica que sistemática à luz tanto da reflexão de Mounier quanto de outras fontes personalistas que soarão de fundo notadamente Max Scheler Berdiaeff e Landsberg cuja influência foi determinante na gestação e formação do personalismo engajado de Emmanuel Mounier Antes de tudo é importante atentarmos para um fato que é recorrente e que se mantém consciente em todas as aproximações à pessoa que Emmanuel Mounier esboça em caráter de definição Em seu livro Le Personnalisme900 de 1949 escreve Mounier Chegados aqui esperávamos agora que o personalismo começasse por definir a pessoa Mas só se definem os objetos exteriores ao ser humano que podem ser encontrados ao alcance da nossa vista Ora a pessoa não é um objeto Ela é mesmo o que em cada ser humano não pode ser tratado como um objeto901 Eis o problema normalmente crêse 900 Oeuvres III p 430 901 Nesta afirmação está todo o personalismo seu caráter de provisoriedade e sua saída do jogo racionalista da refutabilidade pela recolocação constante da anterioridade e prioridade do seu princípio que é a pessoa 320 que se chegaria ao personalismo definindose a pessoa mas eis que a pessoa é o que não pode ser definido quer dizer não pode ser transformado em objeto Como temos tentado apresentar até aqui isso não decorre de nenhum sentimentalismo de nenhum moralismo de nenhum simulacro de espiritualismo de missa ou de culto de domingo mas do que é possível ser apreendido da essência desse núcleo doador e aferidor de sentido que é a pessoa A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo um objeto que nós conhecemos de fora como os outros Ela é a única realidade que nós conhecemos e que ao mesmo tempo construímos de dentro grifo nosso Presente por todos os lados ela não é dada em nenhuma parte902 Enquanto manifestação viva presença criadora as aproximações possíveis ao seu universo acompanharão suas trajetórias históricas mantendo o que se estabeleceu como genuína conquista forçando seu sobre as estruturas ao mesmo tempo como geradora e aferidora de sentido Denominamos este movimento próprio da pessoa em relação às estruturas como o seu looping Nessa conexão ver RICOUER Paul O Si Mesmo como um Outro op cit nas paginas 11 a 54 que compõem os dois primeiros capítulos onde notamos a tensão que uma inspiração de matriz personalista adotada por RICOEUR infiltra no âmbito mesmo da tendência ao reducionismo lógico característico da filosofia denominada analítica Assim entendemos que se a grande tara da filosofia analítica é afirmar a analiticidade circunscrita à lógica à linguagem a grande obsessão do personalismo está em afirmar por um lado além da lógica e por outro aquém dela mas sem abrir mão dela a única analiticidade que considera válida ou real quer dizer concreta a analiticidade da pessoavalor Esta no seu papel julgador ultimo que é no ato de se pôr como o critério único como o único valor abrangente e suficiente o elemento axiologicamente fundamental e capaz por causa dessa sua condição mesma de anterioridade e abrangência para o personalismo o único meio de um julgamento justo Quer dizer um que respeitará o objeto no que nele há tanto de irredutibilidade quanto de abertura a uma nova precedência que possa se apontar como possível Todavia essa anterioridade possível será sempre axiológica e não somente lógica Nessa conexão e para notarmos as origens intelectualistas antigas dessa preocupação logicista que vimos antes ver MONDOLFO Rodolfo El infinito en el pensamiento de la antigüedad clásica Ediciones Imán Buenos Aires 1952 p 114 onde o nosso autor em relação a Aristóteles elenca exemplos deste de anterioridade lógica da substância em relação ao acidente da linha média em relação à inteira etc Metafísica XIII 4 1079 a discutindo sempre a visão dos que sustentavam a teoria das idéias pelo que também nota Mondolfo se refere à anterioridade do número e das coisas existentes por si e a outras mil conclusões desse tipo Isso demonstra segundo Mondolfo que a mencionada questão da prioridade lógica devia ser discutida já por Platão em sua escola com relação às esferas mais diversas de coisas e idéias etc Assim o momento preciso em que a pessoa de fim se torna meio para o personalismo pois a afirmação kantiana de que ela só pode ser considerada como fim e nunca como meio soa para ele como um álibi para a justificação posterior do organum rationale kantiano como o único meio e em seu corolário liberal um esquecimento da pessoa nessa sua atribuição judicatória última intransferível dela é justamente o momento em que ela a pessoa deixase livremente ser instrumento dos valores que ela adotou também livremente e que só o fez por considerar coincidentes com o seu próprio movimento mais natural de expressão que aqui denominamos de emergência Nesse momento privilegiado da pessoa como ato não há antes nem depois pois o instante dessa assunção é respaldado pela experiência originária relacional que a tudo antecede lógica e ontologicamente segundo o personalismo 902 Le personnalisme Oeuvres III p 431 Essa afirmação nos faz lembrar a definição de Nicolau de Cusa e Giordano Bruno que repetindo uma frase análoga de Alano de Lila dirão mais tarde para caracterizar o infinito ubique centrum nullibi circunferentia o centro em qualquer parte a periferia em nenhuma cf MONDOLFO Rodolfo El infinito en el pensamiento de la antigüedad clásica Ediciones Imán Buenos Aires 1952 p 312 321 aprimoramento à luz do seu presente com soluções que contemplem o seu movimento próprio que segue no sentido do seu elã vital e criador a um futuro que é sempre aberto Todavia já falamos da influência da mística na formação do pensamento de Mounier e da via negativa que fora de sua tendência ao acósmismo quer dizer de negação radical do mundo fenomênico de seu subjetivismo é a maneira preferida de Mounier e da qual ele se vale para realizar suas aproximações conceituais ao universo da pessoa Esse método não é novidade já é patrimônio comum da humanidade Depois de Dionísio Areopagita a via negativa ou apofática se estabeleceu no Ocidente como uma das maneiras possíveis de se conhecer algum fenômeno cuja essência se recusa a uma aproximação direta ou seja o tipo de conhecimento que o racionalismo instrumental tem perpetuado como herança e que é sempre cioso em estabelecerse como palavra final A via negativa é um método de aproximação indireta ou seja pelo que não é e que já é também uma forma de se chegar à verdade903 Essa maneira de tratar a pessoa para Mounier é a que mais respeita o seu mistério essencial ao mesmo tempo que lhe possibilita como prova catafática afirmativa através de uma ação engajada caracterizada pela boavontade a realização de sua essência que só pode se dar no plano das vivências e da intersubjetividade atualizadas no tempo em outras palavras no plano da ética 904 903 À guisa de exemplos os heterônimos de Kierkegaard e de Standhel de que já falamos são na literatura uma forma indireta de dizer as coisas que se quer dizer o conhecido método de tentativa e erro de Karl Popper na ciência é uma maneira negativa de testar a validade das teorias afirmativas do mundo etc 904 INGE op cit p 4 nota 4 Nenhum escritor exerceu mais influência sobre o desenvolvimento da Mística na Igreja do que Dionísio Areopagita cujo principal propósito é apresentar o cristianismo à luz da misteriosofia platônica A mesma proposta é evidente em Clemente e em outros platonistas cristãos que se situam entre Clemente e Dionísio E mais à frente p 133 continua INGE sobre Erigena que tomou para si a tarefa de elucidar as teorias vagas de Dionísio e apresentálas como um sistema filosófico consistente desenvolvendoas com a ajuda de Aristóteles e talvez Boécio Erigena De divisione Naturae Sobre a Divisão da Natureza 136 Iamdudum inter nos est confectum omnia quae vel sensu corporeo vel intellectu vel ratione cognoscuntur de Deo merito creatore omnium posse praedicari dum nihil eorum quae de se praedicantur pura veritatis contemplatio eum approbat esse Há muito entre nós concluiuse que tudo o que é conhecido a respeito de Deus justo criador de todas as coisas pode ser proclamado ou pelo sentido corporal ou pelo intelecto ou pela razão por outro lado a pura contemplação da verdade prova que nada daquilo que é a respeito de si mesmo existe Todas as afirmações acerca de Deus são feitas non proprie sed translative não em sentido próprio mas em sentido translado todas as negações non translative sed proprie não em sentido translado mas em sentido próprio Cf também ibid i I66 verius fideliusque negatur in omnibus quam affiramtur Em tudo negase de um modo mais verdadeiro e mais seguro do quando se afirma e especialmente ibid i526 thephanias autem dico visibilium et invisibilium species quarum ordine et pulcritudine cognoscitur Deus esse et invenitur non quid est sed quia solummodo est Falo então dos aspectos manifestos das coisas visíveis e invisíveis pela ordem e beleza das quais sabese que Deus existe e descobrese não o que é mas unicamente porque é Erigena tenta dizer em seu péssimo Latim Willian Ralph INGE foi assistente e professor de Latim em Hertford College Oxford 18891904 que o mundo externo não pode ensinarnos nada a respeito de Deus a não ser revelar o fato de Sua existência 322 Primeiramente Mounier toca na definição clássica de proswpon prósopon aquele que põe o olhar adiante que afronta Posteriormente a designação estendeuse aos atores ou personagens E do teatro passou para a vida real onde cada pessoa representa um papel pai filho autoridade procurador comerciante empregado etc905 Justamente pelo sentido que esta noção toma no Ocidente é a mais apropriada para expressar o tipo de unidade dramática tensa dialética se quiser que constitui a unidade viva que é a pessoa Seu distanciamento do uso estóico restrito ao papel que o ser humano exerce na vida social906 e sua maior aproximação do uso teológico que os primeiros teólogos do dogma fizeram recebem pelo que já apresentamos sobre a essência da religião e do cristianismo em particular no início deste trabalho plena justificação Como vimos não se trata de pura especulação de teólogos que não tinham mais nada o que fazer Tratase sim de um esforço intelectual gigantesco por expressar comunicar em palavras o que tocava naquelas pessoas de maneira incontornável como uma premência irresistível na forma e na força de uma insurgência sentida naquele momento com a maior vivacidade Insurgência até então insuspeita primeiramente sentida como uma dimensão dramática e essencial de uma unidade que como unidade divina apesar do ainda forte preconceito neoplatônico do qual se ressente a contribuição mais recente da dogmática de Agostinho907 a qual muito influenciou o pensamento ocidental não deixou de lançar sua extensão significativa enquanto sentido de uma unidade antropológica essencial Esse caráter de imprevisibilidade de nãoinventariável componente do ser divino como apresentado pelo kerygma cristão implicava agora a afirmação de uma religião908 Nenhuma passagem poderia ser encontrada para ilustrar mais claramente as tendências da via negativa e a Mística puramente subjetiva conectada a ela Erigena não nos permitirá inferir da ordem e beleza do mundo que a ordem e a beleza são atributos divinos cf p 135 s nota 2 Vemos aquí a tentação para a queda no subjetivismo e acósmismo de que falamos em relação ao que Mounier vai se manter em guarda procurando relevar antes os aspectos frutuosos desse método 905 Le personnalisme Oeuvres III p 470 Ver também MONTORO André Franco Introdução à Ciência do Direito Livraria Martins Editora São Paulo 1971 vol II p 299 De início chamouse de pessoa a máscara que usavam os atores dotada de um dispositivo para amplificar a voz em Latim personare 906 LALANDE André Vocabulaire technique et critique de la philospophie Presses Universitaires de France 1951 personne 907 Ver AGOSTINHO A Trindade Paulus São Paulo 1994 op et loc cit Já fizemos menção do preconceito ao corpóreo herdado do intelectualismo neoplatônico presente na reflexão de Agostinho em sua tendência intelectualista em aceitar somente como válidas as analogias com o ser do ser humano em relação às Pessoas Divinas na vida trinitária que fossem apresentadas sem referência a suas dimensões corporais Ver acima p 159 nota 447 908 Que como tal paradoxalmente expressava o fim da religião sociologicamente estabelecida Daí a acusação dos primeiros cristãos de ateísmo e portanto de militarem contra a religião e os deuses do Estado 323 baseada na relação pessoal do crente com Deus fundamentada na amizade e no amor Em relação a qual a própria divindade se dispunha antecipadamente em se comprometer Caráter religioso este lançado de maneira radical pelo cristianismo no meio da história e no meio das estruturas enrijecidas das religiões pagãs do lar e do Estado o qual havia sido encoberto até então pelas malhas da história políticoreligiosa de eras que se acumulavam e aqui e acolá apenas tocado de maneira tímida Agora se torna parte dita e afirmada como essência da revelação da religião enquanto afirmação da vida e da liberdade como já vimos e que não deixará de imprimir um alcance a partir de então talvez de maneira até insuspeita pelos primeiros filófosoteólogos cristãos mais preocupados com a elaboração do dogma e principalmente no Ocidente no fornecimento das bases de toda uma crítica possível porque tocando dentro da esfera antropológica aos limites da vontade de contenção do real que antes dessa manifestação se expressavam e se reduziam ao quadro geral do intelectualismo dominante e que hoje se expressam e se mantêm dentro dos quadros do racionalismo moderno909 Quanto ao seu alcance real para o significado da existência humana mesmo pelo viés da discussão dogmática a compreensão estóica de pessoa como já vimos não dava conta deste caráter dinâmico e tendia antes à justificação dos papeis sociais exercidos pelo indivíduo E apesar de que toda vida humana é pessoal em sua concretude individual o conceito de pessoa como tema de reflexão antropológica fundamental foi introduzido relativamente tarde Como já vimos a investigação acerca do uso précristão do termo grego prosopon e do latino persona tem esclarecido que o conceito de personalidade se encontrava vinculado à idéia do papel que o indivíduo representava na cena do teatro e também na vida social Como designação generalizada de cada um enquanto tal na terminologia retórica e jurídica da Antiguidade tardia o conceito careceu de conteúdo pois se omitia dele o que apontava para um conteúdo distintivo dos papeis sociais grifo nosso O mesmo pode ser dito da definição de pessoa em Boécio910 como indivíduo racional ela se limita a juntar ao 909 Tanto religioso quanto não religioso É desse movimento essencial núcleo motor mesmo do kerygma cristão que a tradição mística sempre marginal na história da Igreja é a portavoz Tratase de pólvora suficiente para explodir os quadros de quaisquer estruturas enrijecidas seja religiosa ou dita laica 910 MIGNE Patrologie latine t LXIV capítulo onde se encontra a definição que permaneceu clássica durante toda Idade Média Persona proprie dicitur naturae rationalis individua substantia Pessoa é dita de maneira apropriada uma substância individual de natureza racional Cf LALAND André op cit 324 conceito genérico de homem como animal rationale ou ao mais genérico ainda de natura rationalis a simples determinação abstrata da individualidade911 O que está implícita nesta concepção é a função da consciência racional como realização da vida tratada na tradição teológica e filosófica marcadamente influenciada pelo intelectualismo sob o ponto de vista do domínio da alma sobre o corpo Este ponto de vista se aproximou da teologia patrística por seu respeito à autoridade de Platão através da concepção antiga deste filósofo do entendimento como hegemonikon da alma912 De acordo com esta determinação o conceito de pessoa não leva em consideração as demais diferenças dos indivíduos E como todo domínio pode degenerar em opressão neste caso teremos ao corpo e suas necessidades a opressão de um eu tirânico Por outro lado segundo Pannenberg mediante o seu uso cristológico o conceito se converteu em designação da relação com Deus constitutiva do ser humano da pessoa de Jesus e esta realidade pôde ser generalizada antropologicamente no sentido de que todo ser humano é pessoa por sua relação especial com Deus enquanto aberto à comunhão com Deus e enquanto entrelaçado a ela em oposição até mesmo ao seu próprio destino como Jesus913 Nesta ampliação antropológica o tratamento teológico trinitário do conceito de pessoa que procurou determinar o específico de cada pessoa divina em sua relação com as demais como vimos exerceu uma influência decisiva na formação do pensamento ocidental cujo alcance frutuoso em antropologia como temos visto o personalismo pretende enfatizar É no sentido dessa ampliação antropológica que o personalismo formula suas aproximações ao centro vivo que corresponde à noção de pessoa que como já vimos recebe no personalismo de Emmanuel Mounier um alcance sempre inapelavelmente ético Para Mounier Uma pessoa não é um feixe de reivindicações voltadas para dentro no interior de uma fronteira arbitrária de não sei qual desejo inquieto de afirmação Ela é um estilo redutor das influências mas amplamente aberto a elas um poder orientado de espera e acolhimento É uma força nervosa de criação e de maestria mas no sentido de uma comunhão humana onde toda criação é uma irradiação toda maestria um serviço Ela é uma 911 PANNENBERG Wolfhart Teol Sist op cit p 215 912 Cf PLATÃO Fedro 246af Segundo Agostinho que remete em relação a esta idéia a Cícero a soberania da alma sobre o corpo que era fácil no estado paradisíaco na atual condição se encontra em dificuldades por causa da resistência do corpo que milita em detrimento da alma De civ Dei La Cite de Dieu de Saint Augustin Tomo II edição bilíngüe XIV 232 913 PANNENBERG op cit p 325 liberdade de iniciativa quer dizer um foco de começos uma primeira queda para o mundo uma promessa de amizades múltiplas um oferecimento de si Não se encontra senão se perdendo não se possui senão o que se ama Vamos mais longe até o limite da verdade que nos salvará não se possui senão o que se dá Nem reivindicação nem demissão nós recusamos o mal do Oriente e o mal do Ocidente Mas não um movimento cruzado de interiorização e de dom914 Esta é uma aproximação dinâmica de compreensão da pessoa que contrasta com a dimensão estática e crispada do indivíduo moderno sempre à disposição como objeto nos papéis em que aceita ser fixado Nela entrevemos o que denominamos fora de qualquer ressonância piegas barata de lei espiritual do autoencontro através do ato livre de deixarse perder e do ganho pelo ato generoso de desprendimento através da perda consentida Podemos concluir segundo o personalismo que a essência da pessoa é a comunicabilidade mas tratase de uma essência inacabada que se define mais por um movimento de descentralização completado no entanto pelo de centralização diástole e sístole da pessoa Ou seja onde veríamos prontamente uma estrutura fixa mesmo nocional como a que se refere à idéia de essência Mounier aí mesmo quer inserir um elemento de dinâmica de movimento de inusitado para não se entregar simplesmente às categorias do discurso analítico nocional abstrato que tem a tendência de se esquecer das suas origens o mundo da vida concreta Segundo o personalismo de Mounier a pessoa só é apreendida já situada e comunicada nessa inserção original Ela não deve ser imaginada à maneira de um conteúdo de uma identidade abstrata ela não é definida ela surge se expõe e afronta Como já vimos a pessoa não é uma substância dada por trás dos fenômenos um mundoalém 914 Révolution personnaliste et communautaire op cit p 162 O interessante a ser observado quanto a às citações de Révolution que se seguirão obra que compõe artigos de Emmanuel Mounier escritos de 1932 ano de lançamento da revista Esprit a 1935 é que elas se dão justamente nestes primeiros momentos em que Mounier traça as linhas de partida do seu projeto de intelectual e diretor de revista Isso quer dizer que Mounier já detinha as linhas mestras de sua reflexão estabelecidas em relação à noção chave do seu pensamento que é o conceito de pessoa Conceito este que até então sofria as limitações que o personalismo de RENOUVIER lhe imprimia por sua concepção da personalidade como categoria suprema e o centro de sua concepção de mundo Para Mounier pessoa se distingue tanto de personalidade como de indivíduo Daquela como o verdadeiro centro de atração aquém de suas expressões deste como um movimento de mais ser para além das formas e reduções sociológicas máscaras a que o individuo liberal burguês e reivindicador se contenta em deixarse subsumir 326 mas uma existência criadora de existência no e através do fenômeno mas por uma quarta dimensão de transcendência real quer dizer implicando um movimento real de ultrapassamento915 II3a A igualdade da pessoa 1 De acordo com a perspectiva personalista a igualdade da pessoa é um valor intrínseco ao seu ser e não um dado externo concedido pela convenção jurídica Aliás o sentido de justiça do qual a jurisprudência lança mão para fundamentar a legitimidade dos seus veredictos só faria realmente jus a esta sua fonte original segundo o personalismo se não existisse todo aparato ideológico mantido pelas instituições do Estado liberal e toda dominação simbólica que acoberta suas mentiras e injustiças à medida que a norma se deixasse atualizar por esse valor enquanto expressão essencial do movimento de personalização O que torna uma lei caduca portanto não é o tempo burguês sempre cioso por uma jurisprudência acomodatícia realizada com base na liberal e neoliberal forças das circunstâncias mas segundo o personalismo o alcance de sua aplicação no respeito a esta demanda intrínseca ao movimento de personalização que o personalismo denomina igualdade axiológica Quando dizemos que a pessoa é de alguma maneira um absoluto diz Mounier não dizemos que ela seja o Absoluto ainda menos proclamamos com os Direitos do Homem o absoluto do indivíduo jurídico916 Continua Mounier Nós queremos dizer em resumo 1a que uma pessoa não pode jamais ser tomada como meio para um fim coletivo ou por uma outra pessoa 2a que ela não é do Espírito impessoal do evento impessoal do valor ou do destino impessoal O impessoal é a matéria917 Toda comunidade mesma é uma 915 Ibidem op cit p 209 916 Ibidem op cit p 175 Em vez de dizer que a pessoa é um absoluto o que esbarraria num contrasenso lógico e numa impossibilidade ontológica porquanto a experiência com um absoluto no plano da finitude é algo impossível de se dar pelo fato de que no momento mesmo do seu encontro o que era absoluto deixa de sêlo poderíamos denominar a pessoa no plano da finitude e para o que a sua relação se estende necessariamente ao plano da ética de o incontornável dos incontornáveis 917 Ver a crítica desta impessoalidade da matéria pela idéia de personalidade cara à Mística cristã que como a indicação do movimento próprio de personalização da pessoa quer também personalizála em INGE op cit pp 28 a 36 A unidade de toda existência é uma doutrina fundamental da Mística Deus está em tudo e tudo está em Deus Seu centro está em todos os lugares e sua circunferência em nenhum lugar como coloca 327 pessoa de pessoas ou então não é senão um número ou uma força logo matéria Espiritual pessoal 3a que em conseqüência tomadas à parte as circunstâncias excepcionais onde o mal não pode ser associado senão pela força é condenável todo regime de direito ou de fato que considere as pessoas como objetos intercambiáveis as reúna debaixo de uma direção comum ou as constranja contra a vocação de ser humano diversificada em cada uma ou mesmo lhes imponha esta vocação de fora pela tirania de um moralismo legal fonte de conformismo e de hipocrisia 4a que a sociedade quer dizer o regime legal jurídico social e econômico não tem por missão nem subordinar as pessoas nem assumir o desenvolvimento de sua vocação mas lhe assegurar desde o início a zona de isolamento de proteção de jogo e de laser que lhe permita reconhecer em plena liberdade espiritual essa vocação de lhe ajudar sem constranger por meio de uma educação sugestiva a se destacar dos conformismos e dos erros de aguilhão de lhe dar pelo agenciamento do organismo social e econômico os meios materiais que são normalmente necessários salvo vocações heróicas para o desenvolvimento dessa vocação É necessário precisar que essa ajuda é devida a todos sem exceção que ela não saberia ser senão uma ajuda discreta deixando ao risco toda sua parte uma vez prevenida por seus mecanismos de constrangimento material o nascimento das injustiças advindas da liberdade de alguns que se voltem contra a liberdade de todos É a pessoa que faz o seu destino nenhum outro nem homem nem coletividade nada pode substituíla nisto918 Teremos oportunidade de falar mais sobre o tema da igualdade quando falarmos da crítica do personalismo ao liberalismo e ao marxismo919 Por ora gostaríamos de relembrar a influência do pensamento jurídico de Georges Gurvicht sobre a reflexão de Emmanuel Mounier Notadamente nas pesquisas daquele na área do direito trabalhista em relação ao qual as conclusões de Gurvicht são de que sua existência se dá graças à espontaneidade dos são Boaventura Vimos antes esta definição em relação ao infinito retomada por Nicolau de Cusa e Giordano Bruno por outra fonte INGE nota que ela tem sido tomada como uma idéia panteística sobre o que sua pesquisa nuançada vai esclarecer a tendência simplificadora de índole marcadamente racionalista sempre mais ciosa em explicar do que compreender nessa simplificação indevida Mounier vai denunciar essa mesma simplificação quanto ao pensamento de Teilhard de Chardin que pensava o crístico em perspectiva cósmica e que o racionalismo do integrismo do fundamentalismo queria reduzir a determinada categorização religiosa para melhor jogar reduzindo a complexidade a determinada esfera conceitual o seu joguinho maniqueísta dos conceitos 918 Revolution op cit 1932 a 1935 p 175 Comparar estas palavras com a Declaração dos Direitos das Pessoas e das Comunidades 1941 e 1945 proposta por Mounier e traduzida aqui como Apêndice ver abaixo 919 Para isso ver abaixo os capítulos referentes 328 movimentos de organização social fora dos quadros preestabelecidos da jurisprudência oficial necessidade e espontaneidade que parecem estar na base mesma da concepção de vida comunitária que Mounier acolhe920 Como vimos A pessoa não se opõe ao nós que a funda e a nutre mas ao on se irresponsável e tirânico Não somente ela não se define pela incomunicabilidade e recusa como de todas as realidades do universo ela é a única que é propriamente comunicável que é para o outro e mesmo no outro para o mundo e no mundo antes de ser em si921 II3b A especificidade ou singularidade da pessoa a Como vemos a pessoa e esta é sua diferença do eu é um nome incontornável não faz referência a outra coisa mas tem consistência em si mesma O eu é um nome relativo à percepção e ao sentimento o nome pessoa é incontornável no sentido de que não faz referência a outra coisa bastandose a si mesmo Isso obviamente quanto a sua dimensão de especificidade de singularidade que a distingue da multiplicidade das máscaras pelas quais o indivíduo pode sempre se tornar cativo Pelo fato da pessoa ser este centro dinâmico de criação uma força antes que imobilidade passível para objetificação uma obra a ser realizada antes que um acabamento um apelo antes que um conforto fica fora qualquer idéia de relativo como a que o individualismo burguês propõe quanto ao tipo de relação ou antes fricção que é deixada às dimensões estanques máscaras sob as quais o indivíduo burguês consente em se deixar fixar sob o jogo da hipocrisia social burguesa Por exemplo sob a hipocrisia da chamada democracia parlamentar representativa 920 A espontaneidade é uma palavra chave para entender a base da concepção de Emmanuel MOUNIER em relação ao ensejo humano para a vida comunitária Sobre a pesquisa na área do Direito Cultural em Gurvicht ver MONTORO Franco Introdução à ciência do direito Vol II op cit passim 921 Questce que le Personnalisme Oeuvres IV 1947 p 208 Aqui Emmanuel Mounier se adianta à fenomenologia antropológica do outro Emmanuel o Lévinas procurando ver os constituintes da intencionalidade relacional que se encontram na estrutura de base do universo pessoal mas em Mounier no âmbito da experiência política ética propriamente dita enquanto Lévinas Ver SUSIN op cit 1ª parte passim procura descrever o modo de ser da relação em seus constituintes fundamentais antes mesmo de qualquer tratamento nocional reflexivoracional procurando a intencionalidade da usufruição do mundo enquanto gozo e felicidade por parte do eu solitário e ateu Podemos dizer mutatis mutandis cada qual dentro de uma tradição espiritual com suas especificidades a cristã por Mounier e a judaica por Lévinas que o primeiro procura estender ao político a perspectiva antropológica relacional que também marca as preocupações da reflexão de Emmanuel Lévinas enquanto tratamento de estrutura fundamental mas que aparecerá somente num segundo momento de caráter mais derivativo no âmbito mesmo do originário 329 enquanto eleitor que com seu voto quer dizer com seu consentimento na mentira acredita estar contribuindo para alguma mudança qualitativa Segundo Mounier minha pessoa não é meu indivíduo Chamamos indivíduo à difusão da pessoa na superfície de sua vida e sua complacência em aí se perder Meu indivíduo é essa imagem imprecisa e cambiante que dá por superimpressão as diferentes personagens entre as quais eu flutuo nas quais eu me distraio e me evado Meu indivíduo é a fruição avara dessa dispersão o amor incestuoso de minhas singularidades de toda esta abundância preciosa que não interessa a nenhum outro a não ser a mim mesmo É ainda o pânico que me prende no único pensamento de me desprender a fortaleza de segurança e de egoísmo que eu erijo ao meu redor para me garantir a segurança e a me defender contra as surpresas do amor É enfim a agressividade caprichosa ou altiva que eu tenho armado a reivindicação erigida em modo essencial da consciência de si e a consagração jurídica e metafísica por sua vez que lhe dão no Ocidente a Declaração dos Direitos do Homem e o Código de Napoleão922 Como vemos a pessoa se opõe ao indivíduo no que ela é maestria escolha formação conquista de si Ela se arrisca por amor em vez de se entrincheirar Ela é rica enfim de todas as comunhões com a carne do mundo e do ser humano com o espiritual que a anima com as comunidades que a revelam923 Todavia contra a facilidade de se cunhar uma imagem que poderia ser tomada como definição para contenção924 diz Mounier É ainda insuficiente imaginála sob a forma de um ponto de convergência invisível que se tem além de todas as suas manifestações A pessoa não é um lugar no espaço um domínio que se circunscreve e que se juntaria a outros domínios do ser humano vindo aí a se ataviar a partir de fora925 b Se estabelecermos como regra do método para constituição de uma ética contemporânea a memória do outro ou seja da existência do outro como alteridade o incontornável da pessoa humana então deverá fundamentarse segundo o personalismo como valor quer dizer incontornável enquanto conceito que aponta para a 922 Revolution op cit p 176 923 Ibidem p 177 924 Não posso deixar de observar como esta tendência do racionalismo instrumental de conceituar para dominar é a mesma que está na tendência das religiões primitivas de nomear o deus para poder assim de posse da sua essência pelo nome melhor dominálo através dos ritos apropriados e das fórmulas apropriadas 925 Revolution op cit p 177 330 especificidade para aquilo que indica a ipseidade dessa pessoa que nunca se repetirá como ipseidade de uma outra926 Em outras palavras o incontornável da pessoa é a sua irredutibilidade a qualquer tipo de análise quantitativa O seu incontornável é o incontornável dessa pessoa portanto cada pessoa é um incontornável em si de tal forma que no trato com as outras pessoas não é o incontornável de sua irredutibilidade essencial que se relaciona mas sempre justamente os caracteres particulares que compõem o universo pessoal que não obstante serem as janelas pelas quais o universo pessoal se manifesta ao mundo sempre a põe em risco de ser tomada em última análise como sendo e se resumindo a um desses seus caracteres ao que o indivíduo moderno liberal e burguês já se habituou a consentir Todavia como já fizemos notar neste nível de tratamento mais nocional a noção de outro927 da conta ainda que precariamente de uma certa constituição quanto ao que de ética a noção de alteridade pode apontar no que se refere ao movimento próprio comunicativo relacional do ser da pessoa que é apelo como dissemos antes ao encontro Com Martin Buber repetimos Toda vida autêntica é um encontro É na experiência do encontro que a presença da pessoa como ato ou seja sua presença integral é requisitada O encontro pessoal segundo o personalismo dado o seu caráter espontâneo e generoso diferentemente dos encontros calculados é preparado por outro lado desde já os primeiros 926 Fica fora de cogitação qualquer tipo de metempsicose ou reencarnação Para o personalismo o corpo da pessoa não é o cárcere da alma da metáfora dualista e maniqueísta que o objetifica como o acessório descartável e digno de desprezo em infinitas reencarnações tomadas como oportunidade de purificação da alma No realismo integral de Mounier o corpo é tanto obra a ser realizada quanto o é a psique Não se é pessoa facilmente sem uma luta constante com as forças de estagnação externas e internas O corpo e a psique são as únicas vias pelas quais a pessoa concreta em sua única expressão de acesso enquanto unidade substancial quer dizer pelo que sempre na nossa experiência se manifesta como complexo destas duas dimensões pode se realizar As vias dadas à pessoa para que ela se alcance e alcance o próximo na dramática que compõe o movimento dialético de afirmação da sua singularidade no instante carregado de sentido Agradeço ao professor Franklin Leopoldo pela dica do uso da noção de singularidade em vez da já carregada noção de individualidade É nesse sentido que Mounier procura dar mais intensidade ao hic et nunc do existencialismo Eu não sou um cogito leve e soberano no céu das idéias mas este ser denso que só uma expressão densa dará a densidade eu não sou um euaquiagora seria necessário talvez pesar ainda mais e dizer um euaquiagoracomo esteentre os seres humanoscom este passado Cf Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Número 60 Octobre 1983 p 29 Em Introduction aux existentialismes op cit p 117 Mounier fala do novo cogito existencial que Kierkegaard procura inaugurar No começo do saber está uma ação libertadora e no limiar desta ação está uma escolha Não se trata tanto de querer escolher entre o bem e o mal que de escolher querer Em nota de Mounier Ou Bien Ou bien 474 O estético é o que para o homem ele é imediatamente o que é o ético é o que pelo qual ele é o que se torna ibidem 513 Aquele que vive segundo o estético é sempre excêntrico tem o seu centro na periferia Aquele que se escolheu tem desde então o seu centro nele mesmo Eis aí pois um novo Cogito existencial O Escolhate a ti mesmo substitui o Conheçate a ti mesmo 927 eteroj héteros outro ou alloj outro Latim alter outro de onde alteridade 331 delineamentos de esboço caracterológico e se confunde com o próprio florescimento da pessoa Estes primeiros delineamentos caminharão para configurar o que pelo que de exposto a psicologia denominará personalidade Uma pedagogia personalista se faz necessária para que se libere este movimento próprio da vida pessoal pois a antipedagogia burguesa da modernidade que tem dado o seu fruto o individualismo reivindicador está aí para provar a possibilidade não só do desvio deste movimento intrínseco como até mesmo sua negação É aqui que se nos apresenta um divisor de águas Essa recusa da modernidade burguesa esse adiamento da opção pela pessoa em proveito do indivíduo egoísta reivindicador não é para o personalismo928 natureza ou seja dado último última palavra929 É antes costume e hábito daí tanto a possibilidade e necessidade de uma crítica primeiro movimento de desconstrução quanto de uma pedagogia segundo movimento complementar de construção Tanto porque como já vimos a pessoa se faz é um movimento antes que um acabamento É nisso fundamentalmente que se deve perspectivar o pensamento de Emmanuel Mounier em relação à sua crítica à modernidade como também sua posição em relação ao pensamento contemporâneo Mounier prefere usar a noção de condição humana antes que a de natureza humana Esta aqui lhe sugere uma última palavra um estado estático parmenediano dado de uma vez por todas que não condiz com o ser do ser humano que é essencialmente artifex ser do artefato modo de ser sob o qual ele mesmo subsumese como perfectível uma aventura que se anuncia desde a antiguidade como superhumana Mas o objetivo é o mesmo na obra progressiva e nas incursões fulgurantes um ultrapassamento do ser humano um estouro de foguete de sua natureza primitiva Se o ser humano é feito para se tornar um deus natural ou sobrenaturalmente não se pode aceitar que a sabedoria seja para ele conformidade prudente e monótona e uma natureza definida de uma vez por todas grifo nosso Pensai na fórmula de Nietzsche que pode nutrir inspirações muito diversas O homem é feito para ser ultrapassado O ser humano assim posto no lugar é essencialmente artifex criador de formas fabricante de artefatos930 928 Apesar de parecer por causa do hábito quase uma segunda natureza 929 O que soaria muito confortável para o indiferentismo burguês cioso por conforto tranqüilidade e descompromisso cujo lema é tudo é natural deixa seguir 930 La Petite Peur du XX Siècle Oeuvres III p 353 332 Este modo de ser do artefato pode ser segundo o personalismo expandido para a ontologia onde o que predominará no ser é o provisório o inusitado o imprevisível antes que o estático o acabado em outras palavras para Emmanuel Mounier e Pierre Thévenaz931 via Henry Bergson o nãoser Aplicar um elemento de imprevisibilidade nas estruturas como Mounier entende ser a tarefa da filosofia personalista elemento que ele denomina pessoa é justamente fazer valer no ato filosófico este modo de ser do artefato esquecido ou posto de lado pela sua caricatura pelo seu desvio denominado em todas as suas formas possíveis ativismo delírio da ação Por outro lado Mounier é atento ao sentido pernicioso que pode tomar a noção inversa a de que não há qualquer natureza humana Por isso a fórmula nietzschiana O ser humano é feito para ser ultrapassado pode tomar muitos sentidos Não se sabe mais o que é o ser humano e como se o vê hoje passar por impressionantes transformações pensase que não há natureza humana grifo nosso Para uns isto se traduz como tudo é possível ao ser humano e eles reencontram uma esperança para outros tudo é permitido ao ser humano e eles soltam o freio para outros tudo é permitido sobre o ser humano e ei nos em Büchenwald932 Assim parafraseando Tolstoi933 visando a intenção de fundo que há na ação fascista se não há natureza humana eu forjo uma Mounier é atento a este sentido de todo pessimismo ativo que está por trás da ação fascista Já adiantando aqui que fascismo para Mounier é um fenômeno complexo934 Em outro lugar citando a fórmula de um personagem de Malraux Um homem ativo e pessimista por sua vez é ou será um fascista a não ser se ele tiver uma fidelidade atrás de si935 931 THÉVENAZ Pierre Refus du réel et spiritualité in Henri Bergson Essais et témoignages recueillis para Albert Béguin et Pierre Thévenaz A La Baconnière Neuchatel p 97 O real que toda metafísica visa com mais ou menos ardor a tradição tem sempre chamado o ser e o devir tem sempre sido um menosser Ora eis que Bergson denunciando as imposturas da linguagem inverte audaciosamente os valores É o devir afirma ele que é o maisser o ser permanência atemporal como o imaginavam os antigos ou o quebra cabeça que o evolucionismo spenceriano procurou reconstituir com os fragmentos do evoluído não é mais que a camisa de força do real uma represa que impede a duração de fluir Thibaudet ou seja o menosser Essa inversão decisiva da linguagem nos constrange como constrangeu o próprio Bergson a exprimir de uma outra maneira o que permanece sendo todavia a intenção primeira e última da metafísica 932 Campo de concentração nazista Le perosnnalisme Oeuvres III p 510 933 Se não há Deus eu sou Deus 934 Mais abaixo faremos algumas aproximações à crítica aos fascismos que Mounier e sua equipe elaboraram 935 Lespoir des desesperes Oeuvres IV p 290 333 Em oposição a estas tendências Mounier formulará o seu otimismo trágico e reconhecerá o valor de uma estrutura mínima em matéria de natureza humana ou melhor condição humana também ela em movimento mas que pode ser entrevista pelas vias das formas a priori da simpatia em matéria de moral a partir da própria noção de respeito936 antes que da noção liberal de tolerância Pois respeito implica mais o sentido de partida de algum ponto no outro que é independente de mim e me questiona em sua densidade singular enquanto tolerância implica mais o sentido de uma ação comprometida antecipadamente com as idiossincrasias do sujeito agente ação típica do indivíduo liberal burguês reivindicador É no respeito portanto que se reconhece os limites da ação em relação a um centro de força em movimento como é a pessoa o qual se recusa à objetificação Por isso na esteira de Karl Jaspers Mounier por causa da constatada necessidade de aderências da pessoa concreta em seu fazerse na luta pelo real adota um sentido positivo em relação às mediações instituições que devem servir de apoio ao florescimento da pessoa servir à pessoa e nunca o inverso que é o caso das atuais instituições herdadas da modernidade937 Essa pequena digressão nos foi necessária para esclarecermos alguns pontos importantes quanto à noção de alteridade no personalismo de Emmanuel Mounier e nos preparou para um passo seguinte A essa nossa aproximação da noção de alteridade na obra de Mounier como já dissemos a noção de outro será substituída pela de próximo muito mais afim com a inerente exigência da densidade existencial própria ao encontro e à concretude da pessoa Com efeito não é demais relembrar que a noção de outro tomandose em seu rigor a compreensão personalista da dimensão relacional como experiência originária da pessoa é uma noção um tanto quanto abstrata Passível ainda de dar lugar a um tratamento que marca uma certa distância do sentido de uma experiência relacional concreta Portanto da possibilidade como tentação constante de um certo pedantismo e indiferentismo impessoal que no plano da análise puramente noética acaba redundando em e se tornando um álibi para o descompromisso moral em relação a essa que é para o personalismo a expressão da experiência original mesma da pessoa concreta 936 E que se encontra como o fundo de densidade axiológica irredutível enquanto valor da seguinte pergunta Respeitar o que 937 Ampliaremos mais esta questão quando falarmos de pessoa e existência Ver abaixo 334 II3c Intermezzo A alteridade da pessoa como o próximo Com efeito é a noção de próximo um bom exemplo de conceito que daria melhor conta do aspecto concreto exigido por uma relação pessoal Esta noção de próximo nós poderíamos encontrar no novo mandamento evangélico do amor que usa a palavra plhsionplesíon próximo em vez de evteroj héteros outro938 Não obstante A Bailly939 referindose ao uso de plesíon no pensamento clássico por Platão no seu Diálogo Teeteto940 inclui também ali a denotação de autrui outro Todavia o contexto imediato em que plesíon se inscreve na passagem de Teeteto citada parece indicar antes e é só isso que nos interessa ressaltar nesta conexão mais o sentido de próximo enquanto apontando a possibilidade de uma experiência imediata que o de outro que parece carregar o sentido já indicado menos dinâmico e de distanciamento Parecenos pelo contexto que a noção de próximo compõe justamente a polaridade que Platão pela boca de Sócrates quer estabelecer entre o pensamento puramente conceitual do filósofo e a vida prática de participação na vida da polis No contexto imediato anterior Platão cita o poeta Píndaro para basear na tradição sua opinião pela boca Sócrates quanto à atitude do filósofo pouco preocupado com os problemas da polis Sondando os abismos da terra e medindo a extensão da superfície perseguindo os astros para além do céu escrutando de todas as formas a natureza sem jamais se abaixar ao que está próximo dele941 Ali justamente por um pedido de Teodoro Sócrates procura esclarecer melhor sua argumentação anterior que ficara vaga a Teodoro Aquele então lança mão por sua vez de um gracejo conhecido quanto à incapacidade do filósofo de lidar com questões mais 938 Que se encontra no Evangelho de Mateus 2234 a 40 Entretanto os fariseus sabendo que ele fechara a boca dos saduceus reuniramse em conselho E um deles intérprete da Lei o que nós denominamos hoje advogado experimentandoo lhe perguntou Mestre qual é o grande mandamento na Lei Respondeulhe Jesus Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração de toda a tua alma e de todo o teu entendimento Este é o grande primeiro mandamento O segundo semelhante a este é Amarás o teu próximo como a ti mesmo Destes dois mandamentos dependem toda Lei e os Profetas Numa outra situação semelhante que se encontra no Evangelho de Lucas 1025 ss depois de uma pergunta feita por um outro advogado à qual Jesus responde com a conhecida Parábola do Bom Samaritano a maior densidade ética que o advogado é obrigado a deduzir pela conclusão da parábola mas mantendo o preconceito étnico que o força a não afirmar o próximo como sendo o samaritano é de forma patente anunciada como intrínseca à noção de próximo A um questionamento cuja dedução poderia se deter no âmbito da curiosidade intelectual apenas nocional Jesus conclui Vai e procede tu de igual modo v 37 Portanto compreender e transformar o mundo são momentos distintos mas não separados de um mesmo ato 939 Dictionnaire GrecFrançais Décima Sexta Edição Librairie Hachette 1950 940 PLATÃO Théétète 174b 941 Ibidem 173e 335 imediatas Nessa conexão Sócrates lembra o gracejo que o artesão traciano942 cita a respeito de Tales que preocupado em observar as estrelas o que estava acontecendo no céu não via o buraco que estava a sua frente Estendendo o sentido deste gracejo do traciano a todos os filósofos Sócrates se refere à total indiferença do filósofo em relação ao seu vizinho mais próximo indiferença que o leva a ignorar não só o que ele está fazendo quanto a se se trata de um ser humano ou de um animal pelo fato de estar em busca da essência interna do ser humano e preocupado em investigar sobre o que pertence a uma tal natureza fazer ou sofrer e que a diferencie de qualquer outra O caráter antitético entre o distanciamento e a proximidade sob o qual a atitude do filósofo é jogada por Sócrates apontanos aqui quanto à proximidade no sentido do encontro o conteúdo que estamos procurando destacar desta noção conteúdo do qual a noção do abstrato outro se distancia Voltando ao mandamento do amor ao próximo no Novo Testamento percebemos que o uso do pronome possessivo ton ton teu que antecipa na passagem plhsion tem a intenção de tornar ainda mais enfático e melhor especificado o elemento de concretude e imediaticidade que plesíon contém Ou seja sobre qualquer dúvida acerca de quem se deve amar o texto responde devemos amar ao que nos é o mais imediato943 Conforme a relação que Jesus estabelece entre este mandamento com o que o precede cronologicamente v 37944 tratase segundo Jesus de omoia homoía o mesmo o que responde ainda mais enfaticamente e amplia a resposta dada à pergunta do fariseu interprete da lei Agora à pergunta sobre qual era o grande mandamento feita pelo fariseu Jesus acrescenta tanto a quem o espírito do mandamento faz referência plhsionplesíon próximo quanto ao 942 Não obstante o conhecido menosprezo pelo trabalho manual por parte dos intelectuais gregos mais voltados para a teoria ou contemplação é significativo os exemplos constantes tirados dos ofícios manuais nos diálogos platônicos e que seja aqui em Teeteto alguém que trabalhe com as mãos quem faça o gracejo 943 Neste mesmo Evangelho no Sermão do Monte Mateus 543 s Jesus esclarece de maneira mais precisa e radical a verdadeira intenção e sentido deste amor para com o próximo cuja inferência restritiva sem constar no Antigo Testamento era dada pelo ensino dos escribas ou seja dos Doutores da Lei entre os judeus intérpretes oficiais das Sagradas Escrituras grupo ao qual o nomikoj nomikós Legista ou advogado ou ainda interprete da Lei de Mateus 2235 pertencia e a quem Jesus responde Esses doutores compreendiam como próximo somente outro judeu Todavia sem dar nenhum espaço para qualquer tipo de exclusivismo Jesus declara Ouvistes o que foi dito Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo Eu porém vos digo amai os vossos inimigos 944 Um segundo é como este é puramente numérico isto é segundo na ordem dada mas não segundo em importância e omoioj aqui significa fixálo igualmente grande ou importante igual a Portanto o seguinte mandamento não é menos importante que o primeiro Cf ref em nota op et loc cit CLEMENTE de Alexandria Quis div sal 28 ambos qualificados como o maior imperativo cf Mateus 712 Sua igualdade reflete sua unidade Para isso ver Theological Dictionary of the New Testament Edited by Gerhard Friedrich WM B EERDMANS Publishing Company Grand Rapids Michigan 9 ed 1980 p 39 336 como deveria ser obedecido quer dizer da mesma maneira como o primeiro mandamento indicava Mateus 2237 vAgaphseis Kurion ton Qeon sou evn volh th yuch sou kai evn olh dianoia sou Agapéseis Kýrion tòn Theón sou en hóle tê kardía sou kaì en hóle te psychê sou kaì en hóle te dianoía sou Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração de toda tua alma e de todo o teu entendimento As três faculdades coração alma e entendimento antes de tudo representam a pessoa completa visto que a exigência colocada pelo mandamento é de obediência total devese amar a Deus e omoia homoía o mesmo ao próximo com todos os glóbulos de um ser único945 O sentido radical que Jesus faz ter o mandamento de amor ali nos demonstra seu caráter sobrenatural946 ou em outras palavras o que naturalmente não nos achamos em condições e nem estamos dispostos a cumprir É realmente um sentido que foge ao bomsenso que na própria história do judaísmo mas sem base na tradição veterotestamentária como veremos mais à frente era atenuado pelos intérpretes da Lei para o mais natural e de bomsenso Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo947 Todavia a tradução mais comum para omoia homoía que nós traduzimos por o mesmo nas traduções neolatinas do Novo Testamento e na Iglesa New Revised Standart Version é traduzido por semelhante948 Todavia a Bíblia alemã949 graças aos recursos da língua alemã se aproxima melhor da intenção de Jesus traduzindo a palavra grega omoia por gleich que carrega em sua carga semântica o sentido de mesmo e 945 Theological Dictionary of the New Testament op cit p 241 Em nota loc cit cf Dt 1013 3010 E ibidem p 39 Jesus embora questionado sobre o maior mandamento responde com dois que são inextricáveis Compare 1 Epístola de João 4201 e a conexão de Filo de que as duas partes do Decálogo parte que concerne ao amor a Deus e a que concerne ao amor ao próximo são incompletas em si mesmas Decal 10910 946 Ainda teremos oportunidade de tocar em alguns outros elementos sobrenaturais quer dizer não constantes em nossa experiência existencial significativa que para a maioria esmagadora tem sido limitada pela decadência burguesa mas que se destacam do Kerygma cristão e do núcleo mesmo do fenômeno religioso enquanto tal Elementos para cujo experimento tem prevalecido todavia a falta de boavontade de realizar O acabamento e as instituições os hábitos que alicerçam o individualismo egoísta e reivindicador da modernidade liberal e burguesa são para o personalismo a expressão sociológica da mávontade quer dizer do natural 947 Evangelho de Mateus 543 948 Além da falta de recurso semântico isso me soa também como um consentimento ao nosso muito natural por parte destas traduções que naturalmente atenuam o significado Nesse sentido a desconstrução que Derrida aplica aos textos faz muito sentido 949 DIE BIBEL ODER DIE GANZE HEILIGE SCHRIFT DES ALTEN UND NEUEN TESTAMENTS nach der Übersetzung Marthin Luthers Württembergische Bibelanstalt Stuttgart 337 semelhante950 em vez de ähnlich semelhante mantendo assim a tensão que se expressa como necessária como veremos à frente na relação entre os dois mandamentos A mesma palavra é a que será mantida na expressão grega que o Símbolo Niceno adotará posteriormente para classificar o tipo de tensão permanente não obstante a equivalência que deveria ser levada em conta na compreensão da relação entre as Pessoas divinas na vida Trinitária upostasij hypóstasis ou ousiai ousíai951 quer dizer omoousiou homooúsiou da mesma substância Embora é possível que respostas similares a de Jesus fossem correntes no Judaísmo coetâneo952 todavia a forte ênfase na unidade dos dois mandamentos parece ser particularmente significativa para Jesus ali não pode haver um sem o outro Em Paulo953 por exemplo tratase do resumo avnakefalaioutai anakephalaioûtai de todos os mandamentos Devemos nos lembrar também de que o Decálogo em que a primeira tábua concerne à devoção para com Deus a segunda tábua à justiça em relação aos outros954 foi algumas vezes pensado como um sumário da Torah cf Filo Decal 20154 e que nossos dois mandamentos podem ser vistos como sumarizando as duas tábuas955 Todavia Mateus não esclarece como os dois mandamentos do amor se relacionam um com o outro 950 Theological Dictionary of the New Testament Edited by Gerhard Friedrich op cit p 316 No sentido de igual valor a palavra é encontrada em Mateus 2239 onde é dito que o mandamento de amor ao próximo é igual em importância e validade grifo nosso ao mandamento de amor a Deus 951 Sobre essa discussão ver KELLY J N D Primitivos credos cristianos Koinonia Secretariado Trinitario Salamanca Espanha 1980 pp 290 a 301 Ver também a respeito do significado do termo hypóstasis em WAND J W C História da Igreja Primitiva até o ano 500 Editora Custom São Paulo 2004 p 196 No Ocidente essa palavra tem sido tomada em seu sentido etimológico como equivalente ao Latim substantia significando natureza enquanto que no Oriente o seu significado assumiu a forma de pessoa De maneira geral a doutrina trinitariana fundamentouse na distinção entre natureza e pessoa sendo óbvia a grande confusão que tal equívoco poderia causar Doravante esse conceito permaneceria de acordo com a aceitação da palavra no sentido técnico de pessoa tornandoa assim equivalente ao Latim persona 952 Theological Dictionary of the New Testament op cit p 316 s Em nota loc cit Cf Lc 1026 s e o bem conhecido dito do Rabi Aqiba em S Lv 1918 Stra Bi I 357 s Tu deves amar a teu próximo como a ti mesmo Aqiba n 50 e m c de 135 dC diz Este é um grande e abrangente princípio na Torah Cf também o material de Test XII in Preisker 72 s In bShab 31a Bar Um nãojudeu que chega a Hillel nasc em Babilônia c 70 aC e morte em Jerusalém c de 10 dC e quer aprender toda a Torah enquanto permanece equilibrado sobre um único pé recebe a resposta O que tu não farias a ti mesmo não faças ao teu próximo rbx Isso é toda a Torah Todo o resto é exposição Vá e aprenda 953 Epístola aos Romanos 13810 954 Theological Dictionary of the New Testament op cit p 238 Em nota loc cit Para esta divisão convencional ver FILO Decal 501 106 121 JUSTINO Dial 44 IRINEU Adv haer 4163 AQUINO De decem parae 411 CALVINO Inst 28 523 G von RAD Old Testament Theology vol 1 Trad de Theologie des Alten Testaments Bd 1 1957 New York 1962 p 191 Este clássico da Teologia do Antigo Testamento e que já se tornou referência nesta área de estudo já se encontra traduzido para o Português VON RAD G Teologia do Antigo Testamento ASTE São Paulo 2 vols 1ª vol 1973 955 Ibidem Em nota loc cit Ernst v considera como algo de único essa passagem 338 E os teólogos através dos séculos têm procurado compor a falta Evagrius Ponticus argumenta que o amor ao próximo é amor a Deus porque é amor à imagem de Deus Praktikos 89 Theodoreto de Cirrhus argumenta que como contemplação é ação então amar a Deus é amar ao próximo um é o fundamento de inspiração para o outro956 Isaque o Sírio Asc hom 44 em outras palavras diz que nós imitamos o que nós amamos visto que amar a Deus é imitar a Um cujo amor é universal 5438 Ailred de Rievaulx pelo contrário se contenta com o amor ao próximo precedendo o amor a Deus o último se desenvolve do primeiro Liber de spec carit 324 Lutero argumenta que enquanto nosso próximo é necessitado Deus não precisa de nada então o verdadeiro serviço a Deus deve sempre ser por causa do próximo957 Fato é que o amor ao próximo dentro de uma íntima conexão com o mandamento do amor a Deus nesta típica maneira mateana de colocar a questão funde religião e ética Todavia uma outra conclusão ainda se nos impõe Percebemos que o que apontaria como uma pura expressão de especificidade tanto na noção de plhsionplesíon próximo como na noção de omoia homoía o mesmo é equilibrado pelos matizes que expandem a tendência a qualquer exclusividade que pudesse ser reforçada a partir do sentido de especificidade contido nessas noções forçando a compreensão do ato de amor como vimos mesmo enquanto ato singular a ser veículo de uma expressão sentido e disposição universais de amor antes que de particularismos Aqui Agápe toma cativo a Eros e lhe imprime o sentido da finitude do qual é natural do seu movimento fugir para as alturas958 Este aqui seria o sentido do natural movimento de fuga que se inscreve na dinâmica do amor erótico dominante na cultura ocidental cioso pelo objeto ideal sempre inalcançável que o faz negar a concretude e não transfigurála como é próprio do movimento de Agápe conforme o Novo Testamento e afirmar a morte em proveito de uma vida além Assim diz o personalista Denis de Rougement o amor de caridade o amor cristão que é Agápe aparece em sua plenitude é a afirmação do ser em ato E foi Eros o amor pagão que difundiu em nosso mundo ocidental o veneno da ascese idealista tudo o que Nietzsche injustamente crítica no cristianismo Foi Eros e não Agápe que glorificou 956 Ibidem p 244 Em nota loc cit Compare 1 Jo 419 Nós amamos porque ele nos amou primeiro 957 Ibidem p 244 958 Ver ROUGEMONT Denis de LAmour et lOccident Plon 1958 Ver também o clássico NYGREN Anders Agape and Eros S P C K London 1954 339 nosso instinto de morte e quis idealizálo Mas Agápe vingase de Eros salvandoo Pois Agápe não sabe destruir e nem quer destruir aquilo que destrói Não quero a morte do pecador mas sim a sua vida Eros se escraviza à morte porque quer exaltar a vida acima de nossa condição finita e limitada de criaturas Assim o mesmo movimento que faz com que adoremos a vida os precipita em sua negação É a profunda miséria o desespero de Eros sua servidão inexprimível exprimindoa Agápe o liberta Agápe sabe que a vida terrestre e temporal não merece ser adorada nem mesmo destruída mas talvez ser aceita em obediência ao Eterno Pois afinal é aqui na terra que se decide o nosso destino É aqui na terra que é preciso amar No além não haverá a noite divinizante mas o julgamento do Criador959 Então essa busca de um objeto de amor concreto singular esse movimento para o encontro seria a negação do amor ideal que se apresenta como uma fuga ao apelo do concreto da finitude do cotidiano enfim do histórico Não seria demais lembrar o quanto é este tipo de amor abstrato sem objeto definido que está por trás do abraço retórico na multidão dado pelo tirano pelo demagogo pela filantropia departamental e mesmo pelo discurso politicamente correto atual de defesa das chamadas minorias cujo slogan descritivo da minoria em questão numericamente menor que a multidão do tirano corre sempre o risco de se tornar o substituto abstrato à pessoa concreta que diz representar O que em termos de expressão sociológica seria apenas a versão pulverizada dos tiranetes e suas multidõezinhas reivindicadoras Para concluir esse ponto e essa digressão necessária a palavra de um teólogo biblista contemporâneo O homem moderno especialmente desde o iluminismo é mais inclinado a pensar que o próximo é simplesmente um dos membros da raça humana Mas isso não está de acordo com o plesion ho plesíon o próximo que implica uma referência particular antes que geral Nesse sentido então tem havido uma tendência a se traduzir o plesion por amigo Mas esta palavra tem pela sua natureza mais conteúdo emocional do que o plesion Conterrâneo seria a melhor versão no debate com o nomikoj nomikós960 todavia falta à expressão o aspecto de coleguismo nos cultos e a promessa que está implicada em crE retza e que tem um sabor mais político e nacional Há também uma 959 Então ROUGEMONT op cit p 292 960 O Legista ou interprete da Lei de Mt 2235 a quem Jesus responde 340 outra razão para se manter o verdadeiro sentido da tradução mais antiga em vez de procurar uma nova Próximo originalmente um termo espacial carrega consigo o elemento de encontro grifo nosso Conseqüentemente expressa vividamente a realidade da exigência evangélica A história do Bom Samaritano Não se define um próximo pode se ser um próximo961 Nós poderíamos ir um pouco mais longe no sentido da ética da concretude que se destaca da noção de próximo retomada ainda nesta conhecida Parábola do Bom Samaritano Lucas 102537 e que fora citada por último por Joaquim Jeremias Em relação a ela a resposta de Jesus ao fariseu quanto a Quem devemos considerar nosso próximo pergunta que deu ensejo para Jesus narrar a Parábola tornase De quem nós podemos ser próximos Há aqui a implicação de predisposição de disponibilidade em ser próximo de alguém antes que somente a passividade de saber quem é o nosso próximo 3 A palavra eu está sempre ligada a um tu e a um mundo exterior962 Não ocorre o mesmo tomada enquanto expressão de singularidade com o nome pessoa Deus por exemplo para remetermos novamente ao pensamento teológico pode ser pessoa mas nunca um eu pois para o que se entende pela definição filosófica de Deus não há uma referência essencial a um tu nem a um mundo exterior963 Não obstante como temos 961 JEREMIAS J Die Gleischnisse Jesu3 As parábolas de Jesus 1954 p 143 962 Neste e em todos os tópicos a seguir apóiome também sobre o estudo de MARCOS Manuel A Suances Max Scheler Principios de uma ética personalista Herder Barcelona 1986 963 Vemos aqui o quanto uma analogia entre a experiência da pessoa humana e a divindade concebida como pessoa que é uma exigência inscrita na própria maneira em que o cristianismo apresenta o que se destaca do Novo Testamento como Revelação de Deus em Cristo elemento que o diferencia de qualquer outra religião e o que Paulo chama de escândalo para os judeus e loucura para os gregos tem seus limites racionais Não é à toa que Agostinho gastou tanta tinta para tentar estabelecer os elos possíveis Ver A Trindade op cit entre o Deus pessoa cristão e a pessoa humana O que o intelectualismo do seu neoplatonismo lhe facilitou sempre uma analogia de cunho noético mas que não faz justiça ao apelo de concretude de história de imanência de corporal de cotidiano de comum de singelo de pequeno que a noção cristã de Deus encarnado trouxe à história do mundo e que é parte integral da citada antes Revelação de Deus em Cristo NIETZSCHE Além do bem e do mal Prelúdio a uma filosofia do futuro Companhia das Letras São Paulo 2003 p 52 sobre este aspecto do cristianismo diz Os homens modernos com sua obtusidade face à nomenclatura cristã já não percebem o quanto havia de terrivelmente superlativo para o gosto antigo na paradoxal fórmula Deus na cruz Até hoje não existiu nunca e em parte alguma semelhante ousadia na inversão algo tão terrível tão interrogativo e tão questionável como essa fórmula ela prometia uma tresvaloração de todos os valores antigos Descontando sua implícita tendência ao aristocratismo seu juízo unilateral e muito geral sobre o cristianismo ao qual ele critica se esquecendo sempre de pospor o adjetivo burguês o que a crítica 341 tentado mostrar o que de estático pura unidade a noção intelectual filosófica de Deus pode apresentar a partir da contribuição cristã como pessoa e ainda tomada em sua vida trinitária é uma noção que insere um elemento dinâmico no interior do próprio ser da divindade que resiste a toda definição filosófica de conteúdo imóvel paremenediano aristotélica enfim puramente conceitual noética964 Em tensão por outro lado segundo a perspectiva personalista o que se denomina sob o conceito de pessoa é frente ao eu psicológico empírico algo de totalidade e incontornabilidade que se basta a si mesmo O sujeito concreto das ações humanas é pessoa O eu não anda nem pensa nem se diverte mas sim uma totalidade o ser humano inteiro a pessoa Aliás como já dissemos a pessoa faz melhor tudo em que ela se envolve de corpo e alma tudo para o que ela vê convocado todo o seu ser Com a palavra pessoa entendemos algo que transcende a oposição eutu físicopsíquico965 Sobre isso diz Mounier A pessoa não se realiza senão na personalista à modernidade por outro lado de posse das contribuições mais atualizadas da fenomenologia não se esquece há um outro fato que deixanos entrever as marcas do seu tempo no pensamento nietzschiano Ora de caráter psicológico ora de caráter político etc os aspectos específicos da crítica nietzschiana não impedem de percebermos o que se dá sempre às avessas em Nietzsche a aceitação da redução à moral racionalista que o neokantismo da teologia liberal do século XIX queria impor ao kerygma cristão Isso impediu a Nietzsche de chegar ao cerne aos elementos essenciais do fenômeno religioso denominado cristianismo aos quais todavia aqui e acolá ele parece acenar algum reconhecimento no que elencamos aqui enquanto afirmação da dignidade humana mas que Nietzsche prefere chamar de nobreza Um livro de Nietzsche pouco conhecido publicado pelo teólogo católico contemporâneo HansUrs von BALTAZAR que caracteriza bem isso é NIETZSCHE Friedrich Vom vornehmen Menschen Das Bleibend aus Nietzsches Werke die Verkündung vom wahren Adel des Menschen Sobre a obra da humanidade O permanente na obra de Nietzsche a anunciação da verdadeira nobreza da humanidade Sammlung Klosterberg EUROPÄISCHE REIHE Benno Schwabe co Basel 1945 Todavia esta característica também pertencente à obra complexa de Nietzsche não tem sido suficiente para relativizar ou melhor problematizar o aspecto muito geral pelo qual sua crítica acabou ficando mais conhecida Da mesma forma como Descartes em relação ao racionalismo posterior que unilateralizou e neutralizou o que permanecia de dramática na experiência do cogito mas com sua total cumplicidade e consentimento Não obstante e para o que nos interessa aqui cremos que a citação anterior de Além do bem e do mal é lapidar e não oculta a percepção de Nietzsche quanto ao elemento problematizador que o cristianismo lançou na história e que indo mais longe do que Nietzsche que viu no fenômeno do cristianismo apenas uma descontinuidade absoluta faz apelo ao paradoxo de uma transcendência na imanência ao mesmo tempo em que o de uma imanência na transcendência que realmente vai além da percepção de Nietzsche 964 Vemos aqui o elemento heurístico que uma discussão teológica antiga acabou lançando para dentro de toda discussão antropológica e em sua extensão para a ética principalmente e que tem se estabelecido na história procurando fazer valer os aspectos específicos do humano cujas inspirações de fundo podem ser vislumbradas no âmbito mesmo da atual laicidade Mas isso para quem tenha boavontade de tentar percebê las além do problema do mal no âmbito do problema do bem Só a compreensão desse fato justificaria nosso constante remetimento ao pensamento teológico 965 Novamente nesta dimensão de análise noética em que procuramos delinear a especificidade não se põe em questão a análise fenomenológica da relação EuTu de Martin Buber pois nela a pessoa não se reduz ao seu modo de ser relacional apesar deste ser o essencial de sua experiência e expressão originais Pois é a partir da intuição da inobjetividade da pessoa que se pensa o seu nãofundamento O relacional é parte integrante da afirmação da pessoa fora da alienação objetificante do racionalismo individualista mas já no 342 comunidade isto não quer dizer que ela tenha qualquer chance de o fazer em se perdendo no se Não há verdadeira comunidade senão numa comunidade de pessoas Todas as outras são apenas uma forma de anonimato tirânico966 E ainda Minha pessoa não é a consciência que eu tenho dela Tudo se passa pois como se minha pessoa fosse um centro invisível onde tudo se une bem ou mal ela se manifesta por sinais como um hóspede secreto dos mais singelos gestos da minha vida mas não pode cair diretamente sob o olhar de minha consciência ela se anunciará aos outros como o resíduo vivo de todas as suas análises e se revelará a eles na atenção de sua vida interior967 c Fica claro que à pessoa ficam submetidos igualmente o mundo interior e o mundo exterior como notamos antes e que ela opera com a mesma imediatez sobre ambos Não é necessário que aja primeiro sobre o mundo íntimo e através dele sobre o exterior Como já dissemos para Mounier em matéria de psicologia tudo é ao mesmo tempo causa e efeito968 E isso já é uma compreensão Todavia uma que não autoriza o estabelecimento de uma causalidade rígida Nossas aproximações procuram seguir uma didática mas sem se esquecer de que se trata sempre de uma didática sujeita ela mesma a aperfeiçoamento e sem a pretensão positivista de descrição das coisas como elas realmente são no sentido de palavra final A pessoa não está mais próxima daquele que deste pois experimenta a resistência de ambos de um modo igualmente direto Daí que uma ação pessoal é uma unidade um ato que não pode ser fracionada que não pode ser dissolvida em seus diversos elementos constituintes nem sucessivos de vivências anímicas ou de processos corporais A pessoa é a frustração de todo sonho cerceador da psicologia racionalista Esta unificação progressiva de todos os meus atos e por eles de minhas personagens ou de meus estados é o ato da própria pessoa Este princípio vivo e criador é o que nós chamamos em cada pessoa sua vocação Ela não tem por valor primeiro ser singular pois dandolhe uma caracterização total de maneira única ela aproxima o ser humano da humanidade de todos os seres campo da reciprocidade das consciências como diz o personalista Maurice Nédoncelle A pessoa é realmente para o personalismo o nãoinventariável Em Traité op cit p 523 Mounier diz Sendo a pessoa com efeito a própria presença do ser humano a sua característica última ela não é suscetível de uma definição rigorosa Também não é objeto de uma experiência espiritual pura destacada de todo trabalho da razão e de todo dado sensível 966 Révolution personnaliste et comunautaire Oeuvres I p 182 967 Révolution op cit p 177 968 Traité op cit p 354 343 humanos Mas ao mesmo tempo que unificante ela é singular por acréscimo O fim da pessoa lhe é assim de alguma maneira interior ela é a perseguição ininterrupta dessa vocação969 Não há repetimos interno e externo para a pessoa pois as duas dimensões a afetam por sua vez e ao seu modo de uma mesma maneira mutatis mutandis enquanto resistências Por outro lado como expressão histórica e cultural desde que a cultura é a realização humana tanto nela quanto na história podemos entrever esta característica progressiva como emergência e insurgência da pessoa na história que temos tentado apresentar aqui e que comanda a expressão da pessoa em todas as suas facetas Todavia não há para o personalismo lugar para o aristocratismo de seres de exceção A vida pessoal é com efeito uma conquista ofertada a todos e não uma experiência de privilegiados ao menos acima de um certo nível da miséria970 II3d A concretude da pessoa a Na elaboração do pensamento sobre a pessoa e seu modo de ser a concretude do objeto desse pensamento nunca pode ser esquecida não se trata de pura abstração mas de concretude pois no desenvolvimento de um tal pensamento sujeito e objeto sempre estarão intimamente imbricados numa unidade dramática isso caracteriza o ato próprio de pensamento acerca da pessoa segundo o personalismo Como já vimos o ser para Mounier não é nem o sujeito nem o objeto e nem a união destes mas transbordamento O próprio ato de pensamento é ao mesmo tempo um ato de pensamento sobre a pessoa e o ato de uma pessoa Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma maneira de subsistência e independência em seu ser ela conserva essa subsistência por sua adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos por um engajamento responsável e uma constante conversão ela unifica assim toda sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo em golpes de atos criadores a singularidade de 969 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 528 970 Manifeste op cit p 524 344 sua vocação971 A concretude da pessoa seria em relação às mediações institucionais pátria Estado família escola igreja etc a expressão de uma realidade última de valor incontornável limitativa do poder coercitivo destas aderências estruturais que com o passar do tempo esquecem de seu papel unicamente auxiliador na provisão de condições reais e apropriadas para a liberação do movimento próprio de expressão e de liberdade da pessoa passando a oprimila e sufocála Jamais ela a pessoa pode ser considerada como parte de um todo família classe Estado nação humanidade Nenhuma outra pessoa e por mais forte razão nenhuma coletividade nenhum organismo pode utilizála legitimamente como um meio O próprio Deus no ensino cristão respeita sua liberdade plenamente vivificando a do interior todo mistério teológico da liberdade e da falta972 original repousa sobre essa dignidade concedida à livre escolha da pessoa Essa afirmação de valor pode ser em alguns o efeito de uma decisão que não é mais irracional nem menos rica de experiência que qualquer outro postulado de valor973 b Não se pode chegar ao conceito de pessoa a partir do eu individual nem a partir da alma Cabe aqui a pergunta quanto a quem é que vincula em unidade a diversidade dos atos de julgar amar perceber etc de um indivíduo Segundo o personalismo o sujeito dessa unidade na diversidade não pode ser um eu nem uma alma mas um singular humano concreto uma pessoa O eu corresponde só à percepção íntima porém o executor unitário de tão diversas classes de atos só pode ser a pessoa Se nós chamamos personalidade a este perpétuo ruído que é em nós a cada momento o vigário da pessoa transação entre o indivíduo as personagens e as aproximações mais finas de nossa vocação pessoal em uma palavra o golpe no presente da obra de personalização minha pessoa 971 Manifeste p 523 Por espiritual nesta aproximação de Mounier entendase integral e não reduzível Em vez de hierarquia de valores seria melhor de acordo com a intenção mais geral da obra de Mounier dizer uma ordenação de valores livremente adotados 972 Mounier prefere usar a palavra faute em vez de péché por considerála muito carregada tanto pelo uso que dela fazia uma certa tendência jansenista uso que Mounier considerava abusivo e insultante à liberdade humana quanto pela crítica unilateral de seus detratores que se nutriam da concepção polarizada para jogar o seu jogo maniqueísta Todavia a noção de pecado como já vimos é uma noção teológica muito importante Expressa uma dimensão da vida humana que o pensamento não religioso sem conseguir deixar de alguma forma de tocála procura para que não veja sua autonomia laica comprometida com o que a intuição religiosa já propôs a respeito em relação a ela é o que parece só usar termos diferentes mas que querem expressar uma mesma experiência radical Na verdade sempre mais radical e pesada em relação à natureza humana do que a noção de bíblicoteológicaVer sobre essa questão em relação ao pensamento freudiano O século de Freud IBRASA São Paulo 1959 Parte 6 Filosofia e religião pp 221 ss 973 Manifeste op cit p 524 345 não é minha personalidade grifo nosso Ela está além supraconsciente e supratemporal uma unidade dada não construída mais vasta que as vias que eu tomo mais interior que as reconstruções que eu tento Ela é uma presença em mim974 Mais à frente perspectivando melhor a diacronia do movimento de personalização em relação ao que pode parecer uma queda em uma espécie de sincronia sem drama da aproximação diz Mounier Minha pessoa é em mim a presença e a unidade de uma vocação atemporal que me chama a ultrapassar indefinidamente a mim mesmo e opera através da matéria que a desvia de sua direção uma unificação sempre imperfeita sempre recomeçada dos elementos que agem em mim975 grifo nosso c Pode darse o eu e a alma sem que se dê a pessoa Quando os antigos pensavam que os escravos não eram pessoas não negavam que tivessem um eu uma vida uma alma Da mesma forma têm havido na história épocas e culturas e na experiência brasileira ainda esta atitude vigora ainda que de maneira velada que não têm admitido o caráter pessoal da mulher976 Com isso este tipo de indivíduo era considerado como coisa e se lhes negava os caracteres próprios da pessoa responsabilidade moral independência e liberdade faziase isso no entanto sem menoscabar a perfeição psicológica destes indivíduos A queima de viúvas na Índia os sacrifícios humanos em culturas primitivas e os não menos sacrifícios humanos da Inquisição são provas do valor que estas culturas davam a indivíduos não considerados como pessoas ou nos quais essa condição era passada por alto A pessoa se revela não pela experiência imediata de uma substância mas na experiência progressiva de uma vida a vida pessoal977 974 Révolution op cit p 178 A metafísica da pessoa no personalismo se define pela busca de uma unidade de sentido Já vimos como essa busca de unidade de sentido foi determinante para o surgimento da filosofia na Grécia e o quanto os princípios eleáticos e heraclitianos vão ser proficuamente contrastados na história do pensamento ocidental Ver sobre o problema do Uno parmenediano na solução gnsosciológica que Aristóteles lhe dá em sua crítica à solução platônica em SPINELLI Miguel O Um existe em si ou é uma exigência da razão in Caderno de Atas da ANPOF Primeira reunião da Sociedade Brasileira de Paltonsitas Suplemento ao BOLETIM DO CPA IFCH UNICAMPI nº 10 agostosetembro de 2000 pp 65 ss 975 Révolution op cit p 178 976 Ver Manifeste au Service du Personnalisme Oeuvres I A mulher também é uma pessoa 1936 p 559 Para uma idéia da irradiação e diálogo do personalismo com o movimento feminista ver Actes du colloque tenu à UNESCO tome 2 pp 387 ss artigos sobre Le féminisme 977 Révolution op cit p 524 346 d Se o conceito de pessoa diz respeito a uma totalidade nada que não seja essa mesma totalidade pode ser legitimamente colocado como portador do significado pleno da pessoa Se a responsabilidade moral a independência e a liberdade são caracteres próprios da pessoa então em qualquer condição de uma existência possível em que estes caracteres sejam negados nos deparamos com a escravidão E apesar da condição de escravo ser uma condição negadora da pessoa por outro lado esta mesma não lhe nega nem o eu nem a vida e nem alguma alma como vimos A não consideração dos indivíduos como pessoas é o que possibilita tratálos como coisas978 Só a pessoa encontra sua vocação e faz o seu destino Nenhum outro nem homem nem coletividade pode usurpar este encargo Todos os conformismos privados ou públicos todas as opressões espirituais encontram aí sua condenação979 e Da mesma forma não se pode admitir uma responsabilidade moral sem o caráter pessoal uma criança um louco ou um bêbado executam atos mandados por um eu e no entanto não têm um sujeito pessoal pelo qual possam ser imputados Por esta razão na esfera jurídica e ética dimensões às quais Mounier também dirige sua crítica a idéia de pessoa não tem nada a ver com as idéias de eu animação ou conceitos semelhantes É por isso que uma jurisprudência não comprometida procuraria atualizar a legislação com base nas aspirações por justiça vindas da pessoa e não com vistas à atualização das reivindicações do indivíduo liberal e burguês seguindo simplesmente a famigerada e cômoda liberal forças das circunstâncias f A distinção entre pessoa e sujeito psicológico é de grande importância também para a ética em relação à diferença entre o moralmente bom e psiquicamente normal assim 978 O argumento filosóficoteológico da Igreja institucional medieval que legitimou teologicamente a ação de aprisionamento dos africanos como escravos na época das descobertas negavalhes a existência da alma racional seguindo a análise aristotélica ABBAGNANO Nicola Dicionário de filosofia Editora Mestre Jou São Paulo primeira edição 1970 verbete alma p 30 Aristóteles alude à parte intelectiva da alma que ele chama um outro gênero de alma e a considera como a única separável do corpo grifo nosso De anima II 2 413 a 4 segs Todavia essa antropologia aristotélica nunca existiu em paz consiga mesma Já nos referimos em nota anterior segundo Mondofo à recomendação do próprio Aristóteles à academia platônica de prosseguir nas anterioridades lógicas Nesse sentido uma segunda série de determinações da alma segundo Aristóteles se refere a sua simplicidade e indivisibilidade ora esta série é anterior à complexidade e divisibilidade 979 Manifeste op cit 528 347 como o moralmente mau e o enfermo980 Seguindo Max Sheler tudo o que descreve a psiquiatria acerca das variações do caráter em determinadas enfermidades psíquicas não pode afetar a pessoa o que pode ser dito nos casos mais graves é que a doença torna invisível por completo a tal pessoa e por isso já não é possível nenhum juízo sobre ela981 Essa impossibilidade de juízo por outro lado leva implicitamente admitida a existência de uma pessoa atrás daquelas variações de caráter que não tem sido alcançada por causa delas Por isso os sujeitos que as realizam não são responsáveis ainda que sejam seus autores Como dissemos antes para Mounier em seu realismo integral em matéria de psique tudo é ao mesmo tempo causa e efeito Isso conduz a um tipo de tratamento psicológico bem diferente do herdado pelo paradigma racionalista g Porém fora dos casos mais graves nos quais a pessoa se torna invisível nos casos normais a experiência oferece um testemunho constante de que os problemas psicológicos são inteiramente independentes das intenções morais Quantos atos heróicos não são realizados por neuróticos982 E de maneira inversa quantas vezes os valores morais são deteriorados pela histeria eou a neurose e no entanto em ambas as ações se perfilam os mesmos delineamentos de caráter histérico Em troca o valor moral é bem distinto É por isso portanto e não por causa de uma metafísica do instinto travestida do álibi de pensamento científico logo acima do pessoal considerado como subjetivismo pelo sonho da posse de uma teoria objetiva final que se deve evitar com todo cuidado nas análises psiquiátricas do enfermo a aplicação de sanções morais983 h Daqui que o enfermo psíquico é autor e não responsável de suas ações pois a responsabilidade se encontra em conexão essencial com o ser da pessoa Eis aí um rigor do qual o personalismo na esteira de Max Scheler não abre mão para o personalismo a capacidade de ser sujeito de ações e a responsabilidade devem ser distinguidas com o maior rigor Todavia esse rigor para Mounier não deve se restringir ao campo da análise 980 MARCOS op cit p 30 s e para boa parte da argumentação até aqui passim 981 Não é um truísmo dizer que isso não deveria ser esquecido pelos psiquiatras ainda muito cegos pelo paradigma racionalista de causa e efeito que comanda a medicina alopata na sua visão quimicamente reduzível dos problemas psíquicos onde para Mounier tudo é causa e feito ao mesmo tempo 982 Observa MARCOS op et loc cit 983 Ibidem 348 psicológica da clínica mas deve se estender às análises dos condicionamentos sociais que são em muito os verdadeiros provocadores e geradores da desordem social Nisso como ainda veremos o liberalismo tende de modo interesseiro e estratégico a isentar a sociedade salvando assim o seu esquema social da crítica quando prescreve como ato de justiça a culpabilidade plena do indivíduo O liberalismo é anarquista quando afirma que o individuo tem de arcar as conseqüências como se existisse sozinho isoladamente e é socialista quando legitima a responsabilidade plena do indivíduo e a sua condenação como se efetuando em nome da sociedade como a verdadeira interessada na condenação e em vista de sua proteção enquanto sociedade A partir do ocultamento dessa inconsistência ingênita ao sistema juridista nefasto do liberalismo seguese todas as formas de hipocrisia para encobrir sua farsa e arbitrariedades Diante do que foi colocado quanto à pessoa enferma o que se depreende não é uma diminuição dela mas pelo contrário a indicação de sua dignidade por traz da enfermidade dignidade que se relaciona imediatamente com a sua pessoa como o elemento irredutível Esse é o sentimento que nos nossos dias já pode ser constatado nos movimentos de humanização no tratamento de pessoas com problemas de ordem psíquica II3e A liberdade da pessoa a Como no conceito de pessoa desaparece a antítese entre mundo íntimo e mundo exterior como já vimos ou percepção interna e externa isto quer dizer que a pessoa é psicofisicamente indiferente A vocação de ser uma pessoa não tem pois nenhuma relação com a busca da personalidade A pessoa é um infinito ou ao menos um transfinito A personalidade é ou tende sempre a ser a reivindicação do finito que se crispa sobre sua finitude Ela contrariamente ao indivíduo se engaja comanda se compromete mas também se choca se desconfia se reserva se lamenta em uma palavra se recusa984 Portanto a personalidade não é a última palavra sobre a pessoa apesar de representar uma apresentação mais global dela 984 Révolution op cit p 181 349 A noção de liberdade da pessoa que é uma noção axiológica e não legalista só num primeiro momento pode receber o tratamento que o Eu usufruidor de Emmanuel Lévinas recebe985 Todavia essa análise de Levinas é necessária para que ali mesmo onde a volúpia niilista e pessimista de Heidegger ancora ali mesmo possamos encontrar os constituintes de dimensões positivas de uma noção de Eu que se constrói em um movimento constante de unidade consigo mesmo apesar da tentação de queda no solipsismo a qual Levinas procura evitar na análise da dimensão complementar e tão intrínseca quanto a solidão gozoza do eu que é a da abertura para o outro mas como segundo momento de sua reflexão Todavia a dimensão relacional para Emmanuel Mounier como já enfatizamos é anterior e vista como a experiência original e para Lévinas continua sendo posterior 985 Ver SUSIN op cit primeira parte passim 350 CAPÍTULO III Personalismo e Liberalismo Pessoa como Singularidade Axiológica e o Indivíduo do Individualismo Liberal e Burguês Introdução o liberalismo e sua nova versão o neoliberalismo Nesta parte pretendemos elencar primeiramente alguns aspectos gerais e depois os aspectos mais pontuais de um fenômeno complexo moral cultural econômico e político986 denominado liberalismo Este se mantém atualmente na intenção da manutenção de sua hegemonia ideológica sob uma nova inscrição a de neoliberalismo cuja nova retórica apoiada pelos meios de dominação simbólicoinstitucionais cooptados987 pretende colocálo como a única opção de vanguarda em relação às aspirações de liberdade e emancipação políticoeconômica atuais por parte da humanidade Por outro lado como estas aspirações enquanto expressão políticoeconômica mesmo se inscrevem e recebem a sua inspiração em linha com o movimento de emergência da pessoa humana na história tal como estamos tentando descrevêlo a partir da reflexão personalista de Emmanuel Mounier é necessário dissociarmos o personalismo do liberalismo Quer dizer a pessoa do seu simulacro moderno o indivíduo reivindicador liberal e burguês Assim com o que segue ou seja com os nossos olhos voltados mais para o fenômeno histórico complexo chamado liberalismo não obstante pretendemos responder também até certo ponto à questão que a mim foi colocada pelo professor Antônio Joaquim Severino sobre o neoliberalismo atual que alega ter civilizado o capitalismo dos três 986 Nesta seqüência mas sem esquecermos de que se trata de um complexo ou seja Cf HOUAISS Dicionário da Língua Portuguesa Editora Objetiva Rio de Janeiro 2001 como um todo mais ou menos coerente cujos componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de subordinação de apreensão muitas vezes difícil pelo intelecto e que geralmente apresentam diversos aspectos 987 Cf JÚNIOR Liráucio Girardi A sociologia de Pierre Bordieu e o campo da comunicação Tese apresentada ao programa de PósGraduação em Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a Obtenção do título de Doutor em Sociologia São Paulo 2003 pp 105 ss Capítulo VI Bordieu Jornalismo e Televisão e passim 351 primeiros quartos do século 20 Ou seja se coloca como a superação ou correção do liberalismo clássico principalmente no quesito economia Todavia poderemos ver que o que desse quesito neoliberal na verdade do seu economicismo tão criticado outrora no marxismo pela sua versão mais antiga decorre uma das atuações mais violentas do totalitarismo liberal sutilizado contra a pessoa humana Atuação que ele tem podido fazer chegar a um nível de infiltração ideológica mais profundo mas enquanto como constataremos mais à frente continuidade ao que já se encontra inerente à toda vontade de poder que comanda o projeto do liberalismo clássico Esta atuação ao ponto da sofisticação abstrata a que o neoliberalismo chegou na apologética de suas ações programáticas tem conseguido manter permanentemente no anonimato suas reais estruturas necrófilas que militam atualmente contra a vida humana e a vida em geral Assim apresentados os constituintes do liberalismo veremos que com tudo o que compõe a sua pretensa sofisticação atual chamada neoliberalismo não estamos mais diante apenas de um esquecimento da pessoa Com o seu irmão de leite fora da cena histórica atual na sua figura mais representativa pelo comunismo russo com quem o liberalismocapitalismo brincava até então o seu joguinho maniqueísta a embriagues neoliberal atual o estado de graça atual a que os seus sequazes sentem ter alcançado promovem uma das afrontas e violências sistemáticas diretas contra a pessoa humana jamais sonhada anteriormente na história da sua dominação ocidental pela sua versão mais antiga não obstante este sadismo estar sempre lá no núcleo duro mesmo de sua manifestação988 988 Não é desinteressante lembrar o sentido simbólico e real de violência afronta direta arrogância pedantismo e humilhação à maioria esmagadora da comunidade humana sobre a face da terra que data do delírio e embriagues do encontro neoliberal que desencadeou a série e que se iniciou em 1999 em Montreal Canadá que a ainda versão mais reduzida do G7 chegou a empreender face ao mundo Tempos idos mas que já preparavam a crise catastrófica atual de sua economia de irresponsabilidade e conduzida fora das prerrogativas da pessoa humana Mas tempos nos quais os neoliberais ainda se sentiam como que nas nuvens em sua embriagues fiduciária em sua alquimia de autofecundação do dinheiro Encontro desaforado como a expressão das duas mãos apoiadas na cintura coluna reta peito estufado cabeça levemente erguida com um olhar altaneiro e de afronta indica Isso diante de um mundo que sua sofisticação econômica cada vez mais favelava e anemizava Encontro em posição de clara afronta realizado pela minoria plutocrata representante de Estados que funcionam como casas de comércio como diz Mounier Cf Extratos do prospecto anunciando a publicação de Esprit fevereiro de 1932 abaixo Apêndice Minoria movida por um motivo declaradamente universalista Quer dizer ali na forma pela qual o sonho de todo tirano quer que seja de se discutir uma dimensão que toca diretamente à vida de cada ser humano concreto sobre a terra e que pode comprometer totalmente a realização de sua existência como pessoa singular na forma de problema e de ajuste técnico de lógica matemática ocultando a gnose da pseudoreligião da metafísica da mão invisível de fundo que é o que verdadeiramente comanda Universal substancialista ainda como vemos Universal da idéia sem consideração real pela vida concreta e singular da pessoa justamente a quem mais interessa e toca a questão da economia mas que esta oligarquia plutocrata insiste em transformar em coisa 352 Com o neoliberalismo estamos diante da técnica mais sofisticada não humanizada a serviço do último nível a que tem chegado a barbárie institucionalizada Segundo esse seu novo requinte ou seja a sua alardeada cientificidade bom senso na utilização dos recursos o seu primado da especialização da administração técnica e afins a sua retórica atual e pelo nível de abstração a que seus verdadeiros móbeis chegaram no trato do concreto como os galhos que brotam de uma árvore já podemos vislumbrar a capacidade de infiltração e de destrutividade dessa ideologia perniciosa Por exemplo algo que até bem pouco tempo atrás a sua versão antiga nem sonhava que poderia conquistar sem os recursos atuais da informática é o nível do poder de autofecundação do dinheiro e a consecução de lucro sem serviço prestado em somas de impossível correspondência com a produção social real Produção esta hoje que permanece sob sua alçada a sua imagem e semelhança anárquica e ainda fincada nos pseudosvalores da modernidade burguesa utilitarismo pragmatismo hedonismo etc cuja quantidade desvinculada de qualquer planejamento racional coletivo e em detrimento da qualidade sua hybris faz absurdamente crescer tanto em resistência como contra qualquer projeto de justa distribuição como contra o consumidor particular contra os recursos naturais e o próprio ecossistema Não obstante ao nos atermos aqui ao tratamento dos elementos que consideramos mais essenciais do complexo liberalismo do seu núcleo duro portanto e não dos estouros esparsos dos seus fogos de artifício atuais veremos que a sua retórica atual depois de ter engendrado por sua manutenção da ética capitalista que postula uma economia visceralmente irresponsável e fora das prerrogativas que cobrem as necessidades reais de uma existência humana realizadora da vida pessoal continua uma mesma tradição que conseguiu apenas especializarse nos requintes de aplicação de sua violência sistemática histórica contra a pessoa humana concreta Cremos assim que munidos como que em posse de uma propedêutica gerada por uma aproximação crítica segundo o personalismo de técnico de quem entende em gnose A afronta deste ato pode ser sentida já no alcance que esta minoria queria lhe dar o de decidir os rumos da economia humana mundial Um gesto simbólico e violento de deboche e indiferença tais à comunidade humana que faria o Übermensch de Nietzsche morrer de inveja Todavia tempos idos em que o espírito neoliberal pode sentir o gostinho de sair um pouco de sua redoma de proteção abstrata e se expor ao mundo Mas são tempos passados Hoje por covardia a retórica neoliberal volta ao antigo comedimento e bomsenso do velho liberalismo e sua retórica participativa pseudo democrática ampliando o número dos Estados novos filiados casas de comércio para G20 353 de Emmanuel Mounier aos constituintes móbeis mais essenciais do fenômeno liberalismo estaremos por outro lado prontos para empreender num outro projeto de estudo uma crítica mais específica aos constituintes que podem ser destacados desta sua pretensa nova versão Todavia elencamos dois motivos pelos quais apresentamos nossa justificação do por que não nos será possível desenvolver aqui esta crítica 1º porque a aplicação política do neoliberalismo na esteira de inspiração de pensadores seu mentores tais como Hayeck Freedman Popper etc se deve aos governos de Margaret Thacher em parceria com o de Ronald Reagan os quais foram seus principais agentes em sua aplicação sóciopolítico econômica ao mundo da vida a partir dos finais dos anos setenta do século XX portanto num momento da história em que Mounier já havia nos deixado e não podia afrontar este novo evento 2º porque também uma crítica que procurasse relevar os aspectos mais essenciais que compõem este fenômeno a partir dos princípios personalistas para ser consistente leva necessariamente à produção de um novo ensaio como já dissemos Entretanto uma primeira e boa pista quanto ao neoliberalismo em relação ao liberalismo quem nos oferece é justamente uma de suas expressões atuais a chamada virada lingüística Esta seguindo a velha tradição anglosaxônica sobre a qual Edmund Husserl e Max Scheler já traçaram a árvore genealógica remontando ao preconceito racionalista e empirista que tem prevalecido no Ocidente nós seguindo as pistas de Emmanuel Mounier a vemos enxertada numa ramagem ainda mais anterior à da tradição intelectualista Assim seguindo a dica da virada lingüística podemos dizer que toda a retórica atual neoliberal como sendo uma depuração em relação a sua versão mais antiga é só uma questão de palavras Todavia para o personalismo isso não significa um cerceamento tão cioso por esta expressão do relativismo fácil das filosofias semânticas que brotam da inspiração liberal a um problema de palavras da linguagem pura e simplesmente Aceitar isso já seria fazer o joguinho do relativismo fácil proposto pela chamada virada lingüística Importa para o personalismo antes do relativismo do problema da linguagem o problema da comunidade de essências a manutenção de um mesmo núcleo duro por estas supostas novas versões E é nesse sentido específico que dentro de uma perspectiva personalista podese tratar somente de uma questão de palavras 354 Esta atual redução ao locus da linguagem proposto por esse ramo da filosofia semântica mantém firme portanto uma base fundamental que sempre comandou a ontologia racionalista e que sempre tem lastreado a história do racionalismo no Ocidente ou melhor a história desta que é sem dúvida a filosofia do liberalismo Tratase da base ontológica fundamental que é a compreensão pela ilusão do racionalismo do ser como esfacelado só porque a investida de sua razão instrumental ao mundo dos objetos tem a índole de esfacelálos Tratase mesmo do modo de ser da separação que comanda a ontologia racionalista e que segue em seu alcance ético e político o sentido do lema de todo tirano dividir para conquistar Sobre esta continuação ontológica por parte deste suposto novo ramo das filosofias semânticas quer que se acredite que o único acesso a um objeto comum designado se encontre sempre como que estampado apenas pela mediação da fala entendase da fala segundo a maneira pela qual a chamada virada lingüística a toma sob os seus moldes da conciliação pragmática contextual Todavia a percepção deve ser descrita fenomenologicamente segundo uma inspiração husserliana da qual o personalismo se vale e para fazer valer o caráter de totalidade para o qual a consciência intencional aponta em sua intuição originária e que consta a partir do personalismo Mounier como o modo de ser da relação na forma segundo Husserl de uma presentação Gegenwärtigung ou seja aquilo que nos dá algo como presente e em função do que deveremos opôla à consciência de imagem ou de signo que enquanto presentificações Vergegenwärtigungen nos apresentam mediatamente aquilo que não está efetivamente presente989 Assim esta última pretensa nova versão do velho preconceito logicista e intelectualista da filosofia analítica chamada virada lingüística mesmo se dizendo nova mantémse sobre a mesma comunidade de sentido dos constituintes tradicionais que preformam o prejuízo epistemológico que compõe o conjunto do complexo do que denominamos aqui neoliberalismo Tratase da investida e da manutenção da ontologia dicotômica que apreende toda a realidade sob o modo de ser da separação como dissemos e que fora iniciada na modernidade pelo ideal científico de matematização da natureza por Galileu seguido e aprofundado em filosofia por Descartes por Locke e toda escola 989 HUSSERL Analysen zur Passiven Synthesis p 96 Citado por MOURA Carlos Alberto Ribeiro de Racionalidade e crise Estudos de História da Filosofia Moderna e Contempirânea Discurso Editorial e Editora UFPR São Paulo e Paraná 2001 p 378 355 empirista posterior Em qualquer um dos casos o sensível transformase em sensação interior ao sujeito em qualquer um dos casos ele estava divorciado do inteligível em qualquer um dos casos ele só podia ser signo de uma existência que por princípio ele não pode descrever Em qualquer um dos casos dirá MerleauPonty cometese o engano de fazer da qualidade sensível um elemento da consciência quando ela é objeto para a consciência de tratála como uma impressão muda quando ela tem sempre um sentido990 Não entrando aqui na crítica à indestrutibilidade dos elos realmente mais extensos do que os permitidos pelo registro intelectualista e logicista em que Husserl se mantém e que compõem a análise da consciência intencional segundo a fenomenologia da percepção de MerleauPonty queremos ressaltar apenas a maneira pela qual este modo de ser da separação vigente na ontologia tradicional da modernidade base do seu racionalismo e que Ponty critica continua servindo ainda como fundamento inconfessado para esta nova virada lingüística Esta o mantém como amparo epistemológico na forma pela qual o relativismo tradicional nela quer dizer em sua versão semântica não deixa de servir de amparo a uma certa estética que o neoliberalismo atual por sua vez quer de modo interesseiro e cômodo a sua dominação sutil fazer prevalecer no âmbito das relações no mundo da vida A separação abrupta entre res extensa e res cogitans da dicotomia ontológica de Descartes que se mantém no Ensaio de Locke na constituição do seu indivíduo como incomunicabilidade entre as idéias que estão nas coisas e as idéias que estão no nosso espírito portanto mantendo a idéia como mediadora deste estancamento onto epistemológico continua servindo ao relativismo fácil da chamada virada lingüística que troca a mediação efetuada até então pela noção um tanto desgastada de idéia do velho racionalismo empirista pela que ele tem como uma superação quer dizer por sua eleição mediadora agora do locus da linguagem A estratégia de que se vale o complexo mais atual chamado neoliberalismo com base nesse a priori da separação é o que por um lado vai caracterizar o conservantismo ingênito à preocupação liberal tradicional pela manutenção sem questionamento da gama de pseudovalores que fundamenta seu esquema social decadente e que se iniciou no século XVI Assim ele tem 990 Cf MOURA Carlos Alberto de Racionalidade e Crise Estudos de História da Filosofia Moderna e Contemporânea Discurso Editorial Editora UFPR FFLCHUSP 2001 p 279 ver todo este ensaio Entre fenomenologia e ontologia MerleauPonty na encruzilhada pp 271 ss 356 estrategicamente procurado desviar o foco do seu real núcleo duro axiológico desgastado pela insustentável manutenção de sua psicologia incipiente da idéia como mediação gnosiológica para o campo do problema insolúvel da linguagem991 da comunicação Insolubilidade que ele quer agora desculpada e dinamizada apenas no interior da erótica do seu relativismo fácil Assim também com o desvio do problema humano a problema da linguagem empreendido por esta nova modalidade de justificação liberal ou melhor neoliberal por esta sua atual neutralização da participação da pessoa livre e criadora pela manutenção em cena agora ainda mais pulverizado do seu indivíduo isolado reivindicador e possuidor de uma fala previamente amputada quanto a qualquer ensejo de superação da lógica interna que a condiciona essa nova versão do velho liberalismo consegue matar não só dois mas vários coelhos com uma só cajadada Ela permanece em cena como pensamento de vanguarda como à frente do seu tempo só cumprindo a tão sonhada não humilhação de Richard Rorty992 pelo sentimento de não haver na verdade mais a quem humilhar Quer dizer por não haver outra ideologia concorrente na linha do horizonte com quem jogar o seu tradicional jogo maniqueísta Assim o neoliberalismo pode tranquilamente hoje estabelecida a sua hegemonia aplicar a sua tolerância mas só depois de ter perpetrado emplacado e mantido diariamente o embrutecimento o aviltamento a imbecilização e o nivelamento significativo dos indivíduos ao estrato mais epidérmico da existência ao nível da pura fricção que no âmbito do problema da sexualidade cerceada por seus pseudovalores de base ele quer como tema de discussão sobre a contribuição à liberdade sexual à qual sua emancipação tem conquistado Já que pela pura antecipação axiológica de uma lógica convencionada e aceita ele tem a sensação de não ser mais uma filosofia da refutação dando a entender até que deve ser tomado hoje como uma metafilosofia E já também porque se sente como cumpridor das exigências do bomsenso quer dizer do pluralismo Mas porque se sente seguro de que será um pluralismo comportado sempre 991 Como Karl Popper um dos próprios mentores do neoliberalismo em sua crítica a Wittgenstein reconhece que seja o problema da linguagem quer dizer insolúvel Todavia essa crítica vinda de um liberal não nos deve surpreender Como ainda ficará mais claro ao personalismo interessa perceber vínculos consangüinidades e parentescos mais profundos quer dizer axiológicos Todavia ver POPPER Karl Sociedade aberta e seus inimigos Editora da Universidade de São Paulo Editora Itatiaia Limitada vol 2 ver as notas das pp 307310 sobre a filosofia analítica e Wittgenstein 992 Ver RORTY Richard Contingência ironia e solidariedade Editorial Presença Barcarena Portugal 1994 p 17 s 357 dinamizado estritamente dentro do esquema e da lógica do seu relativismo fácil Em tudo isso na erótica e estética desse novo paganismo o neoliberal típico do atual neoliberalismo passa a se sentir em estado de graça Na verdade sem nenhum peso na consciência em relação às mazelas que o seu esquema decadente e de morte lenta e asfixiante todos os dias perpetra no mundo da vida Pois o neoliberal típico sentese antes de tudo um humanitário alguém que se dispõe à solidariedade Todavia graças ao fato desta sensação humanitária de solidariedade já se encontrar neutralizada e esvaziada por sua retórica do sentido de suas verdadeiras fontes axiológicas nutridoras É assim que o seu relativismo fácil da linguagem concede que sejam perspectivados os problemas pela cauterização das consciências singulares quanto a sua participação responsável em suas catástrofes Esse pseudosentimento de solidariedade que muito se ressente de espírito pequeno burguês e de religião cooptada concedido pelo jogo neoliberal atual é possível também porque esse seu esquema abstrato já é tomado por ele quer dizer em sua versão neopositivista como expressão cabal da natureza ou melhor de como as coisas realmente são Essa situação o faz colocar todos os eventos principalmente aqueles que refutam suas pretensões totalitárias dentro do seu relativismo fácil como uma questão de ajuste e que ele quer prolongada ao infinito Assim essa nova versão relativista não obstante a maior sofisticação retórica não foge ao método tradicional convencionalista do liberalismo clássico conciliador e eclético Dessa forma essa aposição em nossos dias do prefixo neo a liberalismo tem a intenção e o sentido de substituir o tipo de relativismo ou antes o seu lugar clássico sobre o qual a epistemologia do racionalismo ou seja a filosofia do liberalismo sempre se apoiou Pois agora que o pluralismo tem feito explodir seu ideal de racionalidade eleger o locus da linguagem tem o efeito de deslocar a dinâmica do seu relativismo para uma pragmática dos contextos justificantes Assim com essa redução ao novo locus da linguagem o neoliberalismo continua tanto o seu relativismo e ecletismo da conciliação infinita quanto sua justificação a priori dos conteúdos axiológicos performativos aos contextos que a linguagem ideologicamente tomada quer e pode validar ou criticar sem que obviamente em ambos os casos estes mesmos conteúdos performativos sejam colocados em questão como objetos de uma crítica qualitativa Quer dizer contanto que eles permaneçam fora do âmbito deixado ou permitido a priori enquanto alcance crítico 358 por sua lógica previamente compreensiva O que se dá em analogia como uma forma de concessão na forma de um gesto de benevolência dessa nova modalidade de tirania abstrata mais requintada desse atual totalitarismo sutil desse tirano abstrato993 Em outras palavras essa aposição estratégica do neo a liberalismo tem o efeito psicológico de deixar subentendido que algo novo aconteceu que alguma coisa de essencial mudou enquanto a retórica geral dos meios de dominação simbólico institucionais cooptados e a serviço de sua apologética diária massacrante providencia a manutenção de uma cápsula protetora aos reais pseudovalores de base que fundamentam esta velha ideologia perniciosa a este verdadeiro câncer maligno que necrosa todo o tecido social Na verdade com a necrofilia sutil do neoliberalismo estamos diante da contraposição cabal e afronta direta a tudo que significa não somente vida social mas vida enquanto tal a todos os verdadeiros valores que fazem parte do ensejo da pessoa por vida singular e comunitária os quais ela tem descoberto se apropriado e tentado concretizar nessa longa história de sua expressão no mundo enquanto luta pelo real Todavia são estes pseudovalores de base do liberalismo seu núcleo duro e que permanecem como tais na sua nova versão o que realmente importa à crítica personalista ressaltar trazer à tona desvelar Como vemos não há nada de novo nesta nova versão nesse canto de sereia Todavia este aspecto do pensamento mágico da ideologia liberal é ingênito a sua pseudoreligião ao seu neopaganismo e que segue na mesma inspiração dos antigos pagãos que pensavam que as palavras têm uma virtude especial intrínseca e que a alteração delas implica simultânea e automaticamente uma mudança qualitativa no ser que elas designam na versão neoliberal no ser que elas esvaziam neutralizam e capturam para a dominação Como sempre foi o caso como dissemos antes da interpretação do ser pelo racionalismo como esfacelado só porque sua razão instrumental tem a capacidade de esfacelar os seus objetos Isso é o que como veremos se antepõe justifica a priori e impede na sociedade sob a dominação liberal e neoliberal que se faça qualquer julgamento de valor emitido sobre os valores e as estruturas condicionantes do seu esquema social burguês decadente prevalecente e que levaria aos questionamentos profundos de suas reais 993 Como veremos mais à frente ao menor sinal de perigo deste seu esquema necrófilo geral a reação do liberal típico e do neoliberal é fazer o fascismo Ou melhor para seguir o sentido da inovação um neofascismo 359 bases axiológicas seus verdadeiros moventes O que faz com que o seu núcleo duro que sempre milita contra a pessoa permaneça o mesmo no anonimato quer dizer incólume A essência dessa nova versão supostamente mais decantada da decadência do espírito burguês ocidental dominante é a mesma do liberalismo tradicional E isso mesmo que essa velharia tenha seguido a estratégia da autopulverizarse como tem sido sempre a história do seu relativismo interesseiro para melhor ocultar a sua verdadeira essência como já notamos Isso no nível teórico em que se dá sua apologética Pois como vamos enfatizar mais à frente a já atual e presente catástrofe financeira que sua pseudotécnica do econômico engendra inelutavelmente não basta para refutar esta pseudoreligião que em relação ao neoliberal típico já toma ares de seita Assim este factum não basta para demover o neoliberal típico como fora sempre também o caso do liberal típico de sua crendice de sua superstição perniciosa farisaica visceral e profundamente dogmática Todavia o liberal típico era sem dúvida menos atrevido do que os neoliberais de hoje994 que se sentem sem nenhuma concorrência de peso no mercado ideológico como que senhores do mundo e em estado de graça em verdadeira embriagues de poder Em relação à retórica destes como em relação ao racionalismo daqueles tratase todavia de pseudoreligião de coisa de seita de crendice pois aqui estamos tratando de algo mais do que simples teoria do que questão de racionalidade Tratase certamente por sua resistência ao esquema de refutação que sua própria tradição intelectualista engendrou e que hoje se volta contra ele agora que está no poder sozinho como todo tirano que se vale de todas as formas do universo do símbolo e da religião para legitimar os seus desmandos de uma pseudoreligião de uma seita ou ao menos de um espírito de seita diluído e camuflado sob a aparência do bomsenso Tratase como veremos do espírito pequeno burguês disseminado e que é sempre cioso por ajuste quer dizer por conciliação ou convenção perpétuas dentro do seu esquema a priori de justificação e de autovalidação na versão mais estratégica e sofisticadamente abstrata de sua história 994 E bem menos em tempos fora de crise no qual sempre se via o neoliberal típico sempre com um sorriso sarcástico no canto da boca quando se falava dos problemas chamados sociais 360 Os velhos e ultrapassados compromissos históricos assumidos pelo liberalismo com seus pares decadentes moral burguesa individualismo reivindicador mundo do dinheiro e seu primado do lucro sobre o da produção sua pseudodemocracia parlamentar representativa seu juridismo abstrato totalmente desligado da vida real e instaurador da ditadura do legalismo abstrato é o que compõe para o personalismo o seu adiamento da pessoa e que continua na sua suposta nova versão chamada neoliberalismo Todavia estes não conseguem deixar de se expor apesar de toda retórica a uma experimentação axiológicoexistencial de sua decadência de morte passível de ser complementada com uma análise lúcida mais detida A experimentação de que falamos aqui é a que diz respeito ao primeiro ato a primeira atitude da vida pessoal em relação à vida anônima Ato que funda no personalismo a base de sua crítica que antes de tudo como já dissemos é uma autocrítica e que por isso mesmo não permite qualquer tipo de evasão teórica que queira tomar o fenômeno social sob uma objetividade humanamente impossível dado o pressuposto personalista da participação incontornável do sujeito na vida do objeto A liberdade da pessoa é a de descobrir ela mesma a sua vocação e de adotar livremente os meios para realizála Ela não é uma liberdade de abstenção mas uma liberdade de engajamento995 grifo nosso Para Mounier falase muito de engajamento como se fosse algo que dependesse unicamente de nós Lançados no mundo nós estamos previamente engajados A questão é o quanto este engajamento que só toma o sentido da verdade plena de sua expressão na conclusão de uma vida apresenta a solidez de seu trajeto na manutenção dramática de uma fidelidade aos valores que diz assumir Tratase por parte da pessoa de fidelidade a si mesma nas pequenas e grandes ações tomadas no tempo dilacerante pois é fidelidade aos valores que comporão o arco de sentido de sua vida É ato de lucidez pois é tomado na convicção de um compromisso de uma fidelidade aos valores é o ato que mais especifica o ser humano é a sua vocação O engajamento para o personalismo tem o próprio sentido da afirmação da vida E a escolha do personalismo da pessoa criadora como expressão mesma dessa vida é o que lhe faz buscar esclarecer os valores que lhe são correspondentes fora da mentira996 995 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 533 996 Falaremos mais sobre o ato de engajamento segundo a perspectiva personalista que como já dissemos é a reflexão de Paul Louis Landsberg que vai delinear e precisar a própria posição de Mounier e do movimento Esprit 361 Para o personalismo sem aquele primeiro ato fundante de autocrítica a crítica tornase evasão e por isso cumplicidade na mentira geral Encontramos essa consciência de autocrítica presente em Mounier desde os seus primeiros escritos O primeiro ato de iniciação à pessoa é a tomada de consciência de minha vida anônima O primeiro passo correlativo de iniciação à comunidade é a tomada de consciência de minha vida indiferente indiferença aos outros porque é indiferença dos outros997 Até nos seus mais recentes O mundo do Se não constitui nem um nós nem um todo Ele não está ligado a tal ou qual forma social ele é em todos uma maneira de ser998 grifo nosso O primeiro ato da vida pessoal é a tomada de consciência dessa vida anônima e a revolta contra a degradação que ela representa999 O reconhecimento desse ato deve ser entendido como pressuposto em nosso remetimento à crítica elaborada por Emmanuel Mounier e sua equipe em Esprit e se configura como a análise da qual nos valemos aqui para estabelecer uma aproximação ao fenômeno do liberalismo Paul Ricouer em um artigo de 1983 lamenta a escolha infeliz pelo fundador do movimento Esprit de um termo em ismo ademais posto em competição com outros ismos que se nos mostram amplamente hoje em dia como fantasmas conceituais1000 Essa observação de Ricouer por outro lado está em total sintonia com a própria proposta que identifica a reflexão de Mounier como antiideológica na sua radicalidade1001 Tanto que Ricouer não obstante o ismo de personalismo e a partir da mesma reflexão pode encontrar e cunhar uma expressão feliz para definir a reflexão de Mounier não como 997 Révolution persoannaliste et comunautaire Oeuvres I 1935 p 186 998 Isso fica mais claro quando entendemos a crítica que Emmanuel Mounier inicia como crítica do hábito e não dos costumes pela qual o racionalismo foi sempre tão cioso Para isso também remetemos ao interessante ensaio de HIRSCHMAN Albert O As paixões e os interesses Argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo Paz e Terra São Paulo 2000 999 Le personnalisme Oeuvres III 1949 p 458 1000 RICOEUR Paul Morre o personalismo e volta a pessoa in A Região dos Filósofos col Leitura 2 Editora Loyola São Paulo 1996 p 155 1001 Ver Lacroix Jean O personalismo como antiideologia Coleção Substância Rés Editora Porto sd 362 uma filosofia simplesmente de profissão mas como um pensamento do qual Ricouer não nega ser devedor que propõe matrizes filosóficas1002 Não obstante tudo isso pelo fato dos outros ismos que perfaziam junto com o personalismo um reino tripartie personalismoexistencialismomarxismo terem sido entendidos por Mounier como característica durável de uma época e que tomam hoje o caráter de uma ilusão1003 seria temerário concluirmos que não poderíamos mais esclarecer o caráter ideológico passível de descrição do liberalismo que não obstante o ismo e todas as críticas que lhe são pertinentes em relação a isso como Ricoeur bem vê em relação ao marxismo ao existencialismo e ao próprio personalismo continua atuante e reinante no mundo atual em conjunto com os seus constituintes moral burguesa moralismo base dos hábitos sua ética individualismo base de sua antropologia sistema financeiro capitalista capitalismo base de sua economia do seu mundo do dinheiro e pseudo democracia parlamentar representativa base de sua política e como uam nova versão neoliberalismo E isso mesmo com o risco apontado pelas chamadas ontologias regionais risco que vêem contido no ismo do liberalismo sem que no entanto consigam propor uma saída em conjunto Risco também de personalismo sem dúvida mas que será tomado aqui como inspiração crítica e frontal diante desse atual totalitarismo usurpador e coercivo das inspirações fundamentais do projeto democrático que pertence à humanidade E é com base nesse critério que ele deve ser julgado Pois para o personalismo estas inspirações que se encontram na base do ideal democrático e que se inscrevem dentro do próprio movimento de personalização o qual temos descrito tomam o seu primeiro esboço e sentido como política na experiência todavia restrita de constituição da cidade grega antiga1004 Mas 1002 Ver RICOEUR Paul Emmanuel Mounier une philosophie personaliste in Histoire et Vérité collection EspritSeuil 1955 p 138 Como já notamos este artigo de RICOEUR se encontra primeiramente lançado como parte desta coletânea mista em homenagem a Mounier no número especial de Esprit de 1950 p 860 com o título Une philosphie personnaliste Há uma tradução em Português da coletânea Histoire et Vérité RICOUER Paul História e Verdade Forense Rio de janeiro sd 1003 RICOEUR A Região dos Filósofos op cit p 156 1004 Devemos lembrar que no atual balaio do que se configura pelo nome de neoliberalismo o capitalismo com toda a arrogância de se pretender detentor único hegemônico sobre o que diga respeito à dimensão econômica do ser humano e que ainda é o modelo econômico adotado pelo neoliberalismo para Mounier Révolution op cit p 386 não responde à definição de tirano da filosofia política porque ele a ultrapassa em ignomínia e em capacidade de inumanidade Para Mounier ao menos com o tirano restava alguma humanidade fosse a de ódio a um indivíduo concreto Quando falarmos da crítica de Mounier ao capitalismo elucidaremos como se dá o uso desse conceito da filosofia política historicamente mais atrelado à figura concreta do indivíduo tirano em relação ao sistema abstrato do capitalismo Todavia já adiantando aqui alguma explicação não obstante a vontade de abstração o capitalismo é personificado pelos seus próprios e 363 este esboço grego para Mounier não deixou de sofrer a influência do universalismo cristão como já vimos Isso faz com que à pergunta feita a Mounier sobre se ele era pró ou contra a democracia ele responde somos pró a democracia que está por se fazer e contra a democracia que se desfaz1005 Nesse sentido para o personalismo o liberalismo é tão democrático quanto qualquer outro regime que tenha lançado mão desta noção esvaziada como mote de sua demagogia seja parlamentar ou partidária Consequentemente o liberalismo mesmo em sua complexidade fenomênica não foge à analise dos moventes mais íntimos dos regimes totalitários Quer dizer segundo o personalismo dos regimes que não elegem a pessoa concreta como a base doadora de sentido e aferidora última em suas prerrogativas incontornáveis das táticas e das ações políticas Nesse sentido diz Mounier Começamos pois por uma escolha brutal Chamamos regime totalitário a todo regime no qual uma aristocracia minoritária ou majoritária do dinheiro de classe ou de partido assume impondo suas vontades os destinos de uma massa amorfa seja ela consentidora e entusiasta e tenha ela por aí mesmo a ilusão de estar sendo refletida Exemplos em níveis diversos as democracias capitalistas e estatizantes os fascismos o comunismo stalinista Chamamos democracia com todos os qualificativos e superlativos que se deve para não confundilos com suas minúsculas contrafações o regime que repousa sobre a responsabilidade e a organização funcional grifo nosso de todas as pessoas constituindo a comunidade social1006 Então sim sem rodeios nós estamos do lado da democracia Acrescentamos que desviada de sua origem por seus primeiros ideólogos mais atuais técnicos e pela dominação simbólica das mídias Ver para isso JÚNIOR Liráucio Girardi A sociologia de Pierre Bordieu e o campo da comunicação op cit que gostam de manter esse jogo de personificação abstração Funciona como recurso psicológico e retórico usado para contrabalançar o sentimento de vazio e de impunidade geral que paira sobre a sociedade atual É mantido estrategicamente pelo seu jogo abstrato no qual toda injustiça perpetrada por suas ações ficam desviadas do plano da injustiça propriamente dita quer dizer do juízo de valor moral Se não fosse assim ficaria claro o fundo de responsabilidade pessoal última que comanda sua pseudológica abstratocientífica Por isso os problemas e as mazelas que o seu sistema obsoleto causa para milhões de vidas humanas podem ser tomados e desviados desse caráter responsável pessoal último e tomados como problemas de ordem técnica e resolvíveis apenas por técnicos Assim frustrandose o sonho do senhor Richard Rorty de uma filosofia fora da humilhação fora da refutação justamente pela manutenção dessa nova gnose 1005 MOUNIER Emmnauel Appel a um rassemblement pour une démocratie personnaliste in Bulletin des amies dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p 9 1006 Está aqui na noção de funcional a recusa implícita por parte de Mounier da metafísica do hierarquismo em termos de relações sociais sobre o que ainda teremos oportunidade de falar mais amplamente quando tratarmos da relação Pessoa e existência em capítulo abaixo 364 estrangulada no berço e pelo mundo do dinheiro esta democracia jamais foi realizada de fato e que ela se encontra com dificuldade nos espíritos1007 Como dissemos a experiência grega que se inscreve a seu modo no movimento de personalização de que falamos em suas inspirações mais profundas e portanto porque mais originais mais fiéis ao movimento da pessoa nesses seus primeiros balbuciamentos democráticos constitui a base de verdade sobre a qual a mentira ocidental e sua democracia parlamentar tem se mantido Aliás como diz Mounier a mentira só se mantém porque se nutre como um parasita da seiva da verdade que ela compromete1008 O cristianismo de Mounier não lhe permite idealizar1009 por isso ele sabe que quanto ao tipo de crítica que pretende iniciar em Esprit não se trata apenas de construir uma boa teoria sobre o mundo Sobre o fundo axiológico em que os problemas se perspectivam no personalismo o ponto inicial para ele é antes que a expectativa de aquiescência por parte do público quanto a uma boa descrição de como as coisas são um apelo ao que se mantém irredutivelmente humano irredutivelmente pessoal irredutivelmente não inventariável em cada um dos seus leitores A prosperidade permite o jogo e mascara a injustiça A miséria oprime o ser humano sobre os seus problemas essenciais e faz descobrir através dos grandes véus de encobrimento os pecados de um regime A experiência grifo nosso ou a proximidade da miséria eis aí nosso batismo de fogo1010 E mais à frente Não é somente o caso dos homens servirem por sua vez abertamente a Deus e a Mamon1011 podese evitar um perigo desaforado Mas as próprias palavras que se crêem puras ocultam a mentira e a duplicidade à força de viver entre os homens duplos Nós romperemos com estes homens quebraremos estas palavras e trabalharemos para 1007 Révolution op cit p 294 1008 O que Berdiaeff diz da mentira do comunismo vale para a mentira do liberalismo Na verdade assim como ao lado do problema do mal se deve levar em consideração para o personalismo o problema do bem ao lado do problema geral da verdade inscrevese o problema geral da mentira Cf Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 515 O que o comunismo tem de tão temível escrevia Berdiaeff no primeiro número de Esprit é essa combinação de verdade e erro Não se trata de negar a verdade mas de destacar o erro Precisemos o que o comunismo tem de temível é este entrecruzamento de erros radicais com as visões parcialmente justas e incontestavelmente generosas esta anexação ao erro de causas dolorosas cuja urgência nos oprime 1009 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 625 1010 Révolution personnaliste et communautaire Oeuvres I 1932 p 132 1011 Palavra aramaica que permanece na transliteração do Grego Koinê do Novo Testamento em Lc 1613 como mamwna mamonâ dinheiro Esta é a única ocorrência no Novo Testamento em que frente à Divindade o Dinheiro é colocado como capaz também de propiciar um culto assim uma religião 365 purificar estes valores aos quais seus próprios inimigos no malentendido atual são mais de uma vez profundamente fiéis1012 A situação em que a civilização moderna estava metida e salvo alguma ilusão da minha parte essencialmente continua e por sua própria condescendência ao jogo mentiroso que a decadência burguesa havia lhe imposto fez com que o início do ato filosófico de Mounier em vez de se dar por um espanto contemplativo de admiração pelo vislumbre da beleza do mundo ou antes pelo despertamento inquiridor do ser como queria Aristóteles1013 se desse com um espanto diante da miséria da decadência do indivíduo moderno e sua mentira acerca de si mesmo mantida para encobrir a emergência da pessoa e sua dignidade1014 Por isso Tomar consciência em nós em torno de nós da mentira coletiva e individual1015 Para o personalismo portanto a consciência deve se dar primeiro por parte da própria pessoa em relação a si mesma de sua inserção e participação incontornáveis na presente realidade autoconsciência crítica e consequentemente se expandindo para a consciência dos verdadeiros condicionamentos do seu entorno daí e só daí então ela se encontra em posse dos constituintes do que se denomina consciência crítica Não é necessário que a consciência siga esta trajetória Cada pessoa tem a sua maneira própria de chegar a esta consciência amadurecida Todavia em qualquer consciência que se diga crítica mas que venha a faltar um desses aspectos fundamentais o personalismo não deixará de apontar a sua meia verdade Do ponto de vista do primado desta consciência de si requerida pelo pensamento de Mounier justificase iniciarmos pelo fenômeno do liberalismo e não pelo do marxismo e nem pelo do existencialismo já que o liberalismo é aquele que tem imperado e pretendido delinear as formas de vida imprimindolhes o seu espírito Como lembrou Ricoeur e nos lembram as chamadas ontologias regionais deixemos os moribundos para depois tratemos dos que ainda permanecem vivos Como diz Jean Lacroix1016 sobre o juridismo liberal O liberalismo é a distinção levada até à separação do privado e do público A sua 1012 Révolution op cit p 133 1013 ARISTÓTELES Metafísica col Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1978 Livro I cap 2 982b Foi com efeito pela admiração que os homens assim hoje como no começo foram levados a filosofar sendo primeiramente abalados pelas dificuldades mais óbvias e progredindo em seguida pouco a pouco até resolverem problemas maiores 1014 este espanto diante de nossa própria vida Révolution op cit p 160 1015 Révolution op cit p 368 1016 LACROIX Jean O personalismo como antiideologia Coleção Substância Editora Rés Ltda Porto Portugal sd p129 366 penetração operase cada vez mais na vida e então uma nova codificação jurídica deverá confirmála Essa tendência da vontade de contenção da realidade concreta por parte do espírito liberal por meio do seu juridismo mirabolante1017 é um dado suficiente para nos manter alertas a respeito de todo o pretenso discurso técnico jurídicofilosófico atual e sua vontade de açambarcamento dos problemas concretos e emergentes do mundo da vida nas teias do seu abstracionismo jurídico Todavia o juridismo não é uma característica recente do liberalismo é sua tara ingênita Essa doença do liberalismo pode ser claramente constatada a partir de livros de autores simpatizantes1018 em que essa decadência é tomada por tão certa que é vista já como parte da natureza humana E de tal maneira que ficamos em dúvida quanto a sua apologética se se trata de ingenuidade ou de cinismo1019 Esse tipo de sentimento do liberal típico que obscurece o nosso juízo é percebido pelo colaborador em Esprit Harold Laski já em seus alvoreceres O centro criador do pensamento liberal no século XVIII é a França O pensamento político inglês nos setenta anos que antecederam a Revolução Francesa pouco mais fez do que elaborar as implicações da filosofia de Locke Não será irrazoável dizer que o próprio Adam Smith desenvolveu com magistral ênfase uma doutrina cujos postulados já existiam antes de seu tempo O inglês médio do século XVIII estava se me permitem usar um paradoxo em paz mesmo quando estava em guerra Sentia que tinha feito seu pacto com o destino Preocupavase mais com os detalhes do que com os princípios do sistema em que vivia grifo nosso1020 Ora essa atitude característica não é neutra é comprometida com valores específicos e identificáveis para quem quiser ver e todo esforço da retórica liberal segue no sentido de encobrir este comprometimento inevitável Essa eleição do abstracionismo pela modernidade e sua vitória no trato das realidades concretas na verdade é o que possibilita seu afastamento tranqüilo destas realidades graças ao estabelecimento da retórica liberal que se pretende baseada em método científico Isso desde sua adoção da metafísica do matematismo e do método quantitativo 1017 No sentido de extravagante e delirante Ver HOUAISS Dicionário da Língua Portuguesa Editora Objetiva Rio de Janeiro 2001 Caldas AULETE Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Vol III Editora Delta 3a edição R J 1983 apõe a seguinte glosa Mirabolante adj depreciativo espalhafatoso ridiculamente vistoso fantástico extraordinário Usaremos esta palavra aqui sempre nesse sentido 1018 Tais como Le libéralisme textes choisis presentes par Mikaeël Garandeau Flammarion Paris 1998 1019 No sentido não filosófico pejorativo 1020 LASKI Harold J O liberalismo europeu Editora Mestre Jou São Paulo 1973 p 117 367 da física moderna como modelos que por um lado têmlhe possibilitado a elaboração e manutenção de um ardil pelo qual ele consegue tanto situar o locus dos seus problemas sempre em outro lugar que o da pessoa concreta quanto isentarse da culpa pelas mazelas que o seu sistema caduco tem causado aos seres humanos que vivem sob sua égide Essa tara abstracionista do liberalismo deixa seus rastros em tudo que toca Vemola já estender seus tentáculos castradores até na esfera da religião na íntima relação que mantém com o deísmo do século XVIII e sua noção do deus relojoeiro distante indiferente e despreocupado com o mundo Vemola também em sua relação com o protestantismo e sua quase antonomásia com o protestantismo americano1021 pela manutenção de uma certa interpretação americana de cunho mais conservador e fundamentalista da predestinação calvinista como fatalismo teológico1022 O concreto e o real do liberalismo não têm voz estão marcados e condicionados previamente pelos seus construtos teóricos É esta sensação de conforto pela posse de uma realidade cativa o que propicia o estado de graça do liberal típico como já dissemos no trato das questões do mundo da vida Este considera 1021 Tirando o que possa haver de excesso no ensaio de Max WEBER A ética protestante e o espírito do capitalismo Livraria Pioneira Editora São Paulo 1967 tanto a em relação à desconsideração do fenômeno capitalista como se dando é o que parece já no século XIII entre os comerciante italianos portanto não dependente puramente da ética protestante Ver LASKI Harold J O liberalismo europeu Editora Mestre Jou 1973 pp 22 ss 25 67 s quanto b sua leitura mais próxima de um puritanismo de segunda fase como era ao que remete na experiência americana puritanismo já distante do espírito do da primeira fase mais de cunho transformador social Ver LASKI op cit passim e c seu sentido de reducionismo do calvinismo como proclamador do individualismo Sobre isto diz LASKI op cit p 23 s Weber e seus discípulos reconheceram isso a noção de que o Estado era sempre subserviente a uma idéia de ordem social cristã incompatível com o novo espírito que estava surgindo de fato foi na obra de Calvino e não na de Lutero que encontraram as principais provas para os seus pontos de vista Que as idéias de Calvino diferem profundamente das de Lutero é mais do que evidente mas nada existe nesse poderoso autoritarista que nos autorize a proclamálo um protagonista do individualismo A prova está sem dúvida no que fez de Genebra sua disciplina maciça e tirânica sua rigorosa subordinação do comportamento comercial ao preceito religioso seu apaixonado repúdio da liberdade de consciência A própria essência do calvinismo é a teocracia Aí nenhum indivíduo possui uma personalidade particular Pertence como Choisy disse à coletividade de que é uma parcela e essa coletividade por seu turno pertence a um corpo de leis de inspiração divina das quais o indivíduo não pode afastarse a não ser à custa de sua salvação Comparada com esse absolutismo a famosa carta a Claude de Sachins em que ele permite a cobrança de juros pesa muito pouco na balança Essa adoção de um coletivista como pai do individualismo que à primeira vista nos parece um paradoxo que enfraquece um pouco a tese de Weber não o será por outro lado quando percebermos que a unidade de sentido deste fenômeno complexo chamado liberalismo que estamos tentando esboçar aqui a partir da reflexão de Emmanuel Mounier baseada na sua tara abstracionista não vai impedir Mikaël GARANDEAU Le libéralisme Textes choisis presentes par Mikaël Garandeau Falammerion Paris 1998 p 175 de elencar ninguém menos que Hegel na categoria de pensador liberal Todavia é Mounier quem vai apontar esta consangüinidade ideológica de fundo esse DNA e não Weber cujas preocupações são outras 1022 Sobre isso a obra de Paul Tillich que viveu um bom tempo nos Estados Unidos vai representar um combate frontal ao fundamentalismo religioso americano Ver Tillich Paul Systematic Theology 3 vols The University of Chicago Press 1957 368 estar tratando da realidade concreta quando na verdade está inserido num movimento de autofagia de suas próprias idéias A posse dessa tara abstracionista propicia ao liberal típico uma justificação prévia e um apaziguamento da consciência em relação a toda injustiça reinante cuja explicação justificação pela teoria geral que adota lhe basta como resposta suficiente deixando as ações de comprometimento social para o âmbito da filantropia departamental e ao discurso moralista Quer dizer a atitudes que por sua vêz não implicam nem participação de fato e nem responsabilidade de fato dimensões estas por outro lado características de um regime de inspiração personalista Essa situação do liberal típico todavia não consegue ocultar o aspecto volitivo que está na base das doutrinas objetivas liberais volitivo não só no sentido que o liberalismo quer dar à fundamentação do Contrato Social como ato de vontade do indivíduo mas como implicando na perspectiva do personalismo a adoção livre de determinados valores1023 por exemplo do utilitarismo do pragmatismo do conforto etc em detrimento de outros 1023 HOBBES Thomas Leviatã Ou Matéria Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil col Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1979 p 61 s Também receber benefícios de um igual ou inferior desde que haja esperança de retribuição faz tender para o amor porque na intenção do beneficiado a obrigação é de ajuda e serviço mútuo Daí deriva uma emulação para ver quem superará o outro em benefícios que é a mais nobre e proveitosa competição que é possível na qual o vencido fica satisfeito com sua vitória e o outro se vinga admitindo a derrota grifos nossos É impressionante mas Hobbes toma como tão certo que os seus pressupostos são o espelho da natureza humana enquanto tal que ele não consegue abandonar a linguagem belicosa da disputa nem para falar da possibilidade de um ato gratuito de amor desprendido Por outro lado Hobbes parece muito mais consciente da possibilidade de refutação do seu racionalismo do que os seus pares mais recentes Ele sabe muito bem que se colocar a possibilidade da existência de um único ato humano sequer que não implique refutando a sua teoria geral nem a beligerância e nem a vontade dominação como fundo movente os pressupostos sobre os quais constrói o seu sistema ruirão Isso necessariamente quer dizer lógicamente o forçaria escrever um outro livro que o Leviatã Vemos que Hobbes percebe perfeitamente que não é a razão que está em jogo como diria Lutero A grande meretriz boa como serva mas terrível como senhora mas o seu sistema que se vale da racionalidade como álibi para a defesa na verdade de uma posição de vontade de uma crença não passível de aferição racional última Esta a posição de vontade que tem prevalecido no Ocidente sobre a gama dos seus pseudo valores e que crê que todo ser humano é sempre menos que um ser humano A primeira tarefa da tradição liberal será então a partir de Hobbes e Maquiavel disseminar ao derredor onde se instala o que pulula no tipo de psiquismo que a fomentou com o que ela por sua vez impregna o meio ambiente em que se instala Mikaeël GARANDEAU op cit inicia seu livro com John Locke todavia sabemos o quanto Locke depende de Hobbes O espírito do absolutismo de Hobbes que é atomizado pulverizado e atenuado em sua expressão gritante do monarca único absoluto pelo indivíduo fundador lockeano do contrato social não é impedimento para GARANDEAU op cit p 175 ss deixar de elencar na fileira do liberalismo como dissemos a ninguém menos que Hegel Hegel foi particularmente atento às idéias da tradição liberal malgrado sua denúncia das concepções liberais como abstrações sua crítica do utilitarismo e do contratualismo Na realidade ele demonstrou muito mais atenção para com a tradição liberal do que a tradição liberal manifestou a seu respeito Essa incapacidade em sacar o alcance do sistema de Hegel é uma das principais lacunas do liberalismo moderno 369 mais fundamentais e menos epidérmicos1024 Estes pseudovalores do liberalismo os quais têm prevalecido na civilização sobre a qual a burguesia tomou para si a função de inauguradora já não conseguem mais ocultar sua inadequação num mundo de recursos finitos que já não suporta o modelo de consumo que se fundamenta sobre esses seus valores Exemplo suponhamos que o discurso universalista liberal burguês mais visível no antigo liberalismo mais corajoso e empenhado nos seus inícios pois o atual o neo liberalismo já é menos comedido em seu desaforo social e não quanto ao problema geral da justiça social mas quanto a um item mais simples e que representa bem o seu espírito quer dizer a produção e distribuição com margem mínima de lucro por unidade de geladeiras tornasse possível sua aquisição se não pelos sete bilhões de habitantes do mundo ao menos por cinco bilhões O resultado a que a civilização chegaria seria o de um colapso total levandose em consideração o nexo causal que implicaria tal cadeia produtiva ligado à variedade de insumos necessários para a produção que por sua vez dependeriam de fontes e recursos que comportam limitação não só quantitativa o que a retórica liberal resolveria pela reposição do problema da produção mas qualitativa quer dizer impossibilidade da manutenção das formas de vida no âmbito do funcionamento do eco sistema tal qual nós conhecemos A partir dessa simples constatação podemos ver que o liberalismo mesmo quanto a um item o do consumo facilitado que alardeia aos quatro cantos da Terra como o trunfo do seu sistema não consegue ocultar a mentira do falso universalismo que ecoa por trás de suas posições de bomsenso Vemos claramente que a verdade da crítica do capitalismo à economia planificada do comunismo como não cobrindo um aspecto importante da psique humana no âmbito do econômico fundamentase sobre a mentira da universalização do seu ideal de consumo que significa por sua vez como podemos ver a total destruição da vida no planeta Terra É claro que este argumento não demove o liberal típico do seu otimismo para com o seu esquema Estamos na verdade tratando como quando tratamos dos 1024 É interessante notar essa manobra já no Leviatã de HOBBES conforme nota anterior Como vemos trata se ali de algumas linhas que Hobbes dedica ao tratamento sobre o movente do evento do que chamamos de presente dom sobre o qual passa rapidamente por cima reconhecendo seu caráter antitético ao seu pensamento Portanto este seu livro escrito versará sobre o método de contenção não de extinção da guerra de todos contra todos que permanecerá como uma espécie de idéia reguladora da concepção juridista do Estado liberal no âmbito mesmo da fundação da metafísica do pessimismo do indivíduo do liberalismo sempre cioso e ruminando a defesa de sua propriedade e a tomada da dos outros se sentirse livre da coação da lei 370 coletivismos de uma religião quer dizer de uma pseudoreligião E não nos surpreenderíamos se surgisse algum liberal propondo para salvar a pureza de sua doutrina a reforma de todo ecosistema como sendo o que realmente está errado Todavia a cada vez mais visível incompetência do liberalismo em tratar dos problemas que ele mesmo cria tem forçado atualmente a retórica liberal a se diluir estrategicamente em diversos matizes filosóficos mas que não conseguem ocultar uma mesma inspiração de fundo valorativa a sua consangüinidade à qual não obstante estão intimamente ligados No entanto este aspecto volitivo é passível de ser constatado já num autor fundacional como Thomas Hobbes sem dúvida um dos grandes colaboradores no delineamento dos inícios difusos da ideologia liberal como vimos em nota anterior1025 Como o personalismo se inscreve na fileira dos que querem participar e contribuir para o esclarecimento da verdade no âmbito do que nós poderíamos denominar o problema geral da verdade esta para o personalismo como um centro de apelo exige uma postura por parte dos que a buscam1026 que faça justiça a sua dignidade milenar ou seja como temos tentado expor ao seu sentido de construção de cooperação e de inacabamento que pode ser seguido e percebido ao longo da história da humanidade Mounier citando Péguy de quem adquiriu o gosto pela verdade no burilamento das pequenas verdades diz Nós não corremos atrás do inédito não corremos atrás do desconhecido não corremos atrás do extraordinário nós procuramos o justo e o conveniente Mas quando o bizarro é justo verdadeiro conveniente e harmonioso acolho o bizarro e eu mesmo o investigo e quando é o conhecido o banal que é justo verdadeiro conveniente e harmonioso eu acolho este banal de que não tinha saído à procura A paixão da verdade e a paixão da justiça se unem nele Péguy em uma mesma fidelidade da qual toda sua obra palpita Voluntariamente cego às exigências de partido e às obrigações de circunstâncias ele impõe aos Cahiers o seguinte programa Dizer a verdade toda verdade nada mais que a verdade dizer bestamente a verdade besta fastidiosamente a verdade fastidiosa tristemente a verdade triste Não procurar a paz de sua consciência na 1025 Todavia ver também LASKI op cit p 10 12 1026 A verdade para Mounier não se reduz à verdade da lógica à proposição ou ao conceito A verdade para o personalismo é uma adesão explícita e corajosamente afirmada e ao mesmo tempo amável e generosamente depositada sobre o altar do fogo purificador que sai dela mesma 371 abstenção do silêncio Quem não grita a verdade quando sabe a verdade se faz cúmplice dos mentirosos e falsários1027 Ora a maneira como o liberalismo vê a verdade se é que a vê está nos antípodas da compreensão personalista Para um certo liberalismo ao contrário ela a verdade não é o centro de apelo mas somente o ponto de vista relativo em constante evolução A via do espírito para ele é a de jamais se doar jamais concluir pois toda conclusão seria uma suspensão da inteligência Contanto que elas sejam sinceras todas as doutrinas são válidas quanto mais elas se misturarem mais neutralizam umas nas outras uma tentativa de dogmatizar O ecletismo desde então é a regra de colaboração que é a de não ter regra1028 Não devemos nos iludir Esta atitude do neoliberalismo que parece soar muito atual muito de vanguarda no sentido em que um certo relativismo fácil tem conquistado seu lugar e tocado um bom número de consciências como o único antídoto às chamadas grandes ideologias falidas lhe é possível porque já tem como pressuposto de que não abre mão em sua tirania sofisticada os seus valores estabelecidos socialmente como costume Assim seu desvio para o locus da abstração e a lógica sob e dentro da qual suas instituições permitem que se jogue o jogo de sua tagarelice A observação de Mounier quanto ao ecletismo do liberalismo vai nesse sentido ele consegue neutralizar num só golpe as verdades que se apresentam no jogo que ele permite ser jogado dentro de sua lógica interna previamente comprometida com sua metafísica do individualismo reivindicativo Assim o liberalismo desviriliza as verdades de seu apelo último que seguem no sentido da pessoa salvando a sua metafísica de fundo e tranqüilizando as consciências tranqüilas pelo sentimento de trabalho realizado pela pura tagarelice E perturbando as inquietas que ou por falta de opção ou por medo ou por covardia ou por vontade de instalação adornamse com ares de vanguarda na manutenção de um relativismo fácil e descomprometedor o qual julgam neutro e que para Mounier são formas outras de uma mesma intenção de justificação e instalação geral Para o diretor de Esprit O culto da verdade é o mais escrupuloso dos cultos Ela é preciosa em si porque é divina Só uma alma grosseira se satisfaz em distinguir as grandes verdades as verdades explosivas 1027 La Pensée de Charles Péguy Oeuvres I 1931 p 25 1028 Révolution p 212 372 gloriosas que querem a defesa da miúda bagatela negligenciável das pequenas verdades São as pequenas mentiras e as pequenas injustiças lentamente infiltradas que apodrecem um país e necessitam de uma revolução Nós não devemos manter uma preferência um gosto malsão pela verdade cirúrgica devemos pelo contrário tratar de escapar daí modestamente pela prática regular da verdade higiênica1029 Na se deve confundir personalismo e liberalismo Ou seja não se deve confundir o núcleo diretor do personalismo que é a pessoa núcleo não inventariável doador e aferidor do sentido possível com o ente de razão chamado indivíduo do liberalismo que tomado em suas manifestações particulares dentro do espaço que lhe é permito na lógica abrangente e retentora do liberalismo sempre acaba cativo e submisso à objetificação e subsunção taxionômica de si sob o sentido redutor da apreensão racional dos seus dados de exposição Sobre um campo menos estreito muitos tentam cobrir com o personalismo uma defesa do liberalismo Dos valores que ele afirma pessoa liberdade iniciativa os liberais fazem um bloco espiritual antimarxista onde as advertências pertinentes se misturam sem distinção a reflexos de defesa social Koestler é nos dias de hoje e até mesmo contra a sua vontade o ponto de união desta confusão Ela altera duplamente a inspiração personalista Por um lado ela negligencia todo o setor dos valores e das realidades coletivas Por outro ela fixa os valores postos por nós em evidência no sentido e no estatuto particulares que eles têm recebido na época liberal pois tentam fazer passar como absolutas estas formações transitórias A liberdade dos direitos do homem e do século XX este direito incondicional de ir e vir de falar de escrever de fazer o comércio de dinheiro e do Estado traduz a situação do liberalismo nascente no momento mesmo em que diante de um campo de expansão praticamente ilimitada ele falha em dar ao interesse privado o máximo de possibilidades1030 o tempo do mundo finito e pleno não permite hoje a mesma facilidade e a mesma anarquia de movimento a organização que ele evoca urgentemente entranha uma limitação fatal às liberdades tradicionais ligada ao liberalismo sua dominante a da liberdade é fortemente egocêntrica ela maltrata o movimento essencial de nossa humanidade que não é somente a preocupação da coexistência na limitação recíproca das fantasias mas colaboração devotamento 1029 La penser de Charles Péguy Oeuvres I p 25 Em nota MOUNIER coloca a referência da citação de Charles PÉGUY Personnalités III12 p 42 I 463 1030 As quais sempre prometeu 373 comunidade de destino sacrifício à ordem ou ao futuro comum De fato ela a dominante liberal da liberdade não tem enfim para uma ampla parte senão uma liberdade declarativa e formal que é recusada à grande maioria Assim pois o liberalismo tem podido a um momento da história contra a máquina esclerosada da monarquia decadente se identificar com o destino dos valores pessoais Todavia continuar hoje em dia a afirmar essa identificação no momento em que o liberalismo os compromete de maneira totalmente evidente é ligar a vida à morte Não se trata desde então de defender a liberdade caduca do liberalismo mas de dirigir a permanente vocação do ser humano à liberdade para um estatuto novo adaptado às condições que o século XX1031 lhe oferece estas novas situações são por outro lado enriquecedoras pois elas vão nos fazer reencontrar uma liberdade viva experimentada em um esforço de libertação antes que nas facilidades herdadas uma liberdade dramática conquistada e disputada contra suas próprias obras uma liberdade devotada onde o sentido do trabalho e da salvação em comum com os sacrifícios necessários do indivíduo à comunidade e das comodidades presentes aos dias seguintes melhores tomarão a frente da reivindicação egocêntrica e imediata1032 A relatividade relacionalidade1033 inerente à dialética para Mounier não implica a dissolução de toda verdade prática política mas um ajustamento mais preciso do espírito de rigor1034 Portanto o personalismo não poderia simplesmente aceitar sem mais as regras do jogo propostas por um modelo arqueado de velhice que é o do liberalismo e que ainda se sente o suprasumo da sofisticação política como neoliberalismo mas cuja inspiração se encontra no velho ceticismo grego e no ecletismo romano1035 Não O personalismo de Mounier não poderia simplesmente aceitar o lengalenga da abstração da mão invisível e da autoregulação do seu sistema propositalmente impessoal para a 1031 Se as coisas não mudaram muito e acredito que não creio que poderíamos estender mutatis mutandis o prazo para o nosso século XXI com a nova versão dominante chamada neoliberalismo 1032 Questce que le Personnalisme Oeuvres III 1947 p 238 1033 Aqui passim trataremos da noção de relativo e também da de absoluto a partir da reflexão do diretor de Esprit a qual será substituída pela noção de relacionalidade muito mais afim com a inspiração do seu personalismo 1034 Ver o que Mounier diz sobre a dialética marxista em Feu la chrétienté Oeuvres III pp 617 ss Já falamos sobre o método de Mounier cuja filosofia dialógica que propõe o seu personalismo não pode ser confundida com ecletismo porque o sentido do diálogo que inaugura sua filosofia está em ir além da mera concordância das verdades parciais Para isso ver MELCHIORRE Virgilio Il método di Mounier ed altri saggi Feltrinelli Editore Milano 1960 p 7 Sem subtrairse à escolha essencial buscava o além da conciliação ainda que com o risco de parecer um eclético ou de ser mal entendido pela parte diversa 1035 Obviamente naquela época incomparavelmente mais eróticos mais expressão de uma vida e não desse atual e decadente apêndice do intelectualismo moribundo que se chama neoliberalismo 374 manutenção do seu regime expressamente pessoal de irresponsabilidade Isso seria para Mounier a negação da sua principal inspiração a pessoa em sua dignidade concreta e em seu movimento de personalização Movimento cuja expressão pode ser entrevista na cultura quer dizer nas formas que a sociedade tem tomado pelo assunção livre dos valores de base que são em seu sentido próprio a expressão mesma da emergência da pessoa na história Emergência que por causa do estancamento deste seu elã natural de afirmação da vida a pessoa é um ser para a vida e não para a morte é obrigada a se tornar movimento de insurgência da pessoa na história1036 ou seja revolução E esta em relação à realização da experiência o personalismo de Emmanuel Mounier e de sua equipe em Esprit sente como sua vocação própria apelar ao ser humano contemporâneo que realize se é como diz Ricoeur que o personalismo deva então morrer para que volte a pessoa1037 Vemos assim o quanto o abstracionismo liberal mantém em sua gênese o encobrimento de uma situação real e latente de um estado de violência que para sua metafísica sempre pessimista em relação ao seu ente de razão abstrato denominado indivíduo depois de garantida a estabilidade de suas instituições e otimista em relação às suas abstratas leis naturais viciada no ponto de partida e contida em sua lógica comprometida com seus pseudovalores de morte é no plano da ação concreta por sua sutileza sofisticação e requinte como neoliberalismo uma das expressões teóricopráticas mais violentas contra a pessoa já cunhada na história Devemos pontuar que há um otimismo do liberalismo em relação ao indivíduo Este se dá em relação ao indivíduo como aquele que assina o Contrato Social ou seja o start do esquema social liberal Todavia logo depois desse gostinho de sujeito que o liberalismo permite que o seu indivíduo tenha ao assinar o Contrato o mesmo que a sua pseudo democracia parlamentar representativa concede ao seu indivíduo no dia do sufrágio ele o reduz a objeto no liberalismo o indivíduo começa como sujeito e termina como objeto1038 1036 Para Mounier o que para alguns é pleonasmo Ver Actes du Colloque tenu à UNESCO vol 2 op cit passim a revolução deve ser personalista e comunitária Para a noção de revolução personalista ver Révolution op cit passim 1037 RICOEUR op cit p 155162 Esta morte do personalismo já era desejada por Mounier Sua vontade era a de ter de deixar de falar o óbvio sobre a dignidade da pessoa humana e após séculos de fracasso da burguesia como mentora da história ver os ideais personalistas como formas comuns assimiladas na realidade da existência humana e assim não fosse mais obrigado a ficar retomando e enfatizando o óbvio 1038 Neste estudo procuro ressaltar sempre as diferenças entre a pessoa e o indivíduo do liberalismo filosofia da qual Kant é um dos seus maiores pensadores orgânicos Pois no liberalismo o indivíduo começa como sujeito e termina como objeto Todavia acrescento aqui uma precisão mas que ao longo do desenvolvimento 375 É nesse sentido que o personalismo de Mounier vai desconfiar de uma crítica à filosofia do sujeito que permaneça só no âmbito da gnosiologia sem ter um alcance na ética como uma meiacrítica um meio caminho O que não vai deixar de apontar a Mounier certos compromissos de fundo internos a essas mesmas supostas críticas com características fundamentais dessa filosofia do sujeito O mundo das relações objetivas e do determinismo o mundo da ciência positiva é por sua vez o mais impessoal o mais desumano e o mais distante que há da existência A pessoa não encontra aí lugar porque na perspectiva que esse mundo mantém da realidade ele não tem em nenhuma conta uma nova dimensão que a pessoa introduz no mundo a liberdade Nós falamos aqui da liberdade espiritual É necessário distinguila cuidadosamente da liberdade do liberalismo burguês1039 Como nota Candide Moix Há estados violentos como há atos violentos Mas como os primeiros são menos visíveis nem todos têm a consciência da sua existência1040 A propósito escreve Mounier Há pessoas que têm e pessoas que não têm consciência de que vivemos num mundo amplamente bárbaro quase todos malentendidos vêm daí1041 A preocupação do liberalismo com o que chama de ordem o leva facilmente à utilização da força do poder de polícia do Estado para a contenção do que ele rotula previamente porque resistente e fora da sua ordem como desordem social Este poder de polícia para o liberalismo dominante diferentemente de outras atribuições que ele considera extrapolativas no seu Estado não deve ser reduzido em função da manutenção do texto da dissertação creio que se esclareça a precisão de que no liberalismo o tema do sujeito é só um álibi pois o seu verdadeiro tema não se dá em linha com o da instauração do sujeito da modernidade como se costuma dizer em história da filosofia mas em linha com um álibi para a sua melhor objetificação Portanto após o seu alardeado racionalismo sua objetividade sua neutralidade etc o liberalismo se mostra como uma filosofia marcada antes de tudo pela volição filosofia da vontade de objetificação Todavia seguindo a indisposição e repugno personalista em relação ao início ab ovo e ao chamado ser de exceção não podemos deixar de notar que este ardil da modernidade já se encontra em Descartes Do que Mounier acusa Descartes como já vimos de ter sido condescendente com essa unilateralização do seu pensamento numa espécie de responsabilidade moral levada a cabo pelo racionalismo posterior no e do qual o liberalismo recebe sua seiva de vida Então problematizando um pouco a interpretação vigente em história da filosofia concluímos que o tema ou melhor a vontade realmente dominante da filosofia moderna não está para com o sujeito mas para com o objeto A filosofia moderna é antes de tudo uma vontade frente aos seus objetos Isso a torna do ponto de vista da ética personalista inusitadamente e contra todas as expectativas uma filosofia do objeto Por outro lado o personalismo é clara e declaradamente uma vontade para com o ser humano um combate por sua renovação Cf a nota introdutória do Traité du craractèr Ouvres II 1039 Manifeste op cit p 523 A liberdade espiritual pode ser denominada a partir do personalismo de Mounier como liberdade axiológica pois esta é inerente à pessoa como valor já que a inerência é a grande característica da analiticidade da pessoa 1040 MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Paz e Terra Rio de janeiro 1968 p 62 s 1041 Citado por Candide MOIX op et loc cit Esprit n 4 janeiro 1933 p 666 Crônica do mundo bárbaro 376 de sua ordem em nada O Estado liberal na verdade deve manter o poder da utilização da força até como sua atribuição mais fundamental1042 O reflexo do liberal diante do perigo é fazer o fascismo1043 A chamada ordem oculta um dado mais fundamental Há mais estados violentos do que eventos violentos Um velho hábito da tranqüilidade burguesa nos faz crer na ordem cada vez que o repouso se estabelece A questão é saber se o mundo não é antes feito de tal sorte que o repouso aí seja sempre uma desordem1044 A percepção da existência e diferença necessária entre estados de violência e eventos violentos por parte de Mounier como sendo o primeiro o mais profundo nos remete a uma crítica fundamental ao 1 estado de direito inaugurado no século XVII pelos contratualistas mas também 2 ao modo como se mantém hoje em dia Quanto a 1 uma crítica assim consideraria o caráter axiológico e estruturalmente violento do estado moderno cuja fundação se trataria justamente de uma declaração que oculta a intenção da manutenção de um estado de violência em nome da contenção de eventos violentos Na base desta atitude tomada na mais tranqüila das cauterizações de consciência jamais vista na história humana1045 pois se encontra sempre psicológica e previamente justificada em seus motivos está a manutenção da ordem liberal pela qual todos os esforços são poucos Tudo isso para na verdade subsumir tudo indivíduo sociedade ética religião política arte literatura filosofia etc e sempre dentro de sua lógica interna à defesa da sua filha predileta Alfa e Ômega das suas inspirações e dos seus sonhos a verdadeira menina dos seus olhos a propriedade Quando se vê essas pessoas tanto mais apaixonadamente defender o direito de propriedade e se tornarem professoras de virtude pela defesa de seus interesses é que elas têm menos preocupação das realidades e dos deveres da posse grifo nosso No mesmo momento elas nos oferecem o paradoxo 1042 Salvo outras informações que desconhecemos não nos recordamos dos USA segundo berço do liberalismo com todo seu discurso democrático terem sido tão severos e pertinentes como foram em sua luta contra o comunismo em relação aos regimes autoritários da América latina Não será também por causa de afinidades profundas entre os regimes Ou como diz Mounier querela de família 1043 ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains Gallimard 1972 p 15 1044 Révolution op cit p 138 1045 Além da chamada globalização como sinônimo também de universalização do espírito e da sensibilidade liberal no trato das coisas no mundo da economia e da vida com sua vontade de completar o que o plano Marshal inciou ou seja a ideologia do estodounidencismo o norte americanismo do mundo é por outro lado o sonho de conquista de unanimidade acalentado por todas as chamadas utopias coletivistas cujo jogo no campo da dominação do poder não tem sido tão sutil como o realizado pelo neoliberalismo Ver MOUNIER Le pact atlantique de maio de 1949 escrito com a colaboração política de Paul Fraisse e JeanMarie Domenach in Les certitudes dificiles Oeuvres IV coletânea de textos de 1933 a 1950 p 217 377 de ver um direito de uso reivindicado por aqueles mesmos que são incapazes ou se tornam indignos do uso1046 Vemos então que o liberalismo confunde propositalmente sua ordem democrática como sendo a última palavra em ordem políticosocial humana E é só por causa dele encontrar um costume social preestabelecido que toma essa confusão interesseira como natural que ele pode por sua vez tratar tranqüilamente todos os eventos sociais sob o manto do natural e daí do científico da sua ciência Para o personalismo de Mounier essa situação se apresenta muito claramente pois a pessoa nunca coincidirá com o lugar que o liberalismo deixa ao indivíduo e nem suas aspirações por vida comunitária coincidirão com o projeto de democracia liberal Se estas noções a de pessoa e sociedade não são definíveis para o personalismo in perpetuum no entanto elas manterão sempre o seu lugar de princípio normativo e de inteligibilidade em seu estatuto real fundador Tratase para o personalismo à instalação liberal de revolução permanente motivada por um ultrapassamento real baseado em um movimento de transcendimento real e não do tipo patinar na esteira aeróbica1047 Contrapondose à pseudoordem liberal burguesa Mounier vai utilizar a expressão desordemestabelecida E em relação à propriedade Mounier vai ampliar e antepor ao uso interesseiro do liberalismo como vimos que faz dela algo como pertencente somente ao âmbito da técnica questão de técnicos o problema do seu uso moral Assim se entremesclam no problema da propriedade um problema técnico da gestão e um problema moral do uso1048 Como é típico do pensamento liberal dividir e separar o ser com base no princípio da conveniência pragmatismo utilitarismo imediatismo etc cujo contraste gritante com seus princípios de rigor racionalistas não é suficiente para impedir essa sua impostura eis aqui o princípio volitivo quer dizer de mávontade que está na base do seu suposto racionalismo da clareza e da distinção sempre maquiado de bomsenso o problema técnico vai ser mantido interesseiramente pelo liberalismo como para sempre uma questão independente da moral 1046 Révolution op cit p 431 1047 Para uma outra crítica personalista ver René HABACHI BORNE Étienne Les Nouveaux Inquisiteurs Paris Le pohilosophie 1983 pp 172 ss in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 pp 22 ss 1048 De la Proprieté Capitaliste a la Proprieté Humaine Oeuvres I 1934 p 446 378 Mas isso não é novo já é claramente percebido no seu maior expoente John Locke Enquanto em seus Dois tratados sobre o governo1049 Locke se preocupa com a fundamentação da sociedade contratual individualista a moral se depreende em caráter a posteriori da constituição tanto de sua epistemologia empirista1050 que nos apresenta já a visão essencialmente instrumental da razão1051 quanto do que decorre das noções de liberdade e igualdade que na constituição do seu Contrato Social aparecem totalmente comprometidas e dependentes da visão juridista que fundamenta a sua visão social Nela a liberdade é a que é concedida pela lei liberdade diante da Lei e a igualdade é uma atribuição uma dotação extrínseca à pessoa ligada à condição do indivíduo social do contrato que deve ficar feliz por desfrutar desta igualdade concedida segundo a retórica liberal e não daquela insegura mantida no estado de natureza Todavia para o personalismo será esta liberdade insegura mantida pelo liberalismo como pertencente aos tempos idos do estado de natureza que na verdade fora da mentira da retórica liberal constituirá a verdadeira idéia reguladora da ideologia social liberal A essa hiperbólica da insegurança o liberalismo vai propor pelo seu bomsenso de costume a que a sociedade opte pela menos hiperbólica possível que digase de passagem é justamente a que se confunde com o seu esquema Como o que importa na verdade depois de comprovado o estado de graça da consecução da sociedade contratual é a manutenção da ordem coroada desde então e de maneira sempre positiva como legal pois é ela que garante a posse e o usufruto da propriedade assim como a idéia reguladora será aquela do estado de natureza latente quer dizer a guerra de todos contra todos esta da propriedade será definitivamente o verdadeiro movente o verdadeiro start da vida social segundo Locke1052 Nesse sentido 1049 LOCKE John O segundo ensaio sobre o governo um ensaio referente à verdadeira origem extensão e objetivo do governo civil pp 777 ss in Dois tratados sobre o governo Martins Fontes São Paulo 1998 passim 1050 Great Books of the Western World Nº 35 LOCKE John An Essay Concerning Human Understanding Willian Benton Publisher ENCYCLOPÆDIA BRITANICA INC 1978 Em Português pela Coleção Os Pensadores LOCKE John Ensaio Acerca do Entendimento Humano Abril Cultural São Paulo Iº edição 1973 1051 Percebemos isso logo nas primeiras linhas do An Essay op cit IV 17 1052 Se tivesse que citar passagens de os Dois tratados que corroboram esta minha afirmação teria de citar praticamente o livro todo Para isso remeto à leitura para quem tiver paciência dos Dois tratados onde o leitmotiv da salvaguarda e usufruto da propriedade é uma constante Todavia no Segundo tratado op cit p 495 124 diz Locke O fim maior e principal para os homens uniremse em sociedades políticas e submeteremse a um governo é portanto a conservação da propriedade Reduzir um ato tão fundamental e 379 tanto a liberdade quanto a igualdade sempre a posteriori serão a partir de então mais explicitamente neste momento fundante em Locke1053 e mais camufladamente no neoliberalismo atual ditadas segundo as atribuições que os únicos capacitados para tal os proprietários se disporem a conferirlhes pelo poder abstrato de um meio que o liberalismo moderno transformou em fim o dinheiro O liberalismo pretende fundamentarse na satisfação das necessidades De fato ele deixa geralmente a estimativa destas ao acaso regulase muito menos pelas necessidades reais do que de acordo com a sua expressão monetária que as falseia e de modo algum se integra a respeito do volume ocupado pelas necessidades econômicas no conjunto das necessidades humanas1054 Aos complexo da existência espiritual da pessoa em sua dimensão coletiva comunitária à conservação da propriedade é uma redução que o Ocidente aceitou e da qual estamos ainda muito longe de medir o alcance destrutivo mas cujo preço está se mostrando cada vez mais caro 1053 Sós os proprietários os que detêm a posse do verdadeiro movente social são cidadãos integrais podem exercer sufrágio A noção de povo é apenas expediente retórico em Dois tratados Serve para justificar como um ser celerado surge do caos fora da organização racional liberal por necessidade de revolução quer dizer de reposição das coisas conforme a cartilha do liberalismo lockeano quando não mais houver juiz sobre a terra op cit p 535 Quer dizer quando o esquema juridista da legalidade liberal de fundamentação da sua sociedade dos proprietários gerar o seu filho rebelde o tirano Locke obviamente não pensa assim Para ele o povo que poderíamos chamar de multidão é o espelho coletivo desordenado com o qual o tirano vai ter de se deparar Na verdade a corrupção coletiva do governo tirânico que Locke concede que possa se dar nas mãos de alguns tirania do legislativo loc cit ainda é motivo para que se retorne a sua democracia dos proprietários cujo número realmente será maior do que o dos componentes do legislativo tirânico Esse fator numérico da democracia dos proprietários para Locke não justifica que se o denomine de tirânico como se pode fazêlo em relação ao pequeno número do legislativo tirânico A defesa da propriedade sendo o critério racional da fundamentação da vida social quer dizer da natureza mesma mais íntima dela encontra sua elucidação cabal na teoria lockeana que portanto não obstante a subsunção de todo complexo da existência coletiva que ela realiza ao dado único da defesa da propriedade por ser racional quer dizer da natureza é a unidade legítima sobre a qual o vínculo social pode se estabelecer Podemos dizer então que o povo para Locke tem esse papel específico de espelho coletivo do tirano este sob sua forma unitária ou plural e não de suas teorias A entrada em cena dos proprietários os verdadeiros cidadãos implica para Locke a negação do tirano e do povo que saem de cena tanto um quanto o outro E assim prosseguirá o otimismo liberal da teoria e pessimismo visceral em relação à pessoa criadora e o povo 1054 Manifeste op cit p 592 Desde o primeiro número de Esprit em 1932 o economista personalista André Ulmann participou ativa e assiduamente na elaboração de um pensamento e projeto econômico de inspiração personalista o qual Mounier define como economia pluralista e descentralizada até à pessoa As noções atuais de economia solidária e de formação de cooperativas se enquadram dentro da perspectiva econômica personalista que por sua vez nutrese da inspiração prodhouniana Alguns dos principais artigos de André ULMANN lançados em Esprit são La vocation de léconomie novembro de 1932 que é a de estar a serviço do ser humano e não o contrário e em abirl de 1933 ele apresenta nessa mesma perspectiva uma Declaration des droits de lhomme économique ao se tornar rapidamente secretário da revista Esprit tornase animador de um grupo crítico da situação econômicosocial e participa do número especial Largent misère du riche misère du pauvre janeiro de 1936 com um longo estudo crítico sobre a Lémigration problème révolutionnaire Na coleção Esprit é devido a ele o lançamento do segundo livro depois do de Mounier Rèvolution personnnalista et communautaire que se intula Police le 4ª pouvoir Paris AubierMontaigne 1935 Cf MOUNIER Paulette resenha do livro André Ulmann ou le Juste Combat Paris Sté des Ed Internationales 1982 de Michel GOILDSCHMIDT et Suzanne TENANDULMANN in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 octobre 1983 p 18 380 olhos de Mounier três são as obras próprias do dinheiro o rico o pequeno burguês e o miserável1055 Quanto a 2 um exemplo recente ligado à mídia brasileira pode nos ajudar a lançar alguma luz A percepção da existência e diferença necessária entre estados de violência e eventos violentos distinção fundamental que Emmanuel Mounier propõe colocaria em questão a suposta neutralidade dos meios de comunicação de se manterem como tais quanto à qualquer tipo de relação direta entre a geração de violência na sociedade e suas veiculações Isso notadamente em países do terceiro mundo como o Brasil por parte da televisão Em relação a isso estudos quantitativos atuais tomados como última palavra em seu caráter sociológico estatístico científico apresentam o que definem como impossibilidade de se estabelecer uma relação direta Mas e uma remota de causalidade entre a violência social e a veiculação televisa que se possa apontar como tal1056 Ora esta tese que se ressente de toda ontologia liberal que vê a realidade como esfacelada dividida e estanque em seu ser e funcionamento o que privilegia o estabelecimento de um tipo de casualidade científica que convenientemente a torna melhor para o exercício do seu domínio como vimos e que não consegue colocar as coisas sob o ponto de vista da relação é por outro lado contestada pela própria produção televisa que em suas ações crê e age exatamente motivada por uma crença contrária a destas pesquisas científicas E não só ela os seus anunciantes e o Estado crêem também da 1055 Révolution op cit p 238 1056 Essa é a posição apresentada em entrevista de televisão pelo Diretor do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo Dr Sérgio Adorno O Dr Sérgio Adorno em uma outra entrevista que consta no blog abaixo citado diz o seguinte quanto à relação entre pobreza e violência existe uma corelação estatística entre más condições de infraestrutura urbana população pobre e vítimas preferenciais da violência a pobreza e a desigualdade não explicam o crime o crime está disseminado por toda a sociedade Mas elas explicam provavelmente a maior incidência da criminalização e da punição sobre os mais pobres Quais são os pressupostos que estão na base desta interpretação de dados meramente quantitativos Dividese para dominar generalizase para ocultar Vemos o sociologismo fechando o cerco O neokantismo de fundo desta perspectiva fica também evidente quando o professor Sérgio pede para que se analise uma questão como a do abordo por exemplo de maneira menos apaixonada Mas ele diz que se houver a paixão esta não deixará de ter alcance público Sem dúvida essa concessão inevitável à paixão no âmbito da democracia liberal se dá porque a sua discussão possível se fundamentará sobre um conteúdo gnosiológico legal a priori aceito como fundamento bastante onipotente Será dentro dos limites da lógica interna deste seu conteúdo legal noético que o neokantismo permitirá o desenrolar da discussão Não obstante o reconhecimento que há por trás também destas afirmações de que não se deve estigmatizar o pobre como criminoso todavia essa boa intenção acaba servindo ao conservantismo social Enfim em tudo isso o capitalismo e os seus pares a sociedade hipócrita injusta naquilo em que poderiam ser responsabilizados saem incólumes e com os louros ainda de uma plena justificação através de um discurso denominado científico httpblogzequinhabarretoorgbr20080721entrevistacomsrgioadornorevistaesesc 381 mesma forma que ela para todos estes a televisão tem o poder de orientar senão ainda absolutamente eis o sonho de todo tirano ao menos na quantia exata que numa sociedade acostumada a validar ao modo liberal as coisas e os eventos pelo cômputo gere a opinião majoritária É em nome dessa crença comum que as redes de televisão geram os seus lucros enormes em quantia de dinheiro que os anunciantes que pagam embutem com a total aprovação e leniência governamental que também participa do bolo nas mercadorias veiculadas fechando assim o círculo do complô dos famintos por dinheiro em total detrimento do verdadeiro sentido humano do consumo social Sociedade da qual vivem como parasitas existindo como corpos estranhos ao organismo social Segundo a perspectiva personalista essa situação ontológica mantida por estes setores situação que desregula todo sentido do social em função de sua ganância por dinheiro torna o organismo social despossuído de suas prerrogativas e fora do sentido do seu verdadeiro destino doente cujo mau os mesmos que a parasitam alimentam e fazem a manutenção sem todavia deixar com que o corpo social expire de vez Eis a definição da política neoliberal Um outro exemplo recente Exatamente no mês de outubro de 2008 em que o reconhecimento público da crise financeira mundial atual foi divulgado os bancos brasileiros ficaram em greve Bem entendido bancos estatais e privados com a única ressalva de uma liminar cedida alguns dias após a declaração da greve ao banco privado Bradesco de característica popular correntista Esta greve que sem dúvida tinha suas justificativas coincidindo com o momento da divulgação pública da crise financeira mundial não deixa de dar motivo para que se veja aí um certo apoio na possibilidade de se evitar um colapso do sistema bancário brasileiro por parte dos investidores que como em vários países europeus com o anúncio da crise financeira mundial correriam às agências para sacar seu dinheiro e guardálo em casa Se essa observação fizer algum sentido pois reconhecemos que é apenas uma conjectura então desta vez a televisão a mídia mais popular e acessível no Brasil se fortaleceu em mais uma de suas crenças a respeito de si mesma Destas vez marcada por um importante papel de desinformação no tratamento modesto na cobertura deste evento em vista do que uma greve destas proporções geraria de tagarelice jornalista diária em situação normal serviu como uma espécie de silêncio parmenediano em relação ao nãoser não se pode falar a respeito do que não é Eis que um grande poder proporcional e paralelo ao que a mídia já se reconhecia como detentora o de 382 dizer o que é se descortina poder de não dizer o que não é ou ao menos do que não tem importância do que é insignificante Para confirmar ainda mais esse fenômeno durante o apagão ocorrido nos dois últimos anos do governo Fernando Henrique Cardoso 2001 e 2002 foi impressionante ver as redes de televisão brasileiras orquestradas numa preocupação e empenho em desenvolver na população brasileira o censo de economia de energia elétrica Para isso orientavase o telespectador a trocar de modelos de lâmpada de diminuir o uso de eletrodomésticos de desligar determinados eletrodomésticos etc enquanto sobre o uso do aparelho de televisão cujo uso nas casas brasileiras costuma ser o de mais longa duração nem sequer cogitavase Assim confirmase a nossa suspeita no Brasil o que a televisão não diz não é não tem densidade ontológica Emmanuel Mounier não obstante reconhece uma dimensão autêntica no uso da violência que se dá no limite entre a compreensão do sentido da força ou estado de força e a agressividade Para isso e para a frustração dos pacifistas a todo custo Mounier cita algumas vezes uma palavra do grande pacifista Gandhi Ali onde não há escolha entre a covardia e a violência eu aconselho a violência Eu cultivo a coragem tranqüila de morrer sem matar Mas quem não tem esta coragem eu desejo que ele cultive a arte de matar e de ser morto antes que fugir vergonhosamente do perigo Eu arriscaria mil vezes a violência à emasculação de toda uma raça1057 Essa distinção é necessária por causa da confusão que o liberalismo faz entre sua pseudoordem social como estado de paz Para Mounier o estado de paz é um estado de força e não de fraqueza A nãoviolência não é um estado de tranqüilidade que se alcança aquém da violência ela é um estado de domínio e de tensão sempre instável sempre ameaçado que se conquista indose além da violência Só aquele que é capaz de violência e no domínio de refrear a marcha de sua violência é capaz da nãoviolência A espiritualidade não é esquivar o instinto ou se encontrar desnudo é ultrapassálo Não é permitido falar de triunfo a não ser se a resistência tenha sido atravessada Os desmaios os sonhos azuis e as delicadezas lacrimejantes das almas sensíveis são ainda o instinto um outro instinto um outro entrelaçamento mais amável que aquela dos coléricos e dos violentos mas também elementar em tudo mantém também a grosseria A espiritualidade pois bem não Não é salvar as boasmaneiras1058 1057 Révolution op cit p 308 1058 Révolution op cit p 317 383 Num estudo de 19391059 sobre o problema da paz estudo precedido de uma introdução que leva o título Munich signe de contradidictions que apareceu nessa época com o título Pacifistes ou Bellicistes em Paris nas Éditions du Cerf Mounier juntamente com sua equipe em Esprit preocupado com o rumo para o qual os eventos se orientavam escreve que o aspecto essencial da paz cristã é a transfiguração da força eu reencontrei em um aspecto essencial da paz cristã uma transfiguração da força não mais violência agressiva mas vigor aplicado ofensivo aventureiro generoso1060 E partindo da apropriação que a teologia cristã fez de uma intuição aristotélica fundamental quanto à interpenetração das virtudes diz A força espiritual foi integrada ao elenco das virtudes cristãs e a teologia retomou essa profunda intuição aristotélica sobre a interpenetração das virtudes em um tipo de corpus em que nenhuma é isolável sem que ela se desvie ou perda o sabor força prudência temperança e justiça conservamse organicamente e todas em conjunto são subordinadas do interior à Caridade isto quer dizer que a força virtude cai à deriva se ela se isolar desse aparelho espiritual mas que também ela o penetra e o caracteriza em seu todo Ela não tem sua medida em si mesma mas nos valores aos quais ela serve ela leva consigo nesse serviço seu andar próprio um fervor de absoluto uma energia espiritual uma audácia e na provação uma firmeza que são a tensão mesma da esperança Ela também não produz como a força brutal a acrimônia o constrangimento a humilhação mas um tipo de ternura viril Suaviter et fortiter brandura e firmeza as duas palavras estão indissoluvelmente ligadas na descrição dos tratos divinos elas o são nas virtudes cristãs que como a Sabedoria golpeiam tudo com força de um extremo ao outro do mundo e dispõe tudo com doçura1061 Isso praticamente é retomado com Montherlant Fazer uma paz que tenha a grandeza de alma da guerra Reconduzir na paz as virtudes da guerra1062 Não fazer das associações para a paz um hospital para impotentes uma clínica dos sentimentos efeminados E desconsiderando totalmente a guerra moderna 1059 Intitulado em Oeuvres I Les chrétiens devant le problème de la paix 1060 Les chrétiens devant le problème de la paix Oeuvres I p 800 1061 Sabedoria 81 Referência em nota por Emmanuel MOUNIER loc cit 1062 Não se deve confundir como veremos adiante essa virtude da guerra uma condição inerentemente intrínseca ao ser quer dizer ao devir com o estado de agressão epidérmica de fricção de guerra de todos contra todos pelo qual o liberalismo sob o signo de sua ontologia da fragmentação quer justificar sua paz de superfície e manter sua pseudoordem Essa virtude da guerra cara já aos cristãos primitivos que chamavam Heráclito que teve a sua intuição fundamental de o cristão antes de Cristo é algo cuja profundidade axiológica permanece fora do foco do racionalismo contratualista interesseiro Ver INGE Willian Ralph The Christian Mysticism op cit p 47 384 que não é mais heróica mas velhaca mecânica desumana mentirosa e que penetra sua infecção na paz que a entorna restituir nessa paz as virtudes viris o sentido do sacrifício a força de ultrapassamento que se atribui à guerra Persuadir os espíritos e seduzir os corpos a admitir por meio de disciplinas convergentes essa verdade primeira de nosso pacifismo a paz não é um estado fraco ela é o estado forte que requer de nós o máximo de despojamento de esforço e de risco para aí manter o heroísmo de nossa vocação cristã1063 Este texto dirigido ao cristãos pela citação anterior de Gandhi que se ncontra em outro lugar e que corrobora com a concepção de paz e de força de Mounier não deve nos enganar então sobre sobre o seu alcance supra confessional religioso Para o diretor de Esprit as diferenças na superfície não conseguem encobrir o parentesco de consangüinidade entre as ideologias todas se apresentando para o personalismo como um adiamento da pessoa se encontrarão de alguma maneira e em algum momento nesta inspiração negadora comum de fundo1064 Como dissemos para o personalismo o modo de ser relacional comanda o ser da finitude e a única forma de fazer valer realmente a finitude com todas as suas atribuições possíveis enquanto expressão do ser que é para o personalismo superabundância é a locação da pessoa no seu devido lugar fundante Mounier está entre os que melhor pressentiram e identificaram as raízes metafísicas de uma lógica do inumano na qual se comunicam o pequeno um do individualismo e seu irmão inimigo o grande Um do totalitarismo comunista e fascista1065 Como exemplo da compreensão de Emmnauel Mounier dessa comunidade de inspirção axiológica lemos Paralelamente a sua afirmação antiintelectualista o fascismo é uma reação antiindividulista Aqui ainda nós não poderíamos senão nos felicitar pela reação se em sua rejeição ao individualismo ela não comprometesse ao mesmo tempo as garantias inalienáveis da pessoa humana e querendo restaurar a comunidade social a estabelecesse sobre a opressão Quando eles fascismo e nazismo demonstram que o EstadoNação é a única fração da espécie que seja organizada para alcançar os objetivos da 1063 Les chrétiens devant le problème de la paix Oeuvres I p 801 1064 Mounier entende o comunismo como sendo o filho bastardo do capitalismo e toda discussão entre capitalismo e comunismo como se tratando de querela de família Ver Révolution op cit p 270 1065 CF GOFF Jacques le resenha sobre o livro La cite personnaliste dEmmnauel Mounier Presses Universitaires de Nacy 1983 de MarieThérèse COLLOTGUYER in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 octobre 1983 p 20 385 espécie Rocco é sobre a biologia social não sobre a pessoa que eles associam sua doutrina Quando eles se aferram a mostrar que aquele é a necessidade espiritual central do indivíduo Panunzui a expressão completa do devir do espírito a síntese do universal e do individual e que assim ele encerra em si as razões do nosso direito quanto do nosso dever as razões da extensão de nossa individualidade quanto de seus limites Giuliano na há mais dúvida sobre a ontologia antipersonalista que anima o sistema Na linguagem de Mussolini e de muitos de seus comentadores não se deve somente declarar um rigoroso estatismo jurídico é um verdadeiro panteísmo religioso no sentido mais estrito o que inspira sua fórmulas O estado me é mais interior a mim mesmo que eu mesmo a verdadeira liberdade é adesão e fusão total em sua vontade que engloba e anima minha vontade o fim do indivíduo é sua destinação ao Estado como o fim da pessoa para o cristão é a identificação aqui sobrenatural e elevadora da pessoa a Deus O individualismo nietzschiano que se afirma em certas palavras de M Mussolini a complacência do fascismo novato para com o liberalismo econômico não deve deixar ilusões O antipersonalismo do fascismo italiano é radical O indivíduo vive na Nação pois ele é um elemento infinitesimal e passageiro e aos fins da qual ele deve se considerar como o órgão e o instrumento Gino Arias Não somente negligenciável a pessoa é o inimigo o mal É aqui que joga o profundo pessimismo sobre o ser humano que está na base dos fascismos como de todas as doutrinas totalitárias depois de Maquiavel e Hobbes o indivíduo tende inevitavelmente ao atomismo e ao egoísmo quer dizer ao estado de guerra à insegurança e à desordem Só o artifício da razão engrenado sobre uma hábil mecânica das paixões dirão os latinos ou só a afirmação incondicional da força pública dirão os germânicos podem engendrar a ordem civil que constrange o mal e organiza o caos E para o constranger bem longe de um mínimo de governo segundo a exigência liberal inspirada no otimismo rousseauniano é um máximo de governo que é necessário ao indivíduo1066 Esta ordem civil é indiscutível porque só ela é humana e espiritual Ela é 1066 Vemos como a adoção do individualismo é congênere consubstancial a alguma forma de totalitarismo Afinal o indivíduo elemento fundante e joguete da lógica interna da sociedade moderna como ente de razão que é pode hipostasiarse num outro ente de razão que é o Estado como o Grande Indivíduo que por sua vez pode rehipostasiarse na figura concreta do tirano detentor de sua representação universal A comunidade de inspiração na negação da pessoa único concreto para o personalismo é o que propicia a circulação e a permuta destes conceitos É por isso que para o personalismo a questão do rigor não se circunscreve somente ao uso correto de uma palavra mas tem que ir adiante tocando na questão mais profunda do esclarecimento dos verdadeiros ou pseudovalores que o motivam 386 mesmo divina pois o Estado na literatura fascista se afirma muitas vezes como uma Igreja mais que uma Igreja pois não reconhece nenhuma realidade às pessoas e aos grupos intermediários senão em sua própria substância1067 É incrível como neste texto de 1936 estas observações de Mounier sobre o regime totalitário fascista corroboram em sua essência mutatis mutandis levando em consideração algumas especificidades que não alteram o essencial ao que temos dito até aqui sobre o liberalismo A possibilidade de promiscuidade conceitual que deixa Mounier atento à vontade de redução destas expressões denunciadoras a uma preocupação obsessiva por rigorismo verbal o qual tende a falsear os comprometimentos axiológicos de fundo seus verdadeiros moventes aparece no texto em dois momentos dos quais queremos fazer menção pois cremos que corroborarão com que estamos tentando dizer O primeiro diz respeito ao mínimo de governo segundo a exigência liberal Já falamos que para o liberalismo em vista da manutenção do que ele chama ordem sempre apresentada como justificada em si mesma não deve haver mínimo no uso da força por parte do Estado Ao contrário do que ele espera quanto à intromissão do Estado na regulação da economia salvo no caso de que este tenha de realizar a divisão ou seja o comunismo ou socialismo dos prejuízos Tanto uma quanto outra devem funcionar para o liberalismo sob o ditame de sua conveniência O liberalismo fenômeno complexo e difuso teve um início heróico em que se valeu de inspirações profundas ligadas à emancipação da pessoa liberdade Se não fosse assim não encontraria correspondência alguma nos movimentos de transformação social que tornaram possível seu estabelecimento como ideologia reinante1068 Nesse sentido toda demonização e ao mesmo tempo toda angelização em outras palavras toda querela de família entre estes sistemas ideológicos irmãos tende a ser uma verdade sobre a mentira do outro encoberta pelo véu da mentira da verdade de quem critica Eis a regra de um jogo que Mounier não quer jogar Para Mounier é necessário desvencilhar a liberdade do liberalismo enquanto o único portador de sua reivindicação legítima A liberdade nos foi dada juntamente com todo o aparelho do mundo liberal ocidental Ela está ligada em nosso 1067 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I p 503 s 1068 Esse início heróico e suas decadências são bem apresentadas por LASKI Harold J op cit passim 387 espírito e em nossos costumes1069 a todo um conjunto de realidades e de hábitos que estão a um passo de nos mostrar seu esgotamento e seu anacronismo Nossa liberdade ocidental é muito fraca muito indiferente muito recuada Ela só é sentida na abstenção na recusa ou na provocação para o combate Não há para tanto no coração mesmo da liberdade uma necessidade de se dar mais do que si mesmo de assumir outra coisa que a si mesmo de colaborar Ela é invocação tanto mais que provocação é essa verdade de fundo que tem sempre oposto os teólogos cristãos ao liberalismo e que se deve ler na transparência de tantas críticas reacionárias De um outro lado hoje em dia a Rússia o Oriente nos fornece sobre as relações do homem com sua liberdade uma linguagem às vezes estranha e nova aos nossos ouvidos Ela nos choca mas pode contribuir para nos livrar da prisão invisível de nossas liberdades estreitas ardentes e estéreis Não nos apressemos em recusar em anatematizar não sejamos conservadores inquietos com uma força tão revolucionária Entretanto não se pode ler sem emoção a última literatura liberal Ela defende o que não é mais defensável com um acanhamento evidente ou uma cegueira impressionante Mas sob essa confusão frêmita a exaltação de uma grande e inquieta fidelidade à imagem inalienável do homem É necessário lançar as más razões e manter a exaltação Isto é o que chamamos de libertar a liberdade dos liberais1070 grifo nosso O segundo momento da penúltima citação é o que complementa o anterior segundo a exigência liberal inspirada no otimismo rousseauniano O otimismo rousseauniano é para com o homem em estado de natureza1071 e não para com o homem em estado civil Rousseau aceita a concepção individualista mas quer distinguir o originário do 1069 Aqui fica claro que o projeto de Mounier está ligado ao reconhecimento do papel fundamental do costume como elemento constante a ser relevado em toda reflexão crítica e não como quer o racionalismo os desejos 1070 Questce que le Personnalisme Oeuvres III 1947 221 1071 Reafirmo novamente minha dificuldade em entender a manutenção da expressão ser humano no composto paradoxal rousseauniano de ser humano selvagem e ainda em relação a um ser que encontrava unicamente no instinto todo o necessário para viver no estado de natureza Cf Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre s homens vol 2 Os Pensadores Editora Nova Cultural São Paulo 1999 p 75 A situação fica ainda mais confusa quando Rousseau diz em Última resposta a Sr Bordes referente ao Discurso sobre o restabelecimento das ciências de das artes vol 2 Os Pensadores Editora Nova Cultural São Paulo 1999 p 278 s Em verdade tais como peço que sejam assemelharseão bastante aos animais e tais como são assemelharseão bastante aos homens Em nada vejo esclarecer o remetimento de Rousseau à zoologia para que resolva o caso dos orangotangos Cf Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade op cit p 134 s Para o personalismo não obstante sua recusa em substancializar em definir a essência do ser do ser humano como razão como quer o racionalismo todavia a razão que é a lógica da personalidade integral segundo o personalismo faz parte da essência do que se constitui como ser humano e que implica o juízo e logo a superação do nível meramente instintivo Portanto segundo a perspectiva do personalismo a expressão ser humano selvagem com base nas condições hipotéticas de um estado de natureza como o pensado pelo contratualistas não tem nada de rigiorosa e muito menos de racional 388 artificial1072 Há mesmo uma inversão paradoxal em Rousseau do homem social entendido coletivamente captado na experiência concreta e pessoal de Rousseau mas que se perde como ente abstrato na coletividade e o homem singular do estado de natureza captado como o próprio Rousseau reconhece como hipótese1073 mas que é tomado como aquele que se expressa singularmente ou seja concretamente1074 Isso faz com que a característica própria do ser humano civilizado e para o seu próprio bem segundo Rousseau é deixarse guiar pela vontade geral que é sempre certa1075 O flerte com o totalitarismo está posto Não obstante ter sido Rousseau quem inaugura o tema da igualdade no pensamento filosófico de uma maneira que serviu como marco e ponto de partida para a tradição socialista posterior retomálo como tema fundamental para suas ações programáticas1076 a igualdade não chega a ser para Rousseau um valor é antes uma idéia reguladora política pela qual a desigualdade social deveria se medir1077 Vai ser por esta perspectiva da igualdade como idéia reguladora política e não como valor como propõe o personalismo que a passagem de uma inspiração fundamental de vida comunitária pertencente ao universo da vida pessoal marcará no coletivismo como o outro do individualismo a passagem de um movimento inicial de afirmação incondicional da liberdade que fundamentará a ação revolucionária para a ditadura posterior à revolução dos revolucionários que não pretenderão se revolucionar a si mesmos1078 Ademais já vimos que o otimismo do liberalismo é para com as leis e não para com o indivíduo contra este e a sua cobiça e demais desejos sempre latentes pelos impulsos desordenados do estado de natureza que ainda respiram nele deve ser aplicada a sanção da lei Tirando essa vertigem típica da modernidade a conclusão a que somos levados é que todas estas filosofias não obstante as diferenças de superfície mantêm em profundo e em comum um otimismo sempre ligado ao construto abstrato de suas idéias e nunca ao 1072 Prefácio ao Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade op cit p 46 cf nota 1 1073 ROUSSEAU Ibidem p 52 s 1074 Ibidem sobre isso ver nota i ao mesmo Discurso p 127 1075 ROUSSEAU Jean Jacques Do contrato social vol 1 Os Pensadores Editora Nova Cultural São Paulo 1999 p 91 ss 1076 Ver VOLPE Galvano Della Rousseau e Marx Ediciones Martinez Roca SA España 1972 principalmente 2 El problema de la liberdad igualitaria en el desarrollo de la democracia moderna o sea el Rouesseau vivo pp 40 ss 1077 ROUSSEAU Discurso sobre a origem op cit p 112 1078 Veremos mais sobre isso quando falarmos mais abaixo de revolução personalista e comunitária e revolução coletivista 389 concreto É isso que caracterizamos como uma espécie de acordo velado na modernidade entre parentes distantes de adiamento da pessoa É com base nessa conclusão quanto a essa comum inspiração de fundo que passamos agora à análise de aspectos mais pontuais do liberalismo Vamos por sua vez ver como Mounier ao longo de sua reflexão e como uma proposta de avanço em relação à crítica realizada pelo marxismo elabora a crítica aos constituintes ainda fundamentais do que se estabelece como o atual pensamento único quer dizer o neoliberalismo ou individualismo burguesia e capitalismo III 1 A burguesia e o burguês diluídos como espírito pequenoburguês segundo o personalismo Para Mounier a burguesia como classe como categoria sociológica pura para a infelicidade de uma crítica estritamente estrutural teve sua época conquistadora e agora não passa de um peso morto como classe específica mas não como espírito de classe que a custa de manter os seus privilégios e assegurar os seus caprichos pelos meios mais covardes envenena as fontes salutares de onde a pessoa poderia beber as águas com os nutrientes para o seu desabrochamento Em outras palavras a crítica estrutural marxista e apesar dos seus esforços em contrário a sua latente tendência à redução economicista materialismo dialético de todo fenômeno social1079 não dá conta segundo o personalismo de Mounier do aspecto cultural espiritual que tomou o espírito burguês Apenas para ilustrar a crítica de Mounier à burguesia pequena e grande apresentamos o extrato de uma carta de Mounier a seu antigo mestre Jacques Chevalier que é com muito pesar para Mounier o esclarecimento de uma incompatibilidade de visões antípodas 24 de outubro de 1936 Não me faleis de meus novos amigos Eu não freqüento mais os homens de esquerda hoje como ontem eu detesto o espírito partidário de esquerda como o espírito partidário de direita Eu sou veja antes o nosso número de outubro sem ambigüidade possível antimarxista Não confundamos as coisas Mas o que nos diferencia irredutivelmente no temporal é que vós credes na salvação da 1079 Por caminhos diferentes esta redução ao econômico é a mesma que se dá com o neoliberalismo em sua visão acerca do trato das questões sociais 390 civilização pela burguesia unida grande e pequena e que dessa burguesia a pequena que vós chamais povo tão distante do povo de Péguy de Michelet e Jeanne Darc como a grande eu tenho após muitas resistências arrependimentos paciências desesperado completamente Os melhores não fazem senão manter as fidelidades dormentes Nada mais de humano se cria aí E nos outros a maior parte avareza dureza de classe medo medo medo e uma completa falta de Inteligência histórica1080 A luta contra a burguesia só como classe para Mounier tende a ocultar o que de espírito burguês dormita em cada um de nós Por isso para Mounier sem rodeios devese ir ao ponto Não é possível crítica sem autocrítica todos somos de alguma forma burgueses Mas conhecer o próprio caráter é lutar contra próprio caráter1081 Não há como já vimos lugar crítico seguro isso já é uma marca do espírito burguês que já tem dominado Veremos se não conseguiremos ao menos em alguns sustar a invasão da alma burguesa No final de tudo pedimos ser julgados sobre isto1082 Com essa entonação crítica o pensamento de Emmanuel Mounier pode ser inscrito como uma das grandes contribuições à crítica da modernidade juntamente com Nietzsche Marx e Freud O viés axiológico pelo qual Mounier constrói seu pensamento crítico pela sua base autocrítica para ele como já vimos todos somos burgueses e que corresponde ao inicial e necessário mas não único movimento de desconstrução e pelo seu projeto de revolução personalista e comunitária movimento de construção que vinha se amadurecendo e fora rompido pelo seu falecimento prematuro responde tanto à pergunta do lugar do crítico que para o personalismo está relacionado ao modo da sua posição frente à resistência do objeto e não em algum suposto lugar seguro teórico ou não quanto à pergunta quanto à dimensão propositiva construtiva que toda crítica que não quiser se tornar monólogo tem de alguma forma de procurar delinear Nesse sentido a base dialógica do personalismo de Mounier é o que dá o sentido da dimensão construtiva do seu pensamento Para tanto a seguir elencamos algumas aproximações caracterizadoras do espírito burguês encontradas nos primeiros escritos de Mounier que parecem ser um esclarecimento vindo de um autoesclarecimento Pelo seu caráter axiológico estas observações não deixam ao mesmo tempo em que elucidam de nos provocar À pergunta 1080 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 598 1081 Traité op cit passim 1082 Révolution op cit Playdoyer pour lenfance dun siècle pp129 ss 391 Quem é o burguês Mounier responde O burguês é menos uma entidade moral imaginária é uma entidade histórica como o estóico o epicureo o cristão Nós não nos referimos seguindo Sombart a sua sistemática nem segundo Max Jacob à sinfonia burlesca de suas variedades O burguês não é somente curioso ou engraçado ele representa para o que nos ocupa aqui uma forma bomhomem do Anticristo e isto não é o que nele é o menos odioso1083 Ora não se pode tratar o burguês como um ente de razão ou como o bufão das caricaturas O próprio burguês tem o seu ente de razão joguete dos seus arranjos que é o indivíduo O burguês é uma figura histórica quer dizer cujo surgimento como todo evento histórico de monta pode ser aproximativamente datado localizado no tempo Isso ao mesmo tempo em que o pontua torna frágil toda sua tentativa de absolutizar suas instituições o tempo é um grande inimigo do burguês Este surge como portador da emergência do tempo diante do modelo mais estático da Idade Média mas tendo conseguido seu lugar de comando não quer mais que o tempo passe e mostre o caráter passageiro de suas conquistas Sobre o ser e o tempo do burguês continua Mounier Primeiro axioma o burguês é o homem que perdeu o sentido do ser O mundo sensível não tem mais encantos para ele Ele passeia entre as coisas As coisas que não o apelam as coisas paralelas e que se classificam Há sempre duas categorias mas um só interesse as coisas úteis e as coisas insignificantes ou ainda os negócios e o tempo perdido Tempo perdido o amor das coisas e a liturgia do mundo Tempo perdido precisamente porque ele não tem nada a perder1084 O burguês não tem nada a perder porque já perdeu a si mesmo dentre as coisas A esta realidade ele sobrepõe a ilusão de que as coisas substituirão e preencherão o vazio de ser que a sua existência mesquinha representa Vemos o quanto o ser e o tempo para o burguês destoando dos primeiros momentos do seu despertar na modernidade ciosa pela mudança pelo tempo no momento de sua instalação segundo o personalismo apresenta o seu verdadeiro sentido O ser não estando mais para o burguês no mundo histórico este como cópia do ser impassível que o burguês passa a amar deve representálo como ordem Agora passa a ser bemvinda qualquer metafísica religiosa ou filosófica que desloque o ser para bem longe e deixe o mundo com seu movimento que para o burguês é o nãoser a 1083 Révolution op cit p 390 1084 Révolution op cit p 391 392 cargo do tempo organizador do útil ou do inútil do burguês segundo as regras bem consolidadas que o espírito burguês dispõe para a sociedade como as imagens ordenadoras do ser Mounier continua Segundo axioma o burguês é o homem que perdeu o Amor Porque não ama o burguês não tem fé Ele não crê nos eventos não crê nos seres humanos não crê nas iniciativas não crê nas loucuras Crente ele crê na exata medida em que não costeará o povo e suas superstições de uma crença distinguida dominical e racional Descrente ele o é sem paixão e se guarda de não tocar neste freio A religião para o povo Sim vêse que é sempre o povo que tem a fé e que o ateísmo devoto ou livre pensador é uma filosofia de classe1085 Já falamos sobre o ato de fé como aquele que exige a presença total da pessoa Ora o burguês não quer ter fé ele quer ter apenas crença ou melhor crendice mas como álibi para o seu relativismo absoluto quer dizer dogmático e feroz quando vê as suas verdadeiras bases relativizadas Todavia mesmo esta crendice burguesa diferentemente das crenças que moveram o mundo por sua audácia a dos seus pais conquistadores por exemplo já é parte de sua simulação A única crença que o burguês da decadência permite é a crença inofensiva Quer dizer a que não coloca em questão os seus valores enquanto crendices ou seja como não sendo nem absolutos nem universais Vemos que o espírito burguês não atinge somente a religião até o ateísmo professado pelo burguês é falso É um ateísmo sem paixão porque não é um verdadeiro ateísmo Tem por trás da máscara antiDeus centenas de ídolos dos quais o burguês não abre mão Ou seja o ateísmo devoto é a crença do burguês que quando devoto é um simulacro da fé e quando livre pensador é sem paixão É interessante a conclusão de que tanto o sentido da verdadeira fé quanto o da verdadeira descrença se encontram em sua posição ultima contra a crendice e a descrença do espírito burguês ou mesmo esvaziadas de sua seiva de vida por sua decedência Mas nada disso impede o avanço do liberalismo em arregimentar sob o seu ecletismo autoritário florido com o tema da liberdade toda e qualquer expressão que ao ser tocada pelo seu toque necrófilo imediatamente perde todo seu vigor Tornase necrosada vazia e o seu discurso nivelado pelo interesse na manutenção da ordem liberal Em relação a isso o liberalismo não mede esforços O individualismo liberal vem 1085 Ibidem p 392 393 esvaziando e anulando desde o Iluminismo todo o patrimônio humano do sentido comunitário positivo acumulado e advindo da experiência de vida comunitária ocidental que por exemplo a noção de evkklhia ekklesía assembléia por convocação contém tanto no sentido político democrático advindo da inspiração democrática da polis grega quanto no sentido comunitário religioso que o Novo Testamento apresenta Consequentemente o individualismo liberal esvaziou o que dessa noçãoexperiência poderia se nutrir o espaço laico em suas inspirações de criação de uma vida comunitária cívica Obviamente isso não aconteceu sem a participação e o apoio das lideranças religiosas da Igreja Institucional que há muito já haviam sucumbido e desistido com muito ressentimento do ideal de Imperium mundi e com esse seu sonho frustrado mas ao que parece ainda hoje alimentado agora se contentam com o papel de subservientes à manutenção da ordem burguesa Emmanuel Mounier sobre essa capitulação diz o seguinte Não é demais insistir em que o mundo cristão sociologicamente considerado em determinado momento da história não é o cristianismo e que pode mesmo exprimir muito infielmente o cristianismo O mundo ocidental cristão pauta hoje seu comportamento médio por uma tabela prática de valores na qual a componente sociológica principalmente burguesa e pequenoburguesa há um século assumiu tal importância que mascara no mais das vezes com sua sombra projetada a tabela de valores propriamente cristãos1086 Já vimos o quanto na Antiguidade a religião mesmo justamente criticada pelo pensamento que buscava em sua juventude desbravadora destemida e corajosamente sua autonomia não deixou de fornecer temas noções e pontos de partida para este mesmo pensamento independente1087 Aproveitandose da decadência a que havia chegado a Igreja Institucional em sua promiscuidade com os desmandos do poder estabelecido o espírito burguês liberal pode enfim concretizar sua façanha e cantar sua vitória no mundo ocidental O liberalismo mantém em sua base este ente de razão chamado indivíduo cunhado como a grande expressão da conquista da autonomia do ser humano em relação à religião e 1086 Feu la chretienté Oeuvres III p 539 s 1087 Para a perspectiva do personalismo o uso de um particípio em vez de um adjetivo autônomo para o pensamento é perfeitamente cabível pois a autonomia cantada a quatro vozes e festejada pelo liberalismo como um fato consumado para o personalismo é uma obra a ser realizada é uma obra inacabada E a discussão sobre a quebra dos ídolos da idolatria do pensamento não interessa somente ao verdadeiro ateísmo mas também à verdadeira fé Pelo que temos apresentado do personalismo de Mounier e sua crítica ao paganismo do liberalismo a sua idolatria para usarmos expressões do mundo das religiões ainda válidas mesmo nesta conexão uma das conclusões a que se deve chegar é que a autonomia alardeada pelo liberalismo é uma mentira da modernidade 394 portanto a base sobre a qual a modernidade emancipada da religião poderia então construir um espaço laico independente Todavia como notamos em nota esse canto de vitória do liberalismo não passa de fogo de artifício e temeridade1088 O que temos dito à luz do personalismo de Emmanuel Mounier pode nos esclarecer um pouco mais a mentira da chamada laicidade moderna autônoma que enquanto partícipe da idolatria neoliberal apresenta as ressonâncias religiosas deturpadas que impregnam também suas bases justamente das quais se diz emancipada Na verdade estas bases patentes e estrategicamente mantidas pelo neoliberalismo matam dois coelhos com uma só cajadada Servemlhe tanto para a manutenção de um espaço laico concebido por ele sempre dúbio e infrutífero quer dizer a sua imagem e semelhança quanto para sua castração das pulsões vitais e potencialidades transformadoras e de doação de sentido à vida humana que caracterizam como já vimos a essência de toda verdadeira religião A esta o capitalismo quer como aparelho auxiliador na manutenção de sua tão querida ordem social e como bemcomportada enquanto uma das facetazinhas da vida privada do seu indivíduo dominical como mais uma sob a qual o indivíduo liberal concede em se deixar objetificar e neutralizar Por causa da prontidão do liberalismo em conceder tão facilmente 1088 É impressionante ver um filósofo de expressão como Jürgen HABERMAS ver A inclusão do outro op cit não obstante seus esforços por manter o rigor em sua argumentação todavia comprometida com toda uma metafísica do intelectualismo que pode ser denominada de gnosciologismo kantiano usar de maneira um tanto quanto frouxa como vimos em nota anterior a palavra metafísica Esta que em sua reflexão crítica serve como nomenclatura para desclassificar as experiências de pensamento que ele considera incompatíveis com o que chama de atualidade pósmetafísica aparece como sempre ligada a um substancialismo do tipo platônicoaristotélico conforme a interpretação vigente que por isso mesmo não tem mais espaço numa sociedade pluralista que tem de procurar entre os emaranhados não comunicáveis das metafísicas o elemento que corresponda a um conteúdo racional que sem dúvida a teoria da razão comunicativa de Habermas pretende ser a expressão veiculadora mas o que não deixa de ser por sua vez também uma metafísica Como a controvérsia sobre verdades metafísicas e religiosas permanece aberta sob as condições do pluralismo contínuo é apenas a racionalidade dessa consciência reflexiva que pode por ora transferirse como predicado de validação passando de imagem de mundo racionais a uma concepção política de justiça compatível com todas as doutrinas desse mesmo tipo racional A inclusão do outro op cit p 80 A impressão que todo esse neokantismo não deixa de dar é a de que tudo na existência é a priori expediente para algo que se encontra sempre aquém e que não é a pessoa viva mas antes um critério de racionalidade cuja validação como originário só pode se dar por conta do esquecimento interesseiro na retórica liberal de acordo com a perspectiva personalista de sua real secundariedade ontológica e axiológica como um valor em relação às formas de pensamento aos valores à cultura ao modelo político à moral à religião à educação etc que passam a ser nessa retórica objetos de aprimoramento por meio deste critério que por sua vez é tomado como primário quando na verdade cumpre estrategicamente o papel secundário de validação das formas sociais dadas que se quer aprimorar dentro de um círculo fechado de uma lógica interna da analiticidade do discurso de validação conservador liberal que de outra forma deveriam ser questionadas enquanto tais ou seja como formas liberais 395 um lugar ao sol à religião dominical não seria desinteressante em relação ao que estamos tratando perceber alguma nuances dessa concessão A fim de uma maior elucidação tomemos a palavra de um teólogo biblista britânico contemporâneo Thomas Manson cujo trabalho na área de exegese do Novo Testamento é bem conhecido e respeitado Numa análise da noção de evkklhsia ekklesía na teologia de Paulo Manson apontanos a dominância seguindo o modelo do contrato social do liberalismo do indivíduo sobre o que a noção de ekklesía apresentava enquanto inspiração de vida comunitária Sobre isso ele diz que desde os dias do Iluminismo com sua ênfase na importância e responsabilidade do indivíduo se tendeu a pensar antes no indivíduo do que no grupo A idéia do Contrato Social dominou em grande parte o pensamento político e teológico da época O crente é o primeiro elemento e as igrejas são collegia quae libera hominum coitione costant Colégios corpos que são compostos pela livre união dos seres humanos1089 Inclusive Schleiermacher faz uma afirmação no mesmo sentido A conclusão é que a igreja é posterior ao individuo Não é necessária para a salvação Os cristãos se congregam uma vez salvos com finalidades práticas grifo nosso edificação mutua e testemunho unânime para o mundo de fora E assim como esses cristãos individuais se unem para formar a congregação ou a igreja local da mesma forma as congregações se unem para formar a grande Igreja A Igreja seria uma confederação Está construída a partir de baixo A parte é anterior ao todo Toda idéia de igreja é construção fortuita1090 Na década dos anos 70 e 80 do século XIX este era o ponto de vista predominante Um forte legado desta tese é a obra de Hatch The Organisation of the Early Christian Churches1091 Isso se vê também no ensaio de Lightfoot sobre o ministério cristão em seu comentário de Filipenses1092 Quem deu o primeiro passo para se afastar deste ponto de vista foi R Sohm em seu Kirchenrecht1093 O ponto central é que se a igreja é a sociedade que o consenso supõe ela tem de ter por sua própria natureza uma constituição e uma lei A principal tese de Sohm é a de que a Igreja e a lei são 1089 Em nota de MANSON Thomas W On Paul na John Studies in Biblical Theology nº 38 SCM Press Ltd London Great Britain Second impression 1967 p68 PUFENDORF citado por O LINTON Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung Lund 1932 p7 1090 Em nota de MANSON On Paul and John op cit p 68 Ibidp8 1091 Ibidem Bampton Lectures 1885 1092 Ibidem J B LIGHFOOT Paus to the Philippians Londres 1883 1093 Ibidem p 69 Vol I Leipzig 1892 396 incompatíveis A Igreja é governada de forma carismática e não de forma jurídica Esse ideal se realizou somente em duas ocasiões na Igreja Primitiva e na Reforma Nos dois casos chegouse a perder o fruto conseguido no primeiro perdeuse pelo surgimento da Igreja Católica Primitiva no segundo pelo estabelecimento do Estado e seu controle sobre as Igrejas Protestantes Sohm mantém o ponto importante de que a concepção de ekklesía provém do Antigo Testamento em que ekklesía ocupa o lugar de qahal o povo de Israel reunido solenemente diante de Deus Assim a ekklesía do Novo Testamento é o povo de Israel neotestamentário de Deus ou seja todo o corpo cristão A igreja não é uma confederação de congregações locais as congregações é que são as manifestações locais de toda a Igreja A pesquisa posterior tem avançado por esse caminho Linton1094 disse Tem havido uma mudança completa na mais recente bibliografia sobre a Igreja ela a Igreja não surge por meio de um conjunto de seres humanos não se forma de seres humanos mas existe antes deles o indivíduo entra na Igreja A Igreja é uma criação de cima Sobre isso tem que se considerar três pontos a Teologicamente A Igreja vem de cima de Deus Não é uma criação humana É a ekklesía de Deus o corpo de Cristo o campo de ação do Espírito Santo Soteriologicamente a Igreja é anterior ao indivíduo pois ser salvo e ser membro da Igreja é a mesma coisa b Sociologicamente O fator decisivo não é a relação das pessoas que se reúnem pelo motivo de compartilharem de uma mesma fé ou de desejarem viver de uma determinada maneira A Igreja é uma associação de pessoas que antes de tudo se encontram em uma determinada relação com Cristo por exemplo que ele é o Mestre e cada um deles um discípulo c Historicamente Antes a regra geral era considerar o surgimento da grande Igreja como um fenômeno tardio primeiro apareceram os cristãos em seguida a comunidade local e posteriormente a grande confederação Atualmente a tendência é retroceder à origem da grande Igreja inclusive à vida de Jesus1095 Esta citação um tanto longa não obstante esclarece um pouco o esforço que a reflexão teológica atual empreende por libertar sua liberdade do liberalismo que se não está tão em moda como método assumido ipsis litteris1096 em teologia propriamente dita ainda 1094 Ibidem Op cit p 133 1095 MANSON On Paul and John op cit p 69 1096 Há teólogos que negam ser liberais em teologia e afirmam ser liberais em política Tratase de uma atitude ingênua da parte desses teólogos que desconhecem o alcance ontológico das reivindicações do liberalismo em 397 se encontra forte e firme na orientação ou melhor desorientação das expressões que por outro lado poderiam ser frutuosas e com as quais o pensamento teológico poderia contribuir com a sociedade em sua busca de sentido e de emancipação das amarras religiosas em busca da construção de um espaço verdadeiramente laico Quer dizer espaço não neutro mas comprometido segundo opersonalismo com a promoção e elevação da pessoa humana no sentido da facilitação do cumprimento de sua vocação singular integrada à vida comunitária Citamos o exemplo da igreja ou ekklesía porque não obstante ser o mesmo conceito usado pela assembléia por convocação para se discutir os problemas da polis pelos gregos1097 relacionado ao ajuntamento religioso tocamos diretamente no que estamos tentando esclarecer quanto a atitude do liberalismo em relação à religião no seu esquema social mas que não deixa de estender a qualquer outra instituição que tenha como sentido fundamental o ensejo comunitário o sentido de sua tolerância liberal Para isso a noção de ekklesía é oportuna Nesse sentido a tolerância do liberalismo em relação à religião nomeadamente no Ocidente a cristã se dá na medida em que ele pode esvaziar e neutralizar todo sentido essencial de vida comunitária que ultrapasse o plano do seu modelo individualista Ou seja assim como para o personalismo como temos dito uma comunidade deve ser uma pessoa de pessoas para o liberalismo um ajuntamento deve ser a expressão em cômputo numérico do seu indivíduo deve espelhar a estrutura axiológica que fundamenta este ente de razão liberal Citamos o exemplo da igreja porque a investida liberal de emasculação do sentido comunitário é aí bem mais imediatamente expressa Isto por causa do discurso religioso ter de lidar de alguma forma com essa inspiração comunitária intrínseca à essência do religioso em seu caráter de discurso pessoal e por causa também do fato de que a religião toca imediatamente nas questões axiológica e existencialmente últimas do ser humano de maneira mais direta do que o discurso político Por sua vez a projeção sociológica da religião capitulada e a serviço do mundo do dinheiro e de sua instalação de morte terá de procurar por todos os meios retóricos possíveis sempre desvirtuar este seu sentido original É essa ação de traição aos seu valores mais fundamentais que tem servido como mote para a crítica sociológica do serviço da religião como se prestando unicamente à termos do seu consentimento quer dizer tolerância e ao papel que deixa à religião no seu esquema social 1097 Cf BAILLY A Dictionnaire Grec Français op cit 398 adaptação e manutenção do statu quo de injustiça social como aparelho reprodutor Por outro lado este exemplo da igreja religiosa pode nos ajudar a entender a extensão da investida liberal castradora ao plano mesmo da comunidade políticosocial ao que o liberalismo chama de democracia Como vimos o fator decisivo do ajuntamento cristão baseado numa relação pessoal que o membro mantém com o Fundador é o que queremos destacar como compondo o conteúdo axiológico do caráter de relação e adoção pessoal livre que para o personalismo funda a relação comunitária não só religiosa mas enquanto tal Nesse sentido ela é o antípoda ao que o pragmatismo do liberalismo espera e concede que seja relação de pessoas que se reúnam pelo motivo de compartilharem de uma mesma fé ou de desejarem viver de uma determinada maneira A relação comunitária empreendiada pela pessoa livre segundo o personalismo tem em um sentido uma constituição muito mais fundamental como intrínseca ao movimento próprio da pessoa em sua liberdade na antropologia do que o que a concepção contratulaista epidérmica possa prever Aquela em um outro sentido vai mais longe do que esta mera concessão tolerância do individualismo liberal Ora é esse conteúdo preciso de adesão pessoal livre em vista da oportunidade de criar relações pessoais mais sólidas e verdadeiras e daí construir uma comunidade de destino a que no plano político a democracia liberal só tem servido segundo o personalismo como impedimento Para o personalismo esta comunidade de destino nunca poderá ser fundada ou se resumir a conteúdos tipicamente próprios da carctereologia do indivíduo moderno A comunidade para o personalismo como temos visto é uma realidade tensa dialética entre pessoa livre e responsável e comunidade a qual se constrói aos poucos em interrelação tensa e frutuosa A liberdade perpetrada pelo liberalismo é uma liberdade castrada dos valores essenciais que podem criar a vida comunitária É por isso que o liberalismo é tolerante com a religião dentro do seu esquema pois tratase de uma religião domesticada e castrada de sua seiva de vida comunitária Nesse sentido a religião e qualquer outra instituição que o liberalismo tolera são as que se mantenham à imagem e semelhança do seu indivíduo egoísta e reivindicador Ao mesmo tempo segundo o personalismo a exemplo da teologia a filosofia também o pensamento laicizante deve procurar a todo custo se libertar da liberdade liberal e construir o seu próprio caminho Já falamos o quanto a religião em tensão com o 399 pensamento que procura independência com o pensamento filosófico no entanto nessa tensão mesma promoveu na história do pensamento bons frutos Portanto fica explicado mais uma vez porque para o personalismo não há problema em confrontarse com o pensamento religioso ou valerse dele O pensamento filosófico para o personalismo é caracterizado como pensamentocrise Ou seja pensamento cuja característica principal e não um problema no sentido burguês de uma imposição imperiosa da busca de uma instalação é permanecer em crise Pois diferentemente do pensamento seguro de si do tipo dogmático o pensamento filosófico segundo o personalismo deve procurar como sua função própria reporse criticamente colocar constantemente sob suspeita seus próprios fundamentos seu ídolos Segundo o filósofo personalista e integrante da equipe Esprit Etienne Borne a filosofia tem se deixado intimidar pelo postulado do reducionismo das ciências e agora que se encontra em refluxo a vaga das ciências humanas a reflexão filosófica se encontra humilhada e constrangida a juntar os restos do ser humano esparsos por todos os campos do saber e por não se considerar inútil dá a si um falso ar de dignidade se ocupando da análise das situações sem as esclarecer seguramente segundo René Habachi sobre a obra de Borne à espera de novos valores que tenham alguma razão de sair do seu eclipse decretado1098 O sentido que se destaca da noção de uma dimensão comunitária relacional que neste viés ontológico reflete para o personalismo a experiência originária ao que a teologia contemporânea pensa lançando mão da metáfora ontológicoespacial como sendo uma criação de cima para se contrapor à investida individualista do liberalismo sobre as prerrogativas da comunidade religiosa na linguagem filosófica de Mounier vai tomar o sentido da necessidade de um inserimento nessa relação entre pessoa e comunidade de um elemento de tensão dialética de inscrição da imprevisibilidade e da liberdade pelo qual nessa relação a pessoa e a comunidade cada qual assegurando suas características e prerrogativas próprias assegurarão uma a outra o ótimo da existência de cada uma no suporte de cada uma em si que não obstante já será o suporte da manutenção da própria relação de uma com a outra em um caráter frutuoso Para Mounier a questão não estaria em colocar o problema da precedência Sujeito ou objeto para ver quem ganha na disputa 1098 Cf René HABACHI BORNE Étienne Les Nouveaux Inquisiteurs Paris Le pohilosophie 1983 pp 172 ss in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p 22 400 maniqueísta entre individualismo e coletivismo Para o personalismo de Mounier a questão está em posturas e buscas dos verdadeiros valores que estão na base da implicação da vida comunitária únicos que servem integralmente à realização da vida pessoal Daí que se deva provar os valores da democracia É nesse sentido também que em Mounier o personalismo é incontestavelmente um pensamento social antes de ser um pensamento do Estado um pensamento do instituinte prévio à instituição Por outro lado o lugar do sentido é aliás no social trabalhado pelo fermento comunitário e capaz de se autoorganizar segundo a perspectiva de Mounier no quadro de uma democracia social e política que por sua vez nunca será a expressão de exaurimento ou de estancamento da fonte comunitária Mounier sempre se recusou a colocar a questão do político fora da referência fundadora do social percebido como espaço de criatividade cultural e jurídica Não se pode compreender sua reflexão sobre as instituições a serviço da pessoa se se perde de vista esta preocupação que ele constantemente animou de pensar a sociedade como lugar de colaboração muito aberto das liberdades portanto como tecido frágil de comunidades apelando cada qual à plenitude de responsabilidade de cada um1099 É nesse sentido que Mounier vai afirmar seu socialismo como integrando à grande tradição socialista francesa do século XIX na linha do comunitarismo de Proudhon como também da teoria pluralista das fontes do direito na linha das pesquisas de Gurvicht Não obstante tudo isso o burguês é um ser moral ou melhor um moralista Depois da razão ter iniciado seu flerte com Descartes e ter se tornado subserviente no século XVIII1100 aos ditames burgueses em seguida sob a forma do intelectualismoracionalismo de Kant a vida moral que como bem demonstrou Max Scheler1101 se nutre e se move pela simpatia e não por qualquer construto racional por mais bem esclarecida que seja consegue ser congelada no famoso imperativo categórico Kant então presta um grande serviço à moral burguesa Todavia O Copérnico da moral não é Kant é ele1102 Todas as virtudes que traçam sua órbita em torno da caridade vão para ele girar em torno da virtude 1099 CF GOFF Jacques le resenha sobre o livro La cite personnaliste dEmmnauel Mounier Presses Universitaires de Nacy 1983 de MarieThérèse COLLOTGUYER in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 octobre 1983 p 20 1100 ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains pp 41 ss 1101 Ver Marcos Manuel S Max Scheler Princípios de uma ética personalista Herder 1986 pp 83 ss Capítulo III El Amor 1102 O burguês 401 da ordem Sua medida não é mais o amor que tem lançado os mundos é um código de tranqüilidade social e psicológica1103 Aqui iniciase o estado de graça do burguês A moral expressão por excelência da liberdade da pessoa no ato livre de reconhecimento de suas limitações em razão dos seus valores livremente assumidos e em respeito e busca da relação com o próximo na verdade fora da mentira passa a ser tema de inspiração para a vontade liberal juridista de contenção da realidade humana em sua diversidade de expressão criadora O moralismo do burguês é a morte da moral O burguês é um ser moral as virtudes se tornam nele dispositivos Amor perfeição heroísmo aventura toda hierarquia tem vacilado e agora como estes ridículos altarzinhos elevados em algum lugar comum sobre os campos das grandes batalhas ele tem estabelecido seu universozinho nele e disposto em rodilhas os mandamentos da lei1104 O sentido é manter a ordem valor primeiro do burguês Não uma ordem de marcha uma estrela1105 das vicissitudes Não a ordem quer dizer tranqüilidade Há burguês jansenista que se faz uma imagem imperiosa e rígida e o burguês bom filho que está pronto a sorrir em todo arranjo conquanto que se arranje A diferença não é de grande monta para um e outro tudo vai bem se não houver nada de estrondoso O burguês é na alma um homem que tem medo Medo de lutas medo do dia imprevisível que virá amanhã de encontro a suas previsões medo da visão cambiante dos seres humanos medo de tudo o que ele não possui Ele toma precauções e precauções Não quer o tempo frágil como uma carne viva não quer criar sua vida com as horas com a dor e a incerteza ele a quer toda fechada e garantida como que estabelecida de antemão Ele oferece seu respeito a tudo que assegura a visão exterior da ordem polícia exército etiqueta reserva e discrição1106 O espírito burguês quer se colocar na esteira das grandes tradições filosóficas eudemônicas Ao mesmo tempo em que quer cobrir a vida individual quer se colocar como um modelo de civilização Colocando a felicidade na órbita dos desejos o espírito burguês pretende proporcionar sua satisfação através de um ideal de posse de seus objetos integrado 1103 Révolution op cit p 392 1104 Révolution op cit p 392 1105 Enquanto sinal possível de organização 1106 Révolution op cit p 392 402 ao seu ideal de vida Assim ele conseguiu realizar a façanha1107 que a razão sozinha não havia conseguido Mas precisou chamar a ajuda do capitalismo que conseguiu unificar esse ideal e precisálo ainda mais enquanto ganho de dinheiro quer dizer busca de dinheiro Conseguiu unificar a diversidade e multiplicidade dos desejos sobre o ideal mesquinho e tacanho do jogo do seu hedonismo da posse de poucos em detrimento da penúria e até da miséria de uma maioria esmagadora todavia sempre ciosa por chegar lá eis o espírito pequeno burguês Amparado por todo o seu aparato legal político religioso educacional etc e pela respeitabilidade dos seus símbolos ou em última instância pelo poder de polícia do Estado sempre ao seu lado o espírito burguês quer fazer valer o seu modelo decadente como universal de uma forma ou de outra como proposta de civilização durável Sobre isso diz Mounier A vida do burguês é ordenada em vista da felicidade A felicidade quer dizer da instalação o usufruto ao alcance das mãos como a campainha de chamar do doméstico repousante não selvagem assegurada Aurea mediocritas Uma mediocridade toda em ouro Ela é ordenada em vista da propriedade quer dizer ao sentimento da solidez do conforto A preocupação do cristão é ser o burguês não tem por objetivo senão o ter Escutaio dizer minha mulher meu carro minhas terras sentese bem com o que se conta não com a mulher com o automóvel com as terras mas com o possessivo carnoso É por isso que ele ama o dinheiro devese ser avaro para não deixar de domar o destino É por isso que ele coloca o trabalho sobre o altar de sua cidade A religião escreve um deles é a alma e o alimento de uma indústria útil1108 É por isso que ele ama a ação que mantém o bom humor e concede o poder1109 Segundo o personalismo o vírus da mediocridade burguesa inoculou e comprometeu todas as expressões e ali mesmo onde elas portam a marca do movimento da pessoa Com o espírito burguês a felicidade não está mais ligada ao projeto pessoal1110 Depois de ter recebido seu esboço na caricatura do indivíduo vacilante da modernidade ter se perdido na confusão dos seus múltiplos desejos perde o sentido da singularidade em que 1107 HIRSCHMAN Albert O As paixões e os interesses Argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo Paz e Terra São Paulo 2000 passim 1108 Nota de Mounier loc cit Citado por GROETHUYSEN Origines de lesprit burgeois en France 1109 Révolution op cit p 392 1110 MARÍAS Julian A felicidade humana Livraria duas Cidades São Paulo 1989 pp 261 ss XIX Felicidade como instalação vetorial 403 a felicidade poderia ser vislumbrada como projeto pessoal1111 Mudando as crenças vivas em crenças mortas cortou a seiva que podia nutrir no plano mais amplo da vida comunitária o sentido criador de uma cultura enquanto comunidade de destino o que cumpriria o que felicidade pode significar relacionada ao movimento intrínseco à vida comunitária A mediocridade burguesa comprometeu a dimensão legítima do ter afinal para o personalismo de Emmanuel Mounier o ter é parte integrante da existência pessoal nosso corpo é nossa primeira propriedade1112 Por conta desse desvirtuamento do ter por causa da mediocridade contábil do espírito burguês justificase em parte o protesto de Gabriel Marcel em favor de uma cisão um tanto radical entre o ser e o ter Mounier nestes primeiros escritos programáticos de cunho polêmico faz eco à chamada de atenção de Gabriel Marcel A mediocridade burguesa quer ser o substituto do herói que luta contra o seu destino propondo um destino domesticado sem surpresas totalmente cativo e sem oferecer perigo A tudo que corrobore com o seu intuito o espírito burguês dá boasvindas seja ao trabalho seja à religião Aquele motivado pelo lucro gerado num primeiro momento pelo trabalho prestado cede cada vez mais o lugar ao meio pelo qual se dava a remuneração ao dinheiro e o trabalho mesmo se torna uma mercadoria O dinheiro se torna o ícone sagrado e quando o burguês descobre a fecundação espontânea do dinheiro pela especulação sem produção tornase o Alfa e o Omega da vida Aquela lhe serve de amparo ao seu frágil moralismo sem vida ancorado na razão E a relação e condescendência do espírito burguês para com a religião principalmente a cristã se dá na exata medida em que ela se deixa castrar nos valores a ela intrínsecos e que caminham na direção oposta ao neopaganismo idolátrico do espírito burguês Segundo o personalismo de Emmnauel Mounier e em outras palavras a condescendência tolerância para usar a palavra querida dos liberais do espírito burguês para com o cristianismo se dá na exata medida em que ele deixase tornar um neopaganismo Estando para o espírito burguês todas as coisas em seus devidos lugares o que mais senão como disse Mounier antes amar a ação manter o bom humor e conceder o poder O estado de graça a que o burguês se vê levado pelas provas de sua vitória o leva à 1111 Sobre a felicidade como projeto pessoal ver o belo livro de MARÍAS op cit passim 1112 Introduction op cit passim 404 indiferença para com o sofrimento Todas as expressões deste são passiveis de justificação os técnicos apresentam seus dados e seus gráficos justificadores a religião apresenta seus dogmas deterministas que colocam o sofrimento das pessoas na perspectiva de uma metafísica da causalidade universal ou pela deturpação da predestinação ou pela reencarnação minando assim o apelo singular provindo do sofrimento concreto do próximo Em sua gnose de ódio ao corpo simplifica o sofrimento dos outros como purificação necessária para não se ir para o inferno ou para a purificação da alma para que esta se reencarne em um novo corpo objetificado nestas suas atribuições passageiras e serviçais à alma na forma de um invólucro descartável A indiferença a capacidade de impassibilidade diante das desgraças alheias conseguida pelo espírito burguês neste seu estado de graça em que encontra a justificação para todos os males é mais do que qualquer religião ou teoria determinista poderia alcançar O burguês ignora a cruz que a menor miséria que a menor revolta experimenta todos os dias Ele se mobília de belas coisas dentre as quais sua mulher quer dizer de coisas agradáveis ele se faz de bons costumes e de uma boaconsciência ele é um bon vivant Todavia a feiúra o pecado a morte nada disso está presente em sua vida a solidão menos ainda é um homem muito rodeado Não falemos de renúncia a renúncia não é a despossessão Ele não é bom dizia Péguy nem para o pecado nem para a graça nem para a desgraça nem para a alegria Homem de saúde homem de felicidade homem de bem um homem que tem encontrado seu equilíbrio enfim um ser desgraçado1113 Todavia não confundamos o comedimento do burguês é a mediocridade Ao final das contas não há verdadeiro burguês senão o pequeno burguês Todo grande burguês para aí se dirige é o que se sente em suas maneiras Ao se rodear do aparelho ele agrava a evidência seu volume é muito para ele para seu mundinho para suas vistas curtas Ele não fica contente senão na mediocridade1114 1113 Révolution op cit p 392 1114 Révolution op cit p 390 a 392 Ocorreme um fato acontecido no cenário brasileiro que confirma esta observação de Mounier e de Denis de ROUGEMONT de que ao burguês é importante o tingimento de uma vida frugal simples mesmo quando tudo em sua existência se apresenta como a negação dessa imagem Penser avec les mains op cit passim Tratase da reportagem sobre o empresário Eike Batista que leva o título metafisicamente interessante de Ronaldo FRANÇA e Ronaldo SOARES Nasce o maior bilionário brasileiro O empresário Eike Batista se consagra na Bolsa e termina a semana com 20 bilhões de dólares in Revista Veja sextafeira 13 de junho de 2008 pp 94 ss Com destaque para a palavra nasce do título Depois do artigo narrar a breve história da façanha desse investidor ousado desse novo herói desse Dom Quixote dos investimentos que como vemos pelo título quer dar a impressão de que ele representa a 405 Ora uma questão tão visceral tão arraigada na cultura tão disseminada na vida social e no interior dos indivíduos quase como uma segunda natureza como é a da presença real do espírito burguês não pode ser abandonada ao jogo fácil de demonização partidária e classista de uma crítica meramente estrutural e sempre limitada no seu alcance É preciso encaminhar a questão para o ponto certo Além de uma crítica é necessário um despertamento É necessário lembrar às pessoas a liberdade por conta da força que o espírito burguês totalitário em si tende a fazêlas esquecer desse modo de ser que é segundo o personalismo de Mounier a expressão mesma da vida pessoal Essa situação se torna mais gritante quando a força dessa decadência impregna de tal maneira a vida da maioria que esta passa a viver a ilusão1115 sem outro ideal possível de vida proposto na linha do horizonte significativo de alcançar o status proposto por uma minoria esta sim interessada em manter essa situação a todo custo A situação é tão exasperadora e desesperadora para os que procuram o nó górdio dessa situação em bases críticas estritamente sócioestruturais que a possibilidade de tratála como uma espécie de religião com a atenção a toda estrutura simbólicoafetiva que isso envolveria nem lhes passa pela cabeça O pequenoburguês não possui os sinais exteriores e as facilidades do rico mas toda sua vida tende para sua aquisição Seus valores são aqueles do rico mirrados inauguração de um novo capitalismo no Brasil desta vez aberto à iniciativa e ao risco pessoal quando estamos quase nos convencendo da façanha deste herói nacional solitário nessa sua saga inaudita de inaugurador do novo capitalismo brasileiro desta vez sem a necessidade do apoio político sem manobras decretais ex nihilo mudança qualitativa mesmo ocorrida nas esferas etéreas do locus de um novo capitalismo que existe emsi na virtualidade de uma potência que encontrou nesse nosso novo herói um grande mediador com o mundo da vida daí nos é narrada a sua descendência nada olímpica p 100 Seu papai fora ninguém mais do que Eliezer Batista responsável pelo lançamento dos alicerces da há pouco doada mas por uma boa causa e com todas as justificações neoliberaistécnicoadministrativas cabíveis pelo governo do sociólogo exmarxista Fernando Henrique Cardoso Companhia Vale do Rio Doce E como se não bastasse essa informação que embaçou o brilho do quixotismo do nosso herói ainda é dito loc cit que O mapa que Eike efetivamente recebeu foi o da enorme rede de influência que seu papai Eliezer angariou desde o início dos anos 60 do século XX quando foi alçado à presidência da Vale do Rio Doce por Jânio quadros O que aumentou a minha frustração foi que antes de tudo isso muito me havia impressionado o que posteriormente confirmou as observações de Mounier e de Rougemont o jeito simples e frugal deste nosso herói que não obstante a sua mansão de 3500 metros quadrados num terreno de 60000 metros quadrados no valor de 12 milhões de Euros no Jardim Botânico do Rio de janeiro do seu Mercedes de 12 milhões de Euros com mais quatorze automóveis na garagem três lanchas três aviões e um helicóptero não obstante tudo isso o artigo narra seu comedimento na crítica certeira quanto a obras de arte caras Sobre isso nosso herói aponta a imoralidade do desperdício de se gastar milhões para pendurar na parede algo que pode ser substituído por uma cópia p 100 No final este herói do capitalismo brasileiro é um bom pai de família nos fins de semana gosta de estar com os filhos e de tomar cafezinho no botequim para comemorar com os seu amigos as suas façanhas fiduciárias 1115 Ilusão esta que para o relativismo fácil atual do neoliberalismo já está justificada porque é para ele mais uma entre outras daí o sinal de decadência compartilhada de desistência da vida deste relativismo fácil que se pinta com as cores de pensamento contemporâneo 406 curvados pela inveja Rico não é só quem tem muito dinheiro É rico o empregadinho das ruas que pinta seu jaquetão surrado e que conquistaria a Toison1116 antes que atravessar a praça com um cesto na mão É rica a digitadora que submetese ao mundo por causa dos favores do patrão a vendedora que toma o partido de seus objetos de luxo o proletário que devora o ideal recalcado de se tornar empregado de banco o jovem antimilitarista que sonha em secreto ser subtenente de reserva Toda vida privada do rico é dominada por um único valor o da consideração Toda vida privada do pequenoburguês é dominada por um único valor o da promoção o que é ainda a mesma coisa 1117 Essa reação contra o espírito burguês não é apanágio do personalismo ela está inscrita na própria resistência a ele no movimento de personalização que se deixa entrever na indignação para com sua decadência por parte da juventude européia É o que Mounier percebe Ela combate o medo de viver o sepultamento no conforto a estreiteza dos pensamentos e a mesquinharia dos projetos a eterna oposição dos prudentes à aventura às loucuras da criação o amor desesperado pela segurança e felicidade contra a desconfiança contra o santo ou o herói1118 O mal burguês é um mal de civilização ou seja o seu desmoronamento um dos sinais da decadência européia O espírito burguês é o coração deste mal diz Mounier espírito feito de avareza indiferença para com os outros reivindicação Nós assistiremos ao desmoronamento de uma área de civilização nascida no fim da Idade Média consolidada ao mesmo tempo em que minada pela idade industrial capitalista em suas estruturas liberal em sua ideologia burguesa em sua ética1119 O individualismo é dele a raiz este isolamento teimoso e egoísta o mundo do dinheiro é dele o instrumento econômico e social1120 É por isso que o personalismo propõe uma crítica à civilização antes que crítica a uma classe o espírito burguês fruto inicialmente de uma classe acabou impregnando todas as camadas da sociedade Ele criou um tipo de humanidade A propósito escreve Mounier hoje dizia Péguy há já trinta anos todo o mundo é burguês Do homem de dinheiro a lepra alcançou o comerciante o operário o 1116 Ordre de la Toison dOr Ordem do Velo de Ouro ordem francesa dos cavaleiros encapuzados fundada por Filipe o Bom duque da Burgundia em 1430 1117 Revolution Oeuvres I p 241 1118 Esprit n 96 janeiro 1941 p 164 Programa para o movimento da juventude francesa cf Moix op cit p 73 1119 Manifeste op cit p 486 1120 Cahiers protestants n 7 novembro 1940 p 428 Lettre de France cf Moix op cit p 73 407 artesão o homem do interior a família tradicional o novo rico Em todas as classes ele deixou áreas de saúde mas em todas elas fez seus estragos1121 A burguesia teve seu momento heróico de integridade de labor e conquista isso Mounier reconhece Todavia para o mesmo sua morte começou no dia em que se contentou com o adquirido Aqui e acolá na obra de Mounier encontramos uma breve história desta metamorfose desta decadência Sua base sendo histórica o que Mounier insiste em lembrar com Marx retira de suas amadas instituições sua propriedade sua moral seu Estado sua família sua religião pretensamente cristã o caráter absoluto que ela gostaria de lhes dar Todavia para o personalismo a temporalidade ao mesmo tempo em que lhes imprime o seu caráter próprio de fugacidade apresenta as marcas do seu abandono do bom caminho o que fora deixado para trás em nome de sua infidelidade Ao contrário de uma dialética que se nutre da história forçando no sentido de uma metahistória ou de uma teoria da história ou de uma negação da história por uma parahistória Mounier propõe uma dialética no núcleo mesmo do evento histórico transcendência na imanência será o lema personalista de Emmnauel Mounier Eis a seguir uma breve história por Mounier da decadência burguesa A idade individualista partiu sobre uma fase heróica Seu primeiro ideal humano o herói é o homem que combate só contra os poderes maciços e em seu combate singular faz estourar os limites do ser humano Seus tipos viris o conquistador o tirano o Reformador o Don Juan Seus servos a aventura a audácia a independência a altivez a habilidade tanto mais na exata medida em que ela decupla a audácia Sob as formas sensatas civilizadas defesa da iniciativa do risco da emulação os últimos fiéis do liberalismo tentam se valer ainda do prestígio de suas origens Eles não o podem senão dissimulando a renúncia ou a degradação pelo que a cidade burguesa abandonou esses valores Por algum tempo com efeito o capitão da industria na verdade certas aventuras da finança continuou nas operações que nós não defenderemos uma tradição de grande envergadura Enquanto eles lutaram com as coisas e com os homens quer dizer com uma matéria resistente viva temperaram uma virtude inegável feita de rigidez e muitas vezes de ascetismo Estendendo aos cinco continentes o campo de suas conquistas o capitalismo industrial lhes proporcionou provisórias possibilidades de aventura Mas quando inventa a 1121 Esprit n 102 julho 1941 p 613 Fim do homem burguês cf Moix op et loc cit 408 fecundidade automática do dinheiro o capitalismo financeiro lhes abriu ao mesmo tempo um mundo de facilidades de onde toda tensão vital iria desaparecer As coisas com seu ritmo as resistências as durezas aí se dissolvem sob o poder indefinidamente multiplicado que não mais um trabalho medido nas forças naturais confere mas um jogo especulativo aquele do lucro ganho sem serviço prestado tipo sobre o qual tende a se alinhar todo lucro capitalista Às paixões da aventura se substituem então progressivamente as molezas prazerosas do conforto à conquista o bem mecânico impessoal distribuidor automático de um prazer sem excesso nem perigo regular perpétuo aquele que a máquina e a renda distribuem Uma vez comprometida nas vias dessa facilidade desumana uma civilização não criada para suscitar novas criações suas criações mesmas fabricam cada vez mais inércia tranqüila Dois atletas com a ajuda da publicidade levam vinte mil indivíduos a se sentar crendose esportivos Um Branly um Marconi dobram vinte milhões em suas poltronas um exército de acionistas de rentistas e de funcionários parasitam uma indústria que por outro lado a cada dia quer menos mãodeobra e salvo para um pequeno número menos qualidade É assim que a substituição do lucro industrial em benefício da especulação dos valores de criação pelos valores do conforto pouco a pouco descortinou o ideal individualista que abriu caminho nas classes dirigentes inicialmente e depois por sucessivas descensões até às classes populares neste espírito que nós chamamos burguês por causa de suas origens que nos parece o mais exato antípoda de toda espiritualidade1122 Esta pequena história da decadência ocidental narrada por Emmanuel Mounier continuaria como vimos com o ideal individualista do qual todavia falaremos mais à frente No momento interessanos retocar o quadro do espírito burguês que Mounier nos oferece Como vimos Seu ideal de posse é o repouso passivo o langor amortecido dos hábitos estes estrangeiros mais nossos que nossos atos no sentido em que a caricatura é mais verdadeira que a fotografia Rebanho sem guia dos amores anêmicos prostituição do espírito em todas as encruzilhadas do lugar comum e do ídolo coletivo prostituição do coração às duas mentiras do coração de visões tranqüilizantes prostituição do corpo às comodidades que criam uma atmosfera e uma preparação às comodidades do coração e do espírito O possuidor e seu bem se circundam de um tipo de imunidade contra as mudanças 1122 Manifeste op cit p 492 s 409 da vida e o contato com os seres humanos A alegria conquistadora e o vínculo apaixonado dão lugar a um sentido temeroso e suscetível solene ou delicado segundo o humor de inviolabilidade Isto narra a história daquele homem cujo apartamento fora roubado em sua ausência e que incapaz de viver no lugar desde então impuro parte pouco depois O burguês que desfigura todas as coisas tem desviado o sentido divino do secreto dos corações das solidões inadmissíveis em um secreto dos cofresfortes dos orçamentos dos domicílios dos escândalos das alegrias e dos sofrimentos em um geral Rogai para que não se toque que não é outra coisa senão uma cruzada contra o amor Essa segurança pela qual suspiram os Estados e os indivíduos avaros que não é a firme confiança da generosidade mas a tranqüilidade satisfeita daquele que tem se evadido dos deveres heróicos da vida o dinheiro muitas vezes ajuda a alcançar se aquele aí não chega consome em uma solicitude covarde por segurança do dia de amanhã toda atenção que ele deveria dar às obras de hoje Não resta mais neste cadáver da posse que exalar seu fantasma A decadência da posse é acompanhada de uma inchação proporcional dos sentimentos de proprietário As doçuras do conforto não são em si uma alimentação excitante Mas os imbecis guardam um último aguilhão aquele de erguer alto sua vaidade Quando o burguês diz minha mulher meu carro meu Picasso chegou o momento em que o que conta a seus olhos não é mais mesmo essa última vaga fruição que lhe resta do bem mas a reputação que ele mantém A consideração burguesa é bem mais vazia que a ostentação do conquistador ou do primitivo que irradia e propala ingenuamente uma fruição real O burguês não tem tanto no ter o que tem quanto no que se sabe que ele tem O processo que nós indicamos no início pelo qual o ter suspenso no ser se devora a si mesmo a partir do momento em que ele volta do ser toca aqui em seu acabamento Não se pode mesmo falar mais de um primado do ter sobre o ser da posse egocêntrica sobre a qualidade da alma mas de um primado por sua vez sobre o ser e sobre o ter concreto de um ter puramente declarativo e publicitário1123 1123 Révolution op cit p 430 s Como já dissemos Mounier vai se manter em guarda em relação à separação muito estanque que sobressai da obra de Gabriel Marcel do Ser e do Ter não obstante o valoroso confronto de Marcel contra a objetificação racionalista que tem estado na base de todo ter como modo de existência moderno Em Mounier et sa génération Oeuvres I p 647 diz Ele Gabriel Marcel retoma sua oposição de Avoir et de lÊtre O Avoir é algo como os pecados do Espírito no momento em que ele abandona com os seres a relação espiritual de acolhimento ou de troca ou de comunhão ou de respeito para os aceitar como objetos em face de si estranhos numeráveis 410 III2 A moral burguesa segundo o personalismo A moral burguesa é uma moral rígida mas sua rigidez seu rigor também tem sofrido alterações ao lado do que ela dispõe como flexibilidade A partir de um truísmo psicológico podemos deduzir que uma moral simplesmente rígida não iria muito longe e ainda mais nesse intento de dominação eclética do espírito burguês um aspecto relativizado segundo o esquema burguês sempre valoriza o outro A questão é percorrermos o caminho das transformações dessa moral em seus aspectos rígidos e flexíveis a localização de sua rigidez e de sua flexibilidade No início como vimos segundo Mounier a burguesia vai contribuindo para tecer o seu aparato legalista se valendo do poder dos símbolos já existentes e de polícia que vão se organizando e se transmutando como a extensão concreta até se legitimarem definitivamente como sendo por antonomásia os próprios símbolos de sua decadência O surgimento do seu novo aliado o Estado moderno também contribui para tornar isso cada vez mais possível Dentro de uma situação em que a burguesia nascente tomava para si a tarefa de construir uma outra comunidade de destino que integrasse o indivíduo a família a sociedade o Estado a lei a religião etc em contraposição direta ao engessamento e decadência a que o poder hegemônico religioso na Idade Média que já via o seu ocaso queria manter ainda como comunidade de destino com o passar do tempo e o visível êxito de seus esforços em construir o seu convencimento e em convencer ela a burguesia começa a se sentir proprietária do que apresentara este o grande argumento para sua vitória como sendo expressão inelutável dos novos valores que a humanidade inteira assumia da qual ela se dizia e se apresentava como a portavoz1124 Logo após a consolidação de suas instituições e já como consolidação de seus interesses se apresentar patente é a hora em que ela a burguesia se vê na necessidade de garantir e precisar o locus do rigor de sua moral Como vimos segundo Mounier este rigor vai ser pautado sobre a garantia de segurança no usufruto e manutenção da posse de suas propriedades Desde então a história do rigor da moral burguesa se confunde com a história 1124 Ver em ROUGEMONT Denis de Penser avec les mains op cit pp 31 ss II Dune culture qui parle dans vide e passim o sentido que o personalismo dá à noção de cultura o conjunto expressivo das realizações humanas que procura em sua diversidade e tensão a busca da manutenção de uma fidelidade em uma comunidade de destino baseada em valores assumidos pela sociedade e que seja a expressão de uma medida comum 411 da sofisticação jurídica de uma legislação em defesa da propriedade privada O sujeito desta moral é o indivíduo que encontra sua unidade frágil e sempre provisória nos papéis que lhe são permitidos na sociedade burguesa com os quais deve se contentar como sendo o seu quinhão sempre em perigo de perdêlos sob a única garantia de uma situação de manutenção da vida cada vez mais frágil e insegura Essa situação periclitante do indivíduo burguês vai dar a essa migalha permitida quanto mais difícil se torna sua aquisição de fato tanto mais o sentido de uma graça concedida eis que aí entra em cena no espaço de consoladora que a burguesia lhe permite a religião dominical desvirilizada Sendo como vimos em Mounier a defesa da propriedade a unidade de sentido social da sociedade burguesa o meio de graça será o dinheiro com suas promessas e a sua falta o movente social erótico ao infinito eis justificada a neoescravidão atual chamada financiamento Com as peças soltas de uma sociedade esfacelada cujo movimento interno um pseudomovimento social quer dizer cultural pois já não é criação humana é nova versão de sua decadência esta se volta em uníssono para a busca e adoração do grande deus Mamon Assim no mundo do burguês as ações nefastas em nome deste Soberano estão a priori plenamente justificadas afinal de contas ele é um deus Protegido pelos dogmas secretos gnose conhecidos apenas pelos grandes iniciados os técnicos os especialistas da economia está estabelecida a nova hegemonia que a burguesia do início negava à IgrejaImpério Medieval É o que nota Mounier Entendamonos bem Todo mundo é sincero Vestido de sua tranqüilidade o rico crê defender a ordem e a civilização Se ele é caridoso e virtuoso como toda nossa velha burguesia ele não compreende mais o porquê dos anátemas O homem da rua crê na economia e na virtude dos avanços difíceis Ele crê que o dinheiro é bom pois recompensa os trabalhadores e se recusa aos preguiçosos Ele não gosta que se lhe confunda Quem pode senão os turbulentos ou os interesseiros denunciar tanto mau em um mundo respeitável em que há os poderes que são criados para governar a justiça para julgar a imprensa para informar a polícia para proteger e as nações para brilhar1125 Estabelecido todo o aparato simbólico estrutural político jurídico e religioso com toda cauterização da consciência pelo moralismo da boaconsciência podemos ampliar 1125 Révolution op cit p 245 412 ainda mais a nossa visão de como se dá a rigidez e a flexibilidade da moral burguesa A tudo que ameace o lucro antonomásia atual de propriedade devese aplicar a rigidez da lei a todo pseudomovimento permitido dentro da lógica do mundo do dinheiro que seguramente não vai por em risco o lucro aplicase a flexibilidade do jogo interno de uma moral que carrega a misericórdia concedida por Mamon Esta misericórdia é um simulacro pagão da misericórdia cristã1126 que é a superação da justiça legal pela inserção no âmbito mesmo do legalismo de um elemento de imprevisibilidade marcado por agápe o qual desorienta toda vontade de contenção do real própria da tara juridista Dentro do esquema do moralismo burguês que contempla e dá espaço à incontinência devastadora do capitalismo da busca do lucro custe o que custar mas no limite dos fundamentos sobre os quais radica e se mantém todo o esquema do mundo burguês sua misericórdia tem um preço uma rendição religiosa também completa mas com vistas à objetificação dos indivíduos devotos Ela transforma seus agraciados em objetos e os objetos de reivindicação destes em negócio rendoso Segundo o personalismo todas as querelas de família todas as discussões sobre direitos toda a tagarelice de partido toda reivindicação sindical tendem a se inscrever neste jogo e são tanto mais valorizadas como sinônimo de emancipação de conscientização etc quanto mais fizerem usos dos seus meios de protelação Para o espírito burguês há muito irmanado com a pesquisa científica só se pode discutir de fato a questão do desenvolvimento do avanço do ganho e conquista em matéria de pesquisa científica com esta já comprometida com o seu ideal de lucro e de instalação no conforto1127 Definitivamente em matéria de avanço moral real não se pode esperar nada do espírito burguês e do seu moralismo III3 A miséria e a pobreza Mesmo a miséria para o personalismo o fenômeno limite da vida social como a morte é para vida o nível mais baixo a que um ser humano pode ser submetido recebe sua 1126 Cujo exemplo literário tiramos do ato que transfigurou Jean Valjean em Os miseráveis de Victor HUGO 1127 Apesar de não ser uma crítica direta ao emburguesamento da ciência o livro do professor Lacey todavia apresenta o inelutável comprometimento da ciência com determinados valores que não têm nada de científicos em si Ver LACEY Hugh Valores e atividade científica Fapesp Discurso Editorial São Paulo 1998 413 justificação no mundo burguês1128 O contato com a miséria marcou profundamente a existência e o personalismo de Emmanuel Mounier Esta marca pode ser vista em sua reflexão crítica como o que motiva cada palavra de indignação contra a hipocrisia burguesa que ali encontramos A história da consciência dessa indignação como já dissemos começa no momento em que Mounier trava conhecimento com o Mons Guerry cuja influência sobre o jovem filósofo aberto a questões sociais é ponderável1129 Mons Guerry atuava como coadjutor do Arcebispo de Cambrai vigário de São Lourenço que era o quarteirão mais pobre de Grenoble As visitas constantes que Mounier faz às pequenas comunidades religiosas desse quarteirão permitemno tocar com o dedo na miséria Disto não se esquecerá jamais1130 A partir daí o povo contrário à concepção abstrata do liberalismo como vimos antes representará para Mounier a saúde a verdadeira grandeza perante o espantoso espírito de seriedade1131 com o qual ele se deparou na vida universitária Para o socialismo de Mounier inspirado no de Péguy a miséria é sempre infecunda Um burguês dizia ele Péguy pode imaginar lealmente logicamente que a miséria é um instrumento de cultura e um exercício de virtude nós socialistas sabemos que nenhuma melhoria pode sair de um instrumento de servidão tão perfeitamente articulado A miséria é uma enfermidade sobre a terra um mal absoluto infecundo1132 Todavia o moralismo burguês transforma a miséria em tema publicitário de campanha altruísta Para Mounier que tocou o dedo na miséria ela é a negação de qualquer possibilidade de florescimento da pessoa negada pela impossibilidade de consecução de suas atividades mais elementares Nós relembraremos o que já se sabe muito a família deslocada pela usina o desemprego as privações a brutalidade dos costumes que mergulha na brutalidade da vida todos sentimentos machucados porque é necessário antes vender bem as horas de sentimentos os próprios sentimentos e as próprias intimidades para ter o pão Todo mundo conhece 1128 E parece que no estruturalismo de Marx a miséria não mantém nenhum apelo em sua expressão singular de sofrimento de uma existência negada e dizimada em suas funções mais básicas de existência empírica e de vida espiritual senão como subsumida enquanto categoria de apêndice para a tática da revolução como lumpenproletariado como veremos abaixo em nota n 1136 na citação e comentário de O Manifesto 1129 MOIX Candide op cit p 7 1130 Ibidem 1131 Ibidem pp 12 ss 1132 La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 106 414 teoricamente tudo isso Temse lido os romances É necessário tocar1133 Tocar a miséria como já dissemos dentro da perspectiva ética personalista tem muito mais significado filosóficoexistencial do que a metáfora tátil pode expressar Tocar a miséria está no antípoda do espanto grego com a beleza e a ordem cósmica que segundo Aristóteles dá início à inquirição filosófica A miséria é vista em todo lugar e com qualquer ser humano para o personalismo como a oportunidade de aplicar o modus tollens à civilização burguesa Cada pessoa aviltada é para o personalismo o p q q p sendo p todo o esquema que se mantém no controle da sociedade burguesa com todas as suas instituições e q o excluído social ou seja a prova fatídica o caso particular que falseia a teoria geral burguesa da sociedade universalista teoricamente e elitista na prática Fato é que a própria intenção de fundo da moral burguesa de se colocar como universal é que a coloca a contragosto sob o crivo deste tipo de refutação1134 cuja aplicação um liberalismo de preocupações mais científicas por outro lado costuma orientar como apropriada e específica às outras teorias gerais sobre a sociedade e não a sua própria Assim a sociedade burguesa mantendose na tradição da estratégia argumentativa que lhe possibilitou sua vitória no Ocidente critica nas outras teorias como criticou o modelo medieval nos seus inícios o que pretende todavia guardar e manter como propriedade só da sua É aí que o liberalismo se pretende como a expressão reflexa da realidade como ela é que na verdade nele toma o sentido de única forma da realidade como é possível que ela seja Como toda teoria geral ou paradigma para usar a expressão de Thomas Kuhn1135 a teoria burguesa carrega em si uma ingênita intenção de explicação generalizante e a miséria é para o personalismo frente à moral hipócrita burguesa a exceção que refuta a sua suposta regra Para Mounier a miséria não representa apenas a designação de uma categoria marginal social chamada lumpenproletariado uma parte com a qual não se pode contar na 1133 Révolution op cit p 243 1134 É o que Karl Popper aplica ao marxismo e ao freudismo pela mesma razão que apontamos quanto à moral burguesa mas que a sua passagem para o plano sóciopolítico de uma questão de método não lhe permite avançar em sua crítica escamoteando seus compromissos ideológicos de fundo incontornáveis Para isso ver POPPER Karl Sociedade aberta e seus inimigos Editora da Universidade de São Paulo Livraria Itatiaia Editora Limitada Belo Horizonte 1974 vol 2 Não é desinteressante lembramos o que um dos colegas de diálogo de Popper durante sua discussão com o círculo de Viena diz sobre o título desta obra que segundo ele deveria ser Sociedade aberta escrita por um dos seus inimigos Cf informação por tradição oral em sala de aula pelo professor Oswaldo Frota Pessoa Junior 1135 KUHN Thomas S A estrutura das revoluções científicas Editora Perspectiva 3ª ed São Paulo 1992 415 revolução mas o sinal visível para qualquer um que queira ver de um apelo nos cantos e nas ruas e da mentira da civilização burguesa1136 A miséria é para o personalismo o desmentido dos pseudovalores burgueses e o grito ininterrupto na consciência de cada um que funciona como o termômetro que mede o nível de nossa consciência de participação na sua manutenção Assim como há um toque necessário na miséria há o teste para se saber se não se é tocado pelo seu oposto aquele que porta a promessa contrária da riqueza e que forma o par com os miseráveis os sem nada ou seja os ricos1137 o burguês não é a definição de uma classe mas de um espírito Para saber se se é tocado por ele não é 1136 Karl MARX Friedrich ENGELS Manifesto do Partido Comunista Vozes Petrópolis RS 1988 p 76 O lumpenproletariado essa putrefação passiva dos estratos mais baixos da velha sociedade pode aqui e ali ser arrastado ao movimento por uma revolução proletária no entanto suas condições de existência o predispõem bem mais a se deixar comprar por tramas reacionárias Em nota da edição brasileira Na edição inglesa de 1888 em vez de lumpenproletariado aparecem os termos classe perigosa dangeours class e escória social social scum Seja como for Marx e Engels referemse aqui à camada social composta de trabalhadores ocasionais desempregados indivíduos incapacitados de trabalhar vagabundos criminosos etc Mais tarde em O Capital ed Brás Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1971 Livro I vol II cap XXIII ao estudar a produção progressiva de um exército industrial de reserva pela acumulação capitalista Marx irá referirse a essa camada como sendo o mais profundo sedimento da superpopulação relativa que vegeta no inferno da indigência do pauperismo Em Dezoito Brumário de Luis Bonaparte de Marx encontramse diversas observações sobre o comportamento político dessa camada O termo alemão lumpen quer dizer andrajos É interessante notarmos aqui uma outra comunidade de inspiração entre marxismo e liberalismo ou melhor neoliberalismo Enquanto o aumento do lumpenproletariado significa mais perigo para a consecução da revolução marxista será por essa dica marxista mesmo que o neoliberalismo da mesma forma sem nenhuma dor no coração mas por uma boa causa quer dizer em nome também do pensamento científico do bom uso da razão para a consecução da justiça vindoura pela mão invisível arquitetará o seu plano econômico Neste o sentido claro e cantado a quatro vozes será antes de tudo o de concentrar a riqueza nas mãos de uma minoria Daí então e só então depois do máximo a que se possa acrescer o tamanho do lumpenproletariado estrategicamente e nas entrelinhas como uma maneira de abafar qualquer indício de lembrança da liberdade pessoal e minguar o número de aderentes à comoção social dos revolucionários através do Estado das boasações paternalistas e do aumento por sua vez do número dos aderentes às ações bem intencionadas ditas altruístas por parte da sociedade civil dar a conta gotas a uma sociedade saída da indigência algum gostinho do conforto e da instalação burguesa Isso servirá ao neoliberalismo como uma espécie de aceno misericordioso de um tirano invisível mas claro o suficiente para lembrar aos indivíduos quem é que manda Para isso a altatecnologia e uma crescente mecanização da produção cada vez mais ampliada será a grande chave Depois do neoliberalismo ter rendido totalmente um Estado que tem perdido o sentido de sua existência institucional e ter se transformado ele também num parasita depois do neoliberalismo ter desvirtuado totalmente a produção científica do sentido da pessoa e os valores da ciência ligados à emergência da pessoa na história a uma questão de propriedade de marcas e patentes a sociedade esfacelada como uma chaga bem à vista tem criado todo tipo de evasão por parte dos que de alguma forma ainda conseguem um lugarzinho melhor ao sol concedido por esta neomodalidade de tirania abstrata Diante desse quadro vemos os marxistas ressentidos exmarxistas que se transformaram em cínicos críticos do marxismo em defesa do neoliberalismo há os marxistas ortodoxos que encontram no fundamentalismo ortodoxo intransigente um sentido para permanecerem injustamente em sua justa indignação contra a injustiça os indiferentes que se pintam de vanguarda pela adoção de um relativismo fácil de falar e difícil de defender os liberais instalados que se sentem em um estado de graça com um sorriso fácil e sarcástico diante de tudo quando fora de crise e a grande massa emburguesada que luta entre ceder à abjeção ao último nível por dinheiro ou cair na miséria mas todos querendo chegar lá 1137 Ver o artigo de ULMANN André Largent misère du riche misère du pauvre in Esprit janeiro de 1936 416 necessário pois consultar o nível do seu rendimento mas somente entrar no exame de consciência1138 É nesse sentido que Mounier distingue pobreza de miséria Assim como a burguesia deve ser tratada de maneira mais fundamental como espírito assim também a pobreza antes de ser reduzida a dado estatístico sociológico ou mesmo tema de piedade religiosa deve ser vista profundamente como espírito distinto da condição de miséria Enquanto a miséria é uma imposição destruidora da pessoa e de suas possibilidades criadoras o espírito de pobreza é uma opção da pessoa livre O sentido do desprendimento que está na base mesma do seu próprio ato como pessoa Já falamos que a pessoa sofre resistências tanto internas quanto externas em sua luta pelo real no seu movimento de personalização que implica a sua emergência A opção pelo espírito de pobreza tem o sentido do destacamento interior do desarmamento de quem já não precisa mais de armas para defender e se defender pois possui o bem mais autêntico e precioso possui a si mesmo Tem o sentido da disponibilidade da verdadeira doação da generosidade do respiro de ares mais abertos de expansão que na ação será sempre pronta doação de si na aventura do possível já que é sempre o pobre quem tem a ganhar É só no espírito de pobreza que é possível se realizar a experiência da lei espiritual sobrenatural porque não corresponde ao que as seguranças burguesas do racionalismo nos acostumou a entender como natural do ganho através da perda é se perdendo que a pessoa se encontra é se dando que ela se conquista Fora de qualquer ressonância piegas para o personalismo esta é uma experiência inscrita no próprio ser e conseqüentemente no movimento de personalização Experiência a cuja realização não obstante todos sem exceção serem chamados a realizar o medo que o indivíduo burguês demitido da vida tem mantido sobre a vida dos seres humanos tem sido o seu verdadeiro entrave O ter é um substituto degradado do ser Temse o que não se pode ser mas só se tem uma posse humana na medida em que se trate de ser com ela quer dizer no amor O mal burguês é o de querer ter para evitar ser1139 Todo ato nutrido pelo espírito de pobreza pelo seu teor de generosidade é o que mais especifica e integra a pessoa em seu evento e em sua autoposse 1138 Révolution op cit p 250 1139 Ibidem p 284 417 Como temos dito para a consciência burguesa toda injustiça está previamente justificada A vida humana propositalmente agora desintegrada separada por ela vida privada e vida pública valores privados e valores públicos se encontrava subsumida em todos os destinos pela autoridade milenar de um aparelho romano jurídicoreligioso confuso que a dominava e já mostrava seu ocaso ao mesmo tempo em que a emergência de uma nova civilização Esta foi deixada a cargo como já vimos da burguesia heróica do início que teve muito trabalho para conseguir imprimir nas diversas esferas que hoje a compõem a sua marca definitiva A marca dessa desintegração segundo Mounier prevalece até hoje na confusão reinante entre os apelos legítimos de vida comunitária e as invectivas neoliberais burguesas contrárias que se valem como argumento refutador das traições coletivistas à vida comunitária que se deram por parte de suas irmãs ideológicas coletivistas Nunca será demais dizer que o social assim destacado da comunidade não é um valor espiritual Ele é mais que o indivíduo ou a personalidade Muitas vezes se tem denunciado o divórcio entre o homem público e o homem privado Mas estes tais como são concebidos já são duas monstruosidades O homem privado modelo burguês é a individualidade retirada sobre suas propriedades sobre os seus segredinhos sobre sua inviolabilidade impura vida privada feita não de amor mas de recusa o privado a dádiva da qual se priva os outros1140 Mas a burguesia inicial precisou inicialmente integrada e como portavoz do movimento de emancipação humana que surge como modernidade garantir a manutenção das atribuições e benesses específicas aos antigos mandatários interessados ao mesmo tempo que a promessa de fornecer uma unidade de sentido que substituísse o modelo de comunidade de destino medieval em decadência As atribuições específicas ela consegue pelo lema do tirano dividir para conquistar e a unidade para a consecução de uma comunidade de destino ela constrói aos poucos em paralelo com o seu apoio à razão e à ciência ocidentais Isso ela o faz deslocando o ensejo humano de unidade para a esfera abstrata de sua metafísica intelectualista e deixando o cuidado do mundo da vida com seu movimento intrínseco e já como motivadamente desordenado pelas paixões e pelos desejos particulares sujeito à ordenação racional e aos ditames dos valores que ela assume como absolutos Notadamente sob o signo do utilitarismo 1140 Révolution op cit p 195 418 Sempre em apoio e em nome da justiça legal do juridismo contra a atualização que força no sentido do avanço ético em termos de aspiração por justiça implícita ao próprio movimento de personalização1141 o espírito burguês em nome da lei perpetua a manutenção da injustiça real contra a pessoa O espírito burguês penetra o meio social e faz da sua moral senhora legítima herdeira e guardiã do que se constitui como o certo e o errado em matéria de vida privada e pública Com empenho aguerrido hoje em dia mais em matéria pública mas não tanto em matéria privada pois o espírito pequeno burguês já reina nos corações Já dissemos a justiça burguesa na aplicação da pena é anarcoindividualista o réu é sempre um indivíduo absoluto em si mesmo porque relativo em relação aos outros indivíduos também absolutos em si mesmos Portanto sujeito pleno de suas ações sem possibilidade de recorrer ao meio social como de alguma forma partícipe contribuidor para os seus atos Mas ela é também ao mesmo tempo socialista em sua fundamentação legal pois é a sociedade antes de tudo quem põe o réu em juízo porquanto os seus atos comprometem antes de tudo o social eufemismo que a burguesia usa para defesa da propriedade e do lucro privados Quanto aos bens auferidos à propriedade o processo toma um tom diferente A justiça burguesa capitalista é individualista em relação aos lucros auferidos com a boa consciência de se provarem legítimos pelos mecanismos burocráticos formais apropriados e pelas brechas da lei sempre possíveis de ser encontradas por algum advogado experiente na técnica do direito O lucro na sociedade burguesa onde o dinheiro se encontra totalmente desvinculado de um papel social expresso como integrado a um projeto de sociedade que visa garantir as necessidades fundamentais pelas quais a pessoa possa se realizar e cumprir sua vocação se tornou a mediação de um ente metafísico acima de qualquer suspeita Corresponde a um evento concreto mas que a sociedade burguesa faz incidir como sendo sempre o seu caráter mais real uma justificação do ponto de vista da neutralidade moral implicada apenas no conceito sobre o evento social concreto ao qual responde sempre como a priori moralmente neutro É apoiado pela justificação moral e cultural prévia de sua substância metafísica neutra sempre tomada sem nuances axiológicas possíveis em 1141 Já falamos das pesquisas de Gurvicht em relação ao Direito trabalhista atual o qual surge fora dos ditames legais impostos pelo Estado espontaneamente das mobilizações e organizações dos movimentos dos trabalhadores 419 relação aos valores que a fundamentam na sociedade burguesa utilitarismo pragmatismo hedonismo imediatismo etc Assim para a economia burguesa o lucro já carrega em si sua própria justificação É o troféu e o sinal do sucesso que só espera o aplauso Quanto ao prejuízo será questão individual enquanto for parte necessária do jogo de pirâmide que os técnicos de economia denominam autoequilíbrio sistêmico Quando a pirâmide tem de ser desmanchada e a farsa fica exposta aí sim tornase um problema social em relação ao qual a sociedade tem de arcar com os custos em vista mesmo da manutenção do sistema que a oprime até a nova pirâmide ter de ser também desmanchada mas não sem a promessa por parte dos Estados parceiros de jogo de puxar as orelhas dos donos da banca para que o ciclo de derrocada aumente pelo menos de espaçamento Isso compõe a teleoglogia da crença liberal na metafísica da mão invisível metafísica da eqüidade social final pelo cômputo final distributivo quociente dos egoísmos particulares A imitação religosa o simulacro religioso é patente Todavia essa é a atitude científica que se toma em um sistema que se coloca inelutavelmente como a expressão mesma da natureza e a metafísica do econômico A história desta decadência continua com o individualismo e é para ele que vamos caminhar agora III4 O indivíduo moderno do liberalismo Um dos lemas que ainda continua a valer quando precisamos entender quais são as bases sobre as quais fundamentase uma reflexão qualquer e ainda mais sobre o tema da ética é o seguinte Digame a tua antropologia que eu direi qual é a tua ética Para tanto uma antropologia que não se nutre da concretude da pessoa e elege unicamente pró ou contra um ente de razão chamado indivíduo como base de suas elucubrações para pensar as possibilidades ou impossibilidades do ser humano já apresenta um certo compromisso que para o personalismo se desfigura na base como ainda uma manutenção do desvio histórico e colaboração no adiamento da pessoa esta para Mounier o único concreto Homem artificial o homem do individualismo é o suporte sem conteúdo de uma liberdade sem orientação Homem artificial ele é o cidadão sem poder que elege ao lado dos poderes os homens que venderão o poder Homem artificial ele é o indivíduo econômico do 420 capitalismo mão e queixo como em Picasso Homem artificial ele é o homem de uma classe quer dizer de um conjunto de hábitos de conformidades e de expressões soldadas pela ignorância e o desprezo Mas artífices vivos tirânicos servis pela facilidade e a inércia Nós não teremos razão senão em reencontrar acima do plano onde eles brincam grifo nosso a destinação orgânica e global do ser humano1142 Para Mounier e o movimento personalista em torno de Esprit não obstante o primeiro em sua obra não ter escrito um tratado específico sobre antropologia personalista1143 todavia os elementos se encontram espalhados por toda ela e passíveis de uma reconstituição1144 conceitual e sistemática mas não sistematizante1145 Nessa reconstituição o indivíduo do individualismo egoísta e reivindicativo do liberalismo moderno é o antípoda mesmo da pessoa segundo o personalismo1146 Com isso queremos dizer também que se uma verdadeira crítica à modernidade deve passar pela crítica do indivíduo o personalismo cumpre ao meu ver muito bem esta tarefa pois encara este ente 1142 Révolution op cit p 163 1143 Tarefa por outro lado que havia sido empreendida por PaulLouis LANDSBERG em obra ainda inédita em Português Einleitung in die philosophische Anthropologie Introdução à Antropologia Filosófica de 1934 mas cujos constituintes se encontram já na reflexão de Max Scheler de quem Landsberg fora aluno Ver também o seu outro ensaio sobre La conception de la personne em Esprit n 27 de 1934 Este último ensaio se encontra traduzido em LANDSBERG PaulLouis O Sentido da Ação Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 sob o título Algumas Reflexões sobre Conceito Cristão de Pessoa p7 Infelizmente esta obra se encontra esgotada 1144 Como temos tentado apresentar o pensamento de Mounier é um pensamento itinerante a expressão do tema do livro de Gabriel Marcel Homo Viatur indica muito bem o seu sentido propositalmente alimentado pelo evento ao que Mounier chamará de mestre interior Mounier et sa génération op cit pp 797 ss Uma outra expressão muito feliz e que consegue sintetizar a disposição geral de Mounier diante da vida é obsessão por presença ver Pailler JeanMarie Lobsession de la présence in Actes du colloque tenu à UNESCO op cit vol 2 pp 7 ss 1145 Para o que Mounier diferencia entre sistema e sistemática ver Le personnalisme Oeuvres III p 429 1146 Por aí já podemos perceber como se encaminha a crítica de Mounier à modernidade Para ele desde o primeiro artigo de 1932 Refaire la Renaissence ano de lançamento da revista Esprit tratase de uma crise de civilização Para ele a grande prova disso era a quebra da bolsa de Nova York de 1929 Desde aquele momento em que neste fato Mounier viu o sinal de uma crise civilizatória o personalismo se recusa terminantemente a reduzir a economia a problema técnico e a métier apenas de técnicos A economia como todos os outros constituintes da cultura humana deve ser perspectivada à luz de uma aproximação sempre maior aos requisitos de uma visão que trabalha na intenção das necessidades totais da pessoa humana Vemos que a interdisciplinaridade mesmo hoje como tema comum ao qual se encontra ainda muita resistência já é prevista por Mounier e tornada uma experiência real pelo trabalho em equipe desenvolvido em torno da revista Esprit Na verdade como diz Gerard LUROL Mounier I Genèse de la personne op cit pp 173 ss e passim Esprit conseguiu realizar o que ainda continua como fato inédito na experiência intelectual ocidental religiosa ou não a única experiência de um ecumenismo real O sentimento de que o que unia era muito mais forte do que o que separava é tão presente na reflexão de Mounier que sua aposta intransigente na pessoa e suas possibilidades fez com que cristãos católicos protestantes e ortodoxos ateus agnósticos comunistas judeus maçons etc escrevessem numa mesma revista Para uma maior irradiação como preferia dizer Mounier do personalismo em outras culturas ver os relatos personalistas de africanos vietnamitas árabes em Actes du Colloque op cit vol 2 pp 455 ss III Le rayonnement international 421 de razão de frente É por isso também que entendemos que se deva fazer justiça à contribuição intelectual de Emmanuel Mounier Para o personalismo individualismo e indivíduo estão ligados como a decadência para com o decadente o individualismo primeiro aviltou o individuo depois o isolou1147 O indivíduo é o álibi e o joguete da ideologia liberal no seu adiamento da pessoa É o álibi porque pretende dotálo da atribuição de ser fundante da vida social quando esta é uma atribuição própria da pessoa ser relacional por excelência como temos tentado mostrar É o joguete porque na teoria contratualista liberal o indivíduo começa como sujeito e termina como objeto1148 o que é inadmissível com a pessoa núcleo por sua vez doador e aferidor de sentido em tudo que constitui a vida comunitária Como temos visto é só com a pessoa que é possível se estabelecer uma analiticidade frutuosa pois a sua analiticidade segundo o personalismo é a única que imprime um movimento de teor qualitativo o qual chamamos de looping da pessoa que gera ganhos reais Pois sendo a pessoa um universo inesgotável e por isso o seu caráter não inventariável depois do seu movimento de criação por ela mesma se dá o movimento de aferição que a cada vez na repetição na reapropriação gera um ganho real Um ganho que se dá primeiramente dentro da sua esfera mais própria a esfera espiritual cujas conseqüências para o mundo da vida o mundo da cultura a civilização tem presenciado apenas esboços tímidos mas que são suficientes para o personalismo como desvelamento e indicação de suas fontes e capacidades criadoras Uma das principais características da vida pessoal criadora possível a todos aparece portanto segundo Mounier como a capacidade de recolocação de todas as coisas de todas as horas e todos os dias sob a luz de uma transfiguração constante É em vista da criação das mediações necessárias e condizentes instituições em apoio ao desenvolvimento desta capacidade transfiguradora a que a pessoa é chamada a desenvolver que milita toda revolução 1147 MOIX Candide op cit p 75 1148 Veja o tom com que John Locke trata o seu indivíduo fundante na sua especulação voltada à estruturação da cadeia de produção social Dois tratados op cit pp 465 ss Capítulo VII Da sociedade política ou civil 85 e a sua preocupação constante com o que se destaca como o verdadeiro móbil verdadeiro fundamento da sociedade contratual a propriedade Lá percebemos claramente a metamorfose do indivíduo que passa de sujeito a objeto depois que as regras do jogo estão estabelecidas e aceitas depois da naturalização de um modelo de produção social 422 personalista e comunitária Nesse sentido o raio de ação revolucionária personalista só poderá cobrir o que para tal pode cobrir enquanto crítica uma crítica à civilização1149 A fundação do individualismo que tem como elemento fugaz de base da civilização ocidental moderna o indivíduo segundo o personalismo carrega consigo a sua mística A mística tem um caráter antecedente às fundações Assim a mística da República segundo Mounier que é traída pelos republicanismos a mística do trabalho que é traída pelo trabalhismo etc Da mesma forma é a mística que funda o indivíduo que o torna atraente e como que o espelho de uma época das inspirações mais profundas da humanidade Considerada no indivíduo que ela anima a mística é hostilidade aos contrários1150 paixão de liberdade interior Eu me insurjo contra todos os trotes e todos os importunos e todas estas velhas instituições pelas quais um contingente de autoritários em nome coletivo impõem ou querem impor a alguns livres indivíduos a marca da superioridade comum1151 E ainda O espírito místico é uma liberdade transcendente que sempre escapa para o alto1152 Todavia para Péguy como para o jovem Mounier o ensejo de liberdade que é parte da mística do indivíduo tende para todo tipo de sutileza interior constrangedora tormento interior apaixonado que alguns críticos do romantismo descrevem e que torna sem controle a alma que crê possuíla1153 A mística seria antes uma luz que excita ao fervor mas se afasta da confusão É um centro de união de forças vivas de uma 1149 É perceptível a existência de dois Mounier um do primeiro período até 1936 em que vigora os temas da Revolução ligados a uma crítica da Civilização e seu projeto de Refazer a Renascença e o do segundo período de 1937 a 1938 e sobretudo depois da Segunda Guerra onde Mounier aparece ainda preocupado em definir um modelo global de sociedade de cidade mas de pensar com mais modéstia como ele dirá o construível a partir do dado CF GOFF Jacques le resenha sobre o livro La cite personnaliste dEmmnauel Mounier Presses Universitaires de Nacy 1983 de MarieThérèse COLLOTGUYER in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p 21 Todavia longe de ser uma inconsistência da parte de Mounier na verdade se relaciona ao tipo de experimentação que Mounier com sua equipe propõem através de Esprit a que seja realizada em relação aos valores da pessoa e da comunidade os quais em Mounier para quem o evento será o seu mestre interior não se limitam só a eventos vultuosos como é o de uma civilização mas a pequenos eventos cuja ebulição montante nunca deixa de preparar grandes eventos Mudandose os eventos mudase para o personalismo a forma do engajamento que além de ser um ato integral é um ato inteligente Só um pensamento decadente e de demissão pode achar que não se pode pensar outros engajamentos depois da colocada em cheque das grandes utopias marcadamente coletivistas Esta recalcitrante postura contemporânea serve para os atuais demitidos decadentes como álibi explicativo de sua demissão da vida e de desculpa por sua parte de responsabilidade na injustiça geral e que assim fazendo aceitam às avessas pela negação que o único tipo de ação possível seria aquela das utopias fracassadas 1150 Enquanto opostos tomados em sua irredutibilidade relacional todavia num segundo momento justamente o que acaba se tornando a característica principal do jogo do individualismo maniqueísta 1151 La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 71 1152 Ibidem p 72 1153 Ibidem 423 alma e por aí ela exclui a dissolução da atividade em uma vã procura da gratuidade pura1154 Como vemos o fato de ser o indivíduo e mais especificamente o indivíduo do liberalismo que se lança com o tema da liberdade no Ocidente moderno não faz com que o personalismo se insurja contra a liberdade mas antes contra o meio caminho andando que para o personalismo só pode se completar na pessoa representado por este indivíduo liberal em suas falsas promessas Este indivíduo liberal que surge ao mesmo tempo em que permite que se forjem as aderências de sua pseudoliberdade fora da vida da pessoa o que já demonstra a intencionalidade de fundo do programa liberal que é objetificar o indivíduo portará um caráter exclusivamente subjetivo fazendo com que nele a liberdade que toma força se torne sinônimo de interioridade à qual a experiência original da liberdade faz apelo sem dúvida mas que no indivíduo liberal se perde como lirismo como ruminação interior Desde então essa situação servirá para muito tema de novela mas não para a instauração da verdadeira liberdade Segundo o personalismo a fraqueza da liberdade do indivíduo instaurada pelo individualismo liberal é tão grande que aquele alardeado pelo liberalismo como o bastião contra a multidão num segundo momento em que as instituições liberais já se encontram estabelecidas e legitimadas não consegue deixar de ser atraído e convencido pela força da unanimidade numérica que é uma forma matematizada da multidão Vemos que o liberalismo que se gaba do seu individualismo carrega consigo desde sua origem numa espécie de gestação siamesa o germe do coletivismo que só esperará a hora e o momento certo para nascer e reivindicar também o seu lugar na história É por isso que Mounier desde o início não titubeia em tratar a briga do individualismo e do coletivismo como querela de família Para o personalismo todo jogo maniqueísta é um jogo interesseiro Isso Mounier aprendeu de Péguy para quem a força que move o indivíduo não é forte o suficiente para mantêlo fora do jogo da unanimidade como vimos imposta pela maioria numérica do liberalismo A observação que Emmanuel Mounier faz em relação à crítica do indivíduo por Péguy pode ser colocada como sua ele não crê que o indivíduo seja tudo e crê menos ainda que o indivíduo possa tudo Ele não compartilha nem do orgulho 1154 Ibidem 424 daquele que não é do rebanho nem do dogmatismo pelo qual as minorias se consolam por serem minorias1155 Segundo Mounier via Páguy a unanimidade da maioria além de ser a derrota das aspirações do indivíduo derrota à qual está desde o início fadado a suportar é um insulto à Razão humana em nome da força da razão numérica A unanimidade não prova nada porque o número não prova nada e quando alguns homens discutem em conjunto dizia ele Péguy a Tharaud há entre eles menos de penosa e dolorosa incompatibilidade do que quando eu discuto comigo mesmo A maioria não é uma razão Mas eu não creio que a minoria tenha mais forçosamente razão que a maioria isto depende das espécies só há razão que tenha forçosamente razão1156 A razão aqui não é a expressão demarcada e determinada pelo racionalismo a razão racionalista tem de ser aferida pela razão humana aquela não é a última palavra A razão humana leva a sua lógica mas é uma lógica ampliada é uma lógica que contempla toda personalidade Para o personalismo de Mounier que defende uma lógica tão ampla uma moral compatível só pode ser uma moral flexível O que a respeito disso Mounier diz sobre Péguy será a marca do seu personalismo É evidente pelo contrário que são os métodos flexíveis as lógicas flexíveis as morais flexíveis que são as mais severas sendo as mais estritas Uma lógica rígida pode deixar escapar as sinuosidades do erro Um método rígido pode deixar escapar as sinuosidades da ignorância É uma lógica flexível um método flexível uma moral flexível que perseguem que alcançam que desenham as sinuosidades das faltas e das deficiências A rigidez é essencialmente infiel e é a flexibilidade que é fiel1157 É importante notar nessas palavras de Mounier como Péguy entende a flexibilidade do método ou seja a sua manutenção como sendo algo sem dúvida mais difícil de se realizar do que o que a suposta rigidez de método apregoada aos quatro cantos pelo racionalismo pode nos fazer pensar pela ressonância imediata com que nos chega o limite de significado intrínseco a sua carga semântica previamente comprometida Por traz da rigidez do método racionalista ocultase para o personalismo 1155 Ibidem 1156 Ibidem 1157 Ibidem p 31 425 uma facilidade inadmissível O método flexível como o pensamento1158 sendo mais abrangente do que o método rígido nem por isso é sinônimo de falta de rigor Muito pelo contrário este método flexível pelo alcance que dá a sua dinâmica exige de quem o aplica pelo seu caráter de fidelidade e de escuta ao objeto o mais extremo rigor um rigor que implica para o personalismo um caráter qualitativamente diferenciado do caráter quantitativo que o racionalismo tem apregoado e vinculado ao rigor do seu método Este enquanto reflexão é seletivo no sentido interesseiro contido em sua intencionalidade Aquele enquanto pensamento reflexivo repõe seus próprios construtos sob o crivo da crítica e por isso tem de lançar mão de outras dimensões mais originárias da experiência existencial humana a fim de compor sua epistemologia E isso fora de qualquer ressonância com o chamado discurso politicamente correto a traição da laicidade ou com a falsa piedade religiosa veiculada pelos meios de comunicação a traição do cristianismo Estas traições representam a última modalidade do neoliberalismo de castrar e desvirtualizar o que poderia resultar de verdadeiro rigor transformador destas fontes vitais humildade escuta capacidade de descentralização de compreensão de simpatia etc que por outro lado compõem a epistemologia personalista Já falamos que o personalismo de Emmanuel Mounier segue o lema da Grande Mística distinção sem separação Por trás do atomismo individualista se encontra uma visão totalmente incompatível com a existência finita que para o personalismo é entendida sob o modo de ser relacional Esta noção fundamental que comanda a ontologia e a antropologia personalistas é que dá o tom da filosofia dialógica de Mounier herdada de Péguy Péguy distingue muito bem as separações arbitrárias nascidas da dureza e do ódio e este aprofundamento que sobre o lugar das individualidades ideais ou concretas que não podem mais mesmo ser descritas em termos de espaço e de justaposição vai procurar no abraço do individual a eternidade de onde ele tomou seu vôo audacioso Toda oposição segundo Péguy nós o temos visto sai de uma confusão quer dizer de uma distinção não excessiva mas insuficientemente compelida A singularização grifo nosso conduz à harmonia e ao limite mesmo à supressão de toda adversidade1159 Adversidade e não 1158 Na mística o pensamento é sempre mais abrangente que a razão Por isso uma razão adequada será sempre uma razão abrangente como manda o pensamento e não o contrário Ver INGE Willian Ralph The christian mysticism op cit passim 1159 La pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 73 426 diversidade o espírito segundo o personalismo ama a diversidade e decai com a homogeneidade A singularização por ser a afirmação do incontornável de cada pessoa é ao mesmo tempo a superação da adversidade produzida pela barafunda racionalista que confunde as expressões sociais pontuais da pessoa não lhe dando o direito de resposta com a pessoa enquanto tal Isso segundo o personalismo que não é uma expressão de fé na capacidade criadora da pessoa só pode gerar adversidade infrutífera Temos feito menção do meio caminho que representa o individualismo em relação às exigências da pessoa É necessário aqui uma precisão O liberalismo que se alimenta da retórica da cientificidade compromete o que poderia se dar como expressão viva e vivificadora da realidade concreta com sua vontade de contenção do vital sob os ditames de uma racionalidade pela qual quer instrumentalizar e objetificar todas as manifestações desta realidade Essa morte lenta liberal se dá no plano das expressões concretas No plano das expressões metafísicas onde se encontram as fontes vitais que alimentam as místicas o liberalismo procura estancar o seu jorro potável desviando os sedentos para as fontes insalubres de sua razão impassível e imóvel em si mesma cujo único movimento permitido é o falso e ilusório movimento interno centrado em seus próprios ditames Como vimos essa traição do liberalismo que começa segundo Mounier na modernidade pois prometeu fazer valer o ser quer dizer a finitude em suas instituições e com muito malabarismo e sofisticação retórica faz valer o nãoser quer dizer o mundo da substância tem contaminado todas as místicas Nesse sentido não se trata de estabelecer simplesmente as separações quando a fonte de que se bebe para tal sendo a mesma compromete antecipadamente o resultado É necessário apontar o caminho para uma nova fonte No plano das expressões finitas em que as místicas procuram na condição espaçotemporal realizar suas manifestações que brotam da eternidade o jogo de fricção entre os indivíduos atomizados segundo o personalismo traição e caricatura liberal do modo de ser da relação faz com que estes não completem nunca e não possam realizar a experiência relacional de uma vida pessoal É no sentido de uma reposição da eternidade que não quer dizer uniformidade1160 mas a qualidade mesma condizente com a diversidade das místicas tomadas enquanto puras místicas ou seja como espírito e cuja manifestação ama a 1160 Ibidem 427 diversidade e da singularidade que não quer dizer nem solipsismo nem fricção que o personalismo de Mounier vai ser uma filosofia da escuta Escuta do comprometimento real das místicas veiculadas enquanto expressão singular para com a eternidade de onde brota o espírito transcendência na imanência que como já dissemos e repetimos ama a diversidade É nesse sentido que as exigências da pessoa vão abranger o tempo e a eternidade Por outro lado segundo o personalismo bem longe da pessoa vai o indivíduo moderno reivindicador com sua mística da solidão o individualismo é a metafísica da solidão integral a única que nos resta quando já temos perdido a verdade o mundo e a comunidade dos seres humanos Solidão em face da verdade eu não penso com os outros nas formas e sob uma luz comuns mas separadamente nos abalos da emoção e nas notas concretas que tornam minha consciência única e incomunicável Solidão em face do mundo eisme aqui bem fechado na volubilidade de minhas sensações ou na aventura imanente de minha razão não se trata mais para me dar diante do meu tribunal um valor que o de ser consciente sincero e total a preocupação da psicologia e logo da psicologia pitoresca chamada psicopatologia substitui em mim a preocupação metafísica eu não tenho em mim a não ser o que me diferencia devido à diferença ser tomada na dissimulação ou na doença1161 Solidão em face dos seres humanos então eu digo eu este indivíduo abstrato bom selvagem e passeador solitário sem passado sem futuro sem vínculos sem carne sobre o qual desceu o fogo do Pentecostes que não une nada sua liberdade soberana O mundo moderno o tem desejado suficiente como um deus fraco em todos os elos e vivo no precioso desdobramento de sua personalidade Ele tem representado o devotamento a comunhão e o dom sob a imagem grosseiramente espacial da exterioridade e está persuadido rejubilante em seu egoísmo natural por uma hábil delicadeza moral de que toda relação com o outro é um odioso constrangimento Humanismo Este humanismo reivindicador não é senão um disfarce civilizado do instinto 1161 A psicopatologia eivada ainda de preconceito positivista quer perspectivar os problemas unicamente dentro da causalidade herdada de um método quantitativo e fechado Essa busca por dar um caráter científico as suas pesquisas que tocam diretamente a vida humana as compromete com o racionalismo compromete tanto sua cientificidade possível quanto encobre seu comprometimento com a ideologia dominante do liberalismo que vibra sempre no sentido da adaptação do indivíduo ao meio 428 de poder o produto sobriamente impuro que ele poderia dar em país temperado sob o policiamento benevolente do pensamento analítico e do juridismo romano1162 Todavia tratase na crítica elaborada pelo personalismo da busca de lucidez Ao instinto subjacente ao indivíduo se encontra a dignidade da pessoa Não acusamos nem o pensamento analítico que não era destinado ao atomismo nem a noção de direito muito menos sumária e unilateral que aquela da reivindicação1163 Quer dizer para Mounier nunca é questão de se jogar fora a água e o neném juntos Há toda uma psicanálise a se fazer deste individualismo cuja linguagem sublimada em termos de liberdade autonomia tolerância cobre o reino brutal das concorrências e dos golpes de força O instinto subjacente é coberto de todas as dignidades da pessoa a prudência sobre a avareza a independência sobre o egoísmo o domínio da ação sobre os sentimentozinhos de propriedade1164 Esta crítica de Mounier que se encontra nos seus primeiros escritos que cobrem os anos de 1932 e 1936 demonstra bem se não o fim ao menos o caminho e a entonação que ele iria dar como diretor de revista ao seu projeto de filosofia dialógica No caráter de presença implicado em uma filosofia dialógica como a sua a entonação de sua crítica ao indivíduo não pode ficar restrita ao âmbito noético deve alcançar o plano da ação E é em sua aproximação dinâmica ao universo pessoal como contraprova à crispação do indíviduo liberal que já podemos perceber este giro sutil do pensamento para o mundo da ação o que representa precisamente a principal característica do ato filosófico de Emmanuel Mounier e que muitos têm tido dificuldade em entender como filosofia Nesse sentido uma palavra de Mounier Nós não transportamos a pessoa para o indizível Mas como uma experiência rica mergulhando no mundo se exprime por uma criação incessante de situações de regras e de instituições Mas sendo este recurso da pessoa indefinido nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza Mais do que um objeto visível ela não é um resíduo interno uma substância batida sob nossos comportamentos um princípio abstrato de nossos gestos concretos isto seria ainda uma maneira de ser um objeto ou um fantasma de objeto Ela é uma atividade vivida de autocriação de comunicação e de adesão que se alcançaria e se conheceria em seu ato como movimento de personalização Quem se recusa a escutar o seu apelo e se engajar 1162 Révolution op cit p 158 ss 1163 Ibidem p 160 1164 Ibidem p 160 429 na experiência da vida pessoal perde o seu sentido como se perde a sensibilidade de um órgão que não mais funciona Ele a toma então por uma complicação do espírito ou por uma mania de seita1165 Todo problema será o de discernir sem complacência a voz do indivíduo da voz da pessoa1166 Tomar consciência em nós em torno de nós da mentira coletiva e individual1167 Mounier qualifica de primeira Renascença a que ocorreu no século XVI caracterizandoa como uma atitude que inicia a inimizade humana e o individualismo decadente de quatro séculos Depois desta Renascença surge uma outra em resposta a ela caracterizada por uma volta ao ideal comunitário o Refazer a Renascença título do seu primeiro artigo em Esprit de 19321168 significa para Mounier empreender um movimento que vise a pessoa não o indivíduo e a comunidade não o coletivismo uma revolução personalista e comunitária O caráter amplo que Mounier dá a sua crítica dados os seus pressupostos só poderia ser assim visto que não se trata como temos tentado apresentar por um lado de demissão crítica pela crítica que não critica a si mesma e se vale da crítica como álibi para o não envolvimento desconstrução que não se desconstrói a si mesma nem por outro de apresentar propostas de retoques institucionais institucionalismo de ver ainda o que pode ser salvo mas de enfrentar um mal de civilização que para a geração lúcida de Mounier se apresentava patente Dentro das exigências que temos apresentado e que se destacam do tema da emergência e insurgência da pessoa humana na história dado o seu caráter também de sentido universal vemos o quanto o projeto de Mounier procura ser conseqüente Pois esta sua retomada do projeto da Renascença enquanto projeto mesmo de civilização indica o caráter proposital de inserção histórica do personalismo e a estratégia do mesmo enquanto tentativa de recolocar nos trilhos da pessoa e da comunidade o caminho que a civilização moderna tem desviado para o individualismo e o coletivismo1169 1165 Le personnalisme Oeuvres III p 431 1166 Révolution op cit p 206 1167 Ibidem p 368 1168 Ibidem p 137 a 174 1169 Ibidem p 184 430 III5 O capitalismo Toda nossa experiência de anos recentes aflui sob a enumeração que vamos relacionar No regime capitalista nós sabemos o porquê da crise das guerras da corrupção das greves e dos ódios A questão não se coloca mais para nós então como a de se saber se este regime responde à definição de tirano Devese dizer antes que jamais tirano algum dispôs de um poder tão universal de esmagar os seres humanos pela miséria ou pela guerra de um extremo ao outro da terra que tirano algum acumulou no silêncio da normalidade tantas ruínas e injustiças Há mais ainda Entre o tirano pessoal e seus súditos subsistem ainda algumas relações humanas mesmo que seja a do ódio Mas onde está ele o Leviatã deste século Ele se encontra desde as sociedades anônimas aos administradores irresponsáveis das contas em banco e até mesmo das hipotecas de crédito como uma máquina financeira cega onde o plantador de algodão cairá por causa da baixa do cobre em relação à qual os próprios empregados têm perdido hoje o controle Se a alma do governo é o elo de amizade e de fidelidade que religa organicamente os governados ao poder onde atálo hoje1170 Antes desta passagem que pertence a um artigo de 19331171 neste mesmo artigo Mounier discorre sobre a questão da resistência ao tirano na tradição do pensamento cristão1172 Se nenhum cristão pode combater o poder estabelecido por ambição pessoal ou pelo gosto da aventura a correr há um momento em que esta submissão de fato segundo a tradição teológica não é mais um dever para os governados É aquele onde o regime tornase tirânico quer dizer onde o soberano em vez de governar em vista do bem comum o faz em vista do bem privado do tirano O De Regimine principium1173 enumera os defeitos de um tal regime ruína sangue insegurança as liberdades são maltratadas a grandeza de alma e a alegria desaparecem dos corações as discussões se multiplicam no país e o aviltamento invade os costumes políticos Neste momento é o próprio soberano quem se tornou sedicioso é ele quem tem ferido esta alma do poder legítimo a unidade do bom direito e da utilidade comum é ele quem está em 1170 Ibidem p 386 1171 Rupture entre lordre chrpetien et le désordre établi Ruptura da ordem cristã e a desordem estabelecida in Révolution op cit p 371 a 303 1172 Em nota op et loc cit Mounier apresenta a seguinte referência Para o que segue ver notadamente são Tomás Sum Th IIª IIªe q 42 a 2 Commentaire à la politique dAristote III cap V e o artigo Insurreição do Dicionário de Apologética de A dAlès 1173 Nota de Emmanuel MOUNIER op et loc cit I 3 431 estado de revolução contra a cidade sendo o ato revolucionário um ato de ordem a serviço da cidade1174 Este texto esclarece o anterior em aspectos importantes A experiência dos eventos contemporâneos pelos quais a geração de Mounier passava se enquadrava perfeitamente para os personalistas na descrição histórica dos defeitos indicadores de que se estava sob um regime tirânico Todavia para Mounier e sua equipe a situação calamitosa e desastrosa a que o paroxismo do sistema capitalista havia chegado e conduzido as nações que apostavam nele naquele tempo não indicava a Mounier a oportunidade de dar um melhor tratamento na precisão de uma conceito Aos intelectuais personalistas conscientes dos compromissos pessoais consigo mesmos quer dizer com seus valores e de suas responsabilidades quanto ao esclarecimento da situação para a população fora das complacências e das meiaspalavras para o campo da lucidez esta situação que eles sentiam como dilacerante pela capacidade de simpatizar com o sofrimento dos outros não se lhes apresentava como a oportunidade de burilar melhor um conceito A indignação comum sentida em relação àquela situação desastrosa lhes fazia sentir uma tal redução nocional daquela catástrofe econômica algo mesmo odioso Pois suas implicações sociais catstróficas amplas representaram para muitos países europeus na época não obstante a França não ter sido o mais atingido a morte a miséria a abjeção a humilhação a destruição em último nível das resistências psíquicas que ainda davam algum ensejo para esperança de milhões de seres humanos O crash da bolsa de Nova York de 1929 foi o marco e o estopim da indignação que moveu à ação Mounier e sua equipe na realização do projeto incerto economicamente e arriscado politicamente de lançamento da revista Esprit laboratório de idéias pautado sobre o diálogo irrestrito com vistas ao esclarecimento das bases sobre as quais para Mounier uma revolução personalista e comunitária se colocava como necessária e poderia ser realizada Em vista disso o fato de Mounier ter deixado para trás um futuro promissor de professor universitário atitude que fazia os amigos manearem a cabeça lamentando a perda de tão grande oportunidade que ela lhe representava1175 cuja bolsa de doutorado na Sorbonne porta de entrada certa para a vida acadêmica Mounier havia ganhado em 1174 Révolution op cit p 386 1175 Mounier et sa génération op cit p 485 s 432 segundo lugar depois de Raymond Aron é um sinal ainda para nós hoje do tamanho de sua indignação1176 Digo que é um sinal ainda hoje pelo fato de que no âmbito da insegurança social geral a que a maioria das pessoas comuns está submetida no Brasil1177 é fácil simpatizar e perceber o custo e a dificuldade que representou para Mounier a tomada de uma atitude de risco pautada sobre valores firmemente assumidos E ainda mais principalmente quando o espírito social que vigora hoje no Brasil é em todas as partes o do mais assombroso conformismo com a honrosa ressalva e exceção com todos os seus problemas do Movimento dos SemTerra A insegurança geral mais o acúmulo desse assombroso conformismo social nos dá uma idéia da indignação que motivou o ato filosófico de Emmanuel Mounier e o moveu para a realização do seu projeto arriscado de lançamento de revista Essa indignação de Mounier pode ser sentida também quando vemos que para a manutenção do atual estado degradante não são poupados os meios mais hipócritas e mais baixos de mentira social veiculados a granel todos os dias indiscriminadamente pelos meios de comunicação numa espécie de orquestração de um complô geral uma verdadeira Internacional da Morte Internacional cuja manutenção não obstante toda justificativa toda retórica todo divertissement veiculado os meios de comunicação realizam ao preço de muita alienação conformismo derrotismo degradação 1176 É dilacerante coincidência que no exato momento em que estou preparando este texto o sistema do atual capitalismo financeiro regime de irresponsabilidade por excelência e que domina atualmente a face da terra está pondo de novo de Wall Street todo o mundo atual a passar por uma crise econômica cujas proporções e o alcance social sendo ainda completamente desconhecidos todavia não ocultam o fato de que em termos de alcance nefasto e destrutivo a de 1929 perto desta já passa bem longe Esta triste realidade este factum dão ainda mais o tom de contemporaneidade e pertinência ao pensamento de Emmanuel Mounier e sua equipe E faz valer ainda a palavra do personalista Denis de ROUGEMONT que dá no Prefácio de 1972 ao seu livro Penser avec les mains escrito em 1935 e lançado primeiramente na revista Esprit não vejo nada de inovador nem na esquerda nem na direita Mao o único talvez inova indo além de Marx pela idéia totalmente herética de revolução cultural título de um dos meus capítulos em 1935 Não vejo uma só revolução no mundo moderno que tenha chegado a outra coisa que reforçar o estado central o chauvinismo a polícia Portanto eu creio na revolução tal como a define Penser avec les mains a conversão das finalidades a instauração efetiva de uma hierarquia nova dos fins da vida cívica 1177 O professor Antonio Joaquim SEVERINO Le personnalisme et les défis posés à lanthropologie contemporaine um regard brésilien in Colloque tenu à UNESCO op cit vol 2 2006 p 541 ss na conclusão de sua apresentação na época dos dados alarmantes que denunciavam a situação da injustiça social que vigorava no Brasil diz A análise que Mounier fez da civilização ocidental dos nos 30 a 50 se adapta perfeitamente com a que vigora hoje no Brasil que não tem tido êxito em prosseguir no seu projeto civilizatório p 545 Não obstante algumas alterações que ocorreram no governo Lula e que prometiam alguma coisa a mais do que a manutenção do núcleo duro da injustiça social brasileira não penso que muita coisa tenha mudado para melhor no sentido da superação do esquema do oportunismo que sempre caracterizou a pseudopolítica representativa brasileira de sempre agir conforme a força das circunstâncias Circunstâncias postas e mantidas sempre por uma minoria insignificante bem situada por um apêndice social brasileiro para o qual o problema do ganhapão diário está mais do que resolvido 433 humana e aposta entre as emissoras quanto a quem é capaz de acrescentar um grau ainda mais baixo na degradação e abjeção humana no Brasil e tudo com a conivência do Estado neoliberal de Direito e suas respeitosas Instituições legítimas Humilhação essa numa sociedade historicamente dilacerada e que ainda não encontrou o caminho da pessoa como é o Brasil Todavia manutenção sempre mais à vontade por parte dos meios de comunicação e com sorriso fácil nos lábios quando fora de crise quando anunciam hipocritamente que tudo está bem e sob controle quando na verdade tudo corre para o abismo Tudo isso pode nos dar uma idéia da indignação que moveu Mounier ao mesmo tempo em que nos esclarece como se dá esta suposta nova modalidade do capitalismo chamado neoliberal Seu requinte de violência de refinamento abstrato no trato e ocultamento das cifras de dinheiro do capital financeiro que alcançam o número impensável há poucos anos atrás de bilhões e trilhões sem que guardem qualquer correspondência com a produção social humana finita que seria o único referencial concreto que poderia dar a este dinheiro virtual um lastro real é algo assombroso O nível de alienação a que o espírito pequenoburguês tem submetido os indivíduos pulverizados nessa sociedade esfacelada aumenta na mesma proporção em que aumenta a sofisticação desse seu poder de violência de destruição e de exaurimento de qualquer expressão real de vida1178 O grau de resignação a que o povo que se quer faz idéia do que significa liberdade tem chegado é algo que nenhuma alienação religiosa oficial sozinha conseguiu emplacar pois teve sempre ao lado do seu discurso alienante de lidar com as dimensões e os valores concretos da liberdade e igualdade inerentes ao próprio fenômeno religioso como já descrevemos Esse é o preço que a sociedade atual tem de pagar por ter consentido e acreditado na falsa laicidade liberal e nas promessas do racionalismo como capaz de dar conta dos problemas significativamente humanos Para esta subjugação foram necessários séculos O neoliberalismo atual livre do seu alterego o comunismo parece não conseguir se conter em seu embriagamento abstrato e alucinado que pulsa no sentido de objetificar subjugar e neutralizar toda e qualquer expressão do mundo da vida aos ditames de sua ânsia 1178 A esse dinheiro virtual que inflaciona toda estrutura econômica irresponsável do capitalismo financeiro atual e que não tem lastro algum com a produção social real e nem com as necessidades concretas da pessoa os economistas chamam como um termo bem neutro e científico de derivativos enquanto que em termos técnicos do Direito Criminal chamaríamos estelionato 434 pelo lucro fácil sem trabalho prestado Não obstante essa dinâmica de insegurança e violência geral estabelecida e mantida de maneira a mais sofisticada que já se tenha pensado pelo atual capitalismo financeiro hoje com grande apoio por todo aparato disponível das tecnologias de comunicação à longuíssima distância em tempo real e da informática meios com os quais a época de Mounier dos anos trinta do século XX nem sonhava sempre nos será impressionante um testemunho filosófico como o de Emmanuel Mounier e sua equipe de personalistas Ademais e antes de tudo nenhum tirano se proclama como tal ou seja como em aberta revolução contra a cidade pelo contrário sua estratégia e preocupação constante daí a insegurança que caracteriza o regime tirânico para com o próprio tirano que tem de viver de e em um estado de mentira hipocrisia desconfiança e perfídia generalizadas é manter a sensação de que as suas intenções são as melhores possíveis para o povo que os percalços e a situação de vexação sentidas e mantidas são provações necessárias para o povo em vista de um equilíbrio que virá no futuro daí ser necessário o bomsenso de ações conjugadas pela força irresistível das circunstâncias quer dizer uma covardia mantida pelos tiranetes chamada política do possível que as queixas e dissensões intestinas são causadas pelos verdadeiros traidores da nação e não pela ordem estabelecida que tem o seu tempo próprio para voltar ao equilíbrio e que deve continuar sendo dirigida pelo soberano de quem o tirano busca a legitimação para a manutenção do seu desmando1179 Além disso a análise final de um regime tirânico só pode se dar depois do fim do seu regime Este é o caso da possibilidade de se avaliar sempre mais exaustivamente as tiranias históricas já passadas Todavia para o personalismo é possível também uma análise interna a regime tirânico e muitas vezes uma antecipação crítica quanto ao sentido tirânico para o qual o rumo dos eventos caminha Este é caso da crítica do filósofo personalista Paul Louis Landsberg ao hitlerismo que ele começa desde 1930 na Alemanha de onde tem de fugir em 1933 e que muito serviu como base da critica que Mounier começa a elaborar Por outro lado também a maneira pela qual a emergência a que os eventos de seu tempo conduzia representava já para Mounier o sinal cabal de que se estava na verdade 1179 Uma caracterização clássica do tirano se encontra em LA BOETIE Discours de la servitude volontaire GF Flammarion paris 1983 pp 131 a 171 435 não simplesmente sob um regime tirânico pois nesse como nota Mounier ainda haveria o sentimento humano de ódio Mas agora pergunta ele onde está o Leviatã deste século para nós ao menos o odiarmos Nesse sentido podemos dizer que para Mounier o capitalismo não responde à definição de tirano pois ele ultrapassa o tirano em capacidade e sofisticação de destruição e permanência no anonimato Nesse sentido e dadas as circunstâncias elaborar uma apreciação de busca acadêmica de rigor conceitual simplesmente como já dissemos quanto a se o capitalismo um sistema antes que um indivíduo poderia ser identificado com a noção histórica de tirano que sempre fora pensada em relação a um indivíduo concreto se apresentava a Mounier e sua equipe como uma preocupação um tanto quanto pueril Como temos dito a tara do liberalismo é o abstracionismo propositalmente mantido justamente pela condição que sua psicologia de fundo propicia na geração do sentimento na maioria das vidas que vivem sob sua égide de inapreensibilidade de ininteligibilidade notada por Mounier pela sua pergunta sobre onde se encontrava o Leviatã deste século e que serve justamente para tornar incólume o furor desvairado por lucro custe o que custar interno ao próprio movimento anárquico e avassalador do capitalismo Para este as exigências da pessoa como temos tentado apresentar aqui à luz do personalismo de Emmanuel Mounier porque representa o antípoda a sua anarquia simplesmente não existem Sendo assim como em toda matéria ligada ao espírito e a presente perspectivada pelo personalismo e para a frustração da razão tecnocrata é uma delas não se trata de preocupação com a pura descrição busca de uma exatidão pedante e indiferente quanto à correspondência ou não históriconoética de um conceito mas de um despertamento A curiosidade conceitual pode gerar algum bemestar intelectual mas a redução ao preciosismo a que esta atitude marcadamente racionalista tende a se deixar levar não é forte o suficiente para despertar a pessoa para a necessidade de um passo além do puro conhecimento conceitual quer dizer à consciência que lúcida procura o momento adequado de inserirse no tempo para a ação E é justamente isso a esse despertamento da pessoa consciente que a reflexão que Mounier e sua equipe iniciam em Esprit se propunham lançar Como o seu apelo é à pessoa ou seja a qualquer um e sua intenção socrática é levar a filosofia dos gabinetes para as ruas esse jeito diferente de fazer filosofia sempre foi suspeito ao pensamento acabado e ao sério da universidade Para o realismo 436 integral de Emmanuel Mounier que postula um pensamento encarnado em que o corpo também participa do pensamento como já vimos para o personalismo o pensamento é sempre mais amplo do que a razão em que a carne e o sangue têm a palavra da hora uma decisão que não concorra para a busca das satisfações legítimas da dimensão corpórea necessárias para a expansão e o desenvolvimento das potencialidades criadoras da pessoa e o pleno cumprimento de sua vocação tende a ser uma evasão e justificativa da ascese a que a minoria beneficiada pelo capitalismo quer submeter a maioria dos seres humanos É o fardo do neofarisaísmo impingido sobre o povo mas no qual os fariseus atuais não estão dispostos a encostar uma unha sequer1180 Mounier mantém a consciência dessa fraude O capitalismo tem chamado as reivindicações por justiça e as cóleras das pessoas pobres de materialismo pessoas que têm crido que ele era verdade e que têm ido para onde na verdade elas são rejeitadas Quando o individualismo e o capitalismo se afirmam defensores da pessoa da iniciativa e da liberdade eles cometem a mesma mentira que quando eles afirmamse defensores da propriedade Eles defendem a palavra para melhor expropriar a coisa1181 grifo nosso Temos falado da tática do abstracionismo de todo construto racionalista liberal de sempre localizar fora da pessoa o núcleo de sentido que quer manter sempre sob os seus cuidados Pois em relação a este núcleo o liberalismo se sente o herdeiro capaz o preceptor teórico da humanidade e em torno do qual sempre espera o bomsenso do mundo inteiro de mantê lo como eixo Todavia para o personalismo não há ordem econômica válida em si mesma grifo nosso a economia deve ser apenas o melhor meio de proporcionar a todas as pessoas a exata medida de bens materiais necessários para o desenvolvimento espiritual de cada uma1182 Esse gnosticismo interesseiro de ódio ao corpo ao corpo dos outros essa ascese de decadência ascese para os outros esse neopaganismo da laicidade moderna chamada capitalismo ultrapassa os quadros de referência crítica que o racionalismo propositalmente permite O que já demonstra o quanto o racionalismo é comprometido com esse sistema Essa união histórica sobre a qual já esboçamos algumas aproximações entre o 1180 Amarram fardos pesados e os põem sobre os ombros dos seres humanos mas eles mesmos nem com um dedo se dispõem a movêlos Mateus 234 1181 Révolution op cit p 179 s 1182 Ibidem p 206 437 racionalismo filosófico o liberalismo político o espírito burguês e o capitalismo nos leva a crer que o racionalismo seja mesmo a filosofia dessa ideologia difusa Portanto se o que temos dito até agora à luz do personalismo de Emmanuel Mounier acerca das exigências da vida pessoal criadora pode servir como referência para estabelecermos um balanço crítico sobre os resultados a que o capitalismo tem conduzido a civilização em função dessas exigências justificase a resposta negativa à colocação anterior de Mounier A questão não se coloca mais para nós como a de se saber se este regime responde à definição do tirano Não definitivamente para Mounier o capitalismo não responde à definição de tirano ele a ultrapassa Repetindo com o tirano individual ainda resta alguma relação humana mesmo a de ódio mas o nível de abstração a que o capitalismo chegou1183 e a invasão em todos os domínios pelo espírito burguês com sua justificação a priori de toda e qualquer injustiça só nos deixa a alternativa de tratálo como uma espécie de religião ou melhor de anti religião ou morte de toda verdadeira religião Todavia a tirania na perspectiva personalista não se reduz nem à figura concreta do tirano e nem ao conteúdo estritamente nocional implicado no conceito Para o personalismo em que toda e qualquer ação na finitude tem uma implicação e extensão éticas por causa dos valores que a antecedem como fundamento a tirania é antes de tudo um modo de ser Para tanto uma outra figura que marca correspondência com o que significa tirano é pelos valores que o fundamentam 1183 E veja que na época em que Mounier escreve o capitalismo ainda não tinha alcançado o refinamento abstrato quer dizer sem ligação ou vínculo direto com a produção social a que hoje é possível graças à informática e à possibilidade de geração virtual de valores astronômicos sem nenhuma correspondência com o mundo real muitas vezes equivalente ou superiores ao PIB de muitas nações e que vão parar nas mãos de um único indivíduo com poder pleno de movimentação especulativa destas somas cuja manobra tem o poder de comprometer a economia de um país inteiro A Finlândia que consentiu em ser um dos cassinos do jogo capitalista há pouco de uma condição de país rico se viu em estado de calamidade em poucos dias após o anúncio da crise atual Crer que se pode estabelecer e manter os vínculos sociais humanos complexos tomando o dinheiro como a cola social última a medida única social é um dos engodos do reducionismo que a ideologia do neoliberalismocapitalismo tem imposto à civilização ocidental A catástrofe humana que este engodo tem causado ao custo de muita retórica mentira tem impedido a grande maioria de alçar algum nível mais significativo de existência livre e responsável além daquele de uma vida apenas epidérmica genital com ares de emancipação chamada liberdade sexual a que essa retórica liberal permite à grande maioria dos seres humanos no seu esquema esclerosado Esta situação só aos poucos e com muita resistência tem sido sentida e vislumbrada em sua capacidade destrutiva Todavia estas questões gritantes que apontam para o capitalismo como a principal causa são desviadas desse foco mantendo o tirano no anonimato e dando mais tempo para sua ação funesta Enquanto isso o capitalismo vai esvaziando e castrando neutralizando toda seiva de vida dos valores mais significativos da existência humana Valores que a humanidade ao longo do tempo tem se esforçado por realizar e que se encontram hoje negados em proveito de uma redução existencial necrófila da vida humana como busca do dinheiro cuja possibilidade de aquisição real é comprometida de saída para uma maioria esmagadora e cada vez mais crescente 438 como já vimos a do indivíduo egoísta e reivindicador burguês e liberal surgido na modernidade Mounier é atento a este caráter difuso do espírito capitalista já como sensibilidade e cosmovisão Ele não pode simplesmente querer enquadrálo como uma figura não obstante serem os técnicos e jornalistas de economia quem veiculam o estranho costume de usar expressões antropomórficas para explicar as chamadas reações do mercado Com estes não se trata de reações do tipo das que se dão em laboratório de experimentações químicas mas reações humanizadas o mercado terminou o dia em euforia ou tem estado calmo está apreensivo etc Parece que há a necessidade de humanizar um pouco o Moloque impiedoso não obstante todo o sério do economiquês que quer nos fazer crer que quanto ao seu discurso tratase de ciência pura de coisa de técnicos e especialistas Explicase que o uso da linguagem antropomórfica se dá porque ela é a mais acessível à compreensão da população que de outro modo não conseguiria entender um pouco a gnose o conhecimento que é revelada somente a poucos É sempre coisa de quem entende Todavia não obstante o não enquadramento por parte de Mounier do capitalismo dentro de uma categoria histórica sempre tratada como pertencente a um indivíduo como por exemplo é a de tirano há uma outra noção da qual Mounier se vale e que pode cumprir muito bem este enquadramento sem carregar apelo antropomórfico tratase da noção de soberano que Mounier usa na segunda citação inicial deste tópico Esta noção de soberania é a finaflor do juridismo racionalista moderno1184 Seu caráter abstrato possibilitou aos juristas seus formuladores desvincular a questão do mando político das reivindicações papais de plenitudo potestades por conta de sua transferência da idéia de Igreja Universal para a de Império Universal e através dela estabelecer uma instância pela qual a questão do poder encontrasse sua própria objetividade e fosse tratada então objetivamente quer dizer racionalmente Esta noção abstrata possibilitará nesse momento da história ocidental ao mesmo tempo a desvinculação da questão da prerrogativa do mando político laico das históricas e tradicionais reivindicações papais sem que por isso as noções de indivisibilidade e unidade do poder fossem abandonadas A noção de soberania proporcionará deste então 1184 Para uma gênese desta noção ver BARROS Alberto Ribeiro de A teoria da soberania de Jean Bodin Unimarco Editora São Paulo 2001 439 ao juridismo moderno a manutenção do que o papado reivindicava para si mas num âmbito de tratamento puramente noético como um centro de poder livre e autônomo que não conhece limites legais1185 Assim o juridismo moderno conseguiu a façanha que nem o discurso religioso milenar amparado pela idéia de representante direto de Deus conseguira a façanha de deslocar a questão da prerrogativa do poder de mando político no mundo da vida laica como agora relacionado e em função da chamada legitimidade Ou seja do quanto a forma de poder adotada monárquica aristocrática ou democrática avaliadas sob os ditamos dessa esfera superior chamada soberania se mantinha dentro da esfera de atribuições próprias a sua natureza sem decair em sua degenerescência correspondente tirania oligarquia ou anarquia o que conduziria justamente à perda da legitimidade Ora como temos visto com o claro comprometimento total dessa suposta esfera abstrata acima do mundo da vida instância última comprometida em sua própria lógica de aferição e definição da legitimidade política com o mundo do dinheiro desde pelo menos o século XVI com o surgimento do capitalismo quanto mais este comprometimento de fato se torna patente aos olhos do mundo colocando assim em risco sua suposta objetividade sua neutralidade sua cientificidade a suposta amoralidade de suas ações tanto mais o aumento dos estragos que a anarquia ingênita ao sistema capitalista ligada aos ditames de sua lógica implacável acompanha um proporcional aumento real do uso de policia por parte do seu agentemor o Estado e todo o arsenal institucional e jurídico de que dispõe a fim de contenção e manutenção dessa sua ordem social E agora muito mais à vontade mas cada vez mais exposto Pois o capitalismo não tem mais o seu filho bastardo o comunismo para manter a briga de família por espaço que até então servia também para despistar as atenções Parece então segundo a percepção personalista que o maior nível de abstração que a lógica capitalista consegue auferir em abandono do mundo da vida concreta com seus problemas causados pelo caráter intrinsecamente nefasto de sua própria lógica faz aumentar em proporção direta e hipocritamente em nome da liberdade e da igualdade o uso da violência pelo Estado cooptado uso avalizado por suas instituições legítimas de justiça Para o personalismo este é o tempo de gestação do tirano herdeiro que virá reivindicar o seu direito ao despojo 1185 BARROS op cit p 26 440 Fato é que o capitalismo quer se colocar como a vanguarda da economia na verdade a última palavra em sistema econômico Isto ele também o faz hoje abertamente porque encontra para o seu álibi já uma civilização que forjada sob os moldes da compreensão da psicologia racionalista ultrapassada que se esboça a partir do século XVII do indivíduo moderno como puro feixe de paixões e desejos desordenados sujeito às restrições legais quando o desvairo de sua incontinência ponha em risco à ordem liberal em outras palavras o próprio sistema financeiro que o representa por outro lado é visto como o sistema que possibilita a boa utilização dessa força que até certo ponto deixada a si ou seja ao jogo egoísta que lhe é própria por uma força oculta cuja gnose só os seus sacerdotes os técnicos podem decifrar o seu grande idealizador Adam Smith chama de mão invisível III6 A mão invisível Sobre esta expressão mão invisível por seu apreço e por ter sido tão acalentadamente defendida pelo liberalismo histórico mas sobre a qual pouco se fala hoje cabe uma palavra Para o personalismo que vê todas as obras humanas sob o modo de ser do artefato e entende pois ciência como um fazer humano e economia como uma dimensão autêntica da vida pessoal responsável ambas em vista das prerrogativas do ser humano e advindas da pessoa portanto no que ela representa enquanto expressão de vida econômica esta expressão do liberalismo mão invisível reguladora não pode se sustentar Não por causa de questões de aprimoramento conceitual mas por questões essenciais metafísicas Para tanto há um grande esforço por parte dos economistas liberais atuais em procurar maquiar esta metafísica do pior do que sobrou do paganismo antigo com sua retórica economiquês pseudocientífica em sua defesa desta que é politicamente incorreta porque ofensiva aos ouvidos sensibilizados de hoje em dia mão invisível reguladora do mercado Essa preocupação em maquiar a metafísica da mão invisível tem sua base no fato de que em relação a como se deu a sua defesa no século de Adam Smith até o XIX soaria hoje em dia ridícula Tratase de doutrina semireligiosa de defesa da providência salvadora pela capacidade intrínseca sem interferência humana consciente de 441 autoregulação do mercado Todavia mudase o nome mas a essência continua a mesma Pois é esta doutrina semireligiosa que continua na base de todo otimismo abstrato neoliberal Um dado paralelo pelo qual a chamamos de doutrina semireligiosa está no fato mesmo dessa necessidade de cunhar novos conceitos como se isso num passe de mágica mudasse a essência das coisas É sabido que na Antiguidade o nome em relação ao deus compunha a essência daquele deus Assim quem soubesse possuísse o verdadeiro nome do deus teria acesso a sua essência Em relação ao ser humano o nome se relacionava a um aspecto importante de sua personalidade pelo qual a pessoa nominada poderia ser reconhecida Dois exemplos no Antigo Testamento Êxodo 313 ss quando Moisés é incumbido por Iahvé de comandar a libertação do povo de Israel do Egito ele pergunta qual seria o nome de Deus e recebe a resposta Eu sou o que sou que não é um nome qualquer e indica claramente uma recusa de Iahvé de definir sua essência como passível de se tornar uma propriedade conceoitual quer dizer de alguém o secreto da intimidade do seu ser permanecerá desde então interno aos seus próprios juízos inescrutáveis O segundo exemplo se encontra em Gênesis 3227 Jacó que recebera este nome por ser mais novo do que seu irmão gêmeo Esaú e ter nascido segurando com a mão o calcanhar de Esaú significava aquele que segura o calcanhar que quer dizer por sua vez suplantador ou enganador mas depois de ter lutado com a epifania de Iahvé e sendo considerado como um príncipe por causa dessa luta com Deus e com os homens a epifania de Iahvé mudalhe o nome de Jacó para Israel que quer dizer aquele que luta com Deus No entanto esta tentativa de maquiamento liberal tem também seus motivos contingentes Num momento como o nosso em que a humanidade tem de tomar uma decisão crucial diante de um mundo em agonia e em relação aos pseudovalores que a civilização ocidental assumiu há quinhentos anos um discurso de defesa direta do otimismo liberal com base nesta metafísica de demissão do ser humano ou seja a defesa de deixar as coisas prosseguirem sem interferência com base numa crença na capacidade auto reguladora de um sistema anônimo justamente num momento em que o ser humano procura qual seja a ação correta a se tomar diante da enorme catástrofe que suas instituições têm representado e causado soaria odioso e ofensivo Além disso o fato é que os valores hierarquizados sobre o utilitarismo e movidos pelo egoísmo do modelo de indivíduo 442 reivindicador liberal e burguês cuja apologética vem sendo realizada pelo mesmo tempo pelo racionalismo dominante pretensamente laico dão ainda que de maneira esquizofrênica para a minoria tomada pelo espírito pequenoburguês o sentimento confuso de que alguma coisa anda errada Daí as evasões e demissões as mais diversas têm lugar evasões estéticas religiosas políticas intelectuais etc Sabemos que religião é coisa do coração e o malabarismo pseudocientífico dos economistas atuais oculta uma pseudo religião do egoísmo moderno que é a negação da essência mesma da religião e da qual se valem para ocultar esta antiquada metafísica de fundo da mão invisível criada para justificar sem o dizer pois é tomada a priori como expressão da natureza das coisas de como as coisas são o que na verdade é o antípoda às condições reais que implicam a vida na finitude e a relacionalidade fundamental que caracteriza a vida humana pessoal segundo o personalismo1186 Hirschman em seu ótimo ensaio1187 nas primeiras linhas do primeiro capítulo cita a pergunta que Max Weber faz por sua vez na abertura do seu ensaio famoso1188 Como foi possível então que uma atividade anteriormente apenas tolerada do ponto de vista ético se tornasse uma vocação no sentido de Benjamim Franklin O ensaio de Hirschman tem a intenção de responder a esta pergunta que implica a transformação ocorrida na e pela modernidade comparativamente ao ethos medieval que se valeu das lutas das virtudes contra os vícios gênero conhecido como psicomaquia cuja palavra de solução final estava nas mãos da teologia moral dominante da Igreja Católica Romana freqüentemente 1186 Por mais que os economistas liberais os que saem do campo dos cálculos e procuram analisar o argumento neste caso os conscientes da fraqueza desta metafísica pagã e ridícula pois se trata como tenho procurado tocar de pseudoreligião se esforçam por maquiálo de pseudocientificidade é em momentos de crise como o que estamos enfrentando hoje que seus grandes gurus esboçam em bom tom e de maneira comportada mas sem medo conscientes de que o Estado já está com o verdadeiro dinheiro o dinheiro público nas mãos para salvar os filhinhos traquinas e darlhes uns puxõezinhos de orelha para eles recomeçarem a brincadeira direito um mea culpa e no bom estilo psicanalista soltam suas pérolas O ex presidente do FED Banco Central dos Estados Unidos Alan Greenspan 82 anos pronunciou no dia 23 de setembro de 2008 que se sentia um pouco culpado pela crise financeira atual à qual ele chama de Tsunami creditício que abala o seu país Ele disse que quando da sua gestão acreditou demasiado na capacidade autoreguladora das agências de financiamento na busca de seus próprios interesses O mais incrível é vermos depois da crítica sofisticada kantiana à metafísica clássica uma tão pobre como esta da mão invisível do liberalismo burguês ainda se colocar como capaz de comandar a economia humana de se colocar como o espelho dela sua representação cabal Vemos o quanto o racionalismo é equivocado em matéria de valores fundamentais e de religião 1187 HIRSCHMAN Albert O As paixões e os interesses Argumentos políticos para o capitalismo antes de seu triunfo Paz e Terra São Paulo 2000 p 17 1188 Cf nota de HIRSCHMAN op et loc cit WEBER Max The protestant Ethic and the Spirit of capitalism trad de Talcott Parsons New York Scribners 1958 p 74 443 representada tendo a alma humana como um campo de batalha Sobre isso nota Hirschman1189 Paradoxalmente talvez tenha sido essa tradição que tornou possível em época posterior e mais realista conceber um tipo de luta bastante diferente a qual jogaria uma paixão contra a outra sem deixar de resultar tal como a primeira em benefício do ser humano e da humanidade Já falamos que sem o álibi de um apelo universal humano o realismo de que fala Hirschamn proposto pelo racionalismo da modernidade o qual inaugura também em escala universal no Ocidente o pessimismo a priori no trato das dimensões irracionais humanas e que a contemporaneidade vai chamar de instinto não encontraria eco O que o indivíduo medieval resolveria no confessionário como pecado venial passível de solução pelo sacramento católico romano medieval da penitência ao indivíduo moderno é dado rédea solta em vista de sua inelutável incontinência que por outro lado através de uma metafísica misteriosa operante na sociedade conspiraria numa solução final para o autoajuste desta pela ação de uma mão invisível Não é só a psicomaquia que é aproveitada pelos modernos como ponto de partida para sua psicologia das paixões o ideal do herói da cavalaria num primeiro momento se concentrando na figura do condotiere da Renascença1190 logo é transferido com toda sua altivez guerreira e universalizado para o modelo do burguês conquistador que corre o mundo atravessa mares e continentes em busca do lucro Todavia passada essa primeira fase seguese a sua decadência Há muito tempo os estímulos de uma natureza rebelde e desejável suas surpresas suas tentações se juntam aos vigores de um ideal de perfeição para o manter em tensão Todavia À medida que os novos combatentes cedem às vantagens dessa prosperidade eles depõem as armas renunciam a sua batalha com a verdade com os eventos com a aventura com suas vontades consigo mesmos Todo um vocabulário impersonalista tem consagrado esta carência Ése objetivo ése neutro temse idéias gerais ou opiniões As idéias as ações os caracteres se degradam em um tipo de protoplasma humano de tempos em tempos uma secura se agita que dá ao que resta de consciência em cada ilusão uma paixão pessoal mas com seus fervores tépidos ela se dissolve na massa1191 1189 Op cit p 27 1190 Ver sobre isso J BRONOWSKI Bruce MAZLISCH A tradição intelectual do Ocidente Edições 70 Lisboa Portugal 1998 pp 42 ss como ideal pp 35 58 155 274 494 e 498 1191 Révolution op cit p 186 444 III7 As paixões e o instinto Diante dessa depreciação inicial da dimensão passional humana o que a psicologia atual chama de instinto por parte do racionalismo moderno com vistas a sua utilização interesseira posterior no jogo do lucro capitalista diante da promessa humana e sua posterior desumanização do humano sua posterior e interesseira mecanização para fins de uso no seu processo de uma economia girando fora das necessidades reais da pessoa concreta segundo Mounier fazse necessário uma reabilitação do instinto Tanto no sentido de resgatálo do reducionismo do instinto de propriedade racionalista único sob o qual o liberalismo os quer domados quanto da metafísica pessimista que por outro lado sem uma confissão clara ainda comanda muita pesquisa em psicologia contemporânea nomeadamente a de matiz freudiana não obstante sua inegável contribuição para as pesquisas psicológicas Emmanuel Mounier entendendo o instinto no sentido amplo das variedades da Libido ou do elã vital e não no sentido particular de atividades automáticas dispostas com precisão em seus aparelhos de execução1192 narra uma pequena história da dominação dos instintos ou das pulsões instintivas ocorrida no mundo ocidental que pode contribuir para melhor situar o lugar e o manejo que o racionalismo tem dado ao instinto1193 Mounier começa dizendo que a consciência do instinto em nós tem sofrido no homem do século XIX as mesmas dissociações que a consciência do corpo Policiado ao extremo e um pouco dignificado o século XVIII não gostou que se lhe evocasse seus antepassados É conhecida diz Mounier o protesto dos Enciclopedistas contra Rousseau o lacaio de má compleição que queria andar de quatro De Condorcet a Spencer diz Mounier a idealização do homem contemporâneo prossegue e se sistematiza O século XIX pode se dar assim à ilusão de não mais ouvir os apelos do instinto Ora ele sufocava o clamor pelo véu impalpável das sublimações românticas ora ele os ensurdecia pelo barulho de suas máquinas sem paixões de onde não saiam senão os produtos de uma civilização mais e mais refinada O romantismo jogou um jogo duplo o maquinismo diz Mounier jogou um jogo duplo pois eles favoreceram as forças selvagens Todavia os historiadores e os cientistas 1192 Traité op cit ver nota p 129 1193 Ibidem p 129 s 445 eram muito tranqüilizadores A humanidade havia saído diz Mounier há muito tempo da idade obscura em que se agitavam os grandes símios e à imagem dessa burguesia que se fizera só a partir de alguns vilões mais rígidos que outros ela tinha se dado a si mesma o reino definitivo das luzes do altruísmo e da eletrificação No fundo das eras nota Mounier o historiador evocava uma agitada e furiosa matéria humana a idade militar que professou o direito da força e da conquista a idade teológica que seduzia a fraqueza dos seres humanos sob o frisson sagrado e infestava a natureza de ameaças Mas pouco a pouco os costumes foram se adocicando sob a influência da razão e do interesse estreitamente unidos Quando o próprio mundo se esvaziou dos deuses e das forças obscuras para se tornar uma bela e apropriada máquina quem pensaria pergunta Mounier que o ser humano guardasse alguma animalidade num universo tão bem asseado O casaco tinha definitivamente substituído a couraça a alavanca depôs a espada a civilidade venceu as últimas lembranças da besta primitiva Tal foi a ilusão que encantou os salões liberais da Restauração e se difundiu mais tarde de Exposições Universais de Congressos Pacifistas se impôs à sabedoria dos povos como uma das verdades primeiras salvo nos lugares onde ela ainda deveria duramente lutar contra o egoísmo dos seres humanos e a pobreza da natureza1194 Assim para o personalismo o mundo moderno é o mundo do medo medo que compromete o movimento de personalização de emergência da pessoa cujas inspirações fundamentais são as mesmas que guiaram os inícios heróicos da sociedade moderna As forças de resistência que se acumulam aqui são tanto mais temíveis quanto o velho instinto egocêntrico e a evolução rápida do meio as curvam sobre si mesmas pelo efeito da desordem As malhas dos poderes são sentidas mais e mais sobre o livre campo das espontaneidades individuais e estes diversos poderes econômico político educativo jurídico estão entre os mais e mais ligados e dependentes Não são de hoje as exigências do dirigismo e a formação das massas estas permanecerão amanhã pelos constrangimentos exigidos pela penúria dos bens pela decomposição do regime e pela resistência dos privilégios estas permanecerão em seguida pelas necessidades imperiosas do controle atômico que nos levam a grandes passos para as estruturas mundiais de organização e de autoridade O homem do século XX tem a vertigem destes novos espaços humanos 1194 Traité op cit p 129 s 446 incomparáveis aos que nós tínhamos nos habituado como ontem ele tinha a vertigem dos novos espaços astronômicos Ainda habituado às proteções muito próximas do instinto ele tem o sentimento de estar exposto sem defesa a dimensões coletivas muito vastas na exata medida em que ele tem podido estabelecer até aqui uma vida protegida um círculo de privilégios ele tem medo de ser arruinado pelas massas e de perder através dos seres humanos o que o fez ser humano1195 Como podemos ver na perspectiva personalista os instintos são vistos como uma das vozes altissonantes do nosso corpo Essa maneira de entender o instinto está fora da alternativa colocada pela ascese liberal da modernidade de escamoteação dos instintos e que faz vistas grossas ao seu apelo sempre integrado segundo o personalismo ao movimento global de expressão e de emergência da pessoa humana Está fora também desse ódio interesseiro liberal ao corporal Mas também fora da assunção dos instintos como álibi de submissão a uma metafísica pessimista e de redução físicoquímica das funções psíquicas Esta para o personalismo é outra forma de negar o modo de ser próprio da pessoa que é o da liberdade Ou seja uma outra forma racionalista de objetificar o corpo da pessoa Nesse sentido o personalismo de Mounier vai procurar reabilitar o instinto dentro da visão integrativa que comanda o domínio da pessoa sobre o real em seu enfrentamento com o mundo interno e o mundo externo Em relação ao instinto ou antes em relação ao apelo de sua reabilitação proposta pelo personalismo de Emmanuel Mounier tratase de uma proposição filosófica que a nosso ver faz muito sentido pois toca num dos principais cernes do discurso de autovalidação da retórica liberal É com base na manutenção dos instintos humanos como se tratando de uma esfera da expressão da vida avaliada em termos mecanicistas o que já revela a metafísica do reducionismo materialista de fundo que move tal teoria quanto em termos de funcionamento sempre independente da liberdade da pessoa que o liberalismo crê na necessidade de fundamentar sua ação não no sentido da contenção dos instintos ao menos no nível em que não seja necessário o uso da polícia mas se for o será sempre a priori justificado mas de direcionamento dessa força que se coibida pela moral das virtudes ou deixada a si mesma sem a orientação liberal segundo o liberalismo não chegaria ao melhor dos mundos possíveis liberal Este só podendo ser conquistado pelo toque de mágica da lógica de uma 1195 Questce que le Personnalisme Oeuvres III 1947 p 230 447 metafísica mais poderosa que os instintos e que os encaminha para a verdadeira felicidade que eles sequer suspeitam E isso sem a necessidade de qualquer participação consciente ou responsável num jogo que acabará sempre no que o otimismo liberal enxerga como o suprasumo do mais produtivo que pode haver e ser destacado da vida humana a subsunção e unificação de todos os instintos ao instinto de lucro ou por antonomásia ao instinto de propriedade liberal racionalista O discurso dos primeiros apologetas do capitalismo quando o racionalismo ainda reinava sozinho não ocultava a arbitrariedade destes seus pressupostos porque quanto à consideração do indivíduo como feixe de paixões e desejos desordenados se tratava de um consenso universal Com a crítica marxista o desenvolvimento da psicanálise o surgimento da fenomenologia e a nova hermenêutica ficou claro que este discurso apologético do capitalismo também ele vinha de algum lugar no tempo e espaço e não poderia se manter mais com autoridade de revelação divina Mounier todavia reconhece o caráter aproximativo destas críticas que para ele serão válidas quanto mais permanecerem dentro desse caráter aproximativo a explicação pelo instinto Freud e pela economia Marx são uma via de aproximação a todos os fenômenos humanos até aos mais elevados1196 Depois destas críticas os formuladores racionalistas do liberalismo também eles passaram a ser indivíduos cuja própria racionalização de defesa do capitalismo se apresentava já como comprometida no jogo das paixões em relação ao qual se colocavam acima e se diziam portadores de sua contenção e organização possíveis Para isso também corroboraram as pesquisas em psicologia profunda que apontam para a fragilidade do domínio da razão racionalista sobre as dimensões nãoracionais do ser humano que o personalismo juntamente com a fenomenologia de Max Scheler se recusa a estigmatizálas a partir do preconceito racionalista que por denominálas irracionais quer que com isso carreguese um juízo a priori depreciativo desclassificador em favor da valorização afirmada ou não do instinto de aquisição de propriedade que é por sua vez a expressão instintiva e bem reduzida da gama institiva do seu racionalismo Portanto para o personalismo nem sujeito neutro nem lógica neutra Esta depreciação do instinto em geral em favor do instinto racionalista por outro lado Mounier a nota mesmo num pensador contemporâneo como Freud que parece não ter conseguido se 1196 Le personnalisme Oeuvres III p 445 448 livrar dele em um nível não menos comprometedor O pensador incerto que reforça em Freud o psicólogo de gênio não tendo repugnado colocar um instinto de morte no coração mesmo da vida não vê contradição em terminar a evolução sobre um câncer complicado de forças devoradoras Uma tal desvalorização do instinto sob sua promoção aparente quando mesmo ela não é querida Freud não pensa em termos de valor é um ato que carrega seus frutos e esses frutos não são somente objetivos Uns se entregam sem resistências ao desespero dessa facilidade que comporta seus momentos de exaltação Outros se abrigam em um puritanismo privado de toda seiva vital Cada um dos partidos dissociadores do ser humano carnal vai tirar da reação freudiana novas razões para desarrazoar1197 Como vemos a inadequação de Freud na utilização da palavra instinto em relação às forças antagônicas ao elã vital que deveria ser tratado como o instinto da matéria niveladora sobre o instinto da vida segundo o personalismo nos leva à compreensão de que o que está por trás do uso que Freud faz da palavra instinto é o pressuposto que faz força para não aparecer de uma metafísica pessimista pautada sobre uma redução materialista químicoorgânica das funções psíquicas que na verdade como todo reducionismo metafísico tem mais caráter de opção pessoal do que de verdade científica Esta redução como temos visto é a mesma que fundamenta o pessimismo que está na base da ação de contenção dos desejos e das paixões com o objetivo da busca de lucro pela modernidade1198 nesse sentido Freud é ainda filho do seu tempo1199 Os instintos para Emmanuel Mounier não são radicalmente nem bons nem maus A inteligência se enxerta sobre o instinto sem que as anastomoses1200 sejam sempre visíveis nem as influências assimiláveis Devese abandonar a idéia de que o instinto seja necessariamente um fator de perturbação Ele é um amigo impetuoso e perigoso mas se sua influência é quase sempre misteriosa todavia ela não é radicalmente má grifo nosso É ele que orienta o pensamento individual e a cultura coletiva para seus objetivos elementares É ele que dá ao elã pessoal carne e sangue é por ele que a mais alta atividade 1197 Traité op cit p 131 1198 Traité op cit p 443 1199 Para uma outra crítica a este comprometimento de Freud e suas conseqüências em relação à dimensão criativa do ser humano ver NIEBUHR Reinhold A criatividade humana e a autopreservação no pensamento de Freud in O século de Freud Benjamin Nelson org IBRASA São Paulo 1959 pp 279 ss 1200 Em anatomia comunicação direta ou indireta entre dois vasos sanguíneos entre dois canais da mesma natureza entre dois nervos ou entre duas fibras musculares Ver Dicionário Houaiss da língua portuguesa Editora Objetiva Rio de Janeiro 2001 449 do espírito mantém uma robustez que a desvia de divagações e de sistemas A verdade também é uma paixão Quando o instinto se enfraquece por detrás dela o pensamento se torna vazio1201 Portanto os instintos são funções necessárias ao ser humano que agem na esfera do ajuste e adequação ao meio ambiente que se dá para o personalismo não como simples adaptação como quer a psicologia racionalista mas no âmbito da luta pelo real na emergência da pessoa em seu movimento de personalização Enquanto que o ramo humano está com efeito próximo a sua inserção biológica o feixe dos instintos assegura grosso modo suas adaptações essenciais O instinto é maternal ele envolve e retém a liberdade trabalha para ela lhe evita as tarefas Mas eis que a liberdade inteligente mantém seu vôo com ela se desamarra o trajeto próprio do ser humano Quanto mais ela avança mais ela se afasta das seguranças do instinto assim como o ser humano forte se distancia da solicitude maternal e até mesmo se defende contra ela1202 Todavia Se é verdade que o instinto só é desprezado pelos impotentes é também verdade que toda preocupação inquieta quanto às atividades instintivas é um sinal de debilidade vital1203 Os instintos ajudam na execução mecanizada necessária à vida e que independe da racionalização ou rememoração eles nos ajudam nas atividades que exigem repetição Como já citamos Conhecerse é seguir do desconhecido ao conhecido do incerto ao que já é domesticado e organizado os grandes princípios da própria ciência e a identificação que está na alma se apresentam essencialmente como uma exigência não da razão pura mas da necessidade de segurança ou de um princípio de economia vital assim como o quer Mach1204 Lembrando que para o realismo integral de Mounier necessidade de segurança não quer dizer vontade de instalação mas de um mínimo sobre o qual a pessoa possa alçar seus vôos de libertação Não se trata em Mounier nem de sede de abismo nem de uma brincadeira irresponsável com estas dimensões obscuras do ser da pessoa em relação as quais estamos ainda engatinhando apesar de toda tentativa de reducionismo racionalista que se lhes têm impingido em boa parte da psicologia atual Todavia uma lista dos instintos fundamentais pode ser feita instinto material nutritivo de edificação corporal instinto vital respiratório de desenvolvimento e de 1201 Traité op cit p 609 1202 La Petite Peur du XX Siecle Oeuvres III 1949 p 352 1203 Traité op cit p 130 1204 Traité op cit p 614 450 expansão instinto psíquico de pensamento e de compreensão instinto motor e unificador de deslocamento e de decisão1205 Em outras palavras os instintos são necessários para o bom desempenho da melodia motriz1206 e não há para o personalismo motivos para mistificálos ou transformálos naquilo que eles necessariamente ou a priori não são quer dizer num reino de morte descontrolado sempre à espreita para a destruição sobre o qual qualquer suposto método provido de uma teoria incerta inatingível para o personalismo enquanto certeza mantendo a crença de possuir a chave do desvendamento cabal do seu universo possa a partir de então considerarse possuidor da forma certa da sua orientação ou do seu controle O domínio dos instintos segundo o personalismo deve ser perspectivado à luz da liberdade responsável da pessoa quer dizer na crença personalista na capacidade intrínseca à cada pessoa da possibilidade de um uso criativo dos seus próprios instintos Em outras palavras num sentido em que eles favoreçam e apóiem a sua própria expansão e desabrochamento como pessoa livre no movimento de personalização que é intrínseco ao seu ser Para o personalismo os instintos integrados ao conjunto dos componentes do universo representativo da pessoa e não fora dele estarão antes a serviço da pessoa e não o contrário como quer a perspectiva que os toma desvinculados desse conjunto como uma espécie de coisa em si de objeto de substância metafísica Os instintos também para o personalismo são vistos sob o modo de ser do artefato e sob a intuição da experiência originária como sendo a da relação Desde que a visão negra pessimista acerca dos instintos tem prevalecido a partir do racionalismo liberal interessado em fazer vencer os argumentos do capitalismo1207 paralelamente o modelo de herói que tem prevalecido no Ocidente é o do ser humano inescrupuloso que para chegar ao seu objetivo o lucro não encontra barreiras que não possam ser ultrapassadas É claro que a noção de inescrupuloso aqui não comporta um julgamento moral final pois para a crendice neoliberal esta falta de escrúpulo acabará de um jeito ou de outro não se sabe quando tendo um bom fim insuspeito em relaçã a estas fontes obscuras qual seja o da equidade social pela ação providencial da mão invisível Mas sobre isso Mounier consegue apontar uma precisão que geralmente foge ao bomsenso 1205 Traité du caracterè Oeuvres II p 179 1206 Traité op cit p 190 A personalidade nascente se exprime pelo gesto antes de se exprimir pela palavra e antes mesmo na criança de tomar plena consciência de si Assim o movimento é o traço de união entre o pensamento e a ação 1207 Ver HIRSCHMAN op cit passim 451 neoliberal Não é a imoralidade que dele devemos excluir erro ou pecado são conseqüências e condição da liberdade grifo nosso É antes o estágio da prémoralidade abandono ao automatismo impessoal do instinto ou do hábito na dispersão no egocentrismo na indiferença e cegueira moral Entre as duas a moralidade mistificada procura na observância exterior um compromisso entre as exigências de valor e as forças prémorais ou seja máscaras para a imoralidade1208 Como vemos o personalismo procura não perder o foco do problema anterior ao de uma teoria dos instintos que é o da realização de uma vida comunitária pela qual a pessoa possa desenvolver uma liberdade responsável O que a ideologia liberal milita em fazernos esquecer Todavia a função da moral burguesa será então segundo o personalismo a de prover consolo aos não tão aguerridos aos já instalados nessa luta encarniçada pela sobrevivência do mais forte quer dizer do mais adaptado ao esquema liberal Eis o grande equilíbrio liberal realizado por um lado pelos instalados a parte em repouso do seu esquema que consegue perspectivar retórica ou simbolicamente a sua falta de escrúpulos em vista da manutenção do seu estado e os que ficam acima do julgamento moral na medida em que agem inescrupulosamente em vista do seu egoísmo e individualismo sem saber que convergem para o fim sonhado pela metafísica providencial do liberalismo Desde então Contra este quadro a indagação é inútil É difícil negar que ele evoque um importante aspecto das relações humanas O mundo dos outros não é um jardim de delícias É uma provocação permanente à luta à adaptação e ao ultrapassamento Ele reintroduz constantemente o risco e o sofrimento ali onde nós tocamos a paz Por isso o instinto de autodefesa reage recusandoo Uns esquecemno suprimindo toda possibilidade de contato Outros querem fazer das pessoas objetos manipuláveis e utilizáveis quer sejam para o filantropo os pobres quer para o político os eleitores para este os filhos para aquele os operários o egocentrismo perdese em altruístas ilusões Outro tenta reduzir os que o rodeiam a simples espelho Como uma espécie de instinto vai permanentemente tentando negar e empobrecer a humanidade que nos rodeia1209 Todavia Mounier percebe uma outra demissão que partindo dos mesmos pressupostos previamente negativos em relação aos instintos como vimos em relação à 1208 Le personnalisme Oeuvres III p 493 1209 Le personnalisme Oeuvres III p 451 Em nota MOUNIER acrescenta as seguintes referencias Traité du caractère cap IX Introduction aux existentialismes cap V 452 solução liberal e à freudiana acaba por validar a impotência Tratase de um certo pacifismo A violência é uma forma normal do instinto como o instinto por sua vez é são em sua fonte e perigoso em seus frenesis ou em seus transbordamentos Querer eliminálo como sonha um certo pacifismo que não é somente uma doutrina política mas uma concepção de vida é fabricar seres vagarosos que ao mesmo tempo que da violência desertamse da coragem e mesmo da iniciativa A coragem moral e simplesmente a segurança de si são em regra comuns tributários de um certo vigor físico1210 Como vemos o personalismo não é ingênuo em acreditar que se trate apenas de uma boa indagação e descrição racional de como as coisas são para que tudo seja recolocado arranjado por alguma espécie de resquício do pensamento mágico que crê numa virtude interna e no poder das palavras Isso seria ainda fazer o jogo da ideologia liberal ou neoliberal Para o personalismo é necessária uma metanoia baseada numa tomada de consciência da própria participação na decadência geral Portanto além de uma crítica como temos tentado colocar uma prévia autocrítica é pressuposto necessário Para isso o projeto de Esprit não poupará esforços educadores artistas religiosos políticos literatos filósofos historiadores psicólogos etc serão todos cada qual em sua vocação de atuação nas mais diversas expressões da cultura humana convocados para realizado antecipadamente em si mesmos provocar este despertamento nos outros Então O homem resoluto o homem engajado não são estes autoritários vestidos de gala que crêem na virtude elétrica do olhar ou do masseter1211 eles realizam por sua vez a mais sólida e a mais complexa das construções humanas Enganamse os que crêem que a inteligência complica artificialmente as coisas e se persuadem de que um homem que quer é mais rapidamente feito que um homem que sabe Toda a força do instinto mestre converge nele com todos os poderes da cultura e da virtude Ele é um tão raro produto quanto um verdadeiro homem de espírito1212 Essa fragilidade da apologética racionalista sendo logo percebida segundo o personalismo faz com que os neoapologetas avancem cada vez mais no movimento de abstração do jogo capitalista cada vez mais colocado como distanciado da vida concreta numa espécie de fixação no Olimpo por causa de uma terra que o contaminaria Sua 1210 Traité op cit p 561 1211 Músculo que levanta a maxila superior na mastigação 1212 Traité op cit p 423 453 justificação hoje é múltipla e toma a forma de cultura religião e até mesmo como temos visto como uma espécie de segunda natureza Ela se dá graças à propaganda repisada diariamente que o naturaliza À retórica diária que o coloca fora de questionamento e repõe todas as suas mazelas na ordem amoral de problemas técnicos coisa de técnicos Às produções artísticas nomeadamente as americanas que estão aí para qualquer um ver que tirando os açucarados de propaganda aberta do estadounidencismo quando tocam em alguma esfera da problemática humana em sua grande parte partindo do modelo de família classe média americana perspectivam todos os seus problemas todas as tragédias pessoais dentro de um esquema fechado do mundinho burguês americano no qual o capitalismo e aos pseudovalores a ele atrelados nem sequer como possível modelo econômico gerador de tais tragédias é tocado A sua existência é a priori tomada como parte da natureza daí tudo se torna um problema de ajuste ou não do indivíduo ao meio de sua recolocação na posição certa Este ajustamento pode se dar ou através da alienação da religião alienada ou pela alienação do trabalho alienado pela profissão ou pela alienação do pensamento alienado Por outro lado produções cinematográficas voltadas para os problemas mais emergentes e atuais que inelutavelmente têm de tocar em questões axiológicas e que também se conseqüentes inelutavelmente tocariam nas escolhas de base do Ocidente liberal e capitalista e seus pseudovalores atreladoas ou seja que poderiam perspectivar melhor o sentido dos problemas humanos em sua dimensão econômica e moral são aquelas que fazem tudo terminar na falta de sentido e no absurdo da vida O fato é que se estabelece uma dicotomia inadmissível aos olhos de Emmanuel Mounier que gera o impasse por sua vez de uma mudança moral que não implica uma mudança econômica e uma mudança econômica que não implica uma mudança moral Essa dicotomia mantida de modo interesseiro faz com que em tudo que se relacione ao mundo da vida o capitalismo permaneça intacto e incólume Isto também graças às instituições que legitimam suas demandas sendo a principal o Estado graças à religião que o entronando compromete na sua retórica todos os valores religiosos nomeadamente os do cristianismo desvirilizandoos de sua vitalidade e de sua força transformadora nivelandoos como pertencentes ao reino da reivindicação do individuo moderno burguês neoliberal e enquadrandoos dentro do esquema religioso de barganha comum ao velho paganismo cuja palavra de ordem é sacrifício Ora o 454 liberalismo não consiste somente em imolar a autoridade1213 ao espírito de revolta e à anarquia1214 sob sua forma religiosa essencial ele consiste também em renunciar em um conformismo passivo a uma ordem materializada a afirmação pessoal sem a qual não há engajamento cristão1215 E isso também graças à educação consentida pelo liberalismo que quando não se dá rendida ao esquema da formação de profissionais nunca de pessoas milita em prol de uma liberdade que não ultrapassa a liberdade cativa do neoliberalismo da qual temos falado1216 Estes são alguns exemplos da dimensão justificadora da farsa capitalista como última palavra em sistema econômico A partir da constatação dessa generalização o personalismo não pode tratar o problema senão como uma crise de civilização e se negar prontamente a se deixar levar ou pela tecnocracia que quer perspectivar o problema econômico como coisa de técnicos ou pelo moralismo que tende a fazer a justificação do jogo interno da moral burguesa ou pelo relativismo fácil com todo seu frisson sua volúpia niilista absurdista sua indiferença que nada mais é para o personalismo que uma outra maneira de alienação Para isso segundo o persoanlismo é necessário refazer a história da liberdade relembrar às pessoas suas verdadeiras origens a liberdade política é ilusória no mundo moderno se não tem base na liberdade econômica1217 III8 O capitalismo sob um julgamento técnico e sob um julgamento moral Na segunda citação que fizemos de Mounier no início do tópico sobre o capitalismo o diretor de Esprit fala lançando mão da tradição do pensamento cristão em relação à 1213 Mounier distingue autoridade de autoritarismo 1214 Esta primeira perspectiva do liberalismo diz respeito a um liberalismo mais ativo mais transformador que depois de ter destruído as antigas bases se incumbe de colocar tranqüilamente as suas e se torna então de maneira empedernida conservador e cioso por todos os meios nomeadamente os do poder de policia do Estado moderno de manter a todo custo a sua ordem isso principalmente depois de sua vitória final no século XVIII Sobre a história da vitória do liberalismo ver LASK op cit passim 1215 LAffrontment Chrétien Oeuvres III 1945 p 51 1216 Ver a perspectiva pela qual Mounier desenvolve as linhas pelas quais entende que a escola laica não pode e não deve ser neutra ou seja deve assumir o compromisso de um ensino integrado a um projeto pluralista de formação da pessoa Cf Manifeste au service du pesonnalisme Oeuvres I pp 552 ss 1217 Feu la chrétienté Oeuvres III p 618 455 resistência ao tirano de que há um momento em que a submissão de fato ao regime ilegítimo e de desmando porque fora da autoridade e dentro do autoritarismo não é mais um dever para os governados É essa consciência de uma necessária desobediência aos pseudovalores em vista da obediência aos verdadeiros valores que estão na base do movimento de personalização que motiva a reflexão crítica que Emmanuel Mounier e sua equipe iniciam em Esprit Já falamos que para Mounier há um problema técnico e um problema moral no uso da propriedade Da mesma forma há duas maneiras de criticar o capitalismo porque ele gera a um tempo a desordem econômica e a desordem espiritual De fato o capitalismo cai sobre um julgamento técnico e sobre um julgamento moral Pois para o personalismo não se pode separar um domínio do outro A crítica de Mounier procura não negligenciar nenhum dos dois aspectos É nesse sentido que indo além da crítica estrutural marxista a crítica personalista se pretende mais completa1218 Sobre isso lemos em Mounier O capitalismo visto como sistema econômico repousando sobre a apropriação privada do capital e das empresas e a liberdade das trocas não cai sob um julgamento moral A apropriação privada em si não é nem mais nem menos imoral que a apropriação coletiva É sem dúvida o que querem sugerir as encíclicas quando declaram que um tal regime não é intrinsecamente mal E se vê o quanto seria perigoso fazer intervir o espiritual ali onde ele não tem nada a fazer moralizar de uma ou outra forma a propriedade de lhe conferir não se sabe qual caráter sagrado e bloquear assim as forças espirituais nos mitos mais contestáveis1219 Para Mounier há um elemento de legitimidade na dimensão do ter E é em vista da compreensão da dimensão própria do ter que para o personalismo se dá na perspectiva em que ela gera as aderências necessárias no mundo concreto pelas quais a pessoa pode construir e calçar as bases do seu próprio florescimento necessário para que ela cumpra sua tarefa e sua vocação próprias de pessoa singular que se dá o julgamento técnico do capitalismo por parte do personalismo Assim dentro dessa perspectiva diz ainda Mounier Se de sua definição teórica passamos ao fato histórico do capitalismo nós o vemos engajado em uma série de desenvolvimentos catastróficos1220 1218 MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 p 63 1219 Révolution op cit 402 1220 Ibidem 456 Vemos então que a crítica de Mounier ao capitalismo se dá com base em sua avaliação histórica e não simplesmente teórica o personalismo não é um tecnicismo e nem pretende se perder fora da lucidez na tagarelice tecnicista Mounier sabe do quanto de evasão e de desclassificação da fala do outro as chamadas discussões técnicas se servem comprometendo o sonho do senhor Richard Rorty como dissemos Mas há um nível em que a discussão técnica é válida e necessária O personalismo de Mounier propõe o partido da lucidez no diálogo aberto e criativo e não a verdade absoluta in perpetuum seja na sua forma afirmativa ou negativa E este diálogo que Mounier e sua equipe vão buscar é um que mais se aproxime do movimento próprio de uma vida seu aspecto contingente mas afirmativo sua perfectibilidade e fraqueza Todavia ao julgamento técnico concentração superequipamento desemprego técnico superprodução são falhas técnicas do sistema capitalista É pois enquanto sistema sobre estes diversos pontos que ele deve ser criticado como fazem por exemplo Marx ou Proudhon Sem dúvida nos dados mesmos do sistema entram elementos metafísicos e morais assim o desconhecimento pelo otimismo liberal da corrupção do ser humano1221 Todavia este desconhecimento como já vimos é estratégico pois só serve ao liberalismo para desculpar as mazelas do seu sistema mas não para desculpar o indivíduo excluído sobre quem deve cair todo peso da lei e da pena pelos delitos que comete contra a pseudoordem liberal Já vimos que o indivíduo no liberalismo segundo o personalismo começa como sujeito e termina como objeto pois bem o liberalismo é nesse sentido mutatis mutandis como o marxismo ou seja otimista em relação a sua teoria no caso do marxismo em relação ao seu materialismo dialético e no caso do liberalismo em relação a sua metafísica da mão invisível e pessimista tanto um quanto outro em relação ao seu indivíduo feixe de desejos e paixões descontroladas que pulsam só em vista da sua vontade sempre egoísta Esta no marxismo sendo superável e bem encaminhada pela propulsão interna à marcha histórica por suas forças próprias e independentes que seguem inelutavelmente no sentido da cidade socialista no liberalismo superável e bem orientada por um poder também independente e autônomo regulador chamado mão invisível em ambos como vemos a inexistência da ação da pessoa livre e responsável substituída pelo seu simulacro o indivíduo feixe de paixões e desejos desordenados Este 1221 Révolution op cit 402 457 no caso do marxismo como produto da ideologia da classe burguesa no caso do liberalismo como natureza humana daí a observação de Mounier quanto ao desconhecimento que preferiríamos chamar tolerância até um certo ponto por parte do otimismo liberal quanto à corrupção do ser humano Não obstante esses problemas técnicos do capitalismo devem ser denunciados Devese denunciálos Mas eles só dão conta de um modo muito geral dos erros próprios ao sistema a corrupção original pode revestir cem aspectos não importando qual desordem a manifeste todavia omitir as causas próximas sobre as quais se tem tomado é se evadir da luta contra a desordem1222 E ainda diz Mounier Mas o capitalismo porta uma segunda série de conseqüências expropriação dos móbeis humanos pela preocupação exclusiva do lucro ruptura entre as classes opressão miséria destruidora de vidas e da vida interior a injustiça social codificada e considerada Por estas conseqüências o capitalismo cai diretamente sob um julgamento moral Este julgamento o alcança por contragolpe em seu mecanismo mas se obscureceria os problemas se se quisesse condenar diretamente este mecanismo por motivos morais Outro exemplo Um cristão não tem enquanto tal que tomar partido pela mística de esquerda ou pela mística de direita definidas no absoluto por exemplo como o faz a Declaração mais alta evocada de um lado como uma maior sensibilidade na exigência de justiça de outro como uma maior sensibilidade na exigência de ordem Mas ele pode constatar que fazendo exigência da ordem tem se voltado na maior parte dos casos para a conservação de uma ordem profundamente injusta e desumana que em tomando a causa da justiça social ele tem sido comprado por tal ou qual partido cuja ambição política sem escrúpulos é manifesta cuja metafísica ou os meios não assinalam nenhuma revolução profunda contra a ordem pervertida que ele combate Eis aí o julgamento moral 1223 Emmanuel Mounier procura por uma crítica econômica o que Kant não viu pela moral ou seja que a ação típica do indivíduo burguês não pode ser transformada em uma máxima universal a não ser por muita mistificação o que compromete na base todo projeto acalentado de qualquer moral autônoma possível nomeadamente a do tipo kantiana Não obstante se há uma maioridade racional para o personalismo tem de haver uma 1222 Ibidem 1223 Ibidem 458 maioridade econômica quer dizer a serviço da pessoa Todavia é muita ingenuidade da parte de Kant achar que o seu racionalismo será o veículo dessa maioridade quando o mesmo é a filosofia do liberalismoburguêscapitalista cuja tara fundamental é a infantilização de toda sociedade de consumidores que mantém Ou seja a manutenção de um estado de total dependência dos indivíduos reivindicadores ao seu esquema de organização social pela ilusão de que o seu reivindicacionismo sempre permitido dentro dos moldes estritos do esquema liberal é sinal de maioridade É fato consumado que para o personalismo o capitalismo milita contra a pessoa e sua maioridade1224 A manutenção interesseira e covarde do infantilismo social está aí para quem quiser ver A ilusão da onipresença do capitalismo como o suprasumo da sofisticação econômica por parte dos seus apologetas segundo a perspectiva personalista escamoteia no delírio da cauterização ideológica das consciências empedernidas dos seus adoradores a realidade de que só há avanço real humano em conquistas de maior liberdade e igualdade quando a marcha avassaladora do capitalismo em transformar tudo os seres humanos e o demais em objeto de lucro é detida pela força de emergência e insurgência da pessoa na história Isso quer dizer que para o personalismo entre o tipo de movimento impresso na marcha capitalista e o tipo de movimento impresso no movimento de personalização há tanta identificação quanto há entre a água e o óleo Quer dizer tratase realmente de dois líquidos mas de composição diversa Ou fora da metáfora mais precisamente de dois movimentos mas de qualidade e sentido extremamente diferentes e antagônicos Os exemplos de conquistas nestas áreas pelos movimentos sociais fora dos quadros de reivindicação estabelecidos pelo liberalismo como regras do seu jogo são a expressão cabal segundo o personalismo dessa força Já falamos das conquistas na área do direito trabalhista que são fruto autêntico e expressão genuína de uma conquista de inspiração comunitária que surgiu espontaneamente fora dos quadros juridistas e dos limites tolerados pelos feitores do liberalismo Para qualquer racionalista liberal conseqüente este único evento deveria ser suficiente para refutar seu esquema geral de sociedade Mas como já dissemos tratase no fundo mais do que razão de uma pseudoreligião É a aprtir dessa sua pseudoreligião que o neoliberal típico empreende sua militância camuflada contra 1224 Para o que segue nos valeremos de Révolutuon personnaliste et comunnautaire 19321935 e Manifeste au service du personnalisme 1936 ambos em Oeuvres I 459 qualquer possibilidade de que se veja inscrito na esfera da dimensão da organização econômica o elemento de imprevisibilidade criadora que é o constituinte fundamental da dinâmica pela qual a pessoa exerceria sua liberdade responsável também neste evento cultural em que ela se expressa e que é a esfera da economia Por isso para Mounier o capitalismo não cai somente sob um julgamento técnico nem somente sob um julgamento moral mas por sua vez sob um e sob o outro Como já vimos Ali onde a moral permite imaginar um capitalismo em si que em estritas condições escaparia a seu veredicto a técnica e a experiência mostram que um tal capitalismo se destruiria a si mesmo há enfim os vícios técnicos que são condenáveis por sua vez como tais e por suas conseqüências humanas1225 É impressionante notarmos o caráter religioso da apologética do capitalismo Pois as bases da epistemologia científica herdadas pelo racionalismo que prescrevem as regras que os sábios do capitalismo dizem seguir e pelas quais querem tornar a economia de mercado uma ciência não são seguidas como temos visto atualmente1226 de acordo com as regras fundamentais da epistemologia racionalista quando as conveniências para a manutenção do seu statu quo são colocadas em risco Isto mostra para quem quer ver o caráter retórico e não científico dessa economia que mantém sua base na verdade na conveniência antes que na ciência da qual alardeiam ser os defensores Estas bases segundo o próprio método do liberal Karl Popper1227 compõem a regra de que toda generalização fica refutada se for encontrado um único caso sequer que a negue Pois bem a constatação histórica de uma conquista real em matéria de liberdade e igualdade como a que se deu no direito trabalhista de que temos falado fora da alçada do jogo liberal capitalista do que já falamos também todavia não é suficiente para demover os adoradores de Mamon de sua afirmação recalcitrante ou sem palavras pelo seu testemunho de uma plena aquiescência metafísicoreligiosa na base da onipotência da economia de mercado capitalista Os economistas liberais apologetas da pseudoreligião do capitalismo ao verificarem qualquer expressão que possa colocar em cheque sua teoria geral como 1225 Révolution op cit p 270 1226 Nenhum esforço é medido quando é necessário que o Estado parceiro do capitalismo realize o socialismo ou comunismo repartindo o dinheiro público em sua coletivização das perdas depois de uma época de muita retórica científica sobre a necessidade da privatização dos lucros para que a mão invisível cumpra o seu trabalho de equalização social final 1227 Um dos mentores com Hayeck e Friedman já citados entre outros do chamado neoliberalismo 460 apontamos antes e logo sua suposta validade universal correm logo para explicar o fato como se tratando de exceção que confirma a sua regra Para isso lançam mão do economicismo que por sua vez criticam no marxismo e explicam as bases reais últimas que tornaram possível tal evento e enquanto tal graças às conquistas econômicas geradas e acumuladas aolongo do tempo pelo capitalismo Como temos frisado essa resistência fundamentalista que depõe contra toda retórica racionalista e contra o sonho kantiano de uma religião nos limites da razão quando é a razão mesma que agora a serviço da ideologia liberal funda uma pseudoreligão E uma que é típica de todo fanatismo sectário Daí essa dificuldade por parte do neoliberal típico em ouvir outra coisa que o suposto determinismo de sua doutrina nos fazer pensar que tratar a crendice neoliberal como uma pseudoreligião faz todo sentido Como já vimos também o liberalismo capitalista é em relação à culpabilidade do indivíduo que põe em risco a propriedade privada anarquista o indivíduo é totalmente responsável e a situação social real na qual ele vive é sempre justa em si mesma portanto não passível de ser cogitada também para o banco dos réus mas em relação aos prejuízos causados por suas agências mantenedoras ele é socialista salvação do sistema que o neoliberal típico toma como antonomásia de sociedade com o dinheiro real público da produção social para a garantia sendo o dinheiro o primeiro a ser servido da continuidade do lucro antes de tudo O capitalismo fornece apenas uma medida pela qual a pessoa pode avaliar as coisas a do útil Mas não de um útil perspectivado dentro do conjunto dos valores de afirmação da vida pessoal mas de um útil liberal Quer dizer o útil subsumido a sua ideologia ou melhor o utilitarismo Seu reducionismo materialista deixa a cargo da religião cooptada e da psicologia adaptativa enfim dos seguimentos que podem influir no comportamento dos indivíduos as dimensões que ele permite que sejam chamadas de espirituais mas cujo tratamento pressupõenas sempre como epifenômeno do seu materialismo O capitalismo tomado no conjunto que define o seu sentido último política liberal individualismo e ética burguesa compõe uma teoria geral sobre o mundo ou como os alemães dizem uma Weltanschauung uma cosmovisão É esse seu caráter global que torna suas expresssões tão difusas e complexas e do que sua retórica de autosuperação não deixará de lançar mão para a manutenção de sua eterna auto validação Exemplo atual pela simples anteposição do préfixo neo a liberalismo como dissemos a ideologia liberal acredita que tenha ocorrido 461 uma mudança qualitativa no mundo Todavia mudase a palvra mas o núcleo duro permanece o mesmo Como Mounier observa na citação do início se o capitalismo não aparece como tal ou seja como um tirano concreto a quem se pode pelo menos odiar e a quem apontar a responsabilidade é porque faz parte de sua estratégia manterse no anonimato de uma causalidade ateleológica sem finalidade última que implica a fortiori também uma anarqueologia sem princípio Isso explica tanto a tendência do liberal típico de tratálo como expressão da natureza humana e como uma espécie de religião natural do tipo panteísta ou seja que não implica um ato voluntário de criação tratálo como que integrado nas coisas parte incontornável e inelutável do ser mesmo das coisas natureza Em sua investida objetificante sobre o mundo da vida simbólica que cobre toda esfera da vida espiritual humana sua estratégia consiste em esvaziar ou neutralizar a essência própria de cada manifestação espiritual substituindoa pelo que lhe convém Lançando mão de uma comparação religiosa que pode ser elucidativa o capitalismo não quer ser o Criador do mundo como o Iahvé da Bíblia pois implicaria uma transcendência ao mundo como o Iahvé da Bíblia é transcendente à criação mantendo sua especificidade como Criador em relação ao mundo como criatura Não o capitalismo quer ser tido como a expressão mesma da natureza como uma univocidade com ela Este seu panteísmo não tolera a diversidade como o Iahvé da Bíblia que propõe a diversidade na afirmação mesma de sua transcendência de sua diferença qualitativa do criado O capitalismo nesse ímpeto de ser deusnatureza mantém sempre a estratégia de aparecer como sendo a causa eficiente do bem no mundo O mau real e o sofrimento para o capitalismo é uma ilusão O mal é visto ou como uma contingência necessária para a purificação ou como prérequisito na sua teologia pagã do sacrifício para averiguação dos capacitados a entrar no seu reino quer dizer no mercado ou os réprobos os excluídos justificados como tais a priori em sua situação concreta mesmo quer dizer em sua situação manifesta na sua comodamente chamada facticidade Isto possibilita aos ajustados a manutenção de uma paz de consciência quanto a sua responsabilidade no sofrimento aparente já que tudo se dinamiza se explica e se justifica dentro da teologia pagã do sacrifício capitalista E assim em todo e qualquer caso veremos sempre a irrefutabilidade do capitalismo Logo as hipóteses ad hoc salvadoras das teorias gerais que se propõem 462 explicar tudo não podem ser vistas apenas como apanágio de Freud ou Marx como queria o liberal Karl Popper1228 Por aí por outro lado podemos também ver a fraqueza e a incapacidade do racionalismo em lidar com estruturas de dominação simbólicas religiosas arraigadas nas dimensões profundas da psique para as quais bons argumentos idéias claras e distintas também nunca vão bastar O racionalismo é cativo do capitalismo Por outro lado para o personalismo não se trata simplesmente de destruir a razão da qual o racionalismo se coloca na história pretensamente como sendo o dono E nem também em nome do irracionalismo pejorativamente tomado no jogo interno da retórica racionalista como sua contraposição estanque da manutenção de um instintivismo Isso também para o personalismo seria ainda continuar sendo racionalista às avessas é claro por causa da aceitação implícita mesmo nesta sua posição de negação radical das condições e da posição do problema colocadas pelo racionalismo Para o personalismo em vez disso é necessário tornar a razão serva da pessoa O personalismo de Emmanuel Mounier portanto não nutre nenhuma esperança no racionalismo para o trato destas questões Graças ao poder indefinidamente acumulado que permitiu a fecundidade do dinheiro constituiuse progressivamente um enorme aparelho de opressão Nota Mounier que a primeira etapa de seu estabelecimento foi o monopólio da economia pela concentração do poder industrial em um pequeno número de mãos que mantinham sem controle as avenidas e as encruzilhadas1229 Segundo Mounier essa centralização não é uma conseqüência fatal da racionalização ela foi ajudada pela racionalização mas a tem dirigido e a centralização financeira tem aí contribuído eficazmente A propriedade privada e a liberdade da produção não são mais segundo Mounier que a máscara de uma economia dirigida mas dirigida por interesses privados todas as faltas e nenhuma vantagem ou quase à direção da economia A hierarquia industrial não é mais que a máscara do poder dos bancos e das bolsas A democracia política não é mais que a máscara de uma oligarquia econômica Segundo Mounier disso resultou um endurecimento do organismo social em classes e hierarquias fundadas sobre o dinheiro uma criação de tipos sociais desumanizados o rico o pequenoburguês o 1228 Ver POPPER Karl Sociedade aberta e seus inimigos op cit vol 2 pp 88 ss 1229 Révolution op cit p 273 463 proletário Mais profundo ainda nota Mounier uma opressão interior da vida pessoal ela mesma pelo esmagamento das espontaneidades de todos os valores e de todas as generosidades humanas sob os valores do dinheiro e da consideração Enfim diz Mounier a impossibilidade para a maioria esmagadora dos oprimidos de acessar a uma vida mediocremente humana e por mais forte razão a uma vida interior1230 Portanto somente a constatação de que o capitalismo é contra a pessoa não garante uma crítica liberta A consciência de Mounier da onipresença do espírito burguês segue a sua consciência da poderosa dominação do capitalismo mantida por todos os meios institucionais e simbólicos em sua necessidade de permanecer sempre no anonimato em relação às desgraças que cria para a grande maioria Mounier é atento ao caráter de justificação religiosa quer dizer de inatingibilidade que o estilo de vida colocado pelo capitalismo já adquiriu daí seu tratamento também como uma religião ou melhor uma pseudoreligião ser possível e o que nos parece tanto mais adequedo Pois visto a sua dominação ter auferido um grau elevadíssimo de justificação simbólica na sociedade moderna que o torna para as pessoas como que uma segunda natureza talvez tratálo como uma pseudoreligião seria a melhor maneira de tocar no seu cerne Na obra de Mounier a crítica que prevalece ao capitalismo é tanto uma crítica moral quanto técnica como já vimos O seu aspecto religioso é tocado mais diretamente quando Mounier denuncia o comprometimento dos valores cristãos com os pseudovalores do mundo do dinheiro Todavia no momento em que Mounier elabora sua crítica como intelectual e homem público ele se via diante de duas meiasverdades que se destacavam do emaranhado ideológico que existia na faixa cinzenta entre as duas que ia do conservadorismo ultramontano até ao anarquismo É mais nessa dimensão que nos aproximamos da crítica de Mounier ao capitalismo não obstante encontrarmos bases para uma crítica ao capitalismo como religião ainda mais atual nos nossos dias em que ele se tornou uma que religião natural Todavia de início há vários anticapitalismos 1230 Para toda esta argumentação ver Révolution op cit p 273 464 III9 Anticapitalismos e anticapitalismo personalista Mounier vaticina que a história designará a década de 1930 como a década dos anticapitalismos1231 Importa a Mounier elucidar este mito e destacar as contrafações Pois a similitude das soluções ou das críticas não deve deixar ilusões quando a inspiração difere na raiz o encontro não pode ser senão efêmero e superficial1232 Então Mounier dentro de uma primeira categoria rejeitará as formas no sentido próprio reacionárias de anticapitalismo reação contra o capitalismo atual de interesses ligados às formas de economia précapitalista oposição artesanal ou dos preconceitos sociais sobreviventes nas classes destronadas pelo capitalismo mística mais ou menos feudal de certos meios tradicionais Podese juntar aí o anticapitalismo bucólico que M Duhamel representa na Academia francesa na época de Mounier que ligado muitas vezes a fidelidades tocantes e colocando os problemas de espécie delicada suas resistências não mantinham segundo Mounier nenhum interesse histórico vivo elas não têm propriamente falando lugar nas condições do mundo moderno Mounier nota outras formas de anticapitalismo que considera bem mais importantes e atuais mas que se reduzem às querelas de família Elas não são uma recusa formal da ética e das estruturas fundamentais do capitalismo mas o protesto de uma forma declinante ou negligenciada do capitalismo contra a forma hoje dominante1233 Assim nota Mounier o anticapitalismo dos pequenos pequenos comerciantes pequenas industriais pequenos rentistas contra a forma hoje dominante o anticapitalismo dos capitalistas ordenados capitalismo de poupança contra o capitalismo de aventura capitalismo de especulação o anticapitalismo dos industriais contra o capitalismo financeiro1234 Mounier nota também que se pode juntar aí os diversos movimentos de ordem moral que jogando sobre a confusão comum da Ordem e da desordem estabelecida1235 carregam consigo importantes energias espirituais a uma ação pela limpeza a saber pela defesa das regras do jogo que elas não põem em discussão Estas diversas formas de oposição ao capitalismo mais recente denunciam os abusos as excrescências mas as exclusivas 1231 Manifeste op cit p 581 1232 Ibidem 1233 Ibidem p 582 1234 Ibidem 1235 Essa noção como já vimos Mounier contrapõe à de ordem tão querida pelo liberalismo 465 internas ao capitalismo que elas não colocam em nenhum instante em discussão são consideradas como os princípios de fundo que levam infalivelmente ao que elas consideram como o jogo normal ou honesto do capitalismo em relação ao que elas olham como uma aventura ou uma corrupção acidental Seu objetivo é finalmente a salvação e o remanejamento do capitalismo Seu espírito permanece um espírito capitalista Seus corretivos quando corretivos há não são senão arrependimentos fragmentários Isso quer dizer para Mounier que nem sempre a grandeza de visão está do lado dos revoltados1236 Em tudo como já notamos o capitalismo mesmo permanece incólume Há enfim nota Mounier em texto de 19361237 formas de oposição ao capitalismo que pelas soluções econômicas propostas não deixam nenhuma dúvida sobre sua vontade coletiva de modificar radicalmente a estrutura econômica e social do capitalismo Mas continua Mounier se olharmos em sua concepção de vida nas vontades individuais que elas sustentam ou nós encontraremos como em uma ampla fração da socialdemocracia uma ética burguesa quer pequenoburguesa que reduz a revolução a uma mudança de pessoal no mundo do conforto da riqueza e da consideração quando ela não detém a própria força revolucionária como a prescrição dos socialismos tem demonstrado ou além de uma limpeza muito mais radical das idéias e dos aparelhos como no comunismo de guerra nós reencontraremos a perpetuação em uma ética sobre a qual Mounier expressa seu sentimento de toda uma herança da desordem capitalista centralização intensiva partido tomado industrialista racionalismo científico junto a um certo número de desordens inéditas E completa Mounier Nossa oposição ao capitalismo deve se distinguir radicalmente destas críticas truncadas ou falseadas na base1238 A crítica do personalismo quer ser antes de tudo criativa Propõe inventar o futuro numa atitude de acolhida a todas as aquisições autênticas do presente1239 Ela quer atingir os valores sobre os quais assenta o conjunto do capitalismo É uma crítica não moralista mas à moral capitalista1240 Isso para o personalismo é inevitável já que a vida moral ou ética é o que mais especifica a existência humana é pela expressão da vida moral que o modo de ser mais original da pessoa o da vida relacional pode ser melhor entrevisto e 1236 Ibidem 1237 Em uma época em que o marxismo não era ainda tão difundido na França 1238 Manifeste op cit p 582 1239 Ibidem p 583 1240 Ibidem 466 realizado como experiência O moralismo será sempre combatido pelo personalismo porque é uma caricatura interesseira e uma tentativa de redução da moral da pessoa ao quadro de pseudovalores que está na base do indivíduo reivindicador e egoísta burguês e liberal que surge na modernidade O personalismo pretende ir na direção oposta ao capitalismo Este segundo o personalismo um sistema que se afirma moralmente indiferente pelos seus técnicos os quais querem lhe dar o ar de ciência para fazer a manutenção do seu anonimato opressivo criando assim uma subversão total na ordem econômica que seus elaboradores organizaram fora das prerrogativas da pessoa Com Duhem Mounier é consciente da falácia da objetividade científica pois sabe que por trás de toda civilização e cultura que ela tem motivado há orientações metafísicas1241 Para Mounier uma civilização é desde o início uma resposta metafísica a um apelo metafísico uma aventura da ordem do eterno proposta a cada ser humano na solidão de sua escolha e de sua responsabilidade1242 Quanto a esta questão fundamental a da civilização como apelo metafísico Mounier precisa os termos Chamamos civilização no sentido estreito ao progresso coerente da adaptação biológica e social do ser humano em seu corpo e em seu meio cultura à ampliação de sua consciência ao desembaraço que ele adquiri no exercício do espírito sua participação em uma certa maneira de reagir e de pensar particular a uma época e a um grupo se bem que tendendo grifo nosso ao universal espiritualidade a descoberta da vida profunda de sua pessoa Assim temos definido os três patamares ascendentes de um humanismo total1243 Mounier não obstante no trato dessas esferas se vê obrigado por conta do sentido que para ele os eventos tomam mas não sem uma certa indecisão a lançar mão da noção problemática de hierarquia para o realismo integral proposto pelo seu personalismo que concebia os valores como adoções livres Este uso que pretende ser uma polarização estratégica é compreensível no âmbito de uma polêmica controversa em nome da lucidez que Mounier quer manter com o marxismo e por causa do forte apelo do reducionismo materialista deste que não obstante ser uma filosofia com a qual Mounier pretendia manter um diálogo na lucidez das diferenças acabava se encontrando nessa questão e a contragosto com o capitalismo O marxismo com o seu reducionismo afirmava com o 1241 Manifeste op cit p 486 1242 Ibidem 1243 Ibidem 467 capitalismo uma hierarquia inversa a que o humanismo radical do personalismo de Mounier propunha em relação a isso estrategicamente devese ir para o outro extremo em busca do equilíbrio possível que para o personalismo será sempre um equilíbrio tenso dramático não implicando facilidade Mas aqui falamos do capitalismo e como diz Moix o capitalismo luta de fato contra as necessidades essenciais do ser humano materiais e espirituais1244 Ele submeteu a vida espiritual ao consumo o consumo à produção e a produção ao lucro ao passo que a hierarquia natural é a hierarquia inversa1245 Na retórica de defesa da cientificidade da economia capitalista cujo modelo de ciência de que se nutre para tal mesmo já tendo sido cabalmente problematizado desde o século XIX e na atualidade pelos filósofos da ciência e cientistas pensantes1246 ainda é mantido estranhamente como justificação para sua permanência e mais estranhamente ainda por muitos intelectuais contemporâneos que conhecem toda a história desta problematização da idéia de ciência hoje Com isso vemos que a razão ou argumentos racionais como muito bem percebeu Max Scheler seguido por Mounier não são suficientes para tocar no sentido de demover o que se encontra estruturado em níveis mais profundos na esfera axiológica ou dito de outra maneira como temos perspectivado aqui religiosa da vida III10 Técnica humana e técnica capitalista Não obstante o capitalismo cientificista se sente como que o pai da técnica que é para o personalismo antes de tudo fruto da cultura como Mounier a define ampliação da consciência do ser humano ao desembaraço que ele adquiri no exercício do espírito sua participação em uma certa maneira de reagir e de pensar particular a uma época e a um grupo se bem que tendendo grifo nosso ao universal Com a inversão mórbida que o capitalismo imprime sobre a ordem dos valores vitais da pessoa o plano cultural em que a técnica se inscreve tem sido totalmente comprometido e desfigurado Portanto para 1244 MOIX op cit p 71 1245 Citado por MOIX ibidem 1246 Ver Duhem Karl Popper Thomas Kuhn Paul Feyrabend para citar alguns nomes Ver também o interessante estudo já citado do professor Hugh LACEY Valores e atividade científica op cit 468 Mounier devese distinguir capitalismo de técnica O capitalismo se tornou possível através de um progresso técnico que só está incidentalmente ligado grifo nosso ao seu aparelho jurídico e a sua ética1247 Isso quer dizer que o aparelho jurídico que o liberalismo liga ao capitalismo não tem o monopólio sobre a criação da justiça humana e nem que sua ética seja a última palavra em matéria de criação da ética humana Ao tocarmos na questão da técnica cremos estar tocando numa questão fundamental pois o progresso técnico tem servido para justificar o arcaísmo da economia capitalista Sobre essa questão a crítica de Mounier segue no sentido de desolidarizar a verdade do erro Para tanto Mounier observa que o progresso substituiu à exploração direta das riquezas naturais pelo trabalho do ser humano uma acumulação de bens intermediários máquinas e crédito que permitem com uma economia de forças crescentes uma eficácia produtiva cada vez maior A constituição deste capital técnico e o desenvolvimento da produção especializada e mecânica que resultam são uma conquista da técnica moderna1248 Sobre isso continua Mounier As ideologias pueris se juntam depois de alguns anos na condenação dessa técnica Elas têm o deplorável hábito de fazêlo em nome do ser humano e de sua vocação espiritual Ideologias da preguiça e do refúgio nós reservamos aqui uma parte bem menos honrável ao arcadismo de M Duhamel que às empresas mais ingênuas que perigosas de generalização do artesanato Singulares humanistas que crêem que o homem está totalmente comprometido pelo fato dos seus instrumentos terem se tornado complicados e que não dão mesmo ao homo sapiens ou melhor à pessoa o crédito global da capacidade de assimilar e dominar as mais sutis invenções do homo faber1249 Por outro lado na sua filosofia da martelada mas com uma no prego e outra na ferradura1250 continua Mounier O personalismo não pode ter senão derrisão pelas ideologias progressistas o ser humano não é automaticamente purificado pelo progresso da civilização material ele se serve dela segundo sua dupla natureza e segundo as condições sociais que ele tolera para bem e para o mal Todavia o personalismo não tem nenhuma complacência também pelas ideologias antiprogressistas A técnica é o lugar mesmo do 1247 Manifeste op cit p 583 1248 Ibidem p 583 1249 Ibidem 1250 Agradeço ao Rev Marcos Lourenço por esta imagem que se encaixa perfeitamente na minha opinião à maneira de Emmanuel Mounier filosofar 469 progresso indefinido no entanto é de maneira indevida que se tem estendido a noção de progresso ilimitado fora do seu campo Seu domínio é muito mais vasto e suas formas muito mais variadas que a exploração das forças materiais pelas ciências físico matemáticas ela tem seu lugar até na vida espiritual Em todos os lugares onde ela se desenvolve reveste o papel capital de organizar para o esforço humano uma economia de forças ou de caminho e um aumento de eficácia E na condição de permanecer a serviço da pessoa a técnica a libera constantemente pela base de sua atividade da complicação do acaso do desperdício do espaço e da duração Ela presta ao ser humano coletivamente os mesmos serviços que lhe presta o hábito individualmente Ela é pois para ele se ele a domina uma potente possibilidade de liberação Assim conclui Mounier O que se deve pois recusar na civilização técnica não é ela ser desumana em si é o de não ser ainda humanizada e servir a um regime desumano1251 Nesse sentido para Mounier o marxismo tem razão pois a técnica tem sido posta a serviço de uma ordem mecânica de classe onde a pessoa trabalhadora tem sido considerada como um simples instrumento da eficácia e da produção A técnica também é escrava não a tornemos responsável pela sua servidão1252 Todavia como nota ainda Mounier1253 o hábito de restringir o real a objeto sensível o valor à utilidade a inteligência à fabricação e a ação à tática que compõem a hipertrofia do tecnicismo encontra sua ressonância na tara do capitalismo em subverter a técnica ao cálculo e à produção Por outro lado esta tendência é reencontrada no marxismo quando este não dando o incentivo necessário à crítica ao tecnicismo assimila para minimizar a sua influência o biológico e o espiritual isto é tudo o que no ser humano escapa à matemática e à industria Sendo assim o que o capitalismo e o marxismo subsumem ao tecnicismo é justamente o que Mounier chama de espiritual quer dizer aquilo que nunca deveria sêlo pois se refere justamente à esfera do imponderável do não inventariável cuja qualidade requer outras categorias de aproximação do que as cedidas pelo reducionismo e o racionalismo estreito1254 Para Mounier a subversão capitalista do primado do lucro deve ser subvertida pois o lucro capitalista não é regulado segundo a atribuição normal do serviço prestado ou do 1251 Manifeste op cit p 584 1252 Ibidem p 585 1253 Ibidem p 586 1254Ibidem 470 trabalho fornecido se assim fosse diz Mounier ele seria um motor legítimo da economia Por outro lado segundo Mounier ele tende por natureza a se aproximar da pechincha ou lucro sem trabalho Segundo o diretor de Esprit um tal lucro não conhece nem medida nem limite humano quando se dá uma regra ele se refere aos valores burgueses conforto consideração social representação e permanece indiferente tanto ao bem próprio da economia como aquele das pessoas que ele coloca em jogo1255 Estas observações vindas de Emmanuel Mounier escritas em 1936 nos soam muito atuais Todavia creio que mesmo com sua lucidez ele ficaria pasmo diante da capacidade de agregação numérica a que a tecnologia e a informática atuais possibilitam para a fecundação do dinheiro em somas que ser humano algum consegue dimensionar em termos de representação em bens palpáveis se é que há a possibilidade dos recursos finitos do nosso mundo lastrear tal soma O escancarado jogo de pirâmide1256 que é crime no Brasil se houver enquadramento e for cometido por particulares1257 na forma em que se apresenta como capitalismo atual é o que justifica e possibilita a concentração de tais somas impensáveis nas mãos de um único ser humano e a inevitável socialização dos prejuízos pela distribuição do dinheiro real público fruto do trabalho social quando a pirâmide tem de ser desfeita para que se inicie uma outra Falamos antes da invenção monstruosa da fecundidade do dinheiro sem serviço prestado mas esta menina dos olhos do capitalismo pela sua importância para nossa compreensão da crítica de Mounier merece mais algumas palavras Sobre o lucro capitalista diz Mounier O primado do lucro nasceu no dia em que do dinheiro enquanto simples símbolo de troca o capitalismo fez uma riqueza potente portando fecundidade no momento da troca ele mesmo uma mercadoria suscetível de compra e de venda Essa 1255 Ibidem p 587 1256 Na verdade não se trata verdadeiramente de um jogo de azar mas da combinação entre parceiros de uma contribuição em dinheiro que é arrecadada em escala geométrica por agregação de outros parceiros cuja soma total da contribuição por ordem de entrada na pirâmide que se forma define quem vai levar o montante A imagem da pirâmide é certa porque é sempre um ou uns que levam a soma total enquanto o prejuízo fica por conta dos demais que compõem a base da pirâmide e que por sua vez correm para trazer novos participantes para que chegue sua vez de receber o montante Sem nenhuma dúvida quanto a não estar cometendo uma simplificação o que os eventos atuais têm demonstrado é que isso representa exatamente a lógica científica que comanda o neoliberalismo do senhor Hayeck e Freedman já citados 1257 O enquadramento jurídico da fraude da pirâmide é muito difícil sem uma prova material que possa gerar jurisprudência Fato é que a cooptação de novos agregados participantes se dá pela instigação da ganância vontade de ganho de dinheiro fácil um fato subjetivo e livre para o que não se estabelece nenhum vínculo contratual ou documental As demandas jurídicas podem se dar dependendo do caminho tomado pelo advogado pelas provas do lesado tanto pelo enquadramento no art 171 do Código Penal por estelionato ou pelo Código de Defesa do Consumidor etc Como vemos as motivações e o paralelismo de sentido do esquema abstrato entre este jogo de pirâmide e a lógica do capitalismo são muito grandes 471 fecundidade monstruosa do dinheiro que constitui o que a velha linguagem nomeia como usura ou pechincha é a fonte do que nós chamamos propriamente lucro capitalista Este sendo adquirido na medida em que ele é capitalista com o mínimo de trabalho fornecido de serviço real ou de transformação de matéria não pode ser adquirido senão sobre o jogo próprio do dinheiro ou sobre o fruto do trabalho de outro O lucro capitalista vive pois de um duplo parasitismo um contra a natureza sobre o dinheiro o outro contra o ser humano sobre o trabalho1258 Depois disso Mounier elenca as principais formas deste parasitismo sobre as quais remetemos ao texto No capitalismo é o capital que tem sobre o trabalho o primado de remuneração e o primado de poder e não o trabalhador1259 Em toda adversidade o dinheiro é o primeiro a ser servido E numa atualidade impressionante Mounier pergunta Como enfim ousar ainda a falar de risco depois que as empresas capitalistas falidas pelo recurso do Estado estão habituadas a uma regra que se tem de maneira feliz formulado individualização dos lucros e coletivização das perdas1260 O salário como na sua grande maioria a expressão não condizente em dinheiro por um trabalho real prestado e incapaz de prover a manutenção do necessário para o desenvolvimento de uma vida pessoal criadora está longe de assegurar ao seu titular esta renda perpétua e certa que se quer bendizer pois enquanto o interesse obrigatório é inatingível por outro lado é sempre ele o ameaçado em sua existência mesma pelo desemprego A prepotência do patrão individual sobre o operário isolado dos inícios do capitalismo parece humana ao lado do enorme potencial de opressão e do monopólio de iniciativa que é acumulado pela concentração financeira muito mais rápida do que a concentração industrial nas mãos de uma oligarquia1261 O capital é contra o consumidor para o capitalista não lhe interessa o ser humano real tomado no conjunto de suas exigências mas o cliente fonte de vendas logo de lucro1262 O capitalismo é contra a liberdade O capital seguindo as leis de sua estrutura que é matemática e não orgânica anônima e não qualificada tende infalivelmente à acumulação de massa por conseguinte à acumulação do poder O aparelho financeiro 1258 Manifeste op cit p 587 1259 Ibidem p 588 1260 Manifeste op cit p 589 1261 Ibidem 1262 Ibidem p 590 472 racionalizado apoderandose do domínio de uma economia primitivamente orgânica1263 deveria acelerar sua despersonalização1264 O capitalismo é contra a propriedade pessoal Se denominamos propriedade o modo geral do comportamento econômico de um mundo de pessoas vemos em resumo que o aparelho capitalista 1a despossui o trabalhador assalariado do lucro legítimo da propriedade legal e do domínio pessoal do seu trabalho 2a despossui o empreendedor livre de sua iniciativa em proveito dos trusts centralizados 3a despossui o diretor técnico da direção de sua empresa sob a ameaça permanente das decisões da especulação e acordos financeiros 4a despossui o consumidor do seu poder de compra produzindo regularmente o desemprego por suas especulações catastróficas Tudo isso em proveito do dinheiro anônimo e irresponsável Tais são a doutrina oficial e os estados de serviço dos defensores da propriedade privada e de seus valores humanos De fato disso eles só mantêm a aparência da mesma maneira que mantêm a ilusão da soberania popular para melhor mascarar seu monopólio oculto da propriedade da liberdade do poder econômico e do poder político1265 O interessante em todos estes tópicos caros à retórica apologética liberal na defesa do sistema capitalista é justamente o fato de Mounier elencar o que paira no ar comumente como argumento a favor da manutenção do capitalismo pois são mantidos pela retórica de sua dominação como frutos devidos a sua existência e que como Mounier argumenta na verdade são exatamente aquilo que a retórica liberal capitalista afirma em palavras para melhor negar de fato Mas esta facticidade os liberais encaram apenas como uma falha necessária num processo que é natural Todavia esta negação efetiva à maioria esmagadora dos seres humanos na face da terra por este sistema abstrato perverso e violento não passa despercebida a Mounier1266 1263 Mounier não entra na problemática teórica da passagem do modo de produção medieval para o do capitalismo Para ele menos preocupado em fundamentar uma crítica estrutural que para o marxismo seria muito mais importante por causa da fundamentação do seu método de análise interessa perceber a transformação que o capitalismo opera na economia transformando e conquistando em velocidade e eficácia o que perde na mesma velocidade em humano 1264 Manifeste op cit p 591 1265 Manifeste op cit p 591 1266 Como temos tentado pontuar a sensibilidade atual no trato das questões econômicosociais capitulada pela retórica perversa do neoliberalismo e do chamado discurso politicamente correto é passível do tratamento que se dá ao membro de uma seita religiosa dominadora como tenho proposto à luz da reflexão de Emmanuel Mounier Por conta disso tenho pretendido realizar a experiência Tenho proposto a um amigo fotógrafo profissional a elaboração de um projeto elucidativo conjunto com texto e fotografia em que ficará claro que toda crítica feita à violência desumana do nazismo e ao espírito totalitário e muito bem aceita pela 473 Depois do que foi dito sobre o capitalismo Mounier se dá a liberdade do uso de um antropomorfismo Constituído em tirania ele engendra por seus próprios métodos o tiranicídio que virá algum dia reivindicar contra ele a herança da ordem1267 Se esse vaticínio de Mounier pode ser situado em relação às grandes ideologias coletivistas contrapostas à ideologia liberal capitalista Mounier escreve isso em 1936 e que se encontram hoje desnorteadas por outro lado as formas de violência e de barbárie difusas no meio de nossa sociedade brasileira podemos dizer são microsinais cuja soma insuportável levada ao paroxismo por causa da persistência da velharia ideológica liberal capitalista hoje em uma suposta nova versão denominada neoliberalismo que insiste em se manter aqui não tardará em manifestar seu frutos na forma crescente de reivindicações tirânicas do poder que segundo o método liberal que insiste em se manter e em nome de sua pseudodemocracia deverá crescer paralelamente ao uso aplicado da violência por parte do Estado cooptado Não é possível no espaço de um trabalho como este abordarmos mais amplamente e com minuciosidade todos os aspectos da crítica de Emmanuel Mounier ao liberalismo e seus pares a burguesia o indivíduo e o capitalismo e ainda fazermos um balanço de sua influência no pensamento econômico do personalismo contemporâneo Todavia mais algumas aproximações da visão econômica de Emmanuel Mounier serão apresentadas no capítulo a seguir onde faremos uma análise da proposta de revolução personalista e comunitária de Emmanuel Mounier em relação às revoluções coletivistas Todavia sensibilidade atual pode claramente ser transposta à forma pela qual se dinamiza o poder atual Isso nos possibilitará de alguma forma avaliar o nível de indignação que realmente se mantém quanto às monstruosidades nazistas e que perduram hoje sob a forma abstrata em que se quer colocar as causas da violência atual quer dizer a manutenção do seu anonimato Tratase de imagens em fotografia colhidas das feiras de lixo e de outros momentos com os mesmos personagens que acontecem em São Paulo Pelas fotos e pelos textos pretendemos deixar clara a possibilidade de transposição cabal de todos os constituintes da perversão totalitária nazista dos campos de concentração ao trato despendido pelo poder político a sociedade como um todo e os indivíduos em particular a estes seres humanos que encontrando no lixo a única fonte de sobrevivência ainda aí nesta esfera de subumanidade são alcançados pelo poder regulador da mão invisível neoliberal que precisa afastar os sinais de sua necrose social para desimpedir as consciências em sua contínua busca pelo dinheiro já como a única coisa válida para se fazer na vida Isso depois da redução significativa do sentido da vida da maioria esmagadora dos brasileiros à corrida diária pela manutenção magra e não garantida da vida empírica que tem se transformado na única coisa a ser feita Assim ficará clara a possibilidade deste alcance essencial na comparação dos fenômenos Hoje dandose em nome da ordem liberal e através da violência policial em nome do Estado e da indiferença social em nome da não perturbação da paz da limpeza das vias públicas da despoluição visual etc 1267 Manifeste op cit p 589 474 podemos dizer que em relação à economia personalista1268 já nestes seus primeiros escritos Mounier vê a fraqueza de uma economia totalmente planificada ao mesmo tempo em que vê o fracasso de se colocar como compensação a este modelo a economia de mercado que simplesmente libera a economia no modo pro forma anarquicamente mas centraliza e busca o seu controle com vimos por outros meios aos que ele pretende ilegais para a maioria mas que autoriza nas mãos de uma minoria pela manutenção da ilusão da liberdade de iniciativa e do sonho pequenoburguês de se chegar a um nível mais elevado na escala social como passaporte para se tornar um dos seus agentes O resultado desta farsa é como vimos que no ato final sempre uma minoria auferirá a repartição dos lucros e a maioria a dos prejuízos Para tanto o personalismo como veremos propõe uma economia humana criativa pluralista e descentralizada até à pessoa 1268 Remetemos para uma visão mais ampla sobre a visão econômica de Emmanuel Mounier a Révolution personnaliste et comunautaire Manifeste au service du personnalisme De la propriété capitaliste a la propriété humaine todas em Oeuvres I 475 CAPÍTULO IV Revolução Personalista e Comunitária e Revolução Coletivista A Pessoa como Relação e Comunidade e o Coletivismo IV1 O diálogo com o marxismo Mounier não obstante se afirmar antimarxista o que não impediu de ser chamado de filocomunista e do trabalho de Esprit de criptocomunismo vai procurar por todos os meios manter o diálogo com os marxistas1269 E isso entendendo que o marxismo não detinha nem o monopólio do que seria in perpetuum a dimensão social do ser humano e nem poderia arrogar para si o apanágio plenipotenciário de catalisador e unificador universal de todas as correntes que se intitulam socialistas1270 Por outro lado Mounier reconhece que é o marxismo quem em sua época toca na única dimensão humana capaz de fazer frente à decadência do individualismo liberal e burguês que apodrecia a sociedade Nesse diálogo com o marxismo o personalismo de Mounier não vai ser movido pela vontade de certeza mas pela sede de verdade e por isso a sua busca por parte de Mounier e da equipe de Esprit onde quer que ela se encontre nos andrajos em que ela estiver e no tempo em que ela se der Nesse momento de polarização não obstante Mounier reconhece Marx conduzindo a atenção sobre as condições materiais da vida do espírito e sobre suas servidões atuais tem servido à verdade contra este espiritualismo desumano mesmo se ele o tenha imediatamente comprometido em uma reação sistemática1271 E se o rótulo é inevitável Mounier terá sua própria maneira de ser marxista1272 ao ponto de propor aos marxistas que se pense uma marxismo fechado e um 1269 Sua busca de diálogo com autores como Gide é um bom exemplo 1270 Révolution p 223 In loc segundo Mounier para o marxismo todo movimento anticapitalista que não seja marxista é por definição fascista e isso levado cegamente pela fatuidade doutrinária e a soberba dos partidários 1271 Ibidem p 411 1272 Révolution op cit p 411 Lignes davenir texto de 1935 476 marxismo aberto desde os seus primeiros escritos e que continuará até o fim de sua vida Mounier não nega sua filiação marxista nomeadamente em relação à teoria da alienação1273 Parece que num momento do seu pensamento Marx tenha ficado tão próximo quanto possível de uma dialética personalista em sua análise da alienação Alienação do trabalhador em um trabalho estranho do burguês nas posses que o possuem do consumidor em um mundo de mercadorias desumanizadas pela avaliação comercial a nosso ver tantas formas de despersonalização quer dizer de uma desespiritualização progressiva que substitui um mundo de liberdades vivas por um mundo de objetos1274 Num texto de 1947 podemos ler ainda a busca por parte de Mounier de um entendimento com os marxistas Compreendese mal uma vez passada a condenação sobre as imprudências que um marxista se irrite com a idéia de um ultrapassamento do marxismo Por definição o marxismo não é um sistema mas um método de análise e um método de ação Por hipótese ele é dialético seu passo não é a aplicação de um esquema preestabelecido mas o progresso incessante de uma ação que esclarece um pensamento de uma oposição que transborda uma posição Todo estado do marxismo é no espírito mesmo da doutrina ultrapassado a cada momento pelo estado da conjuntura pelas lições da experiência pelas maturações consecutivas da interpenetração Um marxismo assim aberto pode não estar muito distante de um realismo personalista se ele reencontrar a inspiração primitiva de Marx que através da desordem das coisas visava sobretudo a alienação das pessoas e através da ordenação das sociedades a liberação dos seres humanos1275 Nos primeiros escritos em Esprit os quais recolhidos em Oeuvres I recebem o nome sugestivo de Revolução personalista e comunitária e com o subtítulo Linhas de Partida Mounier já esboça todos os pontos de uma crítica à teoria marxista numa época em que o marxismo na França não era ainda divulgado1276 Sua preferência pelo jovem Marx o da crítica da alienação e sua crítica ao Marx da Primeira Internacional a quem 1273 PELISSIER Lucien IX Mounier e os comunistas in Presença de Mounier Duas Cidades São Paulo 1969 p 125 s 1274 Manifeste au service du personnalisme Oeuvres I 1936 519 1275 Ver Questce que le personnalisme Oeuvres III 227 Ver também BARLOW Michel Le socialisme dEmmanuel Mounier Privat Tolouse 1971 pp 141 ss Chapitre III Personalisme et marxisme 1276 Sobre isso ver LUROL Gérard Mounier Gènese de la personne op cit passim 477 Mounier caracteriza como centralizador e autoritário1277 configura muito bem o caminho por onde Mounier acreditava poder se dar o diálogo com o marxismo ou seja pelas vias de um humanismo radical1278 Em um dos apêndices de Révolution personnaliste et communautaire intitulado III Révolution et révolution1279 que é uma comunicação de Mounier em um evento que se intitulava LUnion pour la vérite ocorrido em 18 de fevereiro de 1932 sete meses antes do lançamento de Esprit e que representou uma tentativa de confrontação entre os diversos movimentos de juventude no sentido de documentar as posições revolucionárias não marxistas da juventude francesa da época lemos do jovem Emmnauel Mounier o seguinte sobre sua concepção de revolução Há dois sentidos nos quais nós não somos e não podemos ser revolucionários Se a revolução consiste no agito periódico pela necessidade dialética ou pelo humor romântico não somente da ordem estabelecida mas da história mais essencial se a revolução consiste em tomar o ser humano suas instituições seu universo interior e o derribar da cabeça aos pés nós dizemos concepção material sensível e fácil de revolução e se afirmais que o constrangimento da história está acima responderemos que a liberdade do ser humano é a de estabelecer uma história contínua entre os abalos e as descontinuidades de sua história material o materialismo histórico é a psicologia das épocas desumanizadas Se a revolução é este mito essa fé ideológica em um nó da duração em um ponto culminante da história pelo qual se apresentaria o progresso contínuo da humanidade a partir do qual dataria uma era inquebrantável de liberdade e eu faço alusão tanto à escatologia de Marx quanto à ideologia de 1889 e dos anos renanos nós respondemos A liberdade está no ser humano é ele quem conserva os recursos inesperados nos piores momentos de opressão e nós pensamos bem que os 1277 Ver o que Mounier diz sobre a atitude autoritária de Marx e o tratamento indiferente dado aos movimentos de inspiração socialista que destoavam de seus princípios e que compuseram a Primeira Internacional em Anarchie et personnalisme Oeuvres I pp 658 ss I Anarquie et anarchisme 1278 O filósofo personalista Jean LACROIX em O personalismo como antiideologia Coleção Substância Editora Rés Ltda PortoPortugal sd p136 escreve a respeito de uma crítica mais recente de Althusser mais jovem que Mounier 13 anos em seu livro Pour Marx escrito em 1965 crítica ao Marx de O Capital o que todavia pode muito bem ser afirmado em relação ao pensamento do jovem Mounier o seguinte Nos anos de 18421845 Marx professou um humanismo inspirado primeiro em Kant e Fichte e depois em Feuerbach mas desde 1846 renunciou a esse humanismo A Ideologia Alemã não é a simples crítica da ideologia de outrem mas a de sua própria Basta aplicar o esquema conceitual de O Capital a essa obra de juventude que são os Manuscritos de 1844 para que se torne evidente o corte epistemológico que existe entre os dois textos 1279 Oeuvres I p 847 s 478 eventos ocorridos nestes anos próximos nolo fizeram mensurar mas o mal está também nele ele pode recuar mas isso faz parte de sua carne A história do ser humano não é uma geometria em preto e branco mas uma perpétua vicissitude de luz e de sombra A sombra se estende até o limite da história Com estes dois sentidos descartados nós nos afirmamos revolucionários de uma dupla maneira Uma primeira vez enquanto durar a humanidade pois a vida do espírito é uma conquista sobre nossa preguiça que a cada passo nós devemos sacudir contra o adormecimento o nosso e aquele da ordem estabelecida nos adaptar à revelação nova nos expandir na paisagem que se amplifica Uma segunda vez em 1932 porque o mofo do mundo moderno está tão avançado tão essencial que o desabamento de toda sua massa verminosa é necessário para a chegada de novos rebentos1280 Tratase em relação ao marxismo como vemos antes que negar a necessidade da revolução de desolidarizar a verdade do erro Essa será uma tarefa constante tanto em relação ao comunismo quanto em relação ao liberalismo ao fascismo e ao nazismo Nesse sentido falando da ação profética diz Mounier Os profetas do religioso são homens destacados que dão testemunho pela verdade total contra as verdades parciais pela verdade integral contra as acomodações1281 Não que esta tarefa profética se dê como a última palavra no sentido em que já não haveria mais nenhuma outra depois da sua palavra proferida Tratase da busca de uma inflexão de uma terceira força que não tem nada a ver com o chamado centro É um movimento de busca da verdade no qual se reconhece os méritos das posições sem se deixar cair em um ecletismo apaziguador sempre numa intenção de ir além de uma mera conciliação eclética Nesse sentido Mounier procura discernir o que o comunismo tem realmente de temível O que o comunismo tem de temível dizemos desde o primeiro número desta revista é uma mistura de erros radicais e de opiniões parcialmente justas e bem intencionadas mais ainda a junção ao erro de causas dolorosas cuja premência nos oprime gestações históricas cujo parto nos chama Estamos persuadidos aliás de que não se destrói o erro pela violência ou pela máfé mas pela virulência da verdade E a verdade mais capaz de remover um erro é precisamente esta parte de verdade que se contém no erro É 1280 O texto entre aspas vai aparecer no primeiro número de Esprit lançado em outubro de 1932 no artigo inaugural e programático de Mounier chamado Refaire la Renaissance Oeuvres I p 137 a 174 1281 Feu la chrétienté Oeuvres III p 533 479 por ela que o erro vive propagase conquista os corações É retomando este alento de verdade ao erro que a aprisiona dandolhe uma saída um ambiente vivificante que arrebataremos ao erro sua força de persuasão1282 Para Mounier é preciso que se mantenha a transcendência da verdade e ao mesmo tempo sua historicidade Isso impedirá a concepção de um desenvolvimento sobre a imagem mecânica da evolução que reúne cegamente o novo ao antigo ou sobre a imagem hegeliana de uma dialética lógica1283 Essa verdade transcendente antes que um acabamento seria um pólo de atração que enquanto historicidade se identifica com o próprio movimento de emergência da pessoa Por isso a verdade como pólo de atração como apelo antes que como uma substância acabada como a própria pessoa doará o sentido de qualquer verdade e aferirá sua validade Por causa mesmo de sua característica transcendente quer dizer inobjetivável a tentativa de sua absolutização temporal por qualquer expressão pela qual ela venha a se deixar manifestar no tempo para o personalismo está sempre sujeita ao fracasso enquanto verdade definitiva mas como recebe a marca da pessoa também ela será perfectível tomada sob o modo de ser do artefato Na outra face em relação ao relativismo fácil que alguém poderia deduzir desta noção de verdade transcendente personalista Mounier liga a desconsideração quanto à questão da verdade e do erro à atitude totalitária que por sua vez inexoravelmente tende a se pautar no factum E realmente parece que a intencionalidade que motiva uma fuga ou desconsideração quanto ao problema emergente da verdade e do erro guarda sob sua expressão de superfície altaneira um elemento ao mesmo tempo de autoritarismo e de covardia como é a situação de todo tiranete1284 Sobre isso diz Mounier Não mais se trata de verdade ou erro nem de exigir cartas de fiança do pensamento cristão em nome de outra forma de pensamento A nova força não se importa com questões sobre verdade É ela diz um de seus historiadores recentes1285 revolução de denominador sempre variável denominador ideológico que é a vontade intercambiável segundo as necessidades táticas da casta que se encontra no poder Não apenas é indiferente ao verdadeiro e ao falso como 1282 Ibidem p 560 1283 Ibidem p 579 1284 Ver LABOETIE Discours de la servitude volontaire op cit onde a situação do tirano é observada neste seu paradoxo genético 1285 Em nota de Mounier Hermenn Rauschning Exmilitante nazista e depois crítico 480 voltase contra toda forma de pensamento com uma disposição de extrema violência Atribuise a Goethe esta expressão Quando ouço pronunciar espírito saco meu revolver E embora dê a firmeza de uma doutrina espiritual como condição precípua do êxito de uma revolução Hitler inculcou em seu partido um ódio aos intelectuais esses mendigos lamentáveis que carregam sua intelectualidade como um escudo na frente de seus corpos trêmulos Minha Luta Um dos escritos desse partido falando da equipe dos chefes infalíveis escreve quanto menos esta equipe tenha cultura no sentido usual do termo mais valerá1286 Vemos o quanto uma atitude de posturas absolutas flerta com o seu par relativista fácil de tal forma que podemos falar do nazismo como uma doutrina de caráter afirmativo absoluto porque relativiza todas as outras expressões e viceversa podemos relativizar todas as posições porque consideramos cada uma em si absoluta em sua relatividade com as outras Mounier percebe o maniqueísmo interesseiro e conveniente em que a modernidade quer manter o problema da verdade1287 Fica claro que para Mounier se realmente somos contra qualquer tipo de totalitarismo o teste para tal se baseará no quanto estamos dispostos a tornar públicas nossas mais profundas convicções no diálogo aberto público nos dispondo assim a participar do que chamamos nesta dissertação de o problema geral da verdade Assim ficando descartado qualquer tipo de atitude aristocrática Como tal sempre uma espécie de ocultação altaneira que para o personalismo é sinônimo de covardia e decadência Serão esses pressupostos que estarão também na base das motivações de diálogo com os marxistas que Mounier incansavelmente tentará manter É inevitável que do problema da verdade como Mounier o esboça e a partir da sua antropologia relacional seguese uma teoria do conhecimento correspondente1288 O ato de conhecimento segundo o realismo integral que Mounier entende ser o do cristianismo e que nós temos notado aqui como o lema da Grande Mística é distinção sem separação 1286 Feu la chrétienté op cit p 580 1287 Já falamos do liberalismo no capítulo anterior mas é importante relembrar quanto à questão da verdade o quanto o espectro liberal abrange comodamente desde um Hegel até um Richard Rorty Ver a lista de liberais em Le libéralisme Textes choisis presentes par de Mikaël GARNDEAU Flammarion Paris 1998 1288 Esta teoria do conhecimento personalista que se propõe fazer frente ao espectro geral de face kantiana racionalistas empiristas positivistas e afins que tem se estabelecido na história intelectual ocidental como a última palavra em matéria de conhecimento humano seria o projeto que o personalista Max Scheler conduziria se não fosse a sua morte prematura Todavia da reflexão de Mounier mesmo densamente engajada no evento podemos extrair os elementos delineadores de uma teoria do conhecimento personalista Estes elementos serão apresentados mais abaixo quando tratarmos desta problemática 481 A Coisa conhecida e o pensamento não estão separados como o modelo real e a cópia nem mesmo unidas porém estritamente unas o ato do conhecimento humano consiste em tornarse o outro enquanto outro e atravessa necessariamente o universo sensível para fazer com que participe neste crescimento espiritual do ser1289 A verdade transcendente e como pólo de atração é tida também no personalismo como dissemos sob o modo de ser do artefato Tratase de uma tarefa a ser realizada uma obra para a qual todos são convocados Não há para o personalismo elite da verdade E neste plano em que estamos tratando no da sociedade ou se quiser no da cultura ela se perspectiva no trabalho de construção comunitária que vise a consecução de uma comunidade de destino Vemos que para Mounier a verdade está no ser e não simplesmente no sujeito ou no objeto e nem na junção destes dois pois o ser como já dissemos é para Mounier transbordamento Mas é no surgimento da consciência que o ser através da pessoa e por sua expressão através dela em seu movimento de emergência pode tomar consciência de si como desvelamento sempre plural e em transformação Como o ser é sempre transbordamento a experiência do pensamento que no personalismo se dá como procura do enobrecimento ou melhor como homenagem à inteligência é apenas uma das possibilidades pelas quais o transbordamento do ser se manifesta Levandose em consideração que a própria experiência do pensamento para o personalismo não se exaure em um locus que a reduza à lógica ou à linguagem a razão que comanda esta dimensão da pessoa é para o personalismo tomada como a lógica da personalidade integral1290 Neste sentido a razão racionalista não teria o monopólio último sobre a Razão que no personalismo é vista como uma propriedade que vai além e ultrapassa os quadros reduzidos da lógica da identidade que todavia comanda o paradigma intelectualista do qual o racionalismo é herdeiro Portanto tudo isso só faz sentido se outras possibilidades de transbordamento do ser fora do plano específico do estritamente gnosiológico são possíveis E há Dentre elas o ato de amor desprendido é o que guarda os elementos mais inusitados1291 1289 Feu la chrétienté op cit p 587 1290 Essa expressão não se encontra escrita na obra de Mounier mas a coisa está lá Por outro lado retemola de INGE Willian Ralph The Christian Mysticism op cit pp 18 a 21 quando por meio da tradição da mística cristã contesta a redução do ato racional da pessoa aos moldes do kantismo 1291 O amor é tema recorrente na reflexão de Mounier Já falamos do caso do personagem Jean Valjean de Victor Hugo É naquela situação limite entre o cumprimento da lei escrita e convencionada proposta como 482 Do tema da verdade enquanto busca de diálogo aberto como propondo uma nova epistemologia na esteira de Max Scheler que infelizmente não completou este projeto de uma nova epistemologia Mounier segue no seu diálogo com o comunismo ao tema da verdade da revolução Assim ele diz a revolução é a verdade Que revolução Elaborada de que modo Não existe graça santificante política esta verdade da revolução é uma conquista incessante como toda verdade ela não se desenvolverá a não ser por um semnúmero de processos claudicantes de tentativas e erros1292 ela deverá constantemente lutar contra a secreção de suas próprias mentiras Não vejo diferença entre a revolução sempre tem razão e Hitler sempre tem razão1293 limite do que a sociedade organizada propõe como justiça e a superação deste limite pela apresentação de uma outra situação limite não convencionada e pertencente à dimensão da liberdade da pessoa enquanto generosidade gratuita que se demarca as fronteiras chocantes e tensas entre a liberdade legal e a liberdade criadora da pessoa Esta tensão criada pelo ato de misericórdia de M Bienvenu não só será o momento da metanoia de Jean Valjean como marcará em sua vida o enredo de uma existência dramática mas afrontadora do real e verdadeiramente produtiva É por um ato de amor desprendido de generosidade que verdadeiramente se estabelece na trama o início de uma existência afirmativa e afrontadora do real Sem o ato de amor a existência de Jean Valjean seguindo a força das circunstâncias seria apenas mais uma história de tragédia O ato de amor envolverá a vida do ao mesmo tempo perdoado e fora da lei benfeitor Jean Valjean Para Mounier e como desenvolverá Karl JASPERS a morte não é a única situação limite Cito aqui a literatura a ficção mas poderia citar alguns exemplos de pessoas minhas conhecidas nas quais um ato de verdadeiro amor foi suficiente para desencadear o sentido de uma existência apaixonada e criadora não penso aqui uma vida criadora como somente a dos grandes personagens da história Todas as pessoas segundo o personalismo de Emmanuel Mounier podem realizar uma existência criadora em seu próprio nível de expressão Como diz MACKAY John A Eu vos digo op cit p 243 s citando Unamuno O mundo não conhece os seus maiores heróis Quem será o sapateiro ideal pergunta Unamuno Aqui tendes um operário que vive de fazer sapatos e que os faz com o esmero preciso para conservar a sua freguesia Este outro vive num plano espiritual um pouco mais elevado pois tem o amorpróprio do ofício e por capricho ou pundonor se esforça por ser tido como o melhor sapateiro da cidade ou do país mesmo que isso não lhe angarie mais compradores nem maiores ganhos mas o que tem em mira é maior renome e mais prestígio Há entretanto outro grau ainda mais alto de aperfeiçoamento moral na profissão de sapateiro e é esforçarse por ser para os fregueses o sapateiro único insubstituível aquele que de tal maneira lhes fabrique o calçado que sejam obrigados a lamentar a sua falta quando lhes morrer lhes morrer e não só morrer e pensem que não devia ter morrido e tudo isto porque ele lhes fazia os sapatos pensando em darlhes todo o conforto que não fosse o cuidado dos pés que lhes impedisse de se dedicarem à contemplação das mais altas verdades fez lhes o calçado por amor a eles e por amor de Deus neles fezlhos por religiosidade Em nota de MACKAY in loc Del Sentimiento Trágico de la Vida p 286 Talvez a obra de Victor Hugo seja um clássico não porque trate muito bem de uma ficção mas porque é justamente uma expressão fidedigna do concreto de uma existência e por isso mesmo já universal 1292 Não podemos confundir esta perspectiva histórica da revolução in loco A revolução social está hoje na linha da verdade histórica com o método laboratorial que Karl Popper quer estender para o campo social No capítulo sobre Personalismo e Liberalismo exploramos melhor estas noções Todavia em Feu la chrétienté op cit p 640 em carta de Mounier ao Pe Fessard crítico de Mounier lemos há na realidade histórica concreta do comunismo elementos essenciais de libertação que não temos o direito de desconhecer ou de rejeitar porque estejam ligados efetivamente hoje a perspectivas históricas ou a outras realidades históricas que nós rejeitamos Trabalhamos na incerteza da história mas no rigor da justiça e da verdade para dissolver esta ligação 1293 Feu la chrétienté op cit p 617 483 O empenho por parte do diretor de Esprit em esclarecer os malentendidos até se for o caso no nível do pessoal da obsessão poderíamos dizer é incansável esta é a vertigem que precisamente designamos mais acima como o inimigo número um de toda conversação séria entre os comunistas e aqueles que não o são da coexistência viável e necessária sem o extermínio de comunistas e de nãocomunistas Quando ouço um desses que como Borne e outros não podem ouvir uma verdade lúcida sobre o comunismo sem imediatamente acusar quem a pronuncia de estar enfeitiçado e com vertigem ocorre me de modo irresistível ao espírito uma experiência africana1294 Mais de uma vez quando falava a um negro como teria falado a qualquer um de minha cor eu o achava de repente para meu espanto em vias de me julgar pensador negro ou de me sentir com a sensibilidade negra ao passo que eu estava tão distanciado quanto possível de ter diante dele uma consciência de branco Assim surpreendo sem cessar pessoas obcecadas pelo comunismo alucinadas pelo criptocomunismo como outras são alucinadas pelo anticomunismo projetar sua obsessão em torno de si mesmas1295 e acusar com sua própria vertigem os que apenas procuram ver claro e certo e resistir uma vez mais aos místicos da salvação pública que acabam de custar à Europa 50 milhões de mortos1296 Dos aspectos mais gerais aos particulares da problemática com o comunismo chegamos ao seu órgão e canal privilegiado de contato com as massas os partidos e os sindicatos Não achamos que apenas o Partido Comunista ou o que dá no mesmo partidos satélites totalmente polarizados por ele possa e deva garantir as transformações necessárias à reconstrução da ordem e da justiça Não julgamos que apenas o marxismo explica a história contemporânea e que o faça sempre adequadamente Mas numa época em que o hábito é de concentrar no comunismo e marxismo todo o mal da história desejamos entre outras coisas assegurar a dupla vocação do cristão que é a de despistar o farisaísmo encoberto de bons sentimentos e a de revelar a verdade em todos os lugares até sob andrajos e em lugares escusos1297 1294 Para o relato do próprio Mounier de sua viagem a África e seus contatos com intelectuais africanos ver LÉveil de lAfrique Noire Oevures III de 1947 Para mais informações sobre a irradiação como Mounier preferia dizer do personalismo em África hoje ver Actes du colloque tenu à UNESCO vol II op et loc cit 1295 Sobre o problema do envolvimento do nosso psiquismo com o ambiente sobre as projeções ver Traité du Carctère Oeuvres II 1946 p 486 s 1296 Feu la chrétienté op cit p 630 1297 Feu la chrétienté op cit p 643 484 Mounier em seu diálogo com os marxistas se propõe denunciar a ilusão de uma revolução que só toque nas estruturas sociais colocando a necessidade anterior à revolução da revolução pessoal dos revolucionários1298 A lei que denuncia desde então o materialismo marxista não é a lei da marcha para frente e do desenvolvimento da história mas aquela de sua involução1299 Esta crítica da involução que Mounier vê necessária em relação ao marxismo que prega o avanço se refere justamente ao problema que o diretor de Esprit vê nos partidos revolucionários de não continuarem pensando a revolução quando chegam ao poder Ele é atento ao desgaste da palavra revolução usada por uns imbuídos do espírito covarde pequenoburguês que perspectiva qualquer alteração do statu quo disseminando ao redor como expressão dominante do seu próprio psiquismo o sentimento de perda dos seus bens de suas regalias e de seu conforto sempre pejorativamente como sinônimo de baderna de perturbação da paz ou por outro lado como a palavra chave que abre as portas para os novos donos do poder que em profundo acabam aceitando a tese de fundo e de fato mantida pelo liberalismo como já vimos que dizem combater do direito do mais forte Assim diz Mounier Insistese Há algo mais grave A palavra é impura É necessário entender Tratase de impurezas da imaginação o mal não é sério Temse medo do sangue das barricadas o sangue há dez maneiras de fazêlo correr o regime o torna anêmico a cada dia nos dez milhões de seres através das milhões de misérias e quando ele o verte sabese que não leva muito tempo para realizar a internacional da morte a única que até aqui tem ainda estabelecido a unanimidade constrangedora das nações as barricadas algumas manobras e algumas revistas militares ainda e os transeuntes tranqüilos das ruas e das idéias não levarão muito tempo para compreender que não há mais revolução nas ruas na idade dos tanques e das metralhadoras1300 Já falamos sobre os anticapitalismos dos quais Mounier quer diferenciar o seu E sobre isso mais algum retoque Há poucas pessoas hoje da extrema direita à extrema esquerda que não façam profissão de anticapitalismo Assim vai o mundo Só temos diante dos olhos o anticapitalismo cujo alvo é a salvação e o redirecionamento do capitalismo aquele dos sábios em finanças que pregam o retorno do capitalismo de especulação ao 1298 Révolution op cit p 197 1299 Ibidem p 145 1300 Révolution op cit p 302 485 capitalismo de poupança sob suas formas interesseiras a revolta do pequeno capitalista artesanal patronal rentista contribuinte contra o grande capitalismo que os absorve O espírito profundo é o mesmo e a grandeza de visão não está do lado das revoltas Querela de família Paralelamente o anticapitalismo cujo objetivo é o derribamento do regime capitalista e de seus ocupantes mas não de sua ética A revolução não é no espírito dessa revolta senão uma generalização do conforto da riqueza da segurança e da consideração1301 Vemos que a questão da não aceitação por parte de Mounier de determinados anticapitalismos tem base no fato de que de um extremo a outro o que os embasa é uma mesma intenção uma mesma inspiração a mesma que atacam só enquanto dela são vítimas O espírito é o mesmo ou seja capitalista a sua moda E o simples fato da revolta contra o capitalismo não é garantia de um descompromisso com sua ética Todavia para Mounier há no mundo uma dialética revolucionária que é parte da própria dinâmica transformadora do real advinda do movimento de insurgência da pessoa Assim como há uma guerra no interior mesmo do ser como já dissemos1302 e em relação a esta dialética devese procurar seguir o sentido da afirmação e da emergência da pessoa cujas estruturas carcomidas e ultrapassadas da modernidade obrigamna do movimento natural de emergência a tomar um movimento de confronto que é o de insurgência da pessoa na história Para o personalismo a revolução não pode perder o sentido dessa sua gênese real Há pois bem no mundo uma dialética revolucionária Mas não é ou não é unicamente uma batalha horizontal entre duas forças materiais oprimidos e opressores a opressão está no tecido de nossos corações1303 grifo nosso É uma dilaceração vertical no seio da vida espiritual da humanidade é a preguiça mesma de esforço espiritual recaindo sobre si mesmo pela gravidade de um peso estranho que não afrouxará jamais seu aperto Colocado sob esta luz o método marxista nos conduz às verdades que ele desvia ou atrofia todavia ele nos terá talvez salvo da eloqüência e da indiferença1304 Vemos aqui que a percepção de Mounier quanto à dificuldade de se simplificar a dialética revolucionária em termos de oprimidos e opressores se dá porque se trata de um reducionismo horizontal enquanto é possível estabelecermos uma dilaceração vertical ou 1301 Ibidem p 270 1302 Ver acima no capítulo Personalismo e Liberalismo passim 1303 É importante constatar que desta visão antropológica personalista Mounier não vai ceder nem ao pessimismo psicológico ou instintivo e nem ao relativismo fácil antropológico 1304 Révolution op cit p 145146 486 seja a opressão entranhando o nosso tecido interno que problematiza não somente o marxismo como outras posturas acentuadamente binárias e horizontais as do tipo predominante de crítica senhorescravo por exemplo que compõe praticamente o espectro geral de toda base pela qual a política ocidental tem sido pensada em outras palavras sob a questão de quem manda e quem obedece ou ainda em outras palavras hierarquia Teremos a oportunidade de falar sobre as fontes metafísicoreligiosas dessa suposta preocupação laica em sua extrapolação indevida para o mundo da vida de uma metáfora espacial encima e embaixo advinda do mito e da religião das quais alardeiam sua plena emancipação como constituindo a essência que comanda ainda hoje o trato das relações intersubjetivas no mundo da vida concreta1305 IV2 A pessoa e a luta de classes Assim como Mounier concorda em que há no mundo uma dialética revolucionária concorda também em que há uma luta de classes Todavia uma questão se impõe é a luta de classes fruto da sociedade burguesa ou é a sociedade burguesa fruto da luta de classes Aceitandose a aporia e aceitandose a primeira alternativa justificase o caráter histórico da luta de classes e portanto sua possível superação pela mudança da sociedade aceitandose a segunda alternativa naturalizase a luta de classes como parte da natureza social e justificase as atitudes e ações institucionalistas o chamado aperfeiçoamento das instituições antes que revolucionárias Estas duas posturas díspares como é a característica de todo maniqueísmo racionalista têm tanto uma como outra todavia algo em comum a manutenção da luta de classes como álibi justificador para a manutenção de suas posições tanto contratualistas quanto revolucionárias Já vimos que em relação ao marxismo o fim da luta de classes que proclama só faz sentido para Mounier se ele estabelecer em sua tática revolucionária a revolução dos revolucionários Além disso sobre os revolucionários diz Mounier Poucos homens se sentem estabelecidos em uma tão boa consciência quanto o revolucionário Um burguês por pouco que ele seja inteligente ou sensível não pode evitar ver seu raciocínio escavado 1305 Ver mais abaixo Pessoa e existência passim 487 por dentro por uma evidência a cada dia mais gritante seu ideal quando ele tem um abandonado de todos os lados pelos seus então ele desvia ele se aferra ele evoca o apesar de tudo e o tomar as rédeas ou antes ele se torna um cínico O revolucionário ele também tem o bom lado da causa ele tem para si a verdade da época ao menos em sua crítica o prestígio de numerosos heroísmos a adesão dos humildes Ele tem tão facilmente razão em sua polêmica com um mundo corrompido que é muito naturalmente levado a se fazer uma alma de justo e contra os fariseus a criar um novo farisaísmo Não lhe falta senão chegar aos politiqueiros quando então se lhe arranca estas antenas sensíveis que têm sempre feito a qualidade do povo e se lhe passa esse uniforme intelectual onde o adversário do sistema e não da justiça ou do ser humano é automaticamente hipócrita e o partidário automaticamente infalível e puro Desumanizados eles podem então ser classificados nos sistemas de força onde os indivíduos são os exemplares em série de uma mesma escravidão determinista onde a história se desdobra como a curva de uma produção com os períodos de transição e as racionalizações pouco preocupadas de vagas humanidades Negamos nós o fato da luta de classes De maneira alguma Ela tem sido imposta em grande parte em nossa época pelo capitalismo burguês que tem nivelado a pessoa do burguês sob a atividade do dinheiro impessoal e a pessoa do proletário sob a opressão do dinheiro e da miséria desde o início depois sob a atração de seu próprio ideal proposto ao longe para a consolação das vítimas Recusar reconhecer a luta de classes é tomar o partido da mentira que tenta mascarála e estabelecer sua ação seja com a melhor boavontade do mundo são os corações generosos que aí cedem naturalmente sobre uma cumplicidade com o mal Pensamos também que o mundo é muito impuro e muito enlameado no plano da força para que um desengajamento pela força seja evitável enquanto é necessário se juntar os ódios e os ressentimentos a par com as indignações que vêm da justiça vale cem vezes mais diante do mal uma cólera impura que uma resignação de indiferença1306 grifo nosso O problema do revolucionário é achar que sua indignação justa em si mesma e sua sede de justiça que marca o seu elo com os anseios do povo são já o atestado de infalibilidade de sua tática Este será o ponto central do diálogo de Mounier com os revolucionários e de sua crítica à tática revolucionária Mas há uma questão mais profunda 1306 Révolution op cit p 334 s 488 entre o personalismo e o marxismo cuja elucidação também se colocava para Mounier como urgente Já falamos que o modo de ser relacional é a base da antropologia personalista e para ele o que identifica a experiência originária Para o personalismo a vida de relação é a experiência originária da pessoa e não o solipsismo e o tipo de relação epidérmica superficial de fricção que é permitida ao indivíduo proposto pelo neoliberalismo em suas relações contratuais Todavia para o personalismo como o anseio pela vida relacional é originária no ser da pessoa não será uma doutrina ou uma lógica externa e independente do domínio da pessoa que regerá a partir de uma mecânica própria e impessoal em sua essência esse modo de ser essencialmente seu e o determinará em seus fatos como quer o materialismo dialético Para o personalismo Essa libertação entretanto se o recolhimento lhe é necessário não é jamais uma libertação solitária Os filósofos existencialistas marcam ao contrário uma reação geral contra o subjetivismo moderno O homem diz ainda Heidegger não está diante do mundo com uma cápsula um receptáculo que se abriria de tempos em tempos para receber um conteúdo vindo do mundo Ele é ser no mundo sempre situado e na impossibilidade de tomar sobre o mundo uma outra perspectiva que aquela que sua situação lhe dá Essa visão amplia consideravelmente nossa perspectiva sem deixar de fazer dela uma perspectiva limitada1307 Aqui entra em questão a chamada personalista para o despertamento do sono dogmático do aquém da razão em sua precaução não obstante legítima em manterse nos limites da finitude para o personalismo se a intencionalidade é tudo por outro lado não pode ser limitada por qualquer lógica que se queira a última palavra enquanto já determinação dos limites da intencionalidade Uma tal lógica fugiria de suas próprias atribuições de método e daria um passo indevido de lógica à ontologia Eu não sou na verdade este glóbulo de carne e de pensamento que se pode abarcar em um olhar mas pelo poder expansivo de minha consciência eu sou estas montanhas mesmas que vejo todo este país cujo destino eu abraço estes amigos distantes que eu vejo1308 Vemos então que a intencionalidade no personalismo anda a par com a relacionalidade Assim o engajamento não é somente uma constatação de fato mas uma regra de vida sã1309 Na medida em que a intencionalidade é superação de uma subjetividade estanque 1307 Introduction aux existencialismes op cit p 120 1308 Ibidem 1309 Ibidem 489 Mounier reconhecendo que há uma relação entre empobrecimento do pensamento moderno e o aumento da parte na iniciativa da história todavia pela percepção desta dependência mesma minimiza ou melhor diminui em seu estatuto metafísico a causalidade materialista tão alardeada pelo método do materialismo dialético do marxismo como princípio hermenêutico infalível É verdade diz Mounier que sob a impulsão industrial e capitalista concertada com o empobrecimento do pensamento moderno a parte da causalidade material na iniciativa da história tornouse considerável Todavia não há etapas necessárias as revoluções as mais marxistas têm mostrado que elas sabiam passar A situação no tempo pode ser uma escusa moral ela não é um álibi metafísico Nós cremos também nas verdades eternas1310 grifo nosso Verdades eternas em Mounier quer dizer justamente o que seria em cada época a expressão encontrada da unidade entre o tempo e a eternidade tratandose assim mais de uma grandeza qualitativa implicando o sentido que no tempo o movimento da pessoa consegue concretizar como o valor mediador na forma de suas aspirações mais profundas nos contornos temporais Assim continua Mounier Somos atentos em não as confundir com os nossos velhos hábitos e sensíveis à paisagem em que cada época as substitui Sob sua reflexão o primado do material nos parece o que ele é uma desordem metafísica e moral O marxismo não é nada para nós senão a física de nossa falta É necessário juntar aí uma filosofia de nossa contribuição Nós aí trabalharemos1311 Ora a afirmação de um primado do material como quer a metafísica marxista é já a carta declaratória da recusa e a inversão ontológica de uma dimensão fundamental da manifestação da pessoa da expressão mais consigne ao movimento de personalização que é justamente essa abertura no tempo à eternidade única maneira da pessoa atualizar os valores que assume livremente enquanto mediação no tempo de suas inspirações mais profundas Negar essa concretização ao ser humano é submetêlo a um tipo de vida epidérmica e superficial que não faz justiça a sua dignidade e consequentemente dá o passo a todo arbitrário reducionista Nesse sentido a manutenção e a ênfase no caráter contingente da luta de classes serve para o personalismo como sinal para que se faça a crítica das táticas e não como álibi para justificação de um joguinho maniqueísta partidário A tática ela também deve 1310 Révolution op cit p 145 1311 Ibidem 490 passar pelo cadinho purificador da verdade espiritual da pessoa Para tanto Emmanuel Mounier vai propor uma técnica dos meios espirituais Mas antes de falarmos sobre esta técnica dos meios espirituais ver abaixo p 524 ss mais alguma palavra sobre como Mounier perspectiva o caráter contingente da luta de classes O assalariado capitalista é o primeiro e o principal responsável pela luta de classes Ele consagra uma dominação do dinheiro sobre o trabalho que está na origem do ressentimento trabalhador e da solidariedade de classes dos trabalhadores O personalismo não pode ser partidário da luta de classes Mas a luta de classes é um fato que a moral pode reprovar mas que ela não eliminará senão atacandoa em suas causas Se a classe representa a substituição à comunidade social viva por uma massa despersonalizada e armada sobre um ressentimento é a classe capitalista no sentido estrito da palavra quem primeiro se constitui em solidariedade opressiva e tem constituído em face de si o proletariado revolucionário Os agitadores os politiqueiros têm podido manter ou parasitar esta situação eles não a criaram É pois uma ilusão difundida infelizmente nas melhores boasvontades crer que a colaboração das classes seja possível nesse estado contra a natureza1312 Perto do que a noção de guerra tem de significado profundo e de densidade dialética na compreensão ontológica do personalismo da experiência originária do ser como relação a luta de classes é apenas uma caricatura grosseira O marxismo confunde a guerra heraclitiana profundamente significativa para a ontologia personalista com uma manifestação histórica transitória e que se dá na forma de ressentimento e dureza que é a luta de classes Fazendo assim o marxismo decai em sua ontologia ao mesmo tempo em que continua o jogo do liberalismo Como vemos para Mounier há sempre uma cumplicidade de fundo na manutenção dessa situação de luta de classes seja pelos capitalistas seja pelos revolucionários seja pelos de boavontade Ela do ponto de vista social é para o personalismo a forma de um adiamento da vida comunitária pela qual anseia a pessoa E sendo esta vida comunitária para o personalismo a expressão que caracteriza a dimensão relacional da pessoa em sua vida social daí a revolução para Mounier ter de ser personalista e comunitária Este adiamento da vida comunitária pode ser comparado no âmbito da vida individual à adoção do indivíduo que na modernidade ocidental é com já vimos o adiamento da escolha da 1312 Manifeste op cit p 598 s 491 pessoa livre e responsável Portanto a luta de classes fato real para o personalismo por outro lado não pode ser resolvida por uma tática advinda e que se resolva a partir de uma crítica puramente estrutural como a marxista e por aí imanente ao que é antes para o personalismo uma deturpação históricosocial contingente que não pode auferir o estatuto ontológico que Mounier vê ganhar na prática dos revolucionários marxistas A luta de classes para o personalismo é sem densidade ontológica suficiente para fundar uma hermenêutica válida sobre a história de maneira absoluta Segundo o personalismo a luta de classes como fato está no ser social mas não é a expressão cabal de todo o ser Por outro lado a luta de classes na economia geral da teoria marxista e pela tática revolucionária que adota acaba se tornando um dado ontológico ao qual o marxismo dá o mesmo tratamento que dá à propriedade privada burguesa no sentido de encaminhála também como fato histórico portanto contingente desde sua intuição fundamental elaborada pela teoria marxista mas não nas conseqüências práticas e na tática de fato dos revolucionários A práxis marxista para Mounier parece não comandar muito bem sua prática revolucionária Retendose o que a noção de contingência significa e aplicandoa com rigor à noção de luta de classes ela não poderia tomar a proporção e o alcance de descobrimento da roda do ser social como toma na hermenêutica marxista Não obstante sua alegada superação quando da instauração da sociedade socialista sem classes na prática das táticas Mounier não via os revolucionários muito conseqüentes com o próprio método marxista neste quesito No entanto Mounier desde o início não se limitou a uma crítica estrutural desta condição de classes mesmo vendo a luta de classes como uma condição sociológica imposta por um sistema histórico e datado Para ele era necessário dar um maior alcance e aprofundar a crítica estrutural para a dimensão da ética Para tanto antes de se estabelecer a tática seria necessário para Mounier esclarecer melhor as bases da sociabilidade Sobre isso ele diz Uma comunidade é uma pessoa nova que une pessoas pelo coração de si mesmas Ela não é uma multidão Uma pura comunidade não se saberia numerar Não haveria olhar competente sobre ela senão aquele que tomasse cada um em sua originalidade irredutível e o conjunto como uma orquestração Uma sociedade não é durável a não ser que ela tenda a este modelo Não se une grifo nosso os seres humanos nem por seus interesses partidos ligas e sindicatos de reivindicações nem por suas impulsões calores rancores e preconceitos partidos ainda 492 classes e luta de classes nem por suas servidões místicas do trabalho mesmo liberto pois se liberta o trabalho de tudo salvo de si mesmo Não se os une a não ser pelas vidas interiores que seguem por si mesmas à comunidade1313 IV3 Bases personalistas da sociabilidade e o Contrato Social Ainda no sentido de esclarecer em contraste o sentido personalista da sociabilidade vamos a seguir apresentar a chave hermenêutica da sociabilidade liberal que alimenta a luta de classes pela qual poderemos melhor montar o mosaico destas hermenêuticas e contrastálas Para tanto vemos que há uma grande diferença para Mounier entre comunidade e multidão e se o sentido da sociabilidade é unir as pessoas e se as palavras têm algum sentido não será de maneira alguma segundo Mounier o contrato que a promoverá Outros sonham antes em assegurar o elo comunitário racional por uma sociedade jurídica contratual fundada sobre a convenção e a associação É difícil esvaziar totalmente o pensamento do conteúdo que ele se impõe como uma linguagem matemática sem contestação possível O contrato por sua vez não considera o conteúdo ele exige somente às partes a assinatura de acordos sem dolo trapaça ou violência Falhouse em se dar conta de que a impessoalidade do contrato era um engano tão grande quanto o da impessoalidade do pensamento Os contratos são estabelecidos entre pessoas desiguais em poder O trabalhador diante do empregador o viajante diante da Companhia o contribuinte diante do Estado não formam uma associação um tem o outro a sua disposição grifo nosso A sociedade contratual se tornou assim uma sociedade mentirosa e farisaica cobrindo a injustiça permanente com uma aparência de legalidade Pretendeuse que a igualdade das partes seria ela também assegurada acontece que o contrato não coloca em comunhão dois seres humanos ele arma dois egoísmos dois interesses duas desconfianças dois ardis e os une em uma paz armada1314 Ora uma sociedade que baseia seus vínculos fundamentais nesse tipo de elo não pode unir pessoas e muito menos criar uma comunidade de destino tão fundamental para 1313 Révolution op cit 236 1314 Ibidem p 201 s 493 que o corpo social possa funcionar num sentido em que as pessoas se sintam integradas em suas vocações singulares à vocação mais ampla da comunidade como um todo Todavia sobre as nossas sociedades contratuais diz ainda Mounier Tais são as sociedades criadas pelo liberalismo e pelos únicos autênticos poderes que ele tenha liberado Todo o resto é construção de juristas bonachões deslocados pelas forças que eles insistem em não reconhecer Eles crêem ter encontrado uma soldadura entre estes seres desmembrados na permuta de suas vontades livres grifo nosso Depois de cem anos nós vemos em França o legislador correr atrás da realidade com seu pequeno contrato chave mestra que abre todas as portas Necessário suficiente para estabelecer um direito Necessário suficiente para qualquer segurança bem afivelada para qualquer harmonia tranqüila com que coração apaziguado quero poder demonstrar a este desempregado que é por livre contrato de trabalho que ele se encarrega de nutrir com 8 Francos por dia a pequena família que um infeliz destino lhe deu a este soldado japonês que é por livre contrato de sociabilidade que ele aceita fazer em pedaços o chinês e aos pensionistas desta sorridente prisão de Genebra a qual um dia Rousseau visitou que suas cadeias são a mais admirável criação de sua liberdade Liberdades que se equilibram mas onde está a balança onde está o debate entre o usurário e o comerciante aos apertos entre o trust e o empreendedor isolado entre o vencedor e o vencido entre as companhias e eu cliente da estrada de ferro do telefone da seguridade Laissez faire laisses passer laissez faire laisses passer o mais forte1315 Como dissemos antes ao falarmos do liberalismo e como podemos ver aqui para Mounier não se trata de uma neutralidade contratual isenta como o discurso ideológico liberal e neoliberal procura passar quer dizer de um ato acima de qualquer crítica Sua proclamada neutralidade oculta uma das formas mais sofisticadas e implacáveis de aplicação de uma violência legalmente legitimada Portanto fora das atribuições racionais que o liberalismo tanto canta uma posição de vontade em nada neutra Pois este pseudo vínculo social neoliberal nunca poderá unir partes iguais ainda mais porque a igualdade juridista que legitima o contrato é posterior e portanto comprometida com a injustiça que funda o contrato nas bases pelas quais o liberalismo o fundou É a tal igualdade liberal diante da lei Nós assistimos após alguns anos ao ridículo paradoxo de que os profissionais da livre adesão do consentimento das consciências e da relatividade dos 1315 Révolution op cit p 160 494 julgamentos são os mais impiedosos malgrado o tempo que passa e muda as situações dos homens em proclamar a eternidade das assinaturas dadas Um contrato que não reconhece o valor senão de pura forma e pelo encontro instantâneo de duas vontades é quando se prolonga o mais seguro instrumento da tirania sobre o futuro e contra a justiça rompemos com o formalismo a liberdade não faz a justiça ela a serve1316 Não se trata para o personalismo por outro lado de perspectivar a discussão sobre o problema do inatismo ou do voluntarismo no trato da questão do surgimento da sociabilidade assim como o racionalismo dispunha o problema ou seja como se tratando de uma questão baseada em dois pólos estanques e que dão margem a todo tipo de maniqueísmo teórico Aceitar estas condições seria ainda jogar o jogo do racionalismo O personalismo nessa dimensão que toca nas bases originárias da existência humana é mais humilde Ao mesmo tempo em que se abre às elucidações históricas também se deixa envolver pelas experiências presentes Porém se a questão da sociabilidade for realmente unir pessoas quer dizer convocar por meio de um ato livre e consciente do começo ao fim de uma existência lúcida não se tratará nunca para o personalismo da vontade de aglomerar seres humanos E nem também de apresentar de sobressalto ao cidadão possuidor da razão a triste realidade de sua necessária subserviência e resignação aos statu quo social doente Como se dá no engodo liberal pela falácia do argumento do silêncio pelo cidadão recémnascido que para o juridismo liberal sempre cioso de busca de aprovação é o sinal instantâneo de consentimento do cidadão adulto e racional posterior em sua própria morte lenta e asfixiante executada pelo verdugo chamado Estado neoliberal Nesse sentido o personalismo é um voto de fé a crença nas capacidades criadoras da pessoa singular livre e responsável Esta crença no personalismo segue paralela ao que Mounier via no costume das trocas primitivas pelo exemplo do potlatch mas também pelo exemplo histórico da criação espontânea e de conquistas em termos de justiça social pelos movimentos dos trabalhadores que fora dos quadros juridistas do liberalismo como é o caso das conquistas na área do direito trabalhista por exemplo como temos citado lhe 1316 Ibidem p 161 Não é desinteressante notar que já na antiguidade bíblica mesmo numa sociedade não contratual liberal a intuição religiosa já previra o ano do jubileu como uma forma de fazer justiça depois de um tempo cinqüenta anos de injustiça acumulada um verdadeiro sinal de vontade de igualdade social vindo diretamente da intuição religiosa Sem entrar em considerações quanto ao seu difícil cumprimento na sociedade judaica o interessante é ver como em uma sociedade tão primitiva houve ao menos essa disposição e sede de justiça diferentemente da nossa sociedade moderna neoliberal como podemos ver 495 eram indicações além de outras que entendidas com base em sua ontologia e antropologia relacionais o levavam à crença na capacidade humana também de realizar sociabilidades frutuosas Nós reservaremos o nome comunidade à única comunidade para nós válida que é a comunidade personalista que se definiria também como pessoa de pessoas1317 E como a pessoa singular essa pessoa de pessoas segundo Mounier mantém uma mesma característica fundamental a perfectibilidade Não se trata de utopia mas de construir uma sociabilidade comunitária sob o modo de ser do artefato O que implica manter e criar o costume de uma área de arejamento no âmbito mesmo do convívio e para o próprio bem da comunidade e da pessoa singular responsável Da possibilidade de um afastamento da pessoa para que ela possa tomar uma nova impulsão em meio a novas situações no sentido de buscar novos caminhos para elos sociais mais firmes Eis o espaço laico perosnalista não neutro pois comprometido com a geração das aderências necessárias à pessoa humana em vista do seu pleno desenvolvimento Para a realização dessa tarefa de engajamentodesengajamento como já vimos a revolução personalista convocará todas as áreas da cultura pois entendidas por ele como aderências necessárias criadas pela pessoa na história diferente do que pretende o racionalismo com o seu mísero contrato com o apoio delas procurará cobrir as regiões mais diversas e mais profundas do ser humano em sua busca de elucidação fora da mentira Este espaço laico segundo o personalismo está ainda por se fazer Se existe entre os seres humanos uma igualdade essencial que contesta todas as desigualdades empíricas esta é uma igualdade de vocação não de nivelamento ela deve abrir a todos a possibilidade de um destino equivalente sob a condição de um esforço semelhante em todos É necessário um mínimo de justiça distributiva Mas a justiça distributiva não é senão o rodapé da ordem humana em que a generosidade é a regra própria Quando o sentimento igualitário só visa uma ordem matemática de distribuições ele entrega à avareza instintiva o que parece dar os bons sentimentos Renovando o utilitarismo de Bentham Freud fez nascer deste instinto captativo o sentimento social que por uma noção estreita de justiça ele reduzia a um cálculo igualitário O indivíduo quer bem sacrificar à comunidade algumas das pulsões que sua inveja natural levanta contra a vida social mas na esperança de um equivalente estrito Se ela não lhe é concedida ele 1317 Révolution op cit p 202 496 exige que ao menos os outros sejam privados do seu devido porque meu filho está morto pensa a mãe que comparece diante de Salomão a outra mãe não deve possuir um filho vivo A paixão da justiça e a paixão igualitária não seriam pois senão a transformação de uma hostilidade primitiva em elos de ligação positiva por uma identificação no outro do egoísmo individual Assim os abúlicos estão sempre a reclamar os seus direitos mas eles recorrem assim por todos os meios para que suas ações sejam feitas pelos outros dispensandose de fazêlas eles mesmos Neste mesmo horizonte a indignação contra a injustiça é o sentimento de ter sido frustrado no balanço previsto Pode desembocar sob o impulso de pulsões não satisfeitas em um fanatismo da reparação que inverte o dique dos constrangimentos sociais e das estruturas morais e junta não importa qual justificação a reboque dos instintos desencadeados Como sempre Freud não faz história do psiquismo senão com o lado mal da história mas não se saberia contestar que este processo seja ainda poderoso tão poderoso que ele tem podido servir de argumento não sem aparência de razão à paixão instintiva dos antigualitários O gosto pela justiça não introduz um universo verdadeiramente novo senão do dia em que ele passa da captação à oblação da inveja à emulação de generosidade que nós vemos já regular em certos costumes como o potlatch das trocas humanas nas sociedades ditas inferiores grifo nosso Ele vive então de uma superabundância interior e de um vivo fervor coletivo e não de uma comparação inquieta com o meio circundante Ele não tende ao nivelamento mas ao ultrapassamento individual e coletivo A gênese deste ser humano novo é uma longa conquista que só está sem dúvida apenas começando1318 Mounier antes que postular um hipotético estado de natureza de guerra de todos contra todos vai dar ouvidos aos ensaios em antropologia e etnologia que se realizavam então procurando ver as promessas que um novo método chamado estruturalismo lhe parecia nestes inícios dar quanto a uma melhor elucidação dos fundamentos que subjaziam aos elos sociais a partir dos estudos das chamadas sociedades primitivas fora dos quadros restritos cunhados pelo prejuízo do racionalismo Todavia mal sabia ele que faleceu em 1950 que o estruturalismo iria se tornar moda e fundamento teórico para um novo tipo de ideologia que pulverizou o que havia ainda de esperança nas ciências 1318 Traité du caractere Oeuvres II p 509 497 sociais1319 Todavia um artigo do jovem Claude LéviStrauss fora recebido com entusiasmo em Esprit1320 Como já pudemos dizer para Mounier ser personalista é crer na capacidade criadora da pessoa singular e ao mesmo tempo crer na capacidade associativa do ser humano Como já dissemos Hobbes em seu Leviatã percebeu muito bem que se ele mudasse sua crença para essa crença não com estas palavras é claro afinal Hobbes julgava estar fazendo uma análise racional e científica portanto neutra e objetiva acerca dos verdadeiros fundamentos da sociabilidade humana o teria levado forçosamente a escrever um outro livro É nesse sentido por exemplo que o costume do potlatch e como já dissemos no campo da jurisprudência o do direito trabalhista serão para Mounier grandes indicadores objetivos indicadores da existência dessa outra possibilidade de fundamentação social que o seu personalismo comunitário se propunha como alternativa tanto ao modelo liberal do individualismo reivindicador por um lado e aos coletivismos por outro Portanto o Fiat que dá início à vida social é tão obscuro e complexo em sua gênese quanto à questão das origens do mundo ou do surgimento da consciência do caldo primordial Tratase de experiências limite que para quem adota a pessoa como base de reflexão nem as boas razões de idéias claras e distintas e nem as lógicas autônomas podem dar conta a não ser pela imposição de muita arbitrariedade em relação à qual o método tende a ser sempre a posteriori antes uma justificação Em vez de entrar no problema das origens que como já vimos os mitos e a religião têm muito mais a nos dizer do que os racionalismos estreitos Emmanuel Mounier procura tipificar as principais experiências de sociabilidade para tentar chegar à que mais se aproxima das prerrogativas da pessoa em sua vida comunitária A verdade não é simples e é por isso que as fórmulas sumárias que a ação tira para suas necessidades não saberiam senão refluir sobre sua pesquisa travála inclinála e empobrecêla Todavia as necessidades espirituais dos seres humanos são vastas necessidades A força do marxismo é a de ter reencontrado por uma dialética contestável o caminho de algumas dentre elas A multidão não pensa as idéias que ela quer ela não deseja sempre na procura de homens a respeitar doutrinas a acolher Mas 1319 Sobre isso ver DOSSE François História do estrturalismo I O campo do signo 19451966 Editora Ensaio Movimento de IdéiasIdéias em Movimento Editora da UNICAMP São Paulo 1993 1320 Cf Colloque tenu à UNESCO op cit vol 2 passim 498 ela rumina esse pensamento obscuro que é antes da linguagem os pensadores combinam as frases que escreverão sua história1321 Todavia o caráter originário do modo de ser da relação que como vimos segundo Mounier é a marca da experiência da vida pessoal não ofusca o outro modo de ser tão essencial quanto ele que é o modo de ser do artefato que invade todas dimensões em que a pessoa toca as quais representam em suas expressões singulares os sinais os desvelamentos as expressões de um universo pessoal que oculta atrás destas manifestações a irredutibilidade o mistério o não inventariável que é a pessoa O caráter artifex da pessoa não tem nada a ver com a facilitação racionalista que procura reduzir a ação da pessoa nessa sua dimensão de criadora da vida comunitária à permissão para que um outro cumpra essa sua intransferível vocação fundamental transformando um ato tão essencial em um mísero acordo escrito ou imaginado polida e racionalmente numa poltrona bem confortável por algum burguês de tabelionato de mangas franjadas1322 Mounier vê que os elos estabelecidos pelo contrato social providenciado pela sociedade contratual moderna são extremamente frágeis e insuficientes para garantir os elos vitais que são como que a seiva nutriente da vida social Para Mounier Uma comunidade pois não nasce espontaneamente da vida em comum1323 Como vemos nem o puro inatismo nem puro voluntarismo podem em suas afirmações absolutas e estanques reivindicar com propriedade pertença à tradição personalista Nessa afirmação de Mounier percebemos a condição radical da pessoa como artesã na formação da comunidade Vemos contestada por Mounier a tese milenar do surgimento natural da comunidade quer dizer como não ligado a um ato responsável da pessoa Mas no personalismo isso tem maiores implicações e alcance Com isso e com toda a argumentação de Mounier sobre algumas das variantes na formação de grupos ou comunidades vamos perceber se forem tomadas como naturais desconsiderandose as prerrogativas de antecedência da pessoa como sujeito livre construtor das mesmas os mesmos móbeis racionalizantes de que a tradição inatista lançou mão para justificar racionalmente a escravidão tanto quanto na época de Mounier os coletivismos bárbaros e 1321 Révolution op cit 147 1322 Lembrando a imagem do tabelião burguês dançarino de Glauber Rocha em Terra em transe à frente do bloco de carnaval 1323 Révolution op cit 189 499 desfigurantes tais como o fascismo o nazismo e o stalinismo encontraram nele respaldo retórico pelo qual conseguiram tanto sucesso no Ocidente dito civilizado Mas também a tese do contrato fundado pelo indivíduo racional isolado e livre será rejeitada Por todas estas vias nos é necessário chegar a criar um hábito novo da pessoa diz Mounier o hábito de ver todos os problemas humanos do ponto de vista do bem da comunidade humana e não do dos caprichos do indivíduo A comunidade não é tudo mas uma pessoa humana isolada não é nada O comunismo é uma filosofia da terceira pessoa do impessoal Mas há duas filosofias da primeira pessoa duas maneiras de pensar e de pronunciar a primeira pessoa nós somos contra a filosofia do eu e pela filosofia do nós1324 A maioridade econômica de que falamos antes segue paralela à uma maioridade para o desempenho da vida comunitária Para chegarmos a tal maioridade é necessário superarmos na perspectiva de Mounier a infantilidade egoística com a qual a modernidade insuflou a vida social o que ela chama de universalidade Para Mounier1325 a vida não é capaz de universalidade mas somente de afirmação e de expansão1326 que têm tomado as formas ofensivas do egoísmo no atual contexto de crítica à ideologia coletivista Já falamos do elogio da força por Mounier devemos refinar para fazer valer a expressão da vida pessoal e tentarmos nos aproximar dos seus constituintes e por causa da miséria e do vício da linguagem os mesmos conceitos ditos em relação ao indivíduo do individualismo ou o do coletivismo enquanto se os diz em relação à pessoa Todavia a patologia social que este tipo de sociabilidade egoística cunhada pela modernidade tem produzido e a infantilização contra todas as expectativas de maioridade racional sonhada por Emmanuel Kant que tem se mantido ainda não são passíveis por conta das muitas mistificações e justificações da psicologia ciosa pelo ajustamento adaptação do indivíduo ao meio de uma análise justa de sua genética social1327 Mas se há um pleonasmo na afirmação revolução personalista e comunitária pelo fato de uma noção já afirmar o conteúdo da outra mas que Mounier achou necessária para fazer o contraponto de sua crítica tanto ao individualismo quanto ao coletivismo por outro lado a expressão sociabilidade egoística ou individualista é visceralmente antitética Sobre o caráter 1324 Révolution op cit p 166 1325 Ibidem p 201 1326 Em nota Révolution op cit p 201 Mounier escreve Por exemplo o racismo 1327 Com a honrosa exceção dos trabalhos do outro discípulo de Freud Alfred Adler ainda timidamente conhecidos e estudados no Brasil 500 aquisitivo próprio da infância que permanecendo no adulto gera a patologia comprometendo toda a vida relacional temos algumas palavras de Mounier em seu aspecto de projeção de hostilidade Nós não as vemos como projeções e lhes pouparemos da hostilidade que por outro lado nutriremos para com o que elas têm vazado de nós São elas que sobrevêm ao paranóico perseguido sob a forma de hostilidade onipresente São elas em um nível mais superficial que levam os sujeitos às portas da autoacusação vendo nas intervenções do outro censuras que não estão ali São elas que colorem o mundo dos recalques com as cores de seu recalcamento o que afeta virtude vê o mal por todos os lados Essa tendência a uniformizar o mundo ambiente sobre a imagem do que nós somos conscientemente ou não é tão mais forte quanto mais o egoísmo seja afirmado1328 Ela explica também a tendência tão geral quanto o egocentrismo e proporcional a sua força para a depreciação do outro O inferiorizado projeta sua inferioridade e crê seu meio desprezível O desconfiado se crê rodeado de más intenções O desejo de repor as coisas sobre o caminho certo de salvar ou o gosto de punir germinam muitas vezes sobre esse farisaísmo inconsciente1329 Eis o teste de fogo de toda crítica Quem a faz deve ter algum remédio a propor que faça justiça às capacidades de cura do doente Ao lado da crítica desconfiada de Nietzsche Freud e poderíamos acrescentar para o âmbito social e econômico de Marx Mounier não oculta a possibilidade sã contrária tanto quanto deixa nos entrever o problema destas críticas que portando o ensejo de serem totais por outro lado se eximem da mesma totalidade Este contrapé de toda crítica total se assim podemos dizer em nome mesmo da transparência ou maioridade humana se dá enquanto formulam os seus discursos como se os mesmos não fossem afetados por sua crítica total pelo que por isso mesmo acabam se mostrando unilaterais Todas as experiências diz Mounier nos conduzem ao mesmo ponto impossível chegar à comunidade esquivandose da pessoa assentar a comunidade sobre outra coisa que sobre as pessoas solidamente constituídas O nós seguese ao eu ou mais precisamente pois eles não se constituem um sem o outro o nós seguese do eu aquele não saberia preceder este A pessoa não é precedida senão da aparência do nós como ela o é do seu 1328 E há uma definição do egoísmo como loucura concentrada Ver INGE Willian Ralph The Christian Mysticism op cit p 249 1329 Traité op cit p 486 501 próprio fantasma o indivíduo1330 Uma página à frente1331 Mounier escreve a expressão neotestamentária tu amarás o teu próximo que é esclarecida pela série que deve formar uma autêntica comunidade n1 n1 pois é em cada relação concreta com o próximo teu próximo que o sentido de universalidade da comunidade é bem melhor mantida que nas definições gerais que compõem os conformismos abstratos das variantes coletivistas É com meu amigo que eu aprendo o amor aos seres humanos Senão eu não extraio a comunidade mas sua projeção quantitativa quer dizer seu recrutamento quer dizer seu sucesso1332 A pessoa como o próximo por excelência tem essa qualidade intrínseca de superação do solipsismo geração da vida comunitária e ultrapassamento porque ela definida por Mounier como o assento do paradoxo fundamental carrega consigo o movimento sutil que lhe é próprio para tal A própria pessoa é sutil como é todo paradoxo pois a tentativa de uma solução definitiva que perda de vista o seu caráter contrastante seu constante apelo de um mais além é em relação à pessoa como paradoxo uma heresia1333 Temos falado de maneira diacrônica no âmbito de um tópico que tenta pontuar a crítica personalista com as ideologias coletivistas da heresia individualista unilateralização da dimensão individual da pessoa em detrimento de sua dimensão relacional que o liberalismo resolve pelo contrato Acreditamos que essa estratégia possibilita um melhor esclarecimento tanto em relação à outra heresia que a complementa a da unilateralização de sua dimensão relacional em detrimento das exigências de sua expressão específica de sua singularidade que é justamente a heresia dos coletivismos quanto uma melhor compreensão da própria posição do personalismo comunitário de Emmanuel Mounier do seu socialismo Sobre isso diz Mounier A filosofia da terceira pessoa se nomeia panteísmo ou filosofia da imanência pura A imanência em uma comunidade personalista se dá pela compenetração de pessoas entre si que permanecem eu e tu ela implica sempre um salto um aparte um segredo do coração1334 Como temos visto isso não quer dizer 1330 Révolution op cit p 190 1331 Ibidem p 191 1332 Ibidem 1333 Ibidem p 182 Usamos a noção aqui de heresia como foi cunhada pelo pensamento teológico cristão quando de seu esforço por manter o paradoxo trinitário Deus uno e trino e o paradoxo cristológico das duas naturezas contido na noção de encarnação Jesus Cristo homem e Deus A heresia se caracterizaria justamente pela adoção de uma dimensão em detrimento da outra o que quebraria o aspecto dinâmico vivo e em tensão contido na definição da dogmática antiga que não pretendia ser apenas questão de exercício intelectual 1334 Révolution op cit p 193 502 nenhuma concessão a qualquer tipo de reducionismo sociológico Marx deveria quebrar as últimas cadeias que a inclinavam a cidade nova sobre si mesma para dissolvêla na realidade social É uma curvatura que desaparece do universo nessa grande extensão indiferenciada da classe em que cada membro é uma peça passageira e intercambiável em relação ao devotamento ao bloco Mística da total fusão imante1335 IV4 Marxismocomunismo e personalismo prolegômenos à crítica personalista à revolução coletivista Com o descortinar do universo pessoal com o entendimento de que a civilização moderna constituía em bloco pelos programas institucionais pela educação etc um grande tributo ao esquecimento e adiamento da escolha da pessoa concreta por outra coisa como fundamento da reflexão Emmanuel Mounier se viu levado a colocar sob suspeita toda estrutura política Esprit era uma revista de crítica cultural no sentido amplo de alcance internacional e não simplesmente de política quer dizer de tática político partidária Todavia porque se sentiu muito próximo da política1336 Mounier teve de enfrentála mas sempre na intenção da lucidez política para o personalismo há uma lucidez política fora do jogo da mentira partidária Isso já é claro no prospecto de lançamento de Esprit Vida pública e internacional Ignorantes das necessidades profundas das sociedades procurando sua missão em suas rivalidades os Estados servem aos interesses gerais muitas vezes contrários ao bemcomum Os homens de todos os países que se unem em Esprit sentem a urgência particular de provar o valor da estrutura dos Estados e em suas relações as obrigações que comandam seu serviço Eles perseguirão no nacionalismo o orgulho e o egoísmo que os indivíduos aí desencadeiam para os salvar em lhes dando um campo mais vasto Nenhum de nós nega a fidelidade natural que liga cada qual a seu país mas não saberíamos aí confundir a parte da alma com a parte do instinto nem divinizar um instinto porque ele não é desenraizável1337 1335 Ibidem p 161 1336 DOMENACH Jean Marie Les principes du choix politique in Esprit Emmanuel Mounier 19051950 op cit pp 820 ss 1337 Ver abaixo última parte em Apêndice pp 740 ss 503 Faremos algumas aproximações ao fenômeno do coletivismo comunista separadamente dos outros totalitarismos cujos delineamentos consideramos como sendo os principias da crítica de Mounier ao marxismocomunismo seguindo assim as diretivas do próprio Mounier que via no comunismo elementos específicos de apelo humano que o diferenciava dos outros totalitarismos Elementos aos quais Mounier considerou que se deveria dar uma atenção diferenciada Não pretendemos elencar aqui todas as nuances da perspectiva econômica personalista mas ao menos o sentido de suas inspirações mais gerais as quais sempre nortearam sua crítica aos sistemas totalitários Elaborar uma pesquisa sobre a teoria econômica personalista além de fugir atualmente do nosso campo de pesquisa exigiria um estudo por si só à parte Mesmo porque teria de realizar um levantamento que levasse em consideração os desenvolvimentos por parte do pensamento econômico personalista atual das linhas de partida que Emmanuel Mounier desenhou em seu pensamento deixado tanto sobre essa questão como sobre outras inacabado Assim para começar o que chama a atenção de Mounier no marxismocomunismo é antes de tudo a capacidade do comunismo se colocar diante de uma outra ideologia de cunho universalista como é a do liberalismo entendido aqui sempre em seu conjunto antropologia moral política e economia ou seja individualismo moral burguesa pseudo democracia representativa parlamentar e capitalismo como o único dos totalitarismos que continha em seu apelo o que Mounier considerava uma verdade humana que todavia encoberta pelas mentiras do reducionismo da metafísica materialista do materialismodialético pelas mentiras dos revolucionários que não pretendiam se revolucionar depois da revolução pela mentira ideológicopartidária do partido comunista que queria monopolizar todo o espectro chamado de esquerda etc uma verdade que deveria seguindo a fórmula de Mounier ser libertada do erro Essa verdade segundo ele era a que da qual o erro parasita do totalitarismo comunista se nutria e sobrevivia Já falamos no início de que Mounier fala de Marx desde 1932 portanto num período em que na França Marx podese dizer era ainda um desconhecido já falamos também da preferência de Mounier pelo jovem Marx o da crítica da alienação tema sobre o qual em relação a Marx Mounier reconhece que se poderia ir além mas não voltar atrás o marxismo na crítica da alienação da sociedade burguesa dentro dos marcos metodológicos limitados de sua crítica estrutural não obstante havia dissecado até à 504 medula a mentira do modelo burguês de sociedade Todavia Mounier percebeu no Marx da Primeira Internacional já bem distanciado do Marx da crítica da alienação o sentido de uma tendência à centralização e hegemonia que aos olhos de Mounier eram o resultado dos limites impostos pelo próprio sistema da crítica estrutural marxista na compreensão da realidade históricoeconômicosocial complexamente viva Diante disso a crítica personalista da alienação propunha um avanço à crítica estrutural truncada do marxismo Aquela vai procurar alcançar dimensões da existência a vida espiritual pois para Mounier O espiritual também é uma infraestrutura1338 não consideradas em suas especificidades pelo método estrutural marxista que as tomava como epifenômenos no sentido determinista apesar dos esforços de Marx e Engels em contrário Isso aos olhos de Mounier sobressaia da inelutável redução economicista de toda realidade do seu materialismo dialético Todavia é em um texto que apareceu primeiramente em Esprit em abril de 1937 e depois em 1946 e recolhido juntamente com outros três ensaios em Oeuvres I1339 que Mounier procurando ver fora da ingenuidade anarquista os elementos comuns e diferenciadores deste movimento combatente com o personalismo vai esboçar algumas linhas desta característica centralizadora já no Marx da Primeira Internacional em sua relação com o movimento anarquista e os outros movimentos socialistas dos quais o de inspiração personalista fazia parte Essas diretivas características de vontade de centralização já no Marx da Primeira Internacional nos ajudarão a entender o seu prosseguimento no comunismo russo Com a apresentação a seguir desta caracterização realizada por Mounier pretendemos então primeiramente elucidar algumas indicações quanto à percepção por parte de Mounier da tendência centralizadora e autoritária que ele vai perceber como herdada pelo comunismo russo stalinista e pelo que ele entende também pelos movimentos revolucionários franceses de sua época de cunho marxista Será contra esta tendência centralizadora e autoritária que ele em busca do estabelecimento de um diálogo aberto e lúcido através de Esprit vai se colocar em toda sua crítica ao comunismo Por outro lado consideramos que ficará explicada qual é a tradição revolucionária francesa à 1338 Le personnalisme Oeuvres III p 446 1339 Anarchie et personnalisme Oeuvres I Éditions du Seuil Paris 1961 pp 651725 505 qual Emmanuel Mounier afirma que o socialismo personalista pertencente Todavia é em uma recomendação de defesa que Mounier dirige a seu advogado Gounot quando de sua detenção pelo governo filonazifascista de Vichy mais precisamente no segundo ponto que podemos entender a aproximação ao movimento trabalhista francês que o marxismo queria monopolizar e que dá a pista do sentido do socialismo que Emmanuel Mounier pensava Tratavase do projeto de uma obra sobre o movimento operário francês em que Mounier pretenderia esclarecer suas verdadeiras inspirações fora do círculo fechado imposto pelo marxismo mas que infelizmente ele abandonou e que sua morte prematura não permitiu uma retomada Assim diz Mounier a seu advogado Gounot 2a Que meus projetos testemunham minhas atividades um tratado de psicologia sobre o Caráter que será o Traité du carcatère Ouvres II Uma obra sobre Cultura e vida espiritual que será o LAffrontament chrétien Oeuvres III uma outra sobre A tradição trabalhadora francesa para destacar a linha de oposição ao marxismo que ela teria interesse em retomar1340 Esta última obra prometida aos Cahiers du Rhône dirigidos por Albert Béguin e Pierre Thévenaz lançados pelas Éditions La Baconnière foi abandonada após a detenção de Mounier o qual deu atenção às outras duas1341 O manuscrito parece ter se perdido no curso de uma perseguição Todavia Mounier em 27 de setembro de 1941 envia a Albert Béguin o seguinte esboço do que teria sido a obra Sobre o plano histórico destacar as linhas fundamentais de uma tradição trabalhadora radicalmente diferente do marxismo meia vencida por ele entre 1870 e 1880 mas ainda viva da Suíça aos confins do Ocidente Sobre o plano da ação mostrar as razões da decadência histórica dessa tradição criticando os seus erros parcialmente comuns com aqueles que contaminam todo o socialismo e destacar as linhas de uma orientação personalista do movimento trabalhador Cap I Histórico dessa tradição até os nossos dias Cap II Visão do trabalhador francês Um quadro psicosociológico Cap III A tradição trabalhadora francesa e o problema da autoridade Influência subsistente crítica da tradição anárquica Cap IV A tradição trabalhadora francesa e o Estado Anti parlamentarismo Antiestatismo Sentido excesso papel histórico Cap V A tradição trabalhadora francesa e o patriotismo Jacobinismo e pacifismo trabalhadores Suas 1340 Mounier et as génération op cit p 740 1341 Ver o número especial de Esprit Emmanuel Mounier 19051950 Décembré de 1950 op cit p 1030 nota 2 506 vicissitudes Cap VI A tradição trabalhadora francesa e a utopia econômica As utopias econômicas liberais contra as utopias estatistas Cooperativismo etc Cap VII A tradição trabalhadora francesa e a cultura Os estragos do positivismo e o claro regato da cultura popular Cap VIII A tradição trabalhadora francesa e a religião O sentido do ateísmo no movimento trabalhador Os compromissos e os combates contra o anjo Cap IX Decadência da grande tradição trabalhadora Emburguesamento do movimento trabalhador Condições de um redirecionamento No mesmo lugar em 1º de outubro de 1941 Mounier sobre esta obra dá a Béguin a seguinte precisão Não haverá nem estatísticas nem barulho de multidão em meu manuscrito Será antes uma metafísica do movimento trabalhador Ademais para Mounier uma certa corrente anarquista se lhe apresentava como a esperança para o personalismo uma certa corrente anarquista que amadureceu na experiência trabalhadora permanece viva no mundo trabalhador Eu não hesitaria em dizer que para nós personalistas ela é uma das esperanças sobre a qual nós colocamos o futuro e o desenvolvimento deste movimento Ela tem formado e inspirado ainda o melhor do espírito sindical a oposição ao imperialismo trabalhista e ao fascismo proletário ela é a mais apta a receber melhor a descobrir por si mesma a idéia personalista1342 É em vista de delinear esta inspiração comum de fundo e de sentido entre a tradição anarquista e a personalista fora do que Mounier chama de ingenuidade anarquista que elencamos a seguir algumas palavras da descrição de Mounier sobre a atmosfera que cobriu a formação da Primeira Internacional Primeiramente nota Mounier o elemento de equilíbrio já cambaleante em que se mantinham a duras penas os movimentos de esquerda ligados ao movimento trabalhador em 1866 Tanto o protesto anarquista de Godwin sob a Convenção parece totalmente esquecido quanto o impulso comunista de Baboeuf abortado como aquele Mas Proudhon está bem vivo enquanto que o comunalismo de Fourier fazia contrapeso ao comunismo autoritário de Cabet Proudhon e Fourier são sustentados por uma tradição trabalhadora de organização espontânea que remonta às primeiras Trade Unions inglesas no espírito de Robert Owen a organização trabalhadora verdadeiramente nasceu pela fusão não pela depuração e sistema Ela manterá por muito tempo o espírito 1342 Anarchie et personnalisme op cit p 660 507 de suas origens1343 In loc continua Mounier De um encontro em Londres entre mutualistas proudhonianos franceses e tradeunionianos ingleses nasce a primeira Associação Internacional dos Trabalhadores Marx e Engels estão nas corrediças Seu papel na constituição dessa Primeira Internacional a energia que eles despendem em assegurar os primeiros passos não deixa dúvida1344 Bakunine lhes prestou uma homenagem pública Mas nota Mounier este seu devotamento não é simples Doutrinários Marx e Engels sua paixão não vai diretamente aos seres humanos e sua miséria ela atravessa seu sistema e muitas vezes aí se detém1345 Todo ideólogo nesse sentido é um autoritário conclui Mounier O diretor de Esprit cita MarxEngels Nós temos a ciência absoluta da história Forçaremos pois os seres humanos de boa ou mávontade na história tal como nós a concebemos E eles observa Mounier têm a consciência tranqüila pois em seus sistema é a história que força os seres humanos e não sua própria fantasia In loc O absolutismo enfim entranha infalivelmente o aparelho policial intrigas alteração de textos agentes secretos infiltrações espionagens as táticas do Congresso estão já no ponto conclui Mounier1346 Marx quer se apoderar do Conselho Geral da Internacional diz Mounier e por meio dele impor suas direções ao conjunto do momento A resistência se organiza nessa mesma Suíça romana1347 onde acontecem os primeiros Congressos1348 Os personalistas do movimento trabalhador de então fundam a Alliance de la Democratie Socialiste e exigem sua adesão à Internacional mas se vêem recusados Eles mesmos se propõem 1343 Daqui em diante sobre as considerações de Mounier acerca da constituição da Primeira Internacional ver Anarchie et personnalisme Oeuvres I p 661 a 665 1344 Em nota Anarchie et personnalisme Oeuvres I p 661 escreve Mounier Consideração para as pessoas apressadas O Manifesto comunista é de 1848 A Primeira Internacional se fundou em 1862 quatorze anos depois 1345 Em nota Anarchie op et loc cit anota Mounier Nem as questões políticas nem o movimento trabalhador nem o interesse da Revolução nada jamais passa para Marx senão depois da preocupação com sua própria pessoa Otto RUHLE Karl Marx p 321 1346 Op et loc cit 1347 Suíça de língua neolatina francesa ou italiana 1348 Em nota Anarchie op et loc cit escreve Mounier suas referências Podese ler a narrativa viva de toda essa história dos inícios da Internacional nos quatro belos volumes de GUILLAUME citados antes James GUILLAUME Histoire de lInternational Documents et suvenirs 18641878 4 vol Paris 1907 O Conselho Geral o examina do seu ponto de vista na circular privada sobre Les prétendues scissions de lInternationale publicada em Genebra em 1872 e das mãos de Marx e a brochura sobre LAlliance de la Démocratie socialiste Londres e Hamburgo 1873 Estes são dois documentos de polêmica rabugenta 508 então nota Mounier a renunciar seu caráter internacional e em tudo manter suas seções com seu espírito e seu programa próprio O Conselho Geral aceita1349 Mas chega a guerra de 1870 Não se dirá nunca em que medida se deu a influência da vitória da Alemanha sobre os destinos do movimento trabalhador nota Mounier Georges Sorel via a primeira causa do imperialismo proletário no longo hábito à submissão e ao autoritarismo que as guerras do Império incorporam ao povo francês1350 A vitória de 1871 assegura mais firmemente sobre a Europa real a hegemonia do marxismo autoritário quanto aquela do militarismo prussiano sobre a Europa aparente 1351 Mais à frente nota Mounier Marx reconhece muito bem que anarquia no sentido de resistência a toda opressão é a inspiração central de todo movimento trabalhador mas finge crer que os jurassianos1352 se recusam a qualquer organização Depois de algum tempo Bakunine entre seus amigos suíços entra no jogo O combate nota Mounier torna se um combate singular Marx não tem somente diante de si rebeldes mas um concorrente direto uma cabeça menos sólida sem dúvida que a sua mas de uma combatividade a toda prova e de um poder profético Desde então ele Marx segundo Mounier tripudia contra a seita russa de Genebra não temendo desonrar Bakunine apresentandoo como um agente do Csar A federação jurassiana segundo Emmanuel Mounier cansada das intrigas convoca um combate às claras proposto ao Congresso da Internacional em Haya em 1872 pela abolição do Conselho Geral e a supressão de toda autoridade na Internacional Marx segundo Mounier assegura no Congresso uma maioria artificial acusa os federalistas sem estar convencido de uma só palavra da constituição da Liga secreta e faz expulsar Bakunine e Guillaume Feliz raça de homens livres diz o diretor de Esprit Guillaume saindo do Congresso desce as ruas respirando a alegria de ser honesto detémse a observar os servos holandeses que lavam as fachadas com profusão de água e pequenos aparatos gosto do peixe defumado com um copo de cerveja sem graça e insípida que os trabalhadores do país bebem e à tarde em uma das salas com assoalho as vítimas do ostracismo podem com uma calma segurança uma fraternidade de suburbiozinho se 1349 Op et loc cit 1350 Em nota Anarchie op et loc cit escreve Mounier Prefácio a PELLOUTIER Histoire des bourses du travail 1351 Anarchie op cit p 661 1352 Da região do Jura França 509 maravilhar com as melopéias1353 dos camaradas russos e se aquecer nas seguidilhas1354 dos espanhóis enquanto em alguma parte os comitês majoritários contam os pontos e preparam novas manobras Ibidem Dificilmente reaparecendo em Haya observa Mounier os jurassianos resolvem se reunir em Congresso em SaintImier Nota Mounier que eles denegam à maioria de um Congresso o direito de impor em caso algum sua vontade à minoria Eles decidem estabelecer relações permanentes com todas as federações minoritárias Por outro lado nota Mounier o Conselho Geral envia um ultimato de quarenta dias aos congressistas de Saint Imier para que se submetam Mas durante este tempo a Bélgica a Espanha a Inglaterra ganham o campo dos rebelados Em janeiro de 1873 o Conselho Geral pronuncia a suspensão da Federação jurassiana depois Marx achando a medida insuficiente expulsa todas as federações rebeldes às quais se juntam muitas outras Holanda Estados Unidos Itália Ibidem Nota Mounier que o próprio Jules Guesde1355 vai se dizer anticentralista As federações antiautoritárias se tornam tão numerosas que em seu Congresso anual de 1873 a Federação Jurassiana pode declarar que o único Congresso válido da Internacional é a partir daquele momento aquele que será convocado pelas Federações reunidas e não pelo Conselho Geral Este entretanto segundo Mounier convoca um Congresso em Genebra em setembro de 1873 As Federações autônomas decidem ter na mesma cidade um Congresso separado sob o nome de Sexto Congresso Geral da Internacional Ibidem O Congresso Federalista reconhecia como único elo entre os trabalhadores sua solidariedade econômica e cada federação sublinha Mounier permanecia livre para seguir a política de sua escolha Ele vota a abolição do Conselho Geral e de novos estatutos à Internacional O Congresso centralista não reúne de grande senão nove delegados e se vê renegado pelo próprio Secretário da Internacional Ibidem Não obstante a vitória da tendência antiautoritária parece desde então perdida conclui Mounier Bakunine ferido de morte desaparece em 1877 A Primeira Internacional está morta nas mãos de Marx A Segunda e a Terceira lhe darão sua revanche Salvo em Espanha onde ela permanece viva e construtiva a corrente anarquista é pouco 1353 Gênero de canto declamatório 1354 Tipo de canção e dança espanholas 1355 Pseudônimo de Mathieu Basile 18451922 organizador e antigo líder da ala marxista do movimento trabalhista francês 510 a pouco repelida da social democracia mais e mais parlamentar esta esclerosa o movimento trabalhador e o conduz à morte no suntuoso aparelho das grandes massas nacionais e estatais O fermento anarquista se refugia na efervescência de base e no núcleo de resistência que o sindicalismo opõe ao estatismo político Quatro anos deviam reavivar prossegue Mounier novamente nos povos o gosto da liberdade Não é surpreendente nota o diretor de Esprit que esgotados esvaziados de todo recurso por uma militarização dos espíritos sem precedentes eles sejam lançados em sua maior parte no sentido em que a social democracia as empurrava após longos anos centralismo estatismo nacionalismo e ditadura Alemanha Itália ou URSS sobre esse ponto têm seguido a mesma linha da história tão fundamentais sejam por outro lado as diferenças ela lhes foi comandada pelas conseqüências e a preparação da guerra1356 Dadas estas observações de Emmanuel Mounier que ajudam a lançar luz sobre a perspectiva do socialismo personalista em relação ao marxista podemos prosseguir na crítica de Mounier aos métodos revolucionários dos revolucionários do seu tempo Estes haviam herdado a desconfiança sistemática advinda do marxismo que ditava o tom do seu fundamentalismo Sobre eles diz Mounier Muitos escolares marxistas mais assíduos em justificar os manuais que compreender o seu tempo têm encontrado contra nós depois de diversos embaraços a pesada tática que a eloqüência fascista lhes sugeriu A eles tem sido suficiente lançar o seguinte teorema todo movimento anticapitalista que não seja marxista é por definição fascista e o tornam tal cegamente pela presunção ridícula doutrinária e a soberba dos partidários1357 E ainda Para o marxismo ortodoxo com efeito nós somos um bolor do organismo burguês em decomposição deixase a putrefação corroer a madeira e se lança o todo às imundícias1358 Nestes textos Mounier esclarece a facilidade em ajuntar num só pacote a diversidade dos matizes de perspectiva socialista por parte dos marxistas ortodoxos de sua época Essa desclassificação por parte dos revolucionários marxistas de qualquer outra crítica ao capitalismo que não rezasse estritamente sobre a cartilha marxista já apontava segundo a perspectiva de Emmanuel Mounier para o tipo de polarização política maniqueísta que fora sempre muito conveniente ao espírito partidário 1356 Para toda esta exposição como dissemos ver Anarchie op cit p 661 a 665 1357 Révolution op cit p 223 1358 Les certitudes dificiles Oeuvres IV textos de 1933 a 1950 p 16 511 cioso no seu esquecimento da pessoa em proveito da teoria e que aos olhos de Mounier funcionava como uma espécie de conspiração velada contra a pessoa Esta conspiração velada Mounier via se dar também numa espécie de acordo velado entre o capitalismo e o comunismo O surpreendente é que após a Segunda Guerra realmente esta conspiração contra a pessoa vai se dar na forma de uma divisão maniqueísta do mundo em dois blocos um que se proclamava cristão democrático defensor da liberdade e da propriedade privada e da economia de mercado dita livre em suma o mocinho da história o bloco capitalista representado pelos Estados Unidos que se empenha graças ao Plano Marshal de 1947 no estadounidencismo da economia no mundo e da cultura mundial e o outro que se proclamava ateu portador do único método científico da verdadeira interpretação da história humana que estabelecia uma economia totalmente planificada cujo critério da planificação ficaria a cargo das diretivas do partido comunista único portador da verdadeira chave hermenêutica da verdadeira compreensão do que era necessário aos indivíduos sempre menos importantes do que o todo social em sua mística panteísta não só no que dizia respeito à manutenção da vida empírica como também no estabelecimento de fato do seu reino da liberdade Essa percepção e preocupação de Emmanuel Mounier quanto à infecção maniqueísta no campo da política internacional incentivada pelos Estados Unidos no mundo pós Segunda Guerra cuja estratégia americana do bloco dos aliados forçava no sentido de impedir a participação da Rússia na mesa de diálogos sobre a situação do futuro da Alemanha repartida pode ser acompanhada pelo esforço do diretor de Esprit por uma aproximação a grupos alemães preocupados em pensar a restauração da Alemanha hodierna dividida e que possuíam também revistas de grande circulação após o fim da Segunda Guerra1359 Todavia o que Mounier já percebia e temia e contra cujo desfecho de algum modo lutou quer dizer na procura de elucidação junto aos europeus da tendência nefasta que se daria sobre o mundo se os países fossem coniventes com o estabelecimento do jogo americano do que se denominou estratégica e comodamente de guerra fria num mundo 1359 Ver sobre as viagens de Emmanuel Mounier a Alemanha após o término da Segunda Guerra e sua tentativa de aproximação aos intelectuais católicos e ao público em geral por alguns órgãos de divulgação revistas e a imprensa na intenção de alertar os alemães quanto aos perigos de uma polarização do mundo da qual a Alemanha dividida seria o ícone como queriam estabelecer os Estados Unidos e os aliados jogo ao qual a então URSS acabou também aderindo em SCHULZ Sybille Les idées dEmmanuel Mounier em Allemagne in Actes du colloqiue tenú à lUNESCO vol 2 op cit pp 479 ss 512 convenientemente esfacelado entre um bloco americano e um bloco socialistacomunista representado pela URSS acabou de fato acontecendo e do que todos temos ciência1360 Dissemos que a filosofia de Mounier começa por uma indignação com a injustiça mas esta indignação se dá em contrapartida por conta do assombro da superabundância do ser e então a conseqüente indignação por causa do seu aviltamento e impedimento devidos à avareza e mediocridade do espírito pequenoburguês O espírito é um engajamento e se engaja com toda alma e todos os dias diante de si Nosso trabalho de crítica revolucionária é uma posição tomada diante da injustiça antes de ser um esforço para construir a justiça1361 Para Mounier à pergunta sobre se Uma revolução deve ser feita ele responde Sim ela é nossa exigência espiritual profunda Pois então preparemola mesmo se a doença resiste mesmo se amanhã o velho mundo voltar a encontrar a erva mágica para prolongar por mais um século sua agonia Temos consciência da fragilidade de nossa força e do sucesso mas sabemos também a grandeza de nosso testemunho É por isso que tocamos sem problema nossa tarefa na certeza de nossa juventude1362 A consciência da própria fragilidade da dificuldade de ser compreendido pelos revolucionários do tudo ou nada não é suficiente para prostrar Emmanuel Mounier nem lhe inspirar o derrotismo O caminho da lucidez Mounier o sabe não é o trabalho de um dia Acostumados ao serviço das idéias antes que ao sentido mais profundo das perguntas últimas colocadas pela existência mais comum o ser humano havia feito da liberdade não uma luta de vida ou morte mas uma questão de manutenção de um mísero quinhão em que sua sombra seu simulacro pudesse ser de alguma forma vislumbrado como garantido Por isso Mounier vai perspectivar esse preconceito conspirativo dos revolucionários em relação ao diferente deles como típico de toda ideologia que pensa ter a última palavra sobre o que se constitui nesse caso como a dimensão da existência social humana Não é difícil perceber que se trata mutatis mutandis do mesmo preconceito dos capitalistas em relação a qualquer outro modelo de economia que considere tanto um sentido humano da propriedade quanto perspective o problema moral do seu uso fora dos 1360 Após o falecimento repentino de Emmanuel Mounier no dia 22 de março de 1950 provocado sem dúvida pelo regime duro de aprisionamento pelo qual passou sob o Regime do Governo de Vichy Jean Marie Domenach que passa a dirigir Esprit procura estabelecer uma maior aproximação ao grupo da chamada Escola de Frankfurt Para isso ver artigo citado antes 1361 Les certitudes dificiles Oeuvres IV textos de 1933 a 1950 p 13 1362 Ibidem p 16 513 quadros teóricopráticos de que já falamos do liberalismocapitalismo Modelo que mantém a concepção de uma economia baseada no lucro justo pelo serviço prestado fora da religião capitalista da auto fecundidade do dinheiro Em relação a estas concepções personalistas os capitalistas enxergam e intuem melhor que os marxistas que para sua implantação seria necessária uma real subversão total do modelo de economia capitalista pela impossibilidade de um enquadramento dessas perspectivas personalistas dentro do seu jogo maniqueísta que eles sempre são ciosos em manter como se tratando da polaridade que o personalismo entende como uma comodidade entre economia de mercado que eles denominam livre e economia planificada Para Mounier como para os marxistas se as trocas se pautassem pelo valor de uso realmente não haveria crise de maneira alguma No entanto além da análise estrutural da dimensão econômica da existência humana o realismo integral do personalismo de Emmanuel Mounier em relação à teoria econômica marxista não pode deixar de levar em consideração algumas irredutibilidades ligadas às dimensões mais profundas da pessoa humana não passíveis de redução quantitativa a esquemas de análise puramente estruturais e que para o personalismo têm também estatuto próprio de infraestrutura Portanto como princípio uma economia personalista deve ser na perspectiva de Emmanuel Mounier uma economia de responsabilidade pluralista e descentralizada até à pessoa Para o personalismo de Mounier o fato de que haja uma dimensão justa de tratamento estrutural do espiritual que é também segundo Mounier uma infraestrutura já vimos que a pessoa não é um sonho uma simples idéia metafísica e que ela é uma manifestação que precisa de aderências no mundo concreto próprias para o seu desabrochamento e liberação de suas potencialidades para o desempenho de sua vocação singular não levaria à aceitação de uma planificação total da economia Não concordando com essa planificação total todavia Mounier não vai concordar também e nem considerar em relação à teoria capitalista que por isso fica aberto o campo ao regime de irresponsabilidade econômica em proveito da aplicação de uma abstração que negligência o caráter necessariamente humano e responsável que acompanha a dimensão econômica do ser humano Para o personalismo esta dimensão remonta a um tempo bem antes da existência do capitalismo e bem antes dele ter dito encontrar o seu verdadeiro móbil no laissezfaire da sua anarquia liberal para em relação à qual propor a sua contenção e 514 equilíbrio por uma metafísica teleológica Metafísica que sua economia chama científica Metafísica da equidade egoística final ou em última instância da socialização ou do comunismo das perdas depois de uma prévia privatização dos lucros Se por um lado o personalismo é tachado de excrescência burguesa pelos revolucionários para os capitalistas também a priori qualquer tentativa no sentido de um regime de responsabilidade econômica e de uma economia descentralizada até à pessoa como propõe o personalismo será risonhamente tida como ingenuidade falta de conhecimento técnico dos verdadeiros meandros da ciência econômica utopia socialista coisa de leigo etc Esse tipo de desclassificação é ingênita como podemos ver à todo espírito totalitário O que Mounier qualifica de primeira Renascença1363 a que ocorreu no século XVI como já dissemos é caracterizada como uma atitude que inicia a inimizade humana e o individualismo decadente de quatro séculos Depois desta Renascença surge uma outra em resposta a ela caracterizada por uma volta ao ideal comunitário o Refazer a Renascença significa para Mounier como já foi dito empreender um movimento que vise a pessoa e a comunidade e não o individualismo eou o coletivismo quer dizer uma revolução personalista e comunitária Considerando o tema da emergência e insurgência da pessoa como temos tentado esboçar aqui vemos o quanto este retomado por Mounier por um projeto de Refazer a Renascença enquanto mesmo um projeto de civilização indica a inserção histórica do personalismo e a sua estratégia enquanto tentativa de recolocar nos trilhos da pessoa e da comunidade como também já dissemos o caminho desviado para o individualismo e o coletivismo modernos no mesmo sentido em que ele vê que deve se dar o encaminhamento da propriedade capitalista à propriedade humana1364 Já falamos da consangüinidade e da identidade do DNA entre o capitalismo e o comunismo seu filho bastardo Para Mounier esse parentesco nunca deixou de ser evidente Eu temo muito para dizer tudo que o reino da liberdade na imanência marxista quando todos os homens serão afeiçoados à doutrina do Estado imite fortemente o retorno hipócrita da liberdade capitalista e que o comunismo de M Fernandez se assemelha ao seu racionalismo como a um irmão É muito inquietante pensar que o comunismo apareça sob um aspecto ideológico essencial tão fortemente aparentado ao racionalismo 1363 Cf Révolution op cit p 184 1364 MOUNIER Emmanuel De la propriété capistaliste a la propriété humaine Oeuvres I pp 417 ss 515 burguês1365 Mais do que uma provocação por parte de Mounier o esclarecimento desse parentesco de fundo entre comunismo e capitalismo era necessário para quebrar o sentimento que tem todo espírito totalitário de ser a expressão a univocidade a adequação manifesta no mundo da vida entre o objeto e o pensamento Em relação ao marxismo essa pretensão de univocidade se daria na relação entre a sua teoria com a dimensão social da existência humana viva à qual ela se reporta quanto ao capitalismo de sua teoria em relação à dimensão econômica da existência humana viva Em um texto de 1947 Mounier retoma o motivo que deu ensejo ao surgimento do movimento personalista pelos jovens de seu tempo O movimento personalista nasceu da crise que se deflagrou em 1929 com o Crash de Wall Street e que continua sob os nossos olhos além do paroxismo da segunda guerra mundial1366 E em seguida modificando a fórmula que ele aprendera de Péguy Mounier sobre a sua concepção de revolução personalista diz Os marxistas diziam crise econômica clássica crise de estrutura Façamos uma cirurgia na economia e a saúde será recobrada Os moralistas opõem crise do ser humano crise dos costumes crise dos valores Mudai o ser humano e as sociedades ficarão curadas Da nossa parte afirmamos que a crise é por sua vez uma crise econômica e uma crise espiritual uma crise de estruturas e uma crise do ser humano Nós não apenas retomaríamos a palavra de Péguy A Revolução será moral ou não será Nós precisamos A Revolução moral será econômica ou não será A Revolução econômica será moral ou não será nada1367 E ainda in loc O personalismo quanto ao mais como toda doutrina misturada à história não é um esquema intelectual que se transporte intacto 1365 Révolution op cit p 234 1366 Questce que le Personnalisme Oeuvres III 1947 p 183 1367 Ibidem 516 através da história Ele combina a fidelidade a um certo absoluto1368 humano com uma experiência histórica progressiva1369 É necessário repisar o fato de que Mounier não aceitava que se colocasse o problema da economia como apenas uma questão técnica e de especialistas pois tratando se de algo que afeta a todos é uma questão que tem de ser tratada em uma perspectiva mais ampla Tratase mesmo como tenho tentado expor até aqui de uma questão que por tocar nas dimensões básicas sobre as quais a pessoa garante sua subsistência e sobrevivência empírica e que faltando compromete sua vida espiritual Colocando em risco assim nestas mesmas bases a emergência e insurgência da pessoa humana na história e o sentido que este movimento de personalização pode dar às instituições humanas que se deixem tocar por ele É claro que este sentido só é passível de ser constatado por quem tenha um pouco de boavontade fora dos quadros mórbidos e patológicos do pessimismo irredutível ou seja não se trata de um teorema de dedução apodítica Não obstante a fórmula modificada de Mounier apresenta claramente uma oposição a todo e qualquer reducionismo de plantão ao do economicismo capitalista que pretende resolver as coisas em matéria de economia como se tratando de matéria de técnicos como já dissemos na verdade dos seus técnicos ao do economicismo marxista que resolve as coisas pela subsunção da dimensão econômica humana aos quadros de sua teoria pretensamente oniabrangente e ao reducionismo moralista cioso de resolver as coisas pela magia das palavras austeras da sabedoria antológica sem querer tocar macularse nas próprias coisas Já vimos a quem esse moralismo está a serviço ao otimismo economiquês porque é realmente uma questão apenas de palavras quer dizer de lógica do neoliberalismo e sabemos por sua vez o que este último representa e quer ocultar Se em seu nível mais profundo a desordem hoje é uma desnaturação do ser humano grifo nosso é absurdo pensar que esta 1368 Mounier usa aqui a noção de absoluto que nós preferimos mudar como já indicado seguindo o sentido de sua própria reflexão para a de incontornável que vemos como mais afim ao seu pensamento densamente histórico Isso ficará mais claro no capítulo Pessoa e existência abaixo onde a partir da discussão de Mounier com o pensamento contemporâneo deduzimos que falar da experiência com o absoluto enquanto tal no plano da finitude é algo impossível e sem sentido o que nos leva a crer que o termo incontornável corresponde melhor ao fenômeno que descreve a experiência em questão à luz da filosofia personalista de Emmanuel Mounier Todavia relembramos que além da filosofia de Mounier ser nutrida pelo fogo dos eventos o diretor de Esprit faleceu muito jovem aos quarenta e cinco anos antes de um pleno amadurecimento de um pensamento que a meu ver não deixa dúvidas quanto às possibilidades ainda abertas 1369 Questce que le Personnalisme Oeuvres III 1947 p 182 517 será expulsa por um simples remanejamento econômico 1370 Vemos que a precisão que Mounier dá à formula de Péguy é uma realidade não é um moralismo não pode haver uma verdadeira revolução econômica que não seja uma revolução moral e não pode haver uma verdadeira revolução moral que não seja econômica Na verdade essa tendência a tratar a economia pelos próprios ares de cientificidade e a partir de uma rebuscada algaravia identificadora de quem sabe e quem não sabe economia é uma maneira velada de absterse de ter de dar atenção ao caráter humildemente humano contido na oikoj oîkos casa verdadeiro centro da questão em favor do seu complemento abstrato nomoj nómos lei Como já dissemos toda gnose tem por traz do seu suposto discurso de elevação do objeto um rebaixamento do mesmo em sua concretude em favor de uma verdadeira elevação do discurso abstrato que então passa a primeiro plano Toda gnose mantém visceralmente ódio ao corpóreo e aqui a economia não fica de fora Podemos dizer sem medo de errar que nessa primeira aproximação de Mounier ao problema econômico tratase de desviar o discurso econômico desse seu vício dessa sua tara metafísica gnóstica ingênita de negação do cotidiano do elemento de simplicidade e de imediatez único capaz de fornecer o verdadeiro sentido de uma economia humana resgatada e de subverter toda essa metafísica do abstrato sobre a qual tem se estabelecido a economia ocidental Essa metafísica é a que está na base do emburguesamento do ser humano Basta apenas olhar em torno de si para se dar conta de que o desaparecimento da angústia primitiva e o acesso a melhores condições de vida não entranham infalivelmente a libertação do ser humano mas mais comumente talvez seu emburguesamento A conquista da natureza e das condições melhores de vida relevam da adaptação a adaptação é necessária à vida mesmo à vida espiritual mas até um certo ponto grifo nosso além deste ela é um processo de morte É porque de todo progresso material nós não chegamos senão à segurança e à condição necessária mas de forma alguma suficiente grifo nosso de uma vida mais humana e de forma alguma a seu acabamento ou sua nutrição Uma revolução para a abundância o conforto e a segurança se seus móbeis não forem mais profundos conduz mais seguramente após as febres da revolta a uma universalização do execrável ideal pequenoburguês antes que a uma 1370 LEspoir des Desesperes Oeuvres IV 1953 p 405 518 autêntica libertação espiritual1371 É incrível que seja pela mediação do temporal do concreto da oîkos que sobressaia o verdadeiro espiritual Transcendência na imanência O abstrato escreve ele Pèguy é incessantemente nutrido pelo concreto o concreto é incessantemente esclarecido pelo abstrato Isto tem um significado de maior alcance para ele o espiritual é incessantemente nutrido pelo temporal o temporal é incessantemente esclarecido pelo espiritual1372 Não resta dúvida de que para o personalismo antes de um problema de pura técnica a economia oculta um problema metafísico que deve ser esclarecido É no encaminhamento de sua solução que constataremos os delineamentos dos seus constituintes de base sua ontologia e sua antropologia A partir daí veremos em que nível a pessoa exerce o seu lugar IV5 Democracia personalista Como já vimos para Mounier A democracia capitalista é uma democracia que dá ao ser humano as liberdades das quais o próprio capitalismo lhe retira o uso1373 Por conta disso juntamente com os marxistas Mounier concorda em que A primeira revolução é a supressão da condição proletária quer dizer a supressão da miséria e da insegurança vital1374 Já falamos da diferença entre miséria e pobreza no pensamento de Emmanuel Mounier1375 Sem a liquidação da miséria situação negadora de qualquer possibilidade de florescimento da pessoa não se pode falar de democracia sem incorrer em uma mentira em uma hipocrisia inaceitável Não há lumpenproletariado para o personalismo Um ser humano aviltado continua sendo um ser humano aliás o aviltamento para o personalismo não é uma dimensão ontológica é uma condição sociológica imposta por um modelo falido que milita contra a pessoa1376 Só poderia ser assim pois enquanto a dignidade é para o personalismo uma condição ontológica de cada pessoa único centro organizador do universo objetivo e única fonte geradora de uma analiticidade realmente frutuosa o 1371 Manifeste op cit 517 1372 La penée de Charles Péguy Oeuvres I p 103 1373 Révolution op cit p 296 1374 Ibidem p 250 1375 Ver acima III15 A miséria e a pobreza p 412 1376 Ver Le personnalisme Oeuvres III p 460 519 aviltamento como o seu verdadeiro antípoda só poderia ser localizado no campo da contingência A visão personalista que tem suas raízes em sua antropologia e que rompe como temos dito com a noção de ser de exceção tão cara aos aristocratismos farisaicos do pensamento impede que se trate qualquer singularidade como parte de estatística O resultado a que esse tipo de antropologia hierárquica do ser de exceção chegou Mounier presenciou em seu próprio país França no campo de concentração Campo de Gurs que se manteve de 1940 a 1944 Sobre isso algumas palavras de Mounier Há momentos em que se deve suspender as leis reprimir as formalidades onde o excesso de juridismo do que temos tido a experiência joga contra o espírito mesmo de justiça É necessário então aos responsáveis da história um pulso um pouco duro e o gesto rígido Mas há uma lei que nenhuma causa exige que se viole mesmo na ilegalidade é a lei da dignidade humana Espontaneamente grifo nosso o povo jamais a viola a não ser em breves cóleras Diante de milhões de mártires dos campos hitleristas juramos nos desviar de sua rota se se apresentam algum dia é que os falsos profetas querem persuadir de que não basta desarmar um inimigo mas que é necessário ainda aviltálo Se se quiser um sentido a socialismo humanista eis aí um que não se presta a nenhum subterfúgio1377 Os princípios da democracia soberania do povo igualdade liberdade individual não sendo absolutos em si pois a experiência da liberdade que está na base da retórica democrática para o personalismo só é possível de fato como liberdade axiológica e sob condições1378 não são as condições de fato colocadas pela democracia neoliberal Elas são julgadas por Mounier à luz das exigências da pessoa criadora O neoliberalismo absolutiza os temas da democracia em sua retórica de defesa da democracia capitulada à lógica interna de sua decadência para melhor reprimir a liberdade que deveria ser seguida como a inspiração e o sentido da existência das instituições democráticas O jogo é sutil Para Mounier a liberdade de fato aquela que está a serviço do movimento de personalização só pode se dar sob condições Todavia nestas condições dadas apropriadas quer dizer na vida comunitária únicas sob as quais o personalismo entende que ela pode se dar a pessoa não perde o seu caráter vetorial de doadora de sentido às próprias instituições 1377 Les certitudes dificiles Oeuvres IV p 92 1378 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 153 520 Pois estas sempre serão tomadas em sua contingência apropriada de dependentes da pessoa singular de quem a liberdade emana Dentro dessa inspiração Mounier propõe uma aproximação destes constituintes democráticos que é importante retomarmos para melhor entenderemos sua relação com o jogo político que estava posto Mounier sobre a democracia diz Chamamos democracia com todos os qualificativos e superlativos necessários para não confundila com suas minúsculas contrafações o regime que responde sobre a responsabilidade e organização funcional de todas as pessoas constituindo a comunidade social Então sim sem rodeios nós estamos do lado da democracia1379 A isso Mounier acrescenta que desviada de sua origem pelos primeiros ideólogos depois estrangulada no berço pelo mundo do dinheiro esta democracia jamais foi realizada nos fatos e que ela dificilmente está nos espíritos1380 O que demonstra para o personalismo o seu caráter de artefato de manufatura antes que um ideal hipostasiado em qualquer doutrina ou modelo político Para o personalismo os que rejeitam em absoluto a noção de democracia por causa de contrafações históricas é porque em sua negação mantêm uma noção muito idealista de democracia Mounier acrescenta ainda que ele sobretudo não se inclina à democracia por razões própria e unicamente políticas ou históricas mas por motivos de ordem espiritual e humana1381 Isso significa para o personalismo libertar a democracia tanto do jogo da democracia parlamentar quanto do álibi totalitário que também queria se valer dela em seu discurso para a justificação popular de seus desmandos e arbitrariedades Isso quer dizer que Mounier buscava precisões essenciais1382 Os princípios políticos da democracia moderna coloca Mounier soberania do povo igualdade liberdade individual não são para nós absolutos Eles são julgados por nossa concepção do ser humano da pessoa e da comunidade que a realiza1383 Sobre o plano espiritual onde Mounier diz se apoiar a liberdade de escolha se lhe parece como o meio ofertado à pessoa de exercer sua responsabilidade de escolher seu destino e de aí se dar em um constante controle e participação responsável pelos meios1384 1379 Révolution op cit p 294 1380 Ibidem 1381 Ibidem 1382 Ibidem 1383 Ibidem 1384 Ibidem 521 Ela a liberdade não é para Mounier um objetivo ela é a condição material do engajamento Como a teologia negativa ou como a atitude crítica ela não se justifica senão pela afirmação do que ela conduz Ela a liberdade só se desabrocha em sua autonomia que é ao mesmo tempo adesão total1385 Vemos que para o personalismo a liberdade não é um objeto mental construído pelo liberalismo e aprisionado nas rédeas do seu racionalismo que a vai dosando segundo sua conveniência A liberdade é a condição material do engajamento escreve Mounier em 1934 Eis aí diz ele nossa oposição ao liberalismo Essa liberdade deve ser limitada em seus meios de poder quando ela fizer o caminho da opressão eis aí nossa oposição ao liberalismo econômico1386 A doutrina da soberania popular enfim escreve Mounier não é nada para nós se ela se reclama da lei do número desorganizado1387 ou do otimismo ingênuo da infalibilidade popular Assim ela não é senão a imagem um pouco simplificada de uma verdade prática a unidade necessária ao corpo social não se encontra fora do múltiplo e separado dele na abstração de um homem ou de uma aristocracia mas na organização funcional do múltiplo grifo nosso1388 Vemos o quanto o personalismo de Mounier é visceralmente contrário à metafísica hierarquista Esta como temos dito a extrapolação de uma metáfora espacial acima e embaixo colhida pelo pensamento mítico antigo cujo gnosticismo ingênito supervaloriza o que está em cima e desclassifica o que está em baixo é transportada para a ontologia como se tratando de uma propriedade um atributo do ser Na verdade tratase de uma impropriedade em relação a qual a parte esmagadora do pensamento político ocidental antigo e atual como já notamos postula em definitivo viciando assim o problema do político como o de saber quem manda e quem obedece quer dizer viciam o problema político como problema do poder Para estes o problema político não é um problema humano como entende o personalismo mas um problema do poder sobre o que só com muita retórica e racionalismo abstrato procuram ocultar do que verdadeiramente para eles se trata Quer dizer de um problema sobre quem pode utilizar se dos meios de violência de polícia para garantir a paz de superfície porque fundamentada na injustiça para a garantia da ordem que Mounier chama de desordem 1385 Ibidem 1386 Révolution op cit p 294 E claramente a sua atual nova versão o neoliberalismo 1387 No sentido de não ser a expressão de um organismo vivo como é a comunidade de pessoas 1388 Révolution op cit p 294 522 estabelecida e que enfim representa a manutenção na base da desconfiança por parte desses regimes nas capacidades de autogestão e de solidariedade da pessoa humana concreta livre e criadora O problema da política que tem se perspectivado no Ocidente como problema do poder segundo o personalismo tem dado ocasião para que se mantenha o político como questão de oportunismos de escroques Nesse sentido há um fundo de verdade no comportamento instintivo do indivíduo mediano em relação ao político como está dado Para Mounier um regime personalista é aquele que dá a todas as pessoas cada qual no lugar que os seus dons e a economia geral do bem comum assinalam uma parte às funções da unidade o qual procura pois reduzir progressivamente o estado desumano e perigoso de governado passivo Governado passivo podese ser por um abandono à infalibilidade da massa tanto quanto pelo abandono à infalibilidade de um homem diz Mounier são os indivíduos que em cada posto dão sua virtude às instituições mas estas devem ser tais que dêem sustentação nas falhas dos indivíduos e que o soberano povo ou indivíduo não as tenha necessariamente a sua disposição1389 Que dizer destas palavras de Mounier Trata se de mais um institucionalismo De forma alguma Já falamos do realismo integral de Mounier e aqui é ele que está na base É ele que marca uma diferença específica entre o personalismo e o anarquismo Da parte do personalismo não há a priori uma postura puramente negativa quanto à autoridade nem quanto à instituição Negar essas duas dimensões necessárias para a vida humana em sociedade soa para Mounier como infantilismo Mounier segue aqui Karl Jaspers em sua análise das mediações necessárias pelas instituições que cumprem o vínculo também necessário entre o universal e o singular A descrição de Jaspers da relação do universal com a experiência só não é em si mesma uma explicação e um sistema porque está disposta numa relação de tensão e ambivalência irresolutas com um segundo aspecto das coisas1390 Portanto para Mounier todo dogmatismo é a afirmação de uma univocidade fácil e por outro lado a negação da necessidade de um terceiro um complicador Nesse sentido não se trata da capitulação ao institucionalismo liberal mas de perspectivar sob o modo de ser do artefato a instituição mesma que para Mounier 1389 Révolution op cit p 294 1390 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 161 523 como para Jaspers é uma necessidade humana Nesse sentido conclui Mounier como o diz Gurvitch a democracia não é o reino do número mas o reino do direito1391 Como todo regime político ela comporta um relativismo grifo nosso em sua definição nós cremos menos perigoso o relativismo do equilíbrio dos poderes e das influências que o relativismo de uma ditadura descontrolada eis tudo1392 Dois pontos se destacam dessa afirmação de Mounier Primeiro que Gurvitch como temos dito exerce influência no pensamento jurídico de Mounier por conta dos estudos na área do Direito espontâneo1393 que ele inaugura relevando os aspectos espontâneos da geração de direito fora dos quadros do juridismo racionalista estabelecido sendo o direito trabalhista o grande exemplo Assim o que perspectiva a afirmação de Mounier sobre o relativismo do equilíbrio fica subordinado às prerrogativas da pessoa e da comunidade Segundo que não se trata em relação ao personalismo de uma concessão ao menos ruim no caso o do modelo de divisão dos poderes que se autoregulam por desconfiança mútua sem a intervenção da comunidade Se Mounier pode estabelecer uma igualdade ontológica destes regimes em seu relativismo é porque há uma dimensão outra sobre a qual ele pode estabelecer uma crítica propositiva fora da concessão senão o que Mounier estaria dizendo não teria nenhum sentido crítico sendo apenas mais uma postura relativa o personalismo não é relativista é relacional Tratase para Mounier do modo de ser relacional que contesta a pseudoexperiência ou melhor a experiência sem profundidade e sem vínculo com o pessoal de todo regime relativista Para elucidar o sentido de democracia para Mounier pode ser dito o que ele diz sobre o medo da revolução Uma mudança radical é sempre chamada de revolução Se se tem medo da palavra eu temo que se tenha medo da coisa Nenhuma revolução certamente segue sem brutalidade Mas as jornadas recentes1394 nos têm ensinado que as hesitações dos governos podem ser mais sangrentas que as vontades firmes Elas ensinam também para aqueles que ainda duvidam que desde então o problema não é escolher entre a revolução e as meiasmedidas mas entre a revolução que salvará os valores humanos e aqueles que os estrangularão1395 1391 Nota de Emmanuel MOUNIER Cf Jean LACROIX La démocratie et la souverainité du droit Esprit mars 1935 1392 Révolution op cit p 294 s 1393 Ver MONTORO Franco Introdução à ciência do direito vol 2 op cit pp 368 ss e passim 1394 Révolution op cit p 297 em nota escreve Mounier 6 de fevereiro Este artigo é de 1934 1395 Révolution op cit p 297 524 IV6 Revolução personalista e técnica dos meios espirituais Se o problema da democracia colocado pela perspectiva personalista recebe o alcance de problema espiritual para se pensar uma revolução que faça justiça a esse caráter espiritual que toda dimensão pessoal tem é necessário se pensar fora da tecnocracia e das manobras programáticas de partido sempre estabelecidas previamente pela regras de um sistema o que não tem nada a ver com o espiritual quer dizer com a liberdade1396 uma técnica dos meios espirituais É por esta técnica dos meios espirituais que Mounier apontará o sentido da eficácia da ação e do engajamento segundo sua perspectiva personalista Mounier esclarece a base de sua revolução a própria consciência na participação do mal sendo esta a primeira revolução sem a qual a outra não passa de comédia O princípio primeiro técnico espiritual é levar uns e outros a uma tomada de consciência pessoal não do mal em si ou do mal público projetado diante deles e como que destacado deles mais ou menos recitado por uma voz que eles crêem pura mas de sua própria participação no mal de seus incidentes em seu comportamento cotidiano das mentiras virtuosas de suas palavras e de seus atos Esta é a primeira revolução sem a qual a outra não é senão comédia não se trata de revolução interior1397 mas de revolução pessoal que compromete em um só bloco o comportamento e a meditação interior não a tomada de consciência abstrata e escolar onde cada um se refugia na inocência de um sistema mas tomada de má consciência pessoal a única coisa que pode cimentar uma verdadeira comunidade revolucionária1398 Para não ficarmos só no que poderia ser tomado como generalizações elencaremos algumas ações programáticas que uma revolução personalista segundo Emmanuel Mounier deve comportar Para tanto chamamos a atenção para o motivo e o fim aqui nunca o meio sempre presente e que não foge ao pensamento de Mounier a pessoa Pois há segundo o personalismo um único momento em que a pessoa pode ser meio É quando a pessoa é meio de si mesma ou seja veículo pelo qual ela se permite 1396 O vento sopra onde quer ouves a sua voz mas não sabes donde vem nem para onde vai assim é todo o que é nascido do Espírito João 38 1397 Em nota diz Mounier Cheganos o emprego dessa expressão Ela tem mostrado seus perigos Abandonemola 1398 Révolution op cit p 328 525 como expressão da realização dos valores que a sustentam Não se trata como vemos de um programa de ação fora de uma adesão consciente e lúcida da pessoa concreta Emmanuel Mounier poderia dizer a programas revolucionários que se esquecem da pessoa e se perdem na tática no frisson da ação É fácil ser líder de escravos mas ser líder de pessoas livres é outra coisa1399 Podemos dizer que a expectativa em uma revolução personalista quanto ao papel da liderança é a mesma que comanda a liderança em uma comunidade personalista a liderança aí é funcional pois o centro num ajuntamento personalista sempre plural pode estar em qualquer parte e o seu apoio como movente suficiente será testado pelo quanto sua irradiação espelha o sentido da comunidade de destino de todo grupo eis aí uma liderança personalista Uma revolução personalista segundo Mounier não pode ser um evento para oportunistas ou para a formação de castas no poder é antes de tudo um ensaio de vida comunitária À revolução devese aplicar o elemento de provisório e de aperfeiçoamento pois ela também segundo a visão de Emmanuel Mounier deve ser coordenada sob o modo de ser do artefato Para tanto diz Mounier Uma revolução pela pessoa não pode empregar senão os meios adequados à pessoa Eis aí diz o diretor de Esprit uma lei fundamental grifo nosso de método que nós temos a defender contra todos os que crêem poder alcançar um objetivo sem se desviar através de meios contrários ao espírito do objetivo Estes meios continua Mounier como todo método devem ser objeto de definição e de técnica A técnica da ação própria do personalismo deverá ser provada sobre dois planos 1a Uma técnica dos meios espirituais individuais Ela é propriamente falando uma ascese da ação fundada sobre as exigências primeiras da pessoa A ação personalista comporta o sentido da meditação e retirada para libertar a ação da agitação o sentido do despojamento que é uma ascese do indivíduo ídolos e arrebatamentos da linguagem pseudosinceridades personagens deslocadas adesões superficiais ilusões do entusiasmo resistências do instinto persistência do hábito arrebatamento dos reflexos adquiridos1400 Como dissemos antes o racionalismo e mais recentemente uma desconfiança generalizada a tudo que se rotule pela expressão problemática vida interior da pessoa 1399 Essa expressão é de um pregador protestante do século XIX chamado Spurgeon não me recordo em que sermão se encontra A expressão original parece ser É fácil ser pastor de escravos difícil é ser pastor de pessoas livres 1400 Até aqui ver Manifeste op cit p 644 s 526 como sendo sempre uma marca da subjetividade decadente do indivíduo moderno liberal depois do primeiro ter nos desacostumado à linguagem própria a essa esfera da intimidade pessoal a segunda nos tem armado contra tudo que diga respeito à vida interior como resquício de ascese mórbida cristã Com essa situação posta e a necessidade incontornável de cultivo de uma vida interior por parte do ser humano a sociedade de consumo capitalista e neoliberal tem dado um espaço ao cultivo dessa dimensão importantíssima da vida pessoal em seu recolhimento necessário que para o personalismo é um voltar atrás para se ganhar mais impulso para a ultrapassagem do obstáculo que forçou o recolhimento na exata medida em que esse recolhimento seja o que se teme que seja expressão de uma ruminação interior cujo alcance não ultrapassa a epiderme do corpo em que ela se dá Assim por outro lado vemos o quanto a chamada crítica pós moderna acaba servindo ao moderno e sua decadência Não só o exercício meditativo da tradição cristã Lectio Divina tem sido esquecido e corrompido nessa sua expressão fundamental lembramos que ascese quer dizer simplesmente exercício pela submissão da massa de indivíduos vexados pela situação social de risco periclitante em que o neoliberalismo os tem colocado e às famílias reduzindo a vida interior cristã à ladainha pagã de barganha com a divindade para que esta assegure a possibilidade da manutenção total e convenientemente comprometida pelo capitalismo da vida empírica como também a difusão da tradição milenar meditativa da cultura oriental no mundo ocidental tem sido usada para aumentar o leque de possibilidades no mercado religioso do frisson meditativo já totalmente distanciado de suas origens religiosas robustas A religião convenientemente esvaziada desse sentido próprio de robustecimento da pessoa1401 pela vida interior meditativa tem servido assim ao relativismo neoliberal e ao seu discurso atual chamado politicamente correto Neste uma questão tão visceralmente importante quanto é a da construção da fundamentação pessoal dos valores que respaldarão a vida da pessoa singular em sua relação com a comunidade para a busca da construção de uma comunidade de destino com base no diálogo aberto e irrestrito esfera na qual como já vimos o racionalismo é totalmente incompetente e a verdadeira fé como também já vimos tem um papel decisivo é tratada como se fosse o 1401 Como tentamos mostrar nas partes iniciais desse trabalho 527 tipo de problema que se tem quanto ao uso de escova de dentes cada qual tem o seu deus Isso não quer dizer que uma meditação profunda só possa se dar dentro de uma religião institucionalizada Estamos querendo dizer que é a religião que por excelência tem a capacidade de tocar imediatamente nestas dimensões profundas onde as pessoas se deparam sem rodeios com as perguntas últimas em seu alcance direto na vida ética Temos tentado mostrar que as formas religiosas se é que devemos nos emancipar da religião se encontram nos lugares mais inusitados que possamos imaginar no âmbito mesmo dos fundamentos metafísicos do espaço dito laico da modernidade espaço que para o personalismo deve ainda ser construído e já mostramos o quanto esta questão está mal colocada pelo racionalismo burguês sendo abandonada nessas condições por Emmnauel Mounier Como veremos no próximo capítulo um pensamento de inspiração atéia como algumas vertentes do existencialismo não só podem como devem forçar no sentido das perguntas últimas sendo justamente pela medida na qual estas vertentes permanecem fiéis ao sentido último destas perguntas é que elas segundo o personalismo poderão ser avaliadas criticamente Não obstante Mounier é atento ao que poderia sobressair como mera expressão de ruminação interior individualista desta meditação personalista Assim ele continua 2a Essa retirada e esse despojamento poderiam facilmente desviar para a busca altaneira de uma pureza estéril que chegaria bem vazia na recusa de todo engajamento Contra essa tentação é necessário lembrar que não se realiza a própria salvação totalmente só quando há seres humanos também enfermos na miséria os quais não podem mais sair sem que de alguma maneira se suje as mãos1402 Para o personalismo já dissemos não há lumpenproletariado seres descartados por não servirem à revolução Há seres humanos aviltados que continuam sendo seres humanos e enquanto tais dotados das prerrogativas da pessoa que se ocultam por trás da máscara social do seu aviltamento e que constituem as milhares de refutações diárias quer dizer os milhares de modus tollens que para a epistemologia personalista vão além da refutação do historicismo refutando a pretensa universalidade a teoria geral da sociedade concebida pelo liberalismo e mantida atualmente por sua pretensa nova versão o neoliberalismo 1402 Manifeste op cit p 645 528 Já dissemos que o modo de ser que comanda a ontologia personalista é o relacional Ora para uma ontologia que elege a relação e uma antropologia que coloca a experiência originária como a relacional como são os casos da ontologia e da antropologia personalistas a meditação não pode servir de motivo de evasão alienante e solitária para o personalismo de Mounier cada um querendo ou não já se encontra engajado Não se trata de escolher se se engaja ou não como se fosse algo que dependesse de nós o estar engajado tratase de definirse por qual causa se engaja à luz dos valores que serão sempre livremente assumidos e que a crítica personalista se vê no dever de tornar claros fora da alienação Assim continua Mounier A purificação dos meios é uma coordenada da ação que entra em composição com o máximo de caridade ou de doação de si e a ciência direta das necessidades ligadas diretamente a cada luta particular Ora estas necessidades são no mais das vezes de origem e de alcance coletivos Não se trata pois somente de uma purificação individual uma técnica de ação individual é uma técnica personalista dos meios coletivos que nós temos de colocar em ação Ela dificilmente se encontra esboçada mas nós já vemos claramente os princípios que a guiarão1403 Vemos o quanto a meditação revolucionária personalista encontra o seu verdadeiro alcance seu complemento necessário no âmbito do coletivo Já falamos o que significa um ato para o pensamento personalista Pois bem a união entre pensamento e ação que ele comporta em relação a esta meditação revolucionária e pelos níveis profundos de existência em que ela procura tocar níveis axiológicos só pode encontrar sua vazão específica enquanto teste mediador social dos valores alcançados e assumidos livremente na intimidade em sua capacidade de irradiação na vida comunitária Para o personalismo não existem valores não compartilhados compartilhamento é uma necessidade do ser e uma propriedade de todo valor É um fato que até nisso nessa percepção o racionalismo burguês inoculou o vírus de sua corrupção O seu relativismo que divide para melhor conquistar seguindo o lema do tirano nos acostumou também por causa dos pseudo valores burgueses que subvertem o valor do imediato ao imediatismo e o valor do útil ao utilitarismo a perspectivarmos as coisas sempre sob a visão de uma causalidade imediata A causalidade remota fica assim sempre suspeita daí sua desconfiança do histórico 1403 Manifeste op cit p 645 529 segundo a perspectiva personalista de que já falamos1404 a Não se domina uma sociedade perversa por meios da mesma natureza que os seus À violência sistemática nós não oporemos a violência sistemática nem ao dinheiro o dinheiro nem às massas despersonalizadas as massas paralelamente impessoais Não é pois por meios suntuosos por capitais poderosos por partidos amorfos recrutando em massa os adeptos como todos os outros milhões de adeptos de todos os agrupamentos do mundo que o personalismo ajuntará sua força Não é mais também somente pela força da idéia geral destacada do engajamento que os seres humanos vivos lhe concedem É pela irradiação pessoal e progressiva de seu testemunho em torno de vontades convictas e irresistíveis Ao bloco de adesão nós substituiremos a cadeia de engajamentos à propaganda massiça e superficial o enxerto celular1405 Tudo que dissemos em relação ao alcance que o personalismo dá à meditação pessoal no plano coletivo corresponde diretamente a este ponto a da técnica espiritual da revolução personalista Os princípios desta técnica geram uma tática resultado em relação ao qual Mounier não perde a consciência do poder hegemônico do espírito burguês da sociedade organizada atual Pelo tipo de tática que o diretor de Esprit propõe como própria de uma revolução personalista percebemos que ela não se enquadra nem no sentido pejorativo de utopia e nem no de grande ideologia Por aí podemos ver o grau de sua atualidade b A tática central de toda revolução personalista não será pois reunir as forças incoerentes para atacar de frente o poder coerente da civilização burguesa e do capital Ela consiste em substituir em todos os órgãos vitais hoje esclerosados da civilização decadente os germes e o fermento de uma nova civilização Este germes serão as comunidades orgânicas formadas em torno de uma instituição personalista embrionária ou de um ato qualquer de inspiração personalista ou simplesmente do estudo da difusão das posições personalistas Essa fundação orgânica de uma civilização nova por células descontínuas não pode como o monaquismo na alta Idade Média dar seus frutos senão sobre um longo período da história É o que nós queremos significar dizendo que todo movimento personalista deve empreender sua ação não somente pelos germes ricos de toda sua seiva mas em uma segunda zona à maneira de um fermento que faz levedar as massas ainda maleáveis 1404 Ver acima Personalismo e liberalismo 1405 Manifeste op cit p 645 530 Nossa ação deve esgotar todos os meios suscetíveis de serem reduzidos pelas vias normais Se ficar provado ao final das contas com as formas de substituição estando suficiente maduras para pretender a herança da desordem agonizante que só a violência como é provável levará à decisão final nenhuma razão válida saberia então excluíla1406 O racionalismo tendo nos acostumado a pensar um mundo evidente e aqui o racionalismo marxista não fica de fora transparente só por causa da facilidade da consciência de se pensar a si mesma tem sido justamente criticado nessa sua ingenuidade pelo pensamento contemporâneo Sobre isso diz Mounier Excetuandose o setor preciso da determinação científica a ciência na vida concreta já compromete mais o espírito que conhece não é um espelho neutro ou uma usina de conceitos em estado de secessão no seio da personalidade total é um existente indissoluvelmente ligado a um corpo e a uma história chamado por um destino engajado em uma situação por todos os seus atos inclusive pelos atos de conhecimento1407 Para o personalismo o caráter inelutável de comprometimento da pessoa na concretude não deixa margem para uma indiferença fácil mesmo em nome da objetividade tão cara ao método científico E a exceção que Mounier prevê para o que chama de setor preciso da determinação científica que se precisa no parêntese seguinte é mais uma afirmação estratégica de que não se trata de se estar contra a ciência enquanto tal realização humana mas necessariamente contra o seu também inevitável engajamento e subserviência aos ditames do racionalismo instrumental liberal burguês antipersonalista ingênito Todavia a crítica contemporânea de que falamos antes à petulância do racionalismo acabou se tornando o motivo de tentação para um tipo de resignação impotente que chega às raias da abstenção do pecado mortal para o personalismo que é a indiferença No outro extremo o existencialismo coloca o problema do engajamento como se dependesse única e exclusivamente de nós como dissemos antes fazendo do engajamento paradoxalmente pois se trata de uma filosofia que se quer detida na finitude um peso sobrehumano ou mesmo divino que para o personalismo será sempre um peso humano quer dizer dentro das capacidades criadoras humanas Um peso divino quer dizer elevado segundo os padrões de pureza que estão nas bases não confessadas de 1406 Ibidem p 644 ss 1407 Le personnalisme Oeuvres III p 491 531 determinadas exigências existencialistas para o personalismo de Emmnauel Mounier tende a ser excitante mas só excitando naturezas desacostumadas à nutrições mais sólidas1408 Nesse sentido mais uma dupla negação personalista nem a deserção da crítica contemporânea pelo pecado existencial fundamental da indiferença e como se a indiferença no plano da finitude se as palavras têm sentido fosse possível nem o peso do rigorismo excessivo do existencialismo que excedendo as forças da pessoa concreta acaba servindo de álibi a todo tipo de abstenção a todo tipo de vagabundagem da ação Ainda sobre essa caracterização geral algumas palavras do próprio Mounier o pessimismo é como o otimismo1409 um sistema caído sobre o mundo exposto como espetáculo e não uma expressão da experiência humana1410 Com isso para o personalismo abrese a discussão do pessimismo e o otimismo como uma dominante do caráter abordagem psicológica que se transforma em sistema Weltanschauung abordagem filosófica O fato é que nos dois casos enquanto dominante único tratase de uma anomalia por sua vez psicológica1411 e uma metafísica ainda atrelada a uma visão estática e objetivista da realidade em que a visão predominante sobre a mesma como um todo se dá a priori sempre sobre o aspecto de um julgamento qualitativo último Por incrível que pareça esta é a visão aristotélica do ser contra a qual os críticos contemporâneos se insurgem Para Mounier e Gabriel Marcel o pessimismo não é uma expressão da experiência humana porque 1 não é a expressão legítima de uma escolha pessoal pois sempre os fatos da vida de quem diz assumila a desmentem e se dá no nível do abstrato do nocional apenas o que parece ser um seguimento e resquício da tradição intelectualista dominante 2 porque dispensa o engajamento pessoal conseqüente e a manutenção de atitudes conseqüentes aos valores fundamentais da escolha assumida como expressão conseqüente do ponto de vista adotado quer dizer o fardo da máfé que se crítica e se coloca sobre os outros Enfim tanto o otimismo quanto o pessimismo em suas formas unilaterais seriam para o personalismo usando a linguagem existencialista expressão de uma vida inautêntica de máfé 1408 Falaremos mais sobre o tipo de engajamento proposto pelo existencialismo no capítulo sobre Pessoa e existência abaixo 1409 Em nota de Emmanuel MOUNIER Gabriel MARCEL Homo Viator 46 1410 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 88 1411 Bases desta problemática ou seja do caráter pessoal destas dimensões que se quer objetivas vão ser uma das grandes preocupações do Traitè du caractère op cit passim 532 Do ponto de vista prático estas duas visões se encontram no valor que dão à concretude da pessoa O otimismo expressão altaneira da ideologia liberal é um otimismo da doutrina da lei natural de uma metafísica e ao mesmo tempo um pessimismo intransigente da pessoa concreta porque não inventariável para citar Marcel em favor do indivíduo abstrato um ente de razão totalmente a sua disposição como temos sublinhado ad nausea O pessimismo é uma demissão da vida que só se mantém às custas de uma contradição com o próprio elã vital que pulsa no próprio pessimista e que o impulsiona a continuar vivendo ou seja negandose esquizofrenicamente em uma afirmação de fundo mais forte que sua afirmação epidérmica da negação Na alquimia desta esquizofrenia do pessimista o elã vital transformase em manutenção desesperada da vida empírica contra tudo o mais que passa a representar então na verdade da economia metafísica do pessimista inimigos reais e sempre potenciais Para o personalismo na base destas duas atitudes se encontra um ódio visceral inconfesso à concretude ou melhor a sua expressão cabal que é a pessoa humana e todos os motivos que compõem uma atitude tirânica e opressiva contra a pessoa Seja na forma de indiferença tratamento puramente abstrato juridista e moralista da realidade concreta de injustiça tipo otimista liberal seja na forma mais ativa do nazismo do fascismo ou dos gulags No final não obstante a aparência de total diferença ambas as demissões se encontram em suas inspirações profundas de ódio visceral à pessoa humana à concretude e representam formas históricas novas de adiamento da pessoa Mounier entende o comunismo como sendo o filho bastardo do capitalismo como já vimos e toda discussão entre capitalismo e comunismo com querela de família Portanto para o personalismo que não acredita que o problema humano tenha se resolvido negativamente é claro pela elucidação da ingenuidade de cunho nocional perversa do tipo que representa o racionalismo moderno quer ir além dessa crítica paralisante Para o personalismo não é só a razão apenas uma das dimensões da existência humana que tem de tomar consciência de suas limitações o indivíduo que porta a razão deve tomar consciência de sua participação no mal se é que se quer propor uma reflexão ética e não apenas noética sobre a civilização moderna Para o personalismo da mesma forma que deve haver uma radicalização da razão na aventura do pensamento deve haver uma radicalização do indivíduo na aventura do engajamento a qual se chama 533 ato Não há só uma deserção por parte daqueles que insistem em não se engajar como se fosse possível tal coisa há deserção da pessoa quando o engajamento proposto se dá na base da adoção de uma consciência tranqüila sistêmicodoutrinária diante do mundo real como espetáculo Revolução espiritual dizemos nós não é revolução de escritores ou impotentes As mediações as reparações intelectuais as generosidades as construções técnicas não são nada se os homens não engajam aí os atos e aí não se comprometem toda ação não é ela mesma condenada a ser ineficaz na medida em que ela for pura e impura na mediada em que ela for eficaz Temos a nossa disposição grosso modo dos tipos de meios Os meios de força material agressividade constrangimento Mais pesados mais carnais regulados somente por uma técnica do sucesso Sempre tentadores porque sua eficácia aparece imediata mas cheios de uma tara eles proliferam indefinidamente o mal e o ressentimento a violência a baixeza a hipocrisia e a ilusão de generosidade Exemplos as guerras as lutas número contra número classes partidos legiões Os meios puramente espirituais ação de presença esforço na santidade1412 e sua irradiação silenciosa Os pobres encontram sua satisfação no testemunho quando o sucesso se recusa Sua vantagem eles absorvem o mal como uma terra porosa e o transfiguram às vezes em amor1413 Seguindo no sentido de uma crítica não só aos que negavam ao espiritual qualquer autonomia mas justamente aos que buscavam no espiritual uma saída do impasse pergunta Mounier Estes meios propriamente espirituais não parece que deveriam chamar a atenção dos que reclamam hoje em dia a necessidade de uma revolução espiritual Se sim prossegue Mounier parece urgente definir e propagar contra o mundo do dinheiro tanto quanto contra a tirania declinante do individualismo e a tirania crescente das coletividades os métodos não somente de demonstração mas de ação visando objetivos precisos e que teriam sua eficácia não do número e da violência mas do exemplo e do sacrifício assim a definição de um modo de vida a organização da resistência às leis injustas os atos isolados ou concertados de não consentimento ao mundo do dinheiro ao sistema capitalista etc1414 1412 Como já dissemos Mounier usa a palavra santidade no seu sentido bíblico quer dizer compromisso com a vocação fidelidade 1413 Révolution op cit p 314 Teremos a oportunidade de falar do personalismo como uma filosofia do amor quando falarmos da Pessoa e existência abaixo e ali delinearmos a desmistificação do tema do amor proposta por Emmanuel Mounier 1414 Révolution op cit p 315 534 Mounier não é desatento à elaboração de linhas de partida e de ações programáticas no campo da ação pessoal que repercutissem uma técnica dos meios espirituais Elencamos aqui apenas algumas indicações criação de organismos sociais de mobilização social não partidários e nem atrelados ao Estado bem distante sem dúvida do sentido que no Brasil tem tomado grande parte das chamadas ONGs recusa pessoal na participação dos meios de manutenção da fecundação do dinheiro sem serviço prestado começando pelo sistema de Loterias apoiado pelo próprio Estado boicote programado pela sociedade organizada na compra de determinados produtos a serviço da especulação financeira e não do consumidor etc1415 Por outro lado Mounier é atento ao que poderia se apresentar como pueril e inconsistente aos revolucionários do tudo ou nada nestas linhas em que ele propõe apenas algumas idéias de ação com base em uma técnica dos meios espirituais Assim E inicialmente importa que não se veja ou não se coloque nessa reivindicação dos meios propriamente espirituais uma reação sentimental contra as brutalidades da força ou por mais forte razão contra os seus vigores1416 Já falamos do elogio da força que Mounier empreende bebendo da tradição do pensamento cristão em Tomás de Aquino contra o pseudoespiritualismo de sua época Texto em que Mounier também vai se apropriar da problemática levantada por Nietzsche que para o diretor de Esprit está relacionada à cristandade sociologicamente tomada ou seja burguesa e decadente e procurar ao mesmo tempo elucidar as prerrogativas e atributos mais essenciais de um verdadeiro espiritualismo que elogia a força1417 Sob a empresa de uma experiência grosseira se tem mais e mais confundido a força que é uma virtude moral com o emprego nas relações humanas e os debates espirituais dos procedimentos do poder físico constrangimento brutalidade ação massiça e cortante dureza agressividade a força da alma se revela não na agressão mas na perseverança no controle em uma contínua presença de espírito e de coração e na delicadeza mesma do toque1418 Mounier procura notar o que normalmente regula as relações humanas fora da brutalidade É o reino da brutalidade às vezes sob formas 1415 Para isso convidamos à leitura de Révolution op cit com textos de 1932 a 1935 notadamente os seguintes tópicos Laction de témoignage et de rupture pp 352 a 354 Les nonparticipations pp 354 a 360 e o Manifeste op cit de 1936 ambos em Oeuvres I 1416 Révolution op cit p 316 1417 Cf LAffrontament chrétien Oeuvres III p 7 a 66 textos escritos em Dieulefit inverso de 19431944 1418 Révolution op cit p 315 535 lentas não menos cruéis e não essa viril ternura que regula as relações habituais dos homens e das instituições1419 Todavia ele é atento às confusões convenientes Muitos idealistas muitos pacifistas muitas belas almas e corações nobres têm feito do espiritual uma casa de repouso para os diversos reumatismos que a existência confere1420 Enfim aqui fazse uma tripla e santa cruzada de doçura contra sua missão de ser humano1421 Mounier se precisa como revolucionário Somos revolucionários duplamente mas em nome do espírito que a cada passo nós devemos sacudir contra o adormecimento nos adaptar à nova revelação Nos abrir à paisagem que se amplia1422 Não se trata como vemos da posse segura de uma dialética infalível porque fechada dentro de uma lógica mas de um esforço criativo para se perceber na história a porção dos valores Não se trata de relativismo histórico também porque a história só se dá com os seres humanos à medida que podemos entendêla justamente como sentido nem que seja apenas o sentido dos seres humanos quer dizer embaçado não muito claro que precisa da ação humana para definir seu movimento conduzir e ser conduzido sinergeticamente no continuum do ser em sua manifestação histórica o que realmente frustra e desbanca toda análise fácil mas também todo relativismo fácil1423 O personalismo contra todo aristocratismo do pensamento é uma filosofia que procura repor no seu devido lugar o povo e fazer justiça ao seu papel essencial para a vida intelectual Para o personalismo como para o marxismo mutatis mutandis o intelectual precisa do povo e o povo do intelectual Mas quem é o povo para o personalismo É o povo de Péguy ou seja em sua idéia não como uma classe organizada mas um estado de espírito espontâneo uma plenitude da alma que remonta em 1419 Ibidem p 316 1420 Ibidem 1421 Ibidem 1422 Révolution op cit p 149 1423 A problemática marxista e de todo racionalismo quanto à fundação do método sobre o evento primário fora do continuum histórico é o maior problema para o seu sistema e para outro qualquer Em relação à dificuldade que o método marxista encontra para fundamentar ou datar historicamente o surgimento do capitalismo justamente por causa do continuum intrínseco à experiência histórica ver DOBB Maurice A evolução do capitalismo Zahar Editores 6 edição Rio de Janeiro 1977 E ver também a discussão que se seguiu sobre os problemas levantados pelo professor DOBB e a problematização dessa verdadeira pedra no sapato para a teoria marxista em La transición del feudalismo al capitalismo Rodney Hilton editor Editorial Crítica Grupo editorial Grijalbo Barcelona 1977 536 todas as condições à raça1424 ele Péguy continua Mounier pensava humanamente pelo movimento natural de sua humanidade1425 Não sendo então o povo para Mounier como para Péguy uma figura de razão primeiramente que como classe vai de maneira cômoda ao racionalista sistemático se prestando e se precisando sob sua moldagem analítica e esquemática até chegar à categoria de classe sociologicamente definida O acesso a este povo vivo por parte do personalista não pode se dar por estes estratagemas redutores noéticos A maneira como o personalismo vê a aproximação ao povo em sua epistemológica axiológica é pela simpatia1426 É o modo pelo qual Mounier chega à universalidade inacabada modo aprendido de Péguy pela simpatia Esta aí era a sua maneira de ser universal por uma simpatia vivenciada grifo nosso mais que por um despojamento da inteligência1427 O aspecto visceral telúrico até que marca a compreensão de povo no personalismo não deve nos levar à compreensão de que se trate de um flerte com as ideologias racistas ou fascistas como pretendem algumas análises atuais posteriores ao evento que tendem a ignorar do pensamento de Mounier o testemunho dos valores assumidos ao contato dos eventos querendo neutralizar o seu testemunho na intenção de caracterizálo como um ideólogo elaborando um sistema Essa 1424 Entendase esta noção não no sentido racista mas no sentido de visceral e telúrico Péguy no caso do judeu Dreyfus por exemplo fim do século XIX era dreyfusista e escrevera contra o antisemitismo Mounier em uma nota sobre os textos mais significativos de Péguy sobre os judeus e que passaram sob a censura de Vichy antes deste governo interditar totalmente a revista Esprit viu neles a possibilidade de elucidação à nova geração de leitores que ia chegando de esclarecimento da verdade sobre os judeus da verdade sobre o antisemitismo e da verdade sobre Péguy Lembra também um pequeno ar insolente que a censura deixara passar num artigo intitulado Quelle Europe que opunha a Europa federativa à Europa hegemônica Nota alguns extratos de Péguy notadamente o terceiro em que Péguy o herético era diretamente confrontado com o Péguy conformista e moralizante de Vichy Em um artigo escrito por Blanchard naquela época Mounier encontra o mais puro filão da razão francesa contra as novas místicas do Instinto que cada um reconhecia Nietzsche a sua direita Spengler e Rosenberg a sua esquerda Mounier nota que a publicação da peça de A Olivier LEtoile de Séville A estrela de Sevilha naquela época tomava também o sentido de uma manifestação pela coragem independente e contra o poder Cf MOUNIER Emmanuel Esprit 19401941 articles paru dans Esprit janvier 1945 in Bulletin de amis dEmmanuel Mouhnier Numéro 61 Mars 1984 p 7 1425 La pensée de Charles Pèguy Oeuvres I 1931 p 21 1426 Não será possível dada a proporção que já toma esse nosso estudo tratarmos de maneira mais detalhada do tema da recuperação da arte como um todo e da arte popular fora da massificação que faz parte do projeto personalista deste o lançamento do primeiro número de Esprit em 1932 Seria necessário para isso um estudo das aproximações ao teatro à literatura à poesia ao cinema à pintura notadamente ao surrealismo que para Mounier antes de se dobrar à ideologia marxista prometia bastante à arquitetura etc aproximações que foram empreendidas por Mounier e os personalistas Para isso seria necessário uma análise detida do sentido da ação do movimento cultural Jeune France por exemplo apoiado por Emmanuel Mounier junto à juventude francesa que buscava o sentido do despertamento de uma verdadeira arte popular em todas as áreas de manifestação artística 1427 La pensée de Charles Pèguy Oeuvres I p 21 537 atitude como temos muitas vezes pontuado é típica de todo racionalismo interesseiro na manutenção do statu quo que encontra o seu caminho para tal pela rotulação pejorativa e a conseqüente neutralização e desclassificação do ato filosófico em sua densidade existencial pelo viés de uma abordagem intelectualista como se tratando de última palavra em nome da objetividade da descrição de como as coisas são1428 Para todo racionalismo como já vimos o conceito está como que chapado incrustado às coisas que faz referência de uma vez por todas como propriedade no duplo sentido da palavra como aquisição plena etc o que é uma visão segundo o personalismo bem cômoda o liberalismo acha que a liberdade se deve a ele e o marxismo por sua vez acha que o socialismo é devido a ele etc Em relação às noções de visceral e telúrico para o personalismo tratase na verdade da percepção de uma dimensão incontornável do ser da pessoa na qual se localiza as suas aderências de sangue de tradição de língua de ancestralidade etc das quais as ideologias totalitárias souberam se utilizar muito bem quando o racionalismo estreito do liberalismo burguês incompetente para lidar com estas dimensões existenciais profundas da pessoa humana deixou a vaga construída pelas extrapolações mantidas pelo seu racionalismo liberal burguês decadente para a entrada em cena desses seus filhos bastardos com as suas típicas extrapolações antípodas para a manutenção em família do jogo maniqueísta interesseiro pelo fascismo nazismo e comunismo como já temos dito Falamos na introdução que Emmanuel Mounier leva a filosofia para as ruas como Sócrates fez no seu tempo coisa que em relação a Sócrates ninguém vê nenhum problema Lembramos lá que para a filosofia de gabinete e do Olimpo da época de Mounier esta sua atitude tomava o ar de um verdadeiro insulto de um rebaixamento imperdoável O rigor o 1428 Uma obra que segue nesse sentido é a do autor israelense ZEEV Sternhell Ni droite ni gauche LIdéologie fasciste em France Paris Ed Du Seuil 1983 412 páginas Em resenha sobre esta obra diz Bernard COMTE Este grosso volume fruto de um enorme trabalho de coleta e de interpretação de numerosos textos livros e sobretudo revistas traz análises novas propõe confrontações muitas vezes esclarecedoras entretanto não obstante as aparências destacase deste ensaio de filosofia política que o seu autor defende uma tese antes que um trabalho propriamente histórico A tese subjacente é a de que só há solução coerente para os problemas das sociedades industriais na democracia liberal capitalista ou na revolução marxista e na fórmula socialdemocracia que lhe dá uma interpretação democrática ou no extravio fascista não há quarta via e os que pretendem traçála são aspirados pela tentação fascista Essa convicção de Sternhell interessante como tema de discussão tornase um tipo de postulado que comanda todo seu passo e lhe dá a aparência de uma demonstração rigorosa os homens e as circunstâncias desaparecem as intenções e os dinamismos profundos são esquecidos nessa construção puramente inetelectualista sedutora mas finalmente falaciosa ahistórica segundo a palavra de Raymond Aron Cf resenha de COMTE Bernard in Bulletin de amis dEmmanuel Mouhnier Numéro 61 Mars 1984 pp 16 ss 1428 La pensée de Charles Pèguy Oeuvres I 1931 p 21 538 rigor Já dissemos algo sobre como o personalismo perspectiva a questão do rigor1429 Repetindo para Emmanuel Mounier os problemas filosóficos são problemas humanos e não propriedade de qualquer grupo seleto que queira manter a prerrogativa de usucapião ou de registro em marcas e patentes Na verdade a prova do valor de um pensamento para o personalismo que tem sempre o sentido de ultrapassamento da mera prova racional de sua verdade lógica de sua analiticidade mas que a compreende também segue no sentido do quanto a luta interna do intelectual consegue ultrapassar o nível de sua subjetividade para o passo da intersubjetividade mesmo em matérias as mais abstratas como as matemáticas por exemplo Como já dissemos não se pense que o sociólogo por exemplo nesse sentido esteja em melhor situação do que o matemático Já vimos o quanto uma teoria sociológica pode apenas representar para o personalismo uma outra maneira de evasão de fuga do concreto atrás de uma teoria geral da sociedade ou de uma parte dela Publicação publicidade tudo se enrijece mente ou simula O evento tornase história e aí perde sua cor o povo se torna público e aí perde sua alma Uma tal tal mulher uma tal nascida na paróquia de Domrémy não é mais que um documento O pensamento se vende aos olhares o gênio se compromete com a glória O público é um mundo de camaradas o privado um mundo de amigos ali as classes arbitrárias os papéis a cabotinagem romântica aqui os homens nus sob seus próprios olhares e entre eles os elos consentidos A cidade harmoniosa de Péguy segundo Mounier é uma cidade de intimidade As virtudes públicas aí são uma floração das virtudes privadas É por isso que Cristo fala tão pouco dos afazeres públicos1430 Há um nível em que Mounier concorda com o marxismo Quando M Fernandez protesta que o primeiro problema hoje em dia deve ser para todos o problema da miséria quando ele escreve que o intelectual tem necessidade da classe trabalhadora para se conhecer a si mesmo completamente e que como o trabalhador tem necessidade do intelectual para se pensar a si mesmo existe entre um e outro uma rigorosa relação de reciprocidade ele pode saber em que ponto nós estamos de acordo aqui1431 1429 Ver acima pp 419 ss O indivíduo moderno do liberalismo 1430 La pensée de Charles Pèguy Oeuvres I p 65 Em nota de Emmanuel MOUNIER De la grippe I 93 I 127 1431 Révolution op cit p 229 539 IV7 Revolução personalista e comunitária e o que quer dizer a fórmula nem esquerda nem direita no personalismo Mounier elenca os atos revolucionários para uma Revolução personalista mas não sem estabelecer alguns contrastes1432 Por isso há os que aderem segundo o pendor do instinto O temperamento aqui escreve Mounier joga desde início sereno ése para a reconciliação nacional violento limitase aos extremos de gosto afetado prestase à revolução aristocrática instável segue o ar do dia Depois vêem os hábitos de família e os reflexos de classe Depois o interesse O instinto ou o hábito cristalizado em instinto é tudo a mesma coisa se declara em um tipo de aspecto pesado de adesão e de irritabilidade pronta à defesa Mas chega a decisão nota o diretor de Esprit o momento da tomada de partido o instinto retoma a direção eu penso nesses intelectuais diz Mounier que acham sempre muito complicados os problemas em que eles não querem se engajar eles não são muito rápidos em se precipitar cabeça baixa onde os seus instintos os leva com o risco de serem tomados de sobressalto retrospectivo quando a lucidez retomar o controle Estes mesmos que fazem o tipo de espíritos críticos e de analistas de sanguefrio quando os reflexos falam nós os vemos possuídos por uma psicologia de romance folhetim conclui Mounier Adesão que não é aderência sem interesse pela pessoa conclui Mounier Daí o primeiro ato de uma ação personalista depois da tomada de consciência de toda a parte indiferente de minha vida é a tomada de consciência de toda a parte em minha ignorância instintiva ou interesseira de minhas adesões e de minhas repugnâncias1433 Segundo ato revolucionário a revolução contra os mitos Aderir é escreve Mounier para muitos ainda registrar um sistema de ideologias ou de soluções Uma ordem lógica por sua regularidade mesma dá uma ilusão de verdade O primeiro que se apresenta se impõe pelo prestigio de sua coerência pelo pouco que à vítima falte os hábitos críticos Ele satisfaz a necessidade pueril de uma ordenação exterior onde todas as peças se correspondem no lugar de me obrigar a responder eu necessidade que não se põe em dúvida de que é uma necessidade da imaginação e não da inteligência conclui Mounier loc cit A menos que não seja simplesmente uma necessidade de se firmar é um sistema desmontável rigoroso tranqüilizador que não deixa nada na ignorância ao risco à 1432 Para o que segue ver Révolution op cit p 637 a 642 1433 Révolution ibidem 540 liberdade Alguns têm por este refinamento segundo Mounier a paixão pequenoburguesa pelas superfícies limpas do pó em seu interior Outros aí engancham suas dolorosas incertezas os que mantêm a necessidade de certeza diz Gide citado por Mounier pela necessidade de verdade os que acabam a revolução quando organizam os conceitos As idéias oferecem alguma dificuldade ainda e algum risco é aos técnicos agora que os espíritos mais francamente modernos exigem os planos Pergunta o diretor de Esprit Não serão necessárias soluções concretas aos problemas do dia E eles crêem firmemente que são marxistas que são republicanos que são fascistas que fazem um trabalho construtivo Deixemos as palavras de ordem voltarem nota Mounier que um pouco de dinheiro chegue ao bolso que a crise se distancie e vereis em qual profundidade tudo isso estava enraizado1434 O personalismo não traz soluções diz Mounier Fornece um método para se pensar e viver e os que com ele têm chegado a alguns resultados rogam para que não se acostume absolutamente a se felicitar por uma tal felicidade mas que se alinhe o próprio esforço sobre o deles e que se refaça a rota com suas dificuldades próprias a fim de que o resultado seja para cada um um verdadeiro resultante diz o diretor de Esprit1435 Terceira decisão revolucionária dar às atitudes diretoras o primado sobre as soluções tomadas Restam diz Mounier os agitados que lêem os jornais e tomam o evento da manhã por uma reviravolta da história Se por um lado eles dão a aparência de se interessarem apenas mediocremente por seus cães feridos ou se se duvida de que eles ainda se lembrarão amanhã por outro lado eles ficam desesperados por não poderem jamais vos dar o sentido real grifo nosso1436 Quarta resolução revolucionária fazer a retirada ser antes de fazer conhecer antes de agir Instintos entusiasmo ideologias agitações tantos divertimentos da pessoa tantos meios dela se evadir segundo Mounier 1437 Vemos por estas passagens como a revolução personalista proposta por Emmanuel Mounier não é ingênua em relação aos condicionamentos dos revolucionários Não é difícil por outro lado perceber o quanto é difícil a aceitação de um tal pensamento tão visceral e 1434 Ibidem 1435 Révolution ibidem 1436 Ibidem 1437 Manifeste op cit p 639 541 radicalmente dialético para os adeptos do tudo ou nada pois leva o movimento até aos meandros em que para o pensamento sistêmico só deveria haver repouso Por outro lado vemos o quanto a necessária imbricação entre o pensamento e a ação no ato revolucionário personalista não é por sua vez desculpa para a evasão indiferente ou o não engajamento por parte do pensamento satisfeito tranqüilo Não é difícil também percebermos a dimensão que a revolução personalista deve tomar para fazer valer estes pressupostos pois é levada a colocar como propedêutica necessária o estabelecimento de fato de uma pedagogia personalista Por isso é necessário criar novos hábitos revolucionários contra os hábitos de adaptação e de espera irresponsável que nos têm acostumado a depositar sobre a responsabilidade de um outro indivíduo ou teoria a intransferível responsabilidade de cada um de tomar nas próprias mãos e imprimir algum sentido aos eventos Isso é propedêutico pois o espírito de adaptação burguesa nos tem desviado e nos acostumado segundo o personalismo de Mounier a ceder a sua decadência antes que o verdadeiro engajamento o engajamento pessoal ocorra Para o personalismo é necessário fazer as pessoas se lembrarem de que são livres o que quer dizer lembrálas de que são responsáveis antes de proporlhes a liberdade como quer o espírito burguês como uma posse como uma tranqüilidade numa teoria ou como conseqüência fatal da sua decadência num indivíduo salvador Tudo isso já que se trata de uma revolução para o personalismo que tem em mira uma crise de civilização já que não será nesta um partido que vai decidir e ditar a última palavra mas o povo e já que ela deve seguir o fluxo de uma vida ou seja imitar o ser profundo mais próprio do movimento de personalização que se dá na imbricação entre interior e exterior da vida pessoal no ato pessoal de luta pelo real em sua emergência e insurgência na história e que nesse nível no do social deve se manifestar como ato revolucionário ato insurgente da pessoa em busca da única vida que é segundo personalismo a mais afim ao seu ser ou seja a vida comunitária Mounier fala da conversão integral Não se engaja em uma ação diz o diretor de Esprit precisando o sentido do ato revolucionário personalista quem aí não se engaja como ser humano inteiro Não são os tecnocratas que farão a revolução necessária Eles não conhecem senão as funções e numa revolução são os destinos que estão em jogo eles agenciam os sistemas os problemas lhes escapam Estes só chegam a ser 542 sensíveis às formas políticas da desordem e só crêem nos remédios políticos eles se deixam enganar nos jogos favoritos dos adultos machos como se toda história ficasse aí contida Não serão também os que aceitam ser classificados pelas fatalidades tais como elas se apresentam e que intimidados pelas alternativas insolentes se deixam amputar para formar bloco em metade de si mesmos Nós temos dito de partida nem esquerda nem direita Arriscamonos então a atrair os indecisos ou aqueles para os quais nem ser direita nem esquerda seria ainda uma maneira inteligente de ficar à direita Temos eliminado estas alternativas temos permanecido sobre esta dupla recusa não porque ela seria algo esperto mas porque é vital Metade dos nossos valores estão por sua vez reféns nos dois campos com a metade da desordem Nós temos decifrado uma terceira via a única que reconciliará todas as nossas exigências A facilidade é a de abandonála por soluções imediatas o engajamento aqui significa nos consagrar inteiramente neste seu aguilhão de dor Só para os que não têm ainda se desesperado por uma nova saída sobre o futuro recusarse a se aglomerar aos blocos existentes é afrouxamento1438 Vemos que a terceira via decifrada por Mounier não tem nada a ver com uma conciliação tranqüila é uma postura de tensão contra a qual em cada lado espreita a segurança da manutenção sempre de uma meia verdade Como sempre não se trata de ecletismo mas de uma disposição em ir sempre além das conciliações No mesmo lugar Mounier complementa os itens componentes do que seria uma metanoia integral Não serão enfim os que só darão a seu engajamento uma adesão de lábios ou de espírito1439 Nós não sofremos somente de erros doutrinários e de contradições lógicas diz Mounier A revolução não se limita a remoer idéias a restabelecer conceitos a equilibrar soluções Vivemos entre as fatalidades de uma decadência esmagados pelas próprias fatalidades de nossa vida individual a qual temos abandonado aos hábitos dessa decadência Não teremos apoio suficientemente firme para reverter as fatalidades exteriores senão na condição de engajar toda nossa conduta nas vias que nós descobriremos Essa revolução espiritual que coloca a inteligência no princípio da ação não é uma revolução de intelectuais qualquer um que tenha sido emulsionado1440 pode desde esse instante 1438 Ver Manifeste op cit p 640 1439 Espírito aqui quer dizer aprovação simpática de inclinação sem desdobramento como ação 1440 Se desprendido 543 começar uma realização local nos comportamentos de sua vida cotidiana e aí apoiar sobre uma disciplina pessoal livremente decidida uma ação coletiva renovada1441 Há uma pequena história sobre a dupla esquerdadireita narrada por Mounier O diretor de Esprit a esboça na intenção de desmistificar a política que parece ter se tornado cristalizada por esta oposição como se não houvesse outra alternativa a não ser a que apresenta esta anteposição esquerdadireita e nos moldes que a realidade pactuada em secreto entre os dois pólos permitem que a política seja tomada Não é demais afirmar o quanto de oxigenação à atmosfera pesada da esfera política da existência humana a que a política partidária tem submetido o personalismo pretende trazer É essa oxigenação que nos ajuda a desmistificála A liberdade burguesa conquista seus direitos com o reinado de LouisPhilippe e nada mais exige O povo se deixa persuadir de que a liberdade de seus senhores é a sua A liberdade é reclamada apenas por Montalembert Mas com a consciência popular formandose de 1830 a 1848 e explodindo na Europa em 48 Montalembert e a burguesia voltariana abandonam sem dificuldades a liberdade política para salvar o privilégio econômico e social o Imperador nacionalindustrial antecede em escala reduzida a democracia nacionalsocialista O seu regime vai levar para a esquerda a liberdade Lá ficou durante a fase conquistadora do liberalismo político Quando então os liberais desenvolveram suficientemente os seus privilégios a sua liberdade tornouse conservadora contra o socialismo Deuse então um divórcio entre eles Uns mantiveramse liberais apesar e contra tudo outros não hesitaram com a era dos fascismos em sacrificar a liberdade política à aparente conservação do seu mundo Da mesma maneira se deu a divisão nas esquerdas depois de Lênin e sobretudo depois de Stalin entre democratas e socialistas liberais e o socialismo autoritário que sacrifica a liberdade política ao que considera caminho necessário da libertação econômica prelúdio necessário para a desaparição das pressões políticas Desde aí a liberdade oscila vertiginosamente da esquerda liberdade antifascista à direita liberalismo anticomunista1442 Nesse jogo o personalismo de Emmanuel Mounier não quer fazer parte A liberdade dos liberais se confundiu com a esquerda até o momento deles terem conseguido estabelecer com segurança seus privilégios daí então eles se tornaram conservadores a liberdade no 1441 Manifeste op cit p 640 1442 Le Personnalisme Oeuvres III 1949 481 544 comunismo depois de ter servido como tema da sua retórica e ter através desse apelo juntado grande número a coloca de lado por motivo de força maior do Estado que a esquece em proveito de sua tática teórica Ainda sobre a fórmula personalista nem esquerda e nem direita uma palavra de esclarecimento do próprio Mounier O primeiro esforço que nós exigimos dos nossos amigos é a revolução contra os mitos e em relação aos seus primeiros contornos o despojamento dos seus reflexos seja de direita seja de esquerda Nem direita nem esquerda a fórmula é muito perigosa sobre o plano político tomando política no sentido dos políticos ou seja como uma tática que se joga sobre o velho tabuleiro sentimental dos partidos sobre este plano os marxistas têm razão em ver aí o primeiro delineamento do fascismo ela não religa com efeito seja contra a intenção dos que a empregam senão as negações quer dizer os medos ou as mediocridades ela cristaliza o pântano dos indecisos em um cartel pequenoburguês cuja primeira preocupação é garantir sua segurança sob a proteção da Ordem e do Dinheiro É totalmente diferente se nós entendemos afirmar a incomensurabilidade das realidades humanas autênticas com esta classificação artificial nebulosa e contraditória que está cristalizada na oposição direitaesquerda1443 O que quer dizer nem direita e nem esquerda então para Emmnauel Mounier é justamente a consciência de que em cada pólo é metade dos valores da pessoa que está retida com a metade das desordens O que então comanda esta postura por parte de Mounier é por outro lado também a recusa intransigente de aceitar como eterno o caráter sempre provisório dentro das condições da existência finita de qualquer alternativa estanque como esta mas é também o compromisso inalterável de sempre aplicar o elemento de inusitado de provisório criador enfim de artefato a todas as construções humanas A nosso ver os sentidos que consideramos mais necessários a serem enfatizados nesse trabalho de aproximação ao pensamento de Emmanuel Mounier quanto aos elementos constituintes da revolução personalista ficaram claramente expressos nestas citações de Mounier Ao mesmo tempo que os elementos de contraste entre a posição do diretor de Esprit e a dos revolucionários marxistas Entendemos também que elas nos dão a possibilidade de melhor aventarmos os ares densos entre os quais o diretor de Esprit e sua 1443 Révolution op cit p 339 545 equipe procuravam elucidar para si e para os outros seus próprios pensamentos fora da confusão e da mentira no âmbito dessa miscelânea ideológica que dominava a sua época Nesse sentido e contra a confusão diz Mounier Ser para fazer conhecer para agir a revolução personalista entre a espiritualidade da pessoa o pensamento e a ação renova o elo interior que o idealismo rompera e que o marxismo se recusa a restabelecer Nosso primeiro dever de ação é uma cruzada contra a confusão diz Mounier Cruzada contra os blocos que cimentam os erros contraditórios e criam uma venda diante das realidades e diante dos seres humanos Cruzada contra as uniões sagradas que mascaram as desordens profundas sob as reconciliações interesseiras Cruzada contra os conformismos parasitas do pensamento e do caráter Um ajuntamento personalista deve ser segundo Mounier um ajuntamento pluralista respeitoso encorajando a verdade total dos seres humanos que o compõem engajandoos no esforço direto na autocrítica e nessa conversão ininterrupta que é a mais estrita fidelidade à verdade1444 Todo esse grifo é nosso pois a nosso ver ele deixa claro o caráter popular da revolução personalista O pensamento elitista aristocrático capitulado pela desconfiança milenar advinda da tradição intelectualista em relação à capacidade da pessoa concreta e do povo de serem fontes inspiradoras e criadoras de verdadeira transformação desconfiança que se mantém expressa em proveito da confiança na teoria é também o que distingue a concepção de povo segundo o personalismo da concepção de povo segundo o marxismo o qual também diz lançar mão dessa fonte Já falamos que o personalismo é uma filosofia do amor Ora se é assim para o diretor de Esprit deve haver uma revolução contra o oposto direto ao amor quer dizer ao ódio Malgrado seu aspecto cortante o ódio é uma outra forma da confusão diz Mounier Ele é hoje o instrumento mais potente Enquanto devemos repelir as reconciliações impotentes das balburdias sentimentais da mesma forma a salvaguarda do engajamento pessoal exige que conduzamos hoje uma luta sem misericórdia contra o ódio se se pode ainda chamar ódio a essa rabugice de nível baixo que faz refluir hoje a violência política até nas vidas privadas1445 Que fazer Devese dar atenção segundo Mounier à voz que está por traz da violência pois para Mounier o objetivo que ela visa vai muito além da 1444 Manifeste op cit p 641 1445 Manifeste op cit p 641 s 546 conquista do poder ou da agitação social ela é a expressão do anseio da pessoa por reconstrução em profundidade de toda uma época de civilização1446 É o apelo mesmo pela vida comunitária que segundo o personalismo ecoa nestas vozes confusas Eis em suma novamente o que significa engajamento pessoal para o personalismo de Emmnauel Mounier a tomada de consciência por parte do sujeito da sua própria participação na desordem até aqui inconsciente até mesmo nas suas atitudes espontâneas na sua personagem cotidiana1447 Sem essa tomada pessoal de autoconsciência da própria participação na injustiça para o personalismo pode haver boaconsciência burguesa Haverá algum outro tipo de boaconsciência diante da injustiça moralismo evasivo mas não verdadeiro engajamento e nem revolução Como podemos ver a análise crítica da boaconsciência que Mounier faz na verdade se estende a uma crítica à ideologia mas ultrapassa ou vai mais longe do que a proposta pelo marxismo no quadro restrito da luta de classes1448 Há rupturas necessárias É necessário uma ruptura com os aparelhos da desordem Segundo Mounier é ilusão querer pesar sobre os aparelhos carcomidos deste mundo com outros aparelhos igualmente carcomidos que lhes são estritamente submissos como os partidos parlamentares sob seus modos atuais É nesse sentido segundo Mounier que uma ruptura com os aparelhos da desordem é uma condição prévia para o asseio e a eficácia da ação personalista que procurará as modalidades em cada posto da desordem1449 Para Mounier esta ruptura deve ser radical quer dizer não somente ostentatória ou superficial ela segundo o diretor de Esprit deve ser uma ruptura com os aparelhos e jamais com as pessoas que não se reduzem nem aos aparelhos que as englobam e nem às palavras que elas pronunciam essa ruptura proposta por Mounier não deve a nenhum preço veicular qualquer rigorismo farisaico ou qualquer codificação rigorosa a vida da pessoa é gratuidade e liberdade profundas no próprio engajamento1450 1446 Ibidem p 643 1447 Ibidem p 643 1448 Para isso ver Révolution op cit p 330 1449 Manifeste op cit p 644 1450 Ibidem 547 IV8 Transcendência como direito e laicidade personalista Segundo o personalismo contrapondose tanto à heresia individualista quanto à heresia coletivista a pessoa não pode também ser colocada como simplesmente mais um objetoantípoda Isso já seria uma traição Como temos visto a pessoa só pode ser apreendida no ato que a desvela aquém e além das expressões mesmas pelas quais ela manifesta suas faces Portanto mais do que o postulado de um outro ente de razão o que seria ainda partilhar do maniqueísmo racionalista como se fosse o caso de uma disputa pelo melhor obejto é pelo elemento mesmo mais característico do movimento da pessoa o qual a impede de ser confundida com algum objeto que se nos dá o sentido exato do seu modo de ser Este seu elemento mais característico se nos dá pelo sentido da manifestação de sua liberdade como recusa à identidade frente à inserção originária prévia a sua consciência do seu atolamento terreno e corpóreo a este estofo mesmo material quer dizer frente à metafísica do reducionismo materialista cuja tara é a traição de tomar a pessoa como epifenômeno da sua mera inserção no natural para depois melhor objetificála e despojála Também se nos dá por sua vocação no cumprimento dos valores livremente assumidos por ela e que a constituem nesse movimento de mais ser que é a sua transcendência Para o personalismo a transcendência da pessoa implica um movimento real de ultrapassamento Mais do que isso quer dizer mais do que um construto teórico que contrabalança a noção de imanência no personalismo dadas as taras ingênitas a todo reducionismo materialista e espiritualista a transcendência fora do puro plano noético e em vista do confronto com os eventos tornarseá com todo o peso do significado que a palavra possa ter um direito Sobre este direito uma palavra Na perspectiva personalista uma atitude laica para ser autenticamente laica e aqui se referindo ao problema da religião não pode ser neutra deve se pautar pelo sentido da construção de um diálogo irrestrito e na audição de todas as vozes componentes da comunidade social Um exemplo do que seria o espírito laico para o personalismo de Mounier poder ser lido no extrato de um artigo de Julien Vernet Chambéry sobre como ele perspectivava o trabalho realizado pela Instituição culturaleducadora que presidia e que se encontra em Bulletin des amis dEmmnauel Mounier Aberto a todas as coletividades municipais agrupamentos locais paróquias etc a UFCV se declara laica 548 mas não neutra no sentido em que se diz pluralista referindose ao personalismo de Emmanuel Mounier Ela tem sempre privilegiado seus objetivos fundamentais servir à unidade e originalidade de cada pessoa salvaguardar a dimensão espiritual de todo ser humano manter seu projeto educativo sobre os princípios que despertam a consciência e favorecem a liberdade 1451 Para isso a instituição laica segundo o personalismo deve se basear sobre as mesmas inspirações que movem a pessoa sua liberdade e sua vocação respeitando um conteúdo de verdadeiro movimento de ultrapassamento implicado nesse seu movimento e que se denomina sua transcendência Valendose desta com razão como contraponto e resistência a todo ensejo de inserimento do poder religioso no âmbito das relações que se caracterizam como políticas quer dizer em respeito e na busca do conteúdo axiológico específico contido como expressão da vida cívica pelo qual a pessoa também se realiza nessa dimensão enquanto vida comunitária como também para fundamentar sua atitude em relação a qualquer outro tipo de metafísica seja ela dita não religiosa e queira da mesma forma que a religião imiscuirse numa dimensão que busca desenhar seus próprios contornos que é a do espaço laico Já que segundo o personalismo não há espaço neutro e logo posições metafísicas que não mantenham nenhum alcance ético quer dizer que não se inscrevam em última instância como um dever ser no mundo da vida assim estas metafísicas inevitáveis segundo o personalismo devem aprender a se manter antes como gestos laudatórios respeitosos à pessoa nestas dimensões pelas quais ela busca sua expressão e por sua vez também sua própria configuração não tocando diretamente a estas metafísicas Por sua vez a instituição laica segundo o personalismo deve manter a possibilidade não só da existência das metafísicas religiosas como a audiência de suas colocações como deve fazer em relação a qualquer outra metafísica não religiosa quando elas forem claramente depreendidas do seu vínculo institucional de origem e expressarem uma posição autêntica do seu locutor que como expressão do seu vínculo social inquebrantável colaborem para a construção da autonomia laica Para a laicidade que está por se fazer vale segundo o personalismo o lema da Grande Mística distinção sem separação 1451 Op cit Numéro 60 Octobre 1983 p 30 549 Este fato se fundamenta justamente sobre a transcendência como direito ou no direito à transcendência pois como já vimos a origem do ser humano é um problema aberto e então cobre os problemas sobre os limites aos quais a própria laicidade se funda e sobre os quais deve também se pôr A definição de direito à transcendência segundo a perspectiva personalista se fundamenta em alguns pressupostos 1 No da não aceitação como clara e evidente com estes adjetivos tomados tanto pela posição negadora quanto pela afirmadora do jogo racionalista maniqueísta da definição metafísica última da realidade em termos de estofo puramente material Quer dizer em termos de forças mecânicas naturais em que a consciência seja tomada como simples epifenômeno do acaso da confluência de elementos também puramente químico orgânicos fazendo do evento da consciência uma simples contingência fisiológica cuja diferença qualitativamente manifesta não valeria nada enquanto sentido possível e logo com direito também à cidadania antropológica de uma dimensão outra que a redução puramente material mecânica físicoquímica que por sua vez deve ser tomada de maneira laica quer dizer apenas também como uma possibilidade dentre outras Mas testada pelo critério da avaliação dos valores que fundamentam essa posição segundo o personalismo como vimos antes em relação às atribuições de uma laicidade enquanto espaço não neutro quer dizer constituído em vista das prerrogativas que compõem a dignidade da pessoa singular 2 No critério de que à noção de transcendência esteja implicado o sentido mínimo de um movimento real mesmo que seja em direção a forças demoníacas ou divinas essa opção faz parte da liberdade da pessoa tanto o abismo usando a metáfora da descendência quanto o paraíso usando a metáfora da ascendência que implicam movimentos reais do ser como já vimos estão incluídos na noção de numinoso segundo a fenomenologia da religião1452 estes dois movimentos reais podem ser alcançados por conta de uma reflexão sobre o que nós somos enquanto existentes no sentido de Kierkegaard e sobre o que nós temos consciência de ser1453 1452 Ver OTTO Rudolf O Sagrado op cit passim 1453 Ver LALAND André Vocabulaire Technique et critique de la Philosophie Presses Universitaires de France 1951 art Transcendance p 1143 550 Todavia a fim ainda de elucidação em nota1454 Laland cita um extrato de Louis Bosse1455 em que este autor denomina philosophie de la transcendence uma concepção qualitativa e hierárquica grifo nosso do mundo concebido como um sistema ascendente no qual os fatos estão sob a jurisdição das idéias e estas são por sua vez dominadas por princípios Na continuação da nota afirmase de uma maneira incisiva e um tanto peremptória atitude esta como muitas vezes também é a da postura contrária reducionista tanto uma perspectiva um tanto quanto substancialista das idéias quanto uma dicotomia acentuada entre imanência e transcendência Tanto o substancialismo quanto a dicotomia são recusados na reflexão de Mounier que se propõe uma tarefa mais humilde Grifamos acima o termo hierárquico pois o sentido que Mounier procura destacar quanto ao problema da transcendência é antes o qualitativo que o sentido hierárquico apesar desta noção às vezes aparecer em seus textos como uma espécie de concessão provisória por uma reflexão que está se fazendo O agnosticismo metodológico de Mounier que foi mantido até o fim de sua reflexão como meio interino que ele encontrou para a facilitação do diálogo implicava um desarmamento prévio enquanto uma disposição a não se evadir na chamada objetividade e neutralidade e ao mesmo tempo numa tensão profícua a manutenção dos valores realmente assumidos como pessoais e no completo ânimo e disposição de testálos o que seria testar a si mesmo no cadinho purificador do fogo da verdade do diálogo irrestrito1456 Isto porque a transcendência em Mounier se dá como possibilidade aliás aberta também ao teste de se realmente corresponde ao caráter de ultrapassamento real do ser humano este para o personalismo o teste crucial de toda transcendência A transcendência em Mounier não é só uma possibilidade é uma possibilidade que se dá ao teste e à prova os quais são possíveis de ser realizados em níveis cada vez mais profundos Todavia estes níveis mesmos já são escolhas livres da pessoa Podem corresponder a uma relação com a Alteridade total única por ser total diferença qualitativa pela qual a pessoa consegue delinear definitivamente as suas próprias dimensões específicas como finitude ou podem permanecer o que não é o caso do personalismo de Emmnauel Mounier no nível 1454 Loc cit 1455 La guerra et la mystique de limmanence Mercure de France 1a de maio de 1918 1456 Esprit era chamada de laboratório de idéias O mesmo movimento que Mounier imprime à revista é o mesmo que caracterizará sua maneira de fazer filosofia Para isso ver Mounire et sa génération op cit p 589 551 apenas noético Mounier que entendia que o ser humano só faz bem uma coisa quando a faz participando por inteiro nela desta maneira tentava manter uma integridade não só no sentido da honestidade intelectual mas no sentido denotativo do integral por inteiro de si mesmo e do interlocutor ou seja tanto a dimensão noética como uma homenagem à inteligência quanto a dimensão existencial do ser humano estariam implicadas na busca deste diálogo sempre tenso e profícuo fora de toda evasão 3 No fato de que a definição de Deus segundo Kant cuja afirmação da existência ou não são logicamente compatíveis que possa se ressaltar das compreensões de Feurbach de Marx de Bakunine de Freud de Nietzsche de Sartre etc para ilustrar o paradigma de uma visão radicalmente negativa e contrária à noção de Deus segundo o teísmo filosófico e teológico tradicional não são as únicas e não podem auferir o monopólio de definições últimas e nem também segundo as pesquisas em ciência da religião e os estudos teológicos mais atualizados o apanágio de exaurir a noção de Deus enquanto tal Mas que como noções válidas ou seja apropriadas como parte integrante de uma experiência existencial real têm o seu lugar como devem ter outras experiências tão integrantes e existenciais que apontam para uma noção outra de Deus do que a que é rotulada como sendo a do teísmo filosófico e teológico tradicional por outro lado positiva e biófila como por exemplo a neotestamentária que o concebe como DeusAmor Não é necessário dizermos aqui pois fica claro que tanto esta laicidade como esta religiosidade aberta sem amarras institucionais ainda é um ideal e é uma tarefa a se cumprir Depois desta palavra sobre a transcendência na filosofia dialógica de Emmanuel Mounier podemos dar continuidade na nossa aproximação à dimensão imanente da vida pessoal que se dá na vida comunitária e não se confunde com a imanência coletivista Sobre isso como já citamos A pessoa não se realiza senão na comunidade isto não quer dizer que ela tenha qualquer chance de o fazer em se perdendo no se Não há verdadeira comunidade senão uma comunidade de pessoas Todas as outras são apenas uma forma de anonimato tirânico1457 Eis que a comunidade do ponto de vista personalista seria a 1457 Révolution op cit p 182 552 superação de qualquer aristocratismo dos fortes A pessoa para o personalismo representa o além do além ser humano pois é o além do ser humano sem a crispação Luta contra o individualismo quer dizer contra o regime do anonimato da irresponsabilidade e da dispersão do egoísmo e da guerra Por um lado nota Mounier mas também Luta contra o personalismo pagão e suas modalidades anarquistas ou fascistas Procura de um estatuto conjugado da pessoa e da comunidade segundo as direções que precisam em sua partida os dois números especiais1458 Eis aí as linhas de força de nossa reconstrução personalista1459 Além de uma síntese da verdade científica lógica e racional no sentido preciso para Mounier é possível um outro tipo de síntese que não é puramente lógica mas tem a ver com as dimensões simbólicas e de sensibilidade intuitiva do ser humano o que segundo o personalismo não a desmerece e nem a desclassifica por isso É então que para Mounier uma revolução personalista que tem diante de si o mal de uma civilização o qual tomou proporções universais pela difusão universal moderna do espírito burguês não pode fazer vistas grossas a este seu caráter necessariamente total ou seja revolucionário Para tanto são elencados também os elementos de sua complexidade São chamadas à obra revolucionária as áreas mais diferentes que compõem cada qual uma dimensão da expressão e da experiência existencial da pessoa em sua luta pelo real A revolução que propõe Emmanuel Mounier que é uma pedagogia chama para a cena à arte à literatura à educação à religião à política etc para comporem o grande diálogo Tomadas em suas especificidades o valor de cada uma destas dimensões da expressão da vida pessoal será avaliado em relação ao quanto suas especificidades não servirão de desculpa para sua crispação porquanto nem essa visão dialógica servirá como pano de fundo para qualquer mística de absorvimento do específico no todo Há um grande interesse por parte do personalismo nestas expressões pois são veiculadoras de valores e cumprirão tanto mais esse papel na medida em que no diálogo conseguirem se estabelecer como criação ou seja expressão de uma singularidade irrepetível Isso para o personalismo é alcançar pelo singular o universal Nesse sentido é que devemos perspectivar a crítica de Mounier aos costumes e não simplesmente como quer o liberalismo aos desejos e às paixões desordenadas do indivíduo 1458 Este texto é de dezembro de 1933 Tratase de dois números programáticos de Esprit que tudo leva a crer o primeiro sendo de 1932 e o segundo de 1933 1459 Révolution op cit p 183 553 IV9 Descartes a antropologia dicotômica e o voluntarismo prolegômenos à crítica de Emmanuel Mounier ao espiritualismo da dupla negação personalista nem materialismo nem espiritualismo Na época de Mounier um certo espiritualismo pretendia ser a boaconsciência em relação ao mau dos revoltosos Para tanto este espiritualismo em nome do cristianismo comprometia os valores cristãos solidarizandoos na intenção de tornálos conaturais aos valores do mundo do dinheiro e à manutenção da ordem burguesa liberal valores aos quais estava atrelado Esse espiritualismo chamava pejorativamente as reivindicações dos trabalhadores de materialismo e suas manifestações de baderna perturbação da paz Emmanuel Mounier e sua equipe se insurgem contra esta traição esta solidarização dos valores cristãos com o mundo decadente do dinheiro Este cristão serve a Deus e corteja Mamon Todos sinceros1460 Essa crítica de Mounier relevando os argumentos religiosos dos quais esse pseudoespiritualismo lançava mão para sua autojustificação vai se encaminhar na elucidação do maniqueísmo e da gnose de negação do corpo em uma palavra do paganismo em proveito do que este pseudoespiritualismo chamava de alma Já falamos que tanto para a ontologia quanto para a antropologia personalistas de Emmanuel Mounier e sua equipe vale o lema da Grande Mística distinção sem separação É possível constatar essa preocupação no diretor de Esprit já nos primeiros anos de sua formação quando da elaboração de sua tese de conclusão do curso de filosofia que teve com Jacques Chevalier Em Grenoble sua cidade natal como aluno de Chevalier no dia 23 de junho de 1927 aos 22 anos de idade Mounier elabora um texto até agora não publicado1461 em que é levado a compreender no lugar mesmo da constituição do sujeito ocidental ou seja em Descartes um teocentrismo exacerbado apelando a um antropocentrismo não menos exacerbado e reciprocamente Mounier apresenta com sucesso seu Diploma de Estudos Superiores intitulado O conflito do antropocentrismo e do teocentrismo na filosofia de Descartes Neste momento Jacques Chevalier1462 Henry 1460 Révolution op cit p 328 1461 LUROL Gérard op cit p 15 pergunta Por que 1462Cf Mounier et sa génération op cit p 418 em uma carta de 25 de outubro de 1933 ao seu amigo Jacques LEFRANCQ Mounier narra uma sua observação sobre Jacques CHEVALIER que não deixa de transparecer uma certa queixa Chevalier não era homem para vos lançar imediatamente nos grandes caminhos Ele encorajava meu vício leia pouco e medite profundamente Eu passei um ano 19261927 554 Bergson Pascal e Maine de Biran são os que constituem a armadura filosófica do jovem Mounier1463 Mas Charles Péguy já se encontrava para Mounier como a chave de leitura destes filósofos Todavia até o fim de sua vida parece que Mounier continuou culpando Descartes de terse deixado interpretar terse deixado subsumir pelos racionalistas posteriores que reduziram o cogito à pura lógica ignorando a complexidade e a dinâmica para as quais o ato filosófico cartesiano apontava1464 Como se deu com a tentativa das escolas socráticas menores que ao que parece sem a permissão de Sócrates queriam subsumir seu pensamento a um aspecto particular determinado em detrimento da complexidade do ato filosófico socrático Com a afirmação de que é mais fácil conhecer a alma do que o corpo Descartes e bem depois dele e a seu modo Hegel coloca o problema da verdade do lado do objeto quer dizer do sujeito lógico do lado do cogito que pensa a si mesmo e o da certeza do lado do sujeito quer dizer do objeto a ser dominado do complexo volitivo passional relacionado à dimensão corporal que deve ser dominado pela razão Todavia para o personalismo A vontade está por toda parte da personalidade Ela está tão estreitamente ligada à inteligência quanto a obstinação está à obtusão do espírito1465 O personalismo de Emmanuel Mounier portanto e por outro lado vai colocar o problema da verdade como problema geral e sob o modo de ser do artefato pois a verdade para o personalismo é uma tarefa a ser realizada além do seu fim se confundir apenas com fim da história humana quer dizer com o fim de o último ser humano vivo sobre a face da terra e a certeza como problema da vontade mas sem que esta esteja atrelada simplesmente ao corpo tomado como dimensão estanque e passível de objetificação A vontade para o personalismo é sempre expressão de um ato complexo que tem sua gênese em um nível préracional o que não quer dizer que seja inferior ao racional pelo contrário é pelo ato de vontade expresso que se pode vislumbrar o universo axiológico real sobre o qual se dá a afirmação da pessoa enquanto luta pelo real ou em sua versão para o meu diploma a ler Descartes e quase nenhum outro como um homem no campo Escapei bem do sorbbonismo Eu não me apercebia de que Chevalier colocandome no regime debilitante me inoculava sob a desculpa de simplicidade e clareza uma outra forma de deformação escolar Os vastos campos que eu tinha do lado de minha vida interior e de alguns temas pessoais inesgotáveis permitiam a evasão e abortavam a revolta 1463 LUROL op cit p 21 1464 Mounier et sa génération op cit p 606 1465 Traité op cit p 459 555 decadente como adaptação ao meio a ação voluntária é conduzida pelo concurso dos valores adotados o papel da vontade se reduz ao papel de um agulheiro1466 que abre a via sem ter a menor ação sobre a força motriz que aciona o trem Lewin estabeleceu que um grande número de repetições não chega a criar uma tendência na ação se os dois termos em relação não formarem os elementos de um conjunto condicionado por um objetivo a ser alcançado Braunshausen colocou por sua vez em valor o primado do motivo A vontade é pois o ato do eu inteiro os experimentadores Paul Shawran Roracher deveriam reconhecer que se pode sempre desordenar as leis que o estudo experimental destaca Como dissemos A vontade está por toda parte da personalidade Ela está tão estreitamente ligada à inteligência quanto a obstinação está à obtusão do espírito grifo nosso E ainda in loc acrescenta Mounier Fazendo da vontade o órgão executivo das mais impessoais abstrações o kantismo ou o seu substituto que tem regido o voluntarismo do século XIX a condenou à esterilidade O kantismo tem as mãos puras dizia Péguy Sim mas ele não tem mãos Se se considera a força de resolução não mais em sua raiz mas em seus efeitos ela se apresenta freqüentemente como um poder de inibição Ela deve com efeito comprimir todas as forças particulares ou aberrantes que tendem incansavelmente a deslocar a síntese mental Sob esta luz ela é bem a polícia da personalidade e é talvez o que a torna incômoda mesmo purificada aos vagabundos da ação Mas mesmo sob este aspecto repressivo ela tem a tarefa de refrear todas as rigidezes aberrantes 1467 Vemos que se num primeiro momento a vontade sendo tratada em sua dimensão mais fundamental em sua gênese préracional em seu atrelamento aos valores não leva necessariamente para o personalismo a uma visão negativa e de contenção da vontade como lugar da dispersão e da incontinência como queria o racionalismo cioso por fundar sua razão onipotente por outro lado e conseqüentemente a visão externa dos efeitos da vontade em seu caráter compressor segundo o personalismo não pode simplesmente conduzir a uma visão da vontade que tende a descomprometêla desse seu papel fundamental de orientação à síntese mental que é o trabalho prévio o esforço por unidade de todo ato pessoal em vista do qual ela age A ubiqüidade da vontade na personalidade 1466 Aquele que move as agulhas parte móvel dos trilhos da estrada de ferro que faz passar um comboio de uma via para a outra com o auxílio das agulhas 1467 Traité op cit p 459 556 para o personalismo contesta tanto as perspectivas que a tomam em sua gênese como uma coisa em si destacada do complexo da personalidade para melhor montar o álibi de sua contenção necessária por sua origem obscura através de uma razão supervalorizada quanto contesta também a tendência ingênua de ao reverso aceitando o estancamento da dicotomia racionalista em sua crítica a esta mesma dicotomia pretende ver a função da vontade como plenamente desprendida Todo modelo de poder de autoridade todo modelo pedagógico se funda sobre a compreensão do papel da vontade e o personalismo atento a isso quer buscar um melhor esclarecimento fora dos quadros habituais em que essa questão estava colocada Ainda não temos falado da mistificação mais completa da vontade aquela que já Espinosa denunciou e que Freud tem abundantemente ilustrado aquela que joga as forças obscuras do inconsciente neste homem solene que mantém suas ordens mascaradas por suas decisões soberanas O logicismo que gerou a psicologia incipiente dualista da modernidade diante dos avanços na compreensão no nosso caso do complexo dos voluntários não pode se manter como a última palavra sobre o assunto Por outro lado na filosofia a marteladas do personalismo como já dissemos com uma no prego e outra na ferradura a crítica contemporânea contra o racionalismo acaba simplificando as coisas em um outro extremo também ele acomodatício Quando uma época tem amplamente abusado de uma palavra ou de um valor o perigo da crítica negativa que se pode fazer é de juntar tantas suscetibilidades e revoltas latentes que as cristalizando esta crítica tornase contrariamente a sua intenção uma crítica dissolvente A crise da vontade dos voluntaristas grifo nosso não deve se tornar uma crise da energia como o romance contemporâneo temna às vezes responsabilizado Com o terreno da ação pessoal uma vez desentulhado de todas as ilusões psicológicas que o encobrem é necessário agora restaurar o núcleo sólido de uma vontade viva que exclui os compromissos e as rigidezes das vontades artificiais O que os falsos voluntaristas continua Mounier procuram inconscientemente na rigidez é um substituto para a força da alma Reduzirseia pois a vontade a uma aplicação do esforço ou para falar a linguagem da Escola ao habitus do esforço Essa santificação do esforço é talvez o coração mesmo do erro voluntarista1468 1468 Traité op cit p 456 557 Para o personalismo não existe uma vontade pura do tipo essencialista como quer o racionalismo que deixada por si sem o domínio da razão no comando do ato julgador erraria nos dois sentidos da palavra e nem também a vontade pode ser identificada com o esforço como parece ressaltar de um certo matiz voluntarista sempre tendente ao vitalismo e ao pragmatismo que é outra forma de hipostasiar a vontade fora de sua relação com o complexo da personalidade1469 Podemos dizer que para o personalismo também nesta questão no princípio eram a pessoa e seus valores A filosofia personalista de Emmanuel Mounier aberta às contribuições contemporâneas não pode continuar tratando a vontade como objeto de especulação do racionalismo dualista e nem se deixar tomar pelo frisson voluntarista contemporâneo Por isso busca o esclarecimento A vontade certamente tem sua raiz carnal mas sobre este plano mesmo não é ao esforço que ela está especialmente ligada é à vitalidade geral grifo nosso as abulias1470 são sempre acompanhadas de problemas de desvitalização1471 A capacidade de esforço não a sustenta senão sobre a série de muitos outros fatores auxiliares atividade rapidez resistência à fatiga resistência ao desencorajamento ardor afetivo etc O esforço não é mesmo sempre o servidor dos objetivos da vontade os testes têm demonstrado que muitas vezes quanto mais nos esforçamos para esclarecer uma noção mais ela se obscurece quanto mais nós fazemos esforço por encontrar uma palavra esquecida ou o sentido de um palavra estranha mais ele nos escapa O Dr Coué propôs como regra que a vontade cede sempre e sem nenhuma exceção em eficácia à imaginação livre1472 Como a vontade tem essa característica de síntese organizadora de todo complexo da personalidade sua afirmação como tal se relaciona ao quanto esta sua síntese se mantém fiel ao movimento de personalização a que ela serve ao movimento de luta pelo real que é próprio da emergência da pessoa Portanto não se pode substancializar a vontade mas podese aproximar uma avaliação quanto a em que nível ela se encontra em linha com essa sua tarefa primordial ao lado da pessoa e 1469 Esta relação ficará mais clara à frente quando ainda sobre a crítica de Mounier ao espiritualismo falarmos do fascismo e do nazismo 1470 Incapacidade de tomar decisões voluntárias 1471 Em nota escreve Mounier Traité op cit p 457 JANET Pierre Névroses et idées fixes I p 55 1472 Em nota escreve Mounier Traité op cit p 457 ABRAMOWSKI Études expérimentales sur la volonté Journal de psychologie 1915 558 não contra ela A pseudovontade aparece pois em suas formas mais simples como um fenômeno de rigidez dando a um conteúdo pobre a aparência da força1473 As pseudovontades segundo Mounier são vontades fechadas esforços solitários de si sobre si às vezes amplificadas pelo desejo de se vingar ou de se ultrapassar mas sempre em uma visão e pelos meios egocêntricos Sobre isso continua ainda Mounier é esse egocentrismo que a Igreja primitiva bem cedo condenou nas excentricidades heróicas dos Pais1474 do deserto A verdadeira vontade é um poder aberto que arranca o ser humano de si mesmo para o centrar sobre um fim exterior e superior ao mesmo tempo em que o enraíza em sua intimidade A tensão das pseudovontades é uma atenção sobre si que amesquinha a ação A vontade liberada é um ajuntamento de forças que dilata a ação e a consagra cristalizando uma ambiência complexa e rica a serviço do fim perseguido ela fecunda em sua esteira a realidade do agente e aquela do meio Ela é um ato de síntese que dá unidade harmonia e por conseguinte penetração no Eu ativo Um ato não é voluntário senão por sua novidade1475 Mas numa civilização amesquinhada nota Mounier A independência a firmeza são suspeitas O raro aparece sempre como mais ou menos anormal1476 Nesse sentido esclarecese que a suposta objetividade do racionalismo que a quer como um dado na verdade é marcadamente e em si mesma um ato de vontade baseado ele também sobre determinados valores E é nessa região axiológica que a discussão sobre a vontade para o personalismo deve se encaminhar Pois quanto à supervalorização da alma 1473 Traité op cit p 454 1474 Aqui usamos a tradução em português do francês Pères pelo português Pai em vez da palavra italiana Padre Por que Pela confusão anacrônica de se denominar estes anacoretas do deserto dos tempos da Igreja Cristã Primitiva pela noção funcional administrativoeclesiástica posterior adotada e mantida mais por costume do que pela teologia bíblica como antonomásia para designar sempre o líder de uma comunidade religiosa cristã A teologia católico romana reconhece que não há só um termo no Novo Testamento para designar o líder de uma comunidade cristã que ora é designado como poimhn poimén pastor ou guardador presbuthj prespýtes presbítero ou ancião todavia não necessariamente em idade cronológica mas em experiência e capacidade de liderança confirmada pela comunidade evpiskopoj epískopos bispo ou aquele que observa que cuida guardião protetor etc Esta é a mesma confusão que se faz ao se denominar pela palavra papa tomada posteriormente pela Igreja Romana como antonomásia para designar o cargo de Líder máximo da Igreja Cristã no mundo sendo que no início se tratava de simples palavra de tratamento respeitoso e quiçá carinhoso pelo qual eram tratados todos os papas em conjunto e ao mesmo tempo no tempo dos patriarcados Por ordem cronológica 1a o Patriarcado de Jerusalém 2a o Patriarcado de Antioquia 3a o Patriarcado de Alexandria etc Enfim os franceses estão certos em usar a palavra père mas os países de língua Portuguesa estão errados em usar a palavra italiana padre para traduzir todas as suas ocorrências sem diferenciação 1475 Traité op cit p 458 Em nota ibidem cita Mounier JANET Pierre Névrose et idées fixes I p 55 1476 LAffrotment chrétien Oeuvres III p 47 559 pelo racionalismo que se mantém assim na tradição intelectualista mais o apelo ao espiritual contido no seu discurso era urgente que fosse esclarecido nessa sua gênese supostamente objetiva já que mutatis mutandis os regimes totalitários nazismo e fascismo reclamavam da mesma maneira uma autoridade afirmada por outro lado sobre os símbolos do sangue da raça da pátria da alma etc como a mais apropriada a ser exercida sobre as vontades Esse parentesco de fundo não escapou a Mounier querela de família Assim para o diretor de Esprit o espiritualismo como o materialismo era uma simplificação indevida e seu desmascaramento se fazia necessário O realismo integral em matéria de antropologia antípoda à antropologia dicotômica racionalista faz Emmanuel Mounier escrever em uma nota sobre o ato filosófico cartesiano o seguinte Quando se fala de Descartes não se deve esquecer nem o caráter decisório e existencial do cogito nem as Lettres à Elisabeth onde ele escreve que a distinção da alma e do corpo não suprime a noção de união que cada um prova sempre em si mesmo sem filosofar a saber que se é uma só pessoa quem tem em conjunto grifo nosso um corpo e um pensamento Também convém distinguir a descendência de uma grande filosofia da proliferação de seus elementos sistemáticos pela qual ela permanece responsável com um tipo de responsabilidade secreta que parece ter enquanto responsabilidade moral1477 Todavia é Péguy quem fornece as pistas ao jovem Mounier Todas as coisas são distintas sem ser separadas unidas sem ser confusas como o amigo com o amigo Ora a violência que nós fazemos às coisas nos impede de ver outros parentescos e outras distinções que são a organização mesma do ser Não se trata para fazer o bom espírito de tudo esquartejar Não se salva também mais da contradição por uma hábil síntese dialética A síntese é no real anterior às duas teses Quando queremos fazer a síntese nós mesmos elas são em geral muito menos perfeitas que a síntese real inicial précomunicável porque há alguém que tem muito mais de espírito que M Tout le Monde quem por sua vez tem muito mais espírito que M de Voltaire este é o real1478 Mas simplesmente continua o jovem Mounier é necessário ler a carta do ser sob a carta da aparência as geologias sob as 1477 Personnalisme et christianisme Oeuvres I 1939 nota 36 p 909 1478 Em nota de La pensée de Charles Péguy Oeuvres I texto de 1931 La dénonciation de la pénsée toute faite p 39 s escreve Mounier a seguinte referência do texto de Péguy Préparation du congrèrs socialiste national I3 87 560 geografias Sob as palavras as ordens diferentes que elas mascaram1479 É nesse sentido que entendemos posicionar a crítica de Mounier fora das simplificações voluntaristas e enquadrála em linha com a crítica contemporânea ao racionalismo moderno Esse dualismo que Descartes permitiu que fosse mantido em relação ao seu pensamento todavia como já dissemos tem raízes históricas mais antigas que nem a genialidade de Descartes pode conter O mesmo podese dizer da luta da Igreja Primitiva contra o docetismo heresia gnóstica que ensinava o corpo aparente de Jesus Cristo que se naquele primeiro momento é arrefecida pelos esforços dos primeiros teólogos cristãos nomeadamente Irineu de Lyon 130202 em seu ímpeto de cooptação1480 aos seus 1479 Em nota La pensée de Charles Péguy op cit p 879 escreve Mounier as referências aos textos de Péguy Note sur M Bergson IX 12 II 1260 Note conjunte sur M Descartes IX 62 II 1303 Un nouveau thólogien XIII 20 II 850 1480 Para o cristianismo tratavase desde o seu início de uma questão de vida ou morte Pois diferentemente do que comumente se pensa e se diz o gnosticismo fenômeno complexo antes que específico se caracterizava não obstante grosso modo desde o segundo século quando se dá a tentativa de sua organização doutrinal por um ímpeto dominador onde quer encontrasse guarida e não de expressão religiosa que se contentava com uma convivência simplesmente lateral quer dizer ao lado de outras Seu empenho e ímpeto era o de assenhorearse da expressão religiosa objeto por dentro de maneira nuclear Como vimos o sentido pelo qual o conteúdo do kerygma cristão se destacou como sua especificidade na esfera do fenômeno religioso tanto em seu alcance ontológico quanto antropológico com o gnosticismo ficaria então totalmente comprometido nessa sua especificidade mesma Além disso estamos falando das origens do cristianismo em que se pode encontrar já nos textos neotestamentários canônicos escritos a partir da segunda metade do ano 100 claramente combatida a doutrina do corpo aparente de Jesus Cristo da heresia denominada docetismo Doutrina que se encontra portanto dentro do espectro do dualismo antropológico que caracterizará todavia todo e qualquer movimento de inspiração gnóstica posterior Portanto estamos falando de um período quando o cristianismo era ainda uma religião marginal Todavia essa luta interna ao cristianismo contra o docetismo e outras doutrinas do mesmo jaez sofre uma inflexão políticosocial com a sua institucionalização por Constantino e Licínio em 313 Edito de Milão É com sua institucionalização que as definições da reflexão dogmática cristã começam o que se tornou dominante por toda a Idade Média a tornase lei de exclusão social Na Idade Média ser considerado herético mais do que um problema de ordem doutrinária conceitual pura e simplesmente passa a se tornar uma autoproclamação por parte do herético segundo o poder religioso hegemônico que o tornava contra a sociedade dos seres humanos pois estrutura social e estrutura religiosa nesse momento da história do Ocidente passam novamente a se confundir Os movimentos heréticos da Idade Média beguines cátaros ou albigenses etc todos caracterizados pelos elementos fundamentais da ontologia e antropologia advindos da inspiração gnóstica não obstante suas especificidades de prática ritual e de doutrina enfileiravamse então sobre uma ontologia maniqueísta e uma antropologia dualista de negação do corpo herdada do paganismo via gnosticismo Eles eram tomados como heréticos tanto com base nestes princípios e tanto mais pelo fato de sua teologia representar politicamente nessa época uma contraposição direta ao controle e hegemonia da Igreja Império Nos dias de hoje costumase fazer apologética do gnosticismo como movimento religioso libertário relevandose apenas este último aspecto político sem se considerar adequadamente o outro aspecto seu antropológico dualista mórbido de negação e de ódio visceral ao corpóreo e à concretude Assim temse permanecido tranqüilamente relacionando esta dimensão mórbida e decadente na crítica que se faz ao cristianismo como algo próprio do pensamento cristão quando como podemos ver a especificidade do cristianismo se encontra entre sua resistência interna a este esquema antropológico mórbido e decadente intrínseco ao gnosticismo por um lado e sua resistência externa à vinculação ao poder político Como já dissemos a idéia de laicidade é originalmente uma idéia cristã Para mais informações ver CULLMANN Oscar Cristo e o Tempo Editora Custom São Paulo p 167 ss Ver também HUIZINGA Johan Lautomne du Moyen Age 561 ditames doutrinários permaneceu sendo dado o seu caráter hospedeiro o grande inimigo oculto do cristianismo que aqui e acolá ao longo da história da Igreja institucionalizada do cristianismo enquanto projeção sociológica acabou vencendo pelo cansaço e encontrando guarida definitiva A antropologia dualista compromete a cristologia e a antropologia cristã que lhe é conseqüente levando consigo o específico da contribuição cristã à cultura ocidental expresso em seu kerygma ou seja a afirmação incondicional da unidade substancial do ser humano tomado em sua singularidade indivisível e irrepetível como complexo corpoalma e sua responsabilidade pessoal diante de Deus contra a tendência geral da antropologia dicotômica de negação do corpo em proveito da alma do tipo reencarnacionista ou de metempsicose por exemplo herdados do antigo paganismo pelos diversos movimentos de inspiração gnóstica e mantidos sob os diversos aspectos de sua teologia e liturgia Dividese para dominar e duplicase para não decidir Eis os dois lemas que vão percorrer a história o primeiro da subjugação e do ódio ao corpo e o segundo do malabarismo especulativo do seu discurso de justificação Neste sentido se justifica a palavra de Gide retomada de Nietzsche de que a necessidade de certeza é muitas vezes o antípoda do amor à verdade1481 A patologia da vontade de certeza é aquela na qual o adulto justifica e explica toda possível contradição no afã de não macular seu sistema Há em toda patologia da vontade uma indisposição visceral contra o não cooptável o inusitado o imprevisível o não inventariável enfim contra a pessoa Já dissemos que é a perspectiva pela qual se toma o problema da vontade que determina o modelo do poder admitido Pois bem é pela objetificação do corpo tomado grosso modo ou como cárcere da alma pelo racionalismo ou como morada do incontido pelo vitalismo que se justifica toda opressão ou toda rédea solta Como vemos no fundo tratase de posturas irmãs querela de família para citar Mounier précédé dun entretien avec Jacques le Goff Petite Bibliotèque Payot Paris 1988 passim E ainda ROUGEMONT Denis de LAmour et loccident Plon Paris 1936 1a edição 1956 2a edição passim Também WAND História da Igreja Primitiva até o ano 500 op cit pp 152 ss Ver também DEANESLY Margaret História da Igreja Medieval de 590 a 1500 Editora Custom São Paulo 2004 pp 269 ss A heresia Medieval e a Inquisição 1481 Traité op cit p 619 562 IV10 Espiritualismo gnóstico e antropologia cristã Interessanos aqui como ficou claro pelo tópico anterior e neste primeiro momento nos aproximar da crítica de Emmanuel Mounier ao espiritualismo da dupla negação personalista nem espiritualismo nem materialismo Todavia espiritualismo para o personalismo é uma noção complexa Compreende em seu espectro significativo tanto o universo religioso propriamente dito como o não religioso ou pseudoreligioso tais como o das reivindicações fascistas e nazistas Mas antes de falarmos sobre o espiritualismo do fascismo precisamos aprofundar mais a crítica a esse espiritualismo religioso que Mounier cristão declarado combateu em nome da verdade da pessoa integral e que não deixa de lançar luz sobre a crítica de Mounier aos outros espiritualismos Antes de tudo precisamos retomar algumas considerações antropológicas fundamentais do cristianismo que este pseudoespiritualismo religioso havia deixado para trás o que mostra suas bases não cristãs e das quais pretendia se fazer portador e defensor mas sendo na verdade o seu traidor Como já notamos a antropologia cristã excluindo o cristianismo cooptado pelas e as próprias correntes de tendência gnóstica não poderia seguir as doutrinas órficas tomadas de Platão segundo as quais o corpo seria o cárcere da alma1482 o que faria com que tivesse de conceber a morte precisamente como libertação da alma de seu cárcere1483 Isso não poderia se dar tanto pelo fato de que o ensino cristão afirmava que o corpo da mesma forma que a alma tinham sido criados bons por Deus pelo que a união de ambos era expressão de sua vontade quanto pelo fato de que a morte o último inimigo já havia sido vencida segundo o Novo Testamento pela morte redentora de Cristo Isso estabelecia para os cristãos primitivos em vez de um dualismo antropológico onde a morte seria um momento de libertação um dualismo temporal entre o já da redenção realizada com a morte de Cristo representando a vitória já decisiva sobre a morte e o ainda não da presente realidade sujeita à deterioração e 1482 Ver Górgias 493a Crátilo 400b s 1483 Ver Fédon 64e Górgias 524b 563 sofrimento que ainda deveriam ser suportadas pelo cristão no mundo antes da Parusia e a realização escatológica da transformação do corpo corruptível em corpo incorruptível1484 O cristianismo primitivo com já vimos diante do aristocratismo inerente ao espírito grego e do seu preconceito geral pelo trabalho manual coisa de escravo seguindo uma ontologia por assim dizer a partir da definição veterotestamentária de toda criação como boa em si a qual incluia o corpo humano não poderia simplesmente perspectivar sua visão acerca do sofrimento problema com o qual toda religião tem de lidar e tentar uma explicação aceitando as bases pagãs que colocavam o mundo material e a corporeidade como lugar de um tipo de ascetismo exercício de negação do corpo em vista de uma dimensão sim áurea e pura que deveria ser o objetivo a ser alcançado como prêmio por todo sofrimento suportado ou autoinfligido na intenção da consecução deste fim Nesse sentido não havia de forma alguma para os cristãos primitivos como segundo o testemunho do Antigo Testamento e dos discípulos estabelecer bases para a afirmação de que haveria acerca dos prazeres dos sentidos sempre ligados à dimensão corpórea uma tendência irremediável a tomálos em uma perspectiva previamente estabelecida como negativa Os cristãos primitivos não podiam se esquecer de que o primeiro milagre do seu fundador fora o de transformar água em vinho de que ele participava de festas banquetes conversas despreocupadas etc tanto que havia sido chamado de glutão e beberrão pelos fariseus hipócritas1485 Além disso a partir da leitura dos textos neotestamentários percebemos a falta na comunidade cristã primitiva daquele pessimismo comum advindo de um sentido inelutavelmente trágico da vida Trágico enquanto determinação absoluta e inelutável por um desgosto antes que um gosto e uma alegria de viver muito próprio àquele período helenístico no qual surgiu o cristianismo não obstante o sentido real da dor e do sofrimento sempre mantidos pelos cristãos seu Fundador havia ele mesmo sido morto terrivelmente e de maneira muito sofrida Todavia em todas as partes do Novo Testamento que se referem à comunidade dos cristãos nos deparamos com pessoas chamadas a manter e portadoras de uma grande alegria de viver E 1484 CULLMANN Oscar Cristo e o Tempo Tempo e História no Cristianismo Primitivo Editora Custom São Paulo 2003 passim e também do mesmo autor Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã op cit 564 isso apesar dos problemas incomuns que enfrentavam todos os dias como pessoas comuns numa sociedade em que religião e política se confundiam1486 Essa posição dos cristãos muito indignava Celso de quem já fizemos menção filósofo romano do segundo século crítico do cristianismo que via uma discrepância intolerável entre as origens dos cristãos vindos das mais baixas condições sociais e o alcance sotereológico que pretendiam dar ao ensino do seu Fundador o seu próprio Fundador nascera em uma cidade periférica Belém num estábulo crescera numa cidade obscura Nazaré e cogitavase de sua origem como se tratando de fruto de estupro ou fornicação1487 sem contar que era um homem comum das ruas que andava e se encontrava na maior parte do tempo junto ao povo pobre com os párias da sociedade leprosos prostitutas ladrões e traidores como eram considerados os cobradores de impostos judeus que cobravam judeus para os romanos inclusive um dos seus discípulos canônicos Mateus era um destes e que mantinha como discípulo um zelote revoltoso Judas Iscariote que fora o traidor de seu grupo Ora para um tipo de ensino religioso que perspectivava as coisas sob essas condições e ao tipo de pessoa a que se dirigia primeiramente o corpo o estar encarnado situado no espaço e no tempo eram na verdade condições tomadas como um presente uma dádiva antes que um irremediável percalço Os cristãos vindos como bem observava Celso das camadas mais pobres da população só podiam se regozijar por ver o alcance da mensagem de amor e esperança de seu Fundador alcançar dimensões e expressões tão simples e tão desprezadas da vida como eram a da maioria deles na Antiguidade O corpo sempre sob suspeita pelo intelectualismo do aristocrátismo típico da Antiguidade estava ligado ao trabalho manual que por sua vez estava ligado à condição de escravo1488 Por outro lado o corpo é tão importante para o cristianismo primitivo que sua principal 1485 Veio João Batista que não comia e nem bebia e dizem Tem demônio Veio o Filho do homem que come e bebe e dizem Eis aí um glutão e beberrão amigo de publicanos e pecadores Mateus 1118 s 1486 Sobre a situação dos cristãos quanto à demora ou decepção em relação à Parusia não ocorrida em relação a qual diferentemente da escola existencialista de Rudolf Bultmann Oscar Cullmann não vê nenhuma manifestação de sentimento de frustração e de acabrunhamento por partes dos cristãos primitivos que os levasse a elaborar às pressas uma explicação ad hoc desesperada para explicar a não ocorrência do evento ver CULLMANN Oscar Le salut dans la histoire Delachaux Niestlé Paris 1964 passim 1487 Ver LÜDEMANN Virgin Birth op et loc cit 1488 Para Mounier o trabalho manual era mau visto pelos filósofos gregos pelo fato de estar ligado à condição de escravo Ver La petite peur du XX siècle op et loc cit 565 doutrina a da ressurreição chamase ressurreição do corpo enquanto implicando a promessa de retomada da totalidade da unidade substancial da pessoa1489 Além disso para usar a linguagem neotestamentária como avparch aparchè primícias1490 do cumprimento dessa esperança de retomada do mesmo corpo renovado os textos neotestamentários fazem a estranha proclamação de haver pelo menos já um corpo no céu o do seu Fundador1491 Esta proclamação é estranha porque além da expressão paradoxal de que aquele que fora crucificado era o próprio Deus o que implicava portanto um esvaziamento um rebaixamento da Divindade em todos os seus atributos era algo nessas condições impensável no consenso do pensamento da Antiguidade Esta ação de esvaziamento de rebaixamento da Divindade o Novo Testamento expressa pela construção eauton evkenwsen morfhn doulou labown heautòn ekénosen morphén doúlou labón esvaziouse a si mesmo tomando a forma de servo Efésios 27 ato este segundo o Novo Testamento realizado pela própria Divindade em sua vontade de participar da temporalidade Além dessa há no Novo Testamento outra noção mais estranha ainda a de swma pneumatikon sôma pneumatikón corpo espiritual1492 que depois da separação cartesiana da coisa extensa e da coisa pensada nos soa como totalmente antitética pois insere numa dimensão concebida cristalinamente pura a do céu sempre tomada como a antítese de corporeidade justamente um corpo Assim o cristianismo primitivo subvertia a compreensão comum propondo não só uma transcendência na imanência com a afirmação da encarnação do Logos como uma imanência na transcendência com a sua afirmação da ressurreição e ascensão do Logos encarnado ao céu Esse rebaixamento de Deus segundo o Novo Testamento implicando um exemplo a ser seguido pelos cristãos em suas vidas tem alimentado fora da inspiração neotestamentária quer dizer fora da lógica invertida da moral sobrenatural proposta nos Evangelhos por Jesus aos seus discípulos1493 muita justificação dos desmandos da 1489 Cf 1 Coríntios 151219 1490 1 Coríntios 1520 1491 Que a Igreja Católica Romana pelo dogma da Elevação da Virgem Maria ao céu em corpo e alma após sua morte pelo papa Pio XII declarou no dia 1a de novembro de 1950 independentemente dos textos neotestamentários mais um corpo 1492 1 Coríntios 1544 1493 Então Jesus chamandoos disse Sabei que os governadores das nações as dominam e que os maiorais as tiranizam Não deverá ser assim entre vós pelo contrário quem quiser tornarse grande entre vós seja aquele que serve e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o vosso servo Mateus 2065 s Essa lógica 566 hierarquia eclesiástica baseados numa ascética de negação do corpo totalmente incompatível com o verdadeiro espírito deste rebaixamento ensinado pelo Novo Testamento o que com razão tem levantado os protestos de Nietzsche e outros Todavia Mounier chama a atenção para a necessidade de perspectivar de maneira mais acertada a questão do rebaixamento cristão que colocado em seu sentido mais preciso é antes de tudo o ato de renderse ao Eterno1494 Comentando uma expressão de Nietzsche Eu só permito aos homens bem sucedidos filosofar sobre a vida sobre esta questão diz Mounier Ser bemsucedido não é somente ser sustentado por uma vitalidade suficiente é amar a independência e o domínio Crêse que ao cristianismo isso repugna porque ele culmina sobre um mistério da humildade Mas este abaixamento cristão só se dá ao sobrenatural de Jesus aparece também na lei espiritual do ganho pela perda do autoencontro por deixarse perder etc 1494 Já falamos da experiência religiosa com o numinoso com o totalmente outro do sentimento de criaturalidade diante do tremendum arrepiante avassalador majesta etc descrita pela análise fenomenológica de Rudolf OTTO O Sagrado op cit Estas descrições que compõem o aspecto terrífico da Divindade complementamse pelos aspectos fascinantes que atraem o cultuador É dentro desta perspectiva mais a contribuição do cristianismo única em sua radicalidade quanto a expressar a relação de Deus com o ser humano com base na relação de paternidade e a essência de Deus como amor que se deve levar em consideração quando se considera o rebaixamento cristão que se dá diante do Eterno É claro que não faltam imagens femininas de Deus na Bíblia principalmente no Antigo Testamento Todavia para se entender a noção de paternidade de Deus cristã não se deve tomar a imagem da paternidade provinda do modelo burguês decadente de família cuja essência é ainda nos dias de hoje a de dominação e posse dos filhos no sentido do espírito liberal burguês aquisitivo do proprietário e seus bens e mesmo em famílias cujo chefe de família é muitas vezes uma mulher A partir das concepções de Jesus sobre Deus não é difícil concluir diferentemente do que se pensa comumente que antes de Jesus se utilizar do modelo patriarcal da antiguidade como padrão para conceber a Deus o que se dá é na verdade uma contraposição ao sentido nocivo que a paternidade havia tomado em sua época Poderíamos dizer que se o padrão fosse matriarcal Jesus da mesma forma teria afrontado a maternidade desvirtuada por uma nova concepção afrontadora de Deus como mãe Todavia a rápida relação ou confusão que se tem feito entre o DeusPai cristão e o pai proprietário liberal burguês é o que está na base das conclusões apressadas pois não parecem levar em consideração nem as pesquisas teológicas e nem a história da psicanálise que entende a noção de pai num só balaio sempre como sinônimo de fábrica de castração A concepção de pai segundo o Novo Testamento deve ser entendia juntamente com o sentido que Jesus dá da essência de Deus como sendo amor e juntamente também com a noção neotestamentária de esvaziamento da Divindade de seus atributos para viver uma vida de ser humano juntamente com os seres humanos encarnandose e também juntamente com tudo que temos dito sobre a noção de pacto e de aliança no Antigo Testamento as quais implicam que Iahvé se compromete a limitar o seu poder em vista do cumprimento de sua própria lei em convenção com o seu povo na busca de construir uma relação com o povo na base da amizade e do respeito mútuo antes que na base da dominação pela posse conforme o modelo de dominação política prevalecente Ver sobre isso BULTMANN Jesus op cit passim O Deus da Bíblia e de Jesus nesse sentido é também uma contraposição frontal não somente à paternidade desvirtuada como ao modelo do déspota oriental poderíamos dizer na linguagem de hoje que se trata de uma contraposição direta à vontade de poder tanto na esfera privada como na esfera pública Ver BULTMANN Rudolf Jesus Editora Teológica São Paulo 2005 passim Ver também BORKAMM Günther Jesus de Nazaré Editora Teológica São Paulo 2005 passim 567 eterno e no fim das forças humanas como estes sitiados que têm ido além de seus recursos e não deixam as armas que lhes caem das mãos senão com as honras de guerra1495 Como vemos a relação de compromisso incondicional do cristão seria antes de tudo segundo Mounier com o Eterno cuja repercussão cuja extensão alcança a humildade que já não tem nada a ver com questões de superioridade ou muito menos de inferioridade velhas noções entranhadas da metafísica religiosa hierárquica da ontologia e da antropologia pagãs que o cristianismo repugna O rendimento do cristão segundo o Novo Testamento é ao Eterno porque diante de uma tal majestade ele reconhece que deve renderse Todavia como já vimos o aspecto tremendum arrepiante de majestas avassalador que a criatura sente diante do numinoso o Novo Testamento contrabalança pela proximidade amorosa da revelação de Deus em Cristo como amor Assim a superioridade da Divindade no cristianismo é equilibrada pela ação de esvaziamento por parte da própria Divindade no Logos que se faz carne e a inferioridade da criatura é equilibrada pelo resgate integral que a encarnação do Logos represenatrá em seu alcance de concretização e reafirmação do ser humano enquanto unidade substancial do corpo e alma como imagem e semelhança da Divindade quer dizer sua dignidade Esta humildade segundo o Novo Testamento recebe seu alcance natural como humildade em relação ao próximo Também o nível deste compromisso como vimos antes segundo Mounier é medido de acordo com o ultrapassamento possível de cada um em suas próprias forças O que bem notou o crítico Celso como vimos antes em relação à incompatibilidade do alcance que a ralé cristã os párias impotentes e insignificantes da sociedade pretendia dar ao ensino do seu Fundador Todavia os próprios cristãos já tinham aprendido do seu Fundador que Deus fazia o sol nascer e a chuva cair sobre justos e injustos1496 e que sua segurança estava ancorada em outras bases que as comumente estabelecidas Enfim os cristãos primitivos entenderam muito bem que sua situação de cristãos não implicava nenhuma facilidade mas sim um compromisso uma fidelidade medida no limite mesmo da ultrapassagem de suas forças uma esperança contra a esperança plantada em outro 1495 LAffrontament chrétien Oeuvres III p 47 1496 Mateus 545 568 terreno O cristão não se submete a um impessoal ou a um nãoser a essa totalização do nada em que Bakunine via a única realidade de Deus1497 A partir dessas linhas gerais podemos perceber que não havia para os cristãos primitivos base suficiente para o estabelecimento de um preconceito ou ódio em relação ao corpo e aos sentidos Por outro lado o mesmo não poderia ser dito do pensamento antropológico grecooriental mais especificamente do platonismo e mais empenhadamente ascético do pensamento oriental e sua apropriação pelo pensamento platônico que nós denominamos neoplatonismo Para Platão e todos os seus seguidores como é de domínio publico o corpo é uma prisão da alma1498 uma carruagem com dois cavalos que devem ser conduzidos pela razão daí a conseqüente forte ênfase intelectualista e o seu corolário de menosprezo pelo corpóreo lugar do incontido da confusão e da desordem Todavia essa compreensão da experiência de um ato sempre como uma unidade substancial como manifestação própria do ser do ser humano legada pela antropologia cristã nem por isso deixa de nos colocar em perplexidade filosófica pois sua afirmação não elimina a dificuldade em se estabelecer as delimitações quanto à ação recíproca destas duas dimensões corpo e alma e conseqüentemente como se daria a preponderância de uma dimensão sobre a outra e os limites de demarcação da linha que as poderia dividir1499 Além disso nem sempre tem sido igualmente evidente esta forma de ser e de se compreender a humanidade1500 Todavia alma e consciência se encontram profundamente enraizadas na corporeidade do ser humano da mesma forma por outro lado o próprio 1497 Personnalisme et christianisme Oeuvres I p 762 1498 Todavia queremos chamar a atenção para o livro do filósofo personalista Étienne BORNE no qual procura redimir Platão do essencialismo o que problematiza essa concepção muito geral e muita aceita sobre a filosofia de Platão no Ocidente Cf René HABACHI BORNE Étienne Les Nouveaux Inquisiteurs Paris Le pohilosophie 1983 in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 pp 22 ss 1499 MOUNIER Emmanuel Traité du Caractère Éditions du Seuil 1947 Já dissemos que esta é a obra mais densa de Emmanuel Mounier onde de maneira exaustiva o que não quer dizer exauridora ele expõe a perplexidade desta condição fundamental tanto quanto as dificuldades que surgem a partir de pressupostos estanques para a solução do problema da relação entre alma e corpo Esta mesma obra de Mounier se encontra em uma edição abreviada preparada pela mulher de Emmanuel Mounier Paulette Mounier MOUNIER Emmnauel Traité du caractère Éditions du Seuil França 1972 1500 Entre os defensores da concepção de corpo e alma como substâncias distintas temos tradicionalmente Platão Plotino Descartes como também Agostinho e inclusive Tomás de Aquino apesar de sua doutrina da alma como forma essencial do corpo 569 corpo humano não é um corpo morto mas animado em todas as suas manifestações de vida1501 Diante dessa tradição antropológica Mounier como cristão não poderia aceitar nem o pacto dos cristãos do seu tempo com o dualismo pagão racionalista nem as críticas injustas à antropologia de inspiração cristã como negadora do corpo e instauradora do ódio ao corpóreo A esse pseudoespiritualismo religioso decadente sim comprometido com os valores do mundo do dinheiro e comprometedor dos valores cristãos a essa cristandade enquanto projeção sociológica Mounier não poupou palavras No dia em que nós reconhecermos com o esforço necessário que uma imensa massa do mundo cristão e um imenso setor de nossas vidas ditas cristãs estão abandonadas ao paganismo a partir deste dia a cura estará próxima1502 O moralismo dessa cristandade era na verdade o adiamento interesseiro da moral pessoal que Mounier descreve não como uma moral desencarnada e pura de uma pureza impossível Mas uma moral em movimento dialético entre uma imensa boavontade e um alto rigor cuja pureza é a de não ter medidas nem em um nem em outro1503 Essa adesão aos valores do mundo do dinheiro por parte da cristandade adesão que lhe fez esquecer suas origens havia comprometido totalmente sua crítica de tal forma que ela se tornara hipócrita e moralista Mounier mesmo enquanto cristão poderia fazer a crítica que fez porque aprendera com Péguy que adesão não quer dizer conformação os mais duros ataques contra os partidos socialistas datam de sua juventude socialista e contra os clérigos dos seus anos cristãos1504 Para Mounier dizer como muitos cristãos do seu tempo diziam que não se pode condenar radicalmente o mundo moderno e os dirigentes porque o próprio Deus perdoa o mais duro dos pecadores é confundir caridade com o otimismo e com essa cômoda indulgência que não é senão na maioria das vezes indulgência para com um outro que é desde o início indulgência para consigo mesmo1505 Aos cristãos instalados e tranqüilos 1501 O teólogo protestante Wolfhart PANNENBERG reconhece Henry BERGSON como o iniciador desta perspectiva Matière et mémoire Essay sur la relation du corps à lesprit de 1896 De maneira geral no âmbito da pesquisa bíblica atual reconhecese esta concepção antropológica como a que pertence à essência da imagem cristã do homem ver CULLMANN Oscar Das Origens do Evangelhoop cit Capítulo VIII Imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos e do mesmo autor Cristo e o Tempo op cit passim 1502 Révolution op cit art I Confessions pour nous autres chrétiens 1933 p 373 1503 Traité op cit p 733 1504 Le pensée de Charles Péguy Oeuvres I p 16 1505 Révolution op cit p 331 570 disse Mounier Consciente de que sua doutrina é uma doutrina de integração e de uma harmonia finais o cristão vê naturalmente o mundo sob o aspecto de uma harmonia atual feita à imagem de uma vida tranqüila que não tem de extrair do espírito religioso senão a doçura e uma doçura corrompida como toda virtude que se separa do jogo do conjunto das virtudes1506 A cristandade não podia se sentir ilesa o problema de civilização havia comprometido toda sua estrutura O sinal visível do seu conluio com o mundo decadente era sua prontidão em condenar qualquer ação que apontasse na direção da subversão da desordem estabelecida Até a esperança noção fundamental do pensamento cristão que integra as três dimensões temporais num ato de adesão total da pessoa ao fiat voluntas tua estava corrompida por um saudosismo que já não tinha mais nenhuma marca do sinal de fé em uma promessa à qual se aderia com fidelidade Tratavase de uma esperança do futuro como vontade de tornálo um passado sem surpresas permitindo um repouso1507 Os estóicos tiram sua força de saber conspirar com o vasto universo o homem aristotélico seu equilíbrio de se sentir colocado no centro das revoluções celestes Pascal cambaleava com o transtorno das esferas e com o silêncio infinito dos espaços rasgados Agora em relação à deserção da chamada cristandade dizia Mounier A toda esta grande estratégia de reserva é tempo de dar seu nome medo da liberdade1508 E liberdade para a qual todo cristão se diz chamado Já falamos que a paz é um estado de força um estado exigente mas só para aqueles que a querem em sua expressão própria ou seja caminhando e se nutrindo lado a lado com a justiça o que não tem nada a ver com juridismo e nem legalismo A paz é um absoluto é a serenidade da ordem na justiça1509 Portanto Mais que a ausência de guerra a paz para o cristão não é sinônimo de tranqüilidade1510 E ainda A paz não é um estado fraco é o estado que pede aos indivíduos o máximo de despojamento de esforço de compromisso e de risco1511 Nietzsche não obstante os equívocos de perspectiva em sua crítica geral ao cristianismo na qual nunca fez distinção entre a projeção sociológica e as inspirações 1506 Ibidem 1507 Traité op cit p 315 1508 LAffrotment chrétien Oeuvres III p 60 1509 Manifeste op cit p 630 1510 Les Chrétiens devant le Problème de la Paix Oeuvres I 1939 p 790 1511 Manifeste op cit p 630 571 originárias sobre o que ainda voltaremos a falar1512 sendo estas sempre tomadas desde sua gênese como expressão de decadência todavia havia posto e tocado em questões fundamentais às quais a cristandade não podia mais protelar a resposta em seus refúgios imaginários O que importa ao destino do cristão de hoje é que o cristianismo de hoje tenha o recurso de dar na realidade de hoje uma resposta atualmente vitoriosa à mais rude das questões que o tem sacudido não somente uma revocação de razões uma vitória dialética mas um ultrapassamento real grifo nosso que envolva dissolva e transfigure na fé vivida a angústia depositada por Zaratustra no coração da consciência contemporânea1513 Já falamos que para o personalismo ultrapassamento é ultrapassamento mesmo e não simples negação dos valores Para o personalismo só se pode verdadeiramente ultrapassar os valores que se assume Portanto esta crítica tem alcance além do âmbito puramente religioso Mounier em relação a isso cita Nietzsche Aquele que é descontente consigo mesmo escreve Nietzsche é sempre pronto a se vingar nós seremos suas vítimas1514 Diante do nazismo e do fascismo esta expressão fazia muito sentido Todavia como é característica da densidade do pensamento nietzschiano que marcado pelo argumento do mentiroso1515 é sempre uma faca de dois gumes o que muitas vezes se esquece e ainda mais neste nível visceral em que ele perspectiva as coisas onde tudo é segundo Mounier causa e efeito serve também para os críticos que dela lançam mão como na verdade também álibi e esconderijo de adaptados e tranqüilos Aqui com o ar de graça da posse de uma crítica isenta de um lugar alto intocável de onde pensam que podem olhar altaneiramente toda manifestação de indignação contra a injustiça e que carregue qualquer ensejo de vontade de transformação como manifestação de ressentimento de decadentes Por aqui vemos o quanto uma verdade caractereológica psicológica por causa do seu caráter ambíguo que se presta tanto à causa como ao efeito pode se tornar álibi para adaptados e tranqüilos conservadores apesar dos ares de vanguarda que tomam em sua crítica da decadência1516 Todavia o ressentimento implica ainda alguma luta e não convém a todos os temperamentos ele o ressentido 1512 Ver abaixo Pessoa e existência 1513 LAffrotment chrétien Oeuvres III p 12 1514 Traité op cit p 373 1515 Ver RICOEUR Paul O simemso como um outro op et loc cit 1516 Falaremos mais sobre a armadilha da crítica contemporânea e o contrapé do relativismo fácil abaixo Pessoa e existência 572 não foge da realidade para o nada mas para um universo interior que ele substitui ao mundo real com o qual ele lida mais que com a realidade Estas construções imaginárias oferecem uma grande variedade de figuras mas elas têm em comum o fato de que substituem sempre uma adaptação laboriosa por uma adaptação fácil1517 É nessa consciência da impossibilidade de uma crítica totalmente segura que se deve perspectivar o pensamento de Mounier que procurava não cair nem na fuga da adesão confortável nem na fuga da crítica à decadência dos outros não menos confortável Falamos antes sobre a cumplicidade ideológica da chamada cristandade em relação aos valores do mundo do dinheiro Cumplicidade que a havia tornado subserviente ao esquema liberal de ordem social e daí seu conservadorismo Já vimos também o quanto a trajetória intelectual de Emmanuel Mounier seguiu no sentido de superar o impasse deixado pelo racionalismo em que a questão da religião era colocada como questão de foro íntimo para melhor servir à manutenção do esquema liberal de uma realidade compartimentada que convinha na sua arrumação racional do mundo Vimos o quanto a afirmação de um espaço laico é para o personalismo algo ainda a ser construído dado o quanto de metafísica religião mávontade e malentendidos há para serem expurgados deste desejado lugar de todos É necessário agora nessa crítica ao espiritualismo religioso falarmos um pouco do lugar do filósofo cristão como fora concebido por Mounier já que o espaço laico ainda está por ser construído e visto que para o personalismo a razão segundo o conselho kantiano não está nem no lado de quem em matéria de metafísica nega mais nem no de quem afirma mais IV11 Filosofia cristã ou pensamento de inspiração cristã Mounier vive uma época em que estava posto o dilema do filósofo cristão quer dizer daquela pessoa que não achava que o racionalismo era a última palavra em matéria de reflexão filosófica e nem que o ato filosófico deveria ser um ato parcial envolvendo apenas conteúdos avalizados pelo racionalismo e nem imparcial com se o filósofo tivesse uma condição especial diferente das demais pessoas para pensar o mundo sem ser atingido 1517 Traité op cit p 373 573 por ele como se ele tivesse um lugar privilegiado retirado onde poderia construir a objetividade bem tranqüilamente Eis aqui outra dicotomia perniciosa negada pelo personalismo nem parcialidade nem imparcialidade mas ato enquanto adesão total Para tanto vamos esboçar as linhas gerais da situação cultural em que Mounier e sua equipe se encontravam dentro dessa nossa atual preocupação neste período do entreguerras Relembramos o que Mounier descreve como o dilema posto ao filósofo cristão Não podemos aqui senão lembrar os traços essenciais deste filósofo cristão tal como o filósofo racionalista por suas recusas o levou a se definir É conhecido o dilema que envolvia este ou sois filósofos com vossa razão lhe dizia ele no consenso dos filósofos e vossa filosofia nada tem de especificamente cristã ou admitis a intromissão no curso de vossos pensamentos de uma revelação irracional e nos excluis da filosofia Coisa curiosa é que certos filósofos cristãos uns por empenho em garantir a independência das faculdades naturais outros com o objetivo de menosprezar toda filosofia possível em nome de um imperialismo da fé aceitavam os termos em que o dilema era posto o qual resolviam ora em favor de uma filosofia totalmente separada ora em favor de um fideísmo puro Fosse qual fosse a solução esta posição do problema encobria um defeito de método e um erro de fundo1518 Há dois problemas neste suposto dilema colocado pelo racionalismo 1 Que após Kant a afirmação Deus existe e Deus não existe têm o mesmo valor lógico o que não quer dizer que tal afirmação ou negação lógicas tomandose o objeto Deus no que ele realmente significa no seu contexto próprio no da intuição religiosa tenha apenas esse alcance lógico que a ingenuidade kantiana lhe quis dar1519 Não obstante o peso não pode estar do lado de quem afirma porque afirma ou de quem nega porque nega Sendo assim quer dizer logicamente nenhuma das partes está em condições de definir quais seriam as vias reais da solução do dilema 2 Não se trata de relativismo em que da parte do racionalista haveria maior isenção e maior autonomia quanto a pressupostos metafísicos do que da parte do cristão tratase do que o filósofoteólogo Paul Tillich chamará de correlação Após os estudos das formas religiosas na cultura percebese tanto o caráter específico em que as perguntas últimas podem ser respondidas pela esfera da cultura humana que sempre lidou com estes tipos de pergunta e tem proposto respostas ou 1518 Feu la chrétienté Oeuvres III pp 582 ss 1519 Ver OTTO Rudolf Das Heilige O Sagrado op cit 574 seja a esfera da religião mais a compreensão do quanto há de passagem religiosa sub reptícia na afirmação do domínio absoluto da razão racionalista e sua substituição do fundamento filsóficoteológico Deus por outro fundamento chamado Razão1520 Além disso nota Mounier Contrastavase a filosofia e a revelação como se se tratasse para o cristão de relacionar um sistema fechado sólido impermeável de conceitos com um sistema do mesmo modo fechado sólido e impermeável de dados revelados1521 Para Mounier o cristianismo não poderia ser tomado como um sistema fechado Sua dinâmica no âmbito da razão que instrumentaliza que decodifica que cerceia que delimita etc deve ser avaliada no quanto ele pode contribuir para a crítica de um aquém da razão incutido já na dinâmica dessa mesma razão instrumental Portanto no quanto o cristianismo pode contribuir equilibrando o além da razão kantiano que acabou inibindo em seu justo receio ao devaneio da razão por outro lado as possibilidades de uma razão renovada que para o personalismo como já vimos é entendida como a lógica da personalidade integral Mas também pela interpretação da Encarnação do Logos por Emmnauel Mounier como significando principalmente a afirmação no seio da história da transcendência na imanência em oposição à afirmação também realizada na história ao dualismo metafísico religioso não cristão que havia antes do cristianismo mantido o dualismo metafísico de um mundo além e um mundo aqui em baixo Como vemos antes de uma pura preferência religiosa as duas posições se dão na história quer dizer têm o mesmo caráter declaratório histórico Para Mounier tratase de experimentar qual delas se aproxima mais do sentido de emergência da pessoa concreta na história em sua luta pelo real Em outras palavras e nesse âmbito da discussão com o racionalismo qual delas pode melhor oferecer a propriedade de inserção de um elemento de desconcerto na orquestração totalitária de uma razão que depois de ter se valido de uma crítica à extrapolação de si mesma por causa de uma metafísica mirabolante colocavase agora como acima de tudo deixando ao ser humano criador um plano de ação que Mounier via muito aquém das suas possibilidades 1520 Ver TILLICH Paul Perspectiva da teologia protestante nos séculos XIX e XX ASTE São Paulo 2004 pp 96 ss Ver também THÉVENAZ Pierre La condition de la raison philosophique Etre et Penser Cahiers de Philosophie Édition de la Baconnière Neuchatel 1960 1521 Feu la chrétienté Oeuvres pp 582 ss 575 Esse é o preço de todo relativismo inclusive o do racionalista kantiano relativizase todas as experiências passadas para absolutizar a sua própria Aos olhos de Mounier uma filosofia cristã expressão que não obstante nunca fora bem aceita por Mounier pois se encontrava viciada pelo jogo do dilema racionalista já falado e que na verdade o diretor de Esprit acabaria rejeitando prestaria então um grande serviço para a complementação da crítica kantiana ao além da razão que por sua vez havia gerado um outro sono dogmático o sono do aquém da razão ou melhor um sono mantido dentro dos limites da razão kantiana É claro que para o personalismo razão já não pode se circunscrever ao racionalismo da razão kantiana mas é tomada de maneira mais ampliada como lógica da personalidade integral como já mencionamos O personalismo desta forma pelos prejuízos de um racionalismo estreito e temeroso do espírito capitulado nas malhas de um naturalismo também limitador propõe o despertar deste novo sono dogmático sono do aquém da razão em que a contemporaneidade tem hibernado E é também nessa perspectiva que se deve tomar a contribuição da reflexão de Emmanuel Mounier como contribuição ao pensamento contemporâneo Para Mounier não se trata simplesmente de buscar um lugar ao sol da filosofia como filósofo cristão Já vimos que a forma do dilema posto pelo racionalismo era inconsistente e comprometia qualquer noção de filosofia cristã a qual Mounier abandonou Para ele a superação do falso dilema tinha a ver com o estabelecimento de uma verdadeira crítica à modernidade que só poderia se dar em um diálogo aberto fora do jogo racionalista Podese admitir que o racionalista tome como figura eterna da razão este esquema estreito e secular que só tem como apoio as diligências da ciência e também imagine a revelação como um dado cego e extrínseco ao espírito1522 Quando vemos que a instauração do projeto da modernidade não é neutro que tem na sua base valores muito claramente afirmados como os móbeis da nova era utilitarismo pragmatismo racionalismo instrumental etc e que vivem hoje sob o encobrimento atual deste sono dogmático do aquém da razão de uma razão ainda tão alardeada como a imperatriz de tudo como veremos por seguidores e mutatis mutandis detratores não se pode ocultar a comunidade de visão de mundo destas posturas aparentemente contrárias Há um modo de ver as coisas segundo Mounier há uma cosmovisão cujas pistas quanto ao seu surgimento 1522 Feu la chrétienté Oeuvres pp 582 ss 576 podem ser apontadas e entendidas Em poucas palavras como relacionadas a uma determinada classe a burguesa que surge corajosa e empreendedora num primeiro momento e covarde e conservadora num segundo Perspectivando as coisas assim quer dizer de maneira axiológica vemos já o receio de Emmanuel Mounier em não fazer o jogo da conaturalidade das condições O jogo é sutil e o deslize para uma crítica à modernidade que nada mais seja que a reprodução ao seu modo e pela negação pura das regras de um jogo preestabelecido e permitido viciando a priori a colocação dos problemas é sempre possível Adiantaremos aqui a fim de esclarecimento uma palavra que retomaremos mais à frente1523 sobre os denominados pósmodernos Por conta mesmo de sua ainda filiação ou melhor capitulação ao paradigma redutor naturalista que em sua maioria mais expressiva faz com que estes se apresentem num impasse entre a permanência em uma atitude meramente crítica negativa e a necessidade de uma atitude prospectiva responsável que é exigida pela sociedade atual e para a qual escrevem e da qual são de alguma forma devedores Este fato acusa a realidade de que esta crítica não poderá avançar porque adota ainda em suas bases os mesmos valores que condenam na modernidade de maneira negativa é claro e às avessas Todavia acabam assumindo nesta atitude puramente negativa tanto os valores quanto as formas pelas quais os problemas são antecipadamente colocados pelo jogo da modernidade paradoxalmente fazem a crítica tomando o pressuposto de que estes valores e estas condições estabelecidas pela modernidade que antecedem os problemas constituem a única maneira de tratar as coisas e daí uma crítica pela crítica sem saída Podemos dizer que o personalismo à pergunta de Nietzsche sobre o valor do valor propõe que se continue perguntando sobre o valor do valor do valor Uma prova a mais desse ardil da razão moderna o qual Mounier não deixou de notar está em que se portanto uma análise como esta que estamos fazendo do pós modernismo enquanto uma crítica não final a uma crítica racionalista kantiana que parece se querer final faz sentido é porque à luz do problema do dilema colocado pelo racionalismo para a constituição de uma filosofia cristã não aceito por Mounier e em relação especificamente à crítica pósmoderna a priori já estão aceitas as condições do 1523 Ver abaixo Pessoa e existência 577 dilema propostas pelo racionalismo as mesmas sobre as quais o pósmodernismo encontra justamente a razão de ser e as bases de sua crítica Mas se Mounier percebe este ardil do racionalismo parece não entender que ele de longa data parasita a tradição intelectualista ocidental Essa compreensão faria com que este ardil fosse visto em um maior alcance do que o que Mounier percebeu na constituição da modernidade Sobre isso diz Mounier É mais surpreendente que filósofos cristãos tenham dado crédito por menor que seja a tal formalismo tão estranho ao espírito de são Tomás e de santo Agostinho1524 Todavia nem são Tomás nem santo Agostinho estão imunes da inoculação do paradigma intelectualista em suas reflexões que no primeiro é mais acentuada por sua clara filiação ao aristotelismo e no segundo1525 fica em tensão constante pela sua adoção dos princípios plotinianos que em última instância forçam no sentido de um acósmismo1526 uma concessão de positividade à matéria se houver muito subordinada e ínfima em sua metafísica hierárquica de constituição do ser perto da que é concedida ao Noûs apesar do esforço em contrário do Agostinho cristão Por outro lado não devemos perder de vista o esforço incansável do diretor de Esprit em ao mesmo tempo fazer a crítica e constituir as bases do que poderia prover um diálogo sem entraves fora do jogo de cartas marcadas do racionalismo da modernidade Já dissemos que Mounier se declarava abertamente cristão e católico Sabemos também o que ele entendia pelo conceito católico a partir já de uma correspondência de 1926 a Francisque Gay em que diz católico quer dizer humano e universal1527 Sabemos também que não havia nada que mais irritasse Mounier do que chamar Esprit de revista católica Estas observações são importantes para vislumbrarmos a perspectiva pela qual Mounier conduzia sua crítica ao espiritualismo de matiz religioso em sua vontade de realizar um diálogo fora da mentira Na verdade a noção de catolicismo usada muitas vezes quando Mounier poderia ali substituíla pela de cristianismo deve ser vista a partir de uma dupla preocupação da sua parte tanto em relação ao costume estabelecido de se 1524 Feu la chrétienté Oeuvres pp 582 ss Em nota loc cit Mounier cita alguns GILSON Lesprit de la philosophie médiévale cad I II BLONDEL op cit p 145 s Le problème de la philosophie catholique Bloud et Gay 1932 J MARITAIN passim 1525 Sobre a atitude um tanto esquizofrênica de Agostinho de tratar a corporeidade visto o resgate e a dignidade que o cristianismo lhe confere e os preconceitos pagãos plotinianos quanto às coisas referentes à matéria o que Agostinho quis manter em conjunto em seu pensamento ver acima pp 158 ss 1526 Ver INGE The Cristian Mysticism op cit p 120 s 154 243 1527 Mounier et sa génération op cit p 421 578 considerar naturalmente catolicismo romano como antonomásia de o cristianismo o que tiraria fora do cristianismo o Protestantismo a Igreja Grega a Igreja Copta etc quanto em relação à preocupação de aproximação à maioria predominante de católicos romanos franceses com a qual Mounier não queria perder contato uma representação fundamental para a constituição de um diálogo que ele queria todavia mais amplo ainda A maioria esmagadora dos franceses era constituída de católicos romanos truncar o diálogo nesta difícil tarefa de lucidez era tudo o que Mounier não queria e que os conservadores e ultramontanos adorariam que acontecesse A revista Esprit não sendo uma revista católica todavia inaugurou e realizou na história intelectual do Ocidente um ecumenismo real quando esta palavra era lembrada apenas como parte do empenho prático do filósofo de tradição protestante Leibniz em constituir o diálogo interconfessional religioso europeu Mounier em Esprit como vimos vai além como correspondentes na revista poderíamos encontrar cristãos católicos protestantes e ortodoxos ateus agnósticos maçons judeus etc que seguindo a diretiva que Mounier tomara de Charles Péguy não trapaceassem É importante notarmos por outro lado tanto a crítica de Mounier ao juridismo pernicioso do espírito romano como o que ele reconhecia enquanto por outro lado uma qualidade fundamental da tradição do pensamento católico romano a capacidade de ponderação equilibrada dos problemas Todavia devemos notar que se por um lado a noção de católico pode descrever a linha de inserção histórica por parte do cristianismo que toma nas mãos a partir do ano 500 a construção da Europa com o legado da formação do ser humano universal ou antes para evitar o essencialismo de qualquer pessoa singular sobre a face da terra fora das atribuições de raça sexo condição social etc enfim da paideia grega mas sem os preconceitos restritivos dos gregos1528 por outro esta noção de católico sempre fica passível das restrições advindas do seu costumeiro complemento romano Então quanto mais se é católico menos se é romano e quanto mais se é romano menos se é católico O catolicismo afirmado de Mounier deve ser entendido nesta perspectiva E sua adesão ao catolicismo deve ser vista tanto à luz de sua crítica ao juridismo quanto à luz de sua admiração por essa qualidade de ponderação dos problemas que realmente marca uma certa linha de inscrição histórica na trajetória da 1528 Ver JAEGER Werner Cristianismo primitivo e paideia grega Edições 70 Lisboa 1991 579 história do pensamento teológico da Igreja Romana que muito atraia como uma qualidade1529 a Emmanuel Mounier1530 É também sobre o problema que os pressupostos do modernismoliberalismo filhos do racionalismo do séc XIX haviam criado para o pensamento cristão que devemos perspectivar o ardil do racionalismo quanto ao problema de elaboração de um pensamento de inspiração cristã em relação ao conservadorismo para o qual tudo que lhe soasse estranho era tomado como pertencente ao partido contrário O medo do historicismo levava a suspeitar de heresia todo aquele que sugerisse que o pensamento cristão está no eixo da história de subjetivismo e de psicologismo a quem tentasse assinalar no diálogo do homem com a verdade a parte inalienável da decisão pessoal e da assimilação interior de panteísmo todo aquele que procurasse repensar a imensidão divina a suntuosidade do universo e os elos cósmicos do destino do ser humano1531 Era necessário esclarecer que relevar a densidade histórica de um evento não é historicismo tanto quanto afirmar uma metafísica não quer dizer que se seja aristotélico ou platônico conforme estes autores têm tradicionalmente sido interpretados no Ocidente A perspectiva pela qual Mounier via o problema ou seja em seu nível de civilização em seu nível de cultura o levava a perceber que as coisas não poderiam ser colocadas como se tratando de guerra partidária O neopaganismo de fundo deveria ser explicitado amplas camadas do mundo cristão estão hoje fortemente divididas por um 1529 Principalmente quanto à compreensão mais no campo doutrinárioteórico do que no da prática certamente mas enfim como constando como dado teológico histórico objetivo com o qual os teólogos conservadores teriam de lidar e o que mais importava para o humanismo de Mounier relevar em sua argumentação contra os fundamentalistas da noção de pecado original sobre a qual Mounier escreve Feu la chrétienté Oeuvres III p 584 A teologia católica não aniquila a natureza que comporta a razão criada boa esta permaneceu capaz de atos bons mas ferida no coração e não viciada pelo pecado original é uma natureza doente que doravante mesmo para o exercício de suas atividades próprias tem necessidade da cura e do socorro interior da graça 1530 Esta qualidade de ponderação dos bispos de Roma na história do cristianismo primitivo é reconhecida Além do fato de ser um patriarcado situado na Cidade do Império portanto com acesso às instâncias administrativas jurídicas e às facilidades que esta situação geograficamente privilegiada podia oferecer a constante recorrência que gerou um costume por parte dos outros bispos dos outros patriarcados ao bispo de Roma para que este emitisse alguma opinião sobre algum assunto mais problemático a ser resolvido em seu próprio patriarcado cuja opinião acatada vinda da parte do biso de Roma sempre se apresentava como a mais apropriada fortaleceu cada vez mais este costume de recorrência à opinião do bispo de Roma em tudo Esse fato não considerando o argumento teológico problemático da igreja romana que procura justificar sua ascendência como Igreja principal para toda cristandade com base no argumento petrino como também a participação ativa e marcante dos teólogos romanos na configuração dos Credos e dos dogmas aceitos pela cristandade de modo geral todavia deve ser levado em consideração Para isso ver WAND J W C História da Igreja Primitiva até o ano 500 Editora Custom São Paulo 2004 passim 1531 Feu la chrétienté Oeuvres III p 572 580 paganismo em espírito e se sentem satisfeitas com esta morte defendemse acusando Nossos pais descarregariam facilmente os infortúnios de sua época na maçonaria que lhes dava ensejo para isso mas que assumia em seus discursos proporções cômicas Nossos contemporâneos têm um pretexto melhor e mais grave em si o comunismo1532 Todavia essa guerrinha partidária aparecia aos olhos de Mounier como mais um adiamento da questão fundamental uma alienação uma mistificação interesseira querela de família Por conta disso Esprit convocava todos ao diálogo aberto Assim não é mais com alguns eruditos isto é um partido intelectual constituído que o pensamento cristão tem a ver agora mas com uma provocação de todo tipo com uma guerra filosófica total se me permitem a expressão em que não se trata mais de tapar uma brecha depois outra e assim por diante mas de por em jogo suas reservas profundas na reorganização do conjunto de suas forças das intransigências dogmáticas por uma noção viva e assimiladora da ortodoxia1533 Contra o conservadorismo do não toques em nada e mantenhas tudo do jeito que está Mounier propunha um novo conservadorismo se é possível dizer isso do tipo geladeira conservase apenas o que está dentro do prazo de validade1534 Em termos personalistas isto quer dizer o seguinte o que tem se provado como expressão duradoura e significativa do sentido da emergência da pessoa humana em seu movimento de liberdade na história enquanto luta pelo real é a base sobre a qual podese entrever o sentido possível da elaboração de uma verdadeira cultura humana civilizadora enquanto base para a construção de uma verdadeira comunidade de destino Todavia a sinuosidade do ardil da razão moderna não faz com que Mounier hesite em seu intento de buscar o caminho do diálogo aberto fora do impasse Uma tomada de posição decisiva nesta questão não pode se apoiar a não ser numa firme concepção da situação ontológica da razão e além disso da situação do ser humano de quem a razão é um princípio constitutivo O homem triunfante e intacto do racionalismo pensa com uma razão triunfante e intacta sempre capaz de seus objetivos que não são outros a cada momento que seus resultados1535 Para o personalismo a razão é um princípio constitutivo e não a definição essencial do ser humano Mounier conhecia a prova do 1532 Ibidem p 554 1533 Ibidem p 582 s 1534 Agradeço essa imagem ao Dr Ricardo quadros Gouvêa que assume para si este tipo de conservadorismo ou seja só do que ainda está dentro do prazo de validade 1535 Feu la chrétienté Oeuvres III p 584 581 exemplo de definição acadêmica do homem como bípede sem penas que fora jogado por cima do muro da academia1536 para se deixar seduzir pelo essencialismo racionalista Já vimos que a analiticidade querida pelo racionalismo não gera ganho real humano O estado de graça em que o racionalismo ainda se encontrava na época de Mounier1537 era possível porque ele encontrava e ainda encontra aprioristicamente assumida a manutenção sem crítica dos valores do utilitarismo pragmatismo etc que compõem a hierarquia axiológica adotada pela modernidade desde o seu fundamento Os ganhos auferidos pela analiticidade racionalista não são outros que os resultados já esperados dentro da lógica do mundo burguês do dinheiro Não há espaço para a criação para o imprevisível ambas características fundamentais da vida pessoal Como temos colocado a uma cauterização da consciência como essa a esse estupefaciente sob o qual dormitam as consciências para Mounier um debate interno não basta É necessário uma tomada de posição firme tanto intelectual quanto de engajamento Para Mounier o espírito da Igreja cristã não havia se tornado insípido ele ocupava numa plenitude perfeita o espaço incompreensível do amor Mas a letra está quase morta Suas expressões não vigoram mais seus gestos não mais convencem o mundo perdeu o segredo de sua decifração e a Igreja perdeu o código da língua dos homens O cristão está como um alienado neste mundo fala sem ser compreendido e acredita que são todos os outros que estão loucos1538 O mundo cristão é um mundo quebrado onde estavam as harmonias1539 E além disso a certeza sem a procura não pode ser senão jogo O triunfo sem o testemunho não pode ser senão força E eis aí como nasce este atalho preguiçoso este estado de mentira vaga e crônica que fará dizer no meio não cristão que o micróbio cristão não sabe viver senão em ar confinado1540 Mounier não vai se cansar de repetir que não é demais insistir em que o mundo cristão sociologicamente considerado em determinado momento da história não é o cristianismo e que pode mesmo exprimir muito infielmente o cristianismo Além disso 1536 Tratase da história da burla de um frango depenado jogado por cima do muro da academia pelo filósofo cínico Diógenes de Sinope pelo que então teria dito Eis aí vossa definição de homem 1537 Hoje o estado de graça até pelos menos antes da atual crise financeira se dava no âmbito da economia Mas já podemos ver o sorriso voltar ao canto da boca com a atual distribuição do dinheiro público dinheiro bom verdadeiro e lastreado como fruto da produção social realizada pelos Estados liberais aos bancos e agências de financiamento fomentadoras do dinheiro virtual 1538 Feu la chrétienté Oeuvres III p 538 1539 LAffrotment chrétien Oeuvres III p 23 1540 Ibidem p 65 582 segundo Mounier o mundo ocidental cristão pauta hoje seu comportamento médio por uma tabela prática de valores na qual a componente sociológica principalmente burguesa e pequenoburguesa há um século assumiu tal importância que mascara no mais das vezes com sua sombra projetada a tabela de valores propriamente cristãos1541 E não só isso Aos cristãos enfim diz Mounier Que o cristianismo possua as únicas palavras de Vida é uma coisa Agora que o mundo cristão seja hoje o seu único portador ou o principal portador que as vias de Deus sejam necessariamente as vias de seus juízos práticos majoritários é um outro problema1542 Todavia esta observação de Mounier que se dá dentro da dimensão religiosa não nos deve iludir quanto ao seu alcance Ela deve ser lida à luz do que já foi dito Assim o seu alcance poderá ser vislumbrado em outros âmbitos em que os fundamentos mesmo não ditos estão lá como autojustificação Estenderemos aqui propositadamente o sentido e o alcance em outros contextos a fim de prevenir qualquer dedução que pudesse se tornar muito demasiadamente simplificadora Assim Mounier poderia dizer Que o liberalismo possua o mérito de ter proclamado nos inícios da modernidade as únicas palavras sobre a vida privada a propriedade a vida econômica liberada é uma coisa Agora que o mundo burguês liberal decadente atual o mundo do dinheiro seja hoje o seu único portador ou o principal portador que as vias para a manifestação do que conduz às prerrogativas da vida singular sejam necessariamente as vias de seus juízos práticos majoritários é um outro problema Ou também Mounier poderia dizer Que o marxismocomunismo possua o mérito de ter dissecado as entranhas do capitalismo e proclamado num momento quando seus desmandos impediam que a maioria esmagadora dos seres humanos cuja produção mantinha o seu regime parasita de cunhar uma identidade social para fazer frente à minoria parasita ao apêndice social burguês dos capitalistas e nesse momento tenha sido um dos poucos que em alto e bom som proclamou as únicas palavras sobre a vida relacional sobre a comunidade sobre o valor social da produção etc é uma coisa Agora que o mundo coletivista atual que desfigurou os apelos da vida comunitária na caricatura da sua mística panteísta de subsunção da singularidade da pessoa ao todo sempre ditado por uma aristocracia partidária seja hoje o seu único portador ou o principal portador que as vias 1541 Feu la chrétienté Oeuvres III p 539 1542 Ibidem p 542 583 para a manifestação do que conduz às prerrogativas da vida comunitária sejam necessariamente as vias de seus juízos práticos majoritários é um outro problema Ou enfim ainda poderia dizer Mounier Que Nietzsche e Freud cada qual a seu modo possuam o mérito de ter proclamado contra a falsa segurança que mantinha esquizofrenicamente a suposta unidade do indivíduo moderno como fundador suficiente de uma outra suposta cultura civilizadora chamada ocidental que queria se manter como portadora do único sentido de verdadeira comunidade de destino demonstrando então o caráter ilusório da proclamada unidade de sentido que esta civilização espelhava na falsa unidade deste indivíduo moderno rachado e terem feito valer nos âmbitos dos discursos racionalistas muito seguros de si as dimensões obscuras viscerais e instintivas da história e da constituição singulares como parte integrante e atuante do composto singular da vida pessoal nos tempos da moral racionalistavitoriana nos inícios dos fins do século XIX e começo do XX é uma coisa Agora que o freudismo e o nietzschianismo atuais ressentidos de toda uma metafísica pessimista de um método que pulsa no sentido de um reducionismo instintivo e visceral de todas e quaisquer expressões humanas as quais querem reduzidas não importando suas especificidades a seus pressupostos de base o que lhes dá no freudismo ou o ar de cientificidade e de segurança final presumida em suas declarações ou no nietzschianismo o ar de vanguarda pela manutenção de uma metafísica pessimista em relação à pessoa comum em favor do ser de exceção que deve criar os valores que subjugarão o rebanho metafísica que querem como sinônimo de realismo de verdade sobre como as coisas realmente são e pela adoção de um relativismo fácil com base no qual sentem intocáveis e irrefutáveis atemporais as análises de Nietzsche mas que sobre o que ocultam toda uma gama de conservadorismo e ressentimento que dizem combater enfim que tanto um como outro sejam hoje os únicos portadores ou os principais portadores das vias que conduzem ao único e possível desvelamento das dimensões mais elementares da existência singular e que estas estejam inexorável e necessariamente ligadas às vias de seus juízos teóricopráticos majoritários é um outro problema E assim ad infinitum Para Mounier abandonado o projeto de uma filosofia cristã sobram as diretivas de um método agnóstico cristão Católico ou universal e humano como vimos ele fecha a porta não a toda filosofia cristã ou filosofia de inspiração cristã ou ainda 584 pensamento cristão como Mounier precisa1543 mas a todo sistema filosófico cristão não a toda certeza1544 mas a toda instalação na certeza não a toda ordenança temporal cristã1545 mas a toda utopia temporal cristã não à alegria mas à felicidade não à paz mas à tranqüilidade não à plenitude mas à satisfação1546 Para Mounier é a fé perfeita ou seja o ato pessoal de adesão total ao futuro que remove montanhas e não as profissões de fé é o amor perfeito quer dizer aquele que é a expressão que imita o ser enquanto não busca medida e é de uma efetiva e atuante generosidade que desconcerta a força e não as ditas inclinações caritativas Considerarseia um tanto fantasista o engenheiro cristão que esperasse que o fervor de sua piedade desentulhasse o terreno diante de seus trabalhadores Por que não se considera igualmente ridículo aquele que conta com uma compreensão racional dos imperialismos adversos para se garantir de suas ambições ou para se recusar o direito de resistir a suas empresas1547 IV12 O espiritualismo coletivista prolegômenos para a compreensão do fascismo e do nazismo segundo o personalismo Passemos agora à análise do espiritualismo coletivista ou não religioso ou pseudoreligiso ao qual Mounier dedicou não menos atenção Intercalaremos aqui à luz da orientação que o próprio Mounier nos dá tanto o fenômeno totalitário fascista como o hitlerista separados da crítica do diretor de Esprit à mística totalitária do comunismo de que já traçamos as aproximações Não obstante para Mounier A tentação é forte de reagrupar sob uma mesma espécie malgrado suas divergências notáveis as concepções fascistas nacionalsocialista e comunista Do ponto de vista das exigências da pessoa humana que julga em último recurso suas incompatibilidades mais essências desaparecem com efeito por trás de sua pretensão comum de submeter as pessoas livres e seu destino 1543 Ver MOUNIER III Responsabilités de la pensée chrétienne inverno de 19391940 in Feu la chrétienté op cit pp 569 ss 1544 Como vemos uma coisa é a vontade de certeza outra é a certeza inerente à própria vida sem a qual ninguém sairia sequer de casa e outra coisa ainda é a instalação na certeza 1545 Para o personalismo autoridade e autoritarismo são duas coisas distintas e de forma alguma sinônimas Não obstante a possibilidade de uma autoridade ser mantida sob o regime autoritário e não pelo reconhecimento meritório livre e funcionalintercambiável pelas pessoas constituintes da vida comunitária 1546 LAffrotment chrétien Oeuvres III p 22 1547 Les Chrétiens devant le Problème de la Paix Oeuvres I p 799 585 singular à disposição de um poder temporal centralizado que tendo reabsorvido nele todas as atividades técnicas da Nação pretende além disso exercer sua dominação espiritual até na intimidade dos corações Se nós classificamos à parte o comunismo é por respeitar as origens humanas muito manifestamente diferentes malgrado essa identidade característica de processo histórico1548 Uma nota introdutória sobre a situação vigente que cobria o período imediatamente anterior ao lançamento de Esprit 1930 até 1932 ano em que Mounier encabeça o projeto de lançamento da revista e que se encontra em Oeuvres IV introduzindo as correspondências de Mounier deste período pode nos ajudar a reconstruir a atmosfera em que se encontrava a geração de Emmanuel Mounier e assim ajudarnos a lançar alguma luz sobre a difícil tarefa na qual o jovem Mounier e sua geração jovem se lançavam Dezembro de 1930 Setembro de 1932 No momento em que vai aparecer o primeiro número da revista Esprit qual situação vai afrontar Emmanuel Mounier e seus companheiros Eles pertencem à geração do pósguerra aquela de 19141918 ninguém então ousava imaginar que poderia aí haver outras guerras mundiais guerra cujas conseqüências pesam brutalmente sobre a França e sobre o mundo Mais de um milhão e meio de homens mortos têm perigosamente enfraquecido a nação francesa exaurido sua vitalidade dizimado sua elite Péguy AlainFournier Apollinaire e tantos outros os jovens da idade de Mounier não têm quase conhecido homens de quarenta quarenta e cinco anos homens com os quais o diálogo é tão útil quando se tem vinte anos As letras francesas ficam sob a responsabilidade dos sobreviventes da geração simbolista reunidos em torno da NRF A política francesa está nas mãos de velhos Após a rápida desilusão que se seguiu ao armistício de 1918 é Poincaré quem em 1926 restabeleceu o franco estabilizado por dez anos a República burguesa a ordem capitalista gabase nos meios oficiais de ter renovado com a segurança do século XIX mas os jovens eles sabem que o mundo está quebrado o sistema capitalista condenado o futuro incerto Entretanto em outubro de 1929 estoura em Wall Street um crash retumbante que desencadeia uma crise econômica de uma excepcional gravidade A economia francesa relativamente abrigada por sua mediocridade mesma não provará senão uma configuração muito benigna A Rússia constitui um mundo à parte isolado desde o início pelo cordão sanitário 1548 Manifeste op cit 1936 p 499 586 com que se cercaram os vencedores de 1918 depois por sua experiência de construção socialista a Revolução em um único país No resto da Europa a crise alimenta os progressos do fascismo dominando a Itália após 1924 e em rápido crescimento na Alemanha o Partido nacionalsocialista é depois de setembro de 1930 o segundo partido alemão No resto do mundo o sistema colonial começa a se despedaçar mas só os olhos advertidos sabem decifrar estes sintomas O Japão anexa a Manchúria e vigia o resto da China A Sociedade das Nações suprema esperança dos negociadores do tratado de Versalhes revela sua impotência Um antagonismo quase irredutível opõe sempre a França a Alemanha Entretanto as lutas estéreis continuam a opor entre nós a direita e a esquerda os partidos o sindicalismo os meios cristãos mesmos atravessam crises interiores que obscurecem ainda os ecos dos escândalos financeiros e a inconsciência dos governantes diante da crise social ameaçadora1549 Sobre o hitlerismo1550 Mounier mantinhase bem informado Para isso o Diretor de Esprit contava com os informes públicos europeus que todavia tendiam a tratar o início do Partido Nazista Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães surgido em 1920 como apenas mais um movimento operário ainda sem perceber o seu alcance e capacidade destrutiva mesmo sabendo de suas ações táticas que combinavam o terror com os recursos da democracia parlamentar para subir ao poder desde o ano de sua fundação quando então também se dotaram de uma organização paramilitar O Alemão de Mounier só foi caminhar bem lá pelos anos de 19421551 mas ele também contava com informações de correspondentes e especialmente com as do exaluno de Max Scheler Paul Louis Landsberg ferrenho adversário do nazismo desde 1930 Ano em que depois de ter permanecido estagnado até 1929 o partido nazista conseguiu 107 cadeiras no Reichstag Parlamento Alemão 196 em 1932 e 288 em 1933 ano em que Landsberg no dia 1a de março perseguido pelos nazistas deixa a Alemanha exatamente quatro dias antes de Hitler tomar o poder e vai para Espanha onde é nomeado professor de filosofia na Universidade de Barcelona1552 1549 Mounier et sa génération op cit p 484 1550 Era como o nazismo era chamado na época 1551 Mounier et sa génération op cit p 759 1552 Ver o Prefácio de Jean LACROIX in LANDSBERG Paul Louis Essai sur lexpérience de la mort op cit pp 9 a 12 587 Em relação ao fascismo palavra que fora usada pela primeira vez em 1919 por Benito Mussolini na Itália e que corresponde a uma atitude política e um movimento de massa que adquiriu considerável poder na Europa entre a Primeira e Segunda Guerras mundiais tratavase como sabemos também de um partido que enfatizava o nacionalismo e a autoridade centrada na figura do líder Tanto em relação ao nazismo como ao fascismo o jovem Mounier pertencente à geração órfã da Primeira Guerra como vimos que se viu com a responsabilidade de escrever e dizer num momento da vida em que se deveria antes ouvir e aprender se viu também em seu empenho por realizar um diálogo amplo e sem entraves com o lançamento de Esprit na condição de ter de tomar o partido da lucidez fora das diretivas de compreensão do mundo mantidas pelo conservadorismo burguês reinante e estagnadas nos quadros da intelectualidade universitária Pertencente a uma geração sem muitas referências contemporâneas vivas Mounier é obrigado a realizar trabalho pioneiro na história da formação intelectual ocidental como temos tentado até agora mostrar É nos seus primeiros escritos que nos deparamos com as aproximações de Mounier ao fenômeno do fascismo Ali Mounier propõe uma definição dos métodos fascistas que contempla o seu apelo espiritual eles se propõem sempre além como uma reação mística da vida sobre os mecanismos da energia sobre o abandono da ordem sobre a desordem na efusão súbita das forças vivas tudo concorre para impor à imaginação as aparências de uma ressurreição do espírito1553 E ainda Nós chamaremos pois fascismo sobre o plano político social e econômico uma reação de defesa que abandona o liberalismo por um capitalismo de Estado mas sem revisar de maneira abalizada as bases mesmas do capitalismo primado do lucro fecundidade do dinheiro poder de oligarquia econômica ao menos aguardamos ainda que integra o movimento trabalhador no governo do Estado mas nas mãos e sob a ditadura do poder autoritário e por ele do capitalismo o qual não tem feito ceder que tenta enfim erguer o país sobre uma mística vital da salvação pública em seus inícios sobretudo e de grandeza nacional um e outro encarnados na mística de um homem chefe do partido encarnação do Estado revestido de autoridade totalitária em nome do Estadopartido exercendo por meio dele o governo dos seres humanos com o apoio de um policiamento espiritual Mas nós denunciaremos o fascismo mais profundamente como uma atitude humana e a mais perigosa demissão que 1553 Révolution op cit p 223 588 nos foi até hoje proposta Pseudohumanismo pseudoespiritualismo que curva o homem sob sua tirania das espiritualidades mais pesadas e das místicas mais ambíguas culto da raça da nação do Estado da vontade de poder da disciplina anônima do chefe dos êxitos esportivos e das conquistas econômicas Novo materialismo ao final de contas se o materialismo for reduzido ao ato de subjugar sobre todos os planos o superior e o inferior 1554 O interessante é atentar para o fato de que neste momento inaugural Mounier caminha na direção de encontrar uma definição do fascismo como um tipo de atitude humana o que abre a possibilidade de seu espectro fora do rótulo de simples evento datado e isso na possibilidade da apreensão dinâmica do seu jogo Em sua definição Mounier elenca a passagem de um estágio de maior apelo espiritual ao modo fascista com seus cultos até chegar enfim como todo pseudoespiritualismo acaba chegando à redução metafísica materialista que lhe está entranhada como subjugação sobre todos os níveis do superior e o inferior para usar a metáfora mítica da composição dos níveis do ser da ontologia clássica idealista como um unilateralismo injustificável e forçado do real para fins de controle de tudo com base numa idéia abstrata metafísica facilitadora de uma fuga da complexidade do real chamada matéria Vemos por aqui o caminho de uma ideologia negadora da pessoa única base sobre a qual pode se fundar as verdadeiras prerrogativas do espírito pois como já vimos a pessoa responde à definição de espírito perfeitamente o não inventariável Em uma outra aproximação ao fenômeno fascista diz Mounier Entendemos por fascismo toda ditadura espiritual de uma comunidade sobre as pessoas quer seja ela diretamente afirmada ou se imponha sob a cobertura de uma ditadura política ou econômica do Estado ou dos interesses particulares movimento fascista todo movimento que nos ameaça uma tal ditadura1555 Esta definição mais ampla de fascismo no sentido que alcança a dimensão social de sua expressão e defesa nos mostra ao mesmo tempo tanto a fraqueza de uma definição muito restrita ligada só ao chefe salvador como se não se tratasse da deserção de cada individuo fascista de suas responsabilidades na transferência de uma tarefa que competia somente a ele realizar ao chefe O fenômeno do chefe 1554 Révolution op cit p 224 1555 Révolution op cit p 347 589 salvador fascista é o fim de uma fase e início de outra Ele é nutrido por um lado por vários eventos que se acumulam cujos níveis profundos de significado o racionalismo não tem competência e nem condições de entender e por outro numa espécie de simbiose de encanto da sextafeira santa como dirá mais à frente Mounier sobre o povo alemão diante do nazismo nutridor Aqui o círculo se fecha mas não o das responsabilidades senão não teria sentido o esforço constante despendido por Emmanuel Mounier na tentativa de estabelecer um diálogo lúcido com os fascistas Um Proudhon e um Bakunine têm sido aqui mais clarividentes que Marx eles o têm explicitamente anunciado tanto sob sua forma trabalhadora como sob sua forma burguesa Toda democracia de massa está na perspectiva do fascismo ela o prepara1556 Para Mounier como veremos mais à frente e já como temos tentado perspectivar a questão da violência fora da tagarelice liberal a capacidade destrutiva de qualquer sistema o capitalista o fascista o nazista e o comunista todos negadores da pessoa é igual só mudando os requintes Para Mounier nunca houve maior desprestígio em tentar um diálogo com um fascista ou um nazista com um rifle na mão do que com um capitalista que decide irresponsavelmente a vida de centenas de milhares de pessoas com um telefonema do seu gabinete Na verdade como já vimos antes na definição do tirano em relação ao capitalismo haveria mais contato humano em relação ao fascista e o nazista nem que seja com base no ódio e em relação aos eventos dos quais eles se colocam claramente como responsáveis do que com o ser anônimo acima de qualquer suspeita que e o capitalista imita Notamos então apenas uma diferença específica do pai o capitalismo em relação aos seus filhos os filhos se apresentam uniformizados passíveis de identificação Essa tarefa de lucidez na compreensão dos totalitarismos se tornava ainda mais difícil naquele momento para Mounier e sua equipe por causa de alguns complicadores Num momento como aquele do entreguerras o mito da personalidade do chefe salvador já sendo sentido como apanágio do espiritualismo destes fenômenos totalitários implicava um esforço tremendo de esclarecimento lúcido por parte dos personalistas que se viam forçados a estabelecer uma desolidarização das prerrogativas autênticas da pessoa daquela sua caricatura monstruosa que se apresentava na história na figura do chefe totalitário Dificuldade acrescida porque os apelos ao visceral ao telúrico por parte destes 1556 Anarchie et Personnalisme op cit p 686 590 neopaganismos já encontravam de certa forma alguns constituintes que lhes davam uma certa consonância aquiescência e apoio cultural por causa de todo um movimento europeu de reavivamento dos cultos pagãos da fertilidade e à natureza e toda simbólica da raça da terra e do sangue que este tipo de culto trazia consigo e que caracterizam de certa forma também a história espiritual dessa época1557 Essa situação tendia a encobrir nessa tarefa de esforço de lucidez fora da mentira totalitária por parte dos personalistas uma dissonância gritante entre as prerrogativas da pessoa tanto em relação à desolidarização com os pseudovalores fascistas quanto em relação ao nazismo no âmbito da sociedade européia de então Fenômenos os quais o diretor de Esprit não via só como por um lado uma manifestação patente e sem rodeios da desfiguração individualista da pessoa incubada já no liberalismocapitalismo e que agora se escancara como caricatura em egoísmo concentrado de massa quer dizer como loucura de um indivíduo hiperbólico Estes fenômenos portanto prosseguindo na mesma intenção do individualismo em submeter a noção de pessoa por exemplo como fazia ainda a concepção caractereológica individualista de Renouvier1558 dominante na França naquele período colocavam então a Mounier e sua equipe como dever realizar realmente como podemos ver uma tarefa difícil de desolidarização dos valores próprios do universo da vida pessoal dessa sua atual deformação monstruosa Tanto mais pelo fato de que o que os totalitarismos mantinham em seu culto também já vinha recebendo seu sentido desde meados do século XIX do pangermanismo do qual extraia os temas da superioridade racial e cultural dos alemães e de sua suposta vocação para a hegemonia sobre todos os povos da Europa Na medida em que podemos entrever o caráter denso destes anos nos quais surpreendese por outro lado com uma avalanche de grandes produções em todas as áreas da cultura humana e ao mesmo tempo com um despertar e a utilização dos elementos mais obscuros mais elementares e viscerais das profundidades psicológicas humanas pela via do religioso e do simbólico por parte de partidos políticos oportunistas que alcançam o poder de fato e que se utilizam de tudo isso em sua retórica para fins de ordenação do mundo social é que podemos perceber a dificuldade de se tomar o partido da lucidez 1557 Para isso ver CLARKE Nicholas Goodrick Raízes ocultistas do nazismo cultos secretos arianos e sua influência na ideologia nazi Terramar Lisboa Portugal 2002 principalmente pp 19 ss 1 A visão germanista e 2 O renascimento moderno do ocultismo alemão 18801910 1558 Le personnalisme Oeuvres III p 429 591 nesse complexo emaranhado ideológico que não obstante Emmanuel Mounier e sua equipe tomaram Sua grande força é ter em 1932 ligado na origem sua maneira de filosofar à tomada de consciência de uma crise de civilização e de ter ousado visar além de toda filosofia de escola uma nova civilização em sua totalidade1559 Isso pode explicar o caráter extremamente selvagem da filosofia de Emmanuel Mounier e sua amplitude temática que alcança o tom de um verdadeiro projeto pedagógico integral pois para Mounier aos 27 anos de idade tratavase mesmo desde o primeiro artigo de Esprit1560 de uma crise de civilização Portanto tratavase da sua parte da recusa determinante de revoluções que haviam se tornado totalitárias por desprezo ao espiritual da recusa de uma ordem do mundo que engendra as catástrofes humanas e engajamento por uma outra cultura uma outra civilização onde pessoa e comunidade seriam igualmente reconhecidas em seu papel único insubstituível1561 Se não era fácil para Mounier manter o partido da lucidez para nós que temos que descrever o sangue frio do diretor de Esprit em seu esforço por não se deixar levar pelos a priores do conservadorismo e moralismo liberal burguês na busca da elucidação dos valores autênticos sobre os quais a mentira totalitária construía sua dominação e seduzia as consciências também não se trata de tarefa fácil Para tanto enfrentamos dificuldades tanto no que diz respeito ao método de abordagem da obra selvagemente filosófica de Emmanuel Mounier quanto no que diz respeito a estarmos inseridos em uma certa sensibilidade difundida na sociedade atual em relação a estes fenômenos totalitários e que toma a forma de uma quase unanimidade a partir da concórdia quanto a sua inegável malignidade mas que por outro lado força no sentido do estabelecimento de uma compreensão por assim dizer apenas escolar de seu fenômeno e não axiológica Transformandoo assim em mero objeto histórico em objeto de museu das idéias e tendendo consequentemente ao uso ideológico de escamoteamento do seu caráter incubado e ativo na própria ideologia liberal sob a qual vive a maior parte do mundo atual Hoje contamos com uma grande sensibilização e unanimidade por parte das pessoas em geral em relação à malignidade que representou para a história da humanidade os fenômenos totalitários do que não há 1559 RICOEUR Paul Une philosophie personnaliste in Esprit Emmanuel Mounier 19051950 número especial em homenagem a Emmanuel Mounier op cit p 861 1560 Em Oeuvres I Refaire la renaissance março de 1932 p 137 1561 Prefácio de Guy COQ à nova edição separada de Refaire la Renaissance Éditions du Seuil 2000 592 dúvida As imagens degradantes dos campos de concentração de Hitler expressam o nível desumano a que chegou tal degradação O filósofo judeugermânico perseguido pelo nazismo Theodor W Adorno chega mesmo a colocar em dúvida apesar de ter continuado sua obra literária até o fim de sua vida sobre se Será possível fazer poesia depois de Auschwitz Todavia não se sabe em relação a eventos mais contemporâneos se algum intelectual polonês fez a mesma pergunta depois do esquartejamento da Polônia ou se algum intelectual russo depois dos Gulags ou se algum intelectual armênio depois do genocídio armênio etc Portanto esta ênfase esta publicidade centrada com razão na malignidade do nazismo pode ocultar por outro lado a parte importante de um aspecto mais geral do elemento de destrutividade contido na cultura ocidental e mundial para o qual a reflexão personalista não poupou esforços em chamar a atenção Mas na medida exata em que se tratava de um evento humano baseado em determinadas opções humanas nem mais nem menos do que isso sem por outro lado cair na metafísica cômoda do pessimismo no catastrofismo Não podemos então esquecer além do massacre dos judeus da dizimação dos povos Incas pelos espanhóis da violência aos povos ciganos do esquartejamento da Polônia do genocídio armênio da escravidão africana e também dos atuais campos de concentração a céu aberto que comprometem a existência de milhares de seres humanos em nossas próprias metrópoles atuais em plena realidade neolliberal da chamada democracia representativoparlamentar em plena economia dita de livremercado capitalista etc Seguindo a inspiração personalista a comunidade judaica não pode permitir que os seis milhões de judeus mortos deixem de representar um apelo humano antes que apenas étnicoreligioso A acusação de Hitler não pode fazernos perder de vista que o nazismo não nasceu do nada ex nihilo Portanto esse mal para o personalismo de Mounier não tem densidade metafísica suficiente para estabelecer o pessimismo absoluto e logo a fuga da responsabilidade e indiferença confortável que gera para os bem situados o sentimento de sua inexorabilidade de seu determinismo determinante Para o personalismo não há determinismos absolutamente determinantes Pois é sempre sobre os determinismos que compõem a dimensão das aderências necessárias sobre as quais a pessoa encontra o apoio para o seu desenvolvimento na verdade sobre o domínio da pessoa das leis que regem sobre um campo em que predominava seu desconhecimento logo seu determinismo que 593 ela constrói a sua liberdade O desenvolvimento da ciência é sobre essa ampliação da liberdade em um domínio que se considerava sob os determinismos um exemplo claro do que Mounier quer dizer Além disso nota Mounier O pessimismo intelectual tem sempre estado ligado a um certo aristocratismo orgulhoso1562 O pessimista o é então estrategicamente para poder estabelecer argumentos no sentido de justificar o seu medo de compartilhar de participar a sua recusa e negação do modo de ser originário da relação para fundamentar a sua dureza de coração Todo pessimista pode permanecer dizendo que é porque se encontra confortavelmente instalado Sobre o catastrofismo Mounier reconhece que em sua base permanece o caráter de falta de futuro Nesse sentido indo na contramão da interpretação corrente acerca do ano 1000 como tempo de catástrofe Mounier vai elencar ações por parte dos medievais daquele período que longe de apoiar o catastrofismo indicavam o sinal próprio do sentido da escatologia cristã um novo céu e uma nova terra ou seja o sentido neotestamentário de que o fim do mundo representava para eles o fim de um mundo1563 Este aspecto da escatologia cristã quanto ao fim do mundo fomentou naquelas pessoas segundo Mounier uma vida de ação e atividade no sentido mesmo para que o fim chegasse Longe de se deprimir a atividade destas pessoas possuídas pela convicção de um fim próximo da cidade terrestre recebeu ao contrário um tipo de golpe de chicote Henri Pirenne sublinha o otimismo e o sobressalto de energia que marcam este fim do século XI e seu contraste com os anos precedentes A população aumenta a vida econômica é retomada numerosos monastérios são fundados O grande período de construção das igrejas começa alguns anos antes do ano 1000 ele não tinha sido pois provocado como se tem sustentado como sinal de reconhecimento para com Deus que não havia destruído o mundo como se o evento do Reino de Deus fosse para uma consciência cristã uma catástrofe a se evitar ou a retardar Muito pelo contrário se quer oferecer a Deus os edifícios onde ele possa dignamente descer1564 A comparação e o contraste que Mounier precisa são claros o fim do mundo dito laico burguês e racionalista ao se transformar em um catastrofismo no sentido que esta mesma laicidade no alvorecer de sua fase heróica conquistadora enfrentou e 1562 Appendices de Révolution personaliste et communautaire Oeuvres I p 843 1563 La petit peur du XXe siècle Oeuvres III p 345 s Todavia a leitura integral do artigo Pour un temps dapocalypse será muito proveitosa quanto a esse assunto 1564 La petit peur du XXe siècle Oeuvres III p 346 594 combateu com razão contra a decadente Idade Média demonstra hoje o seu verdadeiro caráter covarde arredio impotente e incapaz depois de ter fracassado na tarefa que tomou nas mãos pela qual se propôs criar sobre suas bases a sua imagem e semelhança o sentido de uma comunidade de destino para o Ocidente mas que se mostra hoje um fracasso O espírito decadente de catastrofismo que serviu de argumento à burguesia conquistadora do início contra o que comumente se define como o cristianismo em si resquício de pensamento mágico a ser descartado e isso na intenção de estabelecer o chamado espaço laico fora das amarras da religião acabou se tornando mutatis mutandis o mesmo da chamada laicidade burguesa de hoje que teima em permanecer portadora de um catastrofismo que funciona como álibi para a inação a letargia e a indiferença resignada diante de uma metafísica determinista sem futuro1565 O impressionante nessa inversão é que enquanto para o pensamento cristão o fim do mundo escatologicamente tomado ou seja fim de um mundo e início de um novo continua nesse sentido sendo mais realista porque é aberto ao futuro com suas possibilidades a um futuro aberto sem uma metafísica preestabelecida a não ser a que sugere a experiência mais primitiva da pessoa como justamente ser para o futuro da pergunta que se é levado a fazer quanto a se se ter uma metafísica é um problema para a constituição do espaço laico ou não poderíamos passar para outra pergunta que seguindo a perspectiva personalista parece mais essencial Qual metafísica dessa história já que possuir alguma metafísica é sempre algo inevitável se apresenta como a que porta os elementos mais próximos desse sentido de um futuro aberto que o personalismo vê como integrante fundamental ao ser da pessoa criadora livre e responsável Esta pergunta Mounier faria antes como uma provocação uma problematização do que como intenção apologética Não nos interessa fazer aqui apologética do cristianismo tanto pelo fato de que não existe apologética numa religião de testemunho e não simplesmente de argumentos diante de um testemunho se se quer relevar o seu caráter próprio no âmbito da experiência religiosa que é o que o personalismo de Mounier tenta fazer só pode haver decisão a 1565 O esforço atual de compartilhamento lúcido por parte de Castoriades de sua estupefação e que se dá através do seu trabalho crítico tem nesse sentido a nosso ver toda razão Ver em Português CASTORIADES Cornelius Vol I As encruzilhadas do labirinto Paz e Terra Rio de Janeiro 1987 vol II As encruzilhadas do labirinto2 Os domínios do homem 1987 vol III As encruzilhadas do labirinto3 O mundo fragmentado 1992 Em relação a este último texto ver o artigo originalmente em Inglês falado na Boston University em 19 de setembro de 1989 traduzido pelo próprio CASTORIADES para o Francês A época do conformismo generalizado pp 13 ss 595 argumentação sobre suas razões é sempre posterior o que já é como diz o próprio nome uma racionalização Todavia colocamos as coisas nesta perspectiva hiperbólica por assim dizer para que nos venham à tona alguns elementos fundamentais que podem estar ofuscados pela retórica dominante racionalista burguesa e liberal em relação a estas questões que nos tocam aqui e cujo terreno tem de ser preparado Enfim para o personalismo o pessimismo quanto à possibilidade de transformações sociais benéficas fora da liberal força das circunstâncias ou seja através da participação responsável da pessoa concreta fora dos quadros sociais claramente patológicos é fenômeno tipicamente burguês mais precisamente próprio do espírito pequenoburguês de vontade de instalação Todavia depois destas digressões que consideramos necessárias podemos agora entrar mais diretamente no nosso assunto Para o personalismo não há eventos isolados mas sim eventos que nós isolamos Para a ontologia personalista que vê tudo sob o modo de ser da relação a realidade se apresenta sempre num continuum o que não quer dizer eliminação da diacronia pelo contrário e temos visto isso aqui mesmo neste nosso estudo Para o personalismo como já tivemos a oportunidade de ver o movimento de personalização é feito de uma mistura densa e tensa dialética de continuidades e descontinuidades A ontologia liberal por outro lado que vê tudo sob o modo de ser da separação e o seu relativismo interesseiro racionalista que proclamou a descontinuidade até é claro à implantação da sua razão querem forçar a humanidade inteira no sentido da crença de que a única continuidade válida é a que ele proclama como tal e que os eventos chamados por ele isolados são descontinuidades sem nenhuma relação com esta sua continuidade proclamada que ele quer sempre válida em si mesma até nisso o capitalismo quer sair incólume Ora para o personalismo que com já vimos adota a história como o verdadeiro palco dos eventos nossa capacidade de empreender recortes à realidade digase de passagem uma capacidade infinitamente inferior à de ver as coisas sob o modo de ser do continuum pois este exigiria mais criatividade no trato dos problemas humanos em geral não pode nos levar à ilusão de que a realidade seja em si compartimentada como quer o liberalismo Em outras palavras para o personalismo mantendose em sua perspectiva ontológica relacional como veremos a seguir o nazismo e o fascismo são filhos bastardos do capitalismo como também o comunismo Para Mounier qualquer análise 596 destes fenômenos que não inclua sua descendência e filiação capitalista é pura mistificação e moralismo a serviço do espírito burguês IV13 O fascismo e o nazismo Apresentadas estas linhas gerais da perspectiva sobre a qual se dá a crítica de Emmanuel Mounier ao fenômeno dos totalitarismos passamos agora a entrar em alguns detalhes mais específicos de sua crítica que consideramos os mais paradigmáticos nessa sua busca da lucidez fora da mentira Primeiro em relação ao fascismo e depois ao nazismo Para Mounier não se encontra nem no fascismo nem no nazismo a idéia de uma comunidade humana e sequer de uma marcha para a universalidade portanto não são fenômenos como o da burguesia conquistadora do início que tomam nas mãos um papel pedagógico universal Consideramos por conseguinte que para o fascismo italiano como para o nazismo a idéia de uma comunidade humana e de uma marcha qualquer à universalidade seja com todas as garantias que se possa tomar em uma via em que as ideologias prematuras têm semeado a destruição não se coloca1566 Mas antes disso Mounier observa que paralelamente a sua afirmação antiintelectualista o fascismo é como já vimos uma reação antiindividualista Aqui ainda nós não poderíamos senão felicitálo por esta reação observa Mounier se em rejeitando o individualismo ela não comprometesse no mesmo golpe as garantias inalienáveis da pessoa humana e querendo restaurar a comunidade social ela não estabelecesse a opressão1567 Mounier mantendo o foco da pessoa elenca uma série de elementos constituintes deste fenômeno complexo que é o fascismo os quais possibilitam ao diretor de Esprit em 1936 construir uma pista de sentido para a compreensão desta nova mentira da pessoa e logo sua superação Já dissemos que para Mounier quando os fascistas demonstram que o EstadoNação é a única fração da espécie que é organizada para alcançar os objetivos da espécie é sobre a biologia social e não sobre a pessoa que eles associam sua doutrina Quando eles se aferram a demonstrar que o Estado é a necessidade espiritual do individuo 1566 Manifeste op cit p 503 1567 Ibidem p 503 597 expressão completa do devir do espírito a síntese do universal e do individual e que assim ele encerra em si as razões tanto do nosso direito quanto do nosso dever as razões da extensão de nossa individualidade quanto de seus limites segundo Mounier não há mais dúvida sobre qual é a ontologia antipersonalista que anima o sistema Na linguagem de Mussolini e de muitos de seus comentadores segundo Mounier não se deve somente enxergar um rigoroso estatismo jurídico tratase de um verdadeiro panteísmo religioso no sentido estrito o que inspira suas fórmulas O Estado no fascismo segundo Mounier me é mais interior a mim mesmo que eu mesmo a verdadeira liberdade é adesão e fusão total em sua vontade que engloba e anima minha vontade o fim do indivíduo é sua identificação ao Estado como o fim da pessoa para o cristão segundo Mounier é a identificação aqui sobrenatural e elevadora da pessoa com Deus1568 Mounier como temos vindo notando percebe o caráter religioso que estes fenômenos tomam e os elementos religiosos de que lançam mão para justificar suas ações No que sem dúvida a história mostra que foram bem sucedidos Com isso se nos esclarece duas coisas importantes Primeiro o sentido profundo psicológica e religiosamente falando em que se localiza o atrativo de uma comunidade social Quer dizer aquilo que realmente a move num sentido em que faz com que se sinta portadora de uma comunidade de destino está do ponto de vista do sujeito aquém do que o racionalismo estreito pretende que esteja quer dizer em suas instituições democráticas fundadas no juridismo abstrato e além no sentido da proclamação de um futuro real segundo o personalismo como a possibilidade de um ultrapassamento mais amplo do que o oferecido pelo capitalismo no seu frisson Este reduz o que seria o movimento de uma vida plena pessoal à corrida diária de uma maioria esmagadora atrás do sustento quer dizer de dinheiro Corrida na qual o capitalismo financeiro e de especulação já não pode dar nenhuma garantia de êxito a esta multidão quanto à consecução pelas vias chamadas honestas do serviço prestado do ideal burguês de felicidade que o capitalismo por outro lado continua a proclamar retoricamente como possível a todos como universal Ele portanto segundo o personalismo reduz a realidade humana a seu joguinho interesseiro colocando o ultrapassamento da pessoa que é um ato intrínseco ao movimento de personalização como circunscrito ao ganho de dinheiro Por sua vez a este ganho de dinheiro proclamado 1568 Manifeste op cit p 504 Esta citação completa se encontra acima p 384 s 598 pela ideologia do capitalismo e aceito pela sociedade como o sentido da vida e o meio de conquista da felicidade burguesa logo em seguida o mesmo capitalismo retira as possibilidades reais e o nega à maioria esmagadora obrigandoa a se ver reduzida a uma vida medíocre de busca obstinada e sem garantias do dinheiro prometido fazendo com que ao mesmo tempo esta multidão nem ganhe o dinheiro suficiente para a consecução da felicidade burguesa diariamente veiculada e nem consiga alçar o nível de uma vida minimamente digna a qual o regime capitalista não permite que se expresse acima da lógica infernal da sua analiticidade de morte do epidérmico e da mediocridade dos pseudo valores cantados pelo mundo do dinheiro Como diz Denis de Rougemont sobre essa roda encantada essa analiticidade de extremo malgosto e necrófila esse engodo cultural e maciço primeiro se cria a necessidade do dinheiro depois se dificulta o seu acesso1569 Mais adiante Mounier continua sua tentativa de elucidação O individualismo nietzschiano que se afirma em algumas palavras de M Mussolini a complacência do fascismo inicial para com o liberalismo econômico não devem nos iludir O anti personalismo do fascismo italiano é radical O indivíduo vive na Nação logo ele é um elemento infinitesimal e passageiro e aos fins da qual ele deve se considerar como órgão e instrumento Gino Arias1570 Não somente negligenciável a pessoa é o inimigo o mal É aqui que joga o profundo pessimismo sobre o ser humano que está na base do fascismo como de todas as doutrinas totalitárias depois de Maquiavel e Hobbes o indivíduo tende inevitavelmente grifo nosso ao atomismo e ao egoísmo quer dizer ao estado de guerra à insegurança e à desordem Só o artifício da razão engrenada sobre um hábil mecanismo das paixões dirão os latinos ou só a afirmação incondicional da força pública dirão os germânicos podem engendrar a ordem civil bem longe de um mínimo de governo segundo a exigência inspirada pelo otimismo rousseauniano é um máximo de governo que é necessário ao indivíduo Esta ordem é indiscutível porque só ela é humana e espiritual Ela é mesmo divina pois o Estado na literatura fascista se afirma muitas vezes como uma Igreja mais que uma Igreja pois não reconhece realidade às pessoas e nem aos grupos intermediários senão como integrados em sua própria substância1571 1569 Pensée avec les mains op cit passim 1570 Em nota de MOUNIER Discurso de 10 de março de 1929 1571 Manifeste op cit p 504 Passagem já citada 599 A perspectiva histórica de tratamento das questões por Emmanuel Mounier não deixa de fazer com que ele toque nos elementos genéticos do fascismo Já dissemos que para o personalismo não há fatos isolados mas fatos que nós isolamos Falamos antes do espírito de catastrofismo que ronda a burguesia contemporânea e vemos na última citação Mounier falar de pessimismo ao ligar o fascismo com o profundo pessimismo sobre o ser humano que está em sua base como de todas as doutrinas totalitárias depois de Maquiavel e Hobbes o indivíduo tende inevitavelmente grifo nosso ao atomismo e ao egoísmo quer dizer ao estado de guerra à insegurança e à desordem Em seguida vemos Mounier falar do otimismo rousseauniano que é negado no fascismo bem longe de um mínimo de governo segundo a exigência inspirada pelo otimismo rousseauniano é um máximo de governo que é necessário ao indivíduo Ora com isso Mounier não quer dizer que não haja nenhum otimismo no fascismo ou no maquiavelismo ou em Hobbes O que ele pretende enfatizar é seu pessimismo em relação à pessoa que no racionalismo como vimos toma a forma do indivíduo que se deixa inventariar sob suas formas sociológicas para que melhor sirva as suas intenções definidoras Neste nível de tratamento dos sentidos orientadores gerais tais como são o do otimismo e o do pessimismo não podemos nos esquecer de que se trata para o personalismo antes que de estruturas metafísicas do ser sim de atitudes pessoais que fundam metafísicas e valores Portanto são complexos e apenas simplificados pela nossa capacidade de racionalização Nenhum ser humano podese dizer enquanto permanece vivo é absolutamente pessimista ou otimista pelo simples fato de que é impossível viver conseqüentemente qualquer uma destas maneiras na forma absoluta em que elas perspectivam as coisas ou seja como um puro otimista ou um puro pessimista Nem Schopenhauer 17881860 que afirmava que o nosso maior problema é querer continuar vivendo foi tão conseqüente com sua filosofia pelo contrário viveu uma vida longa para os padrões do século XIX 72 anos e esecreveu textos de orientação sobre Regras de conduta para bem viver Contra o comodismo que estas posturas absolutas provocam em seus defensores Mounier quer perceber as localizações estratégicas em que elas se encontram nestas reflexões que aos olhos do personalismo se apresentam sempre como parte do adiamento da pessoa concreta em proveito de alguma outra coisa no caso aqui do poder centralizador 600 Nesse sentido o caráter dito mais racional de um Maquiavel e de um Hobbes diante de uma ideologia mais simbólica como é a do fascismo o chefe como símbolo a nação com símbolo o povo como símbolo o sangue como símbolo etc o que lhe possibilita localizar sua metafísica no além das formas sociais e exigir o sacrifício do indivíduo a esse todo que ultrapassa as formas não deve ocultar de fato onde realmente se localiza a unidade de sentido que estas duas posturas a do racionalismo e a do fascismo aparentemente distantes se encontram Ora tanto o racionalismo absolutista quanto o fascismo mantêm um mesmo pessimismo quanto ao indivíduo feixe de paixões e desejos descontrolados e um mesmo otimismo na centralização do poder nas mãos de um único e só como a forma viável de controle dos desejos e paixões desvairadas de todos Um quer fundar o poder centralizador com argumentos racionais buscando as formas pelas quais o poder se estabelece com suas próprias leis fora da submissão de uma religião ditando pela apreensão racional as condições de fato pelas quais ele melhor será mantido Maquiavel pela sabedoria da história e Hobbes pelo método racional matemático o outro é a exacerbação da autonomia do poder que encontra no poder de fato não só a matéria que dá o sentido da forma mas a unidade mesma da matéria e da forma Como dissemos para o personalismo o ser se dá sob modo de ser da relação em que contra a tentativa da relativização fácil e interesseira do racionalismo relativiza os outros para absolutizarse a si mesmo ele opõe o desconcerto do continuum da relação e contra as formas panteístas do Estado por outro lado ele opõe o desconcerto da descontinuidade como a manifestação da liberdade dimensão mais própria do ser do futuro que é a pessoa responsável senhora do seu meio em sua luta pelo real Passemos agora ao outro filho bastardo do capitalismo o nazismo Em nota em um texto de 1933 é possível já constatarmos as dificuldades na análise de fenômenos tão recentes como eram o fascismo e o nazismo em relação aos quais a geração de jovens intelectuais à qual pertencia Emmanuel Mounier se propunha a realizar uma análise lúcida fora dos quadros do racionalismo decadente Nesse sentido duas tendências de análise dos fenômenos totalitários são anotadas por Mounier em relação à Ordre Nouveau movimento de divulgação e de ação política mantido desde 1930 ano de sua fundação por Alexander Marc seu principal animador como órgão de divulgação que quando do lançamento de Esprit em 1932 se colocou como seu veículo de extensão políticorevolucionária e como 601 prosseguimento práticopolítico A primeira tendência anotada por Mounier era expressa pelo diretor da Ordre Nouveau Na origem espiritual do movimento nacionalsocialista lemos nós se encontram os germes de uma posição revolucionária nova e necessária1572 A segunda era expressa no mesmo órgão por Arnaud Dandie No coração do cesarismo há uma trapaça a centralização da pátria em perigo a hierarquia rígida da administração militar tudo isso em um só golpe passa ao serviço da ditadura o sufrágio que devia servir de controle exercido pelo povo sobre seus representantes tornase plebiscito quer dizer o ponto de apoio mais sólido do tirano demagogo Em uma palavra o servo o Estado passa ao nível de rei pois o que faz a ditadura não é tanto o ditador quanto o aparelho de que ele se serve para os fins geralmente desinteressados mas sempre contra revolucionários Entre estas duas profissões diz Mounier devese escolher1573 E é sob essa dupla perspectiva que devemos delinear a crítica ao nazismo realizada por Emmanuel Mounier Sobre o nacionalsocialismo diz Mounier retomando ele também a herança histórica do romantismo germânico se faz uma mais confusa metafísica das forças telúricas e do lado obscuro da vida Enquanto que o racionalismo aparece como um tipo de fuga para o progresso de horror instintivo por todos os elementos primários do ser humano o misticismo nazista ao contrário como escrevia Tillich às vésperas da revolução nota Mounier é um retorno apaixonado do ser humano as suas origens Enfraquecido enervado pela civilização contemporânea segundo Mounier o ser humano aí se crispa sobre si remonta às fontes de sua carne ele procura aí ajuda e proteção por este reflexo de adulto desamparado que vai se encolher contra sua infância O sol o sangue a nação lhe são um novo lebensraum diz o diretor de Esprit um novo espaço orgânico de vida Ele o ser humano está mais perdido isolado nas grandes solidões modernas Por outro lado observa Mounier quanto a este espaço vivo ele o toca com suas mãos ele o mede com seu olhar ou seu trabalho ele sente bater nele o ritmo de seu sangue puramente germânico1574 Com isso vemos que o nazismo nasce não de um ex nihilo e nem de uma superabundância mas de uma falta Falta de sentido humano mantida a todo custo pela algaravia da retórica liberal e que é o tempo de espera nesse seu jogo interesseiro abstrato pintado de sofisticação racional e que não se exauriu ainda em sua capacidade ludibriadora 1572 Révolution op cit p 228 Bulletin de lON decenbre 33 1573 Ibidem p 228 1574 Manifeste op cit p 502 602 sem nenhum vislumbre de criação de um espaço para a participação efetiva da pessoa responsável na sua nova versão neoliberal da oportunidade da revolta dos elementos mais viscerais dos seres humanos sempre prestes a subirem à tona para prestação de contas É nesse sentido que devemos entender as duas saídas possíveis do neoliberalismo ou em países que tenham alguma história de avanço em termos de emancipação humana e de contato com a dimensão da liberdade continuar seu jogo abstrato transformando todos os problemas sempre em problemas individuais afastando da cena do crime o capitalismo e suas instituições pseudodemocráticas ou em países em situação diversa investir pesado no poder coercitivo de polícia por parte do Estado atribuição como já vimos que o neoliberalismo nestas condições não quer nenhum pouco diminuídas Não podemos estender aqui a crítica de Mounier e sua equipe em Esprit à época ao fenômeno do imperialismo europeu Todavia podemos dizer que graças ao imperialismo os países mais poderosos da Europa e os Estados Unidos conseguiram estabelecer as condições materiais em seus próprios territórios e não no das colônias sempre no empenho e sentido de suprir transformando o que vinha do sentido de afirmação da pessoa em seu movimento de emergência veiculado pela maior consciência social cultivada historicamente na Europa como se tratando de reivindicação individualista liberal Por meio dessa estratégia eles conseguiram adiar novamente a pessoa em seus próprios territórios neutralizando o seu movimento de emergência interpretando e reduzindo o sentido da história das conquistas humanas ocorridas na Europa ao desejo de conforto e instalação pequenoburguesa Por meio então em termos das demandas da consciência social que não tomaram o sentido como queriam os personalistas de uma revisão de suas instituições na criação de uma civilização em acordo com as prerrogativas da pessoa E isso por parte dos impérios europeus através da sangria das suas colônias no primeiro momento de sua dominação Mas também no seu atual segundo momento o da manutenção de uma dependência indireta possível porque transformada em ideologia planetária e totalmente na forma de sensibilidade difundida Na verdade de espírito em termos de uma globalização não só do seu modelo antropológico como de um sistema financeiro sofisticado abstrato e virtual como já vimos violentamente unificado sob o signo do lucro custe o que custar Este tem conseguido bancar o seu universalismo da morte ao custo de muita destruição humana e 603 planetária Um projeto nefasto da ideologia neoliberal capitalista já previsto pelo plano liberal de Marshal acerca do qual temos presenciado e sentido hoje o engodo O nazismo como reação para Mounier não deveria surpreender Uma reação tão brutal de forças obscuras depois de uma longa e morna decomposição do idealismo burguês O excesso mesmo se compreenderia se ele fosse provisório diz Mounier Mas o perigo é que os instintos procuram se dar a dignidade de um sistema Nós vemos nascer nota o diretor de Esprit então saído dos autores nazistas um novo racionalismo mais duro que o antigo pois como observa Mounier podese fazer um sistema com os elementos instintivos como com os elementos racionais estes não são os menos artificiais nem os menos rígidos nem os menos desumanos Quando os legistas hábeis como M Ugo Spirito ou M Panunzio se aferram a demonstrar que no Estado fascista todas as contradições humanas se anulam espontaneamente pela graça infalível de um regime quando M Rosenberg se emprega pesadamente a explicar toda história humana pelo conflito dos nórdicos e dos negróides nós não vemos o que há de ganho sobre o professor liberal ou a dialética marxista1575 Sempre o parentesco fatal O nazismo é no regime do racionalismo liberal a timidez das partes mais baixas que pulsa por manifestação É verdade que o nacionalsocialismo se nutre de concepções menos cesarianas e mais wagnerianas da comunidade nacional como nota Mounier A realidade primeira a substância mística aqui não é mais o Estado mas a comunidade do povo diz Mounier a Volkstum nacionalidade a Volksgemenschaft nação noção orgânica oposta à noção estática como a própria palavra indica de Estado A nação aqui não se absorve na unidade jurídica do Estado o Estado nacional não é senão um aparelho entre muitos outros a serviço do povo alemão O Estado romano pode anexar a si um Império heterogêneo ao povo de Roma se seu poder o exige ele é expansivo O Estado alemão não pode decretar arbitrariamente as condições de sangue e comunidade histórica que fazem o povo alemão o Reich ele não é senão irredentista1576 ao menos enquanto permanece fiel a sua mística mas o é com toda a força do instinto Terra sangue comunidade do povo tais são os três ingredientes pelos quais podese caracterizar uma realidade tão densa e perigosamente inapreensível como é a Volkstum conclui Mounier Eles fundam segundo Mounier uma 1575 Manifeste op cit p 502 1576 Segundo HOUAISS Dicionário da Língua Portuguesa Partidário de qualquer movimento nacionalista que se empenha em emancipar seus territórios do domínio estrangeiro 604 mística comunitária que junta à mística das origens um naturalismo que não o é sem encontrar seu análogo em certos meios reacionários franceses A natureza está à direita escreve Ramuz A mística do camponês e do retorno à terra que a Alemanha nacionalista socialista desenvolve não é somente um meio de luta contra o trabalhismo marxista ela está ligada à mística da raça à qual o camponês contribui mais que qualquer outro para manter pura longe das cidades ela é a fonte intacta do sangue alemão o depositário de suas virtudes e de sua prolificidade1577 contrariamente ao trabalhador1578 ele não saiu do capitalismo W Darre mais ainda é considerado como um tipo de sacerdote em participação sagrada com a terra nutridora Totalmente aparentada é a concepção da mulher por natureza destinada a viver mais próxima que o homem do ritmo secreto da vida de onde a importância que a ela lhe dá o regime não para libertála ou expandila como pessoa mas para ligála bem estreitamente a sua única função geradora Sobre a raça não há nada que não seja repisado O sério com o qual se prossegue na propaganda racista enquanto que a ciência universal sem distinção ideológica não chega a dar sequer um sentido ao conceito de raça pura e enquanto os cientistas alemães têm discretamente fechado as portas do seu laboratório ao racismo testemunha o caráter religioso dessa propaganda pretensiosamente científica O nacionalsocialismo não fixa em sua doutrina em relação à pessoa humana este desprezo que é inerente ao juridismo romano Aqui e ali no sistema ao contato mesmo dos seres humanos os germes do personalismo ali são bem mais fáceis de se descobrir que no estatismo mussoliniano Um tipo de otimismo biológico e nacional por sua vez o sustenta Um Encantamento da sextafeira santa se mantém sobre o bom povo alemão bom entre as forças boas Aqui nós estamos longe de Maquiavel e do Leviatã do ídolo frio e extenuado do Estado submetendo o caos dos indivíduos Paganismo ainda mas um paganismo florido e confiante no ser humano Uma corrente de amor circula do povo ao seu Führer doçura que é totalmente diferente do delírio romano Se quiserdes assustar um nazi digaslhe que ele vive sob uma ditadura O fascista italiano ao contrário se gloriará Entretanto só a matéria é mudada a forma permanece idêntica1579 1577 Fecundidade 1578 Para a mística nazista como nota Mounier Toda ideologia totalitária propõe seu início ab ovo sua originalidade surge de si mesma Todavia nem o racionalismo como ideologia foge dessa regra Daí o seu caráter também marcadamente religioso quer dizer de crença ou melhor de crendice 1579 Manifeste op cit p 503 s 605 Para o personalismo este parentesco de fundo não o permite fazer o jogo polarizador que o racionalismo da moral burguesa quer manter em relação a estes fenômenos complexos Não é importante só manter o capitalismo e suas instituições incólumes diante dos fatos para a moral racionalista burguesa e liberal é também necessário não permanecer nenhuma dúvida também quanto a sua pureza em relação a estes fenômenos que por outro lasdo pelo DNA ideológico o personalismo vê como sendo seus filhos A diferença do personalismo em sua análise do fenômeno nazista é o seu pronto reconhecimento nesta ideologia da existência de elementos que tocam em dimensões fundamentais e reais da pessoa O que não o leva por outro lado a aceitação de sua desfiguração Importa ouvir a voz do fenômeno para podermos distinguir o que vem da pessoa e o que não vem ou nas palavras de Mounier para que possamos distinguir a verdade do erro O nazismo é a tentativa desesperada louca demoníaca que o ser humano num determinado momento manifesta em sua recusa de uma sociedade morna e que se alimenta de sua própria decadência anêmica a sociedade burguesa neoliberal Nesse sentido o nazismo e o fascismo são frutos do capitalismo e da sociedade burguesa ou antes germes em incubação que encontraram o momento de nascer Enfim para o personalismo de Emmanuel Mounier a vocação de ser uma pessoa não tem pois nenhuma relação com a busca da personalidade Como já citamos de Mounier A pessoa é um infinito ou ao menos um transfinito A personalidade é ou tende a ser a reivindicação do finito que se crispa sobre sua finitude A personalidade contrariamente ao indivíduo se engaja comanda se compromete mas também se choca se desconfia se reserva se lamenta em uma palavra se recusa1580 Como temos podido perceber nesta difícil tarefa de lucidez em relação a ideologias que querem se fundar sobre a pessoa o que na verdade é apenas um álibi para que seja volatilizada no culto à personalidade o importante a ser notado quanto à personalidade e em relação à pessoa é o seu caráter ambíguo que em sua inserção na atividade realmente mais dinâmica principalmente no nazismo diferente da monotonia do indivíduo liberal pelo fato mesmo de ser menos grosseira que o indivíduo pode representar um maior obstáculo tanto para a distinção quanto para a plena realização do ser humano que a vida pessoal tomandose as prerrogativas da pessoa à sério propõe A amplitude de irradiação da personalidade pode 1580 Révolution op cit p 181 606 confundir as coisas nesse plano em que se pretende diferenciar as prerrogativas da pessoa deste borbulhar da chamada personalidade A amplitude da personalidade enraizada no incontido do infinito é o que torna o apelo fascista e o nazista atrativos Mounier entendia o seu perigo pois o apelo vital contido na personalidade o qual no sentido da pessoa responsável também é o do personalismo ocultava uma deformação que lhe é própria a tirania e a absolutização da vontade de um único indivíduo sobre todos os demais Assim como em relação à pessoa o individualismo oculta a sua farsa ou seja o indivíduo a busca da personalidade oculta em relação a este mesmo centro de atração axiológica que é a pessoa a sua na figura do chefe salvador IV14 Mounier sob Vichy Vemos como necessário aqui expor um tema que tem causado algumas polêmicas Todavia pretendemos somente apresentar algumas observações pertinentes à situação específica de Emmanuel Mounier Tratase do caso que cobre as atividades que ele exerceu durante um certo tempo mais especificamente nos inícios do Governo de Vichy 19401941 e sob o qual alguns têm deduzido por causa disso um filofascismo mounieriano como outros também deduziram em outras situações um filocomunismo mounieriano ou em outra situação ainda deduziram o seu trabalho em Esprit como excrescência burguesa etc O que prova que as rotulações são sempre uma comodidade para os que estão mais preocupados em destacar do emaranhado complexo de uma vida vivida na tensão e na dramática dos eventos somente o que pode preencher as finalidades apologéticas que eles mantêm para com seus próprios preconceitos intelectualistas Estas estratégias representam assim uma facilidade antes que uma análise detida quanto ao significado vital que os fenômenos que compõem uma existência engajada carregam Uma existência que como a de Emmanuel Mounier antes de qualquer outra coisa assumese a si mesma como tarefa no cumprimento de sua vocação em compromisso com os seus valores livremente assumidos Todavia estas mesmas críticas se são fáceis em suas deduções apressadas por outro lado não permanecem incólumes de um ponto de vista puramente crítico Quer dizer elas podem ainda ser problematizadas como crítica Como já dissemos contra o moralismo o personalismo de Mounier propõe o não julgueis para que não sejais julgados e contra o 607 amoralismo o mesmo personalismo propõe que o homem espiritual julga todas as coisas Se é assim estas críticas difamatórias porque realizadas no âmbito da finitude vêm elas também de algum lugar Ora se vierem do lado do marxismocomunismo estariam elas dizendo que a sua ideologia é menos ideológica que a do fascismo Ou se vierem do lado do liberalismo capitalista estariam elas dizendo que a sua ideologia é então a menos ideológica Ou se elas vierem da quimera segundo a epistemologia personalista de um lugar neutro objetivo seguro e certo de sempre se estar descrevendo as coisas como realmente elas são depois de tudo que temos dito sobre a maneira pela qual o personalismo de Mounier é uma antiideologia teríamos ainda que responder a esse tipo de pressuposto que é antes uma comodidade do racionalismo decadente que não deixa de exalar ainda o mofo do velho positivismo Responder aceitando o maniqueísmo pelo qual estas críticas perspectivam o problema na forma de um dilema cunhado por elas viciandoo desde o início seria aceitar que para Mounier haveria uma diferença essencial quer dizer mais ou menos comprometedora enquanto se está se vive e se atua por exemplo sob o regime liberal ou neoliberal de uma sociedade capitalista e burguesa que destrói e anemiza pela miséria em todas as suas formas a céu aberto milhares de existências todos os dias neutralizando qualquer possibilidade do seu despertamento para uma vida minimamente pessoal do que se se estivesse sob um regime comunista ou fascista ou nazista etc Essa é uma facilidade inaceitável para uma epistemologia personalista Isso seria aceitar uma impossibilidade como já vimos que é de modo interesseiro colocada ou pelos resignados ou pelos instalados Todos os dois em seus lugares epistemológicos seguros tanto no que se refere à impossibilidade a priori de qualquer crítica sobre a realidade vivida quanto à certeza absoluta destes seus pressupostos e critérios apriorísticos Seria também aceitar previamente a inexorabilidade determinista e em absoluto da impossibilidade de se tentar realizar alguma coisa de verdade sem que se torne sempre uma adequação ao meio no caso dessa crítica ou dentro de uma outra ideologia particular ou no suposto lugar neutro Fora disso para essa devese aceitar já e de antemão o decreto de um juízo de valor absoluto como colaborador ideológico Para pesarmos o alcance e a seriedade dessas críticas intelectualistas podemos citar alguns exemplos de intelectuais que infelizmente para elas por viverem no plano da finitude e não no céu empíreo metafísico de seu idealismo apriorista tiveram que lidar com 608 alguma conjuntura ideológica diante da qual tiveram de responder de alguma forma O que nos interessa nestes exemplos não são juízos maniqueístas mas perceber algum aspecto da linha motriz que possa se destacar do seu testemunho o que na verdade é segundo o personalismo o que pode nos dar a pista dos valores assumidos Nesse sentido citamos o exemplo de Berdiaeff que acreditando na revolução chegou a viver e trabalhar sob o regime do comunismo russo até um certo tempo Na verdade até este perceber que não poderia contar com Berdiaeff para a manutenção dos seus desmandos O que fez com que Berdiaeff deixasse o seu país e se empenhasse em elucidar ao mundo os desmandos do regime comunista da Rússia Outro exemplo é o do jovem teólogomartir protestante alemão Dietrich Bonhoeffer que tentando em vão conscientizar o mundo a respeito das mentiras e atrocidades do regime nazista em viagens ao estrangeiro e por não conseguir viver em paz com sua consciência em lugar seguro fora da Alemanha levando uma vida tranqüila enquanto milhões de pessoas eram esmagadas pelo regime tirânico decide voltar ao seu país e participa da conspiração de um tiranicídio Todavia é preso e levado para o campo de concentração de Flossembürg e ali morre enforcado em 1945 Outro exemplo é o do filósofo personalista Paul Louis Landsberg que denuncia o nazismo desde os seus inícios quando ainda era um simples movimento sindical mas quatro dias antes de Hitler tomar o poder foge para a Espanha de onde por sua vez por causa da guerra civil espanhola foge para a França mas é apanhado pela Gestapo em Pau em 1943 Deportado para Berlim para o campo de Oranienburg ali vem a falecer de inanição Outros dois exemplos são os de Karl Jaspers e Martin Heidegger Enquanto Jaspers rompe com as autoridades nazistas e deixando a Alemanha vai para Basiléia Suíça e começa um trabalho de crítica ao regime nazista Heidegger não só apoiou o regime nazista de 193334 como concorda em permanecer na Alemanha e trabalhar normalmente como reitor da Universidade de Friburgo onde pronuncia o discurso sobre A autoafirmação da universidade alemã mas logo se demite do cargo de reitor sem deixar a Alemanha O intelectual marxista Antonio Gramsci prefere agonizar nos cárceres fascistas de 1926 a 1937 ano de sua morte a pedir clemência a Mussolini que ele sabia que lhe seria concedida O que dizer sobre estes diferentes testemunhos Haverá um dado momento pelo qual estas existências poderiam ser congeladas num juízo definidor último Supondo que sejamos todos contra o nazismo e que não consideramos que a resignação diante do mais forte só 609 porque é mais forte seja um bom motivo para a rendição Quer dizer supondo que não concordemos com o argumento da pura afirmação instintivovitalista Berdiaeff deveria ter continuado na Rússia e organizado uma resistência em vez de deixála Bonhoeffer teria prestado melhor serviço se tivesse permanecido fora da Alemanha e não cedido a sua decadente consciência cristã quanto à necessidade bem própria do humanismo cristão de participação no sofrimento do próximo Landsberg como cristão de origem judaica deveria ter ficado e sofrido junto com os seus antes que fugir para a Espanha e aceitar trabalhar como professor e só voltar a Alemanha porque fora capturado Jaspers deveria ter ficado na Alemanha e ter sofrido todas as conseqüências por ter escolhido uma esposa judia Gramsci teria feito melhor se tivesse pedido clemência e se retirado da prisão fascista e ido para um outro país e dali lapidar melhor suas próprias idéias e ter contribuído com uma crítica mais elaborada Vemos que um ato não um dado um testemunho de uma existência só pode ser avaliado pela linha motriz que se destaca e se completa ao longo dessa mesma existência como luz projetada sobre os valores que vão tomando consistência enquanto manifestação concreta desta vida enquanto história Nesse sentido as críticas intelectualistas modernas não conseguem entender um ato pois o que o comanda é antes de tudo um compromisso de uma pessoa consigo mesma com seus valores em qualquer lugar e circunstância em que ela esteja É nesse sentido que essas críticas intelectualistas por não entenderem o que é um ato quando no entanto negam pertencer a qualquer ideologia possível todavia correm para uma última saída o chamado lugar neutro epistemológico o Olimpo cristalino das idéias do qual conseguem objetivamente descrever no mais calmo e sereno nirvana as coisas como elas realmente são Estas observações valem para o que Mounier tentou realizar enquanto via ainda o regime de Vichy em seus inícios compondo diferenças substanciais em relação ao que já se instalara de fato na Alemanha nazista e na Itália fascista Mounier vendo essas lacunas no fascismo incipiente de Vichy vai continuar sendo conseqüente com seu método e sua concepção de revolução espiritual Por meio dessas brechas ainda existentes no regime de Vichy Mounier acreditou poder contribuir para fazer pesar a situação que lhe parecia ainda naqueles começos não definidamente fascista para fora dos trilhos do fascismo Isso no que lhe era possível dentro do que ele entendia como sua tarefa de intelectual francês Para 610 Mounier o fato de publicar de 19401941 uma revista não vai significar uma colaboração com Vichy Ao contrário do que as críticas intelectulistas ou ideológicas possam dizer este fato levouo antes a uma maior independência de espírito e à oportunidade de uma reaproximação com a oposição e a Resistência tanto quanto um contato mais aproximado com a juventude que Vichy queria cooptar Mounier não perde o sentido do seu engajamento agora sob Vichy como não perdeu quando estava sob o regime do capitalismo liberal burguês explicitamente declarado sob o qual escrevia e dirigia Esprit Sob Vichy o que Mounier vê é uma grande oportunidade de realizar algo que para ele poderia fazer alguma diferença Em sua diversidade e nos níveis mais ou menos grandes as revistas publicadas então abertamente tais como Esprit Temps nouveaux Cahiers de notre junesse tanto quanto Poésie são uma parte da história da Resistência na Zona Sul mesmo que seu papel não tenha sido central e sem ambigüidade1581 Em relação a esta nossa tentativa de compreender o ato de Mounier em sua dialética de engajamentodesengajamento relacionada agora a essa situação cremos que seria melhor usar a palavra ambivalência do que ambigüidade pois lembrando tudo que temos dito sobre a noção de engajamento segundo Landsberg e Mounier o engajamento não é uma condição que dependa de nós pois a cada passo estamos previamente engajados numa situação dada não escolhemos nos engajar estamos previamente inseridos numa situação de fato que não depende da nossa escolha É nesse sentido que o que vai importar a Mounier é em cada situação antes de tudo o como nos engajamos O compromisso que Mounier assume como personalista é um compromisso com seus valores quer dizer um compromisso consigo mesmo antes de tudo Essa noção de ambivalência porque implica uma possibilidade inusitada além de uma mera polaridade estanque uma ambigüidade é a que mais nos parece apropriada então para se entender o ato de Mounier sob Vichy A única escolha essencial para Mounier ou seja a do ouou kierkegaardiano é uma escolha de si mesmo ou não sempre em uma situação qualquer dada que sempre antecede esta escolha fundamental Segundo a ontologia relacional personalista tal qual entendemos A perspectiva que orienta este estudo sobre Mounier é a de que o personalismo é uma filosofia da relação estamos em relação antes de pensarmos a relação 1581 Sobre isso ver resenha da obra KEDWARDE H R Resistence in Vichy France The Southern Zone A Study of Ideas and Motivation in 19401942 Oxford University Press 1978 311 p in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 61 Mars 1984 pp 20 ss 611 Quanto a Mounier ele escolheu a via da resistência não violenta espiritual Instalado em Lyon rapidamente ele começa suas atividades clandestinas nas reuniões informais com os colegas que simpatizavam com a Resistência A análise que ele fez da situação em Vichy lhe fez tomar então a decisão contestada por outro lado por muitos dos seus amigos de trabalhar no interior da estrutura mesma das instituições de Vichy e por um tão longo tempo quanto ele pudesse preservar sua integridade pessoal e aquela de Esprit ou seja adotar uma política de presença que de fato se conduziu para uma estratégia de subversão interna Uma estratégia que é parte da noção de revolução cultural personalista e que Denis de Rougemont já havia proposto como título de um dos capítulos de seu ensaio Penser avec les mains de 1935 Lançando sua Revolução Nacional Vichy havia se servido do slogan Trabalho família pátria e das palavras pessoa comunidade corporação palavras suscetíveis de assegurar o apoio dos católicos a sua política de direita Trabalhando com as organizações de jovens de Vichy Mounier dará a estas palavras por outro lado a significação da revolução personalista de Esprit e terá êxito em particular em orientar para a Resistência a Ecole des cadres dUriage cujo objetivo era a princípio formar os líderes dos movimentos de juventude de Vichy Da mesma forma decidindo republicar Esprit sob o governo de Vichy Mounier usa uma tática paralela fazendo com que seus leitores tomem consciência das condições de censura política às quais ele estava submetido e contando com a sutileza dos leitores em conseguir ler isso nas entrelinhas1582 Damos um exemplo Vichy promulga suas leis antisemitas como sendo nacionalistas e católicas no sentido da Action française Em fevereiro de 1941 Mounier do seu lado publica um texto de Péguy que escapa à censura e que ele concluía com as seguintes palavras O que é que se teria feito se ele fosse judeu1583 e em junho de 1941 ele publica uma violenta crítica ao filme de propaganda o Juif Süss Judeu Açucarado com um elogio dos estudantes que em Lyon haviam vaiado o filme 1582 Sobre essa situação em que Mounier tem de driblar a censura de Vichy para fazer passar os textos em Esprit e que muitas vezes chega ao cômico ver a correspondência do período em Mounier et sa génération Oeuvres IV 1583 Em um artigo aparecido em Esprit de Janeiro de 1945 cf Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 61 Mars 1984 p 7 Mounier em retrospectiva lembra dessa época de censura ter conseguido passar os textos mais significativos de Péguy sobre os judeus os quais ele considera terem representado um grande golpe contra a onda antisemita que Vichy iniciava Os textos de Péguy se relacionavam à verdade sobre os judeus a verdade sobre o antisemitismo e à verdade sobre Péguy Em nota neste número de dezembro havia um elogio à liberdade de Middleton Murry e uma denúncia de Gringoire 612 Este jogo foi conduzido por Mounier até o grande dia do fim de outubro de 1941 quando Esprit assim como Temps Nouveaux foi suprimida sob a ordem de Vichy em razão das tendências gerais Mounier perdeu ao mesmo tempo seu posto de ensino em Uriage e em setembro de 1941 aquele que ele ocupava no movimento Jeune France Alguns meses mais tarde em janeiro de 1942 um jovem do grupo Combat foi detido ele carregava consigo um caderno de nomes e de endereços Quarenta pessoas aí compreendendo Mounier foram detidas e mais outras oito dentre as quais Henri Frenay que reencontrava Mounier neste momento preciso e Louis Cruvillier de Temps nouveaux conseguiram escapar por um fio1584 Paul Fraisse em uma sua resenha do livro de Raymond Aron1585 narra aspectos da relação de Mounier com Aron e algumas observações deste sobre Mounier e Esprit que podem também nos auxiliar a entender a dificuldade que se pode ter quanto à compreensão da dialética do engajamentodesengajamento de Mounier sob Vichy quando se adota uma postura intelectualista na compreensão de um testemunho Como já dissemos e como Fraisse nos lembra Aron e Mounier são da mesma geração respectivamente primeiro e segundo lugar da agregação de filosofia em 1928 Mas Mounier não parece quase contar com Aron que durante todo período do anteguerra permanece sobretudo centrado sobre os camaradas da Escola normal superior onde depois de ter sido aluno ele aceita um posto No entanto Aron se interessava por tudo o que se fazia na época e sua rota atravessou aquela de Esprit Segundo Fraisse Mounier preparava para fevereiro de 1933 um número especial sobre a Alemanha e ele pergunta a Aron que fazia então uma residência universitária em Berlim se ele poderia escrever uma Carta aberta de um jovem francês a Alemanha Aron responde com muito gosto Segundo Fraisse neste artigo Aron no início e no fim define o método ao qual ele permanecerá fiel por toda sua vida Eu tenho adotado escreve Aron uma atitude cinicamente realista e mais à frente segundo Fraisse a política realista não é aos meus olhos uma simples maneira de ver tal ou qual problema Ela exprime uma vontade espiritual para empregar a palavra que eu receio Nesse sentido diz Fraisse compreendese então que ele escreva em 1983 Esprit me 1584 Sobre tudo isso ver a resenha da obra THERESA Moser Mary The Church the Sect and the Poor in France 18801965 Graduate teological union University Microfilm International Ann Arbor Michigan USA Londres 1983 224 p in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 61 Mars 1984 pp 18 ss 1585 RAYMOND Aron Mémoires Paris Julliard 1983 778 p in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 61 Mars 1984 pp 23 ss 613 irritava menos por seus valores que por sua maneira Eu encontrava aí uma literatura aos meus olhos tipicamente ideológica Conclui Fraisse então que o fosso entre o analista e o profeta está posto O diálogo que teria podido nascer vai se dar entre Aron e Sartre Fraisse nota que se Aron tem uma frase para desconfiar dos temas comunitários de Esprit todavia ele se aparta de Sternhell e de BernardHenri Lévy sobre o fascismo servil do anteguerra e em particular daquele atribuído a Mounier A palavra fascismo tem um sentido muito preciso para Aron segundo Fraisse para ser empregada assim a torto e a direito Em Mémoires segundo Fraisse Aron escreve um bom parágrafo sobre a atitude de Mounier em 1940 estes novos filósofos dos anos trinta não fermentam a atitude que retrospectivamente nos parece a melhor Um inquisidor forte em sua juventude e em sua palavra que traduzia de maneira justa todos os suspeitos aqueles que não tinham vomitado o Marechal imediatamente ou que não tinham se reunido no maqui senão em 1942 deveria pelo menos compreender a revolta contra a Terceira República decadente a vontade de uma outra República pululada de radicais com barbicha e pançudos p 7081586 Segundo Fraisse resta que Raymond Aron no comando de Express deixou publicar como boas folhas do livro de BH Lévy lIdéologie française as páginas contra Péguy e Mounier e uma montagem fotográfica com o retrato de Mounier ao redor dos de Maurras Edouard Drumont Marcel Déat Jacques Doriot amalgama que Aron denunciou quando Sternhell o utilizou Do livro de Sternhel Aron dirá depondo justamente antes de sua morte súbita em 1983 contra o processo de difamação intentado por Bertrand de Jouvenel que ele é ahistórico Fraisse encerra com a esperança de que as nuances de Mémoires de Raymond Aron sejam mais criveis que as montagens de lExpress1587 Todavia para os que a prisão de Mounier por Vichy a interdição da revista Esprit pelo mesmo governo por motivo de tendências gerais as seqüentes prisões arbitrárias de Mounier por Vichy e a greve de fome que Mounier e mais alguns iniciaram para chamar a atenção da Europa para os desmandos de Vichy a situação de extrema pobreza pela qual então sem emprego sem moradia e sem dinheiro ele com sua mulher e filhas pequenas tiveram de passar depois de sua soltura conseguindo se manter graças à ajuda de amigos 1586 ARON op et loc cit 1587 Ibidem 614 sua morte prematura aos 45 anos sem dúvida devida ao regime duro das prisões e à greve de fome que fizera não são suficientes para indicar o sentido do ato de Mounier sob os inícios de Vichy não há mais nada a dizer a não ser o convite a que se leia o artigo de Paul Ricoeur1588 IV15 Aproximações concludentes IV15a Democracia Como dissemos os totalitarismos para o personalismo são filhos bastardos do capitalismo Nascem da fecundação da miséria e da anarquia impingida pelo capitalismo e acobertada pelo moralismo burguês e pela pseudo ordem democrática neoliberal Ordem disciplina autoridade sim E nós não somos os menos severos para com a democracia liberal e parlamentar Democracia de escravos em liberdade apartados de sua alma e de seu ganhapão submetidos à força brutal do dinheiro que os tem desviado até em sua própria revolta Escravidão de acordo Mas não se cura uma escravidão inconsciente com uma escravidão consciente A mística do chefe que tende a suplantar universalmente a mística democrática tomemos consciência é feita da demissão voluntária por cada ser humano de sua qualidade de ser humano iniciativa responsabilidade pessoa não a serviço dos valores universais que o engrandecem mas entre as mãos impuras de um homem particular que recebe carta branca acima das instituições tanto por seu temperamento suas fraquezas e suas ambições quanto por seu suposto gênio1589 Mounier sabia que uma das possibilidades da corrupção de um regime para o regime tirânico despótico não estava ligada somente ao modelo monárquico O modelo democrático parlamentar que para Mounier era já expressão da degeneração própria ao modelo democrático ou seja era anarquia pois de democrático só tinha o nome está sempre pronto e às vésperas de receber a sua próxima transmutação e retorno ao 1588 RICOUER Paul Mounier et Esprit au milieu du XX siècle in Emmanuel Mounier Actes du colloque tenu à UNESCO op cit pp 245 ss 1589 Révolution op cit p 226 615 governo de um só Mascarar a desordem capitalista pelo título pomposo de democracia parlamentar falseando assim todos os sentidos possíveis de construção do ideal democrático era aos olhos de Mounier criar o tempo da prestação de contas exigida pelo tirano Tenhamos pois a coragem de dizer o problema da democracia o problema da autoridade são problemas novos ainda não resolvidos diante das condições que se lhes tem feito o mundo moderno1590 Não há para nós senão uma definição válida de democracia ela é sobre o plano político a exigência de uma personalização indefinida da humanidade A democracia não é a felicidade do povo os fascismos podem assegurála também materialmente e mesmo subjetivamente em um povo usado e despossuído da liberdade A democracia não é a supremacia do número que é uma forma de opressão Ela não é senão a procura dos meios políticos destinados a assegurar às pessoas em uma cidade o direito ao livre desenvolvimento e ao máximo de responsabilidade1591 Nesta definição vemos que a emergência e insurgência que caracteriza o surgimento da pessoa na história em sua extensão política condiz com o modelo democrático conforme o personalismo IV15b A igualdade Sobre o mesmo plano continua Mounier a igualdade grifo nosso só pode significar a equivalência das pessoas incomensuráveis em face do seu destino singular A desiguais possibilidades de criação desiguais instrumentos devem ser dados mas nós nos opomos a todo regime que tenda a fundar uma hierarquia de classes e de consideração sobre as diferenças funcionais1592 Isso quer dizer que assim como a liberdade a igualdade para o personalismo sendo tomada como valor impede qualquer tentativa de fundar com base em diferenças que apresentam na verdade desigualdades de vocação uma desigualdade essencial sobre a qual se constrói todo arbitrário Tanto na democracia liberal parlamentar quanto na popular comunista a liberdade e a igualdade são apenas álibis que justificam outras coisas que elas mesmas enquanto realidades fundantes quer 1590 Ibidem 1591 Manifeste op cit p 622 s 1592 Révolution op cit p 294 616 dizer como são tomadas pela axiologia personalista A passagem de uma verdadeira tomada destas realidades como fundantes e não como álibis corre diretamente para a concepção de democracia como compreendida pelo personalismo Para Mounier Uma certa mística difusa de elite e de revolução aristocrática é o principal perigo que corre hoje a revolução espiritual1593 A igualdade matemática deduzida pelo individualismo desconhece todo tipo de autoridade Um segundo desvio da exegese democrática segundo Mounier é aqui introduzido Do fato de que as pessoas enquanto tais são espiritualmente iguais o individualismo na maior parte das vezes tem concluído um tipo de igualdade matemática dos indivíduos materialmente tomados que excluiria todo tipo de autoridade na organização política e social quanto também na vida espiritual de cada um Este é o erro de ligar à idéia de democracia este igualitarismo que a tem acidentalmente marcado segundo Mounier1594 Em um alcance mais visceral ou antes mais psicologicamente profundo da noção tão importante de igualdade retomamos uma bela elucidação de Emmanuel Mounier em Traité du caractère já citada e que pode nos ajudar a entender um pouco mais o alcance desta noção que o racionalismo contratualista tem reduzido a suas fórmulas protocolares de tabelião Se existe entre os seres humanos diz Mounier uma igualdade essencial que contesta todas as desigualdades empíricas esta é uma igualdade de vocação não de nivelamento ela deve abrir a todos a possibilidade de um destino equivalente sob a condição de um esforço semelhante em todos É necessário segundo o diretor de Esprit um mínimo de justiça distributiva Mas a justiça distributiva não é para Mounier senão o rodapé da ordem humana em que a generosidade é a regra própria Quando o sentimento igualitário só visa uma ordem matemática de distribuições ele entrega à avareza instintiva o que parece dar os bons sentimentos Renovando o utilitarismo de Bentham observa Mounier Freud fez nascer deste instinto captativo o sentimento social que por uma noção estreita de justiça ele reduzia a um cálculo igualitário O indivíduo quer bem sacrificar à comunidade algumas das pulsões que sua inveja natural levanta contra a vida social mas 1593 Nota de Emmanuel MOUNIER É ela que nos tem irremediavelmente afastado de uma certa Jovem Direita não obstante algumas analogias de princípios e de soluções que as críticas arranjadas ou pérfidas procuram sublinhar mais Révolution op cit p 294 1594 Révolution op cit p 623 617 observa Mounier na esperança de um equivalente estrito Se este não lhe é concedido ele exige que ao menos os outros sejam privados do seu devido porque meu filho está morto lembra Mounier a história bíblica1595 pensa a mãe que comparece diante de Salomão a outra mãe não deve possuir um filho vivo A paixão da justiça e a paixão igualitária não seriam pois senão a transformação de uma hostilidade primitiva nos elos de ligação positiva por uma identificação no outro do egoísmo individual conclui Mounier Assim os abúlicos estão sempre a reclamar os seus direitos mas eles recorrem assim por todos os meios para que suas ações sejam feitas pelos outros dispensandose de fazêlas eles mesmos Neste mesmo horizonte a indignação contra a injustiça é o sentimento de ter sido frustrado no balanço previsto Pode desembocar segundo Mounier sob o impulso de pulsões não satisfeitas a um fanatismo da reparação que inverte o dique dos constrangimentos sociais e das estruturas morais e junta não importa qual justificação a reboque dos instintos desencadeados Como sempre Freud observa o diretor de Esprit não faz história do psiquismo senão com o lado mal da história mas não se saberia contestar que este processo seja ainda poderoso tão poderoso que ele tem podido servir de argumento não sem aparência de razão à paixão instintiva dos antiigualitários O gosto pela justiça segundo Mounier não introduz um universo verdadeiramente novo senão do dia em que ele passa da captação à oblação da inveja à emulação de generosidade que nós vemos já regular em certos costumes como o potlatch das trocas humanas nas sociedades ditas inferiores Ele vive então de uma superabundância interior e de um vivo fervor coletivo e não de uma comparação inquieta com o meio circundante Ele não tende ao nivelamento mas ao ultrapassamento individual e coletivo Conclui Mounier que a gênese deste ser humano novo é uma longa conquista que está sem dúvida apenas começando1596 IV15c A autoridade O personalismo distingue a autoridade do poder1597 O poder não é somente uma autoridade sobre o indivíduo segundo Mounier ele é uma dominação que se arrisca pelo 1595 1 Reis 316 a 28 1596 Para todo este parágrafo ver Traité op cit p 509 1597 Para todo este parágrafo ver Manifeste op cit p 623 In loc em nota MOUNIER escreve LACROIX Jean La souveraineté du droit Esprit mars 1935 Ordre Nouveau n 31 juin 1936 618 seu próprio exercício a ameaçar a pessoa nos subordinados e no chefe por natureza ele tende ao abuso por natureza também ele é tentado a se degradar do poder ao usufruto de se outorgar progressivamente mais honras riquezas irresponsabilidades e laser que responsabilidades e a se cristalizar em casta Para Mounier a autoridade ela também poeticamente tomada é uma vocação que a pessoa recebe de Deus isso para um cristão ou de sua missão personalista que ultrapassa sua função social isso para um não cristão o dever que ela tem de servir às pessoas predomina sobre os poderes que o direito positivo poderia lhe conceder em suas funções ela é essencialmente uma vocação de despertar outras pessoas conclui Mounier O personalismo restaura a autoridade organiza o poder mas também o seu limite na medida em que se desconfia dele Aquele é um esforço e uma técnica para destacar constantemente de todos os meios sociais a elite espiritual capaz de autoridade ele é ao mesmo tempo um sistema de garantias contra a pretensão das elites do poder segundo a época o regime e o lugar elites de nascimento de dinheiro de função ou de inteligência em se atribuir uma dominação sobre as pessoas em virtude do poder que elas tenham de seu serviço1598 Toda uma tradição proudhoniana opõe a esse espírito uma concepção anárquica da democracia à democracia de massas observa Mounier Qualquer que seja quando se precisaria mesmo que se trata de anarquia positiva a ambigüidade da fórmula ela é em muitos democratas uma aproximação viva dessa luta contra os poderes dessa soberania do direito sobre o poder Gurvitch onde a democracia personalista está centrada Mais precisamente segundo Mounier para essa última não é o direito que nasce do poder é o poder elemento estranho ao direito que deve se incorporar ao direito para ser transformado em direito Nesse momento a democracia não equivale mais a uma desconfiança da autoridade espiritual até em uma resistência sistemática ao poder normalmente exercido Sua desconfiança não olha senão essa queda fatal do poder da qual Alan segundo Mounier tem podido dizer o poder enlouquece Seu controle não visa senão prevenir os efeitos dessa loucura endêmica seja ela a loucura de uma maioria democrática1599 Sobre o equilíbrio dos poderes diz Mounier Nós não podemos pois aderir nem ao otimismo democrático e nem ao otimismo individualista que a ele está ligado Nossa 1598 Manifeste op et loc cit 1599 Ibidem p 623 619 concepção de democracia não é de maneira alguma subjetivista no sentido habitual da palavra A vontade do povo não é nem divina nem infalível a julgar pelo interesse real do povo Se nós aceitássemos que ela o seja deverseia aplaudir ao fascismo quando a maioria de um povo aclama o ditador e deixar em sua escória aqueles que segundo uma fórmula do sucesso não têm necessidades Nós aí diz Mounier ficamos mais detidos se fundarmos a democracia sobre a realidade da pessoa A consulta das vontades pessoais mantém o papel fundamental mas tudo é colocado à prova na base para que elas sejam vontades pessoais pessoalmente expressas e não paixões dirigidas e exploradas do lado do poder para que a soma massiça destas vontades nas grandes nações e seu desperdício sobre os caminhos que as religam ao Estado não encorajem a ditadura do Estado1600 A democracia personalista Mounier reconhece é um regime para pequenas nações As grandes nações não podem realizála senão dissociando o poder a fim de deter os poderes uns sobre os outros1601 Todavia esta fórmula não nos deve fazer esquecer a participação imprescindível da pessoa concreta nas decisões Tratase para o personalismo de nunca perder esta perspectiva da participação das pessoas concretas Num regime de irresponsabilidade como são os regimes democráticos de massa o eleitor é apenas o álibi para a mudança dos personagens descartado logo em seguida na continuação da farsa Este é o vício eterno de um regime que quer fundar o direito enquanto produto do jogo abstrato racionalista juridista sobre o elemento estranho denominado poder que por sua vez funda sua autoridade sobre um ato de representação pseudoresponsável que é o ato de sufrágio baseado em esquemas pro forma e estéticos ligados ao jogo da retórica do individualismo liberal e burguês Para Mounier a cidade pluralista se constituirá no ápice sobre um conjunto de poderes autônomos poder econômico poder judiciário poder educativo etc Neste desmembramento vertical deverá jogar uma articulação horizontal de inspiração federalista O que nós temos dito acerca da dupla orientação da pessoa para os poderes próximos e para a universalidade diz Emmnauel Mounier deve aqui nos guardar do sistema1602 Aqui nos deparamos com a acolhida por parte do diretor de Esprit do sistema federalista pelo qual se empenharam muito mais do que Mounier outros personalistas tais 1600 Ibidem p 624 1601 Ibidem p 624 1602 Manifeste op cit p 624 620 como Alexander Marc e Denis de Rougemont Todavia pareceu a Mounier que estes movimentos notadamente o de Alexander Marc da Ordre Nouveau tendiam a se perder na tática o que não obstante a manutenção da simpatia por parte de Mounier pelo movimento federalista europeu o fez separarse destes movimentos Não será possível tratarmos do movimento federalista promovido pelo personalismo na Europa pois isso levaria à elaboração de uma outra dissertação mas acreditamos que esta aproximação à compreensão de democracia por parte de Emmanuel Mounier que estamos tentando esboçar é suficiente para entrevermos o sentido federalista do seu personalismo Adiantamos que esta discussão foi muito importante para o desenvolvimento do movimento personalista em seu alcance político em todos os lugares em que pode irradiarse Em uma carta de Mounier de 27 de janeiro de 1934 a sua futura mulher Paulette Leclercq podemos entrever a acalorada discussão que o tema promovia entre as alas personalistas Marchase rapidamente para concorrer em Bruxelas Na reunião para os grupos sociais ontem havia um bom número contando com Berdiaeff Três grupos formados um sobre a corporação um sobre o Estado e o Federalismo e um grupo de estudos e de encontros internacionais onde haveria negros amarelos etc talvez um grupo de estudos marxistas 1603 Todavia para Mounier dar muito ao poder local encorajaria os particularismos dos quais as sociedades modernas estão com dificuldade desinfetadas e conduziria as comunidades nacionais adultas a algum estado social pueril Para ele o personalismo deve se guardar de concluir ingenuamente em não se sabe qual concepção granular da sociedade que não seria senão uma expressão totalmente exterior a suas exigências Ele o personalismo não permanece menos próximo que os poderes locais e regionais próximos de seus objetos e próximos do controle que devem ser amplamente desenvolvidos por uma descongestão do Estado A pessoa aí encontrará novas possibilidades e uma nova proteção1604 O regime que o personalismo de Emmnauel Mounier propõe deve ser 1603 Mounier et sa génération op cit p 544 Sobre a compreensão da irradiação aplicação e importância dos princípios personalistas de Emmanuel Mounier e sua equipe veiculados por Esprit para a ocorrência do evento contemporâneo chamado Révolution tranquille ocorrida em Québec Canadá ver ANGERSFABRE Stéphanie Le personnalisme dEmmanuel Mounier une fenêtre sur le Québec modern in Actes du colloque tenu à UNESCO op cit Tome 2 pp 561 ss 1604 Manifeste op cit p 624 621 descentralizado até à pessoa e o poder deve ser desarticulado em uma série de comunidades a inspiração proudhonina é clara1605 A vida pública para Mounier deverá ser suficientemente discreta para que possa assegurar a cada pessoa o círculo de solidão e meditação que para Mounier é a preparação para a liberdade à qual todo ser humano é chamado e tem direito sobre o que nenhuma força do mundo saberia impedir A vida privada que os costumes burgueses segundo Mounier têm envenenando com um odor pestilento de mofo deverá por grandes portas abertas ao mesmo tempo em que a verdadeira intimidade será reencontrada tornarse a célula renovada da prova e da irradiação humanas1606 Para Mounier desde o início a noção de unidade antes que uma noção quantitativa como quer a democracia parlamentar do sufrágio é uma noção qualitativa A unidade é a expressão viva de convívio de liberdades vivas Não é nem a unidade conquistada pela força do número e nem a unidade que toma para si a liberdade possível O velho problema do um e do múltiplo é eterno diz Mounier a unidade do poder não é a fácil abstração do governo de um só é uma pluralidade orgânica de responsabilidades que nós encontraremos Sim não se deve ocultar uma ditadura é indispensável em toda revolução1607 sobretudo espiritual para neutralizar e curvar as forças maléficas O liberalismo é o coveiro da liberdade Nossa fórmula é ditadura material e controlada em toda medida necessária liberdade espiritual integral Se o novo Estado tem uma metafísica que ele entre em concorrência como os outros com as armas próprias do pensamento e da fé1608 1605 Révolution op cit p 415 1606 Ibidem 1607 Nisso Mounier concorda com o liberal John Locke Ver Dois tratados sobre o governo op cit 168 p 535 Sobre este ponto da prerrogativa será levantada a velha pergunta de quem há de ser o juiz do uso correto desse poder Vemos aqui a estratégia de Locke de encaminhar a questão como se tratando de legalidade liberal ou não Vemolo insinuar que durante a vigência e manutenção do seu esquema político a sociedade viveria então como o espelho da legalidade enquanto expressão da razão mesma colocando antes a questão da prerrogativa que o pensamento político costuma colocar na base do quem manda e quem obedece que Locke é precavido em não falar nestes termos nele como sempre se dando com base num pacto anterior racional enquanto tal e portanto a priori justificador do seu esquema de poder Respondo entre um poder executivo em função com uma tal prerrogativa e um legislativo que dependa da vontade desse poder para sua reunião não pode haver juiz sobre a terra assim como não pode haver nenhum entre o legislativo e o povo caso o executivo ou o legislativo quando em suas mãos tiverem o poder pretendam ou se dediquem a escravizar ou destruir o povo Já falamos antes quem é o povo para Locke Nesses casos e em todos aqueles em que não há juiz sobre a terra não tem o povo outro remédio além do apelo aos céus Obviamente o apelo aos céus aqui além de significar revolução significa o desejo por parte da humanidade de volta ao regime da legalidade liberal lockeana que ao que parece Locke parece considerar também ter bases metafísicas mais profundas como expressão da vontade de Deus mesmo 1608 Révolution op cit p 227 622 É fácil percebermos o tom eventual desta chamada de Mounier em Esprit a que o novo Estado o fascista e o nazista com sua metafísica cuja instauração Mounier já via como inexorável concorresse com os demais como uma afirmação que parece contraditória com à repulsa por parte de Mounier do jogo político dos Estados o qual ele via como justamente o que estava na base e possibilitava o surgimento dos totalitarismos Essa é um tipo de citação que fora do seu contexto ou seja do embate dos eventos do sentimento de catástrofe inevitável que se aproximava dá o mote a muitas interpretações equivocadas sobre o personalismo de Emmnauel Mounier Vemos então que se trata de um último recurso Sim hierarquia orgânica e funcional diz Mounier Mas atenção O mundo do dinheiro tem separado os seres humanos em duas classes uma dos exploradores a outra dos explorados mais ou menos conscientes uns dos outros do papel que o dinheiro lhes impôs às vezes contra a intenção mesma de seu coração Aos primeiros a facilidade a consideração o lazer a cultura os lugares de comando Aos segundos as obras servis a instrução limitada a mediocridade hereditária1609 IV15d A liberdade Como já dissemos o que o comunismo tem de tão temível escrevia Berdiaeff no primeiro número de Esprit é essa combinação de verdade e erro Não se trata de negar a verdade diz Mounier mas de destacar o erro Precisemos o que o comunismo tem de temível é este entrecruzamento de erros radicais com as visões parcialmente justas e incontestavelmente generosas esta anexação ao erro de causas dolorosas cuja urgência nos oprime1610 Todavia o marxismo para Mounier é contra a pessoa Para o diretor de Esprit o otimismo que o marxismo professa contrariamente ao fascismo sobre o futuro do ser humano é um otimismo do homem coletivo recobrindo um pessimismo radical em relação à pessoa1611 Para tanto o personalismo se coloca no extremo oposto a este imperialismo 1609 Ibidem 1610 Manifeste op cit p 515 1611 Ibidem p 519 623 espiritual do homem coletivo que é o marxismo1612 Mounier faz uma observação quanto a uma correta avaliação de Engels que precisava de um complemento O erro dos matemáticos escreve Engels foi crer que um indivíduo pode realizar por sua própria conta o que só a humanidade pode fazer em seu desenvolvimento contínuo Nós respondemos que o erro do fascismo e do marxismo é crer que a nação ou o Estado ou a humanidade possa e deva assumir em seu desenvolvimento coletivo o que somente cada pessoa humana pode e deve assumir em seu desenvolvimento pessoal grifo nosso1613 Ora a condição escravizada da pessoa sobre a qual o marxismo chamou a atenção dividiu todavia os seres humanos em duas classes quanto ao exercício da liberdade espiritual1614 Todavia para o personalismo a liberdade da pessoa é a de descobrir ela mesma a sua vocação e de adotar livremente os meios para realizála Ela não é uma liberdade de abstenção mas como temos visto uma liberdade de engajamento1615 Por outro lado a reivindicação de um regime de liberdade espiritual não tem nenhuma solidariedade com a defesa das escroquerias à liberdade e as opressões secretas com que a anarquia liberal tem infestado o regime político e social das democracias contemporâneas1616 Contudo segundo Mounier a liberdade da pessoa é adesão Mas essa adesão não é propriamente pessoal senão for um engajamento consentido e renovado em uma vida espiritual libertadora e não uma simples aderência obtida pela força ou pelo entusiasmo em um conformismo publico Para Mounier bloquear a anarquia em um sistema autoritário rígido não é ainda organizar a liberdade Para o diretor de Esprit a pessoa não pode pois receber de fora nem a liberdade espiritual nem a comunidade1617 O que pode acontecer é ela ser despertada para estas dimensões que já lhe são inerentes como valores intrínsecos que devem ser assumidos e vividos É a esta tarefa de despertamento para liberdade que Mounier considerava que fosse a vocação de Esprit 1612 Ibidem p 520 1613 Ibidem p 530 1614 Ibidem p 533 1615 Ibidem 1616 Ibidem 1617 Ibidem 624 IV15e Vida privada Como já dissemos para Mounier a linguagem identifica muitas vezes vida pessoal com vida interior Mounier reconhece que a expressão é ambígua Todavia ela expressa muito bem que a pessoa tem necessidade de retiro de meditação ao que uma espiritualização da ação acomoda mal uma preponderância dada à sensação ao divertissement à agitação ao evento visível A expressão segundo Mounier pode dar a entender que se define a vida normal da pessoa por algum isolamento arrogante ou alguma complacência egoísta Mounier completa que todavia a pessoa não se encontra senão se dando e através do aprendizado da comunidade A vida privada recobre exatamente essa zona de ensaio da pessoa no encontro da vida interior e da vida coletiva a zona confusa mais vital onde uma e outra tomam raiz 1618 Mais de uma vez em sua história diz Mounier o marxismo tem difamado a vida privada como a fortaleza central da vida burguesa que importa desmantelar da mesma forma que as bastilhas do dinheiro para estabelecer a sociedade socialista Ele a apresenta então nota Mounier como uma vida de raio estreito e de estilo medíocre ligada à economia primária do artesanato profissional ou doméstico O marxismo vê aí ainda segundo Mounier a resistência do empirismo à racionalização social do individuo à penetração do Estado o refúgio envenenado das influencias reacionárias uma reorganização celular de resistência à revolução coletivista1619 Mounier diz que aderiria de coração a uma parte importante dessa crítica se ela se contentasse em descobrir essa morada de podridão e de farisaísmo que recobre muitas vezes a honesta vestimenta da vida privada Que em toda zona corrompida pela decadência burguesa nota Mounier seguindo os termos do Manifesto comunista os filhos tornamse simples objetos de comércio ou simples instrumentos de trabalho que a mulher não tenha aí ela também senão a função de um instrumento de produção que em certo mundo o casamento burguês seja na realidade a comunidade das mulheres casadas nada é menos contestável Além disso diz Mounier essa podridão elegante corrompe mais tristemente ainda o pântano pequenoburguês mundo sem amor incapaz de alegria como 1618 Manifeste op cit p 557 1619 Ibidem 625 de tristeza com sua avareza sórdida e sua lamentável indiferença Mas estas para Mounier aí não são senão a contaminação da vida privada pela mediocridade do ser humano e da decomposição do regime ressequida por dentro pela indigência da alma burguesa ela recebe de fora as águas sujas do regime a corrupção do dinheiro o egoísmo das castas Não se pode hoje defendêla honestamente segundo Mounier sem ter inicialmente decidido desinfetála de toda esta pestilência1620 Se só fosse a pestilência muitos se sentiriam diante da crítica com uma consciência feliz Mas como nota Mounier é necessário perseguir essa decadência do heroísmo e da santidade quer dizer em linguagem personalista do esforço por realizar fora das resistências e determinações internas e externas a vocação pessoal a liberdade sobre os valores assumidos até no círculo encantado de doçura e de intimidade em que se encontram com seus métodos e suas infantilidades todos os que recobrem com um amor idólatra a calma das atmosferas mornas todos os que não conhecem nem a fome nem a sede nem a inquietação todos os que são sem agonias os ungidos os protegidos os separados A mortal sedução da alma burguesa segundo Mounier os tem surrupiado por alguns pseudovalores medida paz retiro intimidade pureza os pintores sensíveis os poetas delicados alguns filósofos críticos de arte a têm ornado de afetações graciosas a ela se tem mesmo fabricado uma religião de apartamento de homem de bem e indulgente uma religião de domingo nota Mounier uma teologia das famílias É justamente nestes refúgios quentes que segundo o diretor de Esprit devemos perseguir a privacidade burguesa se quisermos desintoxicar suas melhores vítimas é aí que a ternura mata o amor que a doçura de viver sufoca o sentido da vida segundo Mounier Todavia para ele esse rigor deve proceder de um sentido mais exigente de autêntica vida privada não de uma insensibilidade aos valores privados Por seu curto raio que a expõe ao particularismo e à mediocridade e a mantém sob a tomada direta dos egoísmos individuais segundo Mounier a vida privada é certamente constantemente ameaçada de intoxicação como a vida pública é por sua vez constantemente ameaçada de dispersão A vida privada segundo Mounier não é menos o campo de ensaio de nossa liberdade a zona de prova onde toda convicção toda ideologia toda pretensão devem atravessar a experiência da fraqueza e se despojar da mentira o verdadeiro lugar onde se forja nas comunidades elementares o sentido da 1620 Manifeste op cit p 558 626 responsabilidade Nisso ela é tão indispensável à formação do ser humano segundo o diretor de Esprit quanto a solidez da cidade Portanto conclui Mounier ela não se opõe nem à vida interior nem à vida pública ela prepara uma e outra comunicando suas virtudes1621 Todavia mais do que tudo isso Mounier é consciente de que só uma crítica verbal à vida privada não é suficiente para que se exima da parte de verdade da crítica generalizante do marxismo Essa preocupação já é inscrita no próprio projeto de Esprit como laboratório de idéias Essa função de Esprit de ser um espaço atelier de novas experiências já era bem delineada e isso no intuito de esclarecer que o marxismo não tinha nem o monopólio da crítica ao capitalismo e nem é a última palavra em termos de programa socialista Esprit se daria por tarefa lhes oferecer aos colaboradores personalistas um atelier onde eles pudessem trazer suas ferramentas e trabalhar opondo às soluções comunistas sobre o plano institucional social e econômico soluções que não cederiam a nenhuma outra em valor técnico como em generosidade1622 Vemos claramente que para o diretor de Esprit a generosidade excedendo a técnica deveria ser uma das marcas destas novas pesquisas Os comunistas desarmados então segundo Mounier não poderiam mais acusar o espiritual de ineficácia técnica São os comunistas que começariam a ficar desarmados por seu turno pelos primeiros resultados deste trabalho e não poderiam mais acusar o espiritual de se evadir dos problemas de eficácia técnica1623 Além disso só uma ruptura total segundo Mounier sem ambigüidade e nem arrependimento em nossa vida privada como em nossas doutrinas com as forças de opressão e do dinheiro pode dar autoridade à dupla e necessária dissociação que o seu personalismo propõe a dissociação dos valores espirituais dos da desordem estabelecida e a dissociação do marxismo como mentor plenipotenciário da revolução necessária1624 1621 Manifeste op cit p 558 s 1622 Mounier et sa génération op cit p 593 1623 Ibidem 1624 Manifeste op cit p 509 627 IV15f O marxismo aproximação crítica conclusiva Tudo isso porque uma crítica honesta ao marxismo e às formas de socialismo segundo Mounier deve levar em consideração as nuances e não proceder a uma condenação em bloco todavia este é justamente um dos erros condenados no marxismo em relação a sua crítica aos outros1625 No entanto podemos seguir na obra de Emmnauel Mounier paralela à busca de um diálogo com o marxismo no sentido da lucidez fora da mentira uma crítica sem tréguas ao farisaísmo interesseiro de uma certa crítica ao marxismocomunismo a um tipo de anticomunismo político que consolidava o farisaísmo social e alimentava a guerra social e internacional Mounier não queria que sua crítica ao marxismo servisse de argumento a esse anticomunismo interesseiro Na maioria das vezes pintado com as cores do cristianismo esse anticomunismo de espírito pequenoburguês foi combatido por Mounier propositalmente como se tratando de um dever de cristãos ao mesmo tempo em que o dever político deveria ser para Mounier o de reconhecer a verdade onde quer que ela se encontrasse Em certo sentido Mounier acreditou demais que sua filosofia a marteladas mas com uma no prego e outra na ferradura como já dissemos que sua crítica ao marxismo iria demolir suas pretensões hegemônicas e criar uma polarização saudável no mundo intelectual senão europeu ao menos francês Realmente ele não contava que em plena realidade dos Gulags e de todos os desmandos do autoritarismo do comunismo russo muitos intelectuais franceses nas décadas que se seguiram a sua morte continuariam apoiando o comunismo russo e defendêlo apesar de Sobre a expectativa de Mounier em relação a essa obra de denúncia diz o diretor de Esprit Enfim a obra de denúncia não se deve ocultar vai conduzir à devastação através das certezas estabelecidas a que tem se fixado um grande número de homens em um meio de segurança e de virtudes Nós vamos demolir com rudes golpes de martelo estes abrigos que eles têm feito e lançálos na desordem Desordem salutar pensamos nós justamente que liberta o homem das mentiras e dos confortos medíocres1626 Todavia o caráter negativo de toda obra de demolição se dá justamente pela força de resistência que é exigida na desconfiança diante da tentação de 1625 Manifeste op cit p 508 1626 Révolution op cit p 353 628 uma ação crítica que só revista formas negativas como são todas as ações dos que só denunciam cuja pureza que fundamenta sua crítica sempre para além de si mesmas para tornálas válidas enquanto crítica mesma numa espécie de essencialismo de platonismo às avessas disfarçado de pensamento concreto todavia não é perseguida por eles com tanto empenho o quanto é o peso com que a carregam sobre os outros Por outro lado deste problema sem dúvida a crítica de Mounier não pode ser acusada 629 CAPÍTULO V Pessoa e Existência Introdução Do que temos exposto até aqui fica claro que o personalismo é também uma filosofia da existência da existência humana Ora por que essa precisão A existência não será sempre no plano da finitude existência humana Sim mas segundo o personalismo só à medida que os problemas levantados por um existente pulsarem no sentido de um ultrapassamento de sua expressão singular para os problemas levantados pela existência humana Quer dizer à medida que o existente possa mesmo em sua expressão singular na verdade só através dela ser capaz de apontar para uma dimensão que ultrapasse essa mesma singularidade e apontar para o sentido de uma universalidade possível mesmo inacabada mesmo por se fazer O exemplo da pintura de que já nos valemos nos serve aqui novamente para exemplificar1627 O pintor alcança sua maturidade artística quando sua obra ao mesmo tempo sendo a marca inconfundível de sua singularidade artística é por isso mesmo já uma expressão que de alguma forma nos toca a todos é universal O personalismo apesar do ismo como já fizemos notar sendo uma filosofia da existência como temos colocado seria também por sua vez uma proposta de superação do ismo de existencialismo enquanto sentido de uma ideologia Com isso vemos que a universalidade buscada pelo personalismo se contrapondo ao particularismo não obstante por sua ênfase no humano mesmo enquanto existência procura resistir ao que poderia se dar como pensamento de grupo enquanto partidário ou seja ideológico 1627 Ver acima Introdução 630 Emmanuel Mounier1628 reconhece que sem nenhuma dúvida devese ao existencialismo enquanto o tipo de reflexão filosófica que enfrenta põese de frente a mirabolância1629 açambarcadora1630 do sistema impessoal na colocação1631 precisa e inovadora dos problemas que a existência na finitude propõe às evasões abstratas de um racionalismo cioso de contenção das exigências da concretude Ora será sob esse crivo o da existência e não sob o dos existencialistas que os seus existencialismos serão pesados e avaliados pela reflexão personalista de Emmanuel Mounier Isso já pode ser percebido na seguinte definição que dá Mounier do existencialismo uma reação da filosofia do ser humano contra os excessos da filosofia das idéias e da filosofia das coisas1632 Todavia para Mounier o existencialismo ou melhor os problemas que a existência vem colocando ao ser humano tem longa data É o apelo de Sócrates opondo aos devaneios cosmogônicos dos físicos da Jônia o imperativo interior do Conheçate a ti mesmo1633 É a mensagem estóica chamando ao domínio de si no afrontamento do destino estes gregos infatigáveis nos jogos sutis do sofisma e da dialética É são Bernardo partindo em cruzada em nome de um cristianismo de conversão e de salvação contra a sistematização da fé por Abelardo É Pascal se erguendo no solo da grande aventura cartesiana contra os que aprofundavam muito as ciências e dificilmente se inquietavam com o ser humano sua vida e sua morte Mas com Pascal já nos encontramos no existencialismo moderno Ele traçou todos os caminhos tocou em quase todos os temas1634 Mounier então se tomarmos Pascal como ele o faz ou seja como enxertado no caule mais próximo às raízes da tradição do pensamento existencial quer dizer Sócrates os estóicos santo Agostinho e são Bernardo etc toma contato com essa filosofia do ser 1628 Há de modo esparso na obra de Mounier como um todo referências ao existencialismo todavia os dois momentos em que Mounier se detém especificamente sobre esta corrente filosófica estão em Introduction aux Existentialismes Oeuvres III pp 77 ss texto de 1947 e em Perspectives existencialistes et perspectives chrétiennes Oeuvres IV pp 283 ss de 1949 texto recolhido em uma obra composta por quatro ensaios intitulada LEspoir desdésespérés onde Mounier por sua vez pouco antes de sua morte tenta compreender por sua vez André Malraux Albert Camus as correntes existencialistas atéias com atenção especial a Sartre e Georges Bernanos 1629 Delírio Cf Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa 1630 Que toma conta de tudo Cf Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa 1631 Não quanto a aspectos gerais que coordenam o problema da existência o que nos faria ir longe a Sócrates aos sofistas a Agostinho etc mas na especificidade em que o problema da finitude é tomado na contemporaneidade 1632 Introcuction aux Exustencialismes Oeuvres III p 70 1633 Para Mounier como podemos observar Sócrates não é simplesmente o inaugurador da impostura como queria Nietzsche 1634 Ibidem p 70 631 humano já desde os seus primeiros estudos de filosofia com Jacques Chevalier com quem estuda a fundo Pascal Mas é com Nicolay Alexandrovitch Berdyayev nascido em 6 de março de 1874 em Kiev Ucrânia e falecido em 23 de março de 1948 em Clarmant França juntamente com GabrielHonoré Marcel nascido em 7 de dezembro de 1889 em Paris e falecido em 8 de outubro de 1978 que Emmnauel Mounier vai estabelecer de maneira mais direta contato com os temas mais diretamente relacionados com a filosofia da existência como delineada pelo pensamento contemporâneo ou como se convencionou chamála existencialismo1635 Berdiaeff seguindo a transliteração francesa colabora com Esprit desde o seu lançamento em 1932 Sem dúvida Berdiaeff vai exercer uma influência considerável sobre o jovem Mounier que antes do lançamento de Esprit em encontros com Berdiaeff que conheceu em Paris juntamente com Maritain Etienne Gilson Henri Marrou etc vai também lapidar seu projeto de crítica à civilização ocidental cujo veículo seria a revista Esprit Como bem nota Lurol1636 nos anos de 1930 Mounier já chamava de falsas soluções ao fascismo ao nazismo e ao comunismo sem confundir nem as proveniências nem as significações nem o tipo de totalitarismo como já tivemos a oportunidade de ver no capitulo anterior e ampliar a lista com o totalitarismo sutil mas não menos totalitário e violento do liberalismo ou atualmente neoliberalismo Como vimos por meio deste permanecia uma outra falsa solução a do individualismo Este por sua vez nutria sua sobrevivência do seu oposto o coletivismo e ancorava suas bases na Renascença a qual edificara um sujeito que para Mounier não tendo decaído completamente como pensava por exemplo Maritain por outro lado permanecia sendo uma visão do ser humano muito curta como pensava Berdiaeff e que em tudo eram possíveis novas vias e possibilidades em seu futuro como pensava Max Scheler1637 Na verdade como já vimos a adoção do indivíduo pela modernidade representava para Mounier um adiamento da pessoa em proveito desse indivíduo que só conseguiu se manter graças à parte de verdade da pessoa 1635 Os estudos de filosofia contemporânea no Brasil ainda estão em dívida e não deram o devido lugar como já notamos a Max Scheler a Paul Louis Landsberg a Denis de Rougemont a Pierre Thévenaz sobre o qual vamos empreender uma aproximação em nosso estudo de doutoramento etc Mas também às reflexões também contemporâneas filosoficamente densas e pertinentes de Nicolas Berdiaeff de Gabriel Marcel e de Karl Jaspers por que 1636 Sempre na edição LUROL Gerard Mounier I Genèse de la Personne Éditions Universitaires em 1 Volume 1990 p 12 1637 LUROL op et loc cit 632 sobre a qual ele se ergueu mas que ficara encoberta na modernidade pela parte de mentira que nele parasita a verdade Voltando a Berdiaeff é dentro do marco dessa problemática que sua influência sobre Emmnauel Mounier foi ponderável Berdiaeff durante seus anos de estudante na Universidade de Kiev desde 1894 havia se engajado como ativista marxista o que lhe rendeu uma sentença de três anos a partir de 1899 de exílio em Vologda norte da Rússia Após sua soltura viajou por toda a Alemanha retornando em 1904 para a Rússia tomando parte em São Petersburgo Leningrado de um amplo reavivamento religioso e cultural Após uma outra visita ao exterior em 1907 Berdiaeff vai para Moscou onde se junta à Igreja Ortodoxa Russa Enquanto não conformista atacou o Santo Sínodo da Igreja em um artigo e foi julgado por isso em 1914 escapando da sentença após seu caso ter sido esquecido na irrupção da Revolução Russa em 1917 Berdiaeff então se tornou favorável ao novo regime e foi apontado como professor de filosofia na Universidade de Moscou em 1920 Dois anos depois foi expulso da URSS quando ficou claro que ele não poderia abraçar o marxismo ortodoxo Outros exílios somaram a ele a oportunidade de fundar a Academia de Filosofia e Religião em Berlim em 1922 Em 1924 ele transfere a Academia de Berlim para Paris e funda ali um jornal Put O Caminho de 1925 a 1940 no qual criticava o comunismo Russo Berdiaeff ficou conhecido como o principal emigrado russo em França onde então desenvolveu sua filosofia existentielle Este filósofo russo fora influenciado por muitos místicos principalmente pelo místico protestante Jacob Böhme 15751624 de quem traduziu para o Francês diretamente do Alemão medieval com dois ensaios introdutórios a obra que Böhme escrevera1638 apesar da oposição clerical que o silenciara por cinco anos a partir de 1612 ano em que voltara a ser luveiro e sapateiro1639 É fundamentalmente pela intuição mística do Ungrund o não fundamento de Jacob Böhme e até mesmo por algumas análises de Heidegger que Berdiaeff vai pensar o ser 1638 BÖHME Jacob Mysterium Magnum ou Commentaire explicatif du 1ª livre de Moïse de la Revelation du verbe Divin par les trois príncipes de lÊtre Divin ainsi que de lorigine du Monde et de lacte créateur ou lon explique le Royaume de la Grâce Afin de faciliter la compréhension de lAncien et du Nouveau Testament et de que sont Adam et Christ et comment lhomme doit se connaîttre luimeme et considérer ce quil est ainsi que ce dans quoi résident sa vie temporelle et éternelle sa béatitude et sa damnation UNE EXPLICATION DE LÊTRE DE TOUS LES ÊTRES SOUMISE AUS MEDITATIONS DE QUICONQUE EN LAN DE GRÂCE 1623 I vol Com dois estudos de Nicolas Berdiaeff sobre Jacob Böhme A LUngrund et la Liberte e B La doctrine de la Sophia et de lAndrogyne Jacob Böhme et les corantes sophiologiques russes pp 27 ss 1639 INGE William Ralph Christian Mysticism op cit pp 277 ss 633 Todavia Berdiaeff não será detido pela tentação do puro apofático como Böhme não se deteu Na verdade ele vai além Sua originalidade filosófica reside no fato de que ele vai pensar o próprio ser como nãoincial como um produto já da racionalização há para ele o primado da liberdade sobre o ser O primado do ser sobre a liberdade acabaria no determinismo e na rejeição da liberdade Se a liberdade existe ela não saberia ser determinada pelo ser1640 Ela é préôntica enquanto que produto do pensamento abstrato o ser não existe1641 Berdiaeff também foi influenciado por filósofos tais como Immanuel Kant todavia se inclinou na preferência de um modo de expressão não sistemático e místico ao da lógica e à racionalidade propostas pelo racionalismo1642 Gabriel Marcel outra influência sobre Mounier e quem muito colaborou juntamente com Maritain com os jovens Emmanuel Mounier e Georges Izard para o lançamento de Esprit1643 recebeu seus estudos filosóficos na Sorbonne e seu certificado como professor de filosofia para o curso médio da época em 1910 Ensinando filosofia intermitentemente trabalhou normalmente como revisor editor escritor e crítico Originalmente vendo a filosofia como um tipo de pensamento muito abstrato Marcel influenciado por suas experiências da Primeira Guerra 1914 constrói uma filosofia concreta relacionada à intimidade da experiência humana Gabriel Marcel pode ser chamado justamente de o primeiro filósofo existencial francês1644 Essa nota biográfica sobre Marcel mais curta do que a de Berdiaeff se justificará pelos remetimentos ao seu pensamento que faremos mais à frente retomados em e por Emmanuel Mounier 1640 Em nota de LUROL BERDIAEFF Essais dautobiographie spirituelle 1949 ed BuchetChastel rééd 1958 p 126 1641 LUROL Gérard Mounier I Gênese de la personne Editions Universitaires Belgique 1990 p 182 in loc em nota de LUROL BERDIAEFF De lesclavage et de la liberté de lhomme op cit p 82 1642 Uma sucinta Introdução biográfica de Berdiaeff juntamente com a apresentação de suas muitas obras e movimentos que fomentou se encontram em BERDIAEFF Nicolas Um nouveau moyen age Reflexions sur les destinées de la Russie et de lEurope Traduit du russe par A M F Paris Librairie Plon ed de 1930 1643 Esprit 1905 a 1950 op cit p 976 Graças a Maritain e a Gabriel Marcel Esprit teve um escritório em Desclée de Brower 76 bis rua de SaintsPères Emmnauel Mounier havia recebido de Henry Bergson duas cartas uma em apoio ao livro sobre O Pensamento de Charles Péguy Oeuvres I e uma outra carta em agradecimento pelas flores que Mounier lhas havia enviado em agradecimento por Bergson ter enviado uma foto sua para um mural escolar A falta de dinheiro levou Mounier a vender uma destas duas cartas a um colecionador para com o dinheiro comprar a primeira máquina de escrever pela qual saíram os textos de Mounier em Esprit Sobre isso ver Esprit 1905 a 1950 op cit p 973 e Mounier et sa génération op cit p 425 e 445 1644 Suas principais obras são Journal métaphysique de 1927 Être et avoir de 1935 Homo Viator de 1945 Le Mystère de lêtre 2 vol de 1951 Uma ótima introdução ao pensamento de Gabriel Marcel é o texto de RICOEUR Paul Gabriel Marcel et Karl Jaspers Philosophie du mystere et philosophie du paradoxe Éditions du Temps Présent Paris 1947 634 Com isso podemos ver que Mounier já havia mantido contato com a filosofia da existência bem antes deste nome se tornar moda E já com toda a densidade que uma filosofia de afirmação da singularidade contra os sistemas poderia estabelecer O problema da singularidade já estava posto para Mounier na perspectiva das prerrogativas da pessoa Estas prerrogativas da pessoa com a densidade que corresponde a sua intimidade e expressão vão impedir Mounier de flertar com o solipsismo como já vimos para o personalismo a experiência original da pessoa e que está na base de sua antropologia é o modo de ser relacional Portanto a crítica de Mounier ao indivíduo moderno como apontamos acima vai se perspectivar no âmbito da irredutibilidade do personalismo em não abrir mão da base antropológica relacional da pessoa o que forçará Mounier a dar outras inflexões aos temas caros ao existencialismo tais como o da comunicação da relação da subjetividade da objetividade da angústia da morte do ser do devir da escolha da liberdade da transcendência da imanência do futuro do trágico da felicidade etc O existencialismo como o kantismo e a fenomenologia é também um divisor de águas na história da filosofia Todavia a maneira em que o existencialismo desdobrou os problemas colocados pela existência numa tensão sempre escorregadia para novos níveis de uma abstração que condenava nos outros1645 fez com que Mounier na perspectiva do personalismo procurasse ver nele por outro lado as vias que apontassem para um caminho mais próximo à existência tal qual falamos no início Na verdade para Mounier a grande tarefa a que o personalismo se propõe tarefa que o diretor de Esprit vê como sendo a do pensamento contemporâneo é unir Kierkegaard e Marx O marxismo de Marx era um humanismo muito mais que um naturalismo O existencialismo contemporâneo se mostra preocupado em integrar a existência objetiva O pensamento contemporâneo mais vivo grifo nosso se procura sobre os caminhos que religam um ao outro O destino dos próximos anos é sem dúvida o de reconciliar Marx e Kierkegaard1646 1645 Vamos tratar destes parentescos inconfessados quando tratarmos das relações possíveis entre a noção de indivíduo perpetuada pelo liberalismo e a de existente no espectro geral do existencialismo e mais especificamente em sua queda para o solipsismo sua tendência a uma antropologia individualista e sua aproximação da noção de guerra de todos contra todos muito moderna por sinal em sua visão acerca do tipo de relação que se dá entre os existentes etc 1646 Ibidem p 128 635 Uma palavra sobre a compreensão de Mounier do existencialismo Antes de tudo o título de sua principal obra sobre os existencialismos Introcuction aux existencialismes1647 no plural já nos indica uma postura contrária ao que Mounier já percebia tomar forma em sua época o que receberia seu acabamento final a partir da década de 1960 a título podese dizer de pretensão de antonomásia da manutenção do conceito existencialismo como significando grosso modo a obra filosófica e literária de Jean Paul Sartre1648 Esta tendência se realizou muito mais aqui no Brasil do que na Europa mas que por sua vez não ficou isenta de uma tendência à antonomásia de existencialismo com uma certa atmosfera de compreensão da existência da qual sem dúvida a obra de Sartre compartilha Este fenômeno se deu graças à aproximação dos problemas levantados pela existência delineados pela filosofia que pretende tomar o seu nome existencialismo juntamente com toda uma enxurrada de literatura e justamente o estabelecimento de uma atmosfera propensa à assimilação dos problemas levantados pela existência humana apenas sob a perspectiva desta atmosfera mais estimada por um certo círculo do que outras1649 Sobre isso diz Mounier O último absurdo do século deveria ser a moda do existencialismo a entrega à tagarelice quotidiana de uma filosofia que em todos os sentidos é nos arrancar da tagarelice1650 1647 Esta obra se encontra em Oeuvres III pp 69 a 175 e nela Mounier aborda os temas mais essenciais dos existencialismos Um outro texto na verdade um ensaio mais curto em que Emmanuel Mounier resolve enfrentar novamente os existencialismos é como já dissemos de 1949 e se encontra em Oeuvres IV p 359 a 381 Este compõe um livro que leva o interessante título A esperança dos desesperados com mais três ensaios o primeiro sobre André Malraux o segundo sobre Albert Camus o terceiro sobre os existencialismos em que Mounier mantém o plural Perspectivas existencialistas e o quarto sobre Georges Bernanos Nesta obra é a esperança do outro o que lhe importa descobrir para poder admirar uma vez mais o que há sempre de absolutamente pessoal de inalienável e pois de maravilhoso na adesão de tal ou qual homem em sua última razão de viver Lespoir des désespérés Oeuvres IV 285 1648 Introduction op cit p 69 antes de Sartre já havia existencialismo 1649 O fato cabal que comprova esta situação pelo menos no nosso país Brasil é praticamente a ausência de um tratamento a altura como se deu a Sartre e se tem dado a Heidegger das robustas obras de Nicolas Berdiaeff de Gabriel Marcel de Karl Jaspers como dissemos em nota anterior para não citar o próprio Kierkegaard chamado sem a autorização de Kierkegaard segundo o professor Ricardo Quadros Gouvêa de pai do existencialismo que só recentemente pela iniciativa dos professores Alvaro Valls e do professor Ricardo Gouvêa e sua equipe têm fomentado uma discussão profícua do pensamento do filósofo dinamarquês Mais à frente outros nomes serão citados pelo próprio Mounier que na primeira página de Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 71 esboça uma árvore genealógica do existencialismo e suas principais correntes 1650 Introduction op cit p 69 Ver também o que o filósofoteólogo Paul TILLICH Aspectos existencialistas da arte moderna in Textos selecionados Fonte Editorial São Paulo 2006 pp 31 ss diz sobre esta perigosa popularização do existencialismo 636 O título Introduction aux existencialismes colocando o existencialismo no plural tem a intenção da parte de Mounier e pelo fenômeno acima já observado por ele1651 de deslocar a unilateralidade que se esboçava quanto aos problemas colocados pela existência humana para ares mais amplos Todavia percebemos no sentido que toma a própria inspiração personalista provinda da obra de Mounier que apenas a pluralização da noção que parece ter um caráter propedêutico e de aproximação não é suficiente1652 Não se trata somente de existencialismos mas antes de respostas pessoais cada filósofo em sua reflexão responde também com sua singularidade como pessoa1653 às perguntas colocadas pela existência cujo tipo de abordagem e maneira de responder nomeouse de maneira geral existencialismo Para forçar uma reconfiguração advinda da própria reflexão de Emmanuel Mounier poderíamos então dizer que não existem existencialismos mas antes perguntas colocadas 1651 Aliás esta percepção antecipadora quer dizer a lucidez que o fazia adiantarse aos fatos parece ser uma característica de Emmanuel Mounier Alguns exemplos isso se deu com a profícua problemática levantada pela relação entre o Ser e o Ter cuja origem tem sido equivocadamente atribuída a Gabriel Marcel sendo que Mounier lança um texto sobre o problema um ano antes de Ser e Ter de Gabriel Marcel antes do marxismo ter sido divulgado na França Mounier apresenta textos críticos com análises honestas da obra de Marx e que até hoje se mostram pertinentes quando o nazismo não era ainda visto na Europa como portador da catástrofe da qual foi posteriormente Mounier com outros já esboçava sua crítica mostrando os caminhos que poderiam decorrer do tipo de inspiração que motivava o nazismo isso também sem dúvida graças a informações que recebia sobre o movimento nazi por exemplo de PaulLouis Landsberg amigo e membro da equipe de Esprit cujo papel no movimento personalista dos nos trinta como já dissemos ver RICOUER Paul A região dos filósofos Leituras 2 Loyola São Paulo p 151 é tão importante quanto o de Mounier o qual já tecia críticas ao nazismo desde 1930 o que o fez fugir de sua perseguição da Alemanha para Espanha em 1934 o contato de Mounier também com um dos grandes colaboradores e fundadores da Revista Esprit Nicolas Berdiaeff como já dissemos o ajudou a elaborar um lúcida crítica ao comunismo stalinista mesmo na contramão de uma intelectualidade que não obstante os Gulags e os desmandos violentos do regime stalinista fizeram vistas grossas sobre isso em seu apoio ao regime em nome do ideal revolucionário e da pureza da doutrina O primeiro artigo de Nicolas BERDIAEFF em Esprit foi Vérité et mesonge du communisme Esprit n 1 octobre 1932 pp 104128 1652 Infelizmente a morte prematura de Mounier 22 de março de 1950 às três horas da manhã ver MOIX Candide O pensamento de Emmanuel Mounier Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 p 37 impediu e nos privou de uma reflexão que vinha tomando corpo e apontava cada vez mais para uma extrema pertinência e consistência 1653 Ver o que Jean LACROIX diz sobre o caráter pessoal da filosofia em Marxismo Existencialismo e Personalismo Paz e Terra Rio de janeiro 1967 passim LACROIX nesta obra no capítulo Significado da Dúvida cartesiana pp 91 ss elenca o personalismo como uma filosofia do sujeito o que esse nosso estudo sobre a reflexão de Mounier tem tentado perspectivar em outro sentido no da relação O personalismo então não é nem uma filosofia do sujeito nem uma filosofia do objeto nem uma filosofia do Eu nem uma filosofia da consciência e nem uma filosofia da morte do sujeito Para nós o personalismo é uma filosofia que alça o seu ponto de partida aquém da afirmação ou da pura negação e que no entanto quer ir além destes recortes sobre uma essencialidade que lhes é anterior e que ele toma como a experiência originária do ser o personalismo é filosofia da relação Assim tanto o Sim quanto Não devem ser vistos no personalismo de Mounier em uma mesma profundidade 637 pela existência humana e que são respondidas diferentemente por diferentes filósofos pessoas singulares que procuram dar tratamento a estas perguntas levando em conta exigências de método e de abordagem que crêem mais corresponder ao modo de ser do seu objeto comum ou seja a existência humana Nesse sentido os pressupostos pessoais as metafísicas pessoais a religiosidade ou irreligiosidade pessoais ou ainda a recusa destas duas opções o que para o persoanlismo já é sempre uma posição pessoal diante do problema para Mounier não são avaliadas como méritos em si mas na medida em que procuram ser fiéis ao seu objeto ao mesmo tempo em que são fiéis às conseqüências concretas dos seus pressupostos os quais o personalismo de Mounier perspectivará à luz dos valores que se destacam como compondo as adesões mais profundas sejam elas quais forem Já dissemos que para o personalismo de Emmnauel Mounier não tem mais razão quem nega mais ou quem afirma mais ou ainda quem não se decida nem por um nem por outro Especificamente esta última já é como já dissemos para o personalismo uma decisão que enquanto tal mesmo enquanto decisão se não apontar para uma real postura de tensão existencial profícua em relação a um problema tão fundamental como é o da existência humana será para o personalismo sem dúvida sempre uma atitude muito inferior em densidade existencial às outras que afirmam ou negam Pois estas pelos menos ao afirmarem ou negarem de alguma forma buscam alguma relação com o objeto para o personalismo a indiferença é a decadência se se pode dizer por excelência Esta tende a apontar ou para a morbidez patológica caso clínico ou para o indiferentismo altaneiro que se ressente de toda decadência e demissão da vida provinda do espírito burguês caso ideológico políticomoral Sem contar que essa postura da atual apologética do indiferentismo se ressente de todos os componentes da decadência do abstracionismo neoliberal atual que não tendo mais nada a dizer de significativo sobre os atuais concretos e urgentes problemas da existência humana por outro lado para o lado pior destes problemas muito tem colaborado há pelo menos duzentos anos em sua dominação cultural ocidental moral econômica política religiosa etc como já vimos1654 1654 Ver acima Personalismo e liberalismo 638 À intenção de contribuir para o resgate e a colocação devida da reflexão de Mounier no cenário intelectual filosófico brasileiro1655 que injustificadamente1656 o tem esquecido mas sem deixar de ter sido tocado de alguma forma como veremos pela sua irradiação1657 como Mounier preferia falar somase em contra partida uma observação sobre a necessidade de esclarecimento quanto à pretensão em relação a alguns pensadores que se estabeleceram no cenário filosófico brasileiro com tal força de unanimidade tal como Jean Paul Sartre e Martin Heidegger e principalmente quanto ao tema da existência em filosofia como se fossem os únicos autorizados por causa mesma dessa maior divulgação e únicos competentes e capazes de falar sobre os seus problemas É difícil atentarmos para esta realidade sobretudo no Brasil e não percebermos a necessidade de um ajuste não porque desconheçamos os méritos inegáveis da reflexão sartriana e heideggeriana mas porque para nós é um absurdo filosófico reduzir os problemas da existência humana às respostas provenientes de uma única perspectiva ou de duas ou de três e isso para ser conseqüente com o personalismo pluralista de Emmnauel Mounier Para tanto falar sobre o caráter original da existência como in perpetuum relacionado ao existencialismo tal como se tem convencionado é inaceitável pois para o personalismo é a existência que põe os problemas e não o existencialismo que só pode tomálos sempre já perspectivados sempre enviesados sempre unilaterais pelas opções finitas cambaleantes frágeis sujeitas à revisão do existente que as colhe Além disso falar também ao modo de proprietário que está implícito nessa pretensão de unanimidade totalmente estranha e incabível ao âmbito complexo da existência humana é deixarse tocar de todo por um ressentimento muito característico de um certo espírito pequenoburguês reivindicativo advindo do esquema decadente do individualismo reivindicativo pequenoburguês liberal que tende a pensar tudo até o pensamento sob este modo de ser do proprietário Por outro lado na tarefa de fazer justiça ao pensamento personalista e aqui especificamente ao relacionado à perspectiva de Emmanuel Mounier cremos estar preenchendo um dos requisitos científicos de um trabalho de dissertação tal como este que 1655 O que cremos também corresponder a uma exigência acadêmica para um trabalho de dissertação Ver ECO Umberto Como fazer uma tese Editora Perspectiva 1977 p 1 a 6 1Que é uma tese e para que serve 1656 Essa é uma das intenções desta dissertação que é também expressão de um espanto com o fato de uma obra tão densa ter permanecido até agora de lado nos estudos de filosofia no Brasil 1657 Ver em LORENZON Alino Présence de Mounier au Brésil in Actes du colloque tenu à lUNESCO op cit pp 547 ss sobre a irradiação do pensamento de Mounier em alguns grandes intelectuais brasileiros 639 estamos realizando no esclarecimento também quanto à falsa confusão do pensamento de Emmanuel Mounier com as demissões de uma postura dita espiritualreligiosa a qual o diretor de Esprit sempre assiduamente e com veemência combateu e com a qual acabou sendo ao que parece erroneamente confundido Será que é porque foi mais fácil e mais cômodo no cenário intelectual brasileiro esta é uma outra tarefa a que se propõe este presente estudo Todavia não desconheceremos e nem desmereceremos nunca o que Emmanuel Mounier também faria o grande préstimo à sociedade brasileira em termos de conquistas sociais e de conscientização política não obstante os problemas de método e de hermenêutica que possam advir do esquema da crítica políticosocioestrutural marxista mais adotado como já vimos que o movimento das comunidades de base da Teologia da Libertação de alguma forma também influenciados pelo personalismo puderam oferecer Não confundimos o ato filosófico de Mounier tranquilamente com o neotomismo mas não deixamos também de reconhecer a pertinência dos esforços por uma reabilitação da inteligência empreendidos por Jacques maritain Etienne Gilson etc Não confundimos segundo a lucidez de Mounier que não confundiu a chamada democracia cristã com o pensamento cristão engajado lúcido e nem confundiremos também a robusta tradição da espiritualidade cristã nem com a pieguice católicoromanalusobrasileira e nem com a patacoada evangélicoprotestanteangloestadounidensecapitalistaneoliberalluso brasileira Mantemos em mente muito claramente como Emmanuel Mounier mantinha as diferenças essenciais entre as fontes e as origens históricas vitais do cristianismo de suas decadências e simulacros advindos de suas experiências e projeções históricosociológicas decadentes Complementando a desolidarização anterior com a espiritualidade decadente com o seu simulacro dito religioso tal como o personalismo de Emmnauel Mounier propõe seguimos a um outro esclarecimento que complementa essa desolidarização com o pseudoreligioso que é o da desolidarização com o que se convencionou denominar aqui no Brasil também de espaço laico ou pensamento laico que tomado com ares de pressupostos definitivos e acordados por todos numa espécie de unanimidade acima de qualquer crítica como já dissemos para o personalismo é e continua ainda uma tarefa a ser realizada Para tanto me valerei de um exemplo recente ocorrido comigo mesmo mas que aos meus olhos é paradigmático quanto à questão na qual agora vamos tocar 640 Tratase de um evento que expressa uma certa atitude estabelecida no âmbito chamado laico brasileiro não diretamente ligado aos estudos em religião mas que nem por isso deixa de falar de religião e emitir opiniões com tom de autoridade e palavra última sobre ela Esta atitude que a nós se apresenta se não na forma de uma unanimidade aberta e confessada todavia com certeza se dá na forma de uma indisposição de ânimo Indisposição em tentar ver a religião em geral e o cristianismo em particular sem considerar o que já fora feito em termos dos estudos já realizados em ciência da religião em história da religião em fenomenologia da religião e em relação particularmente ao cristianismo em teologia contemporânea de qualidade católica protestante e ortodoxa Estudos estes como já vimos que vêm sendo realizados desde o fim do século XIX Este fato nos leva inelutavelmente a desconfiar não obstante segundo o personalismo a necessidade sempre emergente de crítica religiosa competente da qualidade científica e da seriedade das afirmações vindas desses lugares sobre religião Tanto mais pelo fato de que elas costumam ser sempre por um lado muito específicas e reducionistas em sua abordagem unilateral do fenômeno religioso tomado sempre de algum campo de apreensão fenomênica ou como fenômeno sociológico ou como fenômeno antropológico ou como fenômeno psicológico etc e por outro lado muito gerais em suas conclusões a respeito do fenômeno religioso enquanto tal nomeadamente o cristianismo Estas análises portanto tendem a desconsiderar para além dos quadros comportados e adequados das expressões religiosas sociologicamente rendidas aos ditames da sociedade de consumo religião enquanto projeção sociológica como já vimos a realidade de uma moral burguesa uma antropologia individualista uma pseudoeconomia capitalista e uma pseudopolítica democrático parlamentarneoliberal cujos pseudovalores que fundamentam estas instituições carcomidas e necrófilas como temos tentado mostrar a partir do personalismo de Emmnauel Mounier representam justamente a negação dos valores mais essenciais ao religioso que significam como já dissemos em sua essência a afirmação incontornável da vida e da liberdade O fato é que para este tipo de pensamento indisposto tudo que possa apontar na religião em geral e no cristianismo em particular para fora dos quadros reduzidos de seus esquemas teóricos psicológicos antropológicos sociológicos etc previamente assumidos como detendo a palavra final está fora de cogitação Não é difícil entender que 641 um tal reducionismo simplifica as coisas Todavia ao mesmo tempo não consegue escapar de uma crítica que veja também nessa sua atitude um certo comprometimento ideológico uma correspondência até direta da atitude geral desse pensamento indisposto com os valores da sociedade decadente atual que procura também ela de todas as formas e maneiras subsumir as formas religiosas aos seus valores de decadência e de morte Para melhor rendêlas castrálas esvaziar o seus valores biófilos e afirmadores da liberdade para o seu melhor controle e tranqüilidade conservadora na manutenção do statu quo Fato também é que para esse pensamento indisposto tudo que das formas da religião popular possa apontar para outra coisa que ao apoio ao seu relativismo fácil metodológico que sintoniza com o chamado discurso politicamente correto está fora de cogitação tudo o que no cristianismo possa apontar para outra coisa que a pieguice católicoromanaluso brasileira ou para a patacoada evangélicoprotestanteangloestadounidensecapitalista neoliberallusobrasileira moldes sob os quais as afirmações desse pensamento indisposto sobre os tais recebem o ar de cientificidade de análise correta de como as coisas são está também fora de cogitação O evento que me parece paradigmático quanto a isso do qual falei antes ocorreu comigo e se refere à tradução de uma entrevista com o filósofo italiano cristão e gay assumido Gianni Vattimo1658 que me fora encomendada Tratase de duas perguntas que dizem respeito diretamente ao cristianismo cujas modificações na edição lançada me parecem confirmar estas minhas intuições em relação ao que tenho chamado de pensamento indisposto brasileiro e que não necessariamente podem representar a opinião do veículo mas que me parecem representar uma atitude muito comum no âmbito mais geral dos estudos ligados à cultura e às ciências sociais em geral e que têm intimidado 1658 Tratase de uma entrevista para a Revista Cult número 126 1968 muito além de maio p 14 ss Quero deixar claro todavia que não se trata nem de desmerecer e nem de criticar o trabalho em si dessa grande revista brasileira de veiculação cultural ainda mais pela consciência que tenho da dificuldade de se manter uma publicação em tão alto nível como o faz a revista Cult num país culturalmente pobre como ainda é o Brasil eu mesmo já tive a amarga experiência de encabeçar e manter hoje desativada um projeto de Editora na área de ciência da religião e teologia séria e sei como disse o quanto é difícil manter um tal projeto numa sociedade culturalmente tão defasada como é a brasileira Portanto o que tenho a dizer de maneira alguma desmerece a eficiência e a extrema qualidade dos trabalhos da revista Cult uma das poucas atualmente realizando no país com seriedade a disponibilização e tratamento do pensamento científico ligado às ciências humanas em geral e à filosofia Não obstante me interessa aqui ressaltar esse fato ocorrido que por ser paradigmático como eu disse todavia é o mais comum e com o qual tenho me deparado constantemente também em estudos sociológicos sobre a religião em palestras de filosofia em que o tema da religião e do cristianismo em particular é tratado etc e que tem a ver com a questão pontuada nesse momento do nosso texto somente isso 642 como o filósofo Étienne Borne disse a filosofia fazendoa renderse ao papel de descritora Isso por outro lado faz com que as ciência sociais e culturais de uma forma ou de outra se vendo obrigadas a tocar no tema da religião e do cristianismo em particular não consigam aproveitar a oportunidade para a realização de uma crítica aprofundada da religião e do cristianismo em particular da qual a sociedade moribunda brasileira precisa tanto que seus intelectuais realizem Em uma das perguntas tratase da ausência de uma parte da resposta e da conseqüente mudança da pergunta e na outra simplesmente de sua ausência na edição impressa Infelizmente as perguntas originais respondidas de maneira lúcida por Gianni Vattimo a partir de sua perspectiva heideggeriana ao que me parece não foram editadas como no original pelo fato de não seguirem um certo sentido que se esperava que as respostas de Vattimo tivessem e que convergiria para essa indisposição de pensamento que tem impedido uma crítica aprofundada e tão necessária à religião e ao cristianismo em particular por parte da intelectualidade brasileira que ao meu ver nesse quesito repito continua em dívida com a sociedade brasileira A primeira pergunta era Cristo disse que a verdade vos libertará Isso seria possível no interior de uma lógica niilista grifo nosso Na edição da revista esta pergunta foi mudada para O pensamento cristão de que a verdade vos libertará é possível no interior de uma lógica E a resposta original de Vattimo seguindo minha percepção de que a pergunta original estava mal formulada Como pode se dar uma lógica niilista pensei eu ao traduzir a pergunta começa com a seguinte frase de Vattimo que foi omitida da resposta editada na revista Eu não saberia como definir uma lógica niilista E o restante da pergunta segue como Vattimo respondeu originalmente Eu diria que a verdade como a define Jesus Cristo é o verdadeiro niilismo se ela for entendida no sentido que tenho ilustrado acima a verdadeira verdade não são as proposições descritivas adequadas é o horizonte do ser dentro do qual as proposições se tornam possíveis Não somos espectadores passivos das coisas somos interlocutores e intérpretes da mensagem que o próprio ser nos envia A pergunta número 4 que infelizmente não foi publicada e que foi também a nosso ver lucidamente respondida por Vattimo foi a seguinte Nietzsche escreveu que Deus morreu O senhor concorda depois de considerar o cristianismo como a religião do enfraquecimento A ela Vattimo respondeu Eu sustento até que o Deus que está morto 643 de Nietzsche é o Deus cristão mesmo Não no sentido literal em que o cristiansimo fala da morte de Jesus e Nietzsche foi sempre filho de um pastor protestante mas no sentido de que a morte de Deus se torna possível pelo evento mesmo do cristianismo é a própria mensagem bíblica que fala da Criação e da Salvação que liquida a idéia de uma estrutura eterna platônica ou parmenediana do ser Vemos então que o evento acima descrito para mim paradigmático confirma a existência de uma atmosfera prevalescente de um certo indiferentismo niilista de adoção de um ralativismo fácil que tenta subsumir sob sua estética todo e qualquer fenômeno na intenção de esvaziálo de sua irredutibilidade às formas cômodas de pensamento assumidas sob o nome de pensamento de vanguarda de penamento objetivo de pensamento científico etc o que Mounier e os personalistas todavia já percebiam como fenômeno de sua própria época e que ao que parece pelas respostas do filósofo italiano Gianni Vattimo não é uma unanimidade no âmbito da intelctualidade européia muito mais ao que parece sintonizada com o desenvolvimento das pesquisas não só filosóficas como teológico religosas do que parece o que acontece aqui no Brasil Com isso também se esclarece a nossa abertura de um capítulo sobre a pessoa e existência como justamente o que nos ajudará a desconstruir ao menos uma parte desse pensamento indisposto que ao que parece paradoxalmente as fontes de que se nutrem não autorizariam um tal dogmatismo do relativismo como as respostas de Vattimo que segue a perspectiva do existencialismo heideggeriano deixam claro Mounier foi um cristão assumido sem dúvida mas não um alienado Para ele isto quer dizer que é possível ser cristão sem ser alienado por qualquer tradição confessional religiosa das fontes históricas e do sentido original do cristianismo com os seus valores os quais podem ser encontrados nestas mesmas fontes e na seqüência histórica que se desenvolve e que permite que sejam entrevistos em suas resistências ao engessamento de sua eternidade sob as formas sociológicas que assumem e que sempre tendem no sentido de subsumir sob suas instituições passageiras que não se assumem como tal e querem se eternizar numa espécie de autoidolatria aquilo que na religião em geral e no cristianismo em particular permanece não subsumível1659 Já tivemos a oportunidade de 1659 Ver a Grande Mística contra a falsa espiritualidade de negação do corpóreo da gnose pagã em INGE The Christian Mysticism op cit passim ver os movimentos de Reforma ocorridos durante a Idade Média e que se insurgiam contra a decadência da Igreja Institucional e ver o sentido da crítica à superstição pela Reforma 644 ver tudo isso quando falamos da sólida formação teológica e bíblica que Emmnauel Mounier adquiriu com o teólogo Pouget e seu contato com a problemática da época em teologia do liberalismomodernismo Quer dizer da tentativa do racionalismo neokantismo do século XIX de continuar a querer reduzir a ética cristã ao seu moralismo e o sobrenatural só porque não explicável sob os moldes da sua razão racionalista à pura fantasia Naquele momento falamos também dos avanços na pesquisa sobre o fenômeno religioso fora dos quadros do racionalismo estreito e sobre o interesse crescente que se deu aos estudos da mística citamos Rudolf Otto quem inaugura a ciência da religião etc1660 Todavia para o personalismo de Mounier em relação à resistência à alienação o mesmo poderia ser dito da situação do ateu ou outros que pode e deve ser tal quer dizer não alienado por qualquer tipo de doutrina ou explicação reducionista da realidade Isso quer dizer que para o personalismo não são nossas opções pessoais profundas que a priori indicam se somos alienados ou não mas o quanto o nosso discurso público é capaz de expressar uma tensão frutífera na nossa busca por sermos conseqüentes com os valores que fundamentam estas nossas opções profundas já que para Mounier estas opções devem ser sempre ouvidas com atenção e humildade pois são aproximações ora cheias de significado ora não tão cheias assim ao mistério inesgotável que nos une a todos a condição da existência humana finita Depois de mais essa necessária digressão voltemos ao existencialismo Sobre ele diz Mounier É nossa intenção restabelecer aqui esta tradição em sua amplitude esquecida Ninguém tem mais a dizer com efeito sobre o desespero do homem contemporâneo Mas sua mensagem não é uma mensagem de desespero Ninguém alarma melhor contra as suas loucuras Mas ela propõe melhor contra as loucuras cegas uma loucura lúcida1661 Vemos que para o pensamento selvagem e a filosofia relacional destemida de Emmnauel Mounier não se trata de descartar de menosprezar de rebaixar de desclassificar mas antes de pesar de sentir a densidade a resistência de provar o valor de um pensamento e das coisas enfim como Mounier gostava de dizer de afrontar No primeiro artigo em Esprit de 1932 escreve Mounier Reaprenderemos o sentido carnal protestante que toma um outro talhe que a crítica racionalista e Renascentista em ROUGEMONT Denis de Pensée avec les mains op cit passim 1660 Ver acima pp 41 ss 1661 Introduction op cit p 69 645 do mundo a companhia das coisas Nós aí acrescentaremos uma poesia e isso já será um primeiro resplandecer rosado novo a esta alma moderna pobre de cores e endurecida de banalidades O ser humano concreto é o ser humano que se dá o ser humano concreto é o ser humano contemplativo e trabalhador Eu não sou presente a mim mesmo se eu não me dou ao mundo eis aí o drama Não se possui senão o que se dá É necessário acrescentar não se possui senão no em que se se dá não se possui senão no ponto em que se se dá1662 Estas precisões sempre buscando o mais concreto ou seja o mais próximo da pessoa vão caracterizar as precisões que Mounier vê necessárias para o aprofundamento das fórmulas existencialistas Assim os existencialismos devem ser avaliados no que eles se propõem representar enquanto pensamento contemporâneo uma crítica à vontade de sistema e à crispação do indivíduo moderno que para o personalismo se apresenta como o suprasumo a hipóstase mesma da loucura quer dizer o egoísmo concentrado E a partir dessa autoexpressão da crítica existencialista medir o quanto suas expressões são fiéis a este itinerário adotado e proposto por eles mesmos e assim medir o quanto os existencialismos são fieis a si mesmos sendo fieis às perguntas colocadas pela existência nas respostas mesmas em que devem fazer valer tanto a fidelidade às aderências profundas do existente quanto às perguntas colocadas pela existência V1 Subjetivismo e objetivismo Comecemos por uma questão que consideramos aqui fundamental É conhecida a tese que se tornou lugar comum na crítica contemporânea de falarmos da noção de indivíduo e seu principal atributo a subjetividade como de um produto exclusivo da modernidade Todavia pesquisas mais recentes1663 e mais amplas nos apresentam uma problematização desta tese muito aceita e seguem uma direção diferente Antes de tudo não seria demais notarmos que esta tese muito aceita é datada tratase de premissas concluídas das pesquisas realizadas pela ainda jovem na época Filologia do século XIX 1662 Número especial de Esprit em memória Emmanuel Mounier 19051950 Aux Éditions du Seuil dezembro de 1950 p 981 1663 MONDOLFO Rodolfo La comprensión op cit e El infinito op cit JÄGER Werner Cristianismo primitivo op cit e La teologia op cit 646 principalmente pela escola alemã Esta pesquisa basicamente seguiu duas linhas distintas e aparentemente autoexcludentes nas suas intenções de fundo Não obstante encontrandose nas mesmas bases e pressupostos em suas conclusões finais Por um lado na vertente que tomou dentro da crítica teológica o indivíduo surgia como a contribuição específica do cristianismo à cultura ocidental de herança greco romana na qual este não existia com o status privilegiado que tinha o conceito de societas latino e o de polis grego com estes dois compondo sempre um sentido privilegiado da coletividade sobre o indivíduo Esta crítica teológica assim construía sua apologética do cristianismo em relação a esta sua contribuição específica perspectivada de maneira positiva como a valorização do singular diante da investida coletivista sufocante típica da cultura da Antiguidade Por outro lado seguiase uma vertente da crítica filosófica em que este indivíduo também mantido como produto específico do pensamento cristão era tomado explicitamente como sinônimo de decadência em relação aos padrões da cultura cívica antiga Esta nova atribuição do indivíduo como sinônimo de decadência por sua vez vai correr no pensamento contemporâneo por duas linhas críticas uma dita cristã e outra dita atéia no entanto ambas com um mesmo inimigo e um amigo à frente por sua vez o sistema de Hegel e o resgate da singularidade contra o indivíduo moderno Tratase afunilando bastante a coisa toda e em ordem cronológica da tradição de inspiração kierkegaardiana e da tradição de inspiração nietzschiana Não é desinteressante apresentarmos aqui as linhas gerais dessas duas correntes que têm dividido e polarizado a opinião geral quanto ao constituinte subjetivo do ser humano e seu papel em relação à Antiguidade e à modernidade do ponto de vista da pesquisa filológica mais atualizada Para tanto nos valeremos aqui da que fora realizada na nossa opinião magistralmente por Rodolfo Mondolfo1664 Nesta pesquisa o autor não pretende simplesmente mostrar que não haja diferenças no tema da subjetividade entre a Antiguidade e a modernidade para contestar a maneira estanque em que tem permanecido desde então pois Mondolfo reconhece que elas existem Todavia sua principal intenção é amolecer um pouco as posturas rígidas que prevalecem quanto a este problema em uma separação estanque entre ética antiga e moderna que a nosso ver parece antes uma comodidade infrutífera O que nos leva a concluir que em Mondolfo tratase de mostrar que 1664 MONDOLFO Rodolfo La comprensión e El infinito 647 Antiguidade e modernidade dizem respeito antes a ênfases do que a caracteres puramente estanques o que converge para a visão personalista da história tal como temos tentado delinear aqui No início do volume que trata da compreensão do sujeito humano na Antiguidade1665 Mondolfo passando em revista a situação da pesquisa desde o século XIX até o seu tempo elenca algumas posições cujo aspecto que tomam na forma como se tem colocado o problema da subjetividade em relação ao pensamento clássico vai lhe fornecer as condições para que ele mesmo caracterize as suas próprias posições pelas quais justamente orientará toda a monumental pesquisa que realizou sobre os documentos antigos os mais diversos disponíveis até sua época Sem dúvida a diversidade dos documentos bem mais ampla e os critérios críticos bem mais estruturados da pesquisa científica dos quais Mondolfo dispôs para realizar essa sua pesquisa foram por conseguinte bem mais abrangentes e mais precisos do que os que Kierkegaard e Nietzsche dispunham cada qual em sua época Esse trabalho de Mondolfo nos ajudará a esclarecer um aspecto importante concernente a nossa própria compreensão desta questão fundamental que também se destaca do pensamento de Emmanuel Mounier como pertencente ao raio de sua problematização filosófica e que por isso se enquadra nesse nosso tema da pessoa e existência Para tanto escreve Mondolfo Com a amplitude que caracteriza geralmente seu ponto de vista De Ruggiero na terceira edição de sua Filosofia grega procura levar em consideração os momentos subjetivos românticos e místicos da alma grega e afirma que o progresso da historiografia posterior a Zeller t I p 45 está justamente em havêlos reconhecido ele destaca além disso o subjetivismo da sofística frente ao objetivismo dos naturalistas que a precedem cap II e os aspectos e elementos subjetivos que aparecem em Sócrates cap III Platão cap IV Aristóteles Cap V os estóicos cap VI etc assim como a afirmação constituída pelo direito romano de uma subjetividade que submete a seu domínio a objetividade do mundo material Cf A filosofia do cristianismo t I cap I Saitta por outro lado diz Mondolfo em seu estudo sobre O iluminismo da sofística grega Milão 1938 não só reconhece o caráter subjetivista das doutrinas sofísticas como 1665 MONDOLFO La comprensión del sujeto humano op cit Capítulo II La incomprensión de la subjetividad atribuida a la antigüedad clásica p 29 648 encontra antecedentes de subjetivismo nos próprios naturalistas présocráticos e atribui um caráter fundamentalmente humanístico a todo o espírito grego considerando que é esse caráter o que o leva a subjetivar a própria natureza universal que se converte desta maneira na encarnação da subjetividade humana p 941666 Esta perspectiva interpretativa mondolfiana da história como já podemos ver se enquadra perfeitamente dentro da perspectiva de abordagem histórica do personalismo de Emmnauel Mounier mas não sem problemas para o próprio Mounier que um tanto indeciso deixase tocar ainda aqui e acolá pela polarização tradicional Não obstante com os sinais internos já em sua própria obra de uma superação desse impasse hermenêutico Todavia é necessário precisar aqui que o flerte em Mounier com a polarização tradicional se dá mais dentro do âmbito de sua compreensão do sentido do tempo por parte da Antiguidade grega em relação à contribuição do cristianismo com sua ênfase e o seu elemento de continuidade temporal linear Isso para usar uma simplificação em relação à concepção neotestamentária de tempo que como toda simplificação é sempre imperfeita e tendente a malentendidos tempo linear linha reta em contraste com a generalização costumeira da compreensão de tempo que se tem como sendo in perpetuum a dos gregos que como a figura da linha reta do tempo linear deveria ser também apenas uma simplificacão na figura do tempo circular ou círculo1667 No entanto aqui e acolá como dissemos mas não muitas vezes encontramos na obra de Mounier afirmações que pulsam ainda no sentido da manutenção de uma pura descontinuidade temporal entre Antiguidade grega e pensamento cristão que se aproximam do preconceito histórico tradicional que temos indicado quanto a uma visão puramente descontínua da história do qual participam claramente Kierkegaard e Nietzsche mas que em Mounier se equilibra por outras suas afirmações na mesma obra e que fazem valer então a perspectiva mais afim ao tratamento personalista da história como temos tentado expor aqui ou seja a perspectiva de que também em matéria de compreensão da história não há jamais descontinuidade absoluta Para o personalismo também em matéria de compreensão histórica voltamos a repetir vale o lema da Grande Mística distinção sem 1666MONDOLFO La comprensión del sujeto humano op cit p 42 s 1667 Uma leitura atenta de Cristo e o tempo de Oscar CULLMANN op cit bastaria para esclarecer não obstante tratarse de um estudo na área de história do cristianismo primitivo a relação entre o chamado tempo cíclico como proveniente do pensamento grecooriental e tempo linear como contribuição judaicocristã 649 separação Ficam rejeitados portanto todo relativismo quanto toda ilusão de um possível início ab ovo por quem quer que seja em qualquer ponto da história Para caracterizar melhor este paradigma aceito como uma espécie de acordo tácito pelas correntes intelectuais mais díspares o que por outro lado pode explicar a força de sua atração ainda em Emmnauel Mounier citaremos algumas observações dadas por Mondolfo a respeito De maneira particular observa Mondolfo1668 duas correntes de pensamento afirmam e acentuam em nossa época juízos e censuras análogas acerca da ética antiga e da moderna como totalmente distintas análogas às formuladas por Brochard in loc em relação à moral grecoromana Tratase segundo Mondolfo da corrente dos espiritualistas cristãos por um lado e a da dos idealistas neohegelianos por outro cujos pontos de vista sobre este assunto são também geralmente aceitos por autores que aderem a outras correntes filosóficas Os espiritualistas cristãos diz Mondolfo opõem à sabedoria grega que fundamenta sua ética na racionalidade o paradoxo cristão que introduz uma orientação oposta baseada em três princípios de índole irracional inalcançáveis para a Antiguidade clássica a consciência do pecado a consagração do ser humano mediante o sofrimento e a morte transfiguradora Neste ponto de vista escreve Ch Moeller citado por Mondolfo in loc o Evangelho se opõe radicalmente à sabedoria grega Atenas e Jerusalém serão sempre as capitais de dois reinos dois reinos que não se reconciliarão nunca totalmente aqui na terra Nietzsche1669 o havia visto muito bem ao dizer no terceiro capítulo de sua obra Além do bem e do mal nota Mondolfo que os homens já não se dão conta do que havia de espantoso para um espírito antigo na fórmula paradoxal Deus crucificado Esta fórmula anunciava uma transmutação de todos os valores1670 Por outro lado continua Mondolfo os idealistas neohegelianos que afirmam a filosofia do espírito sustentam que a ausência das noções de consciência moral de pecado 1668 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 332 s 1669 Em nota de MONDOLFO Antes de Nietzsche na realidade a oposição entre moral pagã e moral cristã sobretudo com respeito à idéia de pecado havia sido afirmada por Kierkegaard cuja influência no entanto só se fez sentir amplamente nos último decênios com a difusão do existencialismo Com anterioridade Kierkegaard havia contribuído poderosamente para difundir a idéia de uma antítese irreconciliável entre as duas éticas o que como influência em Nietzsche no entanto em sua polêmica contra a moral cristã queria utilizar a pagã para fins de uma transmutação dos valores 1670 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 333 Em nota de MONDOLFO ibidem Cf MOELLER Sagesse grecque et paradoxe chrétien Paris Gallimard 1948 p 20 650 de dever como lei interior que segundo eles diz Mondolfo caracteriza a ética antiga constitui um documento e uma confirmação desse caráter objetivo e do desconhecimento do sujeito para os quais diz Mondolfo toda a filosofia grecoromana em relação à cristã e a moderna que se caracterizam pelo subjetivismo são opostas Mondolfo nota que os neohegelianos por outro lado ao expressarem tal antítese se distanciavam em parte da história como fora traçada por Hegel em suas Lições sobre a filosofia da história universal em que estabelecia uma oposição entre o mundo grego e o oriental declarando a propósito do primeiro que ali chegamos ao mundo do espírito que descende dentro de si ao mundo do espírito humano saudando em Sócrates diz Mondolfo o filósofo que traçou a interioridade do homem diante de sua própria consciência dando aos gregos o princípio da consciência moral que todavia não tinham e que desde então começou a constituir o germe e princípio para o espírito da liberdade superior1671 Daí segundo Hegel como nota Mondolfo começa na história o desenvolvimento ulterior deste princípio cujas etapas são representadas da seguinte forma 1 pelo mundo romano que afirma o princípio da personalidade e o valor infinito do indivíduo momento da interioridade que falta aos gregos 2 pelo judaísmo que introduz a idéia de pecado original eterno mito do homem pelo qual o homem se faz precisamente homem e 3 pelo cristianismo que leva o homem à unidade interior com Deus e o ensina a buscar sua libertação exclusivamente na interioridade espiritual mediante a fé e o amor e a revelação de Deus no coração puro Porém nota Mondolfo in loc é precisamente esta dialética das oposições o que acabou logo servindo para estabelecer a mais rígida antítese entre a filosofia e ética antigas por um lado e as modernas por outro na concepção dos neohegelianos os quais a converteram em um franco contraste entre o objetivismo pelo qual caracterizam todo o pensamento antigo sem exceção e o subjetivismo como próprio e exclusivo do pensamento moderno1672 A força deste paradigma se estabeleceu de tal forma que como nota Mondolfo afetou os pensamentos e tradições as mais diversas 1671 Em nota de MONDOLFO Cito a tradução de J GAOS Revista de Occidente Madrid 1928 Ver tomo II parte 2a El mundo griego pp 63 ss 175 ss 186 1672 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 334 651 No capítulo III de sua obra1673 ao qual Mondolfo dá um título bem grande ao modo medieval O reconhecimento parcial das orientações subjetivas na filosofa antiga Requisitos e condições que devem preencher uma demonstração concludente podemos ver como este forte paradigma neohegeliano se infiltrou até no tratamento que Nietzsche em sua compreensão deu ao surgimento da filosofia na Grécia Com o que segue no que nos valeremos ainda da pesquisa de Mondolfo temos a única exclusiva e simples intenção de esclarecer como a força de um paradigma interpretativo da história em que se elege a descontinuidade como pressuposto pode influenciar até um pensamento tão crítico como o de Nietzsche Fica claro que o que pretendemos é tão somente perceber se o caráter de interrelação entre continuidade e descontinuidade proposto pelo personalismo é mais profícuo do que uma posição em antítese como a que tem prevalecido com força depois de Hegel e por maior responsabilidade dele e que não obstante permanece presente com ênfase inclusive na reflexão dos seus grandes inimigos Kierkegaard e Nietzsche Ora uma visão histórica em antítese como pura descontinuidade cujas origens teóricas das quais tanto Nietzsche quanto Kierkegaard se afirmam antagônicos mas que num segundo momento como podemos ver as reproduzem às avessas em suas abordagens tem inapelavelmente as suas conseqüências1674 Em relação à Kierkegaard denunciará em seu pensamento uma tendência flagrante ao solipsismo que por outro lado é justamente para Mounier o que o sentido do seu resgate da singularidade quer criticar na ontologia da modernidade que funda o indivíduo moderno todo poderoso do contrato social Ao mesmo tempo em que Kierkegaard solapa as bases do indivíduo liberal e burguês muito confiante em suas capacidades unificantes como veremos mais à frente com a crítica de Mounier pelo fato de complementar esta sua crítica com uma desconfiança visceral a todas as instituições mediadoras linguagem família vida social etc esvaziandoas completamente da possibilidade de se encontrar nelas qualquer dimensão de aderência sobre a qual o indivíduo pudesse estabelecer 1673 Ibidem pp 47 ss 1674 Ao comentar com um professor estudioso de Nietzsche sobre essa sua apropriação às avessas de um paradigma de interpretação da história de inspiração hegeliana e no que isso comprometeria também o elemento de ab ovo inelutável mantido na base do projeto nietzscheano de transvaloração ou tresvaloração de todos os valores sem dúvida o grande projeto da obra nietzschiana o qual ele pretende que seja uma superação dos valores pela negação o professor quis chamar a minha atenção para outros aspectos da obra nietzschiana tais como o seu método genealógico sem dar muita atenção a este ponto específico que quero ressaltar e que para mim é muito significativo e suficiente para problematizar a problematização de Nietzsche 652 qualquer base de vínculo real enquanto existente estabelece como expressão da vida paradoxal um último recurso no ato de fé incondicional o que para o personalismo não necessariamente deveria implicar um menosprezo pelas mediações pelas aderências inelutáveis o que por outro lado Kierkegaard segundo Mounier nos seus primeiros escritos procura com mais ênfase superar Em relação a Nietzsche a adoção de sua parte do paradigma da descontinuidade como veremos mais à frente invertendo as posições mas sem negar o paradigma torna problemático já em suas bases e mesmo com a inversão que Nietzsche apresenta da antítese proposta pelo neohegelianismo tal como decorre do estudo de Mondolfo o projeto nietzschiano de uma filosofia do futuro enquanto uma filosofia da transvaloração de todos os valores Isso justamente pela sua continuação mesmo que ao inverso da mesma antítese Além disso a crítica a todo flerte com o solipsismo do individualismo moderno do qual Kierkegaard também será objeto como já vimos pode ser justamente levantada em relação ao ser de exceção nietzschiano Também lembramos que em relação ao personalismo uma superação dos valores e mesmo como transvaloração ou tresvaloração que o personalismo vê como um movente inscrito no próprio movimento de personalização como temos tentado expor só é possível como já notamos por uma prévia apropriação dos valores e não somente pela sua negação1675 Para o personalismo uma superação dos valores só pode ser realizada por esta prévia apropriação dos valores não se supera o que não é assumido como verdadeiro obstáculo quer dizer medido em sua resistência experimentado mesmo para depois ser negado em sua existência mais própria Nesse sentido a eleição de uma pura descontinuidade nos eventos históricos em termos de juízo generalizante e tipificações gerais pelas metáforas bem melhor usadas como já vimos pelo mito e pela religião do que tem sido pela filosofia da ascendência e decadência de épocas e culturas para o personalismo se apresenta como um impeditivo para sua visão relacional em que continuidade e descontinuidade se dão em tensão profícua Para tanto as observações que seguem têm o único propósito de apresentar as dificuldades de uma leitura da história em termos de pura descontinuidade na qual o personalismo de Mounier na economia geral não embarcará 1675 Ver ROUGEMNOT Denis de LAmour et lOccident op cit passim Para tanto Mondolfo citando a edição de Bolland das Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie Lições sobre a história da filosofia de Hegel diz que o editor acrescenta em nota para documentar a afirmação hegeliana referente à inspiração que os gregos haviam extraído de suas paixões ao criar as imagens de seus deuses duas citações de Plutarco e uma de Clemente de Alexandria onde aquele declarava que os primeiros ao falarem do assunto converteram o amor em ódio e censurava como impiedade tanto a conversão dos deuses em paixões como no inverso o considerar as paixões como deuses e este criticava aos que convertem em deus a concupiscência desenfreada1676 Sem dúvida nota Mondolfo Bolland teria podido citar ainda outros documentos para demonstrar esse caráter subjetivista e às vezes sabidamente subjetivista da mitologia e religião gregas caráter reafirmado mais tarde por Nietzsche segundo Mondolfo como elemento constitutivo do pensamento helênico anterior ao nascimento da filosofia a qual havia representado precisamente uma queda radical em relação a essa orientação subjetivista espontânea antecedente1677 Em sua obra sobre A filosofia na época trágica dos gregos1678 Nietzsche segundo Mondolfo considerava precisamente que o nascimento da filosofia constituía uma reação categórica inspirada por um realismo objetivista na contramão do subjetivismo antropomórfico que havia dominado até então no espírito grego como seu caráter natural e espontâneo Os gregos dizia Nietzsche segundo Mondolfo dentre os quais Tales recebeu de improviso uma grande significação histórica eram o contrário de todos os realistas pois criam unicamente na realidade dos homens e dos deuses e consideravam que toda a natureza era tão somente um disfarce e uma metamorfose desses deuseshomens O homem constituía para eles a verdade e o núcleo de todas as coisas o demais era somente aparência e jogo ilusório Por isso precisamente lhes custou um esforço incrível compreender os conceitos como conceitos e ao invés do que ocorre com os modernos que transformam ainda o mais pessoal em abstrações para eles ainda o mais abstrato se 1676 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 48 Em nota de MONDOLFO ἀπεφήναντο τὸν ἔρωτα θεὸν οἱ πρῶτοι τοῦτο λέξαντες apephénanto tòn érota τεὸν hoì Prótoi τοῦτο lécsantes Ibid 14 οὔτε πάθη τοὺς θεοὺς ποῖεν ὅσιον οὔτε αὖ πάλιν τὰ πάθη θεοὺς νομίζειν oúte páthe toùs theoùs poíen hósion oúte aû pálin ta pàthe theoùs nomízein Clem Admon 28 d θεοποιοῦντες ἀκόλαστον ἐπιθυμίαν thepoioúntes akólaston epithymían 1677 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 48 1678 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 48 em nota de MONDOLFO Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen 1873 653 654 concretizava em uma pessoa1679 Por isso acrescenta Nietzsche segundo Mondolfo quando Tales afirmou que a realidade não era o homem mas a água efetuou uma verdadeira revolução ao realizar a passagem do subjetivismo ao objetivismo na concepção das coisas ou seja a passagem do humano mitologia antropomórfica à natureza filosofia objetivista De modo que a orientação primordial e espontânea do espírito grego tal como se manifesta na criação da mitologia politeísta teria sido segundo Nietzsche como nota Mondolfo a do subjetivismo e só o esforço dos filósofos inspirado na intuição mística da unidade universal teria determinado a queda desse subjetivismo espontâneo ao objetivismo refletido da filosofia Nietzsche assim nota Mondolfo estabelecia uma dupla oposição 1 entre a criação espontânea subjetivista da mitologia grega e a criação refletida objetivista do naturalismo présocrático e 2 entre a orientação espontânea e primordial do subjetivismo grego e o realismo objetivista e intelectualista que Nietzsche considerava conatural ao espírito moderno1680 Vemos que em Nietzsche em relação aos modernos os quais transformam ainda o mais pessoal em abstrações se por um lado não se trata de subjetivismo mas de realismo objetivista e intelectualista por outro segundo Mondolfo Nietzsche se posiciona em ambos os aspectos nos antípodas da posição da antítese mais geralmente aceita em nossos dias a qual opõe antes ao objetivismo total atribuído ao espírito grego o subjetivismo considerado característico do moderno1681 Como vemos Nietzsche tem o mérito de problematizar a caracterização geral todavia mesmo com essa problematização não conseguiu se afastar da força de atração do paradigma neohegeliano cujas conclusões sobre as relações entre as épocas e culturas vão se caracterizar ainda pela total descontinuidade mesmo querendo se manter suspenso nos antípodas Este resultado todavia será a força e a fraqueza do pensamento nietzschiano Pois atrelado ao paradigma da descontinuidade histórica por parte do pensamento neohegeliano contra o qual Nietzsche se insurge ao mesmo tempo será o que torna possível a Nietzsche elaborar o seu próprio projeto de uma filosofia do futuro como tresvaloração de todos os valores enquanto o antípoda à tresvaloração que Nietzsche atribuía justamente ao cristianismo 1679 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 49 em nota de MONDOLFO Cf o capítulo sobre Tales 1680 Cf Ibidem p 49 1681 Cf Ibidem 655 À concepção de Nietzsche segundo Mondolfo opõese igualmente a interpretação que posteriormente se fez do papel representado pela mística cuja intervenção teria determinado segundo Nietzsche como nota Mondolfo o caráter objetivista do naturalismo présocrático monista em oposição ao subjetivismo personalista da mitologia pluralista enquanto anteriormente a Nietzsche Karl Joël havia atribuído precisamente ao espírito da mística o caráter subjetivista que encontrava na mesma filosofia présocrática Joël segundo Mondolfo em seu livro sobre A origem da filosofia natural desde o espírito da mística1682 cuja inspiração mantém e desenvolve em Geschichte der antiken Philosophie tomo I 1921 escrita posteriormente coincide com Nietzsche em atribuir à mística a exigência unitária que se expressa na filosofia présocrática porém sustenta que essa unidade só se afirma na concepção da natureza em virtude da unificação da realidade objetiva e desta com a realidade subjetiva do ser humano Para Joël segundo Mondolfo a filosofia présocrática é filha da mística isto é do sentimento e não da observação sensível da reflexão intelectual da fantasia mitológica nem da vontade prática em que se embasam as diversas explicações propostas pelos outros historiadores justamente enquanto o espírito grego em sua opinião segundo Mondolfo havia encontrado só na interioridade subjetiva o impulso e o meio que lhe permitiram passar das experiências exteriores múltiplas particulares e fragmentárias a uma concepção unitária da natureza compreendendoa em sua unidade com o homem sua alma e sua vida1683 A subjetividade mística dos naturalistas présocráticos seria para Jöel segundo Mondolfo uma expressão do espírito lírico da época na qual o florescimento pleno da poesia lírica coincide com o despertar da filosofia1684 Para Joël segundo ainda Mondolfo o problema da vida e da alma problema da subjetividade inspira toda sua concepção antropomórfica da natureza toda sua busca de um princípio que não é materialidade mas mobilidade1685 Ainda para Joël segundo Mondolfo todo processo cósmico se converte para Anaximandro Heráclito 1682 Nota de MONDOLFO Der Ursprung der Naturphilosophie aus dem Geist der Mystik 1903 1683 Cf MONDOLFO La comprensión op cit p 50 1684 Ibidem 1685 Ibidem p 51 656 os pitagóricos Empédocles em um processo moral como ciclo de queda e retorno no qual a necessidade se identifica com a lei inelutável de justiça1686 Esta breve aproximação pelo trabalho de Mondolfo a alguns componentes expressivos da visão em antítese da história e bem no que diz respeito à fundação da chamada subjetividade é ao meu modo de ver1687 suficiente aos nossos fins para podermos ver então o quanto em matéria de compreensão histórica de hermenêutica histórica a eleição de uma pura descontinuidade anulase a si mesma por causa do caráter complexo e relacional que compõe os eventos históricos em sua manifestação axiológica Todavia podemos ver que a adoção por parte do personalismo de uma leitura mais dialética intrahistórica e não simplesmente suprahistórica ou parahistórica não é uma facilidade metodológica relativista mas um esforço em procurar ouvir a voz do fenômeno histórico em sua complexidade mesma a fim de provar o elemento durador do seu valor e daí extrair o sentido possível de sua melodia motriz própria Estas observações por outro lado servem já ao nosso propósito de estabelecer uma primeira aproximação à problemática da subjetividade como delineada pela contemporaneidade É então dentro de uma perspectiva mais densamente dialética entre o que se coloca como relação sujeito objeto que o personalismo vai procurar notar o que há na verdade de muita ruminação interior e flerte solipsista nas reflexões existencialistas antes que a construção de uma subjetividade mais significativamente humana já que é a subjetividade o locus eleito e predileto dos existencialismos Todavia a título de exemplo quanto a passagens em que Mounier ainda flerta com o preconceito hermenêutico histórico na questão do tempo cíclico como moldando o pensamento grego e a sua noção de história contestado pelas pesquisas mais recentes1688 em seu caráter unilateral mas sem desconhecer o seu fundo de verdade lemos A idéia de uma história dirigida de um começo até um fim ou de um movimento indefinido mas orientado em sentido contínuo é estranha à Antiguidade e às civilizações não cristãs Cournot já considerou que as religiões da Antiguidade têm cosmogonias ou mitos do gênese mas que elas não têm uma história do mundo Se a palavra história existe nos 1686 Ibidem p 51 1687 Para uma visão mais completa do problema é necessário a leitura de toda a obra de Mondolfo apresentada aqui na bibliografia 1688 Ver MONDOLFO El infinito en el pensamiento de la antigëdad clásica op cit 657 gregos ela designa apenas inquéritos repertórios ou crônicas sobre os eventos contemporâneos ou passados Mas nem uma vez sequer lhes vem à mente a idéia de um plano da totalidade dos eventos de uma história universal Como seria possível Um plano supõe um começo e um fim ora para o pensamento grego não há nem criação e nem consumação do mundo Com toda sua força ele nega o tempo e o movimento Estes são apenas uma aparência da eternidade Para o tempo que se desdobra só há um meio de se reduzilo à eternidade é desenvolvêlo em círculo fechado voltando incessantemente sobre si mesmo Tempo cíclico e movimento circular são o próprio oposto da idéia de progresso A lei do mundo é o Eterno Retorno Para Aristóteles por exemplo as opiniões dos filósofos devem reaparecer não uma nem duas nem um certo número mas ao infinito1689 E ele não vê nenhum inconveniente em que a Guerra de Tróia volte também interminavelmente1690 Há verdades e há problemas nestas afirmações de Mounier1691 Esta caracterização geral como temos notado e repetido muito comum no trato da história do pensamento grego da qual compartilha Kierkegaard Nietzsche e outros não poderia ter esta força absoluta que se quer dar como deixa claro o trabalho de Mondolfo e de Jaeger Ela tem mais a ver com a facilitação pela manutenção de posturas autoexcludentes no trato do complexo histórico do que com uma análise mais ampla dos textos disponíveis e que esclareceriam melhor o espectro mais amplo da alma grega Como já dissemos e quanto ao que nos interessa aqui essa facilitação metódica se divide em duas vertentes uma de caráter apologético cristão que afirma a visão do pensamento grego contrastado com o cristão para relevar a superioridade do cristianismo e que não é a posição de Kierkegaard para quem a noção de apologética cristã é incabível1692 e a outra de crítica que mantendo o mesmo pressuposto faz o caminho inverso relevando a superioridade do pensamento grego e o do cristianismo como decadência1693 1689 Em nota de MOUNIER loc cit Metafísica I III 1690 Le petit peur du XXe siècle Oeuvres III p 396 Em nota de MOUNIER Probl 1 2 3 916 a 1918 1691 Ver MONDOLFO Lo Infinito op cit passim 1692 Ver KIERKEGAARD SØren Fear and Trembling Repetition Edited and Translated by Howard V Hong and Edna H Hong Introduction and Notes Princeton University Press Prtinceton New Jersey 1983 notadamente Preface Exordium Elogy on Abraham e Preliminary Expectoration III 57 ss Segundo Kierkegaard o ato de fé é um ato incomunicável 1693 Sobre essa questão além dos trabalhos de MONDOLFO ver os trabalhos de Werner JAEGER ver La teologia de los primeros filosofos griegos Fondo de cultura economica Mexico Madrid Buenos Aires 658 Todavia os trabalhos filológicos mais atualizados não nos permitem manter estas classificações gerais que têm se mostrado fora já dos padrões de cientificidade exigidos nessa área de pesquisa mais como preferências pessoais do que uma análise apropriada e rigorosa dos documentos disponíveis Não negando que tenha havido uma maior ênfase no tempo cíclico do que no tempo linear mas relevando o fato de que é no âmbito mais restrito dos homens mais cultivados da Grécia e mais no período clássico do que no pré socrático e negando que tenha sido a única e predominante compreensão dentre a maioria do povo grego como o trabalho de Mondolfo deixa claro o que se ressalta não é a genuinidade do cristianismo o seu suposto e cômodo ab ovo em relação à concepção de progresso mas antes e é o que faz toda diferença sua radicalização desta perspectiva extremamente revolucionária que pulsava no mais profundo da alma do povo grego do que em seus maiores representantes intelectuais Se as observações de Mondolfo1694 nesse caso estão corretas parece mesmo que Mounier acerta quando elege o povo como fonte de verdadeira transformação Parece mesmo que uma visão cíclica e a imagem e o sentimento de monotonia já sentida pelo próprio Nietzsche que tenta de alguma forma buscar uma saída dessa metafísica do conservantismo ingente à própria natureza em sua obra sobre o eterno retorno do mesmo é um fenômeno da elite intelectual Esse fenômeno possibilitado pelo ócio e digase de passagem só possível por causa da multidão de escravos que faziam o serviço braçal que os cidadãos gregos não faziam1695 acompanha e está na base sim de todo indiferentismo moleza decadência farisaísmo e covardia que uma situação cômoda e sem nenhuma expectativa de surpresa fornece aos que usam do seu álibi como autojustificação pela desculpa metafísica de um processo cósmico impessoal independentemente de sua vontade que mantém cauterizada sua consciência de nenhuma responsabilidade na injustiça geral como também da não necessidade de sua participação na mudança deste quadro tomado comodamente como inexorável como se tal metafísica no âmbito da finitude da qual se dizem defensores fosse possível sem problemas Para o personalismo a primeira edição em Espanhol 1952 reimpresso em 1977 e também do mesmo autor Cristianismo primitivo e paideia grega Edições 70 Lisboa Portugal 1991 que também procuram elucidar esta questão 1694 Ver MONDOLFO La comprensión op cit passim e El infinito op cit passim 1695 Como já disemos Mounier citando o estudo de M A AYMARD sobre a noção de trabalho na Grécia antiga observa que o serviço braçal era mal visto justamente por sua relação com a condição de escravo Cf La petite peur du XXº siècle Oeuvres III p 368 659 manutenção dessa postura ainda hoje tem raízes ideológicas burguesas claras em sua finalidade de manterse no conforto enquanto o mundo desmorona É claro que na Antiguidade esta Weltanschauung de fundo determinista é enfrentada com muito mais coragem e com muito mais Eros exemplo clássico os estóicos Diferentemente do que acontece no caldo cultural da contemporaneidade em que este tipo de visão tende a redundar para aqueles que a abraçam em um frisson de indiferentismo desmotivação tranqüila e relativismo fácil Isso começa a nos dar o sentido da relação de Emmanuel Mounier ou melhor de sua crítica personalista como pensamento contemporâneo já que estamos falando de pessoa e existência Por outro lado a noção de história e de história universal no cristianismo tem um matiz bem diferente do que essa noção tomou desde Vico passando pelo pensamento moderno engessandose em Hegel e mantida a seu modo por Marx Com o cristianismo assumese um sentido da história Este sentido tem na base valores testados na história O valor da universalidade só é alcançado quando a especificidade do singular concreto por excelência a pessoa for afirmada definitivamente Esta afirmação da concretude é por sua vez um processo sem fim como é o movimento de sentido da fonte que a alimenta a pessoa mesma E ela como concretização de um processo sem fim faz com que esta universalidade tenha um caráter tanto artifex como deve ser para o personalismo uma universalidade apropriada ao ser do ser humano como também sempre inacabada e perfectível características estas também próprias do ser do ser humano segundo a antropologia personalista Tratase de uma universalidade construída e melhor do que falarmos simplesmente de universal fazendo ecoar não sei que de substancialismo de fundo que a palavra herdou do pretenso universalismo da modernidade racionalista melhor seria dizermos numa expressão que alonga as palavras mas que diminui o alcance sentido de uma universalidade possível construída Nesse sentido para contrabalançar o exemplo dado na última citação de Mounier em que ele flerta no trato do histórico como vimos com o preconceito tradicional tomamos algumas outras palavras suas que apontam para o sentido que estamos tentando esboçar aqui e que subjaz como base mesma de uma compreensão do histórico por parte de Mounier que contrabalança com o que pode se ressaltar nele como flerte com o preconceito hermenêutico já citado que se matém em Kierkegaard e Nietzsche Elas se 660 encontram em seu último livro escrito1696 e após Mounier apresentar uma breve síntese histórica da noção de pessoa e da condição pessoal legadas como contribuição do pensamento cristão à cultura ocidental1697 Sem desmerecer o sentido de verdade que as afirmações tradicionais sobre o caráter circular do tempo grego etc contêm como já dissemos e o que também faz Rodolfo Mondolfo1698 encontramos apresentadas por Mounier1699 as seguintes observações ligadas ao tema da singularidade antes que ao tema da temporalidade no qual podemos entrever não obstante o sentido mais genuinamente personalista de sua hermenêutica histórica Primeiramente Mounier diz que o homem antigo é aspirado pela cidade e pela família submetido a um destino cego sem nome superior aos próprios deuses A aparição do singular é como uma mancha na natureza e nas consciências Platão é tentado a reduzir a alma individual a uma participação da natureza e a uma participação da cidade de onde seu comunismo E a imortalidade individual para ele como para Sócrates não é senão uma bela e aventurosa hipótese1700 Na mesma página continua Mounier Entretanto os gregos tinham da dignidade do ser humano um sentido agudo que leva periodicamente turbulência na ordem impassível Sófocles uma vez ao menos Edipe à Colonne quer substituir a idéia do Destino cego por aquela de uma justiça divina dotada de discernimento Antígona afirma o protesto do testemunho eterno contra os poderes Os Troianos opõem à idéia de fatalidade da guerra aquela da responsabilidade dos homens1701 Sócrates ao discurso utilitário dos Sofistas substitui pela perspicácia incômoda da ironia que perturbando o interlocutor colocavao em questão ao mesmo tempo que o conhecimento O Conhecete a ti mesmo diz Mounier é a primeira grande revolução personalista conhecida Mas ela só pode ter um efeito limitado nas resistências do meio 1696 Le persoannalisme Oeuvres III pp 429 ss um dos livros mais sistemáticos de Mounier que apareceu pela primeira vez na coleção Que saisje justamente três meses antes do seu prematuro desaparecimento com apenas quarenta e cinco anos de idade 1697 Em nota Mounier cita o texto que lhe serve de base Se encontrará as indicações sobre esta história em J PLAQUEVENT Individu et personne Esprit javier 1938 Duas Histórias do personalismo estão em preparação em França e nos USA 1698 Quanto à questão temporal é em El infinito en el pensamiento de la antigüedad clásica op cit que Rodolfo MONDOLFO vai procurar elucidar a questão e no âmbito dos estudos filológicos da cultura clássica 1699 Cf Le personnalisme Oeuvres III 1947 p 432 1700 Ibidem 1701 Eis os indícios sobre os quais Rodolfo MONDOLFO também constrói sua bela obra que contesta os preconceitos simplificadores usuais em relação aos gregos mas com material bem mais amplo e diverso 661 Enfim não se deve esquecer nem o Sábio da Ética a Nicômaco nem os estóicos e seu comovente pressentimento da caritas generis humani1702 Ainda na mesma página continua Mounier O cristianismo propõe de repente entre estes ensaios1703 uma noção decisiva da pessoa Medese mal hoje em dia o escândalo total que ela foi para o pensamento e a sensibilidade dos gregos1704 1a Enquanto que para eles a multiplicidade era um mal inadmissível para o espírito para o cristianismo é um incontornável afirmando ainda a criação ex nihilo e o destino eterno de cada pessoa Longe de ser uma imperfeição essa multiplicidade escreve Mounier nascida da superabundância grifo nosso traz em si a superabundância pela troca indefinida do amor Durante muito tempo o escândalo da multiplicidade das almas diz Mounier se chocara com as sobrevivências da sensibilidade antiga e Averróis sentirá ainda a necessidade de imaginar uma alma comum à alma humana1705 2a O indivíduo humano não é o cruzamento de várias participações nas realidades gerais matéria idéias etc mas um todo indissociável cuja unidade precede a multiplicidade pois ela tem raiz no absoluto 3a Acima das pessoas não reina a tirania abstrata de um destino de um céu de idéias ou de um Pensamento Impessoal indiferentes aos destinos individuais mas um Deus pessoal se bem que de uma maneira eminente um Deus que tem dado de sua pessoa para assumir e transfigurar a condição humana e que propõe a cada pessoa uma relação singular de intimidade uma participação grifo nosso em sua divindade um Deus que não se afirma como tem crido o ateísmo contemporâneo Bakunine Feuerbach sobre o que ele arranca ao ser humano mas em lhe outorgando pelo contrário uma liberdade análoga a sua e em lhe rendendo generosidade por generosidade 4a O movimento profundo da existência humana não é o de assimilar à generalidade abstrata da Natureza ou das idéias mas de mudar o coração de seu coração metanoia metánoia a fim de introduzir aí e de irradiar no mundo um Reino transfigurado O segredo do coração escreve Mounier onde se decide pela escolha pessoal essa transmutação do universo é um domínio inviolável o qual 1702 Le personnalisme op cit p 433 1703 Grifo nosso Esta noção de ensaio da qual Mounier lança mão é fundamental para o que estamos tentando esboçar concernente ao esclarecimento da compreensão personalista da história no presente tema da subjetividade 1704 Vemos portanto segundo Mounier como se dá a contribuição do cristianismo ele não começa do zero o como ele perspectiva as coisas é que dá o seu legítimo tom 1705 Para todos estes pontos elencados por Emmanuel Mounier ver Le personnalisme op cit p 433 s 662 ninguém pode julgar e que ninguém conhece nem mesmos os anjos só Deus1706 5a Neste movimento o homem é chamado livremente A liberdade é constitutiva da existência criada O direito de pecar quer dizer de recusar seu destino grifo nosso é essencial ao pleno exercício da liberdade Longe de ser um escândalo seria antes sua ausência o que alienaria o ser humano 6a Este absoluto da pessoa não corta o ser humano nem do mundo nem dos outros seres humanos A unidade do gênero humano é pela primeira vez plenamente afirmada e duas vezes confirmada cada pessoa é criada à imagem de Deus cada pessoa é chamada a formar um imenso Corpo místico e carnal no amor de Cristo A concepção mesma de Trindade traz a idéia espantosa de um Ser supremo no qual dialogam intimamente pessoas e que já é por si mesmo a negação da solidão1707 E concluindo com uma palavra anterior a estes tópicos mas que dá o sentido do alcance ético de tudo isso Mounier pode dizer da igualdade das almas nós temos tirado a igualdade das chances sociais1708 Vemos o quanto é importante para o personalismo colocar os trilhos da história sob o ponto de vista da relação É nesse sentido que podemos acompanhar tanto o sentido do movimento de personalização da emergência da pessoa humana na história como localizarmos suas verdadeiras fontes as quais remontamos aqui aos gregos mas que 1706 Seria interessante para percebermos também outros aspectos pelos quais o kerygma mensagem cristão também impactou os espíritos da época comparar a noção que o Novo Testamento apresenta de Deus com a noção de divindade proposta pelo atomista ateu Demócrito por exemplo como testemunha invisível Cf MONDOLFO La compreesión del sujeto op cit pp 380 a 385 g La consciencia del pecado y la confessión como purificación y como tormento No sentido de ser uma presença constante à consciência do indivíduo servindo assim como uma garantia pragmaticamente útil para que este cumpra a lei e a moral até no nível de suas atitudes solitárias Ou seja aquelas em que o indivíduo não teria a repressão da presença de uma testemunha ocular humana Da mesma forma como já fizemos notar se poderia fazer também uma comparação do inferno descrito no Novo Testamento com o inferno descrito por exemplo pela religião grega tartaro Cf MONDOLFO La compreesión del sujeto op cit pp 375 a 380 f Los castigos de ultratumba Dessa forma seria interessante fazer uma comparação entre as noções paralelas de Deus a cristã para a qual a essência da divindade é o amor 1 João 48 nesse versículo encontramos quase que uma definição da essência de Deus com a noção grega de testemunha onipresente invisível que tem a intenção da manutenção e cumprimento pelo indivíduo isolado até em sua solidão da ordem moral e da ordem legal como também uma comparação entre as noções paralelas de inferno a cristã e a grega também nessa conexão em vista do cumprimento da moralidade e da lei comparações que talvez nos levariam à constatação imprevista em relação à concepção mais em voga do Deus da Bíblia como apenas fonte de castração de que segundo o Novo Testamento confirmando então a compreensão kierkegaardiana quanto mais a pessoa se submete ao DeusAmor do cristianismo na verdade mais livre ela se torna da moral e da lei convencional para cumprir a lei e a moral do amor mas já como expressão espontânea mesma do mais íntimo do seu próprio ser É com base no sentido que se destaca dessa moral cristã e pelo qual mas como moral da pessoa que o personalismo confronta o moralismo burguês sempre cioso pela pronta adequação individual ao seu esquema decadente 1707 Le personnalisme op cit pp 432 ss 1708 Ibidem 434 663 encontramos também já na Antiguidade judaica fontes das quais o cristianismo se apropria e imprimelhes a sua contribuição1709 V2 O despertar filosófico Dadas estas aproximações ao tema da subjetividade tão caro ao existencialismo podemos agora partir para os desenvolvimentos que os existencialismos deram a essa inspiração comum de resgate da singularidade frente ao seu simulacro moderno o individualismo reivindicativo liberal e burguês Antes de tudo como já dissemos Mounier toma contato com os temas do existencialismo bem antes que este nome se tornasse moda portanto podemos afirmar que toda sua crítica desde os primeiros escritos de 1932 em Esprit e até antes ao sistema impessoal ao coletivismo à dormência e indiferença burguesas em suma à civilização ocidental são possíveis porque no fundo de sua reflexão se encontra o irredutível valor da pessoa singular insubstituível e não inventariável Todavia em dois momentos específicos Emmanuel Mounier vai afrontar como ele gostava de dizer os existencialismos Tratase da obra já citada no início Introduction aux existencialismes1710 e do ensaio Perspectives existentialistes1711 A aproximação que se seguirá aos existencialismos e que faremos à luz do personalismo de Emmanuel Mounier vai se dar mais enfaticamente sobre estes dois textos mais específicos não obstante como já notamos podermos notar a inspiração que comandará sua crítica aos existencialismos mesmo em seus escritos não específicos a este tema Isso demonstra o caráter por assim dizer heurístico da pessoa À colocação no plural de existencialismos além das justificações para as quais já apontamos em Mounier se dá também pelo sentido de inserção histórica que ele dá ao personalismo e que quer dar também aos existencialismos por causa da total afinidade de 1709 Ver acima Capítulo I Segunda Parte Aproximações Veterotestamentárias na Construção das Noções de Dignidade Humana e Liberdade Humana 1710 Oeuvres III p 69 ss Apareceu nas Éditions Denoël em 1947 1711 In LEspoir des desesperes Oeuvres IV p 359 a 381 Ensaio aparecido em Pour ou contre lexistencilisme débat Éditions Atlas 1949 664 preocupações que se destacam da existência tanto para os personalismos1712 quanto para o existencialismos Como vemos não há para Mounier nenhum problema em tratar os personalismos também no plural Mounier quer ir além do significado que se quer atribuir às palavras como se tratando da declaração de uma substância acabada Sobre isso lemos de Mounier Nós sabemos de todos os inconvenientes que aceitamos deixando aplicar uma etiqueta tal como a de personalismo a um grupo de pesquisas e de vontades1713 que desejam permanecer abertas ao mesmo tempo que vigorosas A palavra aí nada faz Desde que há palavras há batalhas de palavras malentendidos de palavras verbalismo confusão Então deveremos nós nos deter de falar e nomear Nenhuma palavra é intacta e sincera O marxismo cobre por sua vez materialismo arcaicos e um esforço para se pensar a realidade humana global que nos é próxima Existencialismo designa provisoriamente em França um modo de desespero da existência e abandono dessa larga tradição que de Pascal a Scheler afirma a plenitude da existência Por que personalismo não se prestaria também à confusões e a explorações comuns1714 Na árvore genealógica do existencialismo de que falamos e que se encontra em Introduction Mounier localiza o personalismo como um dos ramos que depois da fenomenologia e ao lado do ramo constituído por Nietzsche Heidegger e Sartre tem seu lugar com K Jaspers Gabriel Marcel Soloviev Chestov Nicolas Berdiaeff Martin Buber Karl Barth Max Scheller Paul Louis Landsberg Charles Péguy Henry Bergson Charles Blondel e Laberthonnière Para Mounier então o existencialismo ou antes a reflexão que procura dar ouvidos aos problemas específicos advindos das prerrogativas da existência enquanto manifestação da singularidade se encosta em uma longa galeria de ancestrais A história do pensamento é balizada por uma série de despertamentos existencialistas que tem sido para o pensamento igualmente conversões para ele mesmo retornos a sua missão original1715 Portanto já que não podemos entender este voltarse para si mesmo à luz do personalismo de Mounier como pura ruminação individualista mesmo sendo o ser humano concreto e singular o objeto principal dessa volta em termos da perspectiva em 1712 Já temos notado que Mounier não vê nenhum problema em usar o plural também para personalismos pois ele via sua inspiração fundamental manifestarse na história em apropriações as mais diversas pela humanidade e visto que Esprit acolhia as mais diversas origens personalistas que não obstante se nutriam desta mesma inspiração e amor à pessoa concreta 1713 Grifo nosso Como podemos ver não se trata nem só de pesquisa nem só de vontade 1714 Questce que le personnalisme Oeuvres III p 181 1715 Introduction op cit p 70 665 que o personalismo coloca a missão do pensamento ou seja também como uma obra coletiva para Mounier o pensamento ocidental tem uma missão original que é possível de ser observada na história como uma missão que nesse nível coletivo deve amparar e fornecer as condições para esta volta a si mesmo que é tão importante como já vimos no plano da singularidade quanto ao movimento complementar ao de exteriorização da pessoa que é sua volta a si mesma em sua luta pelo real para o encontro da pessoa consigo mesma nessa obra coletiva quer dizer em linguagem personalista luta consigo mesma como preparo para a luta com as resistências exteriores a si mesma Para o personalismo a comunidade é uma pessoa de pessoas Não se trata em nenhuma parte de estabelecer um coletivismo quer dizer um sistema em ismo mas de resgatar ali onde se formam as pessoas coletivas repousando sobre a organização de pessoas responsáveis em toda sua economia interna pessoa de pessoas como um corpo vivo é um organismo de organismos Esta é a noção e a instituição de pessoas coletivas que nos conduz por si ao princípio personalista que se encontra ligado às condições coletivas da produção moderna1716 Esta intenção de perspectivar a singularidade sempre em suas aderências concretas e seus alcances mais amplos marcam sempre a visão de Mounier quanto à posição dos filósofos que relevaram os problemas da existência na história da filosofia Kierkegaard na Dinamarca profeta excêntrico e desagradável ao homem de bomsenso Maine Biran cuja estrela permanece ainda sem brilho mesmo em seu próprio país já tinha afirmado a autoridade da existência engajada no esforço contra o achatamento do homem pelas filosofias sensualistas do século XVIII1717 Para o personalismo essa missão no nível da civilização como se dá no nível da existência singular tem a ver com a idéia de aceitação de um destino que é único e propriamente seu Este destino pode ser vislumbrado se atentarmos para tal segundo o personalismo já no ato de coragem do autolançamento na aventura da vida inscrito na própria evolução criadora que teve como resultado o homo sapienssapiens Ele é inegável segundo a visão personalista também em todo um movimento histórico que se lança na aventura de continuidade de ensejo de uma universalização totalmente esboçada cada qual a seu modo pelas tradições judaica e grega continuada e radicalizada pelo universalismo 1716 De la proprieté capitaliste a la proprieté humaine Oeuvres I p 470 1717 Introduction op cit p 70 666 cristão e que sofre internamente em si mesma hoje as tensões próprias desta sua vocação de universalização em sua resistência contra as pulsões estagnadoras de uma cultura de conforto e segurança real somente para poucos e de alimentação e manutenção deste mesmo sonho decadente por parte de uma multidão já totalmente esquecida de sua liberdade Sendo assim sem esquecer o aspecto singular pelo qual a existência singular delineia os problemas o personalismo pretende ser tanto uma contribuição para o esclarecimento como dar continuidade a esta missão original ao seu aprofundamento todavia não só em termos da pessoa singular como da pessoa em comunidade Essa precisão caminhará ao lado de toda crítica de Mounier aos existencialismos É por ela que consignamos aqui então mais uma precisão quanto à noção de Mounier dos existencialismos no plural Todavia à pergunta feita por Mounier Não seria necessário dizer muito simplesmente que o existencialismo é uma outra maneira de falar do cristianismo1718 e à luz do próprio alcance de sua reflexão ou antes seguindo a própria inspiração personalista que implica em Mounier um método de aproximação agnóstico e entendendo esta afirmação do pedagogo Mounier que propõe um alcance de problema de civilização ao seu próprio despertamento crítico ou seja mais como uma estratégia para deslocar a unilateralidade que Mounier já via o existencialismo tomar em sua época como nada da qual falamos antes1719 acreditamos que a resposta correta seria não necessariamente Apesar de reconhecer os méritos da mensagem cristã contra a hierarquização social ontológica e metafisicamente fundada que ainda tem embasado uma atitude de desprezo farisaico às pequenas coisas à corporeidade à cotidianidade por parte primeiramente do intelectualismo e do espírito aristocrático prevalecente na Antiguidade pagã e que vige ainda hoje no hierarquismo e aristocratismo indiferentes prevalecentes diluídos na nossa cultura com os hábitos da moral de espírito pequenoburguês pelos quais procura manterse indiferentes em relação às perguntas emergentes da existência que exigem tratamento específico o cristianismo como outras religiões ou filosofias apenas propõe respostas a sua maneira às perguntas levantadas pela existência E à luz do personalismo de Mounier 1718 Ibidem p 72 1719 É sabido que os grandes movimentos pendulares da história humana movimentamse em sua busca de equilíbrio pela negação A dialética é fundamental ou melhor é o modo pelo qual se dá a existência para Mounier 667 é sob esta ótica que o cristianismo os mitos e a religião em geral são tomadas nesta dissertação ou seja como fenômenos ligados à experiência existencial legítima e profunda da humanidade1720 E é sob essa ótica que o cristianismo como qualquer outra resposta religiosa ou filosófica às perguntas advindas da existência deve ser avaliado e testado em seu valor de resposta O conceito existencialismo como todo conceito como vimos antes tende a petrificar a engessar sob determinados ditames critérios e pressupostos teóricos um fenômeno que para o personalismo é essencialmente fluido fugidio mas que por isso mesmo em vez de representar um fracasso a priori a toda tentativa de aproximação na verdade constitui para Mounier um desafio para o intelectual enquanto manifestação mesma do modo de ser específico da pessoa que em seu desvelar apresenta nesse seu modo próprio as exigências específicas que apontam à luz da epistemologia personalista para a necessidade de toda uma reformulação do tipo de aproximação exigida por esse objeto por parte de quem deseja conhecêlo se aproximar dele respeitandoo em seus caracteres mais próprios Falamos antes que Mounier vê duas correntes se bifurcarem da tradição existencialista que na modernidade remonta a Pascal No ramo de inspiração cristã além de Pascal há Kierkegaard Eles se consideram como os testemunhos da evidência cristã uma evidência que se comunica pelo testemunho mais que pelas razões1721 Todavia para Mounier o existencialismo fez sua mais bela colheita na escola fenomenológica alemã Um Scheler passou muitas vezes da ortodoxia à independência de uma confissão a outra Um Jaspers que erigiu o inacabamento em critério da existência humana não pode ser chamado de filósofo cristão1722 se bem que todos os movimentos de seu pensamento salvo talvez o 1720 A reabilitação do mito e da religião como expressões anteriores ao pensamento científico sim todavia tocantes a uma profundidade da experiência humana e como partes integrantes e legítimas da experiência humana é um fato hoje incontestável 1721 Introduction op cit p 72 1722 Eis aí a nosso ver mais uma imprecisão do pensamento de Mounier para consigo mesmo Não entendo e Mounier não explica por que a idéia de inacabamento diante das noções de futuro aberto de liberdade responsável sob condições de artefato etc que compõem justamente um pensamento de inspiração cristã seria uma noção incompatível Como temos visto a partir do próprio pensamento de Mounier esta noção de inacabamento não é somente totalmente compatível como é fundamental e essencial numa antropologia de inspiração cristã ou melhor neotestamentária Este pensamento de inspiração cristã é o que é justamente eleito por Emmanuel Mounier A meu ver Jaspers pode não ser chamado de filósofo cristão expressão que nem Mounier queria ver relacionada ao seu pensamento como já vimos por conta da maneira viciada de colocar o dilema deste filósofo cristão pelo racionalismo por outros motivos mas não por este 668 último se dão em pleno caráter cristão1723 Nenhum é mais próximo de Kierkegaard e de suas passagens abruptas Paul Louis Landsberg cuja obra foi prematuramente interrompida no campo de concentração de Orianenbourg continua essa linha Uma derivação russa passa por Soloviev Chestov e Berdiaeff Um ramo judaico conduz a Buber Karl Barth não contribuiu pouco para a reintrodução de Kierkegaard no pensamento contemporâneo através de sua teologia dialética Os que conheceram em seu frescor o apelo bergsoniano e nolo tem cantado em termos líricos reconheceram aí sem o nome face à objetificação do ser humano pelo positivismo o acento do papel existencial do qual Péguy e Claudel foram os poetas Seria injusto esquecer como hoje a isso tende um outro jorro do mesmo jato a obra de Laberthonière e de Blondel cujas defesas às vezes inábeis muitas vezes mal compreendidas pelo método de imanência não são diferentes do eterno apelo à interioridade no Journal métaphysique Gabriel Marcel representa o existencialismo cristão francês vivo com alguns dos primeiros ensaios de pensamento personalista1724 Para Mounier Kierkegaard é daqueles homens que em todo rigor não podem ter discípulos não tendo deixado sistema e que conta entretanto com uma numerosa posteridade De um outro isolado Nietzsche segundo Mounier se ergue a partida da segunda corrente Simétrico a João Batista segundo o diretor de Esprit ele quis soar o fim da era evangélica anunciando a morte de Deus aos seres humanos que não ousavam assumi la depois de têla perpetrado Essa morte segundo Mounier foi inicialmente tomada alegremente pela família Jamais otimismo algum foi mais alegre indiferença mais tranqüila que nesse fim de século tão feliz entre as ruínas que nem a queda de uma cristandade nem as terríveis promessas da ciência nem o apocalipse social iniciante chegaram a demover Todavia segundo Mounier o arauto de Zaratustra Nietzsche irrompeu como um estampido de trovão indecente nesse céu de férias A felicidade se despedaçou sobre o outono do Ocidente e se abriram as tempestades do equinócio que balançam hoje nossos telhados e nossos jardins Ele também como Kierkegaard segundo Mounier deveria esperar pelo que sua voz carregava que o desespero se inscrevesse nos corações desolados da presença divina e decepcionados pelos mitos de substituição Dessa sua conjuntura formouse um novo estoicismo onde o ser humano é exaltado no seu 1723 Grifo nosso Eis aqui uma expressão de Mounier a nosso ver mais conseqüente com o seu personalismo 1724 Ibidem p 72 s 669 afrontamento em sua solidão fundamental Não se deu ao ceticismo sua parte diziam os antigos Da mesma forma essa filosofia da angústia total recusará ao racionalismo moderno em nome de uma experiência resoluta ter por pouco que seja conservado diante do ser humano o pobre ser sem realidade do positivismo Ela nos afronta diretamente no nada fundo sem fundo da experiência Tal é a linha do existencialismo ateu que vai de Heidegger a Sartre e que se mantém abusivamente hoje como compreendendo todo o existencialismo grifo nosso1725 Concluindo Mounier indica como se dará sua aproximação a estas correntes divergentes Um simples olhar nos assegura que a primeira tradição existencialista não cede à segunda nem em amplitude e nem em influência Sua origem comum no entanto não se deixa esquecer tão precário permaneça seu elo Uma certa maneira de colocar os problemas uma certa ressonância de numerosos temas comuns ao menos na origem fazem com que o diálogo entre as mais opostas dentre elas seja sempre mais fácil do que elas todas entre si com os pensamentos que permanecem estranhos a suas suposições comuns Por isso nos pareceu dentre outras a melhor maneira de nos guiar em seu domínio procurar seus temas diretores deixados ao exame de cada um nas transformações que eles sofreram de uma tradição a outra1726 Assim Mounier examina o primeiro tema diretor o tema do despertar filosófico Nessa conexão em relação ao imperialismo do pensamento como instrumento de produção pois para o existencialismo segundo Mounier o conhecimento do homem é mais urgente1727 este conhecimento longe do distanciamento positivista no conhecimento de uma coisa se dá para Claudel1728 como conaître conaître nascer com O que se contesta no racionalismo segundo Mounier é que O racionalismo fala como se o conhecimento automaticamente ou laboriosamente seguisse sempre no sentido de um enriquecimento do ser humano Isto é o que se contesta1729 Mounier nessa sua aproximação faz uma caracterização da indiferença pelo racionalismo Por um tipo de demissão fundamental sobre a qual seria necessário talvez tentar uma análise ética eles têm construído a ficção de um mundo que não é mundo diante 1725 Em nota escreve MOUNIER Nós não classificaremos Kafka o inclassificável Ninguém nos deixa mais totalmente suspensos na angústia do abandono todavia ninguém nos dá aí um sentimento tão agudo de uma transcendência e de uma esperança possíveis Somente possíveis 1726 Introduction aux existentialismes Oeuvres III p 73 s 1727 Ibidem p 75 1728 Ibidem 1729 Introduction op cit p 75 670 de ninguém pura objetividade sem sujeito para contestála1730 Mounier acredita que se deva fazer uma análise ética da concepção de mundo filosófica ou melhor da tradição filosófica que tem preponderado porque ela tem construído a ficção de um mundo que não é diante de ninguém ou seja em desrespeito total tanto à dignidade do sujeito quanto à do objeto Como vimos este alcance ético que Mounier propõe faz todo sentido pois essa propensão ao impessoal está na base de toda atitude de dominação tirânica Parafraseando Tolstoi Se não há nada para ninguém eu sou À luz da crítica existencialista segundo Mounier os filósofos daquela filosofia se sentem feridos pela existência mesma como de uma indefinida e vergonhosa sobrevivência da presença do ser humano Podemos constatar aqui da parte de Mounier por onde se iniciaria sua crítica de alcance ético a esta filosofia do racionalismo Tratase de uma crítica cujo alcance histórico ultrapassaria o quadro da modernidade que como continuadora tocaria nas origens mesmas do pensamento ocidental no que temos caracterizado de maneira geral como tradição intelectualista Podemos ouvir por essas observações de Mounier os ecos da desconfiança dos sentidos platônica e logo em seguida do desprezo neoplatônico pelo corpóreo Sobre essa filosofia continua Mounier Eles se empregam então a desenvolver o mundo como um sistema de puras essências quer dizer puros possíveis para que ele se torne em suma indiferente ao fato de que eles existam ou não existiam1731 A noção de ser então segundo Mounier se esvazia para o nada Não para possibilitar a experiência fundamental do nada psicológico ou melhor existencial prérequisito para a possibilidade de uma autêntica experiência com o Ser conforme a tradição da Grande Mística já apontou Mas para o nada ontológico Ou seja uma extrapolação indevida da razão dos seus limites e do uso interesseiro da noção de possibilidade contra outras possibilidades pois o nada ontológico não passa também de uma possibilidade da qual lança mão como expediente metodológico para logo em seguida nulificar as essências esvaziálas de qualquer conteúdo impeditivo a sua contenção dominadora1732 Segundo Mounier A classificação bani o mistério o professor destrona os heróis e o santo1733 O pecado original do racionalismo é que ele esqueceu que o espírito daquele 1730 Ibidem 1731 Ibidem p 76 1732 Introduction op cit p 76 1733 Ibidem 671 que conhece é um espírito existente e que é tal não em virtude de qualquer lógica imanente mas de uma decisão pessoal e criadora1734 O existente não se coloca as questões em vão Ele não procura a verdade uma verdade impessoal e indiferente a todos mas em uma promessa de universalidade viva sem dúvida sua verdade uma verdade que responde a suas aspirações coaguladas suas esperanças denunciados os seus problemas Esse caráter apropriado mas não de proprietário da verdade segundo Mounier sublinhado duramente por Jaspers nós o vemos destacado e defendido em um Scheler ou em um Blondel por uma paixão mais doce a paixão da compreensão e do que se poderia chamar de discrição educativa1735 Aqui comanda o conaître conaître nascer com Para o personalismo de Mounier também não há a verdade solta fora do plano da apropriação pessoal como uma promessa de universalidade assim como não há também a certeza mas um compromisso com a sua verdade as palavras a serem destacadas aqui são promessa e compromisso Promessa porque é uma busca da verdade sobre a perseverança algo nada fácil para o existente e mantida só por meio de muita esperança contra a esperança enfim não se trata de nenhuma facilidade o que por sua vez não implica a rigidez de um dogmatismo sádico quanto a suas incapacidades e fraquezas Compromisso porque a cada passo estará em jogo as bases sobre as quais o existente construiu seus alicerces suas aderências necessárias mas não absolutas o que por sua vez não quer dizer o lançamento a priori de uma metafísica determinista do malogro A pessoa para o personalismo não esquece de colocar sob o modo de ser do artefato também suas bases Nessas bases pelas quais se dá o engajamento personalista podemos já elencar a diferença entre a ação vista pelo personalismo e a mesma vista pelo pragmatismo E essa diferença está em que a ação personalista é entendida dialeticamente ou se preferir dramaticamente Apesar de sua importância fundamental no pensamento engajado do personalismo não se trata de uma prioridade absoluta como quer o pragmatismo mas de uma presença incontornável no ato mesmo de pensamento Não se escolhe agir agimos sempre movidos por nossas escolhas prévias Vista assim a ação personalista se destaca tanto do pragmatismo quanto do racionalismo ou melhor duas tendências estanques A autoreferência do sujeito ou 1734 Ibidem 1735 Ibidem 672 melhor sua implicação incontornável no discurso filosófico é o que a ética personalista procura sempre fora da confusão esclarecer quer dizer nem iludir nem diminuir e nem aumentar o seu alcance Além dessa vontade de sistema em relação ao mundo há uma outra vontade de sistema em relação à vida ou à morte Para essa vontade de sistema é a morte que é um problema filosófico enquanto que para o existencialismo não é a morte que é um problema filosófico mas o fato de que eu morra Citando Kierkegaard diz Mounier Seria razoável que ser pensador fosse a mesma coisa ou pelo menos na menor diferença possível que ser um ser humano1736 Essa outra maneira de sistematizar que dificilmente visível secreta os nosso hábitos cotidianos Kierkegaard o designou como o universo do imediato1737 e Heidegger como o mundo da indiferença e da preocupação O primeiro sublinhou seu caráter espontâneo irrefletido o segundo esse tipo de sufocamento da vida profunda que ele realiza Jaspers e Gabriel Marcel descobrem a máscara sedutora da evidência pela qual ele se impõe como universo do totalmente natural Os objetos que ele constitui obstruem em todas as partes com sua familiaridade tranqüilizadora o mistério do ser1738 as idéias aí seguem naturalmente e se recusam ao questionamento a possibilidade mesma do estranho motor da inquietude espiritual está excluída É ainda em Sartre o mundo resignado e nauseante dos Salauds1739 mundo fechado vazio enfadonho o universo leve dos libertinos se tornou um sufoco1740 A vontade de sistema se apresenta ao existencialismo segundo Mounier como uma intenção de garantir paz e tranqüilidade Já vimos que para o personalismo também essa paz como aquisição perpétua fora do risco próprio que compreende a existência finita juntamente com o existencialismo é uma mentira Todavia o personalismo vai além a paz sem justiça que é como o personalismo dá o alcance ético dessa crítica à paz burguesa sem a qual permaneceria apenas como um problema teóricofilosófico é a mentira por excelência Os existencialismos por sua vez com razão por desconfiança dos sistemas acabam segundo Mounier todavia numa desconfiança total já não com tanta razão assim 1736 Introduction op cit p 77 1737 Ver sobre sistema em LACROIX Jean Marxismo Existencialismo Personalismo op cit pp 61 ss Sistema e existência 1738 Em nota de MOUNIER Gabriel Marcel Être et avoir ed Montaigne p 165 1739 Em nota de MOUNIER La Nausée 1740 Introduction op cit p 77 673 das instituições das mediações necessárias à vida humana sem as quais não se pode estabelecer as aderências necessárias para que a pessoa possa processar sua existência no cumprimento de sua vocação como temos visto Não obstante o personalismo tem consciência de que as instituições até o presente momento têm servido antes para o sufocamento da pessoa é por isso que para o personalismo tratase de um problema de civilização de revolução O existencialismo como o personalismo é oposto a uma gnose pois o ato filosófico é o ato mais banal os passos do pensamento não saberiam ser outra coisa que os passos de uma vida que se conquista numa existência mais rica Diferentemente do positivismo para o qual o desinteresse filosófico é um modo superior de existência Na verdade segundo Mounier é necessário ver aí uma covardia fundamental o ato culpável de um existente que aposta contra a existência em favor do sono vital1741 Já falamos que o indivíduo liberal e burguês diferentemente da pessoa deixase subsumir sob os papéis sociais que o totalitarismo sutil do neoliberalismocapitalismo lhe concede que exerça sem que consiga alcançar um nível de densidade existencial significativa que faça valer sua verdadeira vocação como pessoa criadora fora dos quadros préestabelecidos pela sociedade burguesa A existência desse indivíduo é epidérmica Não se espera dele um esforço de ultrapassamento que é parte integral do movimento de personalização Como Jean Lacroix define este momento da pessoa em Mounier tratase de um movimento para ir sempre mais longe procura de uma consistência que a pessoa não pode encontrar senão numa busca contínua Todos os sentimentos por exemplo testemunham que eu sou mais que eu mesmo O pudor é o sentimento penoso em nós dizendo eu sou mais que o meu corpo a timidez eu sou mais que meus gestos e minhas palavras a ironia e o humor eu sou mais que minhas idéias a generosidade eu estou além de todas as minhas posses1742 Sendo o egoísmo a fonte inspiradora desse modo de existência assumido pelo indivíduo neoliberal e podendo o egoísmo ser definido como uma espécie de loucura concentrada para 1741 Ibidem p 78 1742 LACROIX Jean Présence de Mounier in Bulletin des amies dEmmnauel Mounier Numéro 46 Juin 1976 Boletim em homenagem a Emmanuel Mounier no 25ª ano de sua morte p 14 esse artigo de LACROIX apareceu pela primeira vez in Revue de presse 1975 674 Mounier A ausência de interioridade é uma outra forma de loucura se bem que ela seja discernida com dificuldade porque tem se tornado uma loucura sociável grifo nosso1743 Por aí podemos ver como se ligam inextricavelmente um tipo de epistemologia com um tipo de vida social Quando o personalismo elege o modo de ser da relação como a experiência originária da pessoa além de ter em vista um pressuposto epistemológico tem também em vista o seu alcance ético A vida proposta pelo racionalismoliberalismo é construída sobre o modo de ser da separação e de uma conseqüente independência do indivíduo que resulta no frigir dos ovos ilusória porque não fundada na maestria da pessoa em posse da sua vida com os seus valores livremente assumidos A sociedade atual tem pago um preço alto por assumir esse tipo de vida proposto e aceito pelo racionalismo neoliberalismo pelo qual ele procura a todo momento e parece que consegue nos fazer esquecer dos elos inelutáveis que nos unem uns aos outros e à natureza Elos em relação aos quais a última estratégia do liberalismo moribundo quer dizer o neoliberalismo tem sido lançar mão dos seus parceiros o pseudoespiritualismo e o discurso politicamente correto atual para esvaziálos de seu conteúdo revolucionário transformandoos em questão de sentimentalidade e de opinião pública Para o personalismo o verdadeiro conhecimento se dá quando mesmo sob um condicional aquele que conhece engaja sua vida no ato de conhecimento Sócrates é o exemplo de um conhecimento deste tipo1744 É a filosofia da consciência segundo Gabriel Marcel com o que Mounier concorda a partir de Descartes que instaura a ilusão da transparência do cogito Como corolário a essa filosofia instaurase o conhecimento como posse e o Ser como inventariável Desde então a Náusea e a posse caminham juntas A Náusea é o mal do homem que quer possuir o mundo no momento mesmo em que ele toma uma vertigem ontológica quanto à vanidade ofuscante dessa possessão A fuga dessa vertigem é tratada por Pascal como divertissement Não se trata no entanto para Mounier de uma maneira que reduza toda possibilidade da posse Possuir além de implicar domínio pode implicar respeito e responsabilidade pelo possuído Se o Ter é uma dimensão tão necessária à pessoa como o Ser segundo o personalismo de Mounier tratase antes da maneira pela qual se tem e não de um a priori 1743 Introduction op cit p 79 Um resgate da obra do psicanalista Alfred ADLER seria oportuna quanto a mais esclarecimentos acerca desse tipo de loucura sociável 1744 Ibidem 675 sobre o ter em si muito ainda ressentido do substacialismo Assim como há o risco do Ter perderse na Náusea da posse há o risco do Ser perderse na volúpia solipsista e niilista da busca de uma interioridade que não é nada mais do que ruminação arrogante e ressentida Dissemos antes como Verdade e Subjetividade que se enlaçam em Kierkegaard para Mounier devem receber um caráter mais denso enquanto expressão de uma luta nada fácil da pessoa em busca de sua coerência em confronto com as resistências internas e externas Ainda aqui estamos no tema do pensamento que para Gabriel Marcel é um caminho a percorrer mais do que um colocar em ordem uma sondagem mais que uma construção um desbravamento sempre recomeçado mais do que um percurso no sentido de previa e rigidamente estabelecido porque demarcado um caminho que pode ser a qualquer momento refeito Não se trata de edificar mas de escavar1745 O que nos faz depreender o sentido do provisório e do artefato que compõe todas as nossas iniciativas todos os nossos projetos Este é justamente o sentido que comandará toda reflexão de Emmanuel Mounier e o que também justifica nossa nota anterior sobre a observação de Mounier acerca da eleição de Jaspers do inacabado Esse caráter fugidio de reposição que toca em todos os aspectos da existência humana que é o Ser mesmo para o personalismo vai no existencialismo sofrer uma inflexão também ela é verdade não absoluta em que sobressairá por causa do caráter de fragilidade e de precariedade uma entonação mais obscura antes que o sentido possível de ver este mesmo caráter como dádiva como oportunidade de superação na alegria de se estar diante de um futuro aberto como possibilidade como abertura como liberdade como esperança Por exemplo para Jaspers segundo Mounier Ser é o gênero mais geral e por sua vez o mais pobre de conteúdo Para Jaspers o Ser é mais do que articulado ou diversificado O Ser é despedaçado1746 Isso tem inelutavelmente conseqüências para o problema da comunicação Ainda para Jaspers segundo Mounier no ser estabelecemse os três modos incomunicáveis como objeto para os sujeitos como eu nos sujeitos e em si na sua transcendência logo o mundo a liberdade e a transcendência O ser não se descobre senão sobre perspectivas parciais e sem comunicação entre elas1747 Ora dada esta fratura incurável no próprio ser Mounier observa como corolário que na perspectiva 1745 Introduction op cit p 81 1746 Ibidem 1747 Ibidem 676 do existencialismo a preocupação pela totalidade preocupação dos filósofos sistemáticos é substituída pela preocupação da intensidade1748 Então na filosofia existentielle de Jaspers há a renúncia a uma teoria do ser em geral na filosofia existentiale de Heidegger há uma promessa não cumprida de apresentar uma teoria do Ser depois de uma teoria da existência humana do Dasein Mas segundo Mounier devese constatar que até aqui Heidegger não tem saído de sua análise do Dasein e temos boas razões para crer com seu comentador M de Walhens que pela maneira como ele tem se conduzido está fechada toda possibilidade de sair1749 Em outras palavras como diz Ortega y Gasset1750 Heidegger não cumpriu o que prometeu Ainda quanto a isso Mounier1751 observa que o que parece ser um temor de Sartre parece ser uma condição essencial da revelação do Ser para Jaspers Assim a primeira preocupação de um pensamento existentielle será o de não deixar degenerar os mistérios em problemas cuja dialética complicada ofusque o caminho das aberturas ontológicas o método será o de tomar os problemas como o problema do ser da morte do ter e de os conduzir a este transbordamento pelo centro se se pode dizer que nós temos descrito Ou ainda determinar a exata posição na ordem muito racional dos problemas dos pontos de mistério alguns dados particularmente ricos como a fidelidade a esperança a traição onde o homem será tomado com suas situações ou suas tentações fundamentais1752 Isto em linhas gerais é o que a abordagem personalista de Mounier procura fazer mas em guarda em relação à queda da lucidez onde a pessoa mantém sua maestria para a pura intensidade Eis uma precisão quanto ao personalismo de Mounier e os existencialismos No pensamento de Jaspers e Marcel segundo Mounier a metafísica se mantém por causa do que este termo implica ou seja que a filosofia última procure seu caminho em prolongamento ao mundo objetivado1753 Interna a esta compreensão está a idéia do fazer filosófico como um movimento sempre inacabado sempre em prosseguimento se é que ele quer participar como parte e expressão mesma do modo de ser próprio segundo o 1748 Ibidem p 82 1749 Ibidem 1750 SAVIGNANO Armando José Ortega y Gasset 18831955 Cristianismo e Secularização in Giorgio PENZO Roisno GIBELINI Org Deus na filosofia do século XX Edições Loyola São Paulo 3a ed 2002 p 229 s 1751 Introduction op cit p 83 1752 Ibidem p 84 1753 Ibidem 677 personalismo da existência finita Metafísica aqui e no pensamento de Mounier tem a ver com uma constante resistência a não cair no erro póskantiano quer dizer no erro de permanecer aquém das possibilidades abertas pela finitude mantendose assim em um reducionismo que nós denominamos metafísica do aquém em nome de uma precaução ou prevenção contra uma metafísica do além ou seja da extrapolação das condições de uma experiência possível Nesse sentido o apelo a uma vida criadora é marcante na obra de Emmanuel Mounier Todavia segundo Mounier na carga semântica deste conceito metafísica o existencialismo na perspectiva marceliana e jasperiana impõe uma torção como diz Bergson dos hábitos do espírito uma conversão uma metánoia como se dá na religião A possibilidade da continuação do uso deste conceito mesmo após Kant está em que a filosofia existencialista aqui segundo o diretor de Esprit já não começa por uma aquisição por um lado acabada Esta atitude existencial por falta do acabamento do ser tão sonhado pelas filosofias da consciência é caracterizada pelo inacabamento do ser por um lado o ser é silêncio intensidade progressão recolhimento Marcel um abandono interior Jaspers um solto repouso na presença de o que faz valer em Emmanuel Mounier a necessidade de um ir além implícita para ele na própria metafísica Além disso ou seja tomar a metafísica como possibilidade será por outro lado uma estratégia de proteção não somente contra a objetificação tradicional como contra a degradação do existencialismo numa exaltação da efusão vital que é o que parcialmente acontece segundo Mounier com o pensamento de inspiração nietzschiana Do ponto de vista ético o direito à possibilidade ou melhor à metafísica como possibilidade na concepção que esboçamos e que se depreende da obra de Emmanuel Mounier é uma defesa legítima da pessoa contra qualquer tipo de objetivação ou de reducionismo mesmo que seja um do tipo instintivo dramático e corajoso nietzschiano1754 Para Jaspers a existência é sempre culpável quando ela se deixa perder e aprisionar nas objetivações pela escolha que consagra a sua estreiteza e quando ela recusa essa dupla impureza a da objetividade onde ela se alienaria e a da subjetividade onde ela se dissiparia Todavia segundo Mounier para Jaspers ela deve se apoiar na objetividade para encontrar sua consistência e aceitar a estreiteza de sua subjetividade para escavar até o 1754 Introduction op cit p 85 678 ser1755 Assim diz Mounier Ao ideal racionalista de objetividade de imparcialidade as filosofias existenciais opõem uma concepção militante de inteligência Nietzsche e o cristão estão aqui de acordo A inteligência não é neutra Heidegger tem vivamente reagido contra a pretensão de seu mestre Russerl em colocar em parênteses as opções fundamentais sobre a existência para estudar a existência Não se pode descrever a existência sem dispor antecipadamente de uma concepção da existência1756 Mounier faz decorrer o aspecto personalista dessa imbricação inelutável do existente e a existência Para ele é necessário nos desembaraçar do preconceito de que a vontade de permanecer fora do objeto seja sempre favorável ao conhecimento Exceto no caso do conhecimento por sinais que é notadamente aquele da ciência o conhecimento está segundo Mounier ao contrário ligado a uma participação íntima pelo conhecimento na vida do objeto a um risco corrido com seu objeto1757 O conhecimento científico como vemos é bem limitado em relação ao conhecimento como proposto pela epistemologia personalista Todavia o conhecimento científico cumprirá seu melhor papel se se ater as suas humildes limitações mas não ficará isento de ir ao banco dos réus segundo o personalismo se num segundo momento pretender extrapolar estes limites comprometendose com valores pseudocientíficos em sua apologética da ideologia dominante os quais implicam inelutavelmente um alcance ético quando então suas formulações já pretendem fundamentar as relações que comandam o mundo da vida Aqui tocamos em um problema fundamental e divisor de águas entre o personalismo e a perspectiva existencialista de Heidegger por exemplo Antes de se considerar a relação sujeitoobjeto como uma traição do Ser levandose em consideração a supervalorização do objeto em detrimento do sujeito que fora o caso da Antiguidade tardia e da Idade Média antes da supervalorização contrária do sujeito em detrimento do objeto caso da modernidade e isto em nome de uma unidade do Ser perdida e esquecida esta relação enquanto expressando e indicando o modo de ser mesmo da pessoa e que caracteriza a antropologia personalista ou seja o modo de ser da relação denuncia algo de fundamental e incontornável integrante ao ser mesmo de cada um dos componentes da 1755 Ibidem 1756 Ibidem 1757 Introduction op cit p 85 Em nota de Mounier Ver Paul Louis LANDSBERG Réflexions sur lengagement personnel Esprit novembre 1937 Esse texto se encontra traduzido para o Português em LANDSBERG Paul Louis O sentido da ação Paz e Terra Rio de Janeiro 1968 pp 83 ss 679 relação em questão Isto em termos personalistas nos força a um desvio do caminho de um tratamento ontológico do tipo heideggeriano o qual nos forçaria a negar e abandonar decididamente a relação sujeitoobjeto mas para a assunção de um tratamento existentielle ou melhor dramático desta relação e da qual o personalismo não abre mão Pois pelo qual o personalismo faz valer o princípio fundamental do modo de ser da relação o qual como já vimos é o constitutivo da experiência originária Não sendo então o modo do plano ontológico de tratamento do Ser como quer Heidegger o mais primitivo para o personalismo será então a apreensão existentielle tal como temos esboçado a mais apropriada segundo o personalismo para dar conta da exigência de concretude que a dimensão da pessoa finita exige Sendo assim há no tratamento personalista existentielle desta relação a manutenção de uma densidade própria ao sujeito enquanto tal e ao objeto enquanto tal da qual o personalismo não abre mão Não se trata de uma negação cabal por causa de afirmações também cabais de precedência ora do objeto ora do sujeito como tem sido o caso na história ocidental desta relação Tratase antes para o personalismo de Emmanuel Mounier e seu grupo de colaboradores de destacar e fazer valer o elemento de radicalidade que consta nesta relação e que aponta para uma experiência fundamental da pessoa que é a do seu modo de ser relacional e que expressa a condição prévia de todo conhecimento a participação tal como concebe uma epistemologia de inspiração personalista É obvio então que em termos personalistas a noção de participação é ampliada em relação a sua compreensão reduzida empíricoracionalista que tem prevalecido como experimentação e contra a qual também não obstante Heidegger se ergue Todavia com a ampliação da noção de experimento implicada na noção epistemológica personalista de participação que se mantém no personalismo como fundamental para o ato de conhecimento e pela eleição como dimensão primitiva do ser da pessoa finita do modo de ser da relação como originário o personalismo em vez da supressão propõe nestas bases que lhe parecem mais concretas e mais fundamentais inserir um elemento de dramaticidade na relação sujeitoobjeto a fim de fazer valer a densidade residual própria à irredutibilidade que permanece como densidade ontológica de cada termo em sua possível compenetração frutífera Não há para o personalismo de Mounier simplesmente sujeito e objeto assim estanques como a relação expressa pela 680 conjunção e proposta pela modernidade e sua crítica propõem Aliás aceitar os termos em que esse problema é colocado pelo racionalismo seria ser racionalista ao contrário contra o que Mounier se mantém em guarda Antes para o personalismo o hífen da relação sujeitoobjeto expressa sim uma unidade mas dramática na qual a densidade ontológica de cada termo se mantém sempre numa tensão frutífera de produção de um plus de um mais ser1758 No plano da finitude para Mounier nunca nas relações fundamentais ou existentielles a que faz referência1759 11 será exatamente 2 A crítica personalista ainda neste plano à civilização atual tem destacado a prevalência sempre de um resultado de 2 O personalismo seria justamente a proposta de uma experiência possível em que na soma 11 forçássemos o resultado possível de do que 2 já que a univocidade é como bem nota os existencialismos no plano da finitude impossível e que o personalismo vai mais longe chamandoa de morte Estas são as bases para se pensar a crítica personalista ao aquém da razão perpetrado pelo pensamento póskantiano que complementaria a crítica kantiana do além da razão da extrapolação da razão das condições de uma experiência possível entendendo possível aqui de maneira personalista ou seja em suas possibilidades mais afins com a existência concreta do que com as possibilidades tacanhas impostas e permitidas pela Razão do racionalismo kantiano O existencialismo se recusa simplesmente a deixar às categorias racionais o monopólio da revelação do real1760 Por isso para o personalismo o método científico é uma coisa positivismo é outra e esta observação metodológica poderia se ampliar assim cristianismo para tomarmos um exemplo de uma âmbito diferente da cultura humana tão válido quanto o da ciência o da religião como temos tentado apontar aqui é uma coisa e cristandade enquanto sua projeção sociológica é outra ou ainda comunismo é uma coisa que é diferente do comunismo russo e que é diferente ainda do comunismo russostalinista etc O perigo constante a que Mounier sempre procura alertar em sua reflexão é o de fazer o segundo termo o da projeção subsumir sob suas formas parciais o primeiro Pois é este sempre segundo o personalismo o guardião e depositário dos valores fundamentais que o 1758 Ou na linguagem da dialética de um terceiro que é densa dialética qualitativa e totalmente diferente de uma soma das partes 1759 Se é que não se poderia ampliar até mesmo para o âmbito das ciências duras e matemáticas ao menos como o que as fustiga para o desenvolvimento e progresso de suas teorias 1760 Introduction op cit p 86 681 mais intrínseco e fundamentalmente humano em seu esforço no movimento de personalização elaborou Ou seja sua mística primitiva Ora no fundo desta advertência de Mounier está a afirmação da necessidade de um diálogo constante e renovado humilde porque reconhece que a facticidade não obstante ser o que de concreto temos acerca de nós mesmos por outro lado é sempre parcial em relação a sua inspiração primitiva e nunca nos é dada na forma de um dado bruto pelo qual se poderia pretender uma objetividade que dispense nossos próprios préconceitos e condicionamentos na ora de fazermos o seu julgamento compreensiva porque entende o acolhimento inscrito na existência da pessoa como o movimento de uma experiência fundamental de descentralização do eu que procura enxertar em si mesmo o que é especificamente um outro na intenção de tornálo um eu mesmo criadora porque não se trata de uma atitude de passividade de quem apenas observa e descreve mas de quem quer participar ativamente em sua constante e renovada elaboração possível Contra essa incapacidade das categorias racionais de deterem o monopólio da revelação do real Mounier nota que em Heidegger há uma tese constante e que Sartre a retoma contra o inconsciente freudiano de que somos afetados por realidades que sem ser propriamente inconscientes não chegam a ultrapassar o limiar da consciência1761 Elas segundo Mounier se revelam em Heidegger pelos sentimentos fundamentais Stimmung cuja capacidade de revelação é superior à capacidade explicativa do conhecimento que as desenvolverá É um tipo de visão por sua vez global e lateral distinta da visão clara É assim que em Heidegger segundo Mounier conhecemos nossa situação fundamental no mundo Uma situação que implica uma inteligência involucrada e implícita consciente mas de uma consciência lateral Assim segundo Mounier nosso projeto fundamental de existência essa maneira de tomar os seres humanos e a vida que nos guia em todos os passos é plenamente vivida por nós está em nós segundo a expressão de Bares nota Mounier como um mistério em plena luz Esse conhecimento involucrado diz Heidegger segundo Mounier é já interpretação se bem que não explícita não temática Interpretação implicada e agida elaboração mais que elucidação1762 1761 Ibidem 1762 Introduction op cit p 86 682 V4 O engajamento Mounier aqui dá uma inflexão ao seu texto para o tema do engajamento que para o personalismo é um incontornável Essa incontornabilidade do engajamento é um ponto de inflexão que representa na história de Esprit e do pensamento de Emmanuel Mounier uma reposição dos posicionamentos É nesse sentido que a figura de Paul Louis Landsberg é decisiva na história de Esprit e do personalismo de Mounier Seus artigos em Esprit Réflexions sur lidée chrétienne de la personne de dezembro de 1934 até o Dialogue sur le mythe escrito com Jean Lacroix em outubro de 1937 Le sens de laction outubro de 1938 exerceram uma influencia decisiva sobre as posições da revista1763 Para Mounier então este engajamento constitui o sério da filosofia Sério que por sua vez é objeto de favor e de ataque na crítica existencial É que há dizia já Kierkegaard segundo Mounier dois sérios O sério limitado o sério dos professores1764 que é uma indisponibilidade à graça do ser em nós e fora de nós É sobre o que Nietzsche segundo Mounier mofava como espírito de peso Para Nietzsche segundo Mounier a imagem mesma do vôo lhe parecia muito muscular e muito violenta ainda para evocar a leveza celeste do pensamento vivo Nietzsche segundo Mounier viao profundamente aparentado à dança ele amava falar do alegre saber e do riso dourado do homem trágico1765 Todavia como já vimos a pessoa é constituída por um duplo movimento de interiorização e de exteriorização portanto completa Mounier O sério existencial é por sua vez engajamento e desengajamento preocupação de presença e de inserção temor de se imobilizar nas posições adquiridas e nas fidelidades indeléveis Este sério existencial descobre em si mesmo a fonte do cômico que escapa ao sério do homem limitado ele a capta e se banha de ironia para não se condensar na finitude da afirmação É um sério mediato e dialético no extremo oposto do sério imediato e maciço do burguês O cômico aí purifica o patético e o patético aí dá o vigor ao cômico Não é outra coisa que a subjetividade sob seu duplo modo o eterno no ser humano em sua dupla revelação O 1763 Cf Esprit Emmanuel Mounier 19051950 organizada por Albert Béguin número especial de Esprit dezembro de 1950 p 996 Esses se encontram traduzidos para o Português LANDSBERG Paul Louis O sentido da ação op cit 1764 Introduction op cit p 86 Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Postscriptum 187 1765 Introduction op cit p 87 Em nota Mounier dá a seguinte referência Volonté de puissance Ed Gallimard L IV 580 586 591 Zarathoustra passim 683 sentido do peso do pecado e do dever de ser a leveza do apelo transcendente que salva a repetição do hábito1766 Ao ritmo sólido e rápido dessa dialética não há mais oposição entre o engajamento existencial e a disponibilidade do existente Os mais consagrados são os mais disponíveis1767 Para o personalismo essa consagração se unifica com a disponibilidade porque o sentido em que ela se dá quer dizer no da vocação pessoal ultrapassa o plano da singularidade para o do sentido de uma universalidade construída Essa consagração então deve ser entendida aqui em sua relação com a santidade no sentido bíblico fora de ressonâncias outras vindas de outros lugares e que têm mistificado esta importante noção teológica neutralizando no murmúrio de uma religiosidade doentia seu sentido mais densamente existencial e profundo1768 quer dizer o da consciência da necessidade de uma separação em vista do cumprimento de uma tarefa que só a mim e a mais ninguém compete realizar Isso no plano da singularidade Em seu alcance no sentido de uma universalidade construída no personalismo ela alcança o sentido da necessidade de participação de cada ser humano sem exceção na tarefa à qual todos são chamados a realizar a do esforço de ultrapassamento movimento para ir sempre mais longe na procura de uma consistência que a pessoa não pode encontrar senão em uma busca contínua1769 Com Landsberg o engajamento tornase para o personalismo da equipe de Esprit o incontornável por excelência da pessoa V5 A dramática existencial humana O existencialismo segundo Mounier é inicialmente uma filosofia do ser humano antes de ser uma filosofia da natureza1770 Por isso fica suspeita para o personalismo toda afirmação ou postura dogmática do existente sobre a natureza como se tratando de uma verdade cabal sobre as origens Nesse nível em que se problematiza a noção mitológica das 1766 Introduction op cit p 87 Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Le Concept dangoisse trad Alcan 51 s 210 s 1767 Introduction op cit p 87 Em nota MOUNIER dá a seguinte referência GMARCEL Être et Avoir 179 1768 Como já vimos que se dá também em relação à outra noção teológica importante a de pecado 1769 LACROIX Jean Présence de Mounier in Bulletin des amies dEmmnauel Mounier op cit p 14 1770 Introduction op cit p 88 684 origens do mundo a mitologia e a religião como temos visto têm mais e melhor a dizer tanto sobre os meios que sempre serão substituíveis e sujeitos ao aperfeiçoamento segundo os valores e o sentido do seu apelo quanto sobre os fins que atualmente só um deus poderia saber e que a humanidade só poderá tomar consciência no fim da história quer dizer quando ela já não mais existir Portanto o pessimismo é como o otimismo1771 um sistema caído sobre o mundo exposto como espetáculo e não uma expressão da experiência humana Aqui abrese a discussão sobre o pessimismo e o otimismo como uma dominante do caráter abordagem psicológica que se transforma em sistema Weltanschauung abordagem filosófica O fato é que nos dois casos enquanto dominante único tratase de uma anomalia por sua vez psicológica1772 e uma metafísica ainda atrelada a uma visão estática e objetivista da realidade em que a visão predominante sobre a mesma como um todo se dá a priori sempre sobre o aspecto de um julgamento qualitativo1773 Para Mounier e Gabriel Marcel não é uma expressão da experiência humana porque 1 não é a expressão legítima de uma escolha pessoal pois sempre os fatos desmentem ou seja nenhum pessimista ou otimista é conseqüente em sua vida com o dogmatismo de suas afirmações e se dá no nível do abstrato do nocional apenas o que parece ser um seguimento da tradição intelectualista 2 porque dispensa um engajamento pessoal conseqüente e a manutenção de atitudes também conseqüentes em relação aos valores fundamentais da escolha assumida como expressão também conseqüente do ponto de vista adotado Enfim tanto o otimismo quanto o pessimismo em suas formas unilaterais são mesmo a expressão de uma vida inautêntica de máfé para usar a linguagem existencialista Do ponto de vista prático as duas visões se encontram no valor que dão à concretude da pessoa O otimismo expressão altaneira da ideologia liberal é um otimismo da doutrina da lei natural de uma metafísica e ao mesmo tempo um pessimismo intransigente da pessoa concreta porque não inventariável para citar Marcel em favor do indivíduo abstrato um ente de razão totalmente a sua disposição Já o pessimismo é uma demissão da vida que se mantém às custas de uma contradição com o próprio elã vital que 1771 Introduction op cit p 88 Em nota Mounier dá a seguinte referência Gabriel MARCEL Homo Viator 46 1772 Ver Traitè du caractère Oeuvres II passim 1773 Ver como a noção de lugar natural de Aristóteles se aproxima dessa Weltanschauung 685 pulsa no próprio pessimista e que o impulsiona a continuar vivendo ou seja negandose nessa sua afirmação de fundo Nesta esquizofrenia do pessimista o elã vital transformase em manutenção desesperada da vida empírica contra tudo o mais que representará então na verdade da metafísica do pessimista inimigos reais e sempre potenciais Não podemos nos furtar aqui de lembrar a embriaguez da ação que faz parte da psicologia de todo fascismo segundo Mounier o pessimismo ativo é o tipo de engajamento que conduz ao fascismo Por outro lado na base destas duas atitudes se oculta um ódio visceral inconfesso à concretude ou melhor a sua expressão cabal segundo o personalismo que é a pessoa humana e todos os motivos que compõem uma atitude tirânica e opressiva contra a pessoa seja na forma de indiferença tratamento puramente abstrato juridista e moralista da realidade concreta e real de injustiça tipo otimista neoliberal seja na forma mais ativa do nazismo do fascismo ou dos gulags No final não obstante a aparência de total diferença ambas estas demissões a do otimista e a do pessimista se encontram em suas inspirações profundas de ódio visceral à pessoa humana à concretude Mounier para sair desse impasse propõe o otimismo trágico que elucidaremos mais à frente Há um certo motivo pelo qual o existencialismo toma uma face na maioria das vezes sombria Tratase de uma prevenção dos existencialistas contra a noção carregada de felicidade Carregada na Antiguidade como eudemonismo cuja busca e participação fora das especificidades da singularidade e suas prerrogativas ou se encontrava como a busca de um soberano bem quer dizer de uma hipóstase ou se ligava a uma atividade destinada a poucos a contemplação racional da verdade A modernidade que surge como a defensora da individualidade logo mostrará o novo lugar da busca da felicidade para esse seu indivíduo constituído como feixe de paixões e desejos incontroláveis Este lugar da felicidade burguesa estará no próprio indivíduo e se dinamizará na busca livre dos seus desejos egoístas o que se expressa e se sintetiza hoje como busca incerta do dinheiro com base na crença metafísica e teleológica da equalização social final por meio da pseudo religião moderna da providência de uma mão invisível reguladora no final Na contemporaneidade nota Mounier Jaspers perseguiu a tentação da felicidade sobre todos os planos onde ela nos espreita das utopias econômicas às harmonias filosóficas1774 Vêse enfim hoje em dia suceder ao otimismo cósmico e econômico que marca a apologética da 1774 Introduction op cit p 88 686 burguesia com seu triunfo opulento e seu pensamento curto uma vaga de consciência infeliz um novo mal do século que impulsiona o humor negro e o romance negro a procurarem uma justificação no existencialismo negro1775 Ora se no fundo dessa crítica existencialista à felicidade se encontra a percepção tanto de minha contingência inapelável quanto ao mesmo tempo de minhas exigências específicas enquanto projeto pessoal ao menos por um ser contingente que tem consciência dessa sua contingência ou seja de sua precariedade a questão não deveria se perspectivar para o personalismo sobre os juízos que se faz sobre esta contingência e suas conseqüências como uma substituição à eudemonia por uma infelictas o que seria apenas para o personalismo trocar seis por meiadúzia Em relação ao tema da contingência Mounier observa que para o existencialismo cristão minha contingência tem sua raiz na contingência original do ato criador gratuito renovado pela misericórdia gratuita da Encarnação e da Redenção1776 Já vimos em nossa aproximação veterotestamentária em nossa aproximação à teologiafilosofia dos primeiros filósofos gregos e na apropriação destas tradições pelo cristianismo1777 que lhes imprime o sentido da pessoa em que nível a Encarnação e Redenção se destacando do plano puramente teológico doutrinal então toma o seu alcance como concretude e densidade históricas no Ocidente e por conseguinte se apresentam entranhadas na própria história da humanidade já não simplesmente como simples dado da história das idéias religiosas mas quase que poderíamos dizer com a Grande Mística à maneira de contrapeso à tentação reducionista que caminhará desde então lado a lado sob as mais diversas formas e matizes como constituindo a representação mesma do sentido mais profundo da manifestação da vida tal qual nós a conhecemos neste mundo Não devemos esquecer as fontes dessa inspiração Desde o mito do Gênesis como vimos a criação ex nihilo a transcendência e a unidade do ser do Criador o monoteísmo que ela implica já constituíam o sentido de um afastamento constitutivo de um recôndito inatingível por qualquer identidade material entre Criador e criatura esta a tentação constante da explicação racionalista do panteísmo Esta mesma unidade da Divindade sentida como além da diversidade criada é como vimos o que inspirará a fundação do que denominamos filosofia grega e o que estará na 1775 Ibidem 1776 Ibidem p 89 1777 Ver acima Capítulo I 2 3º e 4 partes 687 base da formulação segundo o cristianismo da noção de pessoa que desde então carregará em si as mesmas atribuições no plano da finitude da história tal como temos tentado expor aqui Quer dizer mais do que uma simples contraposição religiosa a uma outra contraposição não religiosa Encarnação e Redenção são no personalismo as noções que apontam para o evento mesmo da inscrição da liberdade no que fora da intuição da gratuidade da criação ex nihilo ou seja da intuição de um ato livre independente da estagnação própria do estofo puramente material deixada a si mesma ou melhor à identidade resultaria qualquer outra coisa menos a liberdade criadora Atributo fundamental do que denominamos aqui segundo o personalismo de Emmanuel Mounier movimento de personalização ou emergência e insurgência da pessoa na história Para provar esta realidade da Encarnação e da Redenção na vida o personalismo não lança mão de qualquer sistema filosófico intelectualista como sobreposição à realidade factual vai direto ao ponto nevrálgico da expressão intrahistórica da manifestação da pessoa criadora em seu movimento de personalização que não se coaduna de maneira alguma com a lógica da identidade que para Mounier como já vimos é a morte A identidade não se inscreve no elã próprio da existência pessoal nem em suas expressões espirituais nem em suas determinações materiais as quais para o personalismo se são determinações por outro lado nunca são determinantes Para Mounier a física contemporânea não está aí para mostrar que o elemento de imprevisibilidade que se inscreve até no mundo subatômico seja a indicação da liberdade pessoal A liberdade da pessoa não precisa dessa migalha para ser provada aliás para o personalismo ela só pode ser provada e degustada pela própria pessoa em sua experiência singular de sua própria liberdade Para o personalismo só é possível falar de liberdade dentro do universo da experiência pessoal e aí mesmo sob a perspectiva do realismo integral do personalismo de Mounier a liberdade só poder ser experimentada como liberdade sob condições Para Mounier nem os liberais nem os marxistas nem o existencialismo nem os cristãos encaminham bem a liberdade que tanto prezam quando a isolam da estrutura total da pessoa Em outras palavras ninguém tem o monopólio da liberdade ela não é um objeto é a manifestação mesma da pessoa concreta na história1778 Mounier ainda sobre o tema da liberdade observa que é por causa da angústia de não sabermos se somos ou não joguetes 1778 Le personnalisme Oeuvres III p 477 688 do universo que queremos tocar na liberdade como se ela fosse um objeto ou ao menos um teorema A liberdade é afirmação da pessoa vivese ela ou não1779 Como já tivemos a oportunidade de ver1780 esta concepção contra a qual a crítica de Mounier se ergue é o tipo que parece estar na base do atual neoliberalismo Como vimos a defesa a apologética a retórica grandeeloqüente do discurso liberal de uma liberdade sem aderências uma liberdade em si como um objeto é o que possibilitou ao liberalismo no Ocidente depois de ter convencido a humanidade de que não se pode confiar na pessoa a qual ele desfigura como indivíduo feixe de paixões e desejos insaciáveis e incontroláveis depois de ter arrancado então ao ser humano este último recôndito de sua defesa contra os determinismos é o que lhe possibilitou deslocar o centro de gravidade da liberdade que para o personalismo se encontra na pessoa responsável senhora da liberdade para a dimensão abstrata da matemática financeira do capitalismo do mundo do dinheiro que a partir de então segundo o neoliberalismo ficou sob o controle da metafísica da mão invisível cujos resultados nefastos não são nada invisíveis para quem tiver olhos para ver na atualidade Para Mounier pelo fato de no mundo objetivo só haver coisas dadas e situações acabadas tentar tirar destas condições a liberdade só pode gerar duas formas dificilmente existentes de liberdade A primeira que nos parece se coadunar bem com a retórica neoliberal é liberdade da indiferença liberdade de nada ser de nada desejar e de nada fazer não somente indeterminismo mas indeterminação total1781 A outra forma segundo Mounier e a que se coaduna com os que procuram na física quântica aquilo que possa dar credibilidade científica as suas afirmações sobre a liberdade como já dissemos é aquela que nós mendigamos ao indeterminismo físico Segundo Mounier Fezse um grande alarde com as novas perspectivas que a física moderna veio abrir quisse obrigála a provar a liberdade O que seria estabelecer um contrasenso sobre a liberdade A liberdade do ser humano não é um resto de uma adição universal Com uma liberdade que só fosse uma irregularidade do universo quem poderia provar que ela não se reduziria a uma simples deficiência dos nossos conhecimentos ou então a uma deformação sistemática da natureza ou do ser humano Que valor tem para mim este defeito O indeterminismo dos físicos modernos desarma as pretensões positivistas nada 1779 Ibidem 1780 Ver acima em Personalismo e liberalismo 1781 Le personnalisme Oeuvres III p 477 689 mais A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais ela é conquistada por cima deles mas com eles grifos nossos Podemos dizer então que para o personalismo não há determinismo que seja determinante em sua rigidez impositiva que parece mais um produto da lógica dos conceitos do que da realidade dos fatos Temos tentado mostrar à luz do personalismo de Mounier que até mesmo a vida empírica e a morte condição de toda existência finita são afrontadas pelo elã próprio ao movimento de personalização que lhes dá um sentido de não naturais ou como pretende o racionalismo dos reducionismos de plantão de última palavra A primeira a vida empírica é afrontada em sua tendência redutora da vida pessoal pelas adesões e valores assumidos pela pessoa que se colocam para ela como acima da própria vida empírica1782 e a segunda a da morte é afrontada por sua vez justamente pelo sentido interno à vida pessoal e negada enquanto condição última pela inscrição de sua negação já no próprio elã de evolução da pessoa que é antes afirmação da vida do que da morte1783 para o personalismo de Mounier o sentido da pessoa é antes o do ser para a vida do que o de ser para a morte Essa negação da negação ou em sentido mais personalista propositiva construtiva essa afirmação da vida pessoal sobre a morte como temos tentado expor pode ser seguida por toda produção espiritual à qual os estudos recentes da fenomenologia da religião têm apontado e cultural da humanidade que para o personalismo também se apresentam como indicações desse sentido biófilo prevalecente antes que necrófilo Para Mounier a ciência não tem nada a dizer sobre a liberdade logo ela deve cada vez mais renunciar contestála1784 Na verdade como podemos ver para Mounier A natureza revela uma preparação lenta e contínua das condições da liberdade grifo nosso1785 As condições e não a liberdade que para o personalismo é tarefa que pertence à pessoa Podemos concluir que segundo o personalismo só é possível um naturalismo de fato paradoxalmente à medida que a natureza seja personalizada que dizer à medida que seus determinismos e estagnações inerentes sejam superados pela ação da pessoa Pois fora do movimento de 1782 Já vimos isso em nossas aproximações conceituais em termos de definição da pessoa Ver acima Capítulo I Primeira Parte Prolegômenos para a constituição da noção de Pessoa no personalismo de Emmanuel Mounier 1783 Ver LANDSBERG Paul Louis Essai sur op cit passim 1784 Le personnalisme Oeuvres III p 478 1785 Ibidem 690 personalização o discurso tomado sobre a natureza segundo o personalismo só servirá de álibi para a manutenção do já velho esquecimento e adiamento da pessoa responsável e criadora em favor da instalação tranqüila de espírito bem pequenoburguês Por outro lado dissemos também que é paradoxal Para o personalismo o movimento próprio de personalização movimento da liberdade expresso pela emergência e insurgência da pessoa na história só encontra seus amparos suas sustentações não obstante na natureza Por essa inserção encarnação a pessoa é natureza e pela sua capacidade de se utilizar dos determinismos naturais para ampliar seu raio de liberdade ela é a exceção à toda regra a especificidade única singularidade concreta na generalidade Ela é espírito em busca do sentido antes que de um teorema Assim segundo Mounier tanto o indeterminismo da partícula material quanto a conquista pelo mundo animal da autonomia dos grandes aparelhos fisiológicos não é ainda a liberdade mas o primeiro tem o sentido de multiplicar as possibilidades e preparar os centros de escolha a segunda prepara a autonomia corporal que instrumenta a autonomia espiritual da liberdade Por outro lado para o existencialismo não cristão segundo Mounier a contingência da existência não mantém mais o caráter de mistério provocante mas de irracionalidade pura e de absurdidade total1786 O ser humano aí é um fato nu cego Ele está aí como isso sem razão É o que Heidegger e Sartre chamarão escreve Mounier sua facticidade1787 Cada um de nós por sua vez se encontra aí Befindlichkeit aí agora por que aí antes que aqui não se sabe é algo idiota Quando se desperta para consciência e a vida já se se encontra aí sem pedir É como se se tivesse sido lançado por quem Por ninguém Para que Para nada Tal é o sentimento de nossa situação original sentimento supremo além do qual não há nada segundo o existencialismo não cristão Esse sentimento é tão ofuscante segundo Mounier que Sartre o traduz por uma nova nuance cuja incidência ontológica é capital o ser é excesso Sua estupidez injustificável encobre como o disparate Esse absurdo que excede se traduzirá também em Heidegger segundo Mounier pelo sentimento de nossa derrelição absoluta em seu nada de presença Conclui Mounier que o tema existencial precede sempre nessas filosofias o tema crítico1788 Assim vemos que o tema da liberdade que possa seguir desses pressupostos se encontrará no mínimo 1786 Introduction op cit p 90 1787 Ibidem 1788 Ibidem 691 comprometido se mantermos o sentido de liberdade como quer o personalismo Veremos mais à frente como se dá esse comprometimento quando falarmos do tema do ultrapassamento Daí Mounier passa para o tema da impotência da razão Tema que ele compreende como pascaliano por excelência No limite do desafio em Pascal segundo Mounier não há entre nós nem verdade nem justiça o costume e a força tomam lugar e se batizam em seguida de justificações Nós não somos senão mentira duplicidade contrariedades e nos dissimulamos e nos disfarçamos a nós mesmos1789 Todo o mundo está na ilusão tanto o sensocomum como a filosofia tanto os sábios quanto os simples1790 Está no passo do existencialismo cristão segundo Mounier empurrar assim o ceticismo até a sua extrema tensão a fim de sacudir as sabedorias felizes e despertar a loucura da Cruz deixar restabelecer em um segundo momento este mínimo de poderes naturais sem o qual não há mais recurso contra o absurdo1791 Em Kierkegaard com seu humor cortante observa Mounier sempre prestes a superexcitar seu absolutismo religioso se é constantemente mantido aqui à beira do paradoxo A palavra é pronunciada e tem valor ontológico segundo Mounier Não que para Kierkegaard segundo Mounier a verdade eterna essencial seja em si mesma paradoxal Ela o é só em relação a um ser existente1792 A rigor o paradoxo é a forma essencial da relação religiosa e não pode ser evocado senão em analogia com qualquer outra parte1793 Mas o religioso em Kierkegaard devora o existencial segundo Mounier Nessa zona por todos os lugares difundida onde o eterno encontra o tempo não há lugar para a afirmação unívoca e para o nexo lógico Se o sistema segundo Hegel diz Mounier é o fim de toda ciência das produções do espírito as revelações feitas ao espírito pela transcendência não podem se exprimir senão em uma forma nova mistura íntima de saber e não saber provocação mais que certeza Tal é precisamente para Mounier o paradoxo Ele jorra no ponto de junção da eternidade à história do infinito ao finito da esperança ao desespero do 1789 Introduction op cit p 91 Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Pensées 377 1790 Ibidem Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Ibidem 335 1791 Introduction op cit p 91 1792 Ibidem Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Postscriptum 135 Ora seria pedir demais a Kierkegaard que não estaria em condições como ser finito que decretasse um juízo sobre a verdade eterna em si mesma 1793 Ibidem Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Le Génie et lApôtre I 692 transracional ao racional do indizível à linguajem1794 O paradoxo segundo Mounier se impõe por sua autoridade abrupta Que não se procura em desculpar diminuir ou esclarecer Não há diz justamente Jean Wahl segundo Mounier senão uma única explicação legítima para o paradoxo kierkegaardiano ela consiste em sacar de maneira mais e mais profunda que ele é paradoxo O paradoxo não dá razões à duvida ele fecha a boca Ele não solicita do espírito um passo um progresso mas um salto Indo além mesmo a ignorância socrática aparece em Kierkegaard como um primeiro esboço do paradoxo cristão nos momentos em que como às vezes Nietzsche cessa de ver em Sócrates o pai do racionalismo1795 E conclui Mounier Vêse que toda filosofia existencialista é por essência uma filosofia dialética1796 Não é difícil concluirmos do que temos exposto até aqui que por sua vez o personalismo é uma filosofia radicalmente dialética Como nota bem Jean Lacroix em relação ao testemunho de Mounier do seu ato filosófico como presença em França e no estrangeiro Consciente ou inconscientemente sua inspiração se manifesta ou se pressente reencontrar o espiritual contra o espiritualismo a tradição contra o tradicionalismo a fé contra o fideísmo a moral contra o moralismo a ordem verdadeira contra a desordem estabelecida Ainda é necessário sacar toda a força e a complexidade desse testemunho Ele comporta por sua vez a negatividade e a positividade profundamente ligadas grifo nosso e é uma e outra que se deve encontrar que se deve destacar hoje1797 Desse Mounier passa para o tema do ultrapassamento do ser humano Aqui segundo Mounier nós tocamos num dos paradoxos mais desconhecidos do existencialismo Essa filosofia do ser humano ferido às vezes do ser humano desesperado não é um quietismo da infelicidade pelo contrário Partindo também de uma visão desolada segundo Mounier o epicurismo propunha ao ser humano um retiro feliz à margem da vida um tipo de adormecimento do elã vital O existencialismo pelo contrário lança segundo Mounier o ser humano diante de sua infelicidade Caçador febril de divertimentos ou da verdade em Pascal em Nietzsche o criador de valores e de poder o ser humano é ainda para Heidegger e Jaspers segundo Mounier um poder ser um vôo um autoultrapassamento Aufsprung 1794 Introduction op cit p 91 1795 Ibidem 1796 Ibidem 1797 LACROIX Jean Présence de Mounier in Bulletin des amies dEmmnauel Mounier Numéro 46 op cit p 14 693 Absprung um seradiantedesi sichworgensein É este movimento que eles chamam de sua transcendência Mas para Jaspers segundo Mounier o ser humano tende para um além da existência humana enquanto que para Heidegger não existe senão o mundo do homem e ele aí é projetado para fora e para adiante de si sem mudar de mundo No primeiro caso no de Jaspers Mounier segue a sugestão de Jean Whal de transcendência mas quanto ao segundo caso o de Heidegger Mounier sugere que se nomeie transproscedência para evitar uma ambigüidade muito freqüente Nesse sentido segundo Mounier o existente humano é sempre mais do que o que ele é aqui embora não seja o que ele será Ele é dirá Sartre segundo Mounier o ser que não é o que ele é e que é o que ele não é Essa concepção prospectiva da existência segundo Mounier Heidegger a opõe à inércia determinação total da existência clássica da substância ou ao menos da imagem degrada que se tem muitas vezes proposto O ser humano não é o que o decreto eterno e inamovível de uma essência lhe tem imposto que seja ele é o que tem resolvido ser autodeterminação Ele não saberia pois ser provido de uma definição abstrata de uma natureza anterior a sua existência ele é sua existência ele é o que se faz Seus modos não são propriedades permanentes que ele possua mas maneiras de existir concretamente que a cada vez o engaja totalmente e o leva avante na aventura de si mesmo1798 Mounier a partir dessas observações nota o paradoxo de que falara no início e como ele se apresenta em Sartre já implicado em Heidegger no qual consiste em fazer deste movimento de ultrapassamento do ser não o efeito de uma plenitude como promessa mas de uma impotência É nesse sentido que Jean Lacroix vai distinguir o existencialismo do personalismo como aquele uma filosofia da ambigüidade e este como uma filosofia da ambivalência pois sempre aberta à possibilidade1799 Então em Sartre tratase de um existente bruto da existência no que ela tem de contingente e de absurdo o seremsi a identidade uma plenitude segundo Mounier mas somente uma plenitude morta uma plenitude de morte segundo Sartre1800 Para Mounier Na verdade é por um singular paradoxo que esta doutrina lançou a palavra existencialismo Conviria antes falar de 1798 Introduction op cit p 93 1799 LACROIX Jean III Emmanuel Mounier um testemunho e um guia in Presença de Mounier Duas Cidades São Pualo 1969 p 44 s 1800 Introduction op cit p 94 694 inexistencialismo1801 Assim conclui Mounier o ultrapassamento ontológico toma significados opostos nas duas tradições existenciais1802 A recusa por parte desta tradição em reconhecer um movimento de transcendimento de autotranscendimento como implicando um verdadeiro movimento de ultrapassamento da pessoa1803 e não aquele da esteira aeróbica que pode enrijecer mas não lançar à frente vai ser o nó górdio pelo qual Mounier poderá ver o verdadeiro sentido dessa liberdade autojorrante e para nada mantida pela interpretação sartriana Não podemos deixar de notar que mesmo se erguendo contra a segurança do indivíduo burguês as reflexões e respostas às perguntas colocadas pela existência por esta tradição não deixam sem dúvida a contragosto de transparecer uma certa comunidade de sentido no esquecimento e adiamento da pessoa responsável que é como temos apresentado justamente uma marca de todo espírito burguês A chamada à liberdade feita sob os critérios que esta tradição mantém aos olhos de Mounier é como se fosse o convite a uma aventura cujo final já fosse preestabelecido só restando ao viajante os percalços do caminho Quer dizer seria uma se se pode dizer meiaaventura ou uma falsa aventura pois o fim a priori trágico e pré estabelecido não conseguiria atrair um verdadeiro aventureiro e ninguém em sã consciência por mais atrativo que possa ser o discurso sobre as imprevisibilidades do caminho Mounier entra então no tema da fragilidade do ser humano Já mostramos o quanto o tema da fragilidade da vida humana da precariedade da existência e do elemento de vanidade de nossos projetos é lugar comum na sabedoria antiga e já nas fontes veterotestamentárias que pudemos observar Tu és pó e ao pó voltarás O sentimento dominante dessa condição nota Mounier que se encontra de um extremo ao outro de Pascal a Sartre no âmbito da preocupação existencial é a angústia Todavia Mounier vai aquilatar essa angústia essencial fora de qualquer quadro patológico consagrado pelo psicologismo no quanto ela promove ou anuncia a liberdade do ser humano o seu aperfeiçoamento1804 mais do que esmagamento ela é então desfalecimento amoroso sob o excesso de felicidade embriagues de velocidade que se opõe à detenção do elã dialético 1801 Ibidem 1802 Ibidem 1803 O conceito de pessoa nunca foi bem aceito por Sartre Ver Actes du Colloque tenu à lUNESCO vol II op cit passim 1804 Introduction op cit p 96 Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Le concept dangoisse 121 695 sobre a terra firme da síntese1805 Mounier observa que enquanto a angústia fecha o existente sobre essa vertigem enquanto a liberdade é expansão ela é também o mais alto ponto do egocentrismo1806 Kierkegaard assim segundo Mounier antecipase àqueles que haviam de denunciar nesta acentuação posta sobre a angústia a expressão da confusão do pensamento burguês Não se pode contestar que no plano em que a filosofia da angústia se degrada em slogans sociológicos segundo Mounier ela se limite a servir complacências decadentes Todo valor humano é ambivalente pela estrutura mesma da existência humana Mas conclui Mounier o cuidado que Kierkegaard teve em esclarecer a ambivalência deveria eliminar os contrasensos1807 Mounier encontra a mesma preocupação em Heidegger A angústia propriamente dita segundo Mounier é o sinal autêntico da condição humana que o diretor de Esprit prefere à noção de natureza humana Essa angústia essencial é reconhecida como não se relacionando a nenhum objeto específico mas como apercepção brutal e nua de nosso ser nomundo da mundanidade do mundo em estado puro1808 de nossa derrelição e de nossa marcha para a morte segundo Heiddeger Todavia nota Mounier ao contrário de um sentimento solitário anêmico e pequenoburguês ela nasce em reação à cotidianidade pequenoburguesa onde o ser se instala em confiança entre seus objetos tranqüilizadores onde suas propriedades seu bomsenso lhe ocultam sua derrelição1809 Já vimos que na perspectiva personalista paradoxalmente quanto mais o mundo se apossa de sua mundanidade de seu estatuto ontológico de criação contingente e portanto aberto à fecundação vivificadora da pessoa mais ele será resgato em sua qualidade primordial de lugar onde o ser se desabrocha e se manifesta positivamente como ser para a vida ou seja mais ele será mundo Deixado a si como parte de uma derrelição geral cujo nada para o qual possa apontar é sempre um fundo sem fundo não há como se as palavras carregam ainda algum sentido se continuar a falar de mundo de cosmos pelo menos tranquilamente Como se o discurso sobre essa derrelição geral não anulasse no mesmíssimo momento de sua elocução a sua proclamação como discurso quer dizer como também uma organização racional do mundo enquanto fala e juízo sobre o mundo 1805 Introduction op cit p 96 1806 Ibidem Em nota MOUNIER dá a seguinte referência Le concept dangoisse 108 1807 Introduction op cit p 96 1808 Ibidem 1809 Ibidem 696 No pensamento heideggeriano segundo Mounier essa angústia pela decadência do espírito burguês longe de uma ascese que é rara se transforma em medo quer dizer em temor de objetos precisos os quais ao mesmo tempo nos desviam e nos tranqüilizam aqui estamos prestes a cair no mundo do se na tentação do anonimato Essa prevenção de Heidegger quanto a qualquer coisa que possa destoar o tom dessa derrelição total na qual estamos metidos vai fazer com que o filósofo da Floresta Negra assimile toda doutrina de salvação ou melhor que nutra qualquer esperança sem nuances a uma traição É nesse sentido que Mounier vai fazer a seguinte observação quanto a Heidegger Numa espécie de recusa obstinada à esperança Heidegger assimilará toda e qualquer doutrina de salvação com estes refúgios do medo contra a angústia Ele acusará desta traição tanto Kierkegaard como Lutero e santo Agostinho Parece que essa prevenção heideggeriana tem a ver não obstante o grande conhecimento do pensamento medieval por Heidegger com o seu esquecimento do lema medieval muito difundido O abuso não impede o uso1810 Na corrente de inspiração cristã nota Mounier a fragilidade e a angústia não são unicamente as marcas da fraqueza e do nada Uma e outra segundo Mounier são o preço de nossa escolha suprema a liberdade e o poder de escolha A escolha para Kierkegaard é o momento privilegiado da existência nota Mounier1811 A escolha é o ato gerador da personalidade Não há até na escolha errada quem não se enriqueça Parece mesmo nota Mounier que a escolha da escolha como princípio de vida tenha um valor diretor e diminui até as chances do erro1812 Assim para Mounier Nem o cristão nem o ateu têm o monopólio do drama Pascal com Nietzsche Homais com Tartuffe cada um tem seus heróis trágicos e seus bufões de comédia Aqui à luz do personalismo poderíamos ampliar a lista dos pretensos monopólios estabelecidos e aceitos o existencialismo não tem o monopólio da existência assim como o marxismo não tem o monopólio do socialismo o liberalismo não tem o monopólio da liberdade o capitalismo não tem o monopólio da 1810 Esse lema medieval é muitas vezes retomado pelo teólogo Oscar Cullmann em sua obra de exegese bíblica passim sempre em sua discussão com Bultmann amigo e professor na mesma universidade em que Heidegger também foi Marburgo e sua escola hermenêutica que adota o existencialismo heideggeriano como chave hermenêutica para a interpretação do kerygma cristão neotestamentário Todavia enquanto Bultmann se recusou a apoiar o nazismo o mesmo não pode ser dito de Heidegger apesar do tipo do seu nazismo ter sido considerado pelas autoridades das forças aliadas como um tipo não ativo Sobre isso ver Encyclopaedia Britannica in 30 vol Printed in USA 1979 vol IV p 992 1811 Introduction op cit p 97 1812 Ibidem 697 dimensão econômica da vida humana etc segundo o personalismo tudo está por se fazer omnia arte facta sunt Mounier entra então no tema da alienação Falando da tradição cristã diz ele Não se pode falar de alienação essencial grifo nosso em perspectiva cristã O sentido mesmo da história é o de reconciliar o homem consigo mesmo e com a natureza Antes de se tratar de uma afirmação peremptória de vontade de certeza dessa afirmação de Mounier em comparação com a outra não menos peremptória e que Mounier não aceita como vimos da alienação essencial sua colocação num texto sobre as filosofias existencialistas tem estrategicamente por parte de Mounier a intenção de aquilatar o seu valor ao mesmo tempo que o valor da outra tradição não cristã que nesse momento já vinha tomando o sentido de antonomásia de existência Todavia os próprios conflitos internos a essa tradição a sua também falta de unanimidade como temos visto o que não quer dizer que na tradição cristã não ocorresse o mesmo aos olhos de Mounier demonstravam sua incapacidade tanto quanto a cristã de pretender qualquer tipo de monopólio quanto ao que para o diretor de Esprit deveria permanecer uma questão aberta1813 É nesse sentido que se deve provar aquilatar a dureza perpetrada pelo existencialismo ateu quanto a sua maior ou menor distância da realidade existencial humana propriamente dita tanto quanto a concepção cristã Como temos dito a realidade existencial humana é para o personalismo a verdadeira fonte das perguntas fundamentais e não os existencialismos sejam eles ateus cristãos ou agnósticos É em relação às perguntas provocadas pela existência humana que toda e qualquer tradição tem de pesar e aferir constantemente suas afirmações sobre ela e não o inverso O caminho que o personalismo vê como necessário para se fazer estas experiências de aferimento fora da máfé é o da abertura do existente que procura as respostas à própria vida Esta para o personalismo nos dá o seu testemunho e nos apresenta suas formas na história enquanto expressão da assunção livre dos valores pelos quais a pessoa e a comunidade humana têm procurado construir o seu caminho Nesse sentido na crítica que a tradição não cristã faz com razão ao que a religião propõe em termos de esperança ao ser humano como se tratando de ilusão e na justa 1813 Vemos que Mounier combate em duas frentes Uma em relação à unanimidade de fundo em relação a uma certa visão de mundo comum uma Weltanschauung o que gera a ideologia e a outra em relação às expressões singulares claramente destoantes a partir dessa pretensa unanimidade entre as reflexões consangüíneas que para Mounier se apresentavam como o sinal patente de um impedimento do cumprimento do desejo de se estabelecer a Weltanschauung comum como a última palavra 698 medida em que a isso mesmo o discurso religioso consente em que a esperança se reduza todavia o personalismo não deixa de ver também um alcance enquanto juízo pessoal pejorativo por parte do crítico Em relação a esse alcance nessa mesma crítica o crítico gostaria que permanecesse apenas como uma descrição sem envolvimento no momento mesmo em que suas descrições se tornam prescrições acerca do ser das coisas Todavia o personalismo não veria nesse alcance pessoal da crítica nenhum problema Pelo contrário para o personalismo seria nesse momento mesmo que essa crítica tendendo a uma extrapolação do meramente críticodescritivo para um juízo de valor quer dizer para uma relação mais íntima com o objeto faria valer toda a discussão para o campo axiológico no qual os valores de ambos os lados e já dentro da experiência do modo de ser da relação poderiam ser mais bem avaliados e pesados em suas densidades próprias à luz da essência deste objeto comum buscado No caso em relação à esperança como uma dimensão da existência humana cujo conteúdo axiológico medido em termos de experiência legítima ou não se poderia alcançar uma dimensão significativa maior de avaliação e validação em relação por sua vez ao que de essencial seu conteúdo poderia ser visto como se tratando de pura ilusão ou não necessariamente Quer dizer como realmente uma fuga ou não para o que aponta sua verdadeira realidade Por outro lado fora do que de verdade tenha essa crítica todavia ao fim e ao cabo ela insiste em permanecer apenas como uma descrição sem envolvimento com o objeto Assim sua inevitável e incontornável prescrição já vimos que na compreensão da intencionalidade por parte do personalismo quem descreve prescreve de alguma coisa como ultrapassamento ao ser humano e sobre as bases e os critérios de sua concepção de transcendência e à luz do personalismo de Mounier exatamente como a parte de mentira com que o discurso religioso pervertido recobre sua boaconsciência em relação a esta sua mentira essa crítica acaba também não vendo o quanto também ela propõe apenas uma outra ilusão Já que a priori segundo os seus próprios critérios ontológicos ou melhor seu apriorismo o ser humano ao qual essa crítica convoca ao ultrapassamento é dado como um fracasso Nesse sentido Mounier convidaria a vermos o que de real densidade existencial haveria no que a tradição cristã propõe como já tivemos a oportunidade de ver em termos de esperança ou em linguagem mais filosófica de possibilidade fora deste a priori Todavia além desse plano de análise mais ontológica Mounier não deixa de perceber o 699 alcance psicológico destas apodíticas afirmações da dureza existencial Sobre isso diz Mounier Como no universo do paranóico tudo está ameaçado fora do eu dirigido para o eu Quando o sentimento de alienação desenvolve uma consciência paralelamente irritável há de se perguntar se a análise ontológica opera só ou se não se misturam aí sentimentos de dominação que são nos seres com sensibilidade viva um dos aspectos do egocentrismo A ontologia deve ser constantemente limpa destes complexos mascarados de aspirações do espírito1814 Chegamos assim com Mounier ao tema da finitude e da urgência da morte Por causa de seu caráter denso e preciso quanto ao presente tema repetiremos uma citação de Mounier que se relaciona a um outro estupefato já conhecido em relação ao existencialismo Constitui o ser do ser humano como futuro e aceita como último destino para ele um evento a morte que o transfigura em passado puro Não há na base desse estupefato uma evidência mas uma recusa uma negação ativa de um amplo aspecto da experiência humana a eternidade que qualquer ato de amor que qualquer fidelidade implicam1815 Não podemos deixar de ver um elemento de volúpia mórbida que há nessa resistência em colocar ao lado do problema real do mal também o problema real do bem É nesse sentido que o personalismo é uma filosofia do amor Ora a morte segundo Mounier1816 é a contingência incontornável E por ser tal ela não pode dar um sentido à vida que é a sua exata negação Para Mounier nós não podemos propriamente falando esperála ela só pode pelo contrário tirar à vida toda sua significação cortando brutalmente um futuro que poderia ter dado seu sentido ao passado Com isso fica difícil não só ainda continuar chamando esta tradição de existencialismo forçandonos a chamála de inexistencialismo como já apontou Mounier como também darlhe um novo nome o de filosofia da morte no sentido exato em que da passagem de uma autêntica meditatio mortis que deve ser toda verdadeira filosofia passamos a uma voluptas mortis quando a tarefa filosófica segundo o personalismo já se encontra totalmente comprometida Chegamos então ao tema da solidão e o secreto Sabese segundo Mounier como Nietzsche amassou com as próprias mãos essa experiência aterradora da solidão absoluta recusandose até a ser o aderente de seus aderentes fazendo da solidão não mais apenas 1814 Introduction op cit p 99 1815 Ibidem p 100 1816 Ibidem p 102 700 uma condição trágica mas uma virtude ativa De Nietzsche a Kierkegaard segundo o diretor de Esprit subsiste entretanto uma diferença essencial para Nietzsche a exceção é predeterminada e deve se constituir em aristocracia temporal para o pensador cristão cada um de nós é chamado à vida excepcional e seu estatuto não tem nada a ver com a organização desta terra1817 Nesse sentido à luz dessa observação de Mounier chegamos à constatação por incrível que pareça de uma maior contestação das utopias de matiz democrático universalista tal como se dá na história ocidental mais da parte da tradição de inspiração cristã Kierkegaard do que da parte da tradição de inspiração nietzschiana e no caso específico aqui de uma preocupação pela organização desta Terra Todavia essa contestação kierkegaardiana não a exime do problema de enfrentar a inelutável condição que a existência segundo o personalismo nos impõe da necessidade de construir os meios da coexistência Sobre essa desconfiança kierkegaardiana generalizada como temos podido ver toda generalização parece suspeita ao personalismo Mounier reconhece todavia o seu lado de verdade O sofrimento principal do existente é a incapacidade da existência de se comunicar diretamente A comunicação direta não é possível senão para o homem que vive no relativo Ela se realiza nas relações objetivas da vida exteriorizada1818 Aqui podemos perceber novamente o quanto um paradigma tem força Dois pensadores como Nietzsche e Kierkegaard cada um a seu modo não conseguem se desvencilhar da tentação solipsista típica do estatuto ontológico do indivíduo moderno como temos tentado mostrar a partir da perspectiva personalista À crítica à vida exteriorizada em que no nível epidérmico o indivíduo graças aos símbolos enrijecidos e aceitos consegue uma comunicação direta suficiente a uma vida objetificada tanto Nietzsche quanto Kierkegaard propõem a manutenção ao que é o solipsismo de fricção do indivíduo moderno de contato sempre superficial todavia o que acaba sendo dois outros tipos de solipsismos Cada qual a seu modo em que não obstante ambos negarem o aspecto superficial da relação de fricção individualista por outro lado aprofundam a negação quanto a qualquer possibilidade de comunicação no âmbito das condições reais da existência humana Kierkegaard ou apostam numa outra criada pela imposição do ser de exceção o Übermensch mas sem nenhum vínculo com a presente Nietzsche 1817 Ibidem 1818 Introduction op cit p 102 701 Em Kierkegaard segundo Mounier a existência absoluta que é aquela da fé é incomensurável a todo meio de expressão adequada O indivíduo nela segundo Mounier se relaciona absolutamente com o absoluto e por isso não se relaciona com o comum das pessoas senão relativamente ao absoluto O cavaleiro da fé não pode se fazer compreender a ninguém como ele não pode ajudar a ninguém Dele aos outros não pode haver senão o apelo do Único ao Único Dizse segundo Mounier que ele é livre com a liberdade dos filhos de Deus Mas não se deveria confundir essa liberdade com aquela dos passarinhos e dos gênios vagabundos1819 Essa liberdade não é fácil Ao mesmo tempo que as camaradagens do prazer ele renuncia às consolações do dever compartilhado O cavaleiro da fé não dispõe em tudo e por tudo senão de si mesmo1820 em um isolamento absoluto grifo nosso Certamente ao mesmo tempo que ele escreve tais fórmulas Kierkegaard segundo Mounier relaciona a elas algumas atenuações A exceção diz ele em outro lugar1821 se ela não participa no geral irrompe aí da mesma forma A exceção fundada explica mais coisas que a geral não obstante seu caráter de exceção conquistada a partir da generalidade ética ela é um rebento que lhe volta sua luz também esta a ama sem deixar transparecer Mas estas reservas só fazem atenuar lateralmente projetar sobre uma perspectiva cristã total um pensamento que incessantemente escapa à síntese de um movimento espontâneo e renuncia sempre com dificuldade ao inacessível1822 V6 Intermezzo moral personalista e moral hierarquista No que se refere ao tema da exceção e do geral em relação a Nietzsche tocamos inelutavelmente dados os seus pressupostos e à luz da reflexão mesma de Mounier quanto ao presente tópico na idéia de uma moral hierarquista Isso nos remete inapelavelmente a uma análise mais detida sobre essa noção Pois não é desinteressante notar o fato de sua onipresença mantida como que velada e subjacente ao tipo de relação que tem prevalecido no Ocidente como sendo o espelho da natureza no que se refere não somente à inter 1819 Ibidem p 103 Em nota de MOUNIER Crainte et tremblement 122 1820 Introduction op cit p 103 Em nota de MOUNIER Crainte et tremblement 126 1821 Ibidem Em nota de MOUNIER La répétition Alcan 190 1822 Introduction op cit p 103 702 relação humana mas ao fundamento mesmo de sua ontologia Todavia não é desinteressante a nosso ver notar também o fato de que ela seja mantida por Nietzsche por sua vez crítico ferrenho da modernidade e que permaneça na base de suas noções de diferença e distanciamento provenientes de sua crítica à moral ocidental Este fato o da sua constatação e permanência num pensamento como o de Nietzsche como veremos no que segue para nós é uma clara evidência da força do seu paradigma A assunção por parte de Nietzsche de uma tipificação da moral em dois tipos de homens o nobresenhor e o desprezívelescravo assunção portanto de uma bipolaridade dos tipos morais todavia não leva Nietzsche a uma simplificação tipológica Para Nietzsche em um só homem podem se dar mesclados os dois tipos Frente a isso quer dizer frente a essa impossibilidade puramente racional de desvencilhamento de um tipo do outro e como Nietzsche elege o tipo nobresenhor como o que deve predominar na moral do homem superior criador de valores a diferença e o distanciamento serão as noções características que comandarão a moral deste homem superior nietzschiano1823 Vemos no entanto que a problematização que Nietzsche corretamente vê quanto à relação dos dois tipos morais levao não obstante não ao abandono dessa polarização na forma básica em que ela tem sido colocada pela moral ocidental mas à radicalização dessa polaridade mesma da moral ocidental a qual por outro lado se coloca como adversário Essa radicalização se dá na forma que toma em seu pensamento e em sua moral a afirmação do homem superior criador de valores A permanência dessa concepção ontológica fundamental no núcleo mesmo do pensamento da crítica e da moral nietzschianas mas que por outro lado sobre a qual o pensamento ocidental que todavia Nietzsche diz contraporse radicalmente quer dizer como antípoda tem pensado as relações mais variadas em sua história é um fato que nos esclarece ainda mais a força de atração do seu paradigma e o que justifica essa nossa atual aproximação Ademais essa noção de hierarquia permanece sendo talvez a mais fundamental para a modernidade quanto ao que esta permite dentro dos seus quadros decadentes que se estabeleça como o tipo de interrelação entre os indivíduos quer dizer sob a forma do individualismo reivindicativo liberal e burguês dominante indivíduos aos quais como já 1823 AZEREDO Vânia Dutra de Nietzsche e a dissolução da moral GEN Discurso Editorial Editora UNIJUI São Paulo 2000 pp 62 ss 22 Moral de senhores e moral de escravos 703 vimos ela mantém sempre à disposição e cativos como objetos de pura manipulação e inventariáveis Essa noção de hierarquia que serve à modernidade como fundamento ontológico temna feito pensar e manter a questão do poder que como já vimos ela elege como a questão por excelência da política como se resolvendo pela bipolaridade de um problema que ela coloca sobre as seguintes bases quem manda e quem obedece Todas as suas instituições e o seu modo de compreender as relações intersubjetivas são comandadas por esta ontologia de fundo Assim vemos essa análise da noção de hierarquia necessária tanto pelo fato de que o personalismo se coloca também como uma crítica à modernidade como pelo fato de que esta problemática se vincula diretamente àquela outra do distanciamento que o personalismo vê relacionada ao tema da solidão e do solipsismo sobre os quais já pudemos realizar uma aproximação em Kierkegaard e o mesmo queremos fazer agora em relação a Nietzsche segundo Mounier mas tomando antes uma aproximação histórica ao conceito de hierarquia sempre seguindo a perspectiva personalista Primeiramente buscamos as fontes históricas dessa noção de hierarquia Para tanto temos a informação de que fora do âmbito propriamente ocidental no hinduísmo a articulação hierarquizada estrutura todo o corpo social A delimitação que perpassa por todas as dimensões da sociedade entre puro e impuro bem como a separação dos mais puros dos menos puros fundam a organização das castas do homo hierarquicus1824 Vemos por aí que não se trata apenas de um fenômeno localizado pois transcende determinada cultura E é esse seu caráter de unanimidade segundo a perspectiva personalista de Emmanuel Mounier que se nos apresenta já como uma facilidade que procura se inscrever no âmbito mesmo do movimento de personalização tal qual temos tentado nos aproximar aqui e que chama a atenção pelos componentes negadores da pessoa que carrega diante do que nos vemos remetidos a tentar esta nossa aproximação Parafraseando Landsberg toda facilidade que se torna uma tentação deve ser objeto de 1824 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia Paulus São Paulo 1993 pp 337 a 347 Este dicionário e mais alguns outros citados mais à frente foram uma exceção à regra em minha busca de artigos históricos sobre a noção de hierarquia Digo isso porque em minha pesquisa em uma biblioteca de teologia na qual havia vários dicionários teológicos depareime com a dificuldade de encontrar um tratamento histórico desta noção em dicionários mais antigos em outros idiomas que o Português Todos os artigos examinados destes Dicionários católicos romanos e protestantes apresentam um caráter exíguo sobre esta importante noção e apenas uma breve explicação filológica sempre seguida pelo truísmo de uma breve explicação óbvia sem problematização Esse fato me confirmou ainda mais na convicção da força do seu paradigma 704 preocupação filosófica No entanto notase que diversamente de semelhantes hierarquizações globais no judaísmo no cristianismo primitivo e no islamismo religiões monoteístas o bem salvífico não se transmite em princípio em graduação hierárquica Ao testemunho de um só Deus corresponde pelo contrário tendências igualitárias na mediação salvífica o único Senhor da história e do cosmos diz respeito a todos e portanto de uma igual maneira Nesse sentido O problema sócioreligioso por sua vez está precisamente na eficiência burocrática do poder administrativo mediante sistemas verticais hierarquizados Pois a eficiência das burocracias eclesiais cresce em proporção inversa com uma pregação substanciosa do kerygma cristão1825 Em outras palavras como temos procurado apresentar até aqui em nossas aproximações ao fenômeno religioso1826 tanto no que decorre da noção de monoteísmo como tomada desde o mito de Gênesis ou seja em sua expressão enquanto unidade irredutível do Criador em relação ao criado e que perpassa a idéia de unidade da Divindade como princípio de unidade do pensamento que pelo logos procura ver o princípio de unidade do cosmos diverso e que se dá como inspiração para o surgimento da filosofia grega e que por sua vez o cristianismo radicaliza desembocando na noção de irredutibilidade da pessoa concreta a qualquer estrutura teórica ou institucional vemos que o sentido religioso do monoteísmo em si seria antes o de uma contraposição ao que de ontológico de extensão rígida como estrutura e moldura do ser possa advir da noção religiosa pagã de hierarquia O que por outro lado não tem sido o caso nas projeções sociológicas segundo Mounier que no Ocidente o cristianismo institucional tem tomado nas quais o hierarquismo não só permanece como um factum como é entendido como dado ontológico em relação ao qual a concepção neotestamentária de Deus que a problematizaria já não exerce nenhuma influência Antes de tudo a palavra hierarquia não ocorre na Bíblia1827 Não ocorre no Novo Testamento nem na Patrística e é preciso esperar o PseudoDionísio como veremos mais detidamente a seguir para que o termo seja introduzido na linguagem vigente da teologia É quando se estabelece assim uma concepção da Igreja institucional estritamente verticalista 1825 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia Paulus São Paulo 1993 pp 337 a 347 1826 Ver acima o primeiro capítulo 1827 New Catholic Encyclopedia McGrawHill Bok Company New York etc 1967 Vol 6 p 1097 art Hierarchy 705 e hierarquizada em prejuízo do sentido comunitário e horizontalista da eclesiologia de comunhão que prevaleceu na patrística Notase que essa influência teológica corresponde à própria evolução que ocorreu na comunidade cristã1828 Portanto antes de se colocar o problema como relacionado intrinsecamente à eclesiologia quer dizer ao que diz respeito ao tipo de governo eclesiástico como se dá1829 o que está implicado aqui é antes um determinado tipo de ontologia que tem força de penetração e lastro cultural e histórico Quanto à administração eclesiástica o Novo Testamento aponta para o sentido de uma administração carismática antes que jurídica a uma constituição contrapondose ao modelo de dominação do mais forte prevalecente1830 que deveria ser o testemunho de uma inserção como já dissemos vinda de cima Quer dizer como testemunho de uma outra possibilidade à única dominante e cujo motivo comum antes que a pura relação sociológica de pessoas que se reúnem pelo motivo de compartilharem de uma mesma fé ou de desejarem viver de uma determinada maneira como quer todo o complexo que constitui o liberalismo incluindo sua nova versão sempre cioso em transformar toda essência irredutível a dado sociológico metrificável a igreja não poderia perder este nexo de relação pessoal com o seu Fundador Isso ao mesmo tempo seria o que repõe a associação de pessoas que a igreja representa antes de tudo como uma vida comunitária determinada por uma relação com o Fundador caracterizada pelo tipo de relação pessoal entre Mestre e discípulo Todavia como dissemos devese colocar a questão do tipo de ontologia que fundamenta esta concepção milenar hierárquica de domínio e de organização da convivência que parece originalmente receber sua inspiração religiosa do paganismo bem anterior ao cristianismo O conceito de hierarquia eclesiástica já existia desde antes do alvorecer do cristianismo institucionalizado1831 A palavra hierarquia é uma palavra composta de origem grega hiéros sagrado e arché princípio A significação original é o governo divino executado por diversas ordens ascendentes É o que caracteriza os sistemas deístas com o dos gnósticos que 1828 Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo Paulus São Paulo 1999 p 331 Verbete Hierarquia 1829 Coisa que a maioria dos dicionários que consultei e de que falei antes fazem muito bem e sucintamente 1830 Os reis dos povos dominam sobre eles e os que exercem autoridade são chamados bem feitores Mas vós não sois assim pelo contrário o maior entre vós seja como o menor e aquele que dirige seja como o que serve Mateus 2225 s 1831 R N CHANPLIN e J M BENTES Enciclopédia de Bíblia teologia e Filosofia Editora Hagnos São Paulo p 110 706 separam Deus da humanidade através de uma quase infindável ordem ou árchein1832 de seres ou poderes celestiais ou angélicos que atuariam como mediadores1833 Essa compreensão servia como base a diversas funções A primeira dessas finalidades era permitir que Deus governasse por delegação para não ter de se corromper mediante o contato pessoal com a matéria que eles tinham como a sede mesma do mal Assim de acordo com a doutrina dos gnósticos o poder que criou a matéria era um poder subalterno demiurgo e não o poder do ser supremo Esse poder subalterno ou demiurgo por não ser perfeito teria criado um mundo imperfeito o que explica a existência do mal neste mundo1834 Será esta estrturação do cosmos em dois planos um superior e outro inferior que de uma concepção cosmológica incindirá sobre a moral na forma predominante intelectulista e religiosa que delineará por sua vez um ethos de ódio ao corpório e ao material Esta moral dentro da concepção de uma metafísica conseqüente mantida pelo gnosticismo não deixará já como cultura como estética de imprimir o seu alcance em toda ética ocidental que a crítica contemporânea confunde como sendo de origem cristã Como podemos ver a visão hierárquica toma primeiramente e guarda por sua origem míticoreligiosa mesmo então posteriormente servindo à administração política uma inelutável relação com a representação simbólica do Divino advinda desta fonte religiosa Como vimos etimologicamente a composição hierón santo sagrado com arché ordem princípio designa a sagrada ordem sagrada estrutura sagrado domínio de um lado e de outro a sua origem sagrada A combinação verbal hierarquia hierarchês é como já vimos na verdade atestada antes da existência de Cristo e para significar o administrador das propriedades de um templo1835 Nessa conexão e no âmbito da história do pensamento teológico cristão por outro lado o conceito teológico de hierarquia hierarchía foi cunhado por autor que até hoje não pode ser identificado e que a tradição chama de Dionísio Areopagita ou melhor PseudoDionísio o seu formulador Este no entanto é uma figura lendária que provavelmente viveu na passagem para o séc VI e em âmbito sírio e que tinha o propósito de apresentar o cristianismo à luz da misteriosofia platônica Todavia ele veio a ser aceito como um convertido do primeiro século pelo 1832 BAILLY A Dicitionnaire Grec Français Rédigé avec le concours de E Egger Édition revue par L Séchan et P Chantraine Librairie Hachette Paris 1950 artigo avrch arché Β 1833 Esta compreensão se estende para o campo da política já nos gregos 1834 R N CHANPLIN e J M BENTES Enciclopédia de Bíblia teologia e Filosofia op cit p 109 1835 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia op cit p 339 707 apóstolo Paulo e investido de uma autoridade semiapostólica pelo alexandrinismo quer dizer pela tradição cristã oriental1836 Não obstante seus escritos se tornaram tão importantes a ponto de marcarem cada vez mais desde o século IX a teologia da Igreja Católica Romana e a partir do século XVIII veio a determinar a linguajem científica universal grifo nosso muito embora sem nenhum significado teológico1837 Todavia achamos por bem completar esta última observação muito embora sem nenhum significado teológico afirmado enquanto tal É Dionísio Areopagita quem introduz o conceito no capítulo III da Hierarquia celeste1838 phri thj ouraniaj ierarciaj perì tês ouranías hierarachías definindoo como segue Na minha opinião hierarquia é uma ordem taxis sagrada um conhecimento epistêmê e uma força ativa energeia Ela se torna na medida em que é possível semelhante ao divino e elevase em correspondência analogôs com as iluminações que lhe são dadas por Deus à conformação com Deus epì to theomímethon Uma vez porém que a beleza que cabe a Deus simples boa e originária como ela é está totalmente livre de toda dessemelhança ela dá a cada um segundo a sua dignidade participação na sua própria luz e o consuma na consagração divina1839 De acordo com esta definição Dionísio deve também este saber acerca da hierarquia à iluminação divina saber hierárquico obtémse então esotericamente e em conseqüência elitistamente mediante leitura da Escritura daqueles que para tanto foram capacitados eleitos1840 Vemos aqui a noção de gnose de conhecimento secreto como posse marcando já sua presença A definição interna do sistema da ordem hierárquica mesma em Dionísio é determinada em ordem graduada fixa com base no sofrer o agir da divina purificação iluminação e consumação Aí interessa a ele a superordenação de ordem graduada do clero bispos sacerdotes diáconos sobre as ordens inferiores do povo fiel a ordem dos monges dos cristãos batizados dos penitentes dos carismáticos e dos catecúmenos No entanto nos é informado que o conceito de hierarquia não foi formado aí para legitimar e estabilizar domínio espiritual pelo contrário hierarquia designaria a interpretação cristã da 1836 Cf INGE Willian Ralph Christian Mysticism op cit p 4 e pp 80 s 1837 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia Paulus São Paulo 1993 p 339 1838 Ibidem 1839 Ibidem Cael Hier III I 164 3644 1840 Ibidem 708 erótica metafísica do neoplatonismo no que Dionísio interpreta em especial Proclos1841 O trabalho teológico de Dionísio nos é dito consistiu em aí substituir criticamente a emanação do Uno divino na multiplicidade do mundo pela hierarquia O que nos torna mais clara a sua procedência e a queda inevitável aos encantos da erótica intrínseca à ontologia do paganismo Segundo a emanação nos é dito o mundo é divinizado mundanizandose o inegavelmente divino segundo a autocomunicação hierárquica de Deus Deus permanece em si purificando porém iluminando e consumando o mediador de sua glória por ele criado liturgia cósmica Essa transposição do que é característico dos sistemas deístas com o dos gnósticos de que já falamos que forçam no sentido de separarem Deus da humanidade do terreno do corpóreo os quais são vistos como lugar do mal dá uma inflexão totalmente diferente ao conteúdo implícito no kerygma cristão quanto à significação da noção de encarnação do Logos como temos apontado até aqui segundo a perspectiva personalista e os estudos recentes da hermenêutica histórico bíblica Na verdade como podemos ver tratase de uma neutralização por parte do intelectualismo antigo que se ressente de toda gnose ao que de escandaloso há na expressão Deus crucificado Todavia nos é dito que de acordo com essa ordem graduada de sua santificação e não de acordo com uma estrutura formal de cargos ou ministérios as hierarquias mais perfeitas mediam a salvação para as mais imperfeitas uma vez que a ordem teônoma exige que os seres da segunda ordem sejam alçados até o divino pelos da primeira ordem1842 As hierarquias tornamse então numa graduação de mediações colaboradoras de Deus sem as quais é impossível qualquer mediação salvífica sinergismo Concluise então que o instrumento ou meio da revelação bíblica a história em que o Deus de Israel se dá a conhecer como já vimos é desalojado pela metafísica cósmica na qual Deus faz com que o seu amor seja ativo mediante os anjos e as ordens sacramentais estritamente graduadas A hierarquia a partir de então possibilitará ou melhor autorizará permitirá uma união com Deus apenas pela mediação das classes dos espíritos sagrados e dos homens espiritualizados sacramentalmente anjos e hierarquias 1841 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia op cit p 339 Cf Rocques 1970 Hathaway 1969 1842 Ibidem Coel Hier 181 1A 2 709 celestiais Como já vimos o gnosticismo que inicialmente é combatido pela porta da frente da Igreja Primitiva acaba entrando pela porta dos fundos Pelo menos desde o séc IV assistimos a um processo de integração da Igreja no Império o qual traz consigo o crescente distanciamento dos ministros em relação ao povo a integração dos bispos na ordem dos senadores e das classes altas da sociedade romana e a progressiva transformação dos ministérios em cargos de dignidade e simultaneamente sua mundanização no sentido paulino quer dizer conformação com o esquema vigente de injustiça ou em outras palavras integrandose nas estruturas e na mentalidade da sociedade romana Em outras palavras ainda uma pseudomundanização em relação à verdadeira mundanização à qual segundo o Novo Testamento a comunidade cristã seria chamada a realizar a mundanização pela salinização pelo tempero de seus testemunhos1843 A queda do Império e a passagem para a sociedade feudal não atingem esse processo ao contrário fortalece o papel dos bispos como hierarcas com dupla dignidade e poder social e eclesiástico1844 É nos informado que a teologia escolástica sob a dupla influência das correntes de cunho platônico entre as quais o PseudoDionísio desempenha papel fundamental como vimos antes e do direito romano legitima esta concepção hierarcológica da Igreja Romana assim como os direitos e privilégios do clero na sociedade civil com especial insistência nas potestades hierárquicas do papa tanto na sociedade quanto na Igreja Ambas as linhas sacralização dos ministérios e hierarquização da igreja convergem e se mantêm inalteráveis com a reforma protestante que torna mais necessário por parte do clero romano o controle ministerial sobre a comunidade e sobre os leigos A hierarquia sai reforçada da crise do século XVI e a obediência se transforma na virtude cardeal que regula a influência dos membros superiores hierárquicos com relação aos inferiores ficando evidente o pano de fundo do PseudoDionísio nesta valorização da obediência muito divulgada pelos jesuítas que acentuam unilateralmente os aspectos da espiritualidade inaciana1845 O conceito de hierarquia é ambíguo e reúne como vimos no início dois vocábulos e dois significados hiera arché De um lado o conceito sagrado se põe em conexão 1843 Mateus 513 Vós sois o sal da terra ora se o sal vier a se tornar insípido como lhe restaurar o sabor Para nada mais presta senão para lançado fora ser pisado pelos homens 1844 Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo op cit p 331 Verbete Hierarquia Ver também WAND J W C História da igreja primitiva até o ano 500 Editora Custom São Paulo 2004 passim 1845 Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo op cit p 331 710 com a ênfase divina quando se trata de algo consagrado que por isso é subtraído do âmbito do humano e principalmente profano Nas religiões pagãs passa a designar as pessoas que estão em relação com o culto à divindade e que estão revestidas de poder sagrado em virtude de sua especial consagração e relação com Deus Todavia este uso nunca é encontrado no Novo Testamento já que se mantém a recusa de aplicar o vocábulo a qualquer pessoa inclusive ao próprio Jesus diversamente do Antigo Testamento que o aplica profusamente a pessoas e coisas relacionadas com o culto e consagradas à divindade Todavia o culto cerimonial na história de Israel em toda sua existência como poder carismático sob o motivo de um único Deus nunca se tornou facilmente um poder de casta sem nenhuma contestação real a essa sua intenção ou pelo julgamento da tradição como já vimos que se manteve sempre como a medida da comunidade de destino israelita ou pelo caráter carismático mesmo que a direção política tomava e que sempre relativizou as intenções do clero nesse sentido É claro que com o estreitamento entre o poder sacerdotal e o poder real possível após o fim da era préestatal mas que nunca se tornou por outro lado sinônimo de conjunto de instituições puramente seculares pois manteve sempre qualidades religiosas esta tentação de casta se tornou mais atraente e mais fácil no cerimonial israelita o que por sua vez não passou despercebido com o surgimento na história de Israel por sua vez do fenômeno do profetismo1846 O segundo vocábulo arché é o que introduz a dupla significação de primazia no tempo princípio começo ou no mundo poder domínio ofício Só que no Novo Testamento o resíduo da metafísica dualista gnóstica entre tempo e eternidade que toma também o alcance de metafísica espacial entre o mundo aqui em baixo e o de lá de cima é prontamente afastado pela formulação ativa e histórica que leva tanto mobilidade ao estatismo quanto densidade temporal ao evento revelacional que deixado à metafísica gnóstica se perderia nas nuvens da metafísica1847 Não obstante no sentido temporal arché é muito freqüente tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento enquanto em 1846 Para isso ver GUNNEWEG Antonius H J Teologia bíblica do Antigo Testamento Uma história da religião de Israel na perspectiva bíblicoteológica Editora Teológica Edições Loyola São Paulo 2005 principalmente pp 155 ss Capítulo VI Inovações religiosas na época da existência estatal e pp 235 ss Capítulo VII O grande profetismo da época do reinado 1847 O texto paradigmático sobre isso e que já citamos é João 11 5 No princípio era o logos e Logos estava com Deus e o Logos era Deus Ele estava no princípio com Deus Todas as coisas foram feitas por intermédio dele e sem ele nada do que foi feito se fez A vida restava nele e a vida era a luz dos homens A luz resplandece nas trevas e as trevas não prevaleceram contra a luz E v 14 E o Logos se fez carne e habitou entre nós cheio de graça e de verdade e vimos a sua glória glória como unigênito do Pai 711 seu significado de domínio ou força se aplica às autoridades religiosas judaicas e às do Império Romano bem como às forças principados e potestades celestiais que têm de ser submetidas a Deus1848 Não se usa o vocábulo no Novo Testamento para designar as autoridades da Igreja já que estas não podem exercer poder ou primazia no sentido comum do termo posto que uma autoridade é serviço ministério incompatível com toda idéia de grandeza ou de classe no sentido do falso mundanismo de que já falamos de acordo com o Novo Testamento1849 Indo no sentido de avançar o âmbito religioso chegamos ao alcance jurídico dessa noção hierárquica1850 Assim o conceito metafísico de hierarquia que pela tradução da obra dionisiana por Scotus Eriúgena ou Erigena em meados do século XIII marcou a teologia latina da Idade Média permaneceu essencialmente até o século XII uma categoria e interpretação especulativa da ordem salvífica universal A reviravolta revolucionária da eclesiologia no séc XII que marca até os dias de hoje as estruturas da Igreja Católica Romana trouxe todavia aquela diferenciação pela qual hierarquia se tornou conceito fundamental e decisivo do direito eclesiástico da Idade Média e dos tempos modernos Com a Reforma Protestante Martinho Lutero suprimiu a representação simbólica da hierarquia celeste e a fixação tirânica da hierarquia mediada historicamente pelo próprio centro da fé no kerygma1851 Saindo do universo religioso que a nosso ver talvez no entanto não seja possível fazêlo de maneira total e definitiva lembramos o fato de que para o personalismo a laicidade que também é colocada sob o modo de ser do artefato é ainda uma obra a ser realizada Por isso mesmo não obstante consideramos justificada nossa aproximação a essa noção de hierarquia em sua extensão aplicativa tal qual permanece pelo pensamento moderno que por outro lado tem se colocado e justificado sua legitimação para tal justamente com base em sua alegada emancipação da religião o que a essa altura do nosso estudo nos força a perguntar Emancipado de qual religião 1848 Para uma discussão mais ampla sobre essa questão à luz da chave hermenêutica da história da salvação ver CULLMANN Oscar Cristo e o Tempo Tempo e história no cristianismo primitivo Editora Custom São Paulo 2003 pp 237 ss Terceira Parte Capítulo III A submissão dos poderes invisíveis e sua relação a partir do seu vínculo com a história da salvação com a história universal 1849 Ver também para esta conexão Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo op cit p 331 1850 Ibidem pp 340 a 341 1851 Ibidem p 343 712 Assim no moderno conceito de hierarquia a nosso ver apesar do uso atual da linguagem ter procurado se desligar totalmente do sentido originário da palavra hierarquia tal como nós apresentamos antes ou seja como um domínio sacro todavia por cargas do destino a sociedade moderna que como já dissemos se funda sobre o esquecimento da pessoa e o seu adiamento no plano de funcionamento de suas instituições nos parece ser obrigada a deslocar ou melhor a camuflar para que possa melhor se legitimar e legitimar o uso do seu poder de coerção através de suas instituições como espécies de hipóstases de uma autoridade de um poder e para isso as ciências sociais laicas estão aí para ajudar para além delas mesmas numa dimensão sacral que se o nome não é dito todavia a coisa está lá Já mostramos que o liberalismo é o coveiro da liberdade segundo Mounier e que a vaga deixada por sua mentira é a oportunidade dos seus filhos bastardos os totalitarismos surgirem no palco da história reivindicando o seu quinhão Por incrível que pareça é a mentira da laicidade moderna como emancipada da religião institucional e que se diz fundarse num ato de escolha individual pelo indivíduo racional do contrato que substitui à religião decadente da baixa Idade Média a religião decadente do dinheiro Esta religião substituta por sua vez não podendo constituirse e nem constituir qualquer vínculo social enquanto comunidade de destino na verdade essa novavelha religião moderna do dinheiro segundo o personalismo é a própria negação da vida em comunidade vai a partir de então deixar sempre a oportunidade aberta a uma nova substituição religiosa que possa cumprir esse papel que ela não é capaz de cumprir já vimos que esta foi tentada pela religião coletivista do nazismo do fascismo e do comunismo Todavia enquanto ainda no século XVIII se encontram apenas testemunhos isolados do emprego da palavra hierarquia para expressar formas de organização não eclesiásticas1852 de acordo com a história do conceito pesquisado por Rausch1853 já Saint Simon fala também de hierarquia do feudalismo e Comte transfere o conceito de hierarquia para a organização gradual das ciências e também Hegel usa o conceito positivamente para dizer a organização estatalmente controlada de funcionários públicos O emprego sócio 1852 Repetimos o fato da palavra não ser dita não quer dizer que a coisa não esteja lá 1853 Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia op cit p 339 Rausch 1979 pp 116119 713 científico dominante nos é informado somente foi cunhado todavia pela sociologia compreensiva de Max Weber Weber distingue então os tipos de domínio não somente segundo a sua eficiência função mas também segundo as representações da sua legitimidade1854 Em Weber então podemse distinguir três tipos puros de domínio legítimo em primeiro lugar temos a representação carismática da força foradocomum de um líder ou de uma personalidade em segundo lugar a fé do diaadia na santidade das tradições pelas quais se faz conhecer a autoridade de um senhor e em terceiro lugar a fé na ordem pessoal dos cargos públicos que dominam com a administração burocrática1855 Somente esta terceira representação é chamada racional e ao representála Weber contrariando a sua pretensão de manterse longe de juízos de valor avalia a racionalidade desta fé nos cargos públicos por um lado como a forma de exercer o domínio mais eficiente mais calculável e aperfeiçoável de forma meramente técnica para se alcançar a mais alta medida de operatividade Mas volta a temer que esta forma eficiente de domínio como o espírito coalhado da máquina viva prepare a casa da servidão do futuro em que os homens se verão obrigados impotentemente a adaptarse quando a administração e providência de funcionários só tecnicamente boas o que significa racional tornase o último e único valor1856 Como já temos feito notar em relação à ideologia liberal não é difícil entender a ênfase na centralização do poder de polícia nas mãos do Estado por parte de Weber Como já tivemos a oportunidade de ver o otimismo racional que é sempre pessimismo em relação à pessoa sabe se precaver quando não pode mais contar com a subserviência passiva Quer dizer por meio da fé na ordem pessoal dos cargos públicos quando já não se pode vêla como quer Weber como associada à fé do diaadia na santidade de tradições pelas quais não obstante de um jeito ou de outro vai procurar fazerse reconhecer a autoridade como a de um senhor por meio de uma prévia legitimação jurídica do uso da força pelo Estado Passando pela sociologia burguesa1857 o conceito de hierarquia encontrou sobretudo após a Segunda Guerra mundial entrada em todas as ciências sociais e 1854 Ibidem p 339 1855 Ibidem 1856 Ibidem 1857 Ibidem 714 naturais1858 hierarquia significa hoje em dia a ordem graduada presente em populações animais pesquisa de comportamento e a articulação vertical das formas da sociedade sociologia como também em escala organizacional da empresa econômica ciências econômicas uma espécie de sistemas e subsistemas moleculares complexos física química biofísica e as relações condicionantes em processos de informação informática Enfim essa impostura milenar essa extrapolação metafísicoreligiosa que se tornou ontologia está tão naturalizada que sua facilidade tem feito com que se torne lugar comum dizer tranquilamente o antropomorfismo pseudocientífico de que a natureza gosta de hierarquias1859 O santo hierós da expressão hierarquia desta forma faz força para ser absorvido pelo significado meramente funcional das estruturas dos sistemas Por outro lado o que hoje se designa teoricamente mediante o conceito de hierarquia faz força para não ser a representação simbólica de Deus na ordem social ou cósmica1860 mas a eficiência de sistemas que equilibram funcionalmente as suas diferenças internas Todavia o alcance dessa situação não tem deixado de dar muito tema para o romance e a psicanálise social No entanto para uma ontologia como a personalista que elege como experiência originária do ser a relação e que vê todas as coisas sob o modo de ser da relação não pode haver uma calma aquiescência digase de passagem típica do indivíduo pequenoburguês instalado sem mais dessa suposta neutralidade funcional das coisas que parecem ter vida própria sem nós Uma espécie de neofetichismo tecnológico que embute uma espécie de préjustificação moral em todos os seus alcances e já em todas as suas mazelas e desastres no mundo da vida concreta como se tratando de uma força anônima e inelutável uma divindade todopoderosa de uma pseudoreligião Sabemos de onde vem esse discurso Ora isso nos parece manter claramente um fundo de apelo religioso Por isso então a nossa fórmula para o personalismo de Mounier omnia arte facta sunt Para isso temos indicado que a filosofia personalista é uma filosofia contemporânea Assim o substancialismo da metafísica platônicoaristotélica ou melhor a interpertação que no Ocidente tem 1858 Este fato não pode ser subestimado na avaliação da situação atual das ciências sociais e a intimidação que elas após terem pulverizado e diluído o ser humano querem forçar sobre o pensamento filosófico atual 1859 Para isso ver também Dicionário de Conceitos Fundamentais da Teologia op cit p 339 Eis que essa religião natural não consegue deixar de nos dar por trás de sua pretensa objetividade e neutralidade científicas as pérolas do seu antropomorfismo denunciador 1860 Ou pelo menos para não ser a representação simbólica do Deus que segundo a intuição religiosa original seria o antípoda de suas verdadeiras intenções 715 prevalecido sobre esta tradição está fora de questão no pensamento de Emmanuel Mounier Lembramos novamente Mounier era um cristão e não um pagão e muito menos um alienado Além disso o personalismo não pode aceitar esse tipo de anonimato funcional como não aceita o que já dissemos o anonimato do capitalismo em relação às injustiças e mazelas que perpetra na vida econômica social cultural moral etc do mundo da vida concreta como se fosse um deus absconditus De posse dessa aproximação histórica à noção de hierarquia podemos ligar e concluir de maneira apropriada o tema da solidão e o secreto do qual partimos Pois agora nos sentimos mais autorizados a pensar que a manutenção da idéia de hierarquia para o mundo das relações vividas é de alguma forma um resquício do desequilíbrio uma extrapolação da metáfora primitiva prémoderna mitológica entre a noção de acima e abaixo como expressando a partir de um plano ontológico superioridade e inferioridade moral o que se mantém como princípio fundamental da moral moderna quer dizer burguesa Nesse sentido temos de tocar na questão do declarado catolicismo de Emmanuel Mounier O diretor de Esprit manteve sempre a preocupação em não quebrar o diálogo com os católicos franceses que digase de passagem constituía a grande maioria da população francesa e de outros países Para Mounier isso certamente ocorreria além de prejudicar na esteira de Esprit outros grupos de contestação da esquerda católica se houvesse uma indisposição pronunciada pelo Vaticano em relação a Esprit que levava o subtítulo de revista internacional1861 Nessa situação arriscada e pouco confortável Mounier parece hesitar quanto a sua posição em relação à hierarquia eclesiástica como vimos o cerne da manutenção de toda estrutura eclesial Hesitar entre a sua clara afirmação e a sua negação Mounier se afirma católico quer dizer humano e universal mas detesta que Esprit seja chamada de revista católica O seu afirmado catolicismo não é simples se relaciona a uma determinada tradição a uma determinada inspiração que Mounier vê sobreviver apesar de tudo ainda nas fileiras do catolicismo romano Essa tradição admirada por Mounier no 1861 Uma das razões que desgostou o regime fascista de Vichy e o fez interditar a revista 716 catolicismo e entendida por ele como intrínseca a ela segundo o diretor de Esprit sempre procurou tratar os eventos e as pessoas sob o ponto de vista do eqüitativo do equilibrado enfim do justo que Mounier vê como a base mesma de sua própria concepção do realismo integral Em resumo poderíamos dizer que a Mounier não interessava um afrontamento direto de pura negatividade o qual ele via como infrutífero Pois esse tipo de afrontamento direto só serviria ao diálogo de surdos e para fazer o jogo do maniqueísmo colocado sob as regras do moralismo burguês o jogo fácil dos que estão do lado do bem contra os que estão do lado mal Também nessa questão do catolicismo de Mounier devese levar em consideração a busca da lucidez Todavia além desse seu catolicismo não muito fácil de Mounier há em sua formação intelectual como já dissemos Pascal e a marca da Grande Mística cristã extremamente antihierárquica em seu verdadeiro espírito1862 ou seja fora do abraço do panteísmo do gnosticismo e do neoplatonismo Isso complica ainda mais a questão Quanto a Nietzsche todavia não é desinteressante lembrarmos aqui que justamente essa hierarquia era uma característica do catolicismo romano que ele muito admirava1863 1862 A história dessa mística cristã é erudita e magistralmente tratada por INGE William Ralph Christian Mysticism op cit 1863 NIETZSCHE Friedrich Além do bem e do mal 2ª ed Companhia das Letras São Paulo 2003 pp 51 ss Capítulo Terceiro A natureza religiosa Nietzsche não faz a pergunta sobre o condicionamento social da hierarquia em si que ele toma como dado imediato com um fato o qual contrapõe ao princípio democrático de igualdade este sim relativizado Não obstante a crítica que faz à democracia européia ter razões reconhecidas por Mounier todavia também tem seu limites Pois estabelecer à hierarquia dos fracos uma outra hierarquia dos fortes que nele só pode encontrar apoio no Ungrund das manifestações de afirmação do vital pelo feixe hierarquizado de pulsões pelo instinto de autoafirmação do Übermensch a hierarquia é quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegar op cit 270 p 186 nunca soará a Mounier como um verdadeiro antípoda à decadência do darwinismo social burguês dos mais adaptados ou melhor dos mais endinheirados Sobre isso contra a postura antisemita Nietzsche aconselha os alemães a seguirem o exemplo da Inglaterra e aprenderem com os judeus o gênio do dinheiro e da paciência e sobretudo um pouco de espírito e de espiritualidade cf Além do bem e do mal op cit 251 p 160 Para Mounier isso será sempre trocar seis por meia dúzia Além do bem e do mal op cit 47 p 54 la niaiserie religieuse par excellence até que a minha última cólera chegou a gostar delas com sua verdade de cabeça para baixo É tão agradável e tão distinto ter seus antípodas O relativismo de Nietzsche não consegue relativizar a noção mesma de hierarquia como produto cultural a não ser na forma que ela toma e não no valor metafísico que lhe está atrelado e ao qual ela representa Para Nietzsche podemos dizer é um dado e um fato natural Seu relativismo não chega a este nível do natural pois seria relativizar uma estrutura fundamental do seu próprio pensamento e da sua moral Em relação a este nível o seu pensamento Ungrund encontra limites ou seja não é tão Ungrund assim Para Nietzsche a prevalência da mediocridade na Europa se dá pela falta de nobreza nos homens em perceber o hiato e a hierarquia abissalmente diferentes existentes entre homem e homem Além do bem e do mal op cit 62 p 66 Mas o que parece ser o grande leitmotiv do complexo pensamento nietzschiano sobressai a nosso ver de maneira mais positiva justamente quando ele se vale mais claramente e de uma determinada perspectiva do 717 Nessa conexão Nietzsche afirma sem nuances que o cristianismo como sua inerente tendência à negação do corporal gera a decadência física quando reprime os instintos por sua ascese de negação do corpo Todavia os instintos para Emmanuel Mounier1864 não são como já vimos nem bons nem maus São capacidades naturais das quais o ser vivo e aqui o ser humano se serve para que na sua existência não consciente a vida tenha fluência dentro de determinados automatismos necessários Pensar que a vida pode ser a todo tempo racionalizada em todas as suas manifestações realmente é uma quimera e nisso Nietzsche tinha razão mas por conta disso deixar aos instintos a função que é prescrita para cada pessoa em particular em sua liberdade e capacidade de autodomínio em nome de uma dilação histórica necessária à humanidade até o surgimento do Übermensch que hierarquize e dê um sentido a estes feixes e pulsões instintivas para que então o grande rebanho dos submetidos possam tocar finalmente a vida é algo que como já pudemos ver se ressente de toda inspiração fascista e totalitária ou como diria Nietzsche humano demasiado humano Esse caminho proposto por Nietzsche a geração de Mounier sentiu muito bem na pele É o caminho que se bifurca para a humanidade entre a opção existencial fundamental da escolha Ouou Quer dizer ou o reconhecimento de uma ordem e de uma continuidade de determinados valores que têm se demonstrado pertinentes não obstante o burburinho da existência no sentido da necessidade de se pensar criativamente novas formas da objetividade das mediações racionais sociológicas institucionais em vista da edificação das aderências afins com o modo de ser próprio do existente finito ou o caminho de só se reconhecer valor na existência absolutamente afirmada e daí volens nolens escancarase a porta à embriagues da intensidade ou do poder cuja liberdade desorbitada já é radicalmente incapaz de se dar uma fronteira entre o humano e o não humano1865 Eis o Ouou entrevisto na linha do horizonte pelo personalismo como colocado para o intelectual ocidental que para Mounier tem a tarefa de ajudar à pensamento religioso Da maneira profícua de que temos falado aqui ad nausea em sua afirmação quanto a nobreza de alma Não são as obras é a fé que aqui decide que aqui estabelece a hierarquia para retomar uma velha fórmula religiosa num sentido novo e mais profundo alguma certeza fundamental que a alma nobre tem a respeito de si algo que não pode buscar nem achar e talvez tampouco perder A alma nobre tem reverência por si mesma Além do bem e do mal op cit 287 p 192 1864 Ver Traité du caractere Oeuvres II p 129 ss 1865 LEspoir des Désespérés op cit p 381 718 humanidade a tomar sua decisão crucial Os imponderáveis na vida são para o personalismo como o nome diz imponderáveis Os instintos nos servem como o primeiro impulso sem o qual ficaríamos paralisados pelos cálculos infinitos racionais da tomada de atitude mais ponderada Todavia se a razão racionalista não tem a competência que o racionalismo quer tentar nos fazer crer por outro lado a divinização dos instintos segundo Mounier nos levaria para um erro oposto No âmbito da vida humana em que segundo o personalismo o espírito faz a diferença não se poderia sem mais entregarse ao instinto como se dá no reino animal e mesmo mais especificamente como se se tratasse de uma escolha tipológica bipolar sem problematização ulterior segundo parece se dar em última instância todavia a aprovação de Nietzsche na forma da não aceitação da entrada no rebanho de animais gregários pela permanência num rebanho de animais solitários Essa discussão sobre a noção de hierarquia é importante pois em vez de proselitismo ou apologética tratase de procurar esclarecer uma questão fundamental que extrapola tanto o âmbito do simples religioso como do simples racional como vimos e nos coloca de frente a um problema éticocultural que parece o mais urgente do Ocidente e que a filosofia tem o dever de tentar esclarecer de tentar lançar luzes Essa tarefa nós vemos como tentada pelo personalismo de Emmnauel Mounier e sua equipe em sua busca de experimentar os valores Ela segue no sentido de dar maior densidade significativa e histórica ao sentimento que cada um experimenta em si mesmo fora da capitulação da consciência pela vontade juridista que tem caracterizado a consciência dos adaptados do rebanho burguês Tratase do sentimento de uma incapacidade ontológica e ética ingênita e de uma incompetência moral fundamentalmente últimas que permanecem e perpassam a consciência que desenvolvo sobre mim mesmo e no que ela se estende inelutavelmente enquanto desenvolvimento de uma consciência ética do compartilhamento das mesmíssimas condições ontológicas no ato mesmo de meu julgamento do próximo meu semelhante enquanto o conteúdo axiológico preciso que o antihierarquismo personalista procura ressaltar Esse sentido mais profundo pode ser encontrado como já afirmado não obstante na história ocidental e como parte do núcleo mais próprio do kerygma cristão que declara como vimos a irredutibilidade da pessoa como singularidade concreta na base de sua proclamação e reconhecimento de sua criação como imagem e semelhança de Deus 719 Nesta conexão segundo Mounier enquanto que o sofrimento principal do existente em Kierkegaard é sua incapacidade de se comunicar diretamente sendo a comunicação direta possível só ao ser humano que vive no relativo ou seja ao custo da própria comunicação em Nietzsche a existência vista como imposição antes que uma dimensão ontológica dada deixa entrever uma atitude que inspira uma postura altaneira e aristocrática de afastamento afastamento do que Nietzsche chamaria de mediano Nos dois casos a separação ou pela ironia consciente de se saber não comunicável ou pela separação como decisão prévia O primeiro Kierkegaard porque a existência finita não resiste ao seu teste de uma comunicação perfeita se afasta do concreto da pessoa em nome de um salto para o absoluto o segundo Nietzsche pela sua total negação da ontologia1866 e tomando a existência como pura afirmação ou melhor imposição dos fortes dos criadores de valores aos fracos e derrotados é obrigado por seus pressupostos a afastarse da concretude por um ato de crispação altaneiro em si mesmo Nos dois concluímos por se tratar da assunção a contragosto talvez de uma dimensão fundamental da perspectiva individualista da modernidade a qual por outro lado querem negar permanecer a manutenção do essencial em suas perspectivas do constituinte elementar do indivíduo moderno quer dizer a tendência inelutável ao solipsismo fundamental da antropologia que o caracteriza1867 Nesse sentido apesar das diferenças vemos que tanto Nietzsche quanto Kierkegaard não conseguem se subtrair ao esquema de fundo da antropologia do sujeito moderno ou pelo menos deste constituinte mais característico e elementar pois ambos mantêm seu aspecto principal como dissemos o solipsismo ou ao menos uma clara tendência a sua queda A antropologia relacional do personalismo propõe uma saída a essa perspectiva antepondo como fato primitivo à antropologia relativista da modernidade do indivíduo isolado a quem é permitido apenas os contatos epidérmicos convencionados da sociedade burguesa o modo de ser relacional da pessoa Ainda nessa conexão conclui Mounier que a solidão se torna absoluta na perspectiva HeideggerSartre O problema é saber pergunta Mounier se neste momento ela não muda radicalmente de sentido e de ser Lembra Mounier o caráter inalienavelmente 1866 Sobre a assunção de Nietzsche até o fim do paradoxo do mentiroso ver RICOEUR Paul O simesmo como um outro Papirus Editora São Paulo 1991 pp 22 a 28 1867 Introduction op cit p 103 720 cósmico da angústia Gabriel Marcel segundo ele observa que não se está só a não ser diante de uma imensidade no seio de um todo1868 Não será a solidão absoluta pergunta Mounier um pseudoconceito um conceito insustentável nutrindose clandestinamente da alteridade que ele nega como o conceito de nada absoluto Será ele pensável pergunta ainda Mounier sem referência a uma presença circundante sem que se transforme no seu contrário na idéia de plenitude absoluta1869 E assim entramos no tema do nada De início lembra Mounier Já temos sublinhado o paradoxo que se difunde hoje sob o nome de existencialismo de uma filosofia que faz precisamente do nada a principal trama da existência1870 Mounier parte da descrição de Sartre da existência para poder pesar a sua densidade Em Sartre a existência segundo Mounier é por natureza grifo nosso uma existência vã nutrindo uma consciência infeliz1871 Este movimento sem fim essa erótica segundo Mounier não aspira a nenhum outro movimento a não ser o do indefinido vaievem do refletido ao que reflete e do que reflete ao refletido espécie de vasto narcisismo cósmico O ser humano não é jamais o que ele é O que ele será e o que ele deseja ser ele não é ainda O que ele é mal o é e já o ultrapassa e o deixa só como matéria morta tendo sido mais do que é numa espécie de síncope insensível Adiante e para trás de si nunca si1872 Ele chega a um novo malogro Ele já é olhar e olhar congelante pois Sartre não conhece outro olhar diz Mounier O conhecimento em Sartre segundo Mounier não me faz avançar uma linha A representação é uma ficção das filosofias mas este nada precisamente porque é nada é intransponível1873 O conhecimento é o que está imediatamente fora do alcance1874 nova decepção fundamental1875 Mounier conclui que não se sabe finalmente se se deve falar de drama ou de comédia enquanto a derrisão de tudo isso é total Diz ainda o diretor de Esprit que os pensadores e os moralistas se exaltaram com algumas nobres imagens da condição 1868 Ibidem p 104 Em nota de MOUNIER Homo Viator 302 1869 Introduction op cit p 104 1870 Introduction op cit p 104 1871 Ibidem p 105 Em nota de MOUNIER LEtre et le Néant 134 1872 Ibidem loc cit Em nota de MOUNIER Ibidem 185 1873 Ibidem loc cit Em nota de MOUNIER Ibidem 269 1874 Ibidem loc cit Em nota de MOUNIER Ibidem 237 1875 Ibidem loc cit 721 humana Sartre segundo Mounier propõenos uma mais humilde a do burro que corre atrás de uma cenoura atada por um pau a sua carroça e que nunca conseguirá apanhar1876 Mounier mais à frente não vai deixar de notar o falso movimento desta dialética em que o fim é posto afirmado e determinado a priori só restando ao convidado para a jornada da existência alguns percalços pelo caminho como já dissemos os quais podem apenas adiar um pouco ou adiantar um pouco não se sabe mas o fim é certo e de qualidade certa o malogro Tudo se passa como se tratasse de uma propaganda enganosa somos convidados a deixar uma vida de engodos de má fé de objetificação de superficialidades de atolamento etc para nos engajarmos numa existência que carregue em cada ato a consciência do peso de toda humanidade sem que se saiba muito bem o porquê visto ser para Sartre a humanidade na existência de cada indivíduo quem é e tudo isto para alcançarmos no fim de tanto esforço o nosso prêmio o nada e uma grande derrisão universal É como se um médico ao informar a um doente terminal e com requintes de detalhes todo o seu quadro clínico seu tempo restante de vida sua situação física deplorável sua falta de qualquer mínima chance perguntasse como se tratando da seriedade de um dever moral a ser cumprido pelo enfermo se ele gostaria de passar estes últimos momentos de vida únicos mesmos a priori sem esperança de uma outra coisa qualquer se ele gostaria de abrir mão da morfina ou dos recursos médicos disponíveis e passar o restante de vida que lhe sobra sem a intromissão de nenhum tipo de evento que o desviasse tanto da consciência clara de sua situação como da sua dor objetiva e subjetiva como por exemplo um diálogo tranqüilo com um amigo com um familiar um último beijo um último toque terno e fraterno etc O fato é que Mounier se pergunta se algum ser humano vivo e que permanece como tal vivo pode chegar a realizar a tamanha conseqüência que esse neoestoicismo quer impor como se tratando da única condição fora da máfé Pois o movimento de personalização que se confunde com o próprio movimento de afirmação da vida antes que o da morte em outras palavras a algo antes que o nada a priori para o personalismo está sempre nos indicando justamente o contrário As formas de afirmação da vida em todas as suas muitas expressões até o humano 1876 Ibidem passim 722 parecem mesmo indicar uma experiência primitiva neste âmbito de discussão totalmente diferente Para o personalismo também seria o caso de avaliar esse tipo de rigor neoestóico exigido ao existente solitário em suas conseqüências existenciais e comparálo ao tipo de rigor e conseqüência que este mesmo neoestoicismo critica como decadência máfé traição alienação etc por exemplo como advindo do cristianismo o qual é tomado em Nietzsche como um ideal ascético que se manifesta como um instinto não satisfeito um instinto que vem em contradição com a vontade de vida que se degenera numa vida mórbida que vê nesse ideal a única maneira de se conservar 1877 Para o personalismo seria o caso de avaliar não somente com base no pressuposto da moleza mas também com base no pressuposto da dureza para aquilatarmos com maior precisão munidos de um maior espectro de significação existencial o que significaria mais adequadamente uma fuga da vida Mounier se pergunta se Nietzsche teria deduzido como sinal proveniente da decadência e da fraqueza se ele tivesse dado tanta atenção à Idade Média quanto deu à Clássica as ações não respaldadas pelo espírito cristão mas realizadas também em nome dele que foram levadas a efeito pelos conquistadores indomáveis e sanguinários medievais cristãos criadores de valores pela afirmação Nessa perspectiva diz Mounier sobre o neoestoicismo A idéia falsa que transparece sob essa perspectiva de decadentes é a idéia nietzschiana de que a capacidade de suportar um mundo desprovido de sentido é a medida absoluta de energia espiritual1878 Sobre essa situação diz Mounier No momento mesmo em que o cristianismo mais profundo procura sacudir os últimos vestígios da crise jansenista reencontrando na tradição mais axial o sentido da terra e da plenitude histórica jamais a palavra pecado esteve tantas vezes na boca dos que não são contra quem pecar O ser mesmo é um pecado cósmico um pecado que ninguém tem cometido e que não atinge ninguém Essa natureza fingida e hostil que é a madrasta que substitui a boa Mãe de Carlyle e de Rousseau exala como esta sua teologia mesmo quando se crê encontrála por um exercício aplicado da razão Expulseis o irracional e ele voltará a galope1879 1877 AZEREDO Vânia Dutra Nietzsche e a dissolução da moral col Sendas e Veredas Grupo GENEditora UNIJUIDiscurso Editorial SãoPaulo 2000 p 139 1878 LAffrontament chrétien Oeuvres III p 26 1879 LEspoir des Désespérés Oeuvres IV p 331 723 Para tanto ainda quanto à questão anterior aquele prognóstico médico seria para o personalismo digase de passagem já uma extrapolação por parte do médico de suas atribuições que sempre se embasam em dados clínicos e científicos limitados Em outras palavras uma extrapolação do alcance do seu prognóstico possível o que lhe faria incorrer em problemas éticos Para o personalismo só é possível se falar em problema ético se às situações limites mesmo como a da morte se incluir ou melhor se afrontar em algum nível a liberdade quer dizer um ato livre real A liberdade nesse sentido e por sua vez deve implicar a responsabilidade não somente sobre os meios mas também em alguma medida sobre os fins E é na medida em que justamente sobre o quanto a liberdade pessoal como responsabilidade pode ser vinculada em determinado nível ao fim é que se poderá da mesma forma avaliar o nível de responsabilidade no juízo ético Para isso na perspectiva personalista a afirmação da vida como inscrita no próprio elã do movimento de personalização inscrevendo a liberdade como valor liberdade axiológica a concebe como modo de ser intrínseco à existência pessoal Dizer pessoa é para Mounier inserir um elemento de imprevisibilidade em todas as estruturas sejam elas especulativas como é o tipo de pressuposto metafísico que está na base da concepção do a priori de Sartre Assim fazendo o personalismo faz do problema da liberdade responsável como problema ético um problema intrinsecamente humano Fazendo com que os pressupostos pessoais quanto às questões últimas que para o personalismo se apresentam sempre abertas problemas tais como a possibilidade de vida além da morte ou não fiquem condicionados à esfera das escolhas pessoais sem estatuto de palavra final E será em vista da construção de um espaço realmente laico ou seja no plano da intersubjetividade que estas escolhas deverão ser para o personalismo infinitamente provadas dentro deste estatuto que lhes é próprio o da escolha pessoal sem caráter a priori Isso à luz do personalismo possibilitará duas coisas testar o nível da densidade da escolha pessoal já que a escolha se inscreve como valor intrínseco à pessoa dos seus pressupostos no cadinho purificador do diálogo aberto e possibilitar à pessoa nesse afrontamento com o próximo que por outro lado será um afrontamento consigo mesma um outro critério que o da pura subjetividade ruminante sobre o qual poderá avaliarse a si mesma num comprometimento já não só consigo mesma mas com os outros Eis o socratismo de Emmanuel Mounier 724 Então à síncope sartriana o personalismo propõe o looping da pessoa movimento que recoloca como base fundante a todas as questões a própria pessoa ou melhor a concretude Esta autoreferência da pessoa como já dissemos não é um patinar na esteira aeróbica pois sendo o movimento próprio da pessoa implica aquele outro que mais a caracteriza e que pode ser percebido no próprio movimento de personalização o movimento de ultrapassamento real para um mais ser Essa expressão que se convencionou chamar de nietzschiana é portadora de um conteúdo bem mais antigo à existência de Nietzsche toda afirmação fundamental da experiência religiosa como temos tentado apresentar aqui carrega consigo sua indicação Esta se depreende de sua inspiração básica do religare assim como de outros aspectos correlatos Mas também da tradição filosófica com ênfase especial em Heráclito que é denominado pelos cristãos do II século como o cristão antes de Cristo justamente por causa dessa inspiração advinda do tema do ultrapassamento que se encontra no seu pensamento1880 Ou seja um movimento real de saída de si para o encontro como proveniente e intrínseco segundo o cristianismo ao próprio ser da Divindade No entanto como já vimos esse sentido do ultrapassamento segundo o cristianismo primitivo para não tomar o sentido de uma evasão vai ser tomado do símbolo trinitário Este visto como realizando em si mesmo em sua vida trinitária e posteriormente no seu movimento de saída de si pelo esvaziamento1881 do Logos em sua encarnação na história segundo o Novo Testamento a transcendência na imanência e que com a ressurreição do Logos num terceiro momento segundo também o Novo Testamento completase realizando a imanência na transcendência Assim temos aqui a afirmação ousada do cristianismo primitivo contra o dualismo metafísico tradicional da Antiguidade de uma distinção cósmica e não separação cósmica A primeira afirmada pela expressão 1880 EUSÉBIO Praep Ev 1119 Cf INGE Christian Mysticism op cit nota 1 p 47 faz uma referência a HERÁCLITO cujo conteúdo se aproxima tanto do Prólogo do Evangelho de João que sugere que o apóstolo escrevendo em Éfeso está aqui se referindo deliberadamente à grandiosa doutrina do grande idealista de Éfeso Heráclito a quem Justino 100169 reivindica como Cristão antes de Cristo e a quem Clemente de Alexandria 150213 cita muitas vezes com respeito Cf também INGE op cit p 279 s e ainda sobre uma apropriação de Heráclito já no séc XIV pelo místico protestante Jacob BÖHME lemos A doutrina de Böhme acerca de Deus e o mundo se assemelha a de outros místicos especulativos mas ele contribui com um novo elemento na grande ênfase que põe sobre as antíteses como sendo uma lei do ser Todas as coisas consistem no Sim e no Não ele diz Nenhum filósofo desde Heráclito e Empédocles tinha declarado tão fortemente que O confronto é o pai de todas as coisas Mesmo na vida oculta da não manifesta Divindade ele encontra o jogo da Atração e da Dispersão como o resultado do que é um desejo por manifestação sentido na Divindade 1881 Epístola aos Filipenses 26 eauton evkenwsen heautòn ekénosen esvaziouse a si mesmo 725 do evento histórico de uma existência singular que o kerygma cristão chama de encarnação do Logos e a segunda negada pelo que o Novo Testamento chama de ressurreição do Logos que na verdade significará a afirmação na história a partir desse evento do cosmos como sem separação Para o personalismo o apelo para que o homem se ultrapasse para ter sentido deve fundamentar um movimento real de transcendência e não apenas uma transprocedência como diz Mounier ou melhor um patinar na esteira Já dissemos que o movimento de transcendência como entendido pelo personalismo que nós denominamos looping da pessoa e que bebe das águas da repetição kierkegaardiana é segundo o personalismo a única analiticidade que pode gerar ganhos reais pois dinamizada sobre a transfiguração das horas mortas a que cada um é chamado a realizar todos os dias se funda no único concreto possível a pessoa Todavia Mounier não desconhece que o existencialismo quando coloca o problema do ser humano como faz se inscreve numa grande tradição O interesse espiritual e histórico deste humanismo essencial é o de se purificar com efeito de todas as contaminações que lhe vêem do otimismo burguês1882 Todavia o humanismo essencial que milita contra o otimismo burguês não deve se esquecer segundo o personalismo de que este otimismo não é para com as pessoas mas só para com as suas estruturas criadas a sua imagem e semelhança Nesse sentido esse humanismo essencial deve cuidar para não estar errando o alvo e propondo às estruturas carcomidas da burguesia apenas outras estruturas comprometendo então justamente esse seu humanismo essencial O pensamento relacional de Mounier não pode deixar de reconhecer que se estas filosofias do absurdo tomam lugar no palco da história é porque uma dada realidade lhes possibilita tanto a existência quanto paradoxalmente uma aquiescência quanto ao sentido do seu absurdo admitido por uma parte das pessoas Diz Mounier que uma carreira é prometida às filosofias do absurdo e do desespero enquanto a consciência ocidental não tiver encontrado além desta crise um novo elã de vida e um novo equilíbrio do ser humano1883 Todavia como também diz Mounier um pensamento que tem por essência recusar o sistema deve ser atento a não sistematizar suas descobertas mais vivas É esta 1882 Introductition op cit p 106 1883 Ibidem 726 passagem ao sistema e nós diríamos ao menos ao espírito de sistema conforme Mounier que marca o salto de uma experiência dilacerada e obscura ao imperialismo do absurdo e do nada Se bem que se defenda de pronunciar qualquer julgamento moral sobre o homem que não vive autenticamente segundo seus cânones Heidegger segundo Mounier tende a desconsiderar toda atitude metafísica que porte alguma atenuação ao seu niilismo O vale de lágrimas esse exagero da baixacristandade segundo o diretor de Esprit não é mais suficiente para representar a vida é necessário agora o geena Kierkegaard é excomungado porque no fim da noite coloca o dia da ressurreição Será necessário retomar a análise de Sartre Pergunta Mounier Essa raiva contra o ser não estaria só traduzindo o ressentimento de ter faltado o que Gabriel Marcel chama o vínculo nupcial do homem com a vida1884 Estas são perguntas que Mounier crê que devem ser feitas E sobre o engajamento que essas filosofias propõem também há questões a serem levantadas Assim diz Mounier Unimonos parcialmente à crítica marxista Pois falase muito de compromisso Mas onde é que esse engajamento nos oferece a ocasião para tal Engajarse em coisa alguma ser fiel a nada abraçar alegremente a morte ou ao absurdo talvez seja um projeto excitante para o espírito Todavia é de se temer que ele só excite espíritos desabituados das alimentações básicas e que só nutra delírios antes que pensamentos1885 E ainda O novo pessimismo as aceita de frente O ativismo que ele professa é uma posição de vontade a que em seguida a sua ontologia retira os alicerces Ora essa ontologia não é ela também menos voluntária Na raiz deste ativismo há um projeto a priori uma decisão na origem de olhar a existência como inexorável Não há uma constatação mas uma recusa É verdade que este desafio à alegria existencial pode não ser propriamente negativo Mas para lhe atribuir uma positividade qualquer temos que inverter a sua negação negála como negação pura embora assumindoa como desafio1886 Aqui por incrível que pareça vemos novamente o paradigma da modernidade ecoando seus sons numa espécie de contra ponto nos baixos mas compondo uma mesma sinfonia Vemos que a vontade de universalidade do otimismo liberal burguês que tem se imposto 1884 Ibidem p 107 1885 Ibidem 1886 Introductition op cit p 107 Já dissemos antes pelas palavras de Jean LACROIX que em MOUNIER ou melhor no seu testemunho ou ainda no seu ato filosófico negatividade e positividade se encontram profundamente ligadas uma a outra e é sob esse aspecto dialético relacional que se deve buscálas 727 de modo parasita nas produções humanas e em nome da verificabilidade destas mesmas produções sempre avaliadas dentro do espectro dos pseudovalores do utilitarismo e do pragmatismo burgueses acolhidos pela modernidade retornar invertida nestas filosofias da inexistência na forma agora de uma negação pura como pessimismo universal Todavia Mounier nota determinadas nuances nessas tradições existencialistas que devem ser relevadas Em Kierkegaard o desespero não é um estado simples um resíduo último mas uma realidade em estágios ou se se quiser em muitas dimensões1887 A angústia pascaliana não rói menos o coração do que a derrelição do absurdo diz Mounier1888 Todavia ele sabe que não se trata só de abstrações Desde o primeiro número de Esprit em 1932 em relação ao capitalismo Mounier e sua equipe anunciam como base do programa da revista o seguinte Nós não combateremos abstrações1889 As realidades humanas para o personalismo são realidades vivas e não simplesmente problemas que se resolvem por teorema ou silogismo Nesse sentido para o personalismo tratase de ver nessas filosofias da existência um testemunho o testemunho do vazio e da falta de sentido da sociedade burguesa decadente e como já dissemos não se refuta um testemunho tomase uma decisão diante dele O absurdo não se refuta se lhe pode recusar Pois contraposto ao ato de vontade que está na origem da afirmação do absurdo só é possível um outro ato de vontade que o negue como absoluto1890 Mas a recusa do absurdo para Mounier não precisa ser gratuita pode ser feita racionalmente É absurdo que tudo seja absurdo Ou em termos pascalianos incompreensível que tudo seja incompreensível O absurdo filosófico segundo Mounier comporta um tipo de chantagem lógica Na maneira que se conduz às vezes o debate diz Mounier parece que não se pode procurar razão ou ser no mundo senão por um tipo de covardia ou de infantilismo filosófico e que uma posição só é defensável desde que seja insustentável Acabemos com essas intimidações diz Mounier Não há mais coragem em negar tudo ou em negar menos Segundo Mounier o mais difícil como dizia Pascal é negar onde se deve e afirmar onde se deve O resto é arrebatamento de grande vulto sem dúvida mas o verdadeiro não se mede pelo vulto O ser humano é feito de tal modo que à força de lhe dizermos que ele é 1887 Introductition op cit p 108 1888 Ibidem 1889 Bulletin des amis dEmmanuel Mounier nº 58 Octobre 1982 p 15 1890 Introductition op cit p 108 728 um idiota ele acabou crendo e à força de repetirmos isso a nós mesmos acabamos também crendo1891 Há muito de incerteza e desespero no mundo para que a fé existencial e para alguns a simples Fé não seja uma segurança mas antes uma aposta Mas o desespero só tem um sentido não é desespero senão por essa fé Se não fosse assim não tiraríamos de nossa miséria senão uma seca e indolor satisfação que não clamaria tão alto1892 Para o personalismo também afirmar o absurdo é sempre mais fácil que vivêlo ou procurar viver se as palavras fazem sentido suas conseqüências lógicas na vida concreta À luz do personalismo somos levados a entender que as filosofias do absurdo não podem auferir para si o título de filosofia do futuro pois o futuro é sempre aberto o que quer dizer disponível à disposição não como objeto fixo mas como futuro aberto à liberdade criadora Tomar o absurdo como a priori é fecharse em uma filosofia do passado ou seja indisponível o que é justamente a negação da filosofia do futuro Indo um pouco mais além e com uma pergunta que decorre dos pressupostos de Mounier no sentido da aplicação das idéias e das teorias Onde encaixaríamos uma tal filosofia em dias como os de hoje em que a humanidade procura justamente uma saída para seu grande impasse no sentido de continuar a vida com qualidade humana sobre o planeta terra É claro que as forças de conservação do statu quo querem o mesmo mas sem abdicar de um só milímetro de seus privilégios Ora o tipo de engajamento de ação proposto pelas filosofias do absurdo nessa sua resignação e nesse seu sono dogmático do aquém da razão não se coadunariam muito mais com estas forças de conservação do que com o espectro humano esmagadoramente maior que compõe o desejo e o anseio por transformação É nesse sentido que é necessário também observar o quanto estas filosofias do absurdo se encontram em suas inspirações profundas e até a contragosto com o espírito pequeno burguês cioso por conservação e conforto Esta observação não é gratuita porquanto podemos observar na vida concreta que dificilmente uma pessoa psicologicamente equilibrada e que vive em contato diário com o mundo da vida sem muitas garantias do ganho do pão cotidiano possa tomar para si o pessimismo e o absurdo como metafísica dominante Quando uma pessoa que não tem recursos básicos para a manutenção da vida 1891 Introductition op cit p 108 Em nota de Mounier Pensées 502 1892 Ibidem p 108 729 chega a um beco psíquico sem saída a única saída que lhe sobra é a clínica Por outro lado afirmar a metafísica do pessimismo e do absurdo quando se leva uma existência em que tanto as condições básicas de manutenção da vida empírica quanto até um certo conforto restrito estão garantidos é enquanto comportamento uma impostura que nunca poderá escapar para o personalismo ao crivo de um julgamento ético Ora as filosofias da existência ao fazerem a passagem devida e necessária de um puro tratamento noético das realidades vivas como o que a sociedade burguesa depois de Descartes se acostumou a tratar as coisas para a manutenção de suas comodidades extrapolam o devido e incorrem em outra impostura não menos inaceitável O desespero ocupa na perspectiva existencial o lugar que tem a dúvida metódica no ponto de partida da reflexão cartesiana1893 Todavia com uma observação sobre o ato do Cogito de Descartes por parte de Mounier Descartes divide até o último talo o fio da dúvida ele não poupa uma verdade que decretaria mais sólida que uma outra pois seria ainda essa razão posta em causa que tomaria essa decisão Mas é do exercício total da dúvida tomada como ato de pensamento que nasce interiormente o ato fundado com o primeiro que repele a dúvida grifo nosso Se eu duvido eu penso se eu penso eu sou tudo isso aparece em um único gesto do espírito o retrocedimento do nada ao ser se faz no discernimento mesmo do ser pensando o nada não a iluminação passiva mas verdadeiro endireitamento do pensamento meia volta diante da dialética que o corroia1894 Por estas palavras vemos que se Descartes foi de certa forma conivente com a impostura racionalista que lhe sucedeu esta impostura mesma não tem razão de ser para Mounier a partir de um sentido mais fundamental que há no ato fundante mesmo do Cogito onde se encontram dialeticamente afirmados o ser e o nada Não resta dúvida à luz do personalismo de Mounier de que qualquer tentativa de distinção como implicando separação racionalismo ou de agregação como redução monismo ou panteísmo vai ser sempre uma postura menos existencialmente densa e menos afrontadora e por sua vez menos dignificante das capacidades racionais do ser humano como indicam o ato criativo do Cogito cartesiano segundo Mounier Em uma palavra não serão um suficiente elogio à inteligência humana 1893 Introductition op cit p 108 1894 LEspoir des Désespérés op cit p 333 730 em seu afrontamento do ser e o nada que o personalismo de Emmanuel Mounier se propõe ser e para o que o ato fundante do Cogito na leitura de Mounier aponta Mounier ao vincular a noção de absurdo a uma certa inspiração advinda da tradição dos existencialismos pode levantar a suspeita de que não sabia que Sartre por exemplo combatia o tipo de absurdismo de Albert Camus quer dizer enquanto não sendo suficientemente absurdo ou seja não radical o que não é verdade pois Mounier sabia disso Em LEspoir des Désespérés1895 acerca da morte em Malraux autor em cuja obra Mounier vê antecipada grande parte dos temas desenvolvidos posteriormente por Sartre1896 o diretor de Esprit faz as seguintes citações A coisa capital da morte é que ela torna irremediável o que a precede irremediável para sempre A tragédia da morte está no fato de que ela transforma a vida em destino que a partir dela nada pode mais ser compensado1897 A estas citações na mesma nota cf abaixo Mounier observa Sartre1898 se refere explicitamente a esta passagem de LEspoir em sua análise da morte Sartre se separa de Malraux quando se recusa a dar à morte algum sentido algum valor que seja Ela é o absurdo em estado puro ela não pode senão despir a vida de toda sua significação Quanto a isso ainda Toda questão sobre a origem do ser escreve Sartre é absurda pois essa questão mesma é condicionada pelo ser Esta resposta não satisfaz a Mounier assim podese dizer isso também de todas as noções e de todas as noções primeiras Sendo o ser logicamente injustificável grifo nosso seria o caso de que ele continuaria sendo injustificável sobre outros registros de valores1899 Mounier percebe o problema da autoreferência da linguagem se se pretende colocar o problema do ser só no registro da lógica Sendo assim este problema da autoreferência lógica da linguagem não pode ser deixado de lado no momento mesmo em que o problema do ser é tomado sob esse registro Ele é levantado no exato momento em que Sartre para mostrar o absurdo da questão sobre a origem do ser toca também numa sua constituição que quer própria enquanto absurdo mas que a fortiori já seria no próprio caráter de negação uma maneira de responder à pergunta a qual considera antecipadamente absurda Mas não fora desse quesito lógico 1895 Oeuvres IV pp 258 ss 1896 LEspoir des Désespérés op cit passim 1897 Ibidem p 295 Em nota de MOUNIER Moreno Hernadez LEspoir 2245 2945 1898 Ibidem p 295 Em nota de MOUNIER LEtre et le Néant 625 1899 Ibidem p 372 731 existe uma dimensão em que Mounier entende que o existencialismo coloca o problema da natureza humana mais ligado as suas verdadeiras inspirações existencialistas O existencialismo é um humanismo Seguramente diz Mounier Mas para ele não há natureza humana que forneça ao ser humano previamente os quadros em que ele seria mais ser humano Se se trata de ultrapassar dialeticamente uma concepção estática da natureza humana metafisicamente grosseira e praticamente escrava do conservantismo e da pobreza de imaginação que denominará sempre de natureza as condições provisórias do hábito nós concordamos1900 Daí Mounier procurar perceber os elementos mais profundos diríamos existenciais dessa negação que para o personalismo é onde realmente moram os verdadeiros moventes sob a pele das aparências da pura negação Interessa a Mounier relevar estes aspectos mais profundos A consciência absurda se comunica em Nietzsche como um entrelaçamento potente nos existencialistas ela pressiona o ser humano por todos os lados como uma necessidade imperiosa ontologicamente fundada ela aparece em Camus como uma exigência moral mais do que como uma afirmação vital ou racional e uma exigência moral frágil que não subsiste senão por um esforço constrangedor sempre desvanecente da vontade1901 Mounier mantém essa busca do essencial porque assim como vê paralelo à decadente projeção sociológica do cristianismo um cristianismo reverdejante vê também paralelo à decadência de um ateísmo resignado e puramente negativo um ateísmo robusto Mounier quer provar e ver a promessa que se encontra por trás de toda essa resignação Isso para o personalismo é provar os valores Diz Mounier Criticar o existencialismo do ponto de vista cristão Eu fico muitas vezes embaraçado De início porque o existencialismo é bem vago ou bem vasto Quando ainda se confundia o existencialismo com uma febrezinha de café ou mesmo com o sério e já monumental esforço de Sartre eu achei bom1902 restabelecer em sua envergadura a árvore dos existencialismos enraizado sobre Pascal e Kierkegaard gerando de um lado Sartre Husserl Heidegger e Nietzsche e de outro Chestov e Berdiaeff Blondel e Buber Jaspers e Gabriel Marcel ele desenvolve sobre o 1900 LEspoir des Désespérés op cit p 380 1901 Ibidem p 330 1902 Introduction aux existencialismes Oeuvres III p 71 732 fundo raso do século XIX a dupla ramagem de um ateísmo robusto e de um cristianismo reverdejante1903 Isso é para esclarecer que a crítica de Mounier não pode servir de álibi para as demissões de um pseudoespiritualismo cioso de todas as preocupações pequenoburguesas Para Mounier nesse sentido a visão de Sartre é mais autêntica que o sorriso de Saint Sulpice e as harmonias leibinizianas1904 Para o personalismo fora do jogo fácil do moralismo maniqueísta tratase de ver no existencialismo o apelo a uma experiência mais plena pois por exemplo em Sartre a ferida do ser que lhe dá também em certos momentos essa macicez estéril da qual Sartre nos dá uma imagem inolvidável deve fazer apelo a uma experiência mais total pois já que se trata diz Mounier por método de experiência todavia parece que os aspectos essenciais lhe têm escapado1905 Para concluir este tema da solidão e do secreto face às ontologias do desespero poderíamos elencar na intenção de marcar um contraste salutar a ontologia da esperança que Emmanuel Mounier vê se destacar da reflexão de Gabriel Marcel na esteira de Kierkegaard Ou para acompanhar Mounier estabelecer um contraste entre um desespero fechado e um desespero aberto1906 Segundo Mounier o primeiro que não toma de forma alguma o partido da esperança da qual já falamos acima pp 267 ss o desespero fechado se apóia em uma recusa e se fecha sobre uma concentração egocêntrica uma crispação do eu um moi je emitido sobre o eixo da reivindicação e da possessividade Ele nasce de uma indisponibilidade primitiva em que o ser humano já não pode receber nenhuma revelação da existência porque ele aí está precisamente cheio de si Pouco importa segundo Mounier desde então que ele se satisfaça com pouco e transborde de otimismo ou que submergido pela decepção da existência deslize para o desespero A atitude fundamental segundo o diretor de Esprit é a mesma nos dois sentidos Cada um dos dois tipos considera o mundo em face de si como um ter inventariável e contábil O otimista diz Mounier é aquele que conta sempre com o futuro o desesperado do finito é aquele que não conta mais com nada nem com ninguém Mas todos os dois contam Dispõem ambos segundo Mounier das coisas e de si e julgam o jogo Lembremos desta 1903 LEspoir des Désespérés op cit p 359 1904 LEspoir des Désespérés op cit p 368 1905 Ibidem p 371 1906 Introduction op cit p 109 733 palavra já citada diz Mounier O inventariável é o lugar do desespero A ansiedade temor do futuro sentimentos mais modestos são já as doenças do ter A esperança ao contrário segundo Mounier é primitivamente um desarmamento do eu uma recusa de querer dispor de mim mesmo de avaliar as minhas possibilidades uma distração ontológica voluntária um abandono Ela não é para o diretor de Esprit uma maneira de beatificar meus desejos pois é tanto mais autêntica quanto mais se distancia do desejo e se recusa a imaginar a substância da coisa esperada Mas ela é paciência quer dizer renúncia à pressa à indiscrição do que no mundo pode nascer independentemente de minha ação possível conclui Mounier Ela não considera o mundo como inventariável e portanto esgotável mas como inexaurível Isso nos lembra que para o personalismo o ser é transbordamento Ela se recusa a calcular as possibilidades e geralmente medir os poderes em jogo Neste sentido e sobre este plano segundo Mounier ela é uma distância tomada em relação ao mundo funcional das técnicas formado a serviço dos meus desejos ela afirma a ineficácia última das técnicas na solução do destino do homem que segundo o personalismo é o que realmente importa Ela se situa no oposto do ter e da indisponibilidade Ela dá crédito dá tempo dá campo à experiência em curso Ela é o sentido da aventura aberta ela trata a realidade como generosa mesmo se esta realidade deva aparentemente contrariar os meus desejos Nós podemos nos recusar à esperança como ao amor diz Mounier Todavia a esperança é antes uma virtude e não uma consolação uma facilidade Na verdade segundo Mounier ela é mais que uma virtude ela entra no estatuto ontológico de um ser definido como transcendente no interior de si mesmo1907 Aceitála ou recusála é aceitar ou recusar segundo Mounier ser ser humano1908 Com isso dizemos novamente que uma filosofia da esperança já deveria ter tido a mesma divulgação que teve a filosofia do desespero pois segundo o personalismo ela parece corresponder mais intrinsecamente pelo próprio processo de personalização que temos tentado descrever aqui à dimensão mais original da existência humana Por isso sua afirmação pelo personalismo é por assim dizer a afirmação da filosofia mesma que está em suas próprias bases 1907 Introductition op cit pp 109 s Em nota de MOUNIER Bergson parece ter ficado às vezes incomodado por um certo comedimento que ele mantinha por sua vez do espírito universitário e de sua formação científica em desenvolver todas as implicações de seu pensamento sobretudo aquelas que não poderiam se apoiar em um rodapé científico imediato É Péguy quem cantou para ele a esperança 1908 Para toda esta parte Introductition op cit pp 109 734 V7 Crítica personalista para uma reabilitação da objetividade Até este momento tentamos uma aproximação a alguns elementos que consideramos entre os mais importantes no tocante à dimensão da subjetividade que pudemos destacar a partir da aproximação personalista aos existencialismos e nos escritos mais pertinentes a esta questão na obra de Emmanuel Mounier Como fizemos notar a pessoa para o personalismo se faz em um duplo movimento de interiorização que se complementa por um de exteriorização e viceversa Portanto temos de deixar agora o tema da solidão e do secreto e dar o passo seguinte sobre a constituição da relação já que tanto para o existencialismo quanto para o personalismo podese dizer o ser humano é ele e suas circunstâncias É Karl Jaspers para Mounier quem coloca e expõe melhor tanto a fratura do ser quanto a necessidade incontornável da mediação das instituições na condição da finitude Para tanto de Jaspers Mounier faz a seguinte citação Para a filosofia a objetividade está colocada em questão Mas o perigo dessa reflexão é o de dissolver todo conteúdo e de encalhar no niilismo O objetivo da filosofia é uma nova posse da objetividade grifo nosso que é então o meio de aparecer da existência1909 Esta nova posse da objetividade é para o que Mounier e sua equipe em Esprit vão também tentar colaborar para a edificação Nas aproximações que estabelecemos nos capítulos anteriores tentamos delinear em várias perspectivas na filosofia selvagem de Emmanuel Mounier como o personalismo elabora essa nova posse da objetividade fora da alienação abstracionista do liberalismoracionalismo burguês fora do reducionismo do pseudo espiritualismo também ele contribuidor para a volatilização das dimensões autênticas e pertinentes da matéria e das necessidades materiais em nome de um suposto espírito e fora também do reducionismo das dimensões espirituais do ser humano a mero epifenômeno da matéria mantido pelo método e pela metafísica do materialismo dialético Podemos perceber então que nesse sentido o objetivismo cantado pelos positivismos ou pela família positivista em suas várias ramificações para o personalismo não tem nem o monopólio e nem a última palavra sobre o que constitui a objetividade Essa desolidarização constante das essências de suas projeções institucionalizadas ou teóricas é uma tarefa que faz parte como temos visto do trabalho de chamada à lucidez 1909 LEspoir des Désespérés op cit p 374 735 proposto pelo personalismo como um todo e bem enfatizado por Mounier e sua equipe em Esprit Para tanto logo no primeiro número de Esprit Mounier e sua equipe procuram elucidar antes que explicar o que para eles quer dizer espírito Nesse primeiro número que saiu no mês de dezembro de 1932 logo de início no Programme pour 1933 temos a descrição dos princípios que nortearão a partir de então a linha editorial da revista Ali então lemos a necessidade mais urgente não é sempre a mais essencial nem a mais amada E isso é de importância capital a revolução não é para nós o valor primeiro mesmo na ordem cultural1910 Ela pode nos ser imposta por nossa concepção de ser humano e de justiça Mas colocando no espírito tudo o que significa para cada um de nós os valores interiores e sociais metafísicos ou religiosos nós somos do partido do espírito antes que do partido da revolução Isto quer dizer que nossa obra trabalhando totalmente aí não depende do sucesso ou da iminência de uma realização temporal O que é o espírito pelo qual nós tomamos a cruzada Seria vão e ingênuo pelo fato de que nós reunimos seres humanos querer definir uma abstração que retine um lugar comum múltiplo Nem nossos corações ficariam satisfeitos nem nossos espíritos convencidos somos todos além do mais muito ávidos por sinceridade e solidez Nenhum de nós confunde o espírito com o simples ardor do temperamento ou as fabricações do pensamento Para nós todos ele é um incontornável uma realidade viva Mas ele se revela diversamente em cada um Este o reconhece no apelo do herói ou antes em uma pureza anônima uma generosidade indefectível que ele sente em si maior que si mesmo ou ainda na justiça que se eleva do coração do povo Eis aí nossa diversidade a qual nós não saberíamos negar nem resolver1911 Como vemos para o personalismo o espírito ama a diversidade e é essa paixão pela diversidade que vai ser desde 1932 uma marca da experiência inédita no 1910 Como já dissemos Mounier e sua equipe juntamente com a grande parte dos movimentos de esquerda da época se consideravam num tempo de revolução sóciopolítica iminente Esse tema delicado e complexo da revolução levará Esprit a se desvincular da Ordre Nouveau de Alexander Marc Arnaud Dandieu Denis de Rougemont e René Dupuis Cf LUROL Mounier Génese de la personne op cit da p 301 a 309 aqui LUROL apresenta uma série de notas biográficas sobre os principais colaboradores de Esprit A Ordre Nouveau seria um órgão de prolongamento tático de Esprit laboratório de idéias no campo da ação política o qual Mounier considerava que tendia a sacrificar os princípios e se perder na tática E será sobre esta problemática do esquecimento dos princípios e o perderse na tática que se concentrarão muitos dos esforços de Emmanuel Mounier no sentido da busca da lucidez principalmente também como já vimos junto aos revolucionários marxistas 1911 Bulletin des amis dEmmanuel Mounier nº 58 outubro de 1982 p 14 736 Ocidente de um ecumenismo real antes da letra ecumenismo de diálogo sem restrições fora da mentira para dentro da lucidez realizado pela equipe interdisciplinar de Esprit Por aí já podemos ver que ao sentido frágil e precário de toda comunicação ao sentido da miséria da linguagem reconhecido pelo personalismo os existencialismos por sua vez para Mounier tendiam em relação a esta sua clara miséria a aumentála ainda mais além da conta humana como fracasso a priori e sem pleno poder para isso O personalismo como temos enfatizado vendo todas as instituições humanas como a linguagem sob o modo de ser do artefato não poderia nem seria capaz de emitir um juízo tão dogmático como esse Para o personalismo esse tipo de juízo se elevava com mais ênfase de determinadas correntes existencialistas só porque estas constatavam que o racionalismo instrumental havia viciado e envenenado também a esfera da comunicação humana Todavia omnia arte facta sunt para o personalismo tudo está por se fazer Além disso o voto de confiança na pessoa criadora por parte do personalismo toma também o seguinte sentido tudo é possível ao ser humano até mesmo ser feliz e sabendo que para isso a felicidade burguesa não bastaria Todavia ao lado da indiferença o desespero para Péguy e Mounier vai continuar sendo o grande pecado Péguy dizia que o desespero é o grande pecado pois o desespero é a recusa de tirar partido das fecundidades do infortúnio1912 São por esses sentidos deixados pela reflexão de Emmanuel Mounier que o personalismo dentro de sua dialética do engajamentodesengajamento enquadrará a questão das mediações ou seja das instituições ou ainda da maneira como ele concebe a reabilitação da objetividade Como podemos ver não se trata de institucionalismo mas de inserir dentro da discussão sobre as instituições algo que necessariamente é anterior às próprias instituições e que para ao personalismo é a única maneira de não deixarse perder nem pela vertigem do institucionalismo nem pela ingenuidade anarquista da negação de outras aderências que o personalismo via como necessárias Essa colocação de um aquém das instituições na discussão sobre as instituições é para o personalismo a única maneira de se inciar uma adequada e pertinente discussão sobre o tema pois é a maneira de colocar em uma perspectiva que ele vê como a mais adequada e que frente ao pragmatismo 1912 Mounier et sa génération op cit p 479 correspondência a sua irmã Madeleine Mounier de 17 de abril de 1931 737 institucionalista busca o sentido mais específico do ser das instituições Este para o personalismo deve se dar e se destacar de dentro do conjunto total da produção cultural humana em vista de compor e fazer valer em sua esfera própria de mediação e de propiciadora das aderências necessárias para a manutenção da vida social o conjunto das necessidades que compõem o desenvolvimento pleno da pessoa concreta em sua luta pelo real e afirmação de sua vocação singular no seio da existência intersubjetiva A Mounier Nada repugna mais profundamente que o gosto tão comum hoje em dia de um aparelho de pensamento e ação funcionando como um distribuidor automático de soluções e de instruções obstáculo frente às investigações seguro contra a inquietação a dificuldade o risco1913 Na verdade como temos tentado apresentar qualquer forma de engessamento repugna ao personalismo a começar pelo pensamento que para ele não deixa de imprimir o alcance do seu psquismo inelutavelmente embutido às instituições as quais o atual neoliberalismo burguês abstrato é a grande prova disso quando quer que as tomemos apenas sob o modo de funcionamento irresponsável e sempre destacado do conjunto social único que para o personalismo lhe confere o verdadeiro sentido O princípio de indeterminação personalista que não se confunde com a atitude do ceticismo dogmático vai até às raízes de toda e qualquer estrutura que toca Isso porque o ceticismo dogmático funciona como um álibi para todo tipo de indiferentismo se é a priori impossível alcançarmos a verdade a verdade em uma concepção substancialista logo é inócua sua procura Vemos que a exigência desse ceticismo quanto à verdade no plano da finitude por outro lado é uma exigência absoluta o que a torna tomado o plano mesmo da finitude inconcebível e impossível como tarefa humana pois não respeita as próprias limitações que o modo de ser da finitude impõe à busca da verdade Por outro lado o antigo ecletismo também ou melhor na mesma intenção é ainda uma idéia para confortar tranqüilizar os espíritos atônitos com a realidade de um mundo antigo no qual se sentia esvaecer todos os ideais de independência e de cidadania que com tanto esforço haviam construído e que então desmoronava1914 Para o personalismo não obstante o cronos algo semelhante poderia ser dito em relação ao tipo de atitude que hoje sobressaí e que podemos chamar ao lado do neo 1913 Le personnalisme Ouvres III p 430 1914 TOYNBEE Arnold J Helenismo História de uma civilização Zahar Editores 3º edição Rio de Janeiro 1969 especialmente o Capítulo 12 A idade da agonia p 160 a 176 738 estoicismo como vimos antes de neoceticismo dogmático advindo de uma inspiração de escopo geral e de matiz nietzschiano mas que já não se nutre da mesma inspiração do ceticismo antigo pois negam muito mais absolutamente ainda1915 Do ceticismo antigo advinha uma atitude muito mais heróica e erótica em relação à vida por parte do cético pois este ainda mantinha uma certa crença nas capacidades racionais do ser humano o que por outro lado era o que se tornava a pedra de tropeço para a afirmação mesma do seu ceticismo dogmático Ali não se negava de maneira absoluta as capacidades racionais Nulas na perspectiva cética apenas em sua afirmação mas não em sua negação quanto à possibilidade da verdade enquanto negação da verdade Essa inconsistência lógica nunca passou despercebida Por sua vez bem limitadas na perspectiva eclética em sua afirmação mas não em sua capacidade de agregação e composição de uma verdade sempre aproximativa em vista da conciliação1916 Todvia nestas duas perspectivas ao menos não há fuga do diálogo No entanto segundo a perspectiva do personalismo o caso é bem diferente com o neoceticismo dogmático contemporâneo Neste como já observara Mounier acima negase não apenas e com razão a verdade como uma substância como uma propriedade acabada como também negase que haja no ser humano qualquer possibilidade ligada a suas capacidades racionais mesmas pela qual se possa minimante tocar a verdade como uma possibilidade de superação de suas outras dimensões anárquicas enquanto estas sempre em último caso permanecerão para esta perspectiva as dominantes em Nietzsche de maneira total por sua contraposição radical à cultura ocidental enquanto definida pelo que ele denomina filosofia da representação1917 em Heidegger e depois Sartre pelo a priori do malogro entendido no sentido negativo como resultado último e como constituinte fundamental a que toda comunicação humana está antecipadamente fadada O personalismo como vimos antes constata nestas 1915 Cf RICOUER O simesmo como um outro op et loc cit 1916 Ver sobre o ceticismo acadêmico ver RIVAUD Albert Histoire de la philosophie Des origines a la escolastique Deuxième Édition Presses Universitaires de France Paris 1960 pp 434 a 440 também Giovanni REALI Dario ANTISERI História da filosofia 3 vols Edições Paulinas São Paulo 1990 vol 1 pp 273 a 275 Sobre o ecletismo ver LEONHARDT Jürgen Cícero Filosofia entre ceticismo e confissão in Filósofos da Antiguidade 2 vols Michael Erler Andréas Graeses orgs Col História da Filosofia Editora UNISINOS São Leopoldo RS 2003 pp 81 a 100 1917 Marton SCARLETT Extravagâncias Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche GENDiscurso Editorial Editora UNIJUI São Paulo 2000 pp 115 ss e 135 ss respectivamente Nietzsche e Descartes Filosofias do epitáfio e Nietzsche Consciência e inconsciente 739 perspectivas além de um problema de conceitos uma posição de vontade que se situa no postulante aquém dos conceitos Todavia isso não impedirá estas mesmas perspectivas e de maneira estranha a argumentar em vista de convencer sobre o que elas dão antecipadamente como recusa e no reconhecimento de que não se pode convencer pela razão dado o fato de esta encontrarse a priori totalmente comprometida Portanto para uma perspectiva personalista será impressionante o fato destas filosofias continuarem a se expressar pela linguagem Essa inconsistência dilacerante por outro lado a Emmanuel Mounier vai tomar um outro sentido Ela não deixará de lhe apontar um caráter de apelo que Mounier entenderá como permanecendo por trás tanto da dureza neoestoica colocada ao existente como exigência para se permanecer fora da máfé ou na vida autêntica quanto na persistente obstinação em seu caráter de negação Mesmo esta estando irremediavelmente vinculada às capacidades racionais Das mesmas das quais estas perspectivas se servirão para comunicarse por outro lado pretendendo negar qualquer tipo de êxito comunicativo E isso por meio destas mesmas vias pelas quais não verão a possibilidade de afirmar outra coisa que a negação Este quadro Mounier já via como gerador de uma pseudopositividade como já vimos pois não seria senão aprioristicamente do começo ao fim a constatação de um malogro verdadeiro no plano da experiência da existência singular mas que nelas acaba tomando um alcance ontológico para Mounier inaceitável Para ele todavia mais a contragosto de Nietzsche em quem ainda Mounier sentia o ensejo de ultrapassamento e portanto de um movimento de mais ser ao sim dionisíaco1918 mas não tanto em relação a Heidegger em cuja experiência do nada Mounier via uma extrapolação uma escorregadela fatal de uma experiência psicológica individual autêntica do nada já realizada pelos místicos e de maneira não se sabe por quais poderes para a condição ontológica do Dasein do ser para a morte em geral que deveria tirar qualquer positividade possível desse critério de negatividade a priori Mounier percebeu então que a situação deste neoceticismo dogmático caminhava para gerar como o antigo mas não como uma escola à parte e mais como uma espécie de sentimento que comanda a sua Weltanschauung no plano das atitudes na vida prática o que poderíamos chamar como já indicamos com Landsberg de frisson de volúpia niilista Este resultado parece a contragosto mais de Nietzsche como dissemos que julgava antes 1918 SCARLETT op cit pp 95 s 740 niilista em relação à afirmação da vida as outras tradições nomeadamente a do cristianismo mas não em relação às conseqüências dos próprios pressupostos da ontologia de Heidegger Para o personalismo para ser conseqüente com esta perspectiva do neo ceticismo dogmático deverseia chegar à inevitável solução pirrônica à epoché como suspensão da palavra ao silêncio Mas dado o aspecto volitivo desse neoceticismo antes que puramente noético nele o personalismo só poderia ver uma espécie laica de voto de silêncio diante do assombro com o Absurdo como no âmbito religioso é o caso do voto de silêncio por parte do asceta pela experiência da inesgotabilidade do Sagrado diante da precariedade da linguagem comum Como já vimos essa constatação se justifica pois na experiência autenticada pela fenomenologia do sagrado em relação ao numinoso o assombroso e o atraente o que repele e o que aproxima na Divindade se encontram nela ao mesmo tempo e de maneira igualmente intensa o céu e o abismo estão lá igualmente Todavia não é desinteressante notar que isto não acontece com o neoceticismo dogmático contemporâneo pois é possível pela ambigüidade mesma que a noção de conseqüência toma nestas filosofias que se continue fazendo uso da linguagem não como instrumento à serviço de uma verdade ou a um nível dela passível de ser comunicado mas como veículo pelo qual se veicula os sentimentos provenientes de sua Weltanschauung o que paradoxalmente não consegue deixar de ser uma vontade de verdade da negação É esse composto que está na base da angustiosa tensão humanamente impossível de se manter ou melhor com a qual permanecer conseqüente e já sendo conseqüente por outro lado na dinâmica própria aos constituintes de uma negação absoluta como a que se não é cabalmente empreendida hoje ao menos sua sensibilidade pode ser sentida Suas conseqüências para o personalismo são o indiferentismo a arrogância pelo sentimento de superioridade advindo destas pseudoaristocracias um tipo de rebanho de animais não gregários animais solitários contraposto ao rebanho dos animais gregários de que fala Nietzsche o inominável e impensável relativismo absoluto que se dinamiza no plano da ação irresistivelmente como conservadorismo social portanto levandose em consideração a ideologia dominante hoje em dia pequenoburguesa capitalista e neoliberal e ao moralismo inverso pelo jogo maniqueísta ou seja ao amoralismo pois tomando o moralismo burguês decadente como se só ele tivesse a última palavra sobre a moral humana assim mantém o joguinho maniqueísta dos liberados contra os 741 recalcados joguinho este que os oportunistas da sociedade de consumo infantilizada e do discurso politicamente correto adoram manter e jogar e ao apolitismo como atitude de vanguarda como se só a ação política mantida pela decadente democracia liberal parlamentar partidáriorepresentativa ocidental fosse a única política possível e ainda mais como se a ação política fosse o único tipo de ação válida etc V8 A alteridade o outro o semelhante e o próximo Dadas estas linhas preliminares entramos no tema do outro mais concreto do que o tema da alteridade que por sua vez é menos concreto do que o tema do semelhante Nesse sentido como temos dito o tema do próximo para o personalismo enquanto filosofia do encontro se coadunaria melhor as suas perspectivas relacionais e intersubjetivas Com esse tema do outro pretendemos encerrar esse capítulo da pessoa e existência crendo que ele compõe uma dimensão importante do sentido da exteriorização enquanto movimento complementar ao de interiorização da pessoa de que já falamos O sentido do outro é tomado por Mounier sob a categoria do mistério O sentido do mistério que nós lhe opomos designa não o esfuminho cobertura fraudulento dos problemas mas o reconhecimento direto abaixo dos problemas de um centro inesgotável de problemas O sentido do outro é inseparável do sentido da interioridade O outro é meu semelhante e um outro eumesmo1919 O que ficou para o moralista e o psicólogo com a diluição do eu e a perda do sentido do outro como mistério mas em nada diminuindo a vontade de objetificação do positivismo segundo Mounier foi o seguinte Deixouse ao moralista o cuidado de dissertálo como princípio de conduta e de vontade O psicólogo também se limitou a estudar a consciência de si que ele apresentaria como um ato de pura apreensão psicológica obtida destacandose o olhar interior de toda ligação com a vida do corpo e das solidariedades do meio1920 Mounier vê na contemporaneidade o esforço em colocar uma anteposição a esta vontade de objetificação pela negação do mistério do outro ou do outro como mistério na 1919 Traité du caractere Oeuvres II p 516 1920 Ibidem p 524 742 ética do desapego que ele crê se desprender em autores não religiosos como Gide e Nietzsche O amorpróprio em suas mil formas é o mais protéico1921 de nossos demônios interiores Toda crítica ao amorpróprio nos espirituais cristãos toda sua ascese da despossessão não tem outro sentido que o de reduzir esta embolização1922 da vida pessoal pelo encobrimento do ego Encontramos eco disso em pensadores modernos que se desviam de pontos essenciais da visão cristã A ética do desapego que atravessa a obra de Gide tem suas raízes não muito distantes deste desejo de Nietzsche1923 Não ser obrigado desde a juventude a possuir e a querer possuir Nos deixar possuir pelas coisas não pelas pessoas e por uma quantidade tão grande quanto possível de coisas verdadeiras Nós somos o campo de trabalho das coisas É necessário que germinem em nós imagens da existência1924 Segundo Mounier como vizinho do universo moral o outro é uma aproximação e uma recusa meio de aproximação e de desabrochamento pela força de atuação de sua qualidade moral recusa viva pelo único testemunho mudo que reproduz sua fidelidade ou infidelidade aos valores por mim abandonados A abertura real ao humano e a sua diversidade segundo Mounier é o mais seguro dissolvente do egocentrismo ao mesmo tempo em que o mais poderoso revelador de minha diversidade interior A indulgência lúcida e não a indulgência preguiçosa da indiferença ou a indulgência amorfa da idealização segundo Mounier é a arma ofensiva e precisa da compreensão1925 Portanto Mounier reconhece que o tema do outro é uma das grandes conquistas da filosofia existencial A filosofia clássica o deixou em um estranho abandono1926 Diferentemente do sociologismo que coloca sua atenção sobre a organização social antes que sobre a natureza da relação que une uma existência a uma outra existência diz Mounier a crítica existencialista recai precisamente sobre a ameaça da alienação que espreita cada um dos existentes quando estes se limitam a considerar as suas relações com os seres humanos no simples plano da organização1927 Por outro lado na experiência simultânea do muito próximo e do estranho que o contato objetivo não transfigurado nos fornece se desenvolve uma náusea do contato com o outro semelhante à náusea que se 1921 Que muda freqüentemente de forma 1922 Obliteração de uma artéria 1923 Em nota de MOUNIER Volonté de puissance éd Galimard 1 IV aph 277 1924 Traité du caractere Oeuvres II p 545 1925 Ibidem p 724 1926 Introduction op cit p 129 1927 Ibidem 743 forma ao contato com as coisas Em relação a isso diz Mounier a palavra de Nietzsche a quem essa situação tomou pela garganta Toda comunhão torna comum1928 Todavia segundo Mounier Não é aqui a repulsa pelo outro que se exprime mas repulsa pela proximidade na decepção de sua ausência1929 E ainda A força e o fervor da relação que na perspectiva existencial liga o indivíduo a sua paixão paixão do Absoluto paixão do desespero lhe faz sentir mais intensamente ainda a impotência existencial da relação objetiva Nós temos visto em Kierkegaard se desenvolver diz Mounier depois se desfazer sob uma inspiração mais profunda essa tentação do secreto e da separação1930 Ainda em relação a Kierkegaard quanto ao problema da comunicação mas que lança luz nesta conexão diz Mounier Sempre o preocupou muito mais o problema da expressão e seus limites do que o da comunicação Dela só falava como certos teólogos falam das mulheres para assinalar seus perigos Não se sente nele essa paixão pelo outro que atormenta um Jaspers ou um Scheler Nós temos lembrado as ênfases de Ou bien Ou bien sobre a comunidade conjugal Mas esta é a sua primeira obra publicada e estas ênfases se tornam mais e mais raras à medida que o tempo passa 1931 Segundo Mounier o ramo ateu mesmo quando tentou reencontrar um vínculo entre as existências o pensou sempre na forma de conflito ou sujeição Assim esse novo ateísmo segundo Mounier se distingue radicalmente do ateísmo clássico dos séculos XVIII e XIX e do seu otimismo social1932 Assim Mounier reconhece que o otimismo sendo a força que caracterizava esse ateísmo florido otimista para com as leis do progresso e não em relação às capacidades criadoras da pessoa concreta segundo o personalismo visto pelos existencialismos como um motivo central da decadência ocidental vai ser justamente afrontado pelos existencialismos nesse seu caráter ilusório todavia com o ultrarealismo de um pessimismo tanto mais radical Mounier desde a discussão em teologia sobre o modernismoliberalismo teológico e as novas correntes de afrontamento cristão uma na linha de Maritain e outra na linha Karl Barth de cujos extremos que representam Mounier vai se manter em guarda todavia entendia que na história às vezes chega o momento de fazer a balança pesar do outro lado para então 1928 Introduction op cit p 129 Em nota de MOUNIER Par dela le bien e le mal alph 160 1929 Ibidem p 129 1930 Ibidem 1931 Ibidem p 130 1932 Ibidem 744 chegado o balancim a um movimento menos díspar se procure com mais segurança o ponto de equilíbrio Relembrando que pelo resultado da soma 1 1 do que 2 que o personalismo coloca como proposta e motivo de uma nova concepção da intersubjetividade fora do sono dogmático do aquém da razão e de todo a priori metafísico pessimista ele não quer encontrar o ponto exato de uma fixação tranqüila um ponto estático um tanto quanto substancial mas um centro de densidade e tensão um locus frutuoso Ora já dissemos no início deste capítulo que Mounier conhecia o existencialismo bem antes das mais importantes obras de Sartre sobre o tema terem sido lançadas E é sob essa experiência dos afrontamentos necessários que devemos entender a crítica de Mounier ao pessimismo que o existencialismo se vê na contingência de colocar frente ao otimismo do individualismo burguês Sob este ponto de vista Mounier se pergunta se à força de negar com razão absolutamente para melhor esclarecer fora da ilusão do otimismo florido burguês a realidade de uma dimensão obscura nada florida da existência humana como uma forma de desarmar o existente de qualquer pretensão de construção de alguma outra segurança ilusória a fim de que ele tome posse de si mesmo e de seu futuro com esse arrombo de ultrarealismo o existencialismo já não teria extrapolado além das possibilidades mesmas do existente as suas próprias bases que se quer fundadas sobre as condições de uma experiência possível no âmbito da finitude e assim ficar pairando fora da metafísica do mundoalém dentro de uma outra metafísica do mundoaquém afirmando então pela negação o que pretendiam justamente combater Por isso para Mounier em relação à crítica existencialista ao otimismo burguês florido na verdade podese perceber tanto uma descontinuidade quanto uma outra continuidade além do aspecto do ateísmo engajado que se destaca em ambos À distinção do otimismo social nesse ramo do ateísmo contemporâneo1933 por outro lado atrelase 1933 Para não simplificar uma questão que não é simples o que quer dizer que para Mounier ela não pode ser tomada na forma de uma antítese entre dois tipos de fé rivais como o racionalismo a coloca como já vimos deixamos claro que se trata aqui de um tipo de ateísmo e não de todo ateísmo Aliás dentro de uma perspectiva personalista nenhum tipo de ateísmo declarado tem o monopólio do ateísmo enquanto tal Nesse sentido para o personalismo o ateísmo é algo muito mais fundamental a ser conquistado do que mera declaração de palavras Dizemos até que na mesma dimensão em que ser cristão para quem entende o peso desta palavra é um ideal da mesma forma ser ateu para quem entende o peso desta palavra também é um ideal Essa discussão iria longe Mas com o que já temos dito até aqui podemos certamente concluir dizendo que para o personalismo tanto o cristianismo que implica uma adesão plena ao fiat voluntas tua de Deus e que portanto deve comandar a posição do filósofo cristão diante de Deus e dos seres humanos com todas as suas conseqüências ou seja uma tarefa difícil que deve se renovar todos os dias quanto o ateísmo que é para o personalismo a outra tarefa difícil de renúncia a erigir qualquer ídolo como fundamento último e que 745 pelo pressuposto do conflito ou sujeição que comanda sua noção de relação um vínculo como já tivemos a oportunidade de ver justamente com o pressuposto fundante da sociedade moderna contratual e liberal que no entanto esse ramo ateu contemporâneo diz fazer a crítica Sabemos que a modernidade em sua preocupação em garantir e legitimar a posse e o usufruto da propriedade1934 elegeu justamente os mesmos pressupostos de conflito ou sujeição E isso não só como uma hipótese sem fundamento histórico para explicar o que movera o individuo moderno a fundar a sociedade contratual pois após a situação social burguesa liberal ideal ter se estabelecido o que era só uma hipótese passa a ser a idéia reguladora mesma que comandará o sentido que a sociedade burguesa e liberal entenderá como o mais profundo e característico de toda e qualquer relação social no âmbito de sua sociedade Mas sempre mascarada pela sua pseudoordem de superfície à qual Mounier chamará de desordem estabelecida Como vemos a guerra de todos contra todos da fundação da modernidade de uma noção hipotética sem fundamento histórico passa a ser de fato na perspectiva da ideologia do neoliberalismo burguês dominante a idéia reguladora mesma de tudo que diga respeito aos constituintes das relações sociais Ora não se pode deixar de notar um certo parentesco e inspiração entre este mote liberal racionalistaburguês e a inspiração crítica do existencialismo que pretende combatêlo A essa vinculação pela negação há ainda um afastamento do ateísmo contemporâneo do ramo analisado por Mounier em relação ao ateísmo clássico que deve ser aventado Ligado ao seu otimismo todavia o ateísmo clássico pelo menos procurou se manter de maneira corajosa com todos os seus problemas e limitações não resta dúvida dentro da inspiração do universalismo que sempre movera a história do Ocidente E se hoje é postulada a superação desse ateísmo otimista por um outro ateísmo isto se deve a contragosto talvez para este último a esta mesma inspiração de progresso esse novo nesse sentido dada a precariedade da condição ontológica humana é sempre ciosa em erigilos ao invés da busca de bons fundamentos no confronto frutífero do dialogo sem restrições em função do problema geral da verdade vão se encontrar dialeticamente de alguma maneira tanto nesse perderse para reencontrarse no fiat voluntas tua de ambas as fidelidades fundamentais como na quebra necessária de ídolos como parte inerente em ambas O cristão para cumprir sua vocação deverá a todo tempo por a prova a sua adesão para ver se ela não se tornou um ídolo que já não faz jus ao Deus diante do qual ele tem de se colocar o ateu deverá se vigiar para não cair na tentação da consolação da ereção de algum ídolo negando a sua posição fundamental que é justamente a de quebrar ídolos Há um sentido em que o ateísmo é teísmo e há um sentido em que o cristianismo para ser tal plenamente tem de ser ateísmo Aliás como já vimos uma das acusações de que o Império romano lançou sobre os cristãos primitivos era justamente a de ateísmo 1934 Ver LOCKE Segundo tratado sobre o governo op cit passim Ali veremos que no frigir dos ovos é o que mais importa ao liberalismo 746 ateísmo deve de alguma forma mesmo enquanto pessimismo radical contra o otimismo florido e para fazer valer seus pressupostos se colocar como de melhor estirpe ou como mais adequado do que o ateísmo clássico Mas para que possa fazer jus a sua fonte segundo a perspectiva personalista aquele deveria manter essa mesma disposição corajosa de construção de uma universalidade possível sem é claro o otimismo Todavia como temos visto à luz do personalismo de Mounier podemos dizer então que o ateísmo atual se apresenta antes que como um substituto à altura de assumir o compromisso histórico como o ateísmo clássico tentou ser e não foi na verdade apenas como uma crítica pelo que este prometeu e não cumpriu sem possibilidade de propor qualquer outro sentido de comunidade de destino que é o que na verdade para o personalismo mais importa e o mais urgente como tarefa cultural Em outras palavras este atual ateísmo não toma para si nenhuma responsabilidade pelo que aquele deixou de fazer e que para o personalismo era justamente porque pode encontrar lastro axiológico sobre o qual construir sua mentira e se manter como verdade humana o que nutria os valores fundamentais do que temos denominado aqui de emergência da pessoa humana na história Todavia entrando mais especificamente na tradição HeideggerSartre Mounier passa a descrever como se dá a relação aí Mounier diz que Heidegger sustenta que o sein o ser é mitsein sercom Mas que neste mitsein o próprio Sartre segundo Mounier não discerne outra coisa que o sentimento comum que pode ligar em sua tarefa coletiva os galerianos que não tinham nenhuma relação direta uns com os outros Por outro lado de acordo com Mounier segundo Sartre há na existência humana uma tendência incoercível à aglomeração na existência pastosa do mundo do Se Ela é pois caracterizada por uma servidão radical de um existente em relação a outro O existente diz Mounier analisando a análise de Sartre não pertence a ninguém em particular mas se ele se liberta de um é para cair sob a servidão de um outro e sobretudo dos outros Minha existência em Sartre segundo Mounier é implacavelmente heterônoma Servidão tanto mais degradante porque meus senhores me sujeitam a sua própria degradação e não a sua glória Servidão do caos humano amorfo e intolerável A existência autêntica não se conquista então senão na derrelição total Falase muitas vezes neste momento segundo Mounier de comunidade de desespero A bem da verdade conclui Mounier nada em Heidegger oferece qualquer 747 fundamento para semelhante comunidade1935 A partir desta síntese bem reduzida que podemos apresentar da análise que Mounier apresenta como sendo os constituintes e pressupostos da análise sartriana da relação com o outro como podemos ver permanece inteiramente negativa a priori negativa Mounier destaca como também já pudemos ver que nesta perspectiva O solipsismo não pode ser evitado1936 Essa tendência ao solipsismo em Sartre segundo Mounier pode ser acompanhada em sua análise sobre a influência do olhar do outro Sobre isso diz Mounier O servisto não é uma descoberta de Sartre Dele muitos psicólogos e psicanalistas têm se ocupado no curso destes últimos anos Devese a H Wallon um considerável estudo sobre a influência do olhar do outro no comportamento da criança1937 O gosto de ser visto e suas cumplicidades obscuras como gosto de ver os laços do despudor e da indiscrição do pudor e da discrição são objeto de inúmeros estudos Nós temos assinalado de passagem a importância dos temas do pudor e do secreto desde a primeira filosofia existentielle O que é aqui em Sartre segundo Mounier novo é a utilização ontológica grifo nosso destes estudos1938 Em Sartre segundo Mounier o olhar do outro me constitui pois em objeto em seu campo O outro é para mim um sistema ligado de experiências fora do alcance no qual eu figuro como um objeto entre os outros1939 Tratase segundo Mounier da negação radical de minha experiência de sujeito Mas completa Mounier não é somente um objeto que ele faz de mim é um objeto despojado e possuído A linguagem crua é nesse caso filosofia diz Mounier eu sou visto eu fui capturado diz o diretor de Esprit tornamse sinônimos em Sartre e sinônimos de eu fui roubado1940 Como podemos ver as ressonâncias com os pressupostos que comandam as noções liberais quanto à guerra de todos contra todos não é de pouca monta aqui também Mas em Sartre esse olhar de dominação segundo Mounier toma um alcance ainda mais profundo chega mesmo ao mais íntimo de mim mesmo a minha liberdade Na verdade ele a atravessa Este serparaoutro segundo Mounier em que me torno diante 1935 Introduction op cit p 130 1936 Ibidem p 131 1937 Ibidem Em nota de MOUNIER Cf BOIVIN Les origines du caractèere 1938 Ibidem p 131 1939 Ibidem p 132 Em nota de MOUNIER LÊtre et le Néant 283 1940 Ibidem p 132 748 dele eu o sou mas sem poder dispor dele Não se trata mais segundo Mounier de um parasi um ser humano móbil e prospectivo tratase na verdade de um emsi uma existência detida imobilizada indisponível Assim segundo Mounier o surgimento do outro longe de trazer uma promessa só me semeia morte e destruição Meu pecado original é a existência do outro1941 O inferno são os outros1942 Através do outro segundo Mounier eu caio literalmente no mundo todo meu ser sai de mim e se expõe sem qualquer defesa Daí conclui Mounier só tenho um meio de salvação a resposta Tenho que me retomar como liberdade recuperarme como sujeito e para isso sublinhemolo como assim fizemos antes com o ou seja imobilizar por minha vez o outro em objeto1943 Por isso a minha preocupação constante segundo Mounier nas relações com o outro será empregar bastantes artifícios para que o mantenha como objeto tanto tempo quanto eu puder1944 Cita Mounier O conflito é o sentido original do serparaoutro1945 Não resta dúvida de que esta visão polêmica1946 sartriana que de certa forma bebe de fontes bem salutares e antigas como já pudemos notar quanto a de que bebe o próprio cristianismo ou seja em Heráclito todavia parece a Mounier extrapolar um sentido preciso que pode ser destacado destas mesmas fontes Principalmente quanto ao seu alcance ético que uma perspectiva personalista não pode deixar de notar apesar de todas as advertências em contrário Quer dizer da asseveração existencialista Tratase de uma descrição ontológica só de uma descrição1947 da qual o personalismo não deixa de ver o sentido de uma ética Se é possível ainda falar de ética aqui ou seja uma que possa decorrer de uma ontologia da relação com o outro que postule um tal fundamentando Pois para o personalismo o que estas especulações ontológicas possam inelutavelmente colocar como incidências sobre o mundo das relações de fato vai se apresentar sempre bem 1941 Ibidem Eis aí uma harmatologia doutrina do pecado sem dúvida alguma para quem conhece um pouco de teologia do Novo Testamento bem mais rigorosa e pesada do que a proposta pelo cristianismo justiça seja feita Será que poderíamos chamar esta hamartologia laica acompanhando Freud de castradora recalcadora da mesma forma como ele denomina a harmatologia religiosa Não obstante o substituto proposto por Freud à noção de pecado Ver O século de Freud Benjamin Nelson org op cit pp 212 ss também não é menos rigoroso Será que poderíamos dizer também então da harmatologia psicanalítica do pai da psicanálise castradora e recalcadora 1942 Introduction op cit p 132 Em nota de MOUNIER Este é o tema de Huis Clos 1943 Ibidem p 132 1944 Ibidem p 133 1945 Ibidem Em nota de MOUNIER LÊtre et le Néant 431 1946 De polemoj pólemos guerra 1947 Como se chegados aqui um existencialista que queira manterse em boafé com seus pressupostos pudesse querer ainda falar tranquilamente ao modo racionalista de descrição neutra 749 problemático quanto ao alcance objetivo quer dizer psicológico A passagem de uma análise parcial como a de Sartre1948 com o peso neoestóico desta parcialidade como implicando uma exigência de comando total à existência do ser humano não deixa de apresentar um certo descompasso entre um ideal e as condições humanas de fato agora não mais quanto a um além mas como já dissemos a um aquém a estas mesmas condições de fato É nesse sentido que a contragosto sem dúvida mas para uma perspectiva personalista inevitável este neoestoicismo se torna tão radical em matéria de resignação quanto fora o ascetismo mórbido que também se inscreve juntamente com o ateísmo florido liberal e burguês na fileira de sua crítica Um neoascetismo mórbido não mais em relação a um mundo além ilusório da metafísica pagã que está na base da filosofia clássica aristotélicoplatônica1949 mas agora em relação a um mundo aquém hiperrealista Para o personalismo um erro não pode justificar um outro erro É necessário então também aqui desolidarizar o erro da verdade que o erro parasita e pela qual se mantém vivo Mounier analisando dentro do quadro da ontologia da relação sartriana as duas respostas ofensivas a nossa disposição vai dizer A primeira é a mais ambiciosa Pois visto que o outro me subjuga por sua liberdadesujeito eu quero atingilo em sua alteridade mesma em sua liberdade não como objeto mas como serobservado a fim de exorcizar por assim dizer imediatamente o poder perturbador que ele exerce sobre mim Tal é o ideal do amor em Sartre segundo Mounier Ele não procura como se crê a posse de um corpo com essa posse apenas ele só teria um despojo ele procura a posse de um liberdade como liberdade1950 grifo nosso E ainda continua Mounier Outroobjeto não pode bastar para provocar o amor o amor não pode nascer senão do desejo do outro sujeito Ora diz Mounier este desejo é um desejo de desforra a vontade de triunfo do escravo de ontem sobre o senhor de ontem grifos nossos de forma alguma um desejo de reconciliação É preciso para assegurar esse triunfo que a liberdade do outro não seja somente reencontrada mas se torne minha prisioneira É com meu mau minha tendência à 1948 Para o personalismo toda análise é sempre parcial inclusive a sua própria 1949 Conforme Platão principalmente tem sido interpretado no Ocidente Já falamos da leitura de Platão feita pelo filósofo personalista Étienne Borne que tenta redimilo do essencialismo 1950 Introduction op cit p 133 750 objetivificação minha facticidade que eu quero infectar o outro que me infecta1951 Tal é para Sartre segundo Mounier a essência da alegria do amor In loc Para Mounier pelos dados assim fornecidos não é difícil demonstrar que este projeto implica uma contradição Assim diz Mounier Eu desejo com efeito que o outro venha se atolar na minha liberdade e que ele o faça livremente pois eu o quero possuir como liberdade Eu lhe peço pois que seja objeto não obstante em tudo querendoo como sujeito Além disso para me assenhorear dele como sujeito é necessário eu sublinho ainda que eu permaneça objeto para ele e mesmo um objeto fascinante Mas então eu sujeito não o alcanço mais segundo o projeto que eu havia feito A raiva dessa impotência me leva a tratar a mim mesmo furiosamente como objeto como a criança que bate em si própria ou como o homem que se injuria e se abate diante de um malogro tal é conclui Mounier a significação do masoquismo1952 Ora essa não pode significar apenas uma descrição filosófica mais aprofundada com a qual Sartre queira apenas que sirva como contribuição para o glossário da psicopatologia no verbete masoquismo A subjugação que propõe Sartre levada até as suas últimas conseqüências é maior e mais violenta do que a proposta pela escravidão histórica que não se processava no refino psicoontológico de uma dominação ao nível da que é proposta por ele Quer dizer ao nível do que há de mais característico da pessoa humana que é a sua liberdade e que o personalismo como temos frisado entende como um valor intrínseco ao próprio movimento de personalização ao próprio elã da pessoa em sua luta pelo real Na escravidão da Antiguidade um Epíteto encontrava refúgio nesta instância última e limitadora das ações possíveis do seu senhor1953 na escravidão negra foi necessário a Igreja CatólicoRomana flertar e se valer de uma pseudoteologia baseada no preconceito intrínseco à tradição do intelectualismo grego por via do argumento aristotélico de justificação da escravidão1954 que negava a existência da alma racional no negro africano para justificar o senhorio sobre o seu corpo deste mesmo argumento mas em sua vertente mantenedora de uma antropologia dicotômica e de ojeriza à concretude se valeu a Santa Inquisição para justificar a sua queima dos corpos das pessoas para que se 1951 Introduction op cit p 133 1952 Ibidem 1953 RIVAUD Histoire de la philosophie Des origines a la scolastique tomo I op cit p 472 1954 ARISTÓTELES Política Livro I cap 456 e 7 1253b 1255b 751 salvasse a sua alma racional Todos estes tipos de dominação tirânica e sangrenta tiveram que se debater com o limite imposto pela dignidade humana como vimos tergiversandoa ou negandoa para fazerem valer suas loucuras mas temos de reconhecer que nenhuma desceu tanto aos refinos de um tratamento psicoontológico propondo uma dominação até neste nível mais profundo da pessoa como propõe Sartre Sem querer estigmatizar mas não podendo deixar de lembrar o tipo de dominação proposto pelos modelos totalitários inclusive o do neoliberalismocapitalista que tem se valido dos recursos da psicologia comportamental na intenção de descobrir condicionamentos provocadores de adaptação dos indivíduos a sua estrutura social decadente a reflexão de Sartre sem dúvida sem que ele o deseje se aproxima segundo o que podemos destacar da análise de Emmanuel Mounier mais do sentido das acima descritas do que a uma exaltação contemporânea da liberdade que faça jus a sua densidade ontoaxiológica como concebe o personalismo que como já dissemos se entende como pertencente a um ramo da árvore dos existencialismos Caminhando na análise Mounier conclui que A comunhão das almas sendo assim reconhecida impossível1955 tentarei então a comunhão dos corpos Pelo fato de eu não poder sacar essa liberdade como liberdade eu vou tentar atolála na sua própria corporeidade em sua facticidade e a prender ainda na armadilha mas sua armadilha e não mais a minha Essa artimanha tem diversas táticas Eu posso objetificar o outro pela indiferença1956 Todavia quando Sartre sai do projeto de dominação do outro como objeto pela sua liberdade cativa o que o leva como vimos por causa do malogro ao masoquismo e vai para o projeto de dominação pelo corpo seu novo malogro o leva desta vez inexoravelmente ao sadismo Eis que o círculo se fecha o produto da analiticidade da analítica existencial sartriana se completa em sadismomasoquismo Em sua eflorescência a carne do outro me indica o outro como inacessível De onde a raiva do sádico que procura humilhar esta carne para mortificar uma liberdade que ele não pode subjugar1957 Não nos ocorre desinteressante aqui apresentar a possibilidade de uma aplicação desta conseqüência na observação de que da mesma forma é possível se estabelecer uma relação entre dois pólos tidos historicamente como contrários como são o pólo do 1955 Introduction op cit p 133 s Em nota de MOUNIER Ver sobre este assunto La Nausée 137148 ss 1956 Ibidem p 133 s 1957 Ibidem p 134 752 ascetismo doentio e mórbido negador da corporeidade como criticado por Nietzsche e no outro extremo o pólo da devassidão Por incrível que pareça ambos os contrários se encontram já na Antiguidade como expressão justificadora da ontologia dualista de negação da corporeidade do concreto pelo gnosticismo pagão Em relação a este fenômeno muito expandido e diversificado nas formas que tomou na Antiguidade seus princípios fundamentados sobre um dualismo metafísico que atravessa toda sua ontologia como a fortiori sua antropologia os quais comandam sua ética e portanto sua ascese de purificação podem não obstante muito bem ser identificados Em uma de suas correntes a mais conhecida difundida e criticada equivocadamente como já vimos pelo pensamento contemporâneo como de origem cristã em vista da negação do corpo para a consecução da purificação da alma propõe a conhecida ascese de mortificação do corpo pelo flagelo abstinência sexual alimentar do sono da fala etc Todavia estranhamente dentro desta mesma tradição gnóstica e com base nos mesmos pressupostos metafísicos dualistas de purificação moralreligiosa é proposto com a mesma finalidade e para a obtenção dos mesmos fins anteriormente descritos quanto à primeira vertente a total rédeasolta aos instintos e a tudo que se ligue ao corpóreo quer dizer à esfera não racional ou melhor visceral instintiva pois não podemos esquecer estamos tratando de gnose conhecimento Para esta última vertente não obstante este seria um meio pelo qual o postulante conseguiria cansando e exaurindo o corpo e portanto com a alma mais liberta de suas servidões por hora satisfeitas ficar pronto para a consecução do ganho espiritual1958 Isso ao nosso ver esclarece de certa maneira como supostos contrários na economia geral de uma mesma metafísica e de uma mesma erótica acabam se encontrando1959 Segundo Mounier também Esta mistificação do pseudoespiritualismo foi amplamente desmascarada pelos sarcasmos de Nietzsche pelo modo de Freud e pelo zelo interessado de um grande número de discípulos a bom preço de um e de outro muito felizes de se crerem superhomens rolando em baixo da mesa Falase muito menos da mistificação inversa do ressentimento contra o espírito e a inteligência dos impotentes do 1958 Ver sobre o fenômeno do gnosticismo em PONTIQUE Évagre le Le Gnostique Sources Chretiennes vol n 356 Les Éditions du CERF Paris 1989 estudo introdutório das pp 17 a 40 Ver também ROUGEMONT LAmour et lOccident op cit passim 1959 Outras conseqüências interessantes e importantes para o problema da construção de uma ética contemporânea poderiam ser tiradas dessa problematização cujo alcance se nos parece ir muito mais além do que o de uma simples curiosidade arqueológica todavia isso ficaria fora do escopo desse nosso atual estudo 753 elã espiritual ou do esforço intelectual Seu ódio não é menos primário e farisaico que o ódio dos desprezadores da vida1960 Segundo Mounier mutatis mutandis no esquema da erótica de Sartre em que O outro é por princípio o inaccessível ele me foge quando eu o busco e me possui quando eu lhe fujo1961 Essa impotência segundo Mounier está para Sartre na raiz do sentimento de culpabilidade e de ódio O ódio é ódio da transcendência do outro projeto violento para suprimila1962 Assim o problema que Mounier vê em Sartre é tornar exclusiva uma atitude que não obstante ser parte não é a única possibilidade No entanto seguindo a perspectiva do realismo integral do personalismo de Mounier uma outra questão poderia ser levantada aqui Existirá algum ser humano psiquicamente normal que possa se manter mesmo não levando uma vida em sociedade conseqüente com os pressupostos sartrianos mas a todo tempo ou ao menos de fundo em todas as suas relações com o próximo em todas as suas interpretações do próximo a ferramenta hermenêutica unilateral proposta por Sartre Para Mounier Retomando aqui a distinção de autêntica e de inautêntica1963 impossível de se despojar de qualquer incidência de valor grifo nosso nós diremos que a descrição sartriana é precisamente aquela do ser para outro inautêntica1964 Na verdade para fazer sentido a descrição sartriana só pode ser considerada como uma descrição da relação inautêntica entre os existentes Quer dizer uma descrição verdadeira em sua parcialidade mas sempre uma descrição parcial Segundo a análise de Gabriel Marcel apresentada por Mounier eu não poderia alcançar se a intenção é realmente alcançar o outro como outro ou falando de modo personalista como próximo no encontro do qual se espera densidade existencial real 1960 Traité op cit p 118 1961 Introduction op cit p 134 Em nota de MOUNIER La Nausée 479 1962 Ibidem p 134 1963 Muito querida por Heidegger e a qual ele faz força para não implicar juízo moral e ser tomada apenas como uma descrição mas cujo êxito em relação a tal neutralidade descritiva Mounier não consegue ver cf Introduction aux existencialismes op cit p 115 A visão de Heidegger é mais objetiva que a de Kierkegaard Também sua pintura da vida inautêntica é menos que a de um artista que de um metafísico moralista e sociólogo O existente é continuamente colocado não diante mas na possibilidade de optar entre dois modos de vida a vida autêntica e a vida inautêntica que não obstante certas nuances podese praticamente confundir com a quotidianidade Heidegger se defende energicamente de dar a estas palavras um valor moral mas devese antes constatar que o uso que ele faz oscila constantemente do registro descritivo para o registro normativo É imperdoável que Heidegger esqueça agora da própria lição a de que toda pergunta contém uma resposta o que podemos ampliar para toda descrição é uma prescrição em toda neutralidade estamos comprometidos até o último fio de cabelo com as nossas escolhas mesmo que escolhamos não escolher 1964 Introduction op cit p 135 754 colocandoo como objeto diante de um eusujeito mas somente a partir da presença do outro atingida como fato primitivo da minha experiência existencial1965 O outro para o personalismo pode ser o inferno ou não mas é incontornavelmente o inevitável Portanto para o personalismo tratase de construir o melhor caminho para o outro quer dizer para o inevitável com a consciência dessas suas possibilidades e não só a de uma delas Mas também de ir ao seu encontro desarmado do sentimento de posse de uma metafísica das fatalidades como constituindo a única chave hermenêutica que pode me abrir as janelas da alteridade ou para ser menos otimista as frestas Se eu começo a colocar à maneira cartesiana diz Gabriel Marcel segundo Mounier que minha essência é a de ser consciente de mim mesmo no isolamento de um cogito individual a partir de então não há mais nenhum meio de eu sair e desembocar nos outros Aliás nota Marcel segundo Mounier o eu não se faz existir no Cogito a não ser tomando distância em relação a si mesmo e se tratando como ser visto por um outro interior a dialética do outro como a transcendência é um movimento por sua vez centrifugo e centrípeto para um intimius intimo meo Não há pois segundo Gabriel Marcel em um sentido senão o outro que existe originalmente Ele me obceca1966 Há pois segundo Mounier na unidade de uma intuição original um Sum ergo es Sou logo és que se precisa sob uma certa incidência em um Videor ergo es Sou visto logo és1967 Segundo o diretor de Esprit ir mais longe do que Sartre seria não somente reconhecer a carga de responsabilidade do existente como indicar as causas precisas desta culpa que é a sua indisponibilidade Mas aqui também segundo Mounier o existente não fica como uma unidade isolada no meio de forças cegas pois os eventos são carregados eles também de psiquismo O existente é entre outros e em um mundo que o antecede como nosso mundo1968 Com isso para o personalismo a incidência de uma analítica sobre o outro só do ponto de vista de um eu que se quer forçosamente solitário deve ser completada por uma outra analítica do eu que se vê a si mesmo Ora a reflexão tomada nesse sentido de uma analítica existencial do eu que se vê a si mesmo é para o personalismo um grande passo para a superação do solipsismo que atravessa como 1965 Ibidem 1966 Introduction op cit p 135 Em nota de MOUNIER Être et Avoir 150151 1967 Ibidem p 135 1968 Ibidem p 137 755 tentação ingênita os existencialismos Em vista disso Mounier vai propor como complemento uma análise da indisponibilidade Para o diretor de Esprit a indisponibilidade começa já no cerne das relações que eu mantenho comigo mesmo E sua impregnação do ambiente pelo meu psiquismo para Mounier determina muitos dos equívocos na analítica do outro que não senão indisposições projetadas indevidamente sobre o outro que eu mantenho na verdade antecipadamente para comigo mesmo1969 O olhar do outro do ponto de vista personalista não é o único que pode me fixar como objeto Se fecho sobre mim mesmo a curvatura egocêntrica diz Mounier se eu me torno proprietário de mim mesmo eu desenvolvo em mim uma opacidade que é a fonte da opacidade que eu desenvolvo em seguida sobre os outros1970 Recordemonos diante de Sodoma não foi o ser olhado mas o fato de olhar e de um certo modo os próprios desejos o que petrificou a mulher de Ló1971 Ser olho grande diz o povo para indicar ser avarento se recusar1972 Não é como quer Sartre segundo Mounier a minha liberdade que subjuga mas antes a minha prévia sujeição ao egocentrismo Se em seguida diz Mounier se simula a liberdade há todavia uma substituição de pessoa Ser indisponível estar ocupado consigo mesmo1973 Riqueza da linguagem diz também Mounier in loc Todavia nós também poderíamos dizer inversamente Linguagem da riqueza Ocupado consigo mesmo Cheio de si mesmo Einos segundo Mounier no demasiado cheio de Sartre no emsi imóvel e improdutivo Diz Mounier in loc Nós oferecemos mesmo a Sartre uma magnífica imagem sartriana na qual ele não pensou ele que considera como o cúmulo do atolamento o atolamento açucarado a vespa afogandose em um pote de doce Para cheio de si diz Mounier a linguagem diz melindroso1974 Essa indisponibilidade primeira é para Mounier uma forma crispada do ter1975 A angústia de sentir as minhas posses entregues ao tempo faz com que eu me volte ciumentamente sobre elas o sentimento de que elas podem ser dilapidadas ou esgotadas me torna avaro de mim 1969 Traité du caractere Oeuvres II principalmente capítulos II e III II Les provocations de lambience I Lambience colective pp 72 a 113 e III Les provocations de lambience II Lambience corporelle pp 114 a 165 1970 Introduction op cit p 137 1971 Ibidem 1972 Ibidem Em nota de MOUNIER Être et Avoir 1314 1973 Ibidem p 137 Em nota de MOUNIER Être et Avoir 105 1974 A tradução do original Francês confit seria uma outra palavra mas cujo significado não expressaria o sentido da idéia do texto traduzida para o Português 1975 Introduction op cit p 137 Em nota de MOUNIER Être et Avoir 122 148 217 756 mesmo e me leva a uma concepção avara do mundo1976 É aqui que esta atitude fundamental segundo Mounier gira sobre si mesma de mim sobre o outro O outro então segundo Mounier se torna aquele que ameaça minhas posses mundanas ele me surge somente ou sob o aspecto de um estorvo possível ou de uma aquisição a inventariar o interesse kierkegaardiano nota Mounier não é senão uma forma estética dessa última perspectiva1977 Assim conclui o diretor de Esprit é num projeto prévio de indisponibilidade e não na liberdade de sujeito que eu alcanço o outro como objeto e é na mesma disposição que eu me reduzo a recebêlo como invasor1978 Por outro lado segundo Mounier tudo é diferente se eu me coloco ao olhar de mim mesmo e do outro em uma atitude de disponibilidade Deixo de pensar em mim mesmo como ser a proteger Eu sou aberto ao mundo e ao outro eu me presto a sua influência sem cálculo nem desconfiança sistemática1979 É nesse ponto que Mounier retoma uma análise do conceito de repetição kierkegaardiana quer dizer o de fidelidade criadora1980 Esta segundo Mounier não é somente constância análoga à permanência de uma lei identidade fixa ao modo do emsi sartriano mas presença sempre disponível ao outro e por aí sempre nova É o que se chama a repetição kierkegaardiana segundo Mounier1981 Ela é criadora pois os dados do meu engajamento segundo o diretor de Esprit se modificam perpetuamente no decurso do caminho ela reinventa perpetuamente a continuidade do seu destino1982 Em experiências como estas a presença do outro em vez de me fixar aparece pelo contrário segundo Mounier como fonte de méritos e sem dúvida necessária à renovação e à criação1983 A repetição kierkegaardiana evoca aqui o que já temos dito em outros lugares desse estudo sobre o pensamento de Mounier é Eros cativo por Agápe única maneira de fazêlo gerar verdadeira vida e não morte imprimindolhe um verdadeiro movimento ou transcendência quer dizer para o personalismo verdadeiro movimento de ser ou ainda de mais ser 1976 Já que é para usar a linguagem popular no Brasil há uma muito boa e que se encaixa aqui perfeitamente nesta análise da projeção do psiquismo que é feita por Mounier Ela diz Todo malandro é desconfiado 1977 Introduction op cit p 137 Em nota de MOUNIER Du refus 989 1978 Ibidem p 137 1979 Ibidem 1980 Ibidem p 138 1981 Ibidem 1982 Ibidem Em nota de MOUNIER Être et Avoir 39 s Du refus 199 s Homo Viator chap Fidélité et obéissance 1983 Ibidem p 138 757 Além do olhar objetificante de Sartre Mounier observa que há a possibilidade do olhar purificador o olhar do outro me tira de minha posição cômoda do meu comodismo de minhas seguranças de minha instalação essa ao lado da indiferença o grande pecado existencial para o personalismo1984 Novamente tudo vai depender de minha indisponibilidade ou de minha disponibilidade O olhar do outro me despoja com efeito diz Mounier mas me despoja de mim mesmo de minha opacidade egocêntrica desse encobrimento dessa película que sou para mim mesmo na solidão A experiência nos diz segundo Mounier a cada dia o valor revelador da opinião que os outros têm a respeito de nós mesmos quando efetivamente nola querem dar ou simplesmente a lucidez que elas despertam em nós pelo simples peso silencioso do seu olhar1985 Sozinhos conhecemonos mal e julgamonos mal diz o diretor de Esprit A maledicência segundo Mounier in loc tem quase sempre mais razão que a introspecção Não é somente o olhar generoso do outro segundo Mounier que nos anima mas mesmo o olhar hostil ou indiferente isso se eu estiver eu que o recebo em estado de disponibilidade Para Mounier é o isolamento que desemboca no sono existencial do emsi Koehler diz Mounier in loc demonstrou que a inteligência se opõe ao instinto ao introduzir um desviou para contornar o obstáculo O mais longo caminho da mão ao objeto é segundo Mounier in loc muitas vezes o mais curto caminho de meu desejo em sua satisfação Parece que o mais seguro caminho de mim mesmo a mim mesmo no conhecimento e domínio de mim mesmo passa pelo desvio do olhar do outro O outro é assim conclui Mounier o cooperador de minha vida espiritual mais íntima e podese dizer com Gabriel Marcel segundo Mounier que por conseguinte a vida espiritual é o conjunto das ações pelas quais nós tendemos a reduzir em nós mesmos a margem de indisponibilidade1986 Para tanto a experiência de um secreto em mim leva Mounier a buscar o sentido do pudor que tem um alcance sempre relacional e não de experiência solitária Não tenho vergonha de ser isto perante os outros1987 Aqui Mounier esboça a necessidade das máscaras necessárias à exposição da pessoa na sociedade mas sem que nenhuma delas defina em última instância aquilo que permanece sempre o seu secreto o seu mistério É a 1984 Ibidem 1985 Introduction op cit p 138 1986 Ibidem p 139 1987 Ibidem p 138 758 partir daqui que Mounier desenvolve em seus escritos os temas da crítica personalista ao preconceito social em relação às profissões consideradas como contendo em si pela sociedade burguesa um elemento de inferioridade e de superioridade fonte alimentadora de todo complexo de inferioridade1988 Para Mounier Tenho vergonha de não ser senão isto ou antes de só parecer ser isto eu que sinto em mim a possibilidade de ser infinitamente mais e nos outros no seu apelo ou na sua censura a exigência de ser infinitamente mais Veremos mais à frente o importante papel da censura dos outros de sua provocação que pode nos ajudar segundo Mounier a sair de nossa instalação e cooperar com nossa vida espiritual mais íntima Para Mounier então o homem poderia ser definido como um ser capaz de vergonha1989 Já dissemos que o pudor é uma experiência relacional antes que de isolamento pois bem para o personalismo que elege o relacional como experiência originária do ser existem duas filosofias da primeira pessoa e não apenas uma como se tem o costume de colocar Contra as filosofias da terceira pessoa mas pesando também contras as filosofias que enfatizam só uma das possibilidades da filosofia da primeira pessoa o personalismo de Mounier quer pesar ao lado desta ênfase unilateral da primeira pessoa como filosofia do eu a filosofia do nós Nesse sentido o personalismo de Emmanuel Mounier representa na história da filosofia ocidental um trabalho filosófico cujo sentido fundamental é o de cooperar para instauração deste novo Cogito Segundo Mounier o comooutro o nós segue rigorosamente a concepção que se faz do parao outro1990 Para um Scheler um Buber um Gabriel Marcel segundo Mounier a experiência introduz em uma comunicação de sujeitos diálogo encontro autêntico no qual eu não trato o outro como natureza mas como liberdade mais do que isso colaboro com a sua liberdade como ele colabora com a minha Se o outro não é um limite do eu mas uma fonte do eu a descoberta do nós segundo Mounier é estritamente contemporânea à experiência pessoal O tu é aquele em que nós nos descobrimos e por quem nós nos elevamos surge então no seio da imanência como no seio da transcendência O encontro não destrói a intimidade ele a descobre e a eleva O encontro no nós não facilita apenas entre o eu e o tu uma permuta integral ele cria um universo de experiência que não teria 1988 O espaço atual não nos permite entrar nessa crítica 1989 Introduction op cit p 138 1990 Ibidem p 140 759 realidade fora desse encontro1991 Aqui novamente somos remetidos ao resultado da soma de 11 que sob o modo de ser do artefato na perspectiva do personalismo para quem a identidade é a morte deve ser buscado como do que 2 Eis mais um elemento que compõe a crítica personalista de Mounier ao pensamento póskantiano que parece ter se instalado no aquém da razão complemento que o personalismo vê como necessário à velha crítica kantiana do além da razão como já dissemos Segundo Mounier Aquele que tem consciência da vaidade do ser e da vida diz Heidegger não tem o desejo de se imiscuir no destino do outro respeita o que é1992 Todavia para Mounier este tingimento de respeito que mesmo se prestando como contrapondo à tolerância altaneira do liberalismo flerta com um indiferentismo não menos altaneiro Parece mesmo que respeito aqui é usado mais no sentido de indiferença que é para o personalismo um outro tipo de derrelição além do que como temos dito o grande pecado existencial Para Mounier tratase de um Sentimento pobre do qual mal se vê como se pode tirar uma comunhão1993 Já quanto ao discípulo de Heidegger o qual tira alguma conseqüência do respeito heideggeriano diz Mounier Sartre pensa ver no pensamento do seu mestre um vínculo semelhante ao que há numa equipe com a sua pesada existência em comum numa tarefa a cumprir onde cada um no silêncio de uma solidão justaposta a outras solidões é contudo atravessado pelo rumor grifo nosso de uma colaboração Da equipe a sua imagem desliza bem depressa para a da galé1994 O solipsismo sartriano segundo a análise de Mounier é um impedimento de qualquer possibilidade de comunhão autêntica Há sem dúvida uma experiência psicológica desta natureza reconhece Mounier no modo de me sentir no meio dos outros mas não tem fundamento ontológico grifos nossos Ora com esta observação o alcance do pensamento sartriano que se propõe ser uma ontologia fica bem limitado e passível de uma crítica tanto psicológica quanto sociológica totalmente justificada1995 Já tivemos a oportunidade de falar muitas vezes do elemento de ambigüidade que para Mounier compõe a exteriorização da pessoa tema que atravessa todo o Traité du caractère Essa consciência da ambigüidade ingênita no âmbito do psicológico onde 1991 Ibidem 1992 Ibidem p 141 1993 Introduction op cit p 141 1994 Ibidem p 141 1995 Ibidem 760 tudo é ao mesmo tempo causa e efeito é também em Mounier o que vai sempre pontuar o antidogmatismo do seu personalismo tanto em relação ao moralismo Não julgueis para que não sejais julgados1996 quanto em relação ao amoralismo O homem espiritual julga todas as coisas1997 É nesse sentido também que Mounier entende que todo ato de exposição é um ato ambíguo Para o diretor de Esprit mesmo num ato de indisponibilidade como o da vaidade e da honra pode se ocultar um sentido válido de defesa e mesmo num ato de exposição do que tenho pode se ocultar a vaidade que no duplo sentido deste ato fica semiexposta1998 Todavia o que poderia haver de oferta nesse meu ato de exposição é segundo Mounier logo retirado pelo cálculo No entanto o diretor de Esprit vê que a presença do outro não teria as conseqüências tiradas por Sartre como vimos antes se ela não ficasse limitada a ser uma presença social Sobre isso diz Mounier É talvez por se limitar a ser prospectiva que a transcendência de Sartre não consegue ultrapassar o plano horizontal da usurpação1999 Para que o outro deixe de ser concorrente segundo Mounier é preciso que nele em mim e no mundo eu consiga realizar a experiência do inexprimível Ora aqui tocamos numa questão fundamental na verdade num verdadeiro divisor de águas Não há nada de gratuito nesta afirmação de Mounier da necessidade de se fazer a experiência do inexprimível Na verdade aqui Mounier segue conseqüente com sua ontologia em que o ser é transbordamento Essa característica do ser como transbordamento é a única coisa que pode decepcionar realmente toda investida inventariável sobre o ser Em relação à pessoa a experiência do inexprimível é o que pode possibilitar segundo o personalismo a reconfiguração não somente de uma apreensão do ser como o lugar do inventariável para a de superabundância como também é o que possibilitará à pessoa a partir da conseqüente tomada de si mesma como inscrita na não inventariabilidade do ser apreender também o outro dentro desta mesma experiência de superabundância que como Mounier gosta de se exprimir será já a marca de uma experiência transfiguradora Transfiguração a que à pessoa criadora é chamada a realizar sobre todos os dias de sua existência nessa terra 1996 Evangelho de Mateus 71 1997 1 Coríntios 215 1998 Introduction op cit p 139 Em nota de MOUNIER Être et Avoir 234 1999 Ibidem p 139 761 Já dissemos muitas vezes que a transcendência em Mounier implica um movimento real de transcendimento e não apenas um patinar na esteira aeróbica que pode enrijecer os músculos mas não promover nenhum avanço à frente Diante do costume tal como se estabeleceu no Ocidente através da pregação do racionalismo burguês de ver e colocar o mundo todo e as pessoas como sempre disponíveis e passíveis de objetificação e já que o personalismo é tratado aqui como uma filosofia contemporânea de crítica a essa modernidade decadente nada mais justo que contar com a possibilidade de uma experiência do inexprimível frente a este costume nefasto de objetificação Há razão em se colocar essa necessidade tanto porque a revelação da pessoa só pode ser apreendida como temos tentado expor até aqui fora de qualquer iventariabilidade Por outro lado para não se colocar o problema da objetificação como se tratando da necessidade de reposição de uma nova objetificação como a ontologia de Sartre parece apontar além da transcendência em Mounier implicar um movimento real devese colocar como já vimos a questão da transcendência como direito Ou seja como o limitativo da vontade de contenção própria a todo racionalismo e reducionismo teórico espiritual instintivo biológico material cultural etc que queira tomar a pessoa unilateralizada nessas suas manifestações pontuais para melhor comodidade em sua investida de contenção nessas suas expressões parciais da sua expressão mais própria de ser para a liberdade e ser para a vida segundo o personalismo de Mounier Esse direito à transcendência será o impeditivo a toda vontade de reducionismo da pessoa a epifenômeno social ou a outro qualquer Para Mounier esse inexprimível eu o experimento nessa experiência de transcendência com a qual a transcendência sartriana só tem de comum o nome2000 Podemos dizer que do ponto de vista do personalismo e diante do que já dissemos se há uma experiência necessária que toda crítica à modernidade deve tentar realizar para não ser apenas uma nova versão da modernidade em linguagem contemporânea é essa experiência do inexprimível Não se trata aqui de esperar que todas as pessoas se tornem místicas do inefável nem se trata também de floreado subjetivista de ranço pseudoreligioso mas do desenvolvimento como cultura como costume de uma nova compreensão e perspectiva do problema do ser Não é à toa que a equipe de Esprit enxergase desde o seu lançamento lançada diante de uma crise de civilização e de uma 2000 Introduction op cit p 139 762 revolução emergente Essa experiência requisitada a todos para o personalismo é o que vai dar o alcance geral do espectro cultural que a revista Esprit desde o seu lançamento sempre quis alcançar arte ciência filosofia educação religião etc Será através destas expressões transfiguradas segundo Mounier que este novo costume poderá ser incentivado Um novo costume de ver através da experiência do inexprimível uma inscrição mesma e uma dimensão própria do ser e da pessoa como não inventariáveis Experiência cujo alcance ético será o de ver inscrita nas coisas e nas pessoas ao redor um princípio de indeterminação que só o movimento de personalização confere Princípio limitador de minha vontade de objetificação que tem sido a característica principal da hybris moderna É pelo cultivo desse novo costume da experiência do inefável que poderemos perspectivar melhor e complementar o sentido da resposta que tentamos delinear nesse nosso estudo do personalismo de Emmanuel Mounier à pergunta segundo o personalismo que é a mais fundamental da ética Pergunta cuja densidade e intuição axiológica o personalismo vê como sendo formulada e desvelada mais e mais ao longo da história pelo movimento de personalização ou como nós aqui denominamos movimento de emergência e insurgência da pessoa humana na história Movimento em relação ao qual a reflexão personalista pretende contribuir para tornálo mais evidente na elocução e esclarecimento dessa pergunta fundamental da ética Tratase da pergunta que se delineia pela consciência que se constrói a partir da intuição e do crescente sentimento de uma irredutibilidade intrínseca ao próximo e que se recusa as minhas objetificações teóricas ou práticas Intuição e sentimento que cresce dialética e dramaticamente ao mesmo tempo em que eu percebo em mim limitações também crescentes em relação a esta irredutibilidade original intrínseca ao próximo a este mistério do qual também por outro lado me vejo partícipe no encontro com ele somente como pessoa e não como indivíduo Assim o encontro porque compartilha de todos os constituintes próprios do universo da pessoa não pode ser realizado por indivíduos reivindicadores mas só por pessoas Tratase da pergunta ética fundamental que o discurso liberal atual e seus pares moral burguesa economia de irresponsabilidade do capitalismo e seu mundo do dinheiro antropologia do individualismo reivindicativo epistemologia racionalista da objetificação e dominação pseudoreligião justificadora do statu quo meios de comunicação de massa que engendram 763 o embrutecimento humano juridismo abstracionista mantenedor da injustiça essencial pseudodemocracia parlamentar representativa etc procuram neutralizar e esvaziar em seu sentido fundamental através do chamado discurso politicamente correto pois conhecem muito bem o seu núcleo axiológico criador e explosivo Núcleo este que liberado comprometeria imediatamente a pseudolegitimidade que tem se mantido historicamente ao custo de muita ludibriação humana por parte de todas as velhas instituições burguesas liberais necrosadas Tratase da seguinte pergunta fundamental da ética filosófica Por que devo respeitar o outro cuja resposta para o personalismo se encontra além e aquém do que pretende a tolerância cantada pelo juridismo abstrato liberalburguês sempre cioso pela busca de acomodação dos vividos aos seu moldes engessantes e acomodatícios Enfim poderíamos dizer até que a necessidade dessa experiência do inefável colocada por Mounier antes que uma pura questão teóricofilosófica e Mounier nunca fora ingênuo a ponto de pensar que nesse nível de problemática tratese só de questões teóricofilosóficas é sem exagero para a humanidade uma questão de vida ou morte2001 2001 Ibidem 764 CONCLUSÃO Ao entrar em um sebo da cidade de São Paulo pude notar na estante de filosofia um livro intitulado O pensamento de Emmanuel Mounier A Editora eu já conhecia Paz e Terra Os livros que havia lido lançados por ela sempre me foram de grande valia Todavia confesso que o nome do autor sobre quem se escrevia não me atraiu muito Se fosse Immanuel Kant ou Emmanuel Lévinas eu não teria titubeado Como diz o ditado Faça fama e deite na cama Naquele momento de indecisão Levo ou não levo movido por duas forças antagônicas a da compulsão de freqüentador de sebo que encontra uma obra de filosofia área de preferência por um preço bem acessível e a da dúvida de se tratar de obra anódina ou não venceu a voz de um terceiro entre eu e aquele objeto celulótico Um amigo que se encontrava comigo vendome naquele impasse disse Bem se alguém se dispôs a escrever um catatau desse de 385 páginas sobre o pensamento deste autor é porque ele tem alguma coisa a dizer Concordei tomei o livro li o Índice e gostei dos tópicos Fui para casa e li no ônibus numa sentada o primeiro capítulo Emmanuel Mounier O cristão no Mundo Foi o suficiente para eu perceber não somente que estava diante de um livro sobre a filosofia de alguém que era diferente de tudo que eu já havia lido confesso que eu não havia lido muito coisa como também para eu perceber que estava diante de uma grande provocação A leitura do livro de Moix convenceume da pertinência do pensamento de Emmanuel Mounier como pensamento contemporâneo Mais tarde a minha leitura das obras de Mounier em Oeuvres e outros textos de Mounier e sobre ele confirmaramme a cada passo nessa constatação Assim propus ao Departamento de Filosofia da USP e sob a orientação do professor Franklin Leopoldo como projeto de estudo acadêmico de dissertação a realização desse ensaio aproximativo aos temas diretores da reflexão de Emmanuel Mounier Este projeto foi aceito e pelo que agradeço Creio pelo que apresentei como resultado de minhas leituras ter preenchido os requisitos mínimos que constituem um trabalho como esse não obstante as proporções a que inevitavelmente chegou Mas a isso eu acredito dar uma explicação plausível a característica extremamente selvagem do pensamento de Mounier e a interdisciplinaridade voraz que 765 compõem o seu trabalho crítico Para o humanismo radical assumido por Emmanuel Mounier e os personalistas tudo que é humano lhes interessa Mounier como ele mesmo disse começou a falar numa idade em que deveria antes aprender e faleceu aos quarenta e cinco anos de idade em 22 de março de 1950 numa idade em que se deve ter algo a dizer Nesse sentido podemos dizer que esta morte repentina de Mounier interrompeu um pensamento que começava a colher seus frutos como um pensamento amadurecido Fruto de uma meditação profunda e ao mesmo tempo de uma presença marcante aos eventos mais turbulentos da história ocidental Meditação engajada no cumprimento de sua vocação como intelectual francês e contemporâneo Nesse sentido com isso não queremos desculpar as noções mal buriladas as idéias lançadas mas ainda em gestação enfim não queremos desculpar o que possa parecer uma fraqueza na obra de Mounier Pelo contrário esse caráter frágil essa assunção clara da própria precariedade esse elemento de itinerante é mesmo o que mais nos atraiu Muitas vezes com a característica de um leve aceno todavia é justamente o que se destaca como a marca constante em Emmanuel Mounier de sua ojeriza visceral aos dogmatismos e aos pedantismos arrogantes declarados ou disfarçados de bomsenso ou de pura descrição de como as coisas são Com a filosofia de Mounier assim como Sócrates podese ter um contato direto com o humano Na discussão dos temas personalistas mais áridos e nos diálogos mais densos a pessoa concreta está lá como uma presença constante É nesse sentido que uma crítica ao seu pensamento que releve suas fraquezas não é somente sentida na obra escrita mesma de Mounier homem de diálogo irrestrito como respeitada por ele mas na verdade como desejada ardentemente O que mais Mounier queria na vida era encontrar pessoas com a consciência de que isso significaria encontrar problemas Nesse sentido e não obstante essa fraqueza assumida por Emmanuel Mounier se não nos esquecermos de que ele tirou o segundo lugar na Sorbonne atrás de Raymond Aron e da situação na qual ele pode escrever a maior parte da sua obra mais densa o Traité du caracrtère quer dizer num dos poucos retiros que sua atividade de intelectual engajado lhe proporcionou ou seja no regime duro das prisões sob o governo fascista de Vichy poderemos fazer alguma idéia das capacidades intelectuais de Emmanuel Mounier e perceber que esta fraqueza assumida corresponde inteiramente ao verdadeiro espírito desse filósofo contemporâneo Enquanto vemos por um lado os ódios as arrogâncias as indiferenças o 766 desrespeito a falta de humildade a vaga para os autoritarismos centralizados e pulverizados pela falência da autoridade a manutenção imperiosa com a conivência de todos do disparate e da imbecilidade nas nossas atuais sociedades democráticas neoliberais e burguesas a violência e barbárie difusas por outro lado vemos a reflexão de Mounier não só como mais uma crítica à modernidade mas como um verdadeiro antípoda a ela quer dizer não um mascaramento em linguagem contemporânea dessa decadência Com isso entendemos fazer justiça cumprindo um outro requisito desse estudo contribuindo para a retomada da filosofia personalista de Emmanuel Mounier como pensador contemporâneo à qual cremos devese também dar ouvidos Não obstante a proporção que tomou nosso estudo explicada pelas razões antecedentes o tema do federalismo da arte da educação do imperialismo do corpo da situação da mulher ou como diria Mounier desse proletariado espiritual que ainda não conseguiu manifestar irradiar e afirmar as potencialidades da feminilidade na sociedade que ainda continua sendo a dos machos e outros etc permanecerão temas para tantos outros estudos 767 APÊNDICE Traduções MANIFESTO DE LANÇAMENTO DA REVISTA ESPRIT DE FONTROMEU2002 Grupos de estudos preparam e prolongam a obra da revista Seus delegados se reúnem em FontRomeu em um Congresso que trabalhou para definir uma linha de pensamento comum e sobretudo para marcar as direções gerais das pesquisas posteriores Eles resumiram seus trabalhos nos textos abaixo Não obstante a unidade de tendência de nossos colaboradores este documento não os compromete com nada nem por seu conjunto nem em seus detalhes A origem do nosso acordo é uma comum impossibilidade de viver Se a desordem não tivesse sido tão profunda talvez nós também tivéssemos continuado a ignorála e a permanecermos inertes Temos sido empurrados para esse extremo pelos fatos devemos ter a humildade de reconhecer e sem dúvida é a gravidade do mau que nos tem obrigado a remontar até a sua fonte de encontrar em comum os princípios sem os quais nenhuma existência é possível Nessa profundidade vêse a essência do ser humano ser comprometida e as desordens que parecem ocasionais se revelarem orgânicas Nossos esforços ultrapassam pois infinitamente o que os tem despertado eles perseguem uma revisão ou um aprofundamento de todos os valores no espírito e na cidade Somente uma doutrina espiritualista levará os seres humanos a essa ordem da qual temos sentido a necessidade Nossas respectivas metafísicas não coincidem em toda sua extensão mas estamos de acordo sobre uma base suficiente que nos permite confrontar com mais amplidão nossas divergências e seguir sempre para o encontro de novos elementos comuns Essa primeira zona de acordo irradia em torno dos seguintes princípios liberdade dignidade humana e amor Nós não os propomos como um sistema fechado cada um pode prolongálos ou integrálos em sua própria visão do universo 2002 LUROL Gérard Mounier I Genesè de la personne op cit pp 297 ss 768 A liberdade não é a simples tomada de consciência de um determinismo Ao menos no âmbito do humano a noção mesma de determinismo é inaceitável Só se pode estabelecer uma evolução quando já é muito tarde de um ponto de vista puramente histórico e da qual não se tem o direito de tirar nenhum prolongamento inelutável para o futuro É certo que um estado de fato impõe a qualquer atividade humana os limites os constrangimentos e mesmo às vezes uma direção mas é falso confundir esta compartimentalização imposta à liberdade pela matéria com a sujeição do espírito à matéria É neste sentido que nós nos opomos ao materialismo histórico Existe um único caso em que o materialismo traduz a realidade é quando o ser humano renuncia aos valores espirituais que ele tem a liberdade de realizar O materialismo histórico tem pois uma verdade na medida em que ele descreve e anuncia uma sociedade desespiritualizada São os abandonos que têm nascido do capitalismo que fazem a verdade provisória do marxismo A liberdade tem sua base na espontaneidade do ser humano Mas essa espontaneidade em estado puro não é ainda a liberdade A liberdade escolhe seus objetivos E mesmo quando um único caminho lhe é oferecido permanece ao ser humano o dever de apreciar e de situar sua ação em relação ao seu ideal A liberdade implica com efeito um ideal o amor Acima de toda pessoa humana existe essa realidade que a atrai a obriga e da qual o ser humano reconhece por conseguinte a eminente dignidade Ele aí participa na medida em que a realiza É a maravilha do amor cuja grandeza o ser humano sente subitamente quando consegue sair de si mesmo O amor exige um desenvolvimento pessoal sem o qual ele seria um dom cada vez mais empobrecido Mas este desenvolvimento só mantém o seu valor se for orientado É a presença do amor no mundo que dá a este sua direção e suas hierarquias O individualismo é um cultivo2003 de si não dirigido e quase tão primitivo quanto a espontaneidade pura em relação à liberdade O amor é pelo contrário uma renúncia ao mesmo tempo em que uma afirmação A renúncia aí não é total mas convida a uma permuta com o ser amado A personalidade não somente se salvaguarda aí como aí ela se renova e se enriquece sem cessar os seres só se realizam em conjunto 2003 No original francês cultura 769 Nossa vida espiritual atravessa livremente o interior de nossa vida privada que é a encarnação em nós do espírito O primado do espírito é aqui particularmente necessário Ele já se irradia em nossa vida carnal mas neste nível de nosso ser os hábitos sobretudo nos constrangem com um peso potente e quando se solidificam em nossa carne tendem a tornar o espírito opaco Nós nos interessamos por tudo o que cada ser humano vive a cada dia O amor de um homem por uma mulher é uma das formas mais primitivas e no entanto uma das mais ricas para o ultrapassamento de si mesmo Esse encontro permanente entre dois dons esse acordo entre duas carnes o primeiro resultado contém a promessa de novas manifestações Elas se completam na formação do corpo e da alma do filho ao longo dos inícios de sua vida na família A família representa uma ampliação do amor mas ela corre o risco de se fechar sobre si mesma valor privado ela não deve se tornar o primeiro refúgio do egoísmo social O ser humano quando se dedica a uma obra não faz de si um dom menos total ela exige tanto sua carne quanto seu espírito O trabalho quotidiano é a obra comum do ser humano aquele aproxima este sem cessar de seus companheiros por mais gratificantes antes que possam ser as coisas A camaradagem nasce na ocasião de uma obra comum Um encontro também pode ser suficiente às vezes um constrangimento e os inimigos podem provála quando o sofrimento pesa mais sobre eles que o seu ódio Entre os seres humanos atrelados a uma mesma tarefa esta se nuança de simpatias particulares mas no fundo permanece a comunidade de vida ou de obra é esta última que é a carne da camaradagem A amizade é uma camaradagem recolhida Ela se forma ao longo da obra ao longo da vida e quando surge bruscamente é porque dois corações têm concluído a meditação em separado Essa meditação pode se realizar através das gerações e quando ela é realizada sobre um mesmo solo as coisas mesmas conservam a sua estampa e nos transmitem o seu atrativo A pátria é uma amizade A vida privada desenvolve assim toda uma classe de amor da solidão humana até à humanidade A arte por reaproximar a expressão da inspiração é um meio pelo qual a matéria pode ser transfigurada 770 Uma arte que tenha cumprido mal sua missão toca pouco os seres a arte se empobrece se uma elite a monopoliza Por outro lado a partir do momento em que à força de disciplina ela chega a comandar estes ares em que os seres humanos são formados ela conduz toda a natureza deles em direção à verdade que lhes estava perdida ela se torna como que um profeta das realidades esquecidas A arte é uma atividade do espírito Os surrealistas têm tido o mérito de afirmar isto Mas não têm estabelecido uma dissociação suficiente dos ritmos dos hábitos dos falsos artistas Sobretudo marchando para a revolução eles têm se detido na anarquia Eles têm demonstrado bem a linguagem mas deixam ao acaso não ao espírito o cuidado de reconciliar as palavras e acabam salvo em golpes do acaso em junções enganosas ou a que o imprevisto atraiçoa qualquer labor É pelo arranjo do amor e do que ele não inspira dessa confusão de rumores que as linguagens devem ser extraídas Uma palavra que ressoa no espírito reúne o princípio que a inspirou e se expande em torno dele como um infinito silêncio Nossa oposição aos surrealistas tem essa gravidade Nós buscaremos avidamente as palavras desconhecidas que se desfazem na presença do amor É na presença da desordem social que a revolução é mais urgente e mais grave de conseqüências Convém preparála na intransigência dos princípios O oportunismo doutrinal é a aceitação da escravidão social Quando a injustiça reina é sempre a ela que se faz concessões Os que pretendem ter o monopólio da revolução propõem um método crítico e construtivo Como não seria ele sedutor Com ele se deseja eliminar a utopia sempre possível em uma condição humana e procurando na presente sociedade os germes da sociedade futura se recusa aos pensadores o poder de preparála Nós também somos os oprimidos mais do que outros Esses vêem as últimas forças de uma civilização cujo papel tem chegado ao fim reter o presente nas bordas de um mundo por sua vez inevitável e desejado Eles têm esperado da injustiça realizada o nascimento do sentimento da justiça nós a temos conhecido desde o início Eles se batem por um sentimento recente e limitado como sua fonte nós lutamos pelo triunfo do que é eternamente indispensável à existência humana Eles crêem que o ser humano recebe do evento a libertação conforme o ideal tem concebido enquanto que só a liberdade pode criar 771 o mundo conforme os princípios aos quais ela se tem dado Eis aí a utopia Ela não é menos grave que aquela do devaneio Durante um momento o capitalismo creu que iria suprimir os seus vícios e os inimigos que ele forma contra si mesmo Ele então se lançou na mística de uma produção indefinidamente crescente Contra um determinismo que o condenaria ele quis endireitar a sua maneira e justificar pelos sucessos uma lei de evolução contrária Ele creu que a racionalização lhe permitiria ultrapassarse sem se renunciar Convencido de que a ordem social ficaria irresoluta com a distribuição do dinheiro ele pensou que domesticaria o trabalhador pelo bemestar Ele ficaria a salvo A crise arruinou mesmo o efeito destes remédios limitados São estes que a têm provocado é a superprodução que tem engendrado o desemprego e a miséria Assim fica demonstrado que o capitalismo não tem podido manter por um instante a ilusão de ultrapassar seus erros sem que se condene a agraválos em um futuro imediato No outro lado do mundo o capitalismo tem se desmoronado Mas a exploração tem sobrevivido O comunismo tem substituído a espoliação de uma classe possuidora pela de uma casta dirigente Impelir os trabalhadores para uma revolução que entregará a mais valia à sociedade e ao mesmo tempo o poder a um partido é abusar da confiança A espoliação é fatal enquanto a gestão for dada a uma clientela cada vez mais grossa de funcionários improdutivos e irresponsáveis Entre os trabalhadores e o poder a experiência interdiz que se aceite qualquer intermediário parasita A burocracia nasce de toda realização comunista Os trabalhadores da União Soviética têm ainda que fazer a revolução Todavia é necessário se desembaraçar desse capitalismo gerador de anarquia de desperdício e de injustiça Ele pretende se defender em nome da propriedade privada e a tem pervertido e confiscado Ela é uma condição da criação livre e ele a tornou uma tentação do egoísmo e do lucro ela deveria ser repartida entre todos e ele concentra de maneira selvagem seus atributos reais nas mãos de alguns privilegiados É quando se crê na virtude da propriedade privada definida de um ponto de vista espiritual que se é constrangido no intuito de salvaguardar e generalizar os benefícios a limitar o seu domínio no estado do mau presente e em toda a vasta medida em que as necessidades do bem comum e a salvaguarda da própria pessoa o exigem 772 É o funcionamento mesmo da economia capitalista que com seus desvios impostos à propriedade privada mantém a injustiça social e a agrava por sua anarquia Uma organização só pode aí colocar um fim perpetuando as garantias que a sociedade deve dar ao ser humano através de suas instituições Aos abusos de ordem privada e social dos quais a economia atual é a causa não se levará remédio a não ser dominando todo bem e todo mau dos quais a economia é capaz perseguindo aí a felicidade material dos seres humanos em vista do seu desenvolvimento espiritual A gestão das empresas deve ser dada aos trabalhadores em qualquer nível da técnica ou em qualquer modo de trabalho que eles se situem Nenhuma classe possuidora ou burocrática deve ser criada na ocasião dessa gestão para os lesar Assim será derramada sobre todos a dignidade de ser livre ao mesmo tempo que responsável benefício em nome do qual se defende a propriedade privada mas que nós não podemos mais distribuir a não ser por este meio Disto resulta que os benefícios devem ser distribuídos integralmente aos trabalhadores por intermédio dos organismos dos quais eles mesmos são os membros levando em consideração as necessidades de cada um apreciadas nas medidas as mais amplas e nos sentidos os mais elevados A concorrência que parece ser inicialmente a expressão da liberdade é na realidade a sua negação O mais forte esmaga o mais fraco Assim a instituição de um plano econômico é a garantia necessária dos direitos privados Este plano criado para os trabalhadores é por outro lado a emanação do seu pensamento são eles mesmos com efeito que asseguram por seus representantes da mesma forma que a gestão e a repartição dos benefícios a tarefa de edificação do plano Uma das alavancas essenciais para a destruição do capitalismo e a organização de um regime econômico novo é a socialização do crédito que permitirá regulamentar o financiamento das empresas e por conseguinte submeter sua atividade às diretrizes do plano Este será também a base de uma política monetária nova O plano tem seu complemento em uma orientação profissional Uma orientação contínua da criança no sentido que um estudo minucioso e inteligente de suas aptidões e de seus talentos revelará é o meio mais realista de dissociar o esforço do lucro Cada ser humano é talhado para uma tarefa e este é mais feliz se aí for colocado pois aí somente ele 773 toma plenamente consciência da missão que deve cumprir Assim desaparecerá a triste crença de que há as belas situações e as outras A orientação começa pela formação da criança a fim de que seu trabalho seja mais fecundo para a sociedade tanto porque aquela é para esta a mais amada quanto porque é a sociedade que lhe dá sempre por conseguinte os meios materiais de se desenvolver plena e livremente Desde a idade onde surge a necessidade de orientação o orientador deve exercer uma direção preponderante A criança que permanece aliás em sua família deve participar o máximo possível fora da escola na vida em comum sob todas as suas formas A instituição do plano não introduz nenhuma rigidez nas formas do Estado pois ela não é senão o prolongamento da gestão pelos trabalhadores De maneira mais geral sendo a sociedade posta a serviço da pessoa não somente a gestão da economia mas tudo o que comporta o governo é distribuído nos diversos degraus geográficos onde se agrupam as coisas e os seres humanos A descentralização que permite conhecer as necessidades das pessoas e as fazer participar em um poder sempre próximo é pois por sua vez a garantia e o exercício da liberdade Este poder deve comportar dois níveis de representação segundo ele seja exercido sobre a vida econômica ou sobre outros aspectos da vida humana O poder econômico é originário das empresas dos sindicatos profissionais e das uniões dos consumidores Ele só tem competência no domínio da gestão e do plano O poder político compreende os mesmos organismos ampliados de uma representação de todos os agrupamentos espontaneamente saídos das atividades concretas e múltiplas dos seres humanos Os quadros geográficos nos quais se exerce este poder devem pois corresponder por sua vez a uma realidade econômica e a uma realidade humana viva Toda forma política artificial deve desaparecer sobretudo se uma mística artificialmente exaltada vier encobrir o vazio Nós não podemos pois admitir a nação e menos ainda o nacionalismo onde essa mística exasperada dando à nação um poder de expansão cria a quimera perigosa da missão conquistadora de um povo O racismo cientificamente falso é um verdadeiro frenesi é a última chama da nação ferida de morte A nação não é a pátria Um grupo de seres humanos tem procurado lutado sofrido e o resultado de sua história comum é no entanto uma visão particular do mundo Ela não 774 se constrói contra as outras ela lhes dá e por sua vez recebe delas e talvez essa troca se transforme em uma comunidade moral que amplie um dia a pátria As verdadeiras unidades geográficas são a região e o Estado A região é no primeiro instante um temperamento Ela reúne seres humanos que vivem sob um mesmo clima e que têm hábitos de vida análogos Mas é também uma estrutura econômica Essa corresponde às trocas naturais O Estado agrupa as regiões Ele ultrapassa em muito o quadro da nação real Ele corresponde a uma unidade geográfica e a uma verdadeira civilização espiritual Acima destas unidades uma federação mundial deve ter por objetivo fixar as linhas gerais do plano Ela deve também assegurar a paz entre os Estados e mais ainda a organizar uma troca de valores morais que eles representam Esprit outubro de 1932 775 EXTRATOS DO PROSPECTO ANUNCIANDO A PUBLICAÇÃO DE ESPRIT FEVEREIRO DE 19322004 Como não estar em revolução permanente contra as tiranias dessa época Nós aí detestamos uma ciência muitas vezes destacada da sabedoria bloqueada nas preocupações utilitaristas uma filosofia vergonhosa ignorante de seu papel e dos problemas que nos importam mediando na ciência uma verdade que ela anuncia antecipadamente como relativa mas em relação a qual muito capaz de demonstrar que a ciência não pode chegar aí sociedades governadas e funcionando como casas de comércio economias que se exaurem por adaptar o ser humano à máquina não tirando do esforço humano outra coisa que o ouro uma vida privada despedaçada pelos apetites fora dos eixos levada a todas as formas de homicídio e suicídio uma literatura cujas complicações e artifícios desunem nossa natureza ou enterram no século o que ela deveria inspirar a indiferença até do lado dos que têm se encarregado do mundo e o aviltado dissipandoo ou desprezandoo Não há forma de pensamento ou de atividade que não esteja escravizada por um materialismo próprio Por toda parte se impõem ao ser humano sistemas e instituições que o negligenciam ele se destrói em aí se curvando Nós queremos salválo em lhe restituindo a consciência do que ele é Nossa tarefa capital é a de renovar a verdadeira noção de ser humano Nós nos encontramos de acordo em estabelecêla sobre a supremacia do espírito Nosso primeiro olhar será aquele do ser humano um olhar de amor Nada é mais contrário tanto à complacência quanto ao duro pessimismo é tempo de libertar o heroísmo da amargura e a alegria da mediocridade Sob essa luz nós farejaremos nosso parentesco em todo universo Pois somos fiéis ao destino permanente do espírito sem qualquer vinculação com as manifestações temporais que em proveito próprio acreditaram um dia estar ao seu serviço Assim livres de portar uma imunidade absoluta em face do real amando no mundo tanto suas invenções imprevisíveis como seus destinos eternos nós empreenderemos uma obra por um mundo novo 2004 Mounier et sa génération Oeuvres IV p 489 776 Alguns dentre nós têm uma fé religiosa Eles inserem nossas convicções comuns em uma visão do universo que as transfigura sem as destruir Eles a manterão sem restrições Eles pensam que sua fé não autoriza a abstenção mas que pelo contrário lhes cria deveres especiais quanto à organização da terra mas eles não entendem ligála a nenhuma das soluções provisórias que eles possam trazer Vida social Nossa hostilidade é tão viva em relação ao capitalismo a sua prática atual e à doutrina que dele se destaca quanto em relação ao marxismo ou ao bolchevismo O capitalismo reduz uma multidão crescente pela miséria ou pelo bemestar a um estado de servidão inconciliável com a dignidade do ser humano ele orienta todas as classes e a personalidade como um todo para a posse do dinheiro tal é o único desejo que tem inchado a alma moderna O marxismo é um filho rebelde do capitalismo de quem ele tem recebido a fé na matéria Insurgindo contra uma sociedade perversa ele porta em si alguma justiça mas somente até o seu triunfo Quanto ao bolchevismo sozinho entre os empreendimentos nascidos no mundo moderno ele alcança uma amplitude de doutrina e em um heroísmo que não são inferiores ao evento Mas ele estabelece sua grandeza sobre uma simplificação dos dados humanos em um reino e com os meios que só se erguem da tirania da matéria Tocanos descobrir o que é uma sociedade atenta a seus interesses temporais mas que os subordina à preocupação de assegurar o desenvolvimento do ser humano Nós estudaremos os regimes da bolsa de valores as finanças suas relações com a produção Vida pública e internacional Ignorantes das necessidades profundas das sociedades procurando sua missão em suas rivalidades os Estados servem aos interesses gerais muitas vezes contrários ao bemcomum Os homens de todos os países que se unem em Esprit sentem a urgência particular de provar o valor da estrutura dos Estados e em suas relações as obrigações que comandam seu serviço Eles perseguirão no nacionalismo o orgulho e o egoísmo que os indivíduos aí desencadeiam para os salvar em lhes dando um campo mais vasto Nenhum de nós nega a fidelidade natural que liga cada qual a seu país mas não saberíamos aí confundir a parte da alma com a parte do instinto nem divinizar um instinto porque ele não é desenraizável A vida Privada Ela é o grande mistério de uma época e muitas vezes oculta o segredo A literatura moderna raramente nos tem dado uma imagem exata Nós 777 mostraremos qual ressonância tem na vida privada uma vida pública ou estados sociais doentios Dramas de amor dramas de dinheiro dramas de partido nos fornecerão os elementos para os nossos comentários O conhecimento As próximas tarefas não nos desviarão das atividades espirituais e desinteressadas em relação às quais conhecemos a importância de primeira ordem A metafísica comanda a vida humana a ciência a enquadra a história a impele Estaremos atentos a suas sínteses Da nossa parte temos de revisar as concepções da ciência e da filosofia que se proclamam ainda definitivas e construir um novo realismo A arte O artista tem um papel importante na obra que nós vamos expor Para fazer estourar as formas da vida moderna e as preparar para uma germinação é sua responsabilidade fazer surgir aí a visão concreta do ser humano primeira etapa de uma expansão dele mesmo que o abrirá a todo universo A arte se se dá sua verdade não forja sua própria matéria Que o artista não creia de antemão aperfeiçoar seu instrumento limitandose a simples retoques com base em fórmulas ou em puras buscas de expressão só a força da inspiração pode criar novas linguagens 778 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS E DAS COMUNIDADES 23 de dezembro de 1942 Novo centro clandestino de estudos2005 Acabei ontem de colocar no ponto a nova Declaração dos direitos da pessoa que tenho projetado há um longo tempo à qual faltará a excitação dos eventos para impulsioná la até a sua execução Quando há um mês a idéia me ocorreu eu reuni quatro ou cinco amigos para lhes comunicar J Lacroix A Philip Hours o Pe Desqueyrat Wahl que estava de passagem e Fumet Nós pedimos num primeiro momento a Hours para que nos falasse da Declaração de 1791 para esboçar o assunto Ele nos mostra bem como historiador como é necessário tomar muitas afirmações solenes da Carta de 1791 sob a incidência de uma desordem de época precisa mas como especialista também minimiza de maneira irritante a filosofia inclusa no texto Nossa reação nos permite em um segundo encontro lançar golpes de sonda na concepção de Direito que substituiremos àquela de 1791 Eu dei meu ponto de vista que não é o de técnico do Direito mas que me tem sido sugerido por meu estudo da noção cristã de propriedade a partir de uma reflexão jurídica Lacroix chegou exatamente ao mesmo esquema Como fora dessa convergência o trabalho se arrasta um pouco eu propus para o encontro seguinte um texto a trabalhar Eu o preparo de maneira muito apressada em quarenta e oito horas após ter relido as antigas Declarações Vou citálo com as correções que ali foram acrescentadas em três sessões de estudos Não se trata de um texto sobre um campo muito cultivado o qual eu defenderia letra por letra É mais importante entretanto que ele manifeste o tempo através do qual foi escrito dez anos de preparação em Esprit vêem aí versar seus resultados Entretiens XII 2005 Emmanuel Mounier visava substituir os trabalhos dos grupos de Esprit então interditados para este novo Centro de Estudos clandestino A Declaração em questão cujo texto completo apareceu em Esprit dezembro de 1944 pp 121127 foi o primeiro objeto de estudo Ele tinha por outro lado sobre o plano privado contatos com os dirigentes dos movimentos de Resistência Combat Seu nome havia sido enfatizado nos papéis de um dos membros do Movimento detido em janeiro de 1942 ele foi então acusado de ser um dos principais chefes a Declaração figura com efeito como uma das peças na convicção de sua atividade central no Movimento Cf p 745 e s Nota de Mounier et sa génération Oeuvres IV p 722 779 É NECESSÁRIO REFAZER A DECLARAÇÃO DOS DIREITOS MAIO DE 19452006 Da Declaração dos direitos que permanece a carta preliminar de nossa constituição temse podido dizer o melhor e o pior O melhor nós talvez o temos esquecido por força dos debates ideológicos mas o temos reencontrado no curso destes últimos anos na contra prova de uma experiência vital Os que lucram com a servidão poderiam refinarse sobre as ilusões da liberdade da igualdade e da fraternidade temos consciência sobre o que de sufocar falta com as liberdades elementares nacionais e privadas temos visto o ódio de classe reunir no estrangeiro o ódio racista para sufocar os sentimentos humanos mais naturais Estes mesmos que pareciam antes de ontem só criticar os princípios imortais em um passo racional quanto as suas insuficiências metafísicas ou políticas têm mostrado ontem também ajuntandose a Himmler2007 ou a Darnad2008 de qual instinto brutal sua dita sabedoria política bebia e tinha sua fonte No entanto as críticas mesmo mais malévolas da Declaração de 89 não o são sem força Elas se mantém desde o início contra o princípio de uma tal Declaração O direito não se proclama dizse ex cathedra ele se destaca lentamente da vida das instituições e dos costumes A mais antiga e mais sólida é a pena formulada Este é o fundo da tese de 2006 Este capítulo apareceu como prefácio ao texto de uma Declaração dos Direitos redigida pelo autor sob a Resistência Ele se tornou muito cético em relação a este gênero de documento E M Nota citada em Les certitudes difficiles Oeuvres IV p 96 2007 Cf Grande Enciclopédia Larousse Cultural Círculo do Livro 1988 vol 15 p 3045 Heinrich Himmler político alemão Munique 1900 Lüneburg 1945 Cúmplice de Hitler desde a tentativa de golpe de Estado de Munique 1923 foi nomeado em 1929 Reichsführer SS Tornouse chefe da Gestapo em 1934 chefe supremo da polícia 1938 e depois ministro do interior 1943 Foi nesses cargos um dos grandes responsáveis pela onda de terror de assassinatos e de extermínio que se abateu sobre a Europa ocupada Foi o criador e o incansável provedor dos campos de concentração para judeus e comunistas Após o complô fracassado de 20 de julho de 1944 tornouse chefe das forças armadas do interior Procurou negociar secretamente com os aliados Destituído por Hitler foi preso pelos ingleses maio de 1945 e suicidouse pouco depois 2008 Ibidem vol 9 p 1788 Joseph Darnand nascido em Coligny Ain 1897 morto em Chântillonsur Seine em 1945 Fundador da Milícia janeiro de 1943 destinada a lutar contra a Resistência e os clandestinos secretáriogeral da Manutenção da Ordem do governo de Vichy dezembro de 1943 em fevereiro de 1944 foi nomeado secretário de Estado do Interior Preso pelos Aliados foi condenado à morte e fuzilado 780 Burke e de Bonald Ela visa o estilo racionalista da Declaração lhe censurando toda armação ter sido tirada pelos legistas revolucionários dos princípios de uma filosofia ela mesma fortemente abstrata Eis aí de fato uma visão ela própria bem racionalista para os críticos do racionalismo A história um pouco impelida das origens e sobretudo do meio ambiente histórico da Declaração nos mostra que longe de sair de um cérebro dedutivo ela responde a situações muito concretas diariamente sentidas como um peso intolerável sobre os atos os mais habituais da vida cotidiana assinalados de mil lados pelas pessoas as mais simples nos Anais dos Estados gerais Se fosse possível ler além das épocas na memória de um Constituinte nós ficaríamos sem dúvida surpresos com o mundo de preocupações e de imagens próximas febris ainda que agitavam nele a evocação dos princípios imortais A linguagem ideológica estava então na moda e se esta mordiscava certamente os sentimentos dos homens nos frustra sem dúvida sobre o conteúdo real dos espíritos É bem verdade que não se deduz a vida de uma sociedade que a lei escrita se destaca do costume e a lei não escrita da lei escrita É por causa precisamente de novas provas históricas eu penso sobretudo nas do liberalismo e dos fascismos que nos permitimos propor hoje uma redação mais desenvolvida de nossa Carta jurídica Isto seria bem inconcebível se ela formasse um sistema a priori e inamovível Dirseá talvez que uma ordem jurídica é o coroamento de um período político de equilíbrio Que em um tempo de crise como o que nós atravessamos a idéia de uma Declaração é muito malvinda Todavia quando uma ordem de Direito com efeito não é mais que uma ordem formal que cobre a injustiça sob a inocência da letra só há para renovála ações de força Enquanto dura uma situação de força as formas jurídicas não podem ser senão maltratadas por ela Nós pensamos bem Não se trata de uma sociedade doente seguindo as leis que regessem uma sociedade sã e por exemplo não seria somente utópico mas perigoso para o destino mesmo do direito querer aplicar amanhã a toda Europa sem prazo nem organização todos os artigos que seguem da Declaração Ela demanda entre os Estados consignados um nível cívico e político aproximativamente equivalente Também não a propomos se bem que ela implica valores que ultrapassam o tempo e o espaço como uma forma feita para todos os tempos e para todos os lugares mas como a mais completa aproximação de suas visões jurídicas comuns a que as nações ocidentais de uma maturidade política equivalente podem convir em 1944 Se as 781 necessidades revolucionárias devem suspender aqui ou ali a autoridade convém que os próprios revolucionários tomem estas suspensões como necessidades as querendo tão curtas quanto possível e não as erigindo em um direito pretensamente erguido contra o direito Isto é porque em dois sentidos e sobre dois planos diferentes nada é mais inatual e nada é mais atual em período revolucionário que uma tal Declaração Uma Declaração dos direitos não pode ser por definição senão o mais liberal dos documentos em uma época de concentração revolucionária Um espírito imerso na ação pode se sensibilizar Também não teria ela por função traçar uma política imediata mas somente traçar a assímptota de toda visão política Sendo aceito em sua generalidade o princípio da Declaração dos direitos sob reserva quanto a suas precisões permanece saber se em sua expressão dos direitos menos contestáveis a Declaração de 89 não ficou manchada de vícios de época Disso não há nenhuma dúvida excesso de racionalismo excesso de individualismo seja dito em duas palavras Nós temos tentado corrigilos ou antes evitálos de partida em nos atendo ao rés das realidades e juntando aos direitos das pessoas os das coletividades e os do Estado Para concluir duas palavras históricas Eu apresentei esta Declaração que depois de muito tempo projetamos em Esprit como o primeiro objeto de trabalho do centro clandestino de estudos que havia substituído Esprit após sua interdição e que foi o primeiro organismo federativo da Resistência na zona sul Meu texto foi discutido em Lyon por uma comissão composta por André Philip Jean Lacroix Henri Marrou Jean Whal Joseph Hours o Pe Desqueyrat Lucien Fraisse etc O texto aqui publicado lhes deve muitas correções importantes Ele figurou como prova material no processo do movimento Combate em 1942 ao qual a atividade do centro de estudos que vamos evocar foi ligada Cada palavra tem seu peso e sua intenção Seria muito longo e de qualquer maneira ridículo justificar uma a uma Aos que considerarem nossas fórmulas ora muito abertas ora muito precisas nós lembraremos que as leis deste gênero as querem muito precisas para que se possa aí apoiar legislações e muito compreensivas para tolerar sua diversidade legítima segundo os países Algumas são retomadas pura e simplesmente da Declaração de 89 nenhuma evolução nos fatos nos incitou a mudálas 782 NB Ouvese às vezes lastimar pelo fato de que uma afirmação dos direitos não siga a par com uma declaração dos deveres Temse razão se se coloca do ponto de vista moral ou cívico Mas essa objeção não é mais aceitável da parte de uma carta jurídica Seria necessário se se quiser estabelecer uma carta dos deveres cívicos que de resto não se situaria sobre o mesmo plano 783 DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS E DAS COMUNIDADES2009 Os Estados subsignatários reconhecem a autoridade sobre os indivíduos e sobre as sociedades de um certo número de direitos ligados à existência da comunidade humana não derivados nem do indivíduo nem do Estado tendo uma dupla raiz 1a O bem das pessoas 2a A vida e o desenvolvimento normal destas no seio das comunidades naturais onde elas são colocadas famílias nações agrupamentos geográficos ou lingüísticos comunidades de trabalho agrupamentos por afinidades ou por crenças O objetivo de toda sociedade é colocar em ação os melhores meios para elevar cada um à livre escolha à ação responsável à comunidade consentida A função própria do Estado é ajudar ativamente por sua vez na independência das pessoas e na vida das comunidades a primeira contra a tirania sempre ameaçadora dos grupos a segunda contra a anarquia sempre renascente dos indivíduos Um organismo independente dos Estados é habilitado para julgar os abusos de poder do Estado e denunciar soberanamente os conflitos que eles engendram Este define os crimes do Estado I DIREITOS DAS PESSOAS 1 A responsabilidade pessoal efetiva ou suposta é o fundamento dos direitos das pessoas Estes direitos são a integridade da pessoa física e moral a liberdade sob suas diversas formas a associação o trabalho o laser a segurança a igualdade diante da lei 2009 Nós publicamos aqui o texto dado por Esprit em maio de 1945 e que corrige em certos pontos o texto difundido em 1941 após um debate Esprit dezembro de 1944 a marçoabrilmaio de 1945 onde numerosas sugestões foram empregadas Este texto foi uma das bases de partida da Comissão da Constituição de 1945 Nota citada em Les certitudes difficiles Oeuvres IV p 99 784 2 Os seres humanos desiguais por seus talentos ou suas funções são todos iguais quaisquer que sejam suas capacidades sua raça sua classe ou seu sexo diante dos direitos fundamentais Nenhuma lei de exceção pode ser promulgada em função de um destes fatores 3 Todo ser humano tem direito à integridade física e moral de sua pessoa Fora das medidas previstas pelo Direito penal não lhe pode ser impostas nem violências sistemáticas nem tratamentos degradantes nem mutilações motivadas por sua não integridade física ou mental nem qualquer forma de pressão sobre a vontade seja esta em nome do interesse superior da sociedade 4 Todo ser humano tem direito à saúde às medidas preventivas e curativas de higiene e de medicina de que ele necessite 5 Em reciprocidade o indivíduo é responsável na comunidade pela força que ele representa Ninguém tem o direito de se mutilar nem de se dar à morte se não for em um interesse superior ao seu próprio 6 A integridade espiritual da pessoa não pode ser comprometida por métodos de sugestão ou de propaganda emanando seja do Estado seja de poderes privados quando estes métodos são suscetíveis de exercer uma pressão inadmissível sobre as vontades individuais e quando os indivíduos ficam privados diante delas do meio eficaz de defesa 7 Os seres humanos são livres em seus movimentos em suas palavras em seus escritos ou em seus atos na medida em que estes não violem a presente Declaração ou as leis promulgadas em harmonia com ela A liberdade sob suas diversas formas deve servir à dignidade pessoal de cada um e ao bem de todos Ela é inalienável e compromete a responsabilidade de cada um 8 A vida privada e o domicílio são invioláveis Todo ser humano tem o direito de ir de ficar de partir sem poder ser detido nem preso senão segundo as formas fixadas pela lei Nenhuma visita domiciliar pode acontecer senão em virtude de uma lei ou de uma ordem expedida por uma autoridade pública e para a pessoa e o objeto expressamente designados no ato que ordena a visita A ingerência dos organismos públicos na vida privada deve ser reduzida ao mínimo necessário 785 9 Ninguém pode ser perseguido em justiça acusado detido ou preso a não ser nos casos determinados pela lei e segundo as fórmulas que ela tenha prescrito Ninguém pode ser detido por mais de oito horas sem comparecimento diante de um juiz chamado para estatuir sobre a legalidade dessa detenção Qualquer outro ato exercido contra um particular ou contra uma coletividade é arbitrário e nulo A vítima de tais atos é habilitada a exigir reparação diante dos tribunais e os responsáveis devem ser punidos2010 10 Todo ser humano é presumido inocente até que tenha sido declarado culpado Todo rigor que ultrapasse o necessário para segurar sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei Ninguém deve ser punido a não ser em virtude de uma lei estabelecida anteriormente ao delito Ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo delito O efeito retroativo e o efeito cumulativo dados à lei são crimes de Estado 11 As penas devem ser proporcionais ao delito exemplares e enquanto se puder reeducadoras do culpado 12 Todo ser humano é livre para falar escrever imprimir e publicar pensamentos opiniões e informações salvo em resposta ao abuso desta liberdade nos casos determinados pela lei em conformidade notadamente com o artigo 6 13 Ninguém pode ser inquietado pela expressão de suas opiniões ou crenças em matéria religiosa ou filosófica na medida em que ela não se choca com os direitos garantidos pela presente Declaração 2010 Aqui nos deparamos com o problema dos limites do investimento e das atribuições de um cargo público para a avaliação da responsabilidade de um ato arbitrário que na sociedade neoliberal só é apreendido como tal já circunscrito à lógica impessoal mesma que o possibilita e que o funda Essa arbitrariedade o neoliberalismo não permite que se discuta O arbitrário que parece ser a expressão da ilegalidade mesma no neoliberalismo toma a forma de ato isolado condenado pela sociedade o que escamoteia o comprometimento com o arbitrário quer dizer o impessoal intrínseco ao seu juridismo que só visa a manutenção e asseguramento da propriedade A ruptura da legitimidade da qual se investia o cargo é comprometida em sua análise mais fundamental porque no regime neoliberal para tal só pode se fundamentar única e exclusivamente em sua referência à legislação tomada como inamovível O positivismo juridista neoliberal com seu jogo abstracionista necessário para sua sobrevivência e suas concessões apoiado por toda uma disposição em defesa de castas não permite que para além de sua lógica interna corrompida viciada na origem do seu jogo burocrata interesseiro sempre pulsando na contramão do bemcomum haja um mínimo de abertura ao pessoal O nível em que se coloca a defesa da pessoa é no ensejo positivista do juridismo neoliberal sempre infinitamente menor do que o da defesa da propriedade não obstante sua famosa tagarelice sobre a defesa do indivíduo e da liberdade Nota do Trad 786 14 A liberdade de ensino emana dos dois artigos precedentes Ela se exerce sob reserva de garantias de competência de moralidade e de formação cívica determinada pela lei e controlada pelo Estado Ela não pode ser eliminada senão pelas instituições que garantem o espírito mesmo enquanto restringem o exercício O ensino elementar é obrigatório A ascensão às formas superiores de ensino é regulada com base no mérito2011 15 Os cidadãos de um mesmo estado têm o direito sobre o seu território de se reunir livremente sem armas sem uniformes não autorizados satisfazendo às leis de polícia e em conformidade com o artigo 6 Este artigo é claramente aplicável às campanhas de reuniões não contraditórias e aos desfiles de massa 16 Os cidadãos de um mesmo Estado têm o direito sobre o seu território de se associar para o estudo o desenvolvimento e a defesa de seus interesses comuns segundo as combinações que eles preferirem Estas associações podem ser autorizadas a receber como simples aderentes estrangeiros residentes sobre o território nacional de sua competência As associações internacionais que não ameaçam a estrutura do Estado são autorizadas Toda coalizão suscetível de colocar em perigo as garantias do artigo 6 pode ser interditada 2011 Eis aqui um outro problema que a política de cotas pode representar não obstante o sentido de justiça social que está na base de sua inspiração Pois com o passar do tempo por causa do costume político brasileiro conservador e nefasto de sempre tornar o provisório comodamente em definitivo pode tomar a forma de mais uma oportunidade de adiamento por parte das instituições políticas neoliberais que têm estado no comando de uma questão que nos parece mais fundamental e que deveria caminhar ao menos lado a lado com a política de cotas e que se destaca da seguinte pergunta E quando o juízo sobre o mérito que só pode ser justamente tomado numa sociedade que disponha de condições mais igualitárias para a sua possibilidade e averiguação de fato persiste sobre uma situação de injustiça de base e de partida Além disso nos parece haver um problema sério na vinculação do sentido da ação afirmativa que move a política de cotas com a noção ultrapassada e problemática de raça Não obstante entendermos que a intenção é trazer à tona o que é realmente um esforço e elucidar um preconceito degradante e odioso que realmente permanece entranhado e velando na alma do brasileiro mediano e que é sentido por muitos negros brasileiros e que se refere ao sentimento meio naturalizado no Brasil da visão da cor da pele negra como implicando imediatamante uma indicação objetiva de inferioridade ontológica Todavia a vinculação deste problema que pertence ao âmbito do costume e que toca na esfera da falta ainda na alma do brasileiro mediano de uma desenvolvida sensibilidade ética neste particular fora da questão de raça poderia ser melhor orientada pela proposição de uma pedagogia personalista de uma arte popular resgatada e por uma religião não cooptada Pois estas esferas como já vimos têm muito mais capacidade de lidar com este tipo de problema que entranha o imaginário o simbólico e o afetivo Assim vincular parte da solução deste sério problema nesta esfera de ação política a problema racial nos parece desvirtuar e desviar o real sentido político mais amplo quer dizer sócio econômico a que a nosso ver esta questão está mais diretamente relacionada Nota do trad 787 17 Todo ser humano tem direito ao trabalho quer dizer tem direito a receber um emprego garantido com uma justa remuneração por seu trabalho em quantidade e qualidade2012 O Estado é quem garante este direito 18 O trabalho não é uma mercadoria e não pode ser tratado com tal Todo trabalhador tem direito ao mínimo de recursos necessários que possibilitem viver ele e sua família uma vida digna de um ser humano 19 O trabalhador é livre para aderir ao sindicato de sua escolha ou de não aderir a nenhum Ele tem direito à determinação coletiva das condições de trabalho à proteção profissional ao respeito por sua qualificação à formação técnica e social indispensável para associálo estreitamente às funções de direção e gestão no mundo do trabalho 20 Todo ser humano tem direito ao lazer necessário para se relaxar fisicamente e se formar espiritualmente segundo sua livre escolha 21 Todo ser humano tem direito à segurança Enfermo ou incurável ele tem direito a uma função social compatível com sua capacidade diminuída Se esta for absoluta ele fica a cargo da coletividade ele e seus filhos menores 22 A lei deve ser igual para todos seja quando ela recompense ou quando puna seja quando ela proteja ou reprima 23 Todos são admissíveis em todos os lugares empregos e funções públicas sem outra distinção que aquela das capacidades e a do valor moral 24 Todas as contribuições são repartidas entre todos segundo os meios de cada um e de maneira a não atingir os bens que são indispensáveis à vida pessoal e familiar Quando decididas pelas únicas necessidades de utilidade geral elas são submetidas ao controle público 25 A mulher não pode ser tratada de maneira alguma como ser inferior A lei lhe garante um estatuto de dignidade equivalente àquele do homem em sua vida pública e em sua vida privada A capacidade civil da mulher casada pode ser modificada pelos regimes matrimoniais na medida necessária à administração dos bens próprios e comuns 2012 Nós temos utilizado para precisar este artigo a fórmula da Constituição Soviética Nota de Emmanuel MOUNIER Les certitudes difficiles Oeuvres IV p 101 788 26 A criança é protegida por uma legislação social em seu desenvolvimento orgânico intelectual e moral II DIREITOS DA COMUNIDADE 27 Existem comunidades naturais Nascidas fora do Estado elas não podem lhe ser submetidas nem identificadas Seus poderes espontâneos limitam o poder do Estado Elas devem ser representadas enquanto tais diante do Estado 28 A primeira destas comunidades é a família O Estado a protege no todo e em cada um de seus membros Ele deve levar em conta as despesas da família na remuneração do trabalho e o estabelecimento das prestações públicas 29 A nação possui um direito absoluto à independência de sua cultura de sua língua de sua vida espiritual mas não à soberania política incondicional Ela deve proteger nos limites de sua coesão as comunidades regionais étnicas lingüísticas ou religiosas agrupadas em seu seio 30 As comunidades econômicas e as comunidades de trabalho são fundadas sobre o serviço prestado não sobre o privilégio adquirido ou o poder do dinheiro Elas não servem essencialmente ao lucro à produção ou ao poder do Estado mas às necessidades de um livre consumo nas condições que respeitem a dignidade do trabalhador e o desenvolvimento do espírito empreendedor 31 O poder econômico só pode pertencer aos trabalhadores de todas as naturezas O lucro econômico deve remunerar os trabalhadores segundo as exigências dos artigos 18 e 19 antes de indenizar o capital irresponsável 32 A hierarquia das funções deve ser assegurada de tal maneira que ela não dê lugar a uma separação de classes 33 A comunidade dos seres humanos é usufrutuária do conjunto das riquezas do universo Toda nação tem o direito em uma organização geral de receber sua justa parte Todo trabalhador tem direito de emigrar na medida das possibilidades para ali onde sua subsistência talvez melhore ou seu trabalho mais fecunde 789 34 Todo ser humano tem o direito de propriedade pessoal sobre o espaço vital necessário à pessoa humana na finalidade de se constituir um meio de liberdade e de autonomia sob a reserva de que essa posição não seja nem um meio de opressão nem um meio de espoliação do fruto legítimo do trabalho do outro 35 Todo ser humano tem o direito de transmitir a seus filhos o bem de família definido nestes limites Estes limites são aqueles mesmos do direito de herança 36 Tutor do bem público o Estado deve velar por estas garantias Ele pode requerêlas contra as pessoas ou as coletividades cujas possessões violem as cláusulas do artigo 33 ou ameacem sua autoridade Ele pode pronunciar a expropriação por necessidade pública ou por prescrição do direito do proprietário no primeiro caso essa expropriação deve ser o objeto de uma justa e prévia indenização 37 Existe uma comunidade internacional natural comunidade de povos e de nações cuja tradução jurídica é uma sociedade de Estados Ela implica a comunidade inter racial A federação livremente organizada é o modo normal de união dos membros da comunidade internacional III DIREITOS DO ESTADO 38 O Estado é um poder comprometido com a guarda do bem comum político na defesa exterior de uma nação ou de um grupo de nações na coordenação das atividades individuais e coletivas de sua competência geográfica 39 O poder do Estado é limitado pelos poderes espontâneos das sociedades naturais definidas no título II Ele é submetido à autoridade suprema desta Declaração notadamente em relação às liberdades fundamentais Ele deve ser regulado por uma constituição e pela organização de um controle constitucional 40 O assentimento da nação à autoridade do Estado deve ser assegurado por uma representação sincera integral e eficaz das opiniões das situações e dos interesses O voto em todos os sufrágios públicos é obrigatório e garantia contra toda pressão do Estado ou de particulares2013 2013 É clara por traz da afirmação da obrigatoriedade do voto a inspiração federalista que a motiva tão cara ao movimento personalista à qual não obstante levantar algumas objeções Mounier considera a melhor 790 41 Uma separação dos diversos poderes do Estado é necessária para o seu bom funcionamento e para a garantia dos direitos Ela deve comportar notadamente a autonomia do poder judiciário que por seu recrutamento e por suas estruturas deve permanecer uma expressão viva da nação2014 42 Uma força de polícia é necessária ao funcionamento do Estado Ela não deve criar nem um corpo autônomo no seio do Estado nem penetrar nos outros domínios que são da estrita alçada do Estado 43 Há opressão quando uma das prescrições desta Declaração é violada pelo Estado Uma Corte suprema onde magistrados inamovíveis se misturarão aos delegados de todas as elites vivas da nação é encarregada de arbitrar toda aplicação e toda delimitação da Constituição2015 Maio de 1945 proposta revisada para uma concepção personalista de política Esta obrigatoriedade do voto dentro da inspiração federalista se dá porque privilegia uma crescente descentralização do político até às pequenas comunidades e também por conta da necessidade de um crescente aprendizado e o cultivo por parte dos cidadãos do bom costume de uma participação cívica cada vez mais consciente e responsável na vida política da comunidade Portanto fica claro também que a afirmação na Declaração da obrigatoriedade do voto não tem nada a ver com a obrigatoriedade do voto que acontece no Brasil por exemplo No nosso país pela extrema centralização do poder que se mantém em nome de uma suposta tradição republicana e por uma caricatura de malgosto denominada democracia representativa a noção de povo e de consciência cívica ficam totalmente comprometidas e só servem efetivamente como expedientes para a manutenção do jogo demagógico que vem sendo jogado há muito tempo nesse país Nota do trad 2014 A influência de Gurvitch no pensamento jurídico de Mounier é notória Mounier o cita muitas vezes em sua obra como já frisamos Sua sociologia jurídica tanto quanto sua perspectiva culturalista da ciência do Direito na esteira da fenomenologia axiológica de Max Scheler vão conceder um renovo e um fôlego ao pensamento jurídico contemporâneo tão cativo do positivismo fazendo notar o caráter espontâneo da criação do direito exemplarmente como se deu na esfera do direito trabalhista contestando assim a pretensa hegemonia de validação do positivismo e seu círculo infernal Estadojurisprudênciastatu quo Ver para uma melhor apreciação da jurisprudência culturalista MONTORO Franco Introdução à ciência do direito op cit passim Nota do trad 2015 A inspiração federalista fica aqui também clara Nota do trad 791 BIBLIOGRAFIA OBRAS DE EMMANUEL MOUNIER 1 MOUNIER Emmanuel Œuvres 4 Vols Éditions du Seuil Paris 1961 Vol 1 La Pensée de Charles Péguy 1931 pp 7 ss Révolution Personnaliste et Communautaire 19321935 pp 129 ss De la Propriété Capitaliste a la Propriété Humaine 19341939 pp421 ss Manifeste au Service du Personnalisme 1936 pp 483 ss Anarchie et Personnalisme 1937 pp 653 ss Personnalisme et Christianisme 1939 pp 729 ss Les Chrétiens devant le Problème de la Paix 1939 pp 785 ss ANNEXES Appendices de Révolution personnaliste et commnuitaire pp 841 ss Vol 2 Traité du Carctère 19431944 lançado pela Éditions du Seuil em 1947 Vol 3 LAffrontment Chrétien 1945 pp 9 ss Introduction aux Existentialismes 1947 pp 69 ss Questce que le Personnalisme 1947 pp 179 ss LÉveil de lAfrique Noire 1947 pp 249 ss La Petite Peur du XX Siecle 19461948 pp 341 ss em Neuchâtel La Baconnière e em Paris Éditions du Seuil em 1949 Le Personnalisme 1949 pp 429 ss Feu la Chrétienté 1937 a 1949 pp 529 ss pela Editions du Suil em 1950 792 Vol 4 Les Certitudes Difficiles de 1933 a 1950 pp 11 ss pela Éditions du Seuil em 1951 LEspoir des Desesperes pp 285 ss pela Éditions du Seuil em 1953 Mounier et Sa Génération Correspondance Entretiens pp 409 ss Esprit em1954 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Préface Guy COQ Nesta Edição cuja primeira consta no volume IV de Ouevres além do Prefácio de Guy Coq há inéditos de Emmanuel Mounier Emmanuel Mounier Actes du Colloque Tenu à lUNESCO Vol I 2003 e II 2006 Sous la présidence de Paul Ricoeur et Jacques Delors Edite par Guy Coq Président de lAssociation des Amis dEmmanuel Mounier Parole et Silence Paris GUITTON Jean Portrait du monsieur Pouget Paris Ed Du Cerf 1941 LACROIX Jean Marxismo Existencialismo Personalismo Paz e Terra Rio de Janeiro 1967 O Personalismo como AntiIdeologia Coleção Substância n 20 RÉS Editora Limitada PortoPortugal abril de 1977 LANDSBERG PaulLouis Essai sur lexpérience de la mort et Le problème moral du suicide col Sagesses Éditions du Seuil 1993 la première édition 1951 préface de L Lacroix janvier 1993 pour la posface dOliver Mongin et pour la composition de ce volume O Sentido da Ação Paz e Terra Rio de janeiro 1968 LORENZON Alino Personne et Communauté Essai sur loeuvre dEmmanuel Mounier THÈSE pour le Doctorat du 3º Cycle sous la direction de M Le Professeur Henry DUMERY Paris 1972 UNIVERSIDADE DE PARISX LUROL Gérard Mounier I Genèse de la Personne II Le Lieu de la Personne LHartmann 2000 Esta mesma obra fora primeiramente lançada como Mounier I Genèse de la Personne Éditions Universitaires em 1 Volume 1990 MELCHIORRE Virgilio IL Método di Mounier ed Altri Saggi Feltrinelli Editore Milano 1960 MOUNIER Emmanuel Appel a une rassemblement pour une démocratie personnaliste in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier Numéro 60 Octobre 1983 p 9 s Esprit 19401941 articles paru dans Esprit janvier 1945 in Bulletin de amis dEmmanuel Mouhnier Numéro 61 Mars 1984 p 7 Péguy médiateur de Bérgson in Henri Bergson Essais et témoignages inédits Recueillis par Albert Béguin et Pierre Thévenaz La Baconnière Neuchatel 1941 794 MOUNIER Paulette resenha do livro André Ulmann ou le Juste Combat Paris Sté des Ed Internationales 1982 de Michel Goildschmidt et Suzanne TenandUlmann in Bulletin des amis dEmmanuel Mounier 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explication de lÊtre de tous les êtres soumise aus meditations de quiconque en lan de grâce 1623 I vol Com dois estudos de Nicolas Berdiaeff sobre Jacob Böhme A LUngrund et la Liberte e B La doctrine de la Sophia et de lAndrogyne Jacob Böhme et les corantes sophiologiques russes pp 27 ss BONHOEFFER Dietrich Ética EST Sinodal Porto Alegre 8ª ed 2008 BORKAMM Günther Jesus de Nazaré Editora Teológica São Paulo 2005 BRÉHIER Émile Études de Philosophie Antique Presses Universitaires de France Paris 1955 BRONOWSKI J MAZLISCH B A tradição intelectual do Ocidente Edições 70 Lisboa Portugal 1998 BROWNING Don A homossexualidade reconsiderada in Homossexualidade Perspectivas cristãs Editora Novo Século São Paulo 2008 pp 169 ss Resenha de The Construction of Homossexuality de David Greenberg University of Chicago Press 1990 BRUNNER Emil The Divine Imperative New York The Macmillan Company 1942 797 BUBER Martin Ich und Du de 1922 traduzido em Português como Eu e Tu Editora Morais São Paulo sd Werke 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DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS TEDE NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor autorizo a Universidade Federal de Goiás UFG a disponibilizar gratuitamente por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações BDTDUFG sem ressarcimento dos direitos autorais de acordo com a Lei nº 961098 o documento conforme permissões assinaladas abaixo para fins de leitura impressão eou download a título de divulgação da produção científica brasileira a partir desta data 1 Identificação do material bibliográfico x Dissertação Tese 2 Identificação da Tese ou Dissertação Autor a Mônica Ferreira Albernaz Email moalbernazhotmailcom Seu email pode ser disponibilizado na página x Sim Não Vínculo empregatício do autor Agência de fomento Sigla País Brasil UF GO CNPJ Título Personalismo e a formação humanizadora um estudo das contribuições de Mounier Palavraschave Pessoa Comunidade Afrontamento Humanismo Cultura Título em outra língua Personalism and humanizing formation a study concerning the contributions of Mounier Palavraschave em outra língua Person Community Confrontation Humanism Culture Área de concentração Cultura e Processos Educacionais Data defesa 27082014 Programa de PósGraduação Educação Orientador Adão José Peixoto Email peixotoufghotmailcom Coorientadora Email Necessita do CPF quando não constar no SisPG 3 Informações de acesso ao documento Concorda com a liberação total do documento x SIM NÃO1 Havendo concordância com a disponibilização eletrônica tornase imprescindível o envio dos arquivos em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações garante aos autores que os arquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertações antes de sua disponibilização receberão procedimentos de segurança criptografia para não permitir cópia e extração de conteúdo permitindo apenas impressão fraca usando o padrão do Acrobat Assinatura do a autor a Data 27 08 2014 1 Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de embargo UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO MÔNICA FERREIRA ALBERNAZ PERSONALISMO E A FORMAÇÃO HUMANIZADORA UM ESTUDO DAS CONTRIBUIÇÕES DE MOUNIER Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás como requisito parcial para a obtenção do título em Mestre em Educação Linha de pesquisa Cultura e Processos Educacionais Orientador Prof Dr Adão José Peixoto GOIÂNIA 2014 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP GPTBCUFG A329p Albernaz Mônica Ferreira Personalismo e a formação humanizadora manuscrito um estudo das contribuições de Mounier Mônica Ferreira Albernaz 2014 150 f Orientador Prof Dr Adão José Peixoto Dissertação Mestrado Universidade Federal de Goiás Faculdade de Educação 2014 Bibliografia 1 Formação humana 2 Ética e sociedade 3 Humanismo 4 Mounier Emmanuel 19051950 I Título CDU 3701717 MÔNICA FERREIRA ALBERNAZ PERSONALISMO E A FORMAÇÃO HUMANIZADORA UM ESTUDO DAS CONTRIBUIÇÕES DE MOUNIER Dissertação defendida no Curso de Mestrado em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás para a obtenção do grau de Mestre aprovada aos vinte e sete dias do mês de agosto de 2014 pela Banca Examinadora constituída pelos professores Prof Dr Prof Dr Adão José Peixoto FEUFG Presidente da Banca Prof Dr Luiz Augusto Passos UFMT Profª Drª Sandra Valéria Limonta Rosa FEUFG Prof Dr Pedro Adalberto Gomes de Oliveira Neto PUC GO Dedico esta dissertação aos meus queridíssimos filhos Carolina e Caio Alexandre por serem amigos companheiros minha força de vida e meus grandes amores Dedico à minha amada mãe Wilma Cléria Albernaz que me ensinou a ser forte em meio às turbulências da vida e por todo o trabalho e esforço para manter seus filhos em escolas boas Este esforço me fez amar a escola e escolhêla como o lugar de dedicação do meu trabalho Ao meu pai João Ferreira Albernaz já falecido que me marcou com sua voz forte ao chamar meu nome de modo único remetendome à sonoridade de segurança que o meu nome me dá ao meu eu Aos meus irmãos Meire Cristina Alessandra e João Victor que se alegraram comigo nas minhas conquistas e que choraram comigo com as minhas tristezas À minha família Agradeço Em especial a Deus o meu Tu que singularmente me fez quem sou no euTu Ao meu orientador Professor Doutor Adão José Peixoto que me apresentou Emmanuel Mounier e pela gentileza ao emprestar sua bibliografia de Mounier Obras Completas I à IV e outros autores para esta pesquisa Aos professores Doutores Pedro Adalberto Gomes de Oliveira Neto e Sandra Valéria Limonta pelas leituras carinhosas e contribuições que realizaram a esta pesquisa na qualificação À professora Doutora Maria de Fátima Teixeira Barreto por um dia ter me feito o convite para participar da Pesquisa em Educação Matemática nas séries iniciais que me fez descobrir o universo fecundo da pesquisa e por me apresentar à Fenomenologia por meio de Paulo Freire e MerleauPonty Às minhas amigas Giovanna Leão por ter escolhido ser minha amiga e por me permitir ser sua amiga Margarida Shiozawa por ter sido ouvido e coração aquecido no meu inverno Obrigada A pessoa só se liberta libertando E é chamada tanto para libertar a humanidade como as coisas MOUNIER 2004 p 38 RESUMO Esta pesquisa discute a relação entre a filosofia personalista de Mounier e a formação humana O questionamento que a direcionou foi quais as contribuições do pensamento personalista de Mounier para uma formação humanizadora A metodologia que utilizamos foi a pesquisa bibliográfica com análise das principais obras deste pensador e obras de comentadores do seu pensamento Buscouse compreender o contexto da constituição do pensamento de Mounier sua história de vida e seu próprio pensamento personalista A Europa no início de século do século XX passou por várias transformações sociopolíticas e econômicas Presenciou duas grandes guerras sofreu suas implicações como fome miséria e precariedade de condições de vida Foi um período de incertezas em virtude dos efeitos da Grande Depressão a partir da crise de 1929 do avanço desenfreado do modelo econômico capitalista e das instaurações de governos totalitários como os socialistas e os comunistas Nesse contexto Mounier olhou seu tempo face a face tomando consciência de si e afrontou o de modo a lutar pela mudança Refazer a Renascença O personalismo de Mounier é um modo de vida uma inspiração que tem como experiência fundante a afirmação do valor absoluto da pessoa humana e que compreende uma perspectiva humanizadora que promove o contínuo vir a ser cada vez mais humano mediante o despertar da pessoa em comunidade Este despertar é o reconhecimento do chamado espiritual ao ser mais humano É nesse sentido que o novo humanismo em Mounier consiste em refazer a Renascença que é um renascimento do homem concreto situado no e em relação constitutiva e axiológica com o eu Tu em totalidade implicado a uma revolução que forme uma nova compreensão de pessoa e de comunidade uma chamada à libertação humana A valoração humana que se encontra na dialética axiológica presente na imanência e na transcendência se torna um processo de autoelevação humana que se caracteriza pela metafísica tendo primazia a axiologia humana No refazer a Renascença há uma proposta políticoeconômicosocial centrada na pessoa para cuja formação tudo deve convergir Para se compreender a humanização do homem é necessário perpassar a tríade de seu volume total de seu desenvolvimento pleno encarnação vocação e comunhão caracterizado na estrutura do universo pessoal em processo histórico Assim não se pode compreender a formação humanizadora personalista de uma nova civilização sem a relação chamadarespostametafísica que se evidencia no afrontamento engajamento A formação humanizadora personalista apresentase no realismo espiritual transcendência humana e divina que está em contraposição ao materialismo e ao espiritualismo a dimensão axiológica do realismo cultural O ato de conhecer o mundo a partir do realismo espiritual diz respeito ao ato de elevarse da horizontalidade do ser humano um elevarse a partir das condições de encarnação que caracteriza a união com o mundo espiritual Desse modo as características do personalismo de Mounier que contribuem para a formação comprometida com a pessoa como valor maior são a perspectiva do acabamento da vida pessoal como sendo uma ação éticopolítica da comunidade a educação personalista que tem como base binomial liberdade e compromisso a cultura como transcendência e superação e o afrontamento Palavraschave Pessoa Comunidade Afrontamento Humanismo Cultura ABSTRACT This research discusses the relation between the Mouniers personalist philosophy and human formation The questioning which guided it was what are the contributions of the personalist thinking of Mounier for a humanizing formation The methodology we utilized was the bibliographical research coupled with analysis of the main works written by this thinker and works by commentator of his school of thought It was sought to comprehend the constitutive context of the philosophy of Mounier his life history and his own personalist thinking Europe at the beginning of the twentieth century passed through several sociopolitical economical transformations It witnessed two great wars it suffered its implications like hungriness misery and precariousness of living conditions It was a period of uncertainty due to the effects of the Great Depression since the 1929 crisis to the unbridled advance of the capitalistic economic model and to the instaurations of totalitarians regimes like the socialist and the communist ones In this context Mounier looked his age facetoface becoming aware of himself and he conffronted this age in ways of fighting for change Rebuilding the Renascence Mouniers personalism is a way of life an inspiration which has as its grounding experience the affirmation of the absolute value of human person and which comprehends a humanizing perspective which promotes a continuous process of becoming increasingly human by the awakening of the person in community This awakening is the recognition of the spiritual calling to the human being It is in this sense that Mouniers new humanism consists in rebuilding the Renascence which is a revival of the concrete man located in and in a constitutive axiological relation with the Ithou dimension in totality implying so in a revolution which may form comprehension of person and community in a calling to human liberation Human appreciation which is found in the axiological dialectic present in immanency and in transcendence becomes a process of human selfelevation which is characterized by metaphysics having the primacy the human axiology In rebuilding the Renascence there is a politiceconomicsocial proposal centered in person for which formation everything has to converge to In order of comprehending the humanization of man it is necessary to pervade the triad of his total volume of his full development incarnation vocation and communion characterized in the structure of the personal universe living a historical process Thus it is not possible to comprehend the personalist humanizing formation of a new civilization without the relation callingmetaphysicalanswer which is evidenced in the confrontingengagement process Humanizing personalist formation presents itself in the spiritual realism human transcendence and divine one which is in contraposition to both the materialism and the spiritualism the axiological dimension of cultural realism The act of recognizing the world since spiritual realism is referred to the act of elevating oneself from horizontality of human being an elevating out of the incarnation conditions which characterizes a union with the spiritual world By this way the features of Mouniers personalism which contribute to some formation compromised with person as the great value are the perspective of completion of personal living as being an ethicalpolitical action of the community the personalist education which has as its binomial basis freedom and commitment the culture as transcendence and overcoming and the confrontation act Keywords Person Community Confrontation Humanism Culture SUMÁRIO INTRODUÇÃO 14 CAPÍTULO 1 MOUNIER A CRISE E O ENGAJAMENTO 21 11 A crise na Europa 21 12 Mounier e o engajamento 24 CAPÍTULO 2 O PERSONALISMO DE MOUNIER 42 21 O que é o personalismo de Mounier 44 22 A estrutura do universo pessoal 50 221 Pessoa e natureza 51 222 Pessoa e comunicação 55 223 Pessoa e recolhimento 61 224 Pessoa e afrontamento 66 225 Pessoa e liberdade 70 226 Pessoa e transcendência 73 227 Pessoa e engajamento 80 CAPÍTULO 3 O PERSONALISMO DE MOUNIER NOVO HUMANISMO 85 31 Influências teóricas 85 311 Cristianismo 85 312 Fenomenologia existencial 90 313 Marxismo 94 314 Personalismo novo humanismo 97 CAPÍTULO 4 O HUMANISMO PERSONALISTA DE MOUNIER E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA A FORMAÇÃO 111 41 Realismo espiritual pensamentolinguagemcompromisso 112 411 Formação e cultura 122 4111 Formação 122 4112 Cultura 132 412 Afrontamento 135 CONCLUSÃO140 REFERÊNCIAS144 14 INTRODUÇÃO A constituição do pensamento personalista de Emmanuel Mounier 19051950 surgiu na Europa no período entreguerras início do século XX Mounier percebeu neste contexto o quanto o ser humano estava coisificado e desumanizado vivendo a plena miséria dos valores humanos Ele tinha particular sensibilidade à violação histórica da dignidade do ser humano SEVERINO 2009 p 156 Esta constatação inquietou o autor a ponto de fazêlo engajarse na busca de mudanças desta realidade humana e histórica Na década de 1930 Mounier com um grupo de inquietos composto por Georges Izard Déléage Jean Lacroix Nicolas Berdiaeff Denis de Rougeemont RénéBiot Paul Ricoeur dentre outros fundou a revista Esprit que passou a ser o veículo pelo qual o seu pensamento e o de seus colaboradores foram difundidos O pensamento personalista de Mounier foi construído no embate aos modelos sociopolíticos e econômicos predominantes naquela época tais como o capitalismo o nazismo o fascismo e o socialismo ditatorial Os acontecimentos da Primeira e da Segunda Guerra Mundiais a Grande Depressão de 1929 e os regimes totalitários em alguns países europeus influenciaram profundamente o modo de pensar e agir do filósofo Essa crise vivida pela Europa foi fruto de um projeto racionalista instrumental ou de despersonalização conforme afirma Mounier Essa racionalidade não correspondeu às necessidades humanas Transformouse num fracasso do processo político e do desenvolvimento técnico e econômico Nesse contexto o ser humano como pessoa é anulado e violentado em sua dignidade Foi esse ambiente que o autor tomou como referência em busca de uma nova orientação éticopolítica para a vida A filosofia personalista de Mounier apresenta uma reorientação epistemológica de sentido histórico e antropológico sempre na defesa da pessoa Podese observála no sentido da ruptura ou seja do não para com o contexto da Europa do início do século XX Moix 1968 afirma que Mounier 2004 disse alguns nãos para o ser humano voltado para o individualismo capitalismo para o homem voltado para o marxismo vazio do espiritual dominado pelo coletivo e dissolvido pela massa para o homem voltado para o fascismo governado pela tirania sem assumir a sua responsabilidade para o homem compreendido pelo veio do espiritualismo que separa o corpo do espírito Moix 1968 p 276 faz esta demarcação do não no pensamento de Mounier ao referirse aos nãos 15 dirá Não ao coletivismo que despreza toda psicologia concreta da criação e do trabalho da pessoa não à tirania stalinista forma acabada de um estatismo tecnocrático a esmagar o homem não ainda à terrível escola de formação e de embrutecimento que constitui a tática interna dos partidos comunistas aos quais se deve a lenta destruição da realidade popular de sua iniciativa de suas energias de seu senso das responsabilidades e da verdade Todos estes não podemse agrupar sob o único título de recusa do mal totalitário Mounier 2004 rompe com a compreensão predominante naquele contexto sobre o homem passando a compreendêla a partir do homem real e não do homem abstrato A partir daí apreende o homem como pessoa como totalidade Como um todo um universo pessoal o universo da pessoa é o universo do homem MOUNIER 2004 p 13 Não se trata de um idealismo repugnando outro idealismo O pensamento de recusa do autor o coloca em um lugar sui generis como ruptura com os pensamentos de sua atualidade na forma de filosofar e na atitude de vida interligando vidapensamentoação a um projeto de humanização Sobre essa ruptura Severino 1974 p 129 afirma que o Personalismo é se não de modo explícito pelo menos em seu exercício vivo uma exigência de ruptura dos quadros lógicos da filosofia racionalista em geral e tentativa de construir uma nova lógica para abordagem do ser pessoal Assim Mounier ao dizer não marca um ponto de partida na direção da humanização do homem A abordagem de sentido histórico de Mounier 2004 se dá no modo como ele analisa o ser humano e o compreende A compreensão de pessoa que o autor construiu parte do percurso histórico no qual os filósofos e os cristãos pensaram o homem Ele traz o próprio modo de pensar historicamente ou seja situado e em desenvolvimento para pensar a pessoa Ocorre um modo de compreensão da pessoa ou seja o do sentido filogênese com finalidade de recuperar o sentido ontogênese O sentido filogênese da pessoa se caracteriza na constituição da ideia da noção de pessoa como processo histórico Mounier buscou a gênese desta noção no percurso histórico dos pensadores filósofos e cristãos A noção do singular a relação natureza e consciência o indivíduo como ente real se mostra nesse sentido como sendo filogênese Já a busca da história evolutiva da compreensão da noção de pessoa em contexto social na direção da recuperação histórica das mudanças estruturais da unidade daquela como ser absoluto é por sua vez o sentido ontogênese da pessoa Costa 2009 denominou esse movimento histórico constitutivo de emergência e insurgência da pessoa na história Além de existir o sentido histórico na compreensão dessa noção ela é capaz de transcender a natureza fazendo história por ser uma abertura para o mundo em constante construção O homem não é encerrado no seu destino pelo determinismo MOUNIER 16 2004 p 32 E ainda segundo Peixoto 2009 p 12 a pessoa de que fala o personalismo é um ser historicamente situado É um ser que se realiza como homem na história O ser humano é o único ser capaz de fazer história só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar ele o menos armado e o menos poderoso dos grandes animais Porém essa ascensão da pessoa criadora pode seguir na história do mundo ou não MOUNIER 2004 p 3233 É uma luta entre duas tendências opostas presente no ser humano despersonalizarse abandonandose e se desdobrando à repetição ou personalizar se tendência que se realiza mediante consciência reflexiva e recíproca construindo seu destino Assim a história não pode ser mais do que uma cocriação de homens livres e a liberdade deve guiar suas estruturas e seus condicionamentos MOUNIER 2004 p 98 Para Mounier o fazer história como transcendência humana não ocorre instantaneamente mas perpassa a experiência conjectural no sentido do não determinado E a direção da transcendência na história ainda segundo o autor é a humanização A filosofia antropológica de Mounier se observa na comparação entre o que o ser humano mostra ser e aquilo que ele realmente é e na busca do que ele poderia ser como humanidade É portanto uma antropologia da essência Isso se dá por ser uma abordagem que investiga a estrutura essencial da pessoa como que encerrada metafisicamente A pessoa não é fechada mas livre e imbricada às condições de existência humana capaz de transcendê las assim como explica Severino 1974 p 130 A pessoa se revela contudo através de uma experiência decisiva proposta à liberdade de cada um não a experiência imediata de uma substância mas a experiência progressiva de uma vida a vida pessoal Nenhuma noção pode dispensar esta experiência eis resumida pelo próprio Mounier a perspectiva epistemológica implicada pela antropologia personalista A pessoa para Mounier 2004 é um feixe de possibilidades diante de suas condições de existência sempre em superação do limite estabelecido Severino 2009 afirma que o pensamento de Mounier concernente à pessoa foi articulado sobre a base da unidade humana dialética entre a imanência e a transcendência que se configura em intuição básica de natureza antropológica entendendose a imanência como as condições de existência humana e a transcendência como a eminente dignidade da pessoa ambas presentes na estrutura do universo pessoal A pessoa é compreendida como uma unificação do universal no mundo pessoal e em permanente abertura um poder de transcendência interior do ser MOUNIER 1992 p 631 tradução nossa 17 Para ele a pessoa nunca pode ser tomada como meio pois ela é o centro para o qual todas as ações devem ser conduzidas A pessoa está acima da sociedade como sistema legal e é em comunhão com os outros que realiza seu destino A pessoa é o volume total do homem é o equilíbrio do comprimento largura e profundidade Ela é encarnação vocação e comunhão Mounier 2004 p 41 compreendia o universo pessoal encarnado como perfeição de uma liberdade que combate é perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente Por isso subsiste até mesmo nas suas derrotas Para o autor não há uma harmonia de valores nas relações pessoais do ser humano com o mundo A natureza o ameaça constantemente e ao mesmo tempo a sua luta com o mundo natural constitui a condição humana e esta é a liberdade combatente Nessa direção o caminho próprio do ser humano se dá em uma luta no interior universo pessoal e no exterior natureza encarnado no mundo configurando a autotranscendência a vida de interioridade que gera a presença voltada para os outros que possibilita a não alienação o enfrentamento consigo com o outro e com mundo Severino 2014 p 5 esclarece como é compreendida por Mounier a unidade da pessoa ou seja Todo o pensamento de Mounier articulase em torno dessa intuição básica de natureza antropológica qual seja a da apreensão da pessoa humana que se realiza como unidade dialética de imanência e de transcendência Essa condição existencial além de configurar a especificidade da pessoa atribuilhe uma eminente dignidade A compreensão não fragmentada na unidade dialética do ser humano possibilita uma apreensão ontológica do ser e da axiologia da dignidade da pessoa em movimento Daí ter Mounier reformulado a própria atitude filosófica Sua antropologia exigiu uma nova metodologia Esta nada mais é do que a experiência vivencial da própria existência pessoal SEVERINO 1974 p 130 Segundo Severino 1974 p XI Mounier não teve a preocupação de elaborar um método filosófico no sentido tradicional do sistema mas sim de refletir profundamente sobre os acontecimentos do seu tempo diante da existência do ser humano numa tentativa de interrogála apreendêla compreendêla interpretála e até mesmo de orientála SEVERINO 1974 p XII A filosofia de Mounier é igualmente uma obra humana de comunicação jamais aquela atividade soberana e altaneira ou soberba SEVERINO 1974 p 25 18 Sobre a questão do método este não aparece tão explicitamente no pensamento de Mounier E não aparece por dois motivos O primeiro porque uma das principais críticas era contra o formalismo do rigor lógico que na obra de muitos pensadores se sobrepõe à preocupação com o humano tornandose um sistema uma abordagem tecnicamente rigorosa mas vazia de sentido humano O segundo porque sendo a pessoa o objeto de investigação do seu pensamento é de natureza diferente e como tal necessita de uma orientação teóricometodológica também diferenciada PEIXOTO 2009 p 7 A proposição de Mounier é de um mundo voltado para a inteira realização da pessoa Para tanto tornase necessária uma renovação de valores assentada na dignidade da pessoa como um ser total pertencente a uma comunidade Nesse sentido a proposta do autor constitui um processo de despertar da pessoa com apelo para a ruptura com o individualismo e da superação a alienação Severino 2009 p 156 destaca a relevância de Mounier para os dias atuais ao afirmar que seu projeto filosófico continua representando substantiva referência para o projeto civilizador que a humanidade ainda tem que conceber e implementar Nessa reflexão a pessoa como valor absoluto comporta eminente dignidade a dignidade humana é a referência nuclear e central da ação adequada à humanidade a única base para nosso agir consequente A filosofia personalista de Mounier expressa um projeto pedagógico e humanizador que implica um significativo potencial tanto como filosofia quanto como pedagogia política qualificandose simultaneamente como instrumento de análise dessa realidade e como roteiro de ação transformadora SEVERINO 2009 p 157 Estamos em uma sociedade que apresenta um processo contínuo de desumanização onde a preocupação com o ser humano é secundarizada A sociedade atual valora o capital Este tem sido compreendido como condição de humanização O ser humano que se tem formado é aquele da conquista de riquezas individualista e portanto vazio da riqueza espiritual Ao voltaremse às condições de humanização do homem para a posse desenfreada dos bens materiais esquecemse da existência de uma vida de interioridade que é uma vida de elevação axiológica do humano Formamse seres humanos que se alimentam da espera que outros os digam o que fazer seres humanos da inércia ou como diz Mounier da espera das palavras de ordem As desigualdades sociopolíticas e econômicas continuam a miséria continua à porta dos desfavorecidos Falta a esse contexto o valor humano da pessoa como centro de toda ação de civilidade Assim o problema que propomos discutir é quais as 19 contribuições do pensamento personalista de Mounier para a formação humanizadora que podem refazer a Renascença isto é recolocar o homem como centralidade das preocupações do fazer humano A metodologia que utilizamos incluiu a pesquisa bibliográfica a análise das fontes primárias de Mounier suas principais obras e a análise das fontes secundárias obras de comentadores do pensamento do autor Segundo Severino 1985 a pesquisa bibliográfica tem como técnica central a leitura e como instrumento principal o fichamento bibliográfico Assim buscouse analisar os conceitos principais do autor na perspectiva de compreender o sentido da pessoa e suas contribuições para uma formação humanizadora a humanidade ainda está carente de diálogos compromissados uma vez que o homem continua espoliado maltratado em suas dimensões espiritual e material SILVEIRA 2012 p 5 Priorizamos a análise das seguintes obras Obras Completas tomos I a IV em especial O personalismo bem como as ainda notórias Introduction Aux Existentialismes La Petite Peur Du XX e Siécle Manifeste Au Service Du Personnalisme e Révolution Personnaliste et Communautarie que estão inclusas nas Obras Completas tomos I a IV Também foram inclusos autores secundários que abordaram com veemência o pensamento de Mounier como Moix 1968 Lacroix 1969 1977 Severino 1974 1983 1990 2009 Andreola 1985 Mussi 1987 Lopez 1989 Lorenzon 1996 2000 Peixoto 1998 2009 Rezende 2008 Paula 2010 Silveira 2010 Coq 2012 dentre outros que realizaram estudos em que discutem a constituição do pensamento personalista do filósofo e suas contribuições para se pensar as mudanças do homem e da sociedade Desse modo tratouse no primeiro capítulo sobre a história de vida de Mounier o contexto da crise da Europa em que ele se encontrava e a sua escolha pelo engajamento na defesa da dignidade humana Essa discussão é necessária para entendermos que não há como estudar o pensamento deste autor sem compreender sua trajetória de vida justamente por ser seu pensamento uma articulação íntima de fidelidade entre vida e pensamento Foi o seu modo de pensar em fidelidade ao real que gerou este elo o qual não é uma correspondência nem uma similitude entre o pensamento e o real mas é tamanha a imersão de vida pensamento no real que o seu pensar encarnado o tomou por toda a sua vida Isso foi fruto de uma vida de interioridade e de exterioridade na qual se instalou uma contínua práxisviva na defesa da pessoa uma contínua não alienação ou seja um movimento contínuo de personalização O segundo capítulo apresentou e analisou os principais conceitos do pensamento personalista de Mounier Em especial como ele conceitua a pessoa mesmo sendo ela um 20 ser inventariável um movimento sempre novo uma abertura uma autocomposição axiológica Mounier 2004 aborda as características da estrutura do universo pessoal como um eixo de equilíbrio que assegura a possibilidade de se pensar uma nova civilização mediante a compreensão da pessoa como ser encarnado vocacionado e em comunhão vinculada à tríade constitutiva euTunós No terceiro capítulo buscouse compreender as principais influências teóricas recebidas por Mounier o cristianismo a fenomenologia existencial e o marxismo Buscouse ainda compreender se há uma proposição de um novo humanismo Nesse sentido abordam se as origens do humanismo e os diferentes humanismos apresentados pelo autor As análises de Mounier com relação às propostas de humanização de seus dias possibilitaram ainda mais a apreensão da pessoa como sendo o centro axiológico de toda a ação humanizadora Aqui se mostra em Mounier uma filosofia não ideológica mas axiológica e defensiva que afronta os processos de desumanização do homem e da natureza Apreenderamse as características do humanismo de Mounier assentadas nas características do universo pessoal na encarnação vocação comunhão e na tríade constitutiva euTunós O movimento de humanização em Mounier é compreendido como processo de transformação cultural histórico e em atos criativos característicos da pessoa em liberdade com compromisso No quarto capítulo discutiuse o humanismo personalista do pensador e suas contribuições para a formação Buscouse compreendêlas a partir de três princípios dos quais dois Realismo Espiritual pensamentolinguagemcompromisso Formação e Cultura se interligam evocando o terceiro o Afrontamento Estas contribuições partem da compreensão axiológica imbricada de pessoa e comunidade de pessoas do compromisso do Estado e da compreensão de democracia personalista na direção da ascensão ao volume total do homem Assim se põe uma nova forma de ser em ato de amar que consiste no cogito existencial personalista amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida MOUNIER 2004 p 49 Mounier nos traz grandes contribuições para pensarmos a humanização do homem a sua vida sua postura ante os acontecimentos seu modo de questionar e responder aos problemas humanos e seu comprometimento em ação na defesa do ser humano Estes fatores expressam um modo de ser e de se fazer humano a pessoa humana Notase que o pensamento personalista de Mounier apresenta ao mundo uma máxima para a humanização a pessoa e esta só se alcança mediante a construção de comunidades de pessoas Aqui está a revolução que Mounier se propôs a realizar Pessoa e Comunidade É para esta máxima que foi direcionada esta pesquisa 21 CAPÍTULO 1 MOUNIER A CRISE E O ENGAJAMENTO 11 A crise na Europa Nos primórdios do século XX e em seu decorrer a Europa passou por profundas crises de ordem social política e econômica presenciando duas grandes guerras e sofrendo suas implicações como fome miséria e precariedade de condições de vida Os reflexos destas implicações foram sentidos por todo o mundo O contexto que acabou por culminar na explosão da Primeira Guerra Mundial teve seu início na virada do século XIX para o século XX em razão das insatisfações de alguns países europeus como Alemanha e Itália com a partilha da Ásia e da África entre a França e a Inglaterra Tal quadro por sua vez gerou conflitos econômicos A corrida armamentista entre os países europeus e as alianças firmadas bem como o assassinato de Francisco Ferdinando príncipe do Império AustroHúngaro contribuíram também para o desencadeamento da guerra O período entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais novembro de 1918 e setembro de 1939 foi marcado pela Grande Depressão de 1929 vinculada a tensões políticas que culminaram no surgimento dos regimes totalitários em alguns países europeus como na Alemanha e na Itália Por consequência os graves problemas sociopolíticoeconômicos geraram a Segunda Guerra Mundial Assim Martins apud COQ 2012 p 7 descreve o contexto entreguerras O panorama da história europeia era de grande incerteza Viviamse os efeitos da Grande Depressão a sombra obscura da guerra e dos Tratados de Versalhes fazia se sentir o desprestígio da política era evidente Tudo se associava no sentido de uma estranha ameaça em que os nacionalismos agressivos se ligavam aos ressentimentos alimentados por uma perigosa associação do salvese quem puder dos protecionismos e de uma violência social descontrolada com tensões que se acumulam Essa crise vivida pela Europa foi fruto de uma postura racionalista instrumental a qual não conseguiu corresponder às necessidades humanas e desdobrouse em fracasso no processo de humanização gerando os sistemas fascista e nazista Cugini 2009 sp destaca alguns marcos desse fracasso da seguinte maneira 22 Depois de 1918 os mitos que a Revolução Industrial tinha reproduzido e que o pensamento positivista tinha sucessivamente propagado sofreram um choque muito grande Progresso inovação tecnológica democracia palavras que até 1914 eram sinônimos de esperança e confiança no futuro agora na alvorada dos anos 20 tornamse o símbolo do fracasso de toda civilidade Ocidental A crise no regime democrático era o ponto mais claro do Declíno Ocidental Cugini 2009 afirma que os movimentos democráticos do pósPrimeira Guerra não conseguiram resistir aos sistemas de tipo autoritário em virtude da ausência de estratégias políticas e de capacidades governamentais que assegurassem a democracia Assim o autor descreve o crescente surgimento do autoritarismo na Europa e a dificuldade de resistência aos seus germes da seguinte maneira Foi o caso da Polônia do Marechal Pilsodsky da Turquia de Mustafá Kemal da Grécia do General Metaxas da Iugoslávia do Rei Alessandro I da Ditadura Comunista de Bela Kun na Hungria da Áustria do Monsenhor Seipel e do Chanceler Dollfus Não fugiram à experiência autoritária a Espanha com a Ditadura Militar de Primo de Rivera e do Rei Alfonso XIII e o Portugal de Salazar Os países da Europa Setentrional e Ocidental quer dizer as monarquias escandinavas países baixos Bélgica Inglaterra França também se em seguida fugiram ao contágio das ditaduras não foram porém prevenidos totalmente contra os seus germes A tentação os assaltou Tal tentação foi testemunhada pela crescente formação de grupos e movimentos políticos que se inspiravam nos modelos do fascismo e do comunismo que tentaram em várias circunstâncias derrubar as democracias CUGINI 2009 s p A França também sofre as tensões das ditaduras e com a estagnação econômica do pós1929 A sua localidade geográfica assim como a crescente influência do Partido Comunista Francês que teve respaldo na experiência da Frente Popular1 em 1936 contribuíram para que fossem sentidas as pressões de outros países que se desdobraram em tensões internas A França vivenciou o breve governo do socialista Léon Blum o qual não resistiu em virtude das disputas internas entre comunistas e socialistas Os movimentos europeus de disputas políticas e sociais pósbélicos e de experiências novas de governabilidades propiciaram caminhos livres para o totalitarismo O fascismo surgiu na Itália com Mussolini a partir de 1919 como resultado do medo por parte da classe média durante o período pósguerra por conta das pressões de ordem econômica política e cultural As suas principais características foram nacionalismo cerceamento da liberdade civil autoritarismo repressão à Igreja exército com característica nacional e unipartidário limitações impostas 1 A Frente Popular em francês Populaire Frente foi uma aliança de movimentos de esquerda incluindo o Partido Comunista Francês PCF a Seção Francesa da Internacional Operária SFIO e o Partido Radical e Socialista durante o período entreguerras Ele venceu as eleições legislativas de maio de 1936 levando à formação de um governo liderado pelo primeiro líder da SFIO Léon Blume exclusivamente composto por ministros radicalsocialistas e membros do SFIO 23 aos empresários na administração de sua força de trabalho impostos progressivos cooperativas economia com base no desenvolvimento da indústria e república italiana O nazismo nasceu na Alemanha a partir das eleições nacionais de 1919 O partido nazista teve como chefe Adolf Hitler austríaco participante do exército alemão Sua referência foi o Partido Fascista porém com maior uso de violência contra os socialistas comunistas e judeus Como características perseguia os sindicatos e os jornais e pregava a necessidade de manter a pureza da raça ariana eliminando os judeus da Alemanha que eram acusados de capitalistas e causadores do enfraquecimento da Alemanha Todo o poder ficou centralizado nas mãos de Hitler No ano de 1932 ele elegeu 230 deputados Assumiu em 1933 o cargo de PrimeiroMinistro usandose da tropa de choque e de muita violência para eliminar seus adversários Em outra perspectiva não mais do domínio de países europeus sobre si mesmos mas da dominação dos países europeus sobre os demais existentes no mundo Hobsbawm 2001 afirma que a Europa neste período se apresentava em uma fase de finalização das conquistas e da afirmação dos dois sistemas de dominação tendo eles a mesma essência a dominação Durante o século XIX alguns países sobretudo aqueles às margens do Atlântico Norte conquistaram o resto do globo não europeu com ridícula facilidade Onde não se deram ao trabalho de ocupar e dominar os países do Ocidente estabeleceram uma superioridade ainda mais incontestável com seu sistema econômico e social sua organização e tecnologia O capitalismo e a sociedade burguesa transformaram e dominaram o mundo e ofereceram o modelo até 1917 o único modelo para os que não queriam ser devorados ou deixados para trás pela máquina mortífera da história Depois de 1917 o comunismo soviético ofereceu um modelo alternativo mas essencialmente do mesmo tipo exceto por dispensar a empresa privada e as instituições liberais HOBSBAWM 2001 p 198199 Capitalismo e comunismo não resolvem os problemas básicos da existência humana em especial o da liberdade e da humanização Observase que o coletivismo marxista e socialista com o projeto coletivo global desconsiderava elementos primordiais do ser humano como a dimensão espiritual do homem e a compreensão do homem como um ser total pertencente a uma comunidade O capitalismo com o seu modo de vida e sua lógica de produção e acúmulo de bens impõe ao indivíduo um valor acima do social despertando nele o individualismo A crise se mostrava também no âmbito cultural Autores daquela época buscavam outro modo de se fazer cultura por entenderem que a produção até aquele momento havia se esgotado no sentido da humanização do homem A preocupação dos pensadores voltase para a relação homem e natureza de modo mais aprofundado Cugini 2009 sp esclarece 24 Na alvorada dos anos 30 nasce uma maneira de fazer cultura mais atenta às problemáticas sociais o retorno do espírito à história uma reflexão dirigida ao concreto e ao social um pensamento mais objetivo e mais grave A produção histórica e sociológica de Edmund Husserl Johan Húzinga Denis de Reugemont Georges Bernanos não baseou a própria atenção sobre a reconstrução genealógica dos males que golpeavam a civilidade De fato a constatação de que o sistema industrial e econômico tinha esgotado a própria possibilidade não bastava mais A análise destes autores se aprofundava no relacionamento entre o homem e a natureza Para eles a indústria e a tecnologia que surgiram como instrumentos a serviço da humanidade se tornaram ameaça perigosa para o gênero humano A partir desta crise na Europa novas correntes filosóficas se originaram como o existencialismo que visava voltar às coisas como elas são não como se pensa que elas sejam se opondo ao intelectualismo e ao idealismo e o personalismo se opondo ao individualismo burguês ao coletivismo marxista à coisificação humana Tornouse um momento intelectual histórico de efervescência de pensamentos Mas em que consistiam estas correntes filosóficas emergentes daquele momento Conforme Beaufret 1976 quando se fala em existencialismo a palavra que primeiro se acentua é a existência em contrapartida à essência Essentia é a transposição direta no plano nominal do verbo esse que corresponde a ser Já o termo existere está associado à palavra existência que significa sair É um movimento para fora mostrarse saída de um estado para outro Conforme Ewald 2008 o primeiro pensador a ser considerado existencialista foi Kierkegaard 18131855 e foi ele quem se colocou contrário ao domínio totalitário da razão O termo existencialismo se situa a partir da década de 1930 passandose a considerar os seguintes tipos o cristão tendo como percursores Jasper e Gabriel Marcel ambos católicos e o ateu com Heidegger e Sartre O personalismo de Mounier surge em confronto à crise econômica política e social Foi um mover em pensamento e ação a favor da pessoa humana 12 Mounier e o engajamento Nesse contexto de crise na Europa particularmente na França encontrase Emmanuel Mounier com uma profunda inquietação um inconformismo diante da miséria da civilização que o despertou para o engajamento pessoal Mounier questionou o capitalismo burguês o coletivismo o totalitarismo a crise estabelecida na Europa e os seus desdobramentos e propôs um movimento na busca por refazer a Renascença ou seja fazer renascer o homem como pessoa o personalismo 25 O engajamento de Mounier na defesa da pessoa se deu em virtude do contexto sociopolíticoeconômico no qual ele estava inserido período entreguerras na Europa no início do século XX por causa das suas exigências espirituais e da sua consciência histórica da necessidade de uma tomada de decisão Segundo Severino 2009 p 156 Mounier tinha particular sensibilidade à violação histórica da dignidade do ser humano A percepção de Mounier desta violação o moveu a engajarse na busca de mudanças da realidade humana e histórica na qual se encontrava Mounier percebeu o quanto o ser humano estava coisificado e desumanizado vivendo a plena miséria dos valores humanos em seus dias Para o filósofo o que existia em seus dias era uma desordem estabelecida causada pelo sistema capitalista pois este era a fonte das crises política moral econômica e social Tornavase necessária uma volta aos valores humanos tendo como centralidade a pessoa o único de tudo que se estabelece no social político e econômico como valor absoluto Andreola 1985 p 5 ao descrever sobre este período apresenta a crise no processo de humanização instaurada nas formas de sociedade vivenciadas na Europa afirmando que para Mounier ela a crise não estava resolvida Ao contrário ela se agravou As estruturas burguesas do capitalismo idólatra do dinheiro e do conforto adquiriram dimensões gigantescas alimentadas pela miséria pela fome e pelo desespero dos povos Os sistemas fascistas moveramse geograficamente eles mudaram de nome e de aparência mas eles estão sempre aí instalados profundamente Os regimes marxistas por seu lado radicalizaram suas posições de negação sistemática dos valores do espírito e colocaram em seu lugar estruturas de opressão da pessoa submissa ao estado autoritário Estas três formas de sociedade têm em comum a desumanização da vida e a opressão do ser humano No espaço das relações internacionais o falso equilíbrio da existência humana é imposto pelo poder sobretudo do dinheiro e das armas A construção da comunidade humana é sempre um desafio e um caminho para aqueles que creem na pessoa e no destino da humanidade Tradução nossa Nesse sentido para compreender o pensamento personalista de Mounier e o seu engajamento é necessário entender a sua própria trajetória de vida Foi fiel à regra da composição da harmonia que é a existência humana e que foi sua vida Sua honestidade intelectual sua autenticidade e sinceridade diante dos acontecimentos seu respeito pelo outro sua generosidade seu amor pelos homens sua força de vontade sua fidelidade fizeram dele um líder um guia um profeta Para ele a fidelidade era como o prolongamento da juventude expressão de virtude permanência e atualização da permanência em contato com os acontecimentos SEVERINO 1974 p 14 grifo nosso Emmanuel Mounier nasceu em Grenoble França em 1º de abril de 1905 Filho de pais que cultivavam hábitos simples de origem católica exercia portanto a fé cristã Essa 26 tradição católica trouxe profundas influências na sua vidaobra Seu pai foi farmacêutico e era neto de camponeses Na sua infância viveu com seus pais avós e uma irmã mais velha em sua cidade natal até os dezenove anos Vivenciou momentos felizes na sua infância e demonstrava uma maturidade precoce A este respeito Severino 1974 p 1 afirma era precocemente maduro levado desde cedo à meditação desde jovem capaz de perceber e viver sem perder o equilíbrio e a alegria da juventude a crueza da realidade Encontra pessoas isto era o que eu esperava da vida e bem sentia isso o que queria dizer encontrar o sofrimento Mounier sofreu dois acidentes que afetaram sua audição perdeu um ouvido e sua visão perdeu uma vista restringindoo fisicamente Isso segundo Severino 1974 teria deixado em Mounier um sentido de fragilidade da vida Vega 1990 p 135 confirma o trágico fato e reflete sobre a influência disso em Mounier A surpresa parcial e o fato de que ele perdeu a maior parte da visão em um olho a partir de seus primeiros anos influenciou sem dúvida em seu caráter tímido um pouco triste melancólico e solitário O ambiente familiar contribuiu para a formação de Mounier pois a relação familiar era respeitosa e convivia em um ambiente caloroso Sua família era profundamente religiosa e Mounier se dedicava à meditação mais que à própria família Percebendo esta característica em Mounier sua família buscou preservar sua infância feliz e orientálo a um estudo mais prático medicina buscando compensar a sua tendência à meditação SEVERINO 1974 p 2 Seguindo o desejo dos pais Mounier ingressou na faculdade de medicina Entretanto a sua vontade era dedicarse à formação humanista Posteriormente Mounier entrou em conflito com o curso de medicina o que o levou ao desespero e ao desejo de suicídio Porém foi em um retiro espiritual que Mounier afirmou que teve a revelação da verdadeira humildade que eu ignorava de minha vocação da qual duvidava SEVERINO 1974 p 3 Isso se confirmou em 1924 quando ele abandonou o curso de medicina entrando para o de filosofia e cursouo no período de 1924 a 1927 com o objetivo do apostolado religioso tendo como mestre o filósofo Jacques Chevalier Segundo Domingues 2005 p 103 o próprio pai o entrega a J Chevalier que se tornará seu amigo Jacques Chevalier 1882 1962 era agrégé de filosofia título correspondente a doutor em filosofia e docente na Faculdade de Letras em Grenoble autor de vários livros em especial sobre filosofia Vega 1990 afirma que de alguma maneira foi Jacques Chevalier quem perfilou a vocação filosófica de Mounier 27 Este momento histórico da vida do autor o da saída do curso de medicina para a entrada no de filosofia é definido por Lacroix 1969 como a primeira conversão de Mounier e a compreensão deste fato é ainda ampliada pelo mesmo Lacroix ao tratálo como uma ação contínua na vida de Mounier Na verdade tratavase no fundo mais que de um não à medicina de um sim à filosofia A nossa fé mais profunda se manifesta à consciência em primeiro lugar como uma recusa de tudo o que não está nela LACROIX 1969 p 26 No período em que cursou filosofia Mounier exerceu atividades militantes em movimentos da Igreja Católica Criou um grupo de estudos religiosos para futuros professores Em 1925 atuou como líder e engajouse em um apostolado leigo entre os estudantes esclarecendoos sobre a crise da Action Française2 Nesse período Mounier conheceu o Padre Guerry vigário de Santi Laurent bairro operário de Grenoble Juntamente com ele visitou os bairros mais pobres da cidade e passou a ter contato com a miséria vivida pelas pessoas daquela época Isto marcáloá para sempre recebendo talvez aí o seu batismo de fogo SEVERINO 1974 p 3 Em 1927 defendeu sua dissertação para a obtenção do diploma de Estudo Superior de Filosofia com o título O conflito antropocentrismo e teocentrismo na filosofia de Descartes Esse trabalho continuou inédito salvo por algumas partes das conclusões que foram publicadas em les Etudes philosophiques 1966 número 3 julioseptiembre p 310324 DÍAZ 1991 p 17 Segundo o autor nesses textos poderseá encontrar um eco do seu mestre J Chevalier e fundamentos antropológicos No ano seguinte em 1928 partiu para Sorbonne Paris com o objetivo de entrar para o doutorado Lá ele sentiu um ambiente frio idealista abstrato e uma atmosfera artificial Entretanto conseguiu construir uma profunda amizade com Georges Barthélemy Conforme Severino 1974 este seria o seu principal amigo daquele período Porém Barthélemy morreu deixando Mounier com uma dolorosa dúvida e tristeza quanto ao seu futuro acadêmico pois não se sentia como parte deste contexto Em Paris Mounier entrou em contato com o filósofo e escritor Jean Guitton 1901 1999 Frequentou reuniões na casa de Jacques Maritain 18821973 filósofo de orientação católica e encontrou regularmente o Padre Pouget 18471932 Este era lazarista amigo e 2 Action Française foi um movimento contrarrevolucionário monarquista e orleanista francês fundado em 1898 por Maurice Pujo e Henri Vaugeois Surgiu como reação à revitalização da extremaesquerda que se materializou em defesa do capitão do exército celebremente iniciada pelo Jaccuse de Emile Zola Originalmente uma organização nacionalista que atraiu figuras como Maurice Barrès tornouse monárquico sob a influência de Charles Maurras que seguia os passos do teórico contrarrevolucionário Joseph de Maistre Até sua dissolução ao fim da Segunda Guerra Mundial a Action Française foi uma defensora de destaque do integralismo de inspiração tradicionalista 28 inspirador de J Chevalier a quem recomendava os seus alunos Conforme Severino 1974 Padre Pouget era uma personalidade mística um verdadeiro orientador em Paris responsável pelo aprofundamento religioso de Mounier e por sua segurança teológica Neste ambiente de contatos com intelectuais inconformados com a crise da Europa Mounier passa a integrar um movimento de matriz católica que tinha como busca para além da esquerda e da direita uma terceira via políticaespiritual que fosse capaz de superar os antagonismos ideológicos ineficientes de seus dias Este movimento pertenceu a uma corrente espiritual com profundas exigências pela dignidade humana direcionando as ações para o plano político contra o racionalismo o individualismo e o materialismo Podem ser listados alguns participantes desta corrente de intelectuais de matriz católica como Lavelle Le Senne Berdiaeff e Maritain Estes foram impulsionados a um renascimento religioso pela Encíclica de Pio XI Quadragesimo Anno que dispõe sobre a restauração e o aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a Lei Evangélica no XL Aniversário da Encíclica de Leão XII Rerum Novarum3 e ao mesmo tempo testemunhas da vitalidade da Ação Católica na França e na Itália Em 1928 foi aprovado para o curso de doutorado em filosofia na Sorbone conquistando bolsa de estudos por três anos Conforme Dominguês 2005 p 103 Mounier já apresentava preocupações vinculadas ao tema personalismo faz a Agrégation classificado em segundo lugar depois de Raymond Aron Candidato a bolseiro de doutoramento 19281930 procura um tema para a sua tese entre os místicos espanhóis a candidatura não é aceite mais tarde o tema da personalidade será retomado em Traité du Caractère na base da sua antropologia visto com outra maturidade Sobre o tema da tese de Mounier Severino 1974 afirma que o autor buscou conselhos com seus novos amigos de Paris Pensa no pecado na mística espanhola responsabilidade e destino Finalmente decide sob influência de Henri Delacroix fixarse sobre o tema da personalidade SEVERINO 1974 p 4 Em Paris Mounier redescobriu Charles Péguy 18731914 poeta dramaturgo ensaísta francês considerado um dos principais escritores católicos modernos que o marcou profundamente Em 1931 publicou seu primeiro texto em coleção com J Maritain juntamente com Marcel Péguy e Georges Izard tendo como tema da obra O Pensamento de Charles Péguy Notase neste pequeno relato de Mounier 1992 p 39 sobre Péguy a compreensão 3 Carta Encíclica Rerum Novarum sobre a condição dos operários 15 de maio de 1891 Papa Leão XIII 29 que este tem em relação à ciência Péguy não se deixa prender nesta separação da escola A ciência conhecimento desinteressado do universo emancipado das religiões e distribuindo algumas migalhas de seus descobrimentos a uma indústria servil alegoria para os bilhetes de banco A ciência é uma obra de carne modelada por homens que trabalham e que crêem MOUNIER 1992 p 3 tradução nossa Esta compreensão de ciência como uma construção dos seres humanos e a favor dos que trabalham e que creem não a favor do mercado é um dos elementos que despertam em Mounier a rejeição pelo trabalho abstrato da academia Nesta direção o filósofo influenciado pela vida e pela obra de Péguy desistiu do doutorado Lacroix 1969 p 27 chama este momento na vida de Mounier de segunda conversão que é a do ensino a um tipo de ação uma ação mais engajada Ainda Lacroix 1969 p 2728 esclarece como deve ser compreendida a noção de engajamento naquele momento da vida de Mounier Ao contrário do que muitas vezes se pensa no princípio a noção de engajamento em Mounier não tinha conteúdo político Psicologicamente ela nasceu da ideia de apostolado É uma atitude não propriamente moral mas espiritual que supõe uma espécie de transformação total do ser ao mesmo tempo em que uma perfeita disponibilidade às tarefas quotidianas quaisquer que se apresentem A vocação do ensino como apostolado de Mounier foi se transformando em vocação educativa pouco a pouco Ainda que recusando em relação à função universitária Mounier compreendeu no entanto que sua verdadeira vocação é a de educador LACROIX 1969 p 28 Não apenas de um educador escolar mas de educador de uma civilização Quanto à decisão de abandonar a academia VillelaPetit 2005 p 151 esclarece quando se procura compreender as decisões que Mounier foi levado a tomar em fidelidade ao apelo de sua vocação pessoal é aliás impossível não se ter em mente o aspecto liberador que representara para ele o pensamento de Péguy O pensamento de Péguy gerou a força propulsora de libertação em Mounier promovendo o seu engajamento ao que estava fora da academia a vida humana Foi na Sorbonne quando percebeu a densidade que era dada aos aspectos abstratos da vida acadêmica que se desligou de todo este contexto Em sua escrita ao amigo Jacques Chevalier em maio de 1928 descreveu como se sentia diante desse ambiente Decididamente sou incapaz da atitude objetiva daqueles jovens que se colocam diante dos problemas como diante de uma peça de anatomia e diante da própria carreira como diante de um mecanismo a montarse metodicamente até o ponto fixo esta gente me desgostou de seu método e me teriam empacotando tudo 30 desgostado da filosofia que disso não é responsável MOUNIER apud SEVERINO 1974 p 4 grifo nosso Mounier não coadunava com a formação que era oferecida e com a postura dos estudantes diante dos problemas do homem Para ele o que existia naquele ambiente era falta de transtornos na vida SEVERINO 1974 p 19 ou seja os estudantes não se incomodavam com os problemas humanos Ele percebia o comprometimento daquele tipo de desenvolvimento universitário da inteligência Desse modo acreditava Mounier que faltava aos professores o sacrifício consentido ou a provação e a própria noção de miséria humana faltavamlhes mais sensibilidade e vivência do drama humano SEVERINO 1974 p 19 A defesa de Mounier não se daria na esfera da pesquisa sobre o ser humano pois este não seria o foco de estudo Ele mesmo havia declarado a sua incapacidade de se postar diante do problema humano como se este fosse uma peça de anatomia Seu empenho seria no combate a favor do ser humano Existe uma diferença epistemológica entre pesquisar o problema humano e estar em um exercício de pensamentoação em combate a favor do ser humano São posturas distintas que se desdobram diferentemente na construção do pensamento É justamente o que virá a ser a dificuldade de conceituar a pessoa pois para Mounier 2004 a pessoa é sempre aberta fonte inesgotável de sentidos impossível de ser traduzida em conceitos Só é possível à pessoa captar seu sentido na vivência e não na teorização Ele sentia o grito de miséria do ser humano diante da realidade de seus dias os transtornos do outro em si mesmo e os seus próprios Para Severino 1974 o sentido que Mounier deu à sua vida foi profético mais que político Nessa direção Mounier afirma Tenho uma idéia muito nítida sim do sentido de minha vida Compreendi com isso uma impulsão e uma luz antes que uma direção traçada apud SEVERINO 1974 p 20 A respeito da influência de Péguy sobre Mounier VillelaPetit 2005 afirma que na própria obra escrita pelo segundo sobre o primeiro há o retrato do que seria seu futuro na esteira da vida de Péguy Se não vejamos é por ter compreendido estas idéias essenciais que Péguy conseguia e só ele com exclusão de tantos outros reunir uma equipe na qual trabalhavam fraternalmente católicos protestantes judeus e livre pensadores MOUNIER apud VILLELAPETIT 2005 p 154 Sobre esta correlação entre Mounier e Péguy Villela Petit 2005 p 154 esclarece que ambos conseguiram reunir em torno de si uma equipe heterogênea com divergências mas com objetivo de trabalho comum aceito por todos o Refazer a Renascença 31 Como Péguy também Mounier ao fundar Esprit haveria de reunir uma equipe composta de católicos de protestantes de judeus e de ateus Estes embora pudessem divergir sobre esta ou aquela posição a adotar diante dos problemas sociais e políticos que se apresentavam de modo que nunca falaram a uma sua voz tinham como meta um trabalho em comum aceitando como premissa o apelo de Mounier ao lançar a revista o de Refaire la Renaissance Andreola 1985 ao discorrer sobre o ponto de partida do pensamento de Mounier remete à influência de Péguy e levanta vários elementos como constatação dessa influência dentre estes a experiência da miséria como base da visão de mundo de Mounier Para ele como para Péguy foi a experiência da miséria que alimentou e enriqueceu sua visão do mundo O que nós podemos afirmar de Mounier é o que ele escrevia de Péguy que a miséria era para ele bem mais que uma aflição pessoal mais ainda que uma injustiça social um tipo de visão cósmica o grande evento do universo Ela acabará com os reinos que lutam contra ela ANDREOLA 1985 p 4 tradução nossa Segundo Mounier 2003a a presença da miséria revela a desordem estabelecida oriunda da desordem econômica do regime capitalista Na concretização crucial da miséria a prosperidade permite o jogo e mascara a injustiça A miséria esmaga o homem sobre seus problemas especiais e põe a descoberta MOIX 1968 p 59 O autor levanta algumas características apresentadas por Mounier 2003b da desordem tendo como ponto de partida a presença da miséria é a conseqüência da desordem econômica fruto do regime capitalista castas de privilégios que vivem na abundância ao passo que massa dos trabalhadores vegeta nessa miséria atroz É também de ordem política o dinheiro corrompeu os governos e a política não passa de um jogo de interesses o aviltamento dos valores espirituais e sua utilização para acobertar a desordem os idealistas afetavam um desprezo e uma ignorância total da situação material do homem Os materialistas eis o drama atrelaram sua revolução a metafísica inaceitável grande maioria reivindicam um materialismo filosófico mais perigoso para o homem que a escassez de pão mas o mal é mais grave ainda Este mal profundo é a crise do homem do século XX a crise da civilização ocidental A desordem é antes de tudo espiritual O individualismo é a raiz do mal Denuncia também o comprometimento dos cristãos com a desordem estabelecida MOIX 1968 p 5962 Perguntase de modo mounieriano onde estaria a ordem se o que existe é uma política em que uma minoria de ricos se sobrepõe à massa trabalhadora entregue à miséria E se os banqueiros e os industriais dominaram os meios de comunicação manipulando informações e os líderes espirituais com o objetivo de ditar a sua classe dominante como 32 única forma de governo e modo de vida a todos determinando assim a cultura da corrupção e os esfacelamentos dos valores ligados ao humanoespiritual onde estaria então a ordem Moix 1968 afirma que a ordem para Mounier não deve ser confundida com repouso aparente pois Mounier 2003a compreendia que existiam mais estados violentos do que eventos violentos A discussão posta da desordem estados violentos emerge do modo de vida da burguesia com seus hábitos de tranquilidade dando uma aparência de paz Este modo dissimulado de vida é expressão da perda dos valores espirituais O homem burguês se reveste de uma dualidade de senhor homens duplos homem que serve ao dinheiro e a Deus ao mesmo tempo A miséria que Mounier 2003b critica não pode ser confundida apenas com a pobreza econômica pois se refere à miséria da ausência dos valores espirituais O autor percebe a crise situada no regime capitalista na ordem política no aviltamento de valores nos idealistas nos materialistas no individualismo e no comprometimento dos cristãos com esta desordem A clareza com que o autor vê a Europa do início do século XX possibilitao ver os desafios aos quais estava se propondo Estes não seriam breves de pouca duração e a sua busca não seria a do sucesso mas a do testemunho de uma possibilidade de vida mais humana expresso pela fidelidade na continuidade MOUNIER 2003b 2004 No início da década de 1930 a geração daquela época buscava instrumentos culturais que fossem capazes de denunciar a crise instaurada propor mudanças na situação de miséria dos valores e uma busca de alcançar os corações das pessoas e com elas dialogar fecundamente Para Mounier uma revista poderia ser este instrumento Entretanto já havia várias revistas circulando Mounier não era satisfeito com o conteúdo delas em sua maioria comprometida com o modo burguês de vida Cugini 2009 afirma que eram as ambiguidades com o materialismo do mundo burguês que Mounier não aceitava nas revistas Podemse citar algumas como Europe Monde e La Nouvelle Revue Française Mounier iniciou a elaboração do projeto de uma revista Ele pensa um projeto de revista e ao mesmo tempo de movimento COQ 2012 p 23 Durante dois anos ele juntamente com seus três amigos Izard Deleage e Galey se dedicam à busca de conteúdos espirituais oriundos não só da cultura cristã mas de confrontos constantes com outras culturas Segundo observa Cugini 2009 os conteúdos da filosofia personalista nascem em meio a debates políticos e culturais daqueles dias e não em um meio de cátedra universitária O autor elucida que o primeiro número circular da revista Esprit teve o objetivo de apresentar o esboço programático desse projeto de publicações e a exigência expressiva de um grupo de homens de se pensar os modos de enfrentar os problemas reais com bases 33 filosóficas A Prémier Circulaire sur la Revue Projetée apareceu pela primeira vez em 8 de julho de 1931 Mounier avisava nesse primeiro esboço sobre o caráter internacional da revista além de demonstrar a amizade e a colaboração de Marcel Arland Nicolas Berdiaeff Maurice Baring Jacques Chevalier Jacques Copeau Charles du Bos Ramon Fernandez Daniel Halevy Gabriel Marcel Jacques Maritain Louis Massignon François Mauriac Eugenio dOrs Isabelle Riviere René Schwob Jules Supervielle e Pierre Van der Meer de Walcheren Conforme Cugini 2009 a parte central da circular da revista Esprit indicava que a publicação planejada não teria vínculo com qualquer partido social político ou literário e que não teria a intenção de ditar doutrina Em 1932 Mounier fundou a revista Esprit com o seu grupo de amigos em Font Romeu na propriedade dos Daniélou durante o congresso ali realizado entre 15 e 22 de agosto de 1932 Este encontro teve a duração de oito dias de grande densidade de manhã das nove até altas horas da noite COQ 2012 p 137 O trabalho da criação da revista nestes dias se deu por meio de grupos de estudos e de debates calorosos O primeiro dia de trabalho abriuse com uma missa tendo como tema da homilia O Espírito Santo Na segunda jornada de trabalho houve polêmicas entre Mounier e Déléage sobre o tema do relacionamento entre revista e movimento Déléage queria que existisse um diretor único tanto para a revista quanto para o movimento Após discussões acirradas Mounier propôs a existência de um diretor assistido por um conselho de redação e com direito de veto estendido até aos dois terços de votos Entretanto com o tempo Mounier foi ganhando a direção da revista e seria identificado com ela Posteriormente após as deliberações daquele momento conflituoso seguiram as palestras de Mounier sobre a direção espiritual do movimento Izard discutiu sobre a questão social Galey e Duveau sobre a educação e Déléage sobre a arte No fim dos trabalhos os colaboradores redigiram um documento que seria publicado no primeiro número de Esprit com o título Crônica do Movimento Segundo Severino 1974 p 6 Mounier tinha como pretensão por meio da revista Esprit O fundamento de um verdadeiro humanismo novo descobrindo valores humanos universais Contudo não é uma pesquisa isolada ao lado desta fundamentação está constantemente confrontando os princípios aos acontecimentos o fascismo domina a Europa explode a guerra da Espanha a paz é vendida em Munique enfim a segunda Guerra Mundial Em 1929 a grande crise econômica abala o mundo e a 34 recuperação capitalista não garantia satisfação às exigências da nova geração destes pensadores de entreguerra A revista Esprit a princípio surgiu como movimento Esta intenção pode ser observada já no próprio modo de se organizarem os grupos de estudos por temas Conforme Cugini 2009 entre novembro de 1932 e a primavera de 1934 se formaram os seguintes grupos de estudos econômico artístico social sobre corporação sobre o Estado e o Federalismo sobre os encontros internacionais sobre o marxismo e os grupos do jurídico e dos filósofos Mounier percebia a necessidade de formar uma ligação estreita entre os colaboradores uma vez que o movimento Esprit tinha como objetivo principal defender a pessoa contra as formas de opressões conforme Peixoto 2009 Mas entre 1933 e 1934 ocorreu a dissolução do grupo fundador por causa dos acontecimentos ligados à Troisiéme Force4 quando este se aproximou do frente populismo Gaston Bergery Essas duas organizações Troisiéne Force e frente populismo Gaston Bergery se fundiram na conferência nacional em um novo partido com o nome de Front Social ou seja Frente Social sobrevivendo até 1936 Mounier percebeu a necessidade de esclarecer o confronto com o Troisiéme Force Em 10 de julho de 1933 publicava na revista Esprit um Avertissement uma renúncia redigida junto a Georges Izard no qual declarava a separação entre a revista e o movimento Troisiéme Force Conforme Cugini 2009 s p Sobre o problema do relacionamento entre Esprit e Troisiéme Force Mounier sempre manifestou a própria desconfiança Convencido como era de que o compromisso de todos aqueles que trabalhavam no projeto Esprit devia ser antes de mais nada uma busca constante dos meios doutrinais capazes de levar o primado do espiritual numa época apodrecida das consequências do capitalismo e das falsas doutrinas liberais Mounier duvidava fortemente da eficácia de uma ação política A amizade do movimento escrevia Mounier em março de 1933 inclinava para uma mentalidade propriamente política ou seja muitas vezes buscando o oportunismo e a superficialidade Se não darmos para eles uma alma se perderão Na busca de uma revolução espiritual não era aconselhável se encaminhar batendo velhas trilhas como aquelas que ofereciam atividades políticas cheias de armadilhas e mesquinhez que podia atrapalhar logo no começo a obra empreendida De fato não era difícil cair na tentação de buscar na Troisiéme Force como em qualquer outro movimento político o próprio sucesso pessoal Todas as vezes que Mounier participava de uma reunião deste movimento percebia esta tentação Para manterse nesse período do início da revista Mounier começou sua vida no magistério de 1931 a 1932 ensinando filosofia em Siante Marie de Neully e no Liceu da 4 Troisiéme Force está sob a Terceira República e é um movimento político próximo de Esprit revista fundada em 1933 por Georges Izard André Déléage Louis e GeorgesÉmile Galey Duveau cujo objetivo era a busca de uma terceira via entre o capitalismo e o marxismo 35 Saint Omer O objetivo dos fundadores da revista Esprt não era de garantir uma segurança econômica O que existia entre seus animadores era uma pureza de objetivos O magistério na vida de Mounier teve a configuração de engajamento no sentido de empenho para com um ideal acima da busca de melhores condições de vida A ideia aqui é de manutenção da própria vida enquanto se dedica na resposta a uma vocação Na experiência de Mounier notase que a vocação não foi dada de repente mas revelouse no movimento de sua própria vida Nessa direção o engajamento consiste em um ato contínuo de busca e de descoberta do sentido da presença única de um ser no mundo COQ 2012 p 39 como uma decodificação pessoal no sentido da transcendência de si mesmo para si mesmo e para o outro Esta se torna um movimento de procura da vocação Logo o engajamento em Mounier perpassa a transcendência na direção de si e do outro ou seja é um movimento interno e externo de modo integral Nesse período segundo Severino 1974 Mounier participou do movimento de cultura religiosa Les Davidées Começou então sua vida como escritor por meio da revista Esprit em outubro de 1932 Vega 1990 afirma que Mounier levanta uma bandeira que defenderia por toda a sua vida a defesa do homem espiritual encarnado Ele cita ainda a expressão de Blazquez este foi o grito lançado incansavelmente por Mounier através de Esprit e que com ele compromete vitalmente A filosofia do autor envolve prioritariamente o compromisso com a realidade Repetia constantemente em seus dias Uma filosofia que não se compromete não serve MOUNIER apud VEGA 1990 p 136 Mounier passou por várias dificuldades de caráter financeiro incompreensões de amigos e suspeitas eclesiásticas no início da criação da revista Esprit Severino 1974 p 5 descreve algumas dessas dificuldades Dificuldades não faltaram contudo desde as financeiras até as dolorosas incompreensões como a de Chevalier que acabara rompendo com o discípulo tão querido a mordaz crítica de Mauriac enfim as advertências suspeitas e ameaças da hierarquia eclesiásticas Tudo surgia da acusação de modernismo e de comunismo ao novo movimento Mounier em 1941 relatou três sentimentos que o levaram a este caminho sem retorno que era a criação da revista Esprit como explica Severino 1974 p 5 Foi nesta época que se cristalizou em mim um tríplice sentimento 1 O sentimento de que um ciclo de criação francesa estava fechado que havia coisas a pensar que não se podia escrever em parte alguma para nós pianistas de vinte e cinco anos 36 faltava um piano 2 O sofrimento de ver cada vez mais nosso cristianismo solidarizado com o que chamarei mais tarde a desordem estabelecida e a vontade de fazer a ruptura 3 A percepção sob a crise econômica de uma crise total de civilização Esses sentimentos constatados por Mounier demonstram sua personalidade sensível diante da realidade e da história foi o que o fez se indignar e se engajar Ao descrever os seus sentimentos ele demonstra a clareza que tinha do real e o modo de se perceber como participante Sentiase inspirado convocado a tocar uma música nova mas não tinha o instrumento Percebia o cristianismo vinculado ao capitalismo longe da base cristã e sentia uma grande vontade de fazer ruptura Observava que a crise econômica existente era uma crise mais profunda pois estava na civilização A revista Esprit passou a ser o instrumento em que iria compor uma nova melodia com letras em defesa da pessoa Mounier 2003a argumenta que a sua geração se sente chamada a renovar o milagre no cumprimento da vida no combate à invasão promovida pela alma burguesa A revista tornouse o lugar de difusão de debates de alimento espiritual que animaria os intelectuais daquele momento entreguerras A defesa de Mounier consistiria na construção do humanismo situado em constante confronto com os acontecimentos tendo como característica principal a defesa da dignidade inalienável da pessoa humana contra toda forma de opressão e agressões políticas jurídicas morais econômicas ou religiosas e a busca do pleno desenvolvimento de cada pessoa Em dezembro de 1934 Mounier 2003b declara que a única ambição que o movimento Esprit tem a dar são instruções por meio da experiência Tornase um filosofar extra muros sem perder de vista a elaboração de um pensamento crítico e engajado LORENZON apud COQ 2012 p 125 Em paralelo à revista Esprit criaramse grupos de amigos dela que aos poucos foram difundindo na França as ideias do periódico Destacamse entre as cidades difusoras Bordeaux Chartres Digione Tolousa Lilla Tours Paris e Montpellier Também no exterior houve expansão de suas ideias em países como Bélgica Canadá Egito Espanha Inglaterra Holanda Itália Suíça Argentina O objetivo desses grupos era fazer circular as reflexões da revista Esprit não na superfície mas através de um sentir que envolvesse por dentro as novas gerações este era o grande objetivo da fundação destes grupos CUGINI 2009 p sp Nos desdobramentos históricos da vida de Mounier em 1935 casouse com Paulette Leclerq Esta convivência contribuiu para a construção de seu pensamento trazendo elementos do familiar e da comunidade em família ao personalismo Nesse mesmo ano fixou 37 residência em Bruxelas Severino 1974 afirma que o filósofo encontrou na sua esposa alguém com quem podia comunicarse plenamente A família para Mounier era um modelo de comunidade com vínculos de amor Casado com Paulette teve três filhas A primeira sofreu uma encefalite aos sete meses de idade o que a deixou inconsciente e lhe causou morte prematura A esta dura provação o casal soube dar uma generosa e cristã significação SEVERINO 1974 p 6 A profundidade humana e espiritual com que Mounier vivenciou esse sofrimento expressa a coerência de seu pensamentovida no que se refere à fidelidade como continuidade de atos No período de guerras Mounier foi perseguido por ser considerado perigoso Chegou a ser preso algumas vezes Em setembro de 1939 foi preso pelos alemães e libertado só em julho de 1940 Juntamente com a sua família passou algumas privações Nesse período a revista Esprit mesmo diante da censura circulou na zona livre Sete números de Esprit apareceram até junho de 1940 COQ 2012 p 27 Em agosto de 1941 a revista foi interditada por expressar opiniões cada vez mais críticas ao Regime de Vichy5 COQ 2012 p 137 Entre 1940 e 1941 a revista Esprit ficou dividida e posteriormente foi interditada Com Jean Lacroix em Lyon Mounier está em zona livre Vichy autoriza a revista Estes dez números de guerra entre novembro de 1940 e agosto de 1941 estão na origem de uma polêmica Esta estratégia encontra seu limite quando Mounier publica em julho de 1941 um texto de Marc Beigberder intitulado Suplemento às Memórias de um Burro Sob a aparência de um conto para uso das crianças deste século o autor faz o processo da colaboração O censor apenas viu a referência à Condessa de Ségur célebre autora de livros para crianças mas os leitores compreendem imediatamente que o burro era Pétain submetido a seu mestre Hitler No mês seguinte a revista Esprit foi interditada pela censura COQ 2012 p 27 28 Em 15 de janeiro de 1942 Mounier foi preso novamente como suposto membro do movimento Combat6 Em 21 de fevereiro foi posto em liberdade e sua residência ficou sob 5 Regime Vichy foi o Estado francês dos anos 1940 a 1944 Era um governo fantoche da influência nazista que se opunha às Forças Livres Francesas baseadas inicialmente em Londres e depois em Argel Foi estabelecido após o país se ter rendido à Alemanha nazista em 1940 na Segunda Guerra Mundial Recebe o seu nome da capital do governo a cidade de Vichy próximo de ClermontFerrand Foi um dos períodos mais obscuros da história do país Pétain construiu um regime colaboracionista com os nazistas As Milícias de Vichy prenderam cidadãos que se opunham ao regime fuzilaram suas lideranças entregaram os judeus franceses aos alemães adotaram a política nazista da segregação racial e enviaram ciganos prostitutas indigentes homossexuais e outras minorias para os campos de concentração 6 O Movimento Combat inicialmente chamado de Movimento de Libertação Nacional MLN era um movimento de resistência que apareceu na França durante a Segunda Guerra Mundial Ele foi criado em agosto de 1940 em Lyon por Henri Frenay e Berty Albrecht Aos poucos o MLN logo se tornou o Movimento Francês de Libertação MLF e fundiuse com outras redes menores nas regiões em que é implantado Após fusão no final de 1941 o movimento Liberté é rebatizado de Combate No entanto quando no final de 1941 De 38 vigilância Em abril do mesmo ano passou por um internamento administrativo Como forma de protesto fez greve de fome por doze dias juntamente com alguns companheiros de cela Foi libertado mas em 8 de julho foi preso novamente até a data do julgamento do processo de Combat Foi então absolvido em 26 de outubro Na prisão Mounier escreveu a maior parte do seu livro Traité du caractere Com os avanços dos alemães na zona livre Mounier levou sua família para Dieulefit no Drôme Em 1944 com a libertação voltou para Paris e passou a viver com um grupo de famílias amigas e a dedicarse aos ideais da revista Esprit a qual retornou em dezembro de 1944 sendo apoiada pelos antigos e novos amigos como Goguel Morrou Lacroix Fraisse DAstorg Domenach e Ricouer Conforme Severino 1974 p 7 após meditação forçada da guerra Mounier volta à ação Inaugurouse uma nova série da revista Esprit em dezembro de 1945 Mounier passou a fazer viagens ao exterior com o objetivo de organizar e reorganizar grupos ligados ao movimento Nos anos seguintes publicou vários livros em 1946 Liberte sous conditions e Introduction aux existentialisme em 1947 Questce que le personnalisme em 1948 Leveil de lAfrique Noire e La petite peur du XXème siécle em 1949 Le personnalisme sua última obra em vida Domingues 2005 esclarece que as obras de Mounier apresentaram a princípio as linhas de partida e as de método e de ação Posteriormente já no final dos anos de 1940 ele as precisou como filosofia As primeiras obras procuravam apresentar as linhas de partida e as linhas de método e de ação para estabelecer a nova civilização São por assim dizer a matriz da sua obra filosófica pois só mais tarde no final dos anos 40 o personalismo se vai precisar como filosofia DOMINGUES 2005 p 108 Ao todo as obras de Mounier foram publicadas em quatro volumes O primeiro Obras completas tomo 1 apresenta os seguintes temas O pensamento de Charles Péguy Revolução personalista e comunitária Da propriedade capitalista à propriedade humana Manifesto a serviço do personalismo Anarquia e personalismo Personalismo e cristianismo Os cristãos ante o problema da paz Os textos das Obras completas tomo 1 são do período de 1931 a 1939 e foram publicados neste formato em Paris no período de 1961 a 1962 O segundo livro Obras completas tomo II recebe o título de Tratado do caráter contendo as seguintes subdivisões Os acessos ao mistério pessoal As provocações do ambiente O ambiente coletivo As provocações do ambiente O ambiente corporal As Gaulle optou pela ruptura com os partidários de Pétain as fontes de informação se reduziram Na área ocupada especialmente em Paris foi criada por Robert Guédon a Combat Zone Nord uma rede ativa que se estendeu a várias regiões da área ocupada como o NordPasdeCalais que é uma região administrativa da França 39 provocações do ambiente O ambiente corporal final Os poderes do estremecimento A acolhida vital A luta pelo real O domínio da ação O eu e os outros A afirmação do eu A inteligência em ação A vida espiritual dentro dos limites do caráter A maior parte do Tratado do caráter foi escrita na prisão em 1942 e sua primeira edição é de 1946 O terceiro livro Obras completas tomo III traz os seguintes temas O afrontamento cristão Introdução aos existencialismos Que é o personalismo O despertar da África negra O pequeno medo do século XX O personalismo A cristandade morta Os textos são do período de 1944 a 1950 O quarto livro Obras completas tomo IV contém informações póstumas e correspondências Apresenta os seguintes temas As certezas difíceis A esperança dos desesperados Mounier e sua geração correspondência conversas bibliografia Sua obra O personalismo foi publicada em 1949 e representa a síntese do seu pensamento Em 1968 textos de Mounier foram selecionados por Paulette Mounier sua esposa e publicados com o tema O compromisso da fé Os temas abordados em toda a obra do autor contemplam questões filosóficas do século XX além de questões psicológicas e referentes à democracia cristã Conforme Coq 2012 o pensamento de Mounier foi composto por dois polos fundamentais interligados O primeiro apresentase na busca das condições de uma nova civilização tendo como eixo pessoa e comunidade O segundo é o engajamento na história que interpela o pensamento através do acontecimento COQ 2012 p 20 Coq 2012 afirma que Mounier tem uma visão de longo prazo marcada por três grandes etapas que em uma boa parte coincidem fazendose necessário o engajamento contínuo Na primeira etapa Mounier descreve a longa fase da história a dimensão da pessoa corpo encarnação A segunda é a formação da humanidade como unidade coletiva A terceira aborda a progressão da história para a pessoa que faz aparecer a transcendência As duas primeiras instalam a historicidade a terceira faz acender a um transhistórico COQ 2012 p 117 Andreola 1985 diz que essa dimensão de futuro para Mounier não está livre de ser ameaçada uma vez que ele não era idealista Vale dizer que Mounier 2004 empenhouse na superação da banalização e da coisificação da vida humana num clima de grandeza Para ele a vida de sociedade é uma permanente guerrilha MOUNIER 2004 p 43 Em 22 de março de 1950 Mounier morreu de complicações cardíacas Embora a doença já apresentasse sinais Mounier não lhe dava a atenção devida atribuindo o seu estado ao excesso de trabalho conforme assinala Severino 1974 Sua passagem foi rápida mas 40 intensa o que não o impediu de influenciar profundamente seu tempo com seu pensamento e dedicação na busca de uma revolução que respeitará os direitos da pessoa LACROIX 1969 p 25 Em relação ao modo como o autor viveu tendo em vista suas apreensões e a busca que empreendeu podese dizer parafraseando Milton Nascimento que para Mounier humanizar é preciso viver não é preciso No testemunho de sua vida cristã a expressão do apóstolo João em relação ao amor de Jesus pelos seus discípulos pode aqui ser expressa sobre o amor do autor João disse que Jesus tendo amado os seus que estavam no mundo amouos até o fim Nesse sentido Mounier tendo amado os seus o despertar da pessoa amouos até o fim se doando na busca da humanização do homem Sua vida foi pergunta e ao mesmo tempo resposta de amor à pessoa Foi amor ao ser pois o ato de amar é a mais forte certeza do homem o cogito existencial irrefutável amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida MOUNIER 2004 p 49 Não há dúvida Mounier foi um homem forte e empenhouse até o fim em favor de seus ideais Ele mesmo esclareceu o que é um homem forte na sua compreensão o que poderia ser uma expressão de si mesmo O homem forte prefere a plenitude de obras ao que a miragem das virtudes o significado do sacrifício na identificação em suas origens com um gosto para o real MOUNIER 1993 p 442 tradução nossa Mesmo tendo uma vida breve viveua com todas as suas forças na busca da plenitude das obras do espírito dos valores espirituais ligados ao sentido cristão da encarnação COQ 2012 p 101 A pessoa de obras para Mounier é o homem que produz e chamaremos o homem de consciência criativa MOUNIER 1993 p 290 tradução nossa Assim era a pessoa Mounier Sua força empenhada de consciência criadora pode ter advindo da relação face a face do EuTu de modo dialogal a palavra EuTu é o esteio para a vida dialógica BUBER 2004 p 36 No diálogo há esperança pois se acredita na relação EuTu em que há reciprocidade entre os dialogantes no sentido de respostas de abertura para o outro e para si mesmo A sua força foi também apresentada no afrontamento ao que Mounier chamaria de A luta de Jacob A força MOUNIER 2004 p 70 Como aquele que luta com Deus face a face e tem seu nome e sua história mudada Face a face o que olha de frente que afronta resiste consiste em uma luta constante na busca por justiça a ponto de a mudança de si mesmo de modo histórico ser pessoa A pessoa expõese exprimese faz face é rosto A palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prósopon aquele que olha de frente e afronta MOUNIER 2004 p 67 Mounier olhou seu tempo face a face tomando consciência de si e afrontouo de modo a lutar pela mudança Refazer a Renascença 41 Nesse sentido no percurso de sua vida notase o seu caráter de persistência e militância a favor do ser humano independente das situações favoráveis ou não Para Mounier 1990 é na medida em que me comprometo que avanço na obscuridade e na aposta e é nesta aposta que está o engajamento Severino 1974 pergunta sobre o lugar de onde o pensador tirou a fonte de energia de vida e ele mesmo responde supondo ser o testemunho de fidelidade ao que ele julgou ser a sua vocação Mistério como mistério é a vida de cada homem Talvez tivesse a consciência de ter recebido um dom e por isso mesmo queria entregarse para dar também SEVERINO 1974 p 8 Em Mounier pensador e filósofo encontramse elos entre o pensar e o agir de modo coerente entendendose que pensar e agir é engajamento É ação com compromisso criador de uma nova realidade mais humana Sua obra está diretamente relacionada às suas experiências de vida e seu pensamento nada mais é senão a vontade de comunicar a própria existência SEVERINO 1974 p 8 Obra e vida se confundem em virtude do próprio modo de pensar de Mounier filosofia encarnada Nada há em mim que não esteja imbuído de terra e sangue MOUNIER 2004 p 29 Coq 2012 afirma que poucos intelectuais do século XX evocam como Mounier a figura de Sócrates A solidariedade entre o ser o pensar e a ação que preconiza Sócrates encontrase excepcionalmente realizada por Mounier em seu tempo COQ 2012 p 20 Mounier 2004 p 18 também se vinculou a Sócrates ao dizer que foi ele quem fez a primeira revolução personalista O conhecete a ti mesmo é a primeira revolução personalista conhecida Em Sócrates e em Mounier há um fio condutor ou melhor uma tessitura de unidade vidapensamento e pensamentovida Tal é a pessoa de Mounier encarnada num lugar engajada num tempo e entre os homens MOIX 1968 p 135 Assim Mounier viveu seu pensamento na defesa da humanidade do homem 42 CAPÍTULO 2 O PERSONALISMO DE MOUNIER Mounier 2004 na obra O personalismo 1949 apresenta este termo como relativamente recente no percurso histórico Ele afirmou que depois de Walt Whitman com a obra Democratic Vistas 1867 podese encontrar o termo em vários autores americanos E ainda esclarece que Renouvier empregou o termo em 1903 para classificar a sua filosofia Para Mounier Renouvier denunciava a paixão metafísica e a procura política da unidade Além disso demonstrava os riscos desta vertente e as tentações anárquicas ou seja A pessoa para ele é antes de tudo o não a recusa de aderir a possibilidade de se opor de duvidar de resistir à vertigem mental e correlativamente a todas as formas de afirmação coletiva quer sejam teológicas quer sejam socialistas Reação sã infinitamente sã contra certos perigos mas que vai se enredar em tentações anárquicas MOUNIER 2004 p 24 Mounier 2004 se refere a outros autores que contribuíram com a constituição do pensamento sobre a pessoa dentre os quais figuram Sheler 18741928 ao abordar a axiologia da pessoa tendo como referência o cristianismo Buber 18781965 ao trabalhar a relação dialogal do euTu a partir da palavra princípio na constituição do eu a partir do Tu e do eunós Bergson 18591941 com os dados imediatos da consciência e fontes da moral Laberthonnière 18601932 com a teoria da imanência e o realismo cristão Blondel 1861 1949 com a lógica imanente da ação Péguy 18731914 com seu exemplo de vida na compreensão de que a tarefa do filósofo consiste na dedicação aos desfavorecidos vinculando pensamento e ação Gabriel Marcel 18891973 com o existencialismo cristão e Jaspers 18831969 com a elucidação da existência do homem real e não da humanidade abstrata Mounier declara no final da década de 1940 que aquilo que se chama hoje de personalismo está longe de ser novidade pois o universo da pessoa é o universo do homem MOUNIER 2004 p 13 Há nesse entendimento a ideia de pessoa tomada como presente desde que se pensou sobre o homem pela primeira vez Entretanto ele diz que foi necessário esperar até o século XX para que a pessoa fosse compreendida como ele define Segundo Moix 1968 Jean Lacroix afirma que Mounier construiu seu pensamento a partir da pessoa em direção ao personalismo nunca o contrário e completa dizendo que a história da pessoa é paralela à história do personalismo visto que noção e condição de pessoa estão vinculadas Pessoa e personalismo se configuram e são implicados historicamente Ou 43 defendese a pessoa para fazêla surgir e isso é o personalismo o compromisso maior com a pessoa como valor absoluto ou defendese o personalismo na busca de despertar a pessoa Mounier 2004 p 16 buscou na história do conhecimento sobre o homem a compreensão da pessoa percebendo que ela se mostrava presente desde a Antiguidade e até aos alvores do cristianismo o sentido da pessoa se mantém embrionário isso observando somente a história da Europa Ele discorre sobre os pensamentos dos filósofos como Platão Sócrates Aristóteles Plotino e Sófocles apresentando algumas ideias embrionárias como o entendimento de que a aparição da noção do singular é de certo modo uma sombra na natureza e nas consciências MOUNIER 2004 p 17 Platão tenta a redução da alma individual ao nível de uma participação na natureza e na cidade daí o seu comunismo tanto para ele como para Sócrates a imortalidade individual não era mais do que bela e arrojada hipótese MOUNIER 2004 p 17 Aristóteles insiste na ideia de que só o individual é real Para Plotino na origem de qualquer individualidade existe algo como um pecado original só havendo salvação num regresso total ao Uno e ao Imperial MOUNIER 2004 p 18 Mounier esclarece que os gregos tinham um agudo sentido de dignidade do ser humano e que mesmo que este por vezes se apresentasse com certa ambiguidade observase o seu gosto pela hospitalidade o seu culto pelos mortos Pelo menos uma vez Sófocles Édipo em Colona tenta substituir a idéia de um destino cego pela de uma justiça divina discernimento dotada Antígona é a afirmação e o protesto dos que testemunham valores eternos contra o poder As troianas opõem à idéia da fatalidade da guerra à da responsabilidade dos homens Aos discursos utilitários dos sofistas opõe Sócrates o aguilhão da ironia que perturbando o interlocutor o põe em cheque e os seus conhecimentos O conhecete a ti mesmo é a primeira grande revolução personalista conhecida Dadas as resistências do meio só poderia ter conseqüências limitadas Finalmente não podemos esquecer o Sábio da Ética a Nicómaco nem o emocionante pressentimento que os estóicos tiveram das cartas generis humani MOUNIER 2004 p 18 O autor apreende estes conceitos a noção de singular de alma individual a percepção de que só o individual é real a relação salvadora do individual no Uno e Imperial e o sentido da dignidade do ser humano como iniciais do sentido da compreensão de pessoa Assim ele insere o personalismo numa longa tradição MOUNIER 2004 p 13 Mounier 1992 compreende que no ser humano está a pessoa como que misturada como vinho e água Para ele a pessoa está no homem substancialmente encarnada mesclada com sua carne enquanto transcendente a ela tão intimamente como vinho se mescla com a água MOUNIER 1992 p 628 É nesse sentido que ele aborda o termo pessoa humana Assim notase que a direção do início ao fim do pensamento de Mounier é a pessoa como valor maior Conforme o autor este é o caminho para ultrapassar Kierkergaard e Marx 44 pois o que se chamou de revolução socrática do século XIX o assalto contra todas as forças modernas de despersonalização do homem MOUNIER 2004 p 23 foi então dividido nestes dois ramos Kierkergaard chamou o homem moderno à consciência da sua subjetividade e da sua liberdade Marx denunciou as mistificações que conduzem as estruturas sociais em suas condições materiais e ressaltou ao homem de seus dias que seu destino não depende do coração mas das mãos MOUNIER 2004 p 23 Para Nascimento 2007 aqui se expressa o extremismo histórico das separações e dicotomias de um lado o individualismo e do outro o coletivismo Mounier entendeu que era necessária a superação das divergências dessas duas vertentes na busca da unidade por meio da valoração da pessoa É importante ressaltar que o que reorientou ou seja o que provocou Mounier a pensar a pessoa foi a própria miséria humana de seus dias a profunda indiferença dos homens diante do sofrimento humano 21 O que é o personalismo de Mounier O personalismo de Mounier é um modo de vida uma inspiração que tem como experiência fundante uma afirmação do valor um ato de fé a afirmação do valor absoluto da pessoa humana MOUNIER 1992 p 626 tradução nossa Desse modo a característica central desta inspiração é o papel que desempenha a pessoa A noção de pessoa por ser central é estruturante do ser humano A pessoa é o elemento de experiência progressiva de uma vida a vida pessoal E é noção da qual depende esta experiência Em torno dela se constrói o andaime conceitual deste tipo particular de filosofia BURGOS 2012 sp Conforme o autor a centralidade da pessoa se apresenta como um instrumento conceitual útil para penetrar no significado do personalismo e para intuir tanto a originalidade das estruturas conceituais que se escondem sob este termo como sua capacidade para acercarse com uma visão mais aguda e penetrante das raízes de novos e antigos problemas filosóficos BURGOS 2012 sp Mounier 2004 ao apresentar o que é o personalismo não apresenta o conceito de modo a fechálo O conceito é apresentado de modo perspectival não sendo mostrado por completo o que deixa subentendido algo mais do que o declarado Na própria constituição do conceito está a dialética do personalismo O conceito de dialética no pensamento personalista de Mounier deve ser entendido como movimento contínuo e histórico tendo como primeira realidade existencial a pessoa humana sendo esta ao mesmo tempo natureza e ideia uma vez que na natureza humana há a preexistência da 45 ideia A pessoa humana é implicada pelas suas condições humanizantes A sua antítese é a despersonalização a alienação de si mesmo Entretanto Mounier entende que na palavra aufheben que marca a transição para a síntese há o sentido de uma deleção tripla elemento revolucionário de conservação e de progressão MOUNIER 1992 p 611 tradução nossa A palavra aufheben que significa cancelar impõe uma ruptura porém sem a perda por inteiro do que se rompeu Nesta transição está o marco personalista sempre em mudança progressiva conservando e ao mesmo tempo sendo revolucionária Isso se dá por entender que a premissa dessa dialética é a pessoa humana Nesse sentido na dialética personalista de Mounier não há síntese um fechar no processo de personalização mas sim uma constante transformação em direção ao cada vez mais humano Desse modo a dialética do personalismo pode ser observada no modo como Mounier 2004 p 14 a caracterizou como filosofia atitude o personalismo é uma filosofia não apenas uma atitude na sistematização e ordem de pensamento É uma filosofia não é um sistema Não foge à sistematização Porquanto o pensamento necessita de ordem conceitos lógica esquemas unificantes não servem apenas para fixar e comunicar um pensamento que sem eles se diluiria em intuições opacas e solitárias servem também para perscrutar essas intuições em toda sua profundidade são simultaneamente instrumentos de descoberta e exposição MOUNIER 2004 p 14 Ainda dentro da discussão sobrea a dialética do conceito apresentase a definição de estrutura porque define estruturas o personalismo é uma filosofia e não apenas uma atitude o princípio de imprevisibilidade e o tempo aberto para a constatação dos problemas que o envolve Sendo a existência de pessoas livres e criadoras a sua afirmação central introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva MOUNIER 2004 p 14 O autor critica o modo apressado dos que buscam a formalização dos conceitos funcionando como automáticos distribuidores de soluções MOUNIER 2004 p 14 Para ele não se deve ter demasiada pressa Se não vejamos Nada lhe impugna tão profundamente como o gosto hoje em dia tão enraizado por aparelhagens de pensamento e ação funcionando como automáticos distribuidores de soluções e instruções obstáculo frente às investigações seguro contra a inquietação dificuldade o risco Para além de tudo isto uma reflexão nova não deve ter demasiada pressa na reunião de toda gama da sua problemática MOUNIER 2004 p 14 46 O modo inconcluso com o qual Mounier apresenta o personalismo demonstra o mistério do ser pessoal a sua densidade pois como diz o autor o que envolve a pessoa está para além das aparelhagens de pensamentos fechados Moix 1968 p 183 discute que um pensamento personalista só pode ser um pensamento dialético pelas tensões dos contrários dada a ambivalência das situações E ainda esclarece Teoria e prática são indispensáveis O personalismo deve dar aos dois toda a sua atenção Por um lado a exploração das estruturas do universo pessoal por outro o engajamento mais direto com os problemas mais diversos que oferecem à experiência humana dos homens problemas econômicos sociais políticos estéticos morais religiosos Peixoto 2010 p 25 compreende que o intuito do personalismo é a construção da pessoa como totalidade e como centro de todas as ações Paula 2010 ressaltou o personalismo como uma chamada a uma ação responsável que pede um modo de vida mais que uma teoria A busca do personalismo de Mounier 2004 é descentrar o ser humano do individualismo e colocálo em abertas perspectivas O autor ao desenvolver a ideia do que é o pensamento personalista afirmou que não se deveria falar do personalismo no singular mas dos personalismos em virtude das várias possibilidades de caminhos que a vertente pode seguir e do fato de que nada se ganharia ao se tentar meiostermos entre elas Ele cita exemplos dessas possibilidades como o personalismo cristão e o agnóstico Não há na obra do autor a preocupação de formar um pensamento único e fechado Mounier 1992 afirma que o personalismo não anuncia uma escola abrindo uma capela nem a invenção de um sistema fechado mas é justamente uma convergência de vontades sem tocar na diversidade tendo como busca seu impacto efetivo sobre a história definindo o rosto desumanizado da civilização Mounier 1992 2004 ao centrar o seu pensamento na defesa da pessoa humana como valor absoluto e para a qual tudo deve convergir marca de modo definitivo a dignidade humana como valor originário para todas as ações Nessa direção o personalismo consiste em ações como sementes que carregam todas as suas seivas e em ações como um fermentar que leveda a massa ainda maleável O personalismo ainda pode ser comparado a germes de uma nova civilização O personalismo é germe semente fermento em ação tendo como finalidade uma nova proposição de vida Nessa proposta de uma nova civilização a pessoa e a comunidade estão fundadas em uma tessitura constitutiva interligadas e dependentes 47 Para Mounier 2004 a pessoa não pode ser definida justamente por não ser objeto mas se o ser é inesgotável é na sua mais minúscula parcela o não inventariável MOUNIER 1990 p 97 Já o objeto se disseca É possível examinálo em suas minúcias Cabe ressaltar que a pessoa não habita a esfera do indizível Mas um centro de reorientação do universo objetivo MOUNIER 2004 p 25 A pessoa antes é exatamente aquilo que em cada homem não é passível de ser tratado como objeto A pessoa não é o mais maravilhoso objeto do mundo objeto que conhecemos de fora como todos os outros É única realidade que conhecemos e que simultaneamente construímos de dentro Sempre presente nunca se nos oferece Mas sendo os recursos da pessoa indefinidos nada do que a exprime a esgota nada do que a condiciona a escraviza MOUNIER 2004 p 15 16 Assim a pessoa sendo é sempre potencial de ser mais A pessoa é essa única realidade que se pode conhecer e construir ao mesmo tempo de dentro Como será conceituar algo que é visto por dentro ao mesmo tempo em que é construído nunca estando acabado Eis a dificuldade do personalismo Ele entende a pessoa como abertura inesgotável sempre em construção eis a solução para a difícil apreensão do conceito uma vez que a pessoa é uma autorrevelação Na obra Révolution personnaliste et communautaire Revolução personalista e comunitária Mounier 2003b p 48 tradução nossa faz a seguinte pergunta mas o que é a minha pessoa Dizendo de outra maneira mas o que me faz ser eu mesmo E ainda o que é esta abertura humana Mounier inicia respondendo minha pessoa não é o meu indivíduo MOUNIER 2003b p 48 tradução nossa o meu eu Para ele o indivíduo vive na superfície da vida sempre pronto a se perder O meu eu indivíduo é impreciso sempre muda de personagem se dispersa é egoísta agressivo arrogante e caprichoso O indivíduo é a dissolução da pessoa A pessoa se opõe ao indivíduo Na medida em que ela é domínio ela faz escolha se autoconquista e é rica em comunhão com a carne do mundo e do homem espiritual em comunidade Mounier 2003b continua a esclarecer sobre minha pessoa afirmando que a minha pessoa não está ciente que a tenho Consiste no em si de Hegel 2011 não percebido não despertado e não assumido ainda porque vivo as várias personagens que tenho dentro de mim por admiração por inveja que tenho deles São personagens que quero ser são meus desejos minhas esperanças e minha chamada Sobrevivo na minha inércia ou covardia de me assumir Mounier retoma dizendo que tudo isso se passa dentro de mim sem que eu perceba porém a minha pessoa se revela no cuidado de uma vida interior Esse cuidado da vida interior 48 se mostra dialeticamente na tensão entre o an sich imediato e independente de outra coisa e o in sich algo dentro de si de Hegel Isso se dá porque o cuidado da vida interior é um processo formativo do despertar da pessoa É como segue An sich é diferente de in sich Ambas as palavras significam em português em si Mas elas têm sentidos diferentes O an sich é em si no sentido de algo imediato e independente de outra coisa Ele indica nesse caso o saber de si por esse outro sua negação Por outro lado a consciência tem ciência de si no in sich Neste caso o emsi guarda a semântica de dentrodesi A consciência se forma pelo an sich no sentido de algo determinado por um serOutro quando traz para si ou para dentrode si in sich esse outro e pela reflexão ou mediante o parasi für sich ela se reconhece Dessa relação ocorre o retorno ao an sich como resultado de todo esse processo O primeiro an sich é diferente do segundo an sich Este é mais enriquecido Ocorreu a educação como processo formador OLIVEIRA NETO sd p 2 As tentativas fracassadas do meu eu para Mounier não são a minha personalidade Para ele a minha pessoa não é minha personalidade É uma presença em mim Entre a negação de que minha pessoa seja minha personalidade e a afirmação de que ela seja uma presença em mim ele interpõe afirmando que a minha pessoa está além superconsciente e supratemporal que ela é uma unidade dada não construída Mas ela se amplia a cada percepção que tenho dela Ela é sempre mais do que percebo O ato de se dizer que a pessoa é uma presença em mim a torna palpável mesmo diante de o que ele chamou de o mais além porque ela se torna carne em mim e ao mesmo tempo um chamamento ao que eu posso ser sendo e estando com outras pessoas em comunidade As dimensões da pessoa estão vinculadas à forma do corpo pelo fato de ser ela encarnada entretanto ela não é um lugar área ou espaço ou algo vindo do exterior sobre si mesma A pessoa para Mounier 2003b p 50 tradução nossa é O volume total do homem É um equilíbrio de comprimento largura e profundidade a tensão em cada homem entre suas três dimensões espirituais uma que se eleva espiritual à medida que sobe do fundo e é encarnada na carne e a que é dirigida para cima e que equivale a um universal e a que é direcionada para o grande e a porta para a comunhão Vocação encarnação comunhão a pessoa tridimensional A pessoa por ser esse ser tridimensional se põe em um contínuo exercício de se superar se integrar e se comprometer Assim como a minha pessoa é carne ela não pode ser livre completamente As condições carnais em que ela se encontra a limitam E o que a condiciona tornase elemento para superação de si mesma Ela se eleva apoiandose na matéria 49 Mounier 1993 compara a pessoa a um desenvolvimento musical Nessa dinâmica a pessoa não é uma arquitetura imóvel ela permanece e se experimenta ao longo do tempo Sua estrutura é mais parecida com um desenvolvimento musical já que ela não pode representar se fora do tempo A encarnação é um representarse no tempo em continuidade de autoexperiências melódicas A existência pessoal é fundamentalmente tensão entre suas várias dimensões existenciais um perene e contínuo compromisso tendo apenas o equilíbrio frágil de um acorde SEVERINO 1974 p 129130 Assim ela não pode representar fora do tempo É por isso um fluxo de fluido em que o pensamento não teria a incidência Não Como um contraponto a pessoa mantém sob sua mobilidade sempre nova uma arquitetura axial e faz temas permanentes e uma regra de composição O próprio tempo em suas três dimensões fornecelhe com suas medidas MOUNIER 1993 p 56 tradução nossa A pessoa é um movimento axiológico sempre novo de autocomposição cujo contraponto está sob os efeitos dos intervalos do seu tempo musical e de outras melodias que não são as suas Ela cria os temas permanentes e a sua regra de composição A pessoa como uma estrutura musical é um fluxo em que o compasso do seu tempo o ritmo está sob os efeitos da tridimensionalidade desse tempo passado presente e futuro A autocomposição consiste em tensões entre as várias dimensões existências da pessoa em um equilíbrio frágil de um acorde existencial Mounier 2003a afirma que a pessoa nunca pode ser tomada como meio pela comunidade ou por outra pessoa ela não é um espírito impessoal um acontecimento um valor um destino impessoal pois o impessoal é matéria qualquer comunidade é em si uma pessoa Pessoa para o autor é Espírito é um ser espiritual construído como tal por um modo de vida MOUNIER 2003a p 46 tradução nossa a vida pessoal a qual tem como princípio vivo e criativo a vocação de ser pessoa Nesse sentido ela é uma resposta em vocação ao chamado para se fazer ser mais Assim a pessoa é vínculo ao ser Divino mediante a resposta ao ser mais Entretanto ela não é separada de sua carne a pessoa é substancialmente incorporada Este pensamento se desdobra na sociedade já que qualquer regime legal jurídico econômico não pode ter subordinada a pessoa a si e nem forçála contra sua vocação Mas antes garantir em primeiro lugar proteção para que a pessoa possa reconhecer na liberdade espiritual sua vocação sem coerção é a pessoa quem assume seu destino Ninguém mais pode fazêlo nem outra pessoa e nem a comunidade 50 Na relação pessoa e comunidade a primeira não se constitui como tal se doando ao máximo à segunda O risco de pendularmos para o individualismo egoístico ou para o coletivismo anônimo é grande Fazse necessário segundo Mounier 2003b exercitarmos a meditação o compromisso e o reconhecimento da nossa encarnação Existe nessas ações de purificação do individualismo uma experiência comum que é possível a todos uma vez que para que a pessoa se encontre é preciso primeiro que ela se perca Assim conforme o autor o dom de si e da vida se manifestam em outros e se põe em sua principal missão como explica Mounier 2003b p 50 tradução nossa Minha pessoa é a minha presença e a unidade de uma vocação que me chama a excederme indefinidamente e opera através do material que refrata a unificação sempre imperfeita sempre repetida elementos que mexem em mim A principal missão de cada homem está gradualmente a descobrir esse número único que marca o seu lugar e deveres na comunhão universal e para dedicarse contra a dispersão do material neste encontro de si mesmo Estas dimensões restauram o sentido da pessoa Sem elas segundo o autor a pessoa é inválida pois só se realiza na comunidade sendo esta sua vocação infinita Ela a pessoa pode ser infinitamente mais em comunidade Mounier 2003b p 41 ao discorrer sobre a pessoa como volume equilíbrio de comprimento largura profundidade e presença remete à perspectiva tridimensional da rede metafísica desta última o mundo espiritual que é a união vertical do ato de elevarse acima de si mesmo em união com todos os participantes em um corpo universal Nessa união existem encurtamentos de distância na rede há uma percepção de contato de uma presença real É a vocação eterna da minha pessoa que me chama a excederme indefinidamente É a missão de cada um de se decifrar em um encontro de si mesmo e de se integrar como pessoa singular em uma comunidade Essa discussão sobre as dimensões da pessoa Mounier 2004 a fez na obra O personalismo Ele aprofunda suas ideias sobre a pessoa voltandoas para o universo por ela edificado e identifica nos seus diversos planos as estruturas esses planos não são mais do que incidências diferentes sobre uma mesma realidade MOUNIER 2004 p 26 22 A estrutura do universo pessoal O aprofundamento sobre a pessoa para Mounier 2004 concerne às estruturas do universo pessoal que se desdobram em existência incorporada comunicação conversão 51 íntima afrontamento e liberdade bem como eminente dignidade e compromisso Sendo a pessoa um centro de reorientação do universo objetivo restanos orientar agora nossa análise para o universo por ela edificado A verdade de cada um só existe quando em união com todos os outros MOUNIER 2004 p 2526 É nesta dinâmica de Mounier 2004 de reorientação para o centro das estruturas e da verdade do ser de cada um que se percebe que o mistério de cada um só pode ser acessado mediante a união com as outras pessoas 221 Pessoa e natureza Mounier 2004 inicia a discussão sobre a estrutura do universo pessoal a partir da existência incorporada do eu minha pessoa é incorporada MOUNIER 2003b p 50 tradução nossa Na busca de esclarecer a pessoa ele propõe desvencilharse da compreensão existente em seus dias de que os modernos espiritualismos dividem o mundo e o homem em duas substâncias independentes a matéria e o espírito MOUNIER 2004 p 29 Para o autor essa separação causa paradoxos ou nega a realidade material afirmando o espiritual ou afirma o material negando o espiritual na compreensão do ser humano Ele desfaz esse esquema pelo realismo personalista O Personalismo é a filosofia da existência que dá solução mais convincente e total deste dilema aparentemente insolúvel SEVERINO 1974 p 46 A influência do pensamento cristão sobre o pensamento de Mounier pode ser percebida dentre vários outros elementos na existência incorporada No sentido em que o Espírito se torna carne na encarnação de Cristo Espírito e corpo aí são unos O primeiro não mais é contaminado pela carne mas esta é elevada ao Espírito que ao mesmo tempo desce a ela ficando então situado no mundo Esta compreensão de Deus um ser espiritual que desce à Terra se fazendo carne desencadeia o pensamento de que a encarnação não é uma queda MOUNIER 2004 p 30 Para Mounier 2004 p 29 a pessoa está mergulhada na natureza o homem é corpo exatamente como é espírito é integralmente corpo e é integralmente espírito a pessoa é indivisivelmente corpo e espírito Quando Mounier afirma que o homem é espírito é no sentido de que o espírito é ao mesmo tempo pensamento nous alma psyché e a própria respiração fundidos no corpo E ainda corpo e alma conjuntamente colaboram no reino do espiritual pneuma reino sólido de Deus MOUNIER 2004 p 30 ou seja corpo e espírito colaboram com o sopro Divino sobre a humanidade 52 Mounier 2004 p 30 destaca a necessidade de acabar com o que chamou de pernicioso dualismo ou seja a separação entre corpo e espírito tanto na nossa maneira de viver como no nosso pensamento Já para os religiosos que desprezavam o corpo e enalteciam o espírito para se chegar a Deus notase que uma das tentações maiores do cristão é esquecer sua situação concreta MOIX 1968 p 134 Assim como para os gregos Platão Sócrates e Plotino que desprezam a matéria Foi antes o desprezo dos gregos pela matéria que se transmitiu de século em século até aos nossos dias cobrindose de falsas justificativas cristãs MOUNIER 2004 p 30 O autor elucida que o homem é um ser natural tem um corpo que o segue e habita em uma natureza que já existia antes dele fazendo necessário ao homem transcendêla A natureza é entendida pelo autor como tudo aquilo que condiciona o homem como natureza exterior que é anterior a si mesmo seu inconsciente individual e suas participações sociais não personalizadas E exatamente o homem singularizase por uma dupla capacidade de romper com a natureza Só ele conhece esse universo que o absorve e só ele o pode transformar MOUNIER 2004 p 32 Severino 1974 p 46 assim afirma É preciso acabar com todos os resíduos cátaros da filosofia o homem não é um espírito caído no mundo não está aqui preso exilado como num túmulo provisório tal como a ressonância platônica da consciência humana ecoa através dos tempos A inserção no natural não é uma violência feita à condição normal do espírito Apesar de ser condição permanente de alienação e de ser o lugar do impessoal e do objetal a natureza não é o mal do homem Nesse sentido o homem não está encerrado no seu destino pelo determinismo Há uma permanente tendência que Mounier 2004 chamou de luta de oposto de personalização e a de despersonalização Essa luta pode ser percebida na ascensão da pessoa criadora na evolução histórica do mundo A tendência de despersonalização atinge não somente a matéria mas a própria vida Está na impersonalidade na dispersão na indiferença na repetição Já a tendência a um movimento de personalização iniciase só com o homem O animal não tem consciência reflexiva e reciprocidade de consciência A pessoa humana tem em si este sentido Para Freud ela tem instinto e para Marx podemse explicar todos os fenômenos humanos pelo veio da economia mas Mounier afirma que nenhum se compreende sem os valores as estruturas e as vicissitudes do universo pessoal imanente com o fim a qualquer espírito humano e ao trabalho na natureza MOUNIER 2004 p 35 Severino 1974 p 48 ao tratar da corporeidade na imergência da pessoa afirma citando Mounier que 53 Totalidade integrada na corporeidade e na espiritualidade a pessoa humana é a expressão bivalente de uma unidade fundamental Unidade ontológica do ser humano que se reflete na unidade psicoorgânico a hierarquia dos planos da realidade apresentase aqui a nós com um encaixamento de imanência e transcendência vinculadas o psíquico domínio misto orgânico vivido e valores encarnados é imanente ao biológico sobre toda sua extensão por sua expressão corporal ao mesmo tempo que lhe é transcendente em toda sua profundidade pelos valores que encarna O autor aborda aqui a pessoa como uma unidade fundamental ontológica em que se pode constatar o corpo como próprio espírito carnal nas dimensões imanente e transcendente Tornase importante esclarecer que na corporeidade em MerleauPonty 1994 o homem é visto como uma totalidade intencional física biológica e espiritual em que a consciência e o corpo são indissolúveis O corpo é um agente ativo na produção de significado que instaura uma história na relação com o mundo constituindo um corpo habitual não sendo apenas o presente mas comportando também o passado Há uma condição corporal o ser no mundo em suas vivências produtoras de cultura Diferentemente da compreensão de Santo Agostinho acerca da corporalidade em que a alma e o corpo são distintos o homem é dicotomizado A alma o eu que pensa e age prevalece sobre o corpo por ser ela o meio de se chegar a Deus E ainda ele desconsidera a relação corpoalma por compreender que o corpo pode contaminar a alma por ser impuro Há um desprezo pelo sensível A diferença que se põe aqui está em ter um corpo Santo Agostinho e ser um corpo MerleauPonty e Mounier Mounier 2004 ao reunir as duas palavras existência incorporada busca uma nova compreensão da pessoa É um movimento para fora em um corpo situado no tempo e no espaço em relação dialética Esse corpo está em relação com a consciência que o percebe Ou seja a matéria é um feixe de relações A relação dialética da matéria à consciência é tão irredutível como existência quer de uma quer de outra MOUNIER 2004 p 36 E isto torna o existir subjetivamente e o existir corporalmente uma mesma experiência uma busca de um acabamento do ser que é a vida pessoal MOUNIER 2004 p 36 A personalização da natureza se torna um voltarse para ela transformandoa e impondo a ela o domínio do universo pessoal Mounier 2004 trata da existência incorporada da força da afirmação pessoal Segundo Mounier esta é movida pela dialética da primeira cuja relação é da pessoa consigo mesma e com a natureza exterior a si no sentido do acabamento pessoal Nessa dialética a força da afirmação pessoal a transporta da dependência para a independência da natureza 54 Criase um elo entre terra carne e destino ou seja o mundo inserese na carne do homem e no seu destino MOUNIER 2004 p 38 Nesse destino observase o chamamento para libertar a humanidade bem como as coisas Severino 1974 p 50 aborda essa força da afirmação pessoal como enraizamento na vivência espaçotemporal tal como o destino E explica Acolher esta dupla realidade e comprazerse nela situarse no espaço e no tempo é assegurarse a solidez espiritual assim como a orientação elementar Tanto a utopia como a ucronia com seus ares de eternidade são vãs tentativas de se escapar a este enraizamento de base Tão profundo é enraizamento da pessoa na vivência espaço temporal que filósofos modernos falando do ser encarnado chamamno simplesmente de euaquiagora pois é impossível falar do eu fora de suas condições espaçotemporal O enraizamento espaçotemporal como força da afirmação pessoal assegura a solidez espiritual A força dessa afirmação impede as alienações deste real transformandose em força criadora Assim na afirmação pessoal ocorre o compromisso com tudo que rodeia a pessoa Tornase um transformar a natureza no sentido de que a produção deve tornarse uma atividade libertante e libertadora desde que modelada a todas as exigências da pessoa MOUNIER 2004 p 39 O que é produzido pelo homem só tem importância quando tem como finalidade a instauração de um mundo de pessoas e por consequência instaura a sua interdependência com a natureza mantendo a si mesmo e a ela A existência incorporada chama a situar toda a produção direcionandoa a atividades que se utilizem do sopro divino para impelir a humanidade constituindo o compromisso com o contínuo do humano Mounier 2004 aborda a personalização da natureza considerando os obstáculos que esta impõe diante da pessoa Nesse sentido o futuro é compreendido como construído e constante enfrentamento Entretanto ocorrem escolhas diante das dificuldades que podem ser de abandono ou de enfrentamento Para ele os obstáculos à personalização da natureza devem ser enfrentados com otimismo trágico pois se entende a perfeição do universo pessoal encarnado como um ato libertário que combate e que o faz duramente É o enfrentar resistir empenhar e subsistir diante das derrotas Daí afirma que Entre o otimismo impaciente da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos o caminho próprio do homem está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta MOUNIER 2004 p 41 A justa medida no clima de grandeza e luta é abordada na obra La petite peur du XXe siècle O pequeno medo do século XX por Mounier 2007b em comparação com o 55 otimismo histórico Neste há linearidade no avanço da humanidade automaticamente com um tom monótono de comprimento mediante o progresso de sua organização Já o otimismo trágico do cristão não é definido fora do paradoxo da cruz Nele há esperança mesmo diante das mais duras situações de derrotas Para o autor a insegurança e as preocupações são nosso lote MOUNIER 2004 p 41 Não há como fugirmos do que nos aflige Elas as inseguranças e as preocupações se tornam constitutivas da nossa condição humana É por meio delas que nos fazemos pessoas e personalizamos o mundo Este é o clima de grandeza presente nas lutas e é por meio delas que nos tornamos pessoas 222 Pessoa e comunicação Mounier 2004 ao discorrer sobre a comunicação como pertencente ao universo pessoal que a própria pessoa edifica chama a atenção e o cuidado para a antítese do personalismo que é o individualismo O individualismo é um mecanismo de defesa ação do instinto na busca da autodefesa e o que se promove por meio dele é a opacidade nas relações a dificuldade na comunicação É um empobrecer da humanidade que nos rodeia O individualismo gera malestar no próprio corpo cria máscaras que aos poucos passam a fazer parte do corpo Conforme o autor esse individualismo pertence a um sistema de organização cultural instalado na sociedade burguesa portanto a um condutor dessa ideologia que leva ao egoísmo A pessoa cresce a partir do momento em que se inicia o processo de purificação do individualismo presente nela Isto só acontece quando ela tornase disponível para o outro sendo assim mais transparente a si mesma e aos outros Esta é a preocupação do personalismo a de descentrar o ser humano do individualismo na busca de colocálo em abertas perspectivas Pela experiência interior a pessoa surgenos como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas numa perspectiva de universalidade As outras pessoas não a limitam fazemna crescer MOUNIER 2004 p 46 Nessa direção a comunicação é entendida como fato primitivo A comunicação se dá na experiência da segunda pessoa Tu Ao me pôr diante do Tu algo em mim me chama à comunicação pois encontro no Tu o nós anterior ao eu A pessoa em mim se constrói por meio do Tu no nós ou seja é com o Tu que me construo a mim mesmo no outro Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros ou numa fraselimite ser é amar MOUNIER 2004 p 46 56 Mounier 2004 trabalha com os atos como elementos constitutivos das relações interpessoais positivas recíprocas e de mútua fecundação que são necessárias à constituição de uma sociedade de pessoas Estes atos são sair de si mesmo compreender o outro tomar para si responsabilidades assumir dar ser fiel São atos que nos movem em direção ao outro no sentido de responsabilidade de abertura para o outro de gratuidade sem esperar em troca um contínuo renovar em fidelidade criativa mesmo diante das decepções Esses atos criam uma constante confirmação da identidade individual Só me constituo ao me oferecer ao outro Ele ressalta ainda que são atos originais que não têm equivalente em mais parte nenhuma no universo MOUNIER 2004 p 47 Vejase sua explicação 1º ato Sair de nós próprios A pessoa é uma existência capaz de se libertar de si próprio de se desapossar para se tornar disponíveis aos outros Para a tradição personalista principalmente para a cristã a ascese do despojamento é a ascese central da vida pessoal só liberta o mundo e os homens aquele que primeiro se libertou a si próprio Os antigos falavam da luta contra o amorpróprio nós chamamoslhe hoje egocentrismo narcisismo individualismo MOUNIER 2004 p 47 O sair de si mesmo em direção ao outro implica uma ruptura com o nosso egoísmo consiste em sair de uma inércia pessoal em direção ao processo criativo com o outro É romper com o nosso universo fechado É se pôr em uma abertura para o outro A comunicação personalista é ato de disponibilidade para o outro e de despojamento de si mesmo descentrandose no compreender 2º ato Compreender Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista para me situar no ponto de vista dos outros Não me procurar uma pessoa escolhida e igual a mim não conhecer os outros apenas com um conhecimento geral o gosto pela psicologia não é interesse pelos outros mas captar com a minha singularidade a sua singularidade numa atitude de acolhimento e num esforço de recolhimento Ser todo para todos sem deixar de ser e de ser eu porquanto há uma maneira de tudo compreender que corresponde a nada amar e a nada ser dissolução nos outros não já compreensão dos outros MOUNIER 2004 p 47 Compreender é um movimento em direção ao outro mas no sentido de se posicionar no lugar do outro não se perdendo Situarse e posicionarse no lugar do outro ao mesmo tempo são atitudes de acolhimento à singularidade dele recolhendoo sem possuílo mas captandoo A comunicação envolve sofrimento participação na dor do outro em suas tarefas É de alguma forma responsabilizarse com ele Assim é o 3º ato Tomar sobre nós assumir o 57 destino os desgostos as alegrias as tarefas dos outros sofrer na nossa própria carne MOUNIER 2004 p 47 Na comunicação personalista ocorre o ato gratuito o dar sem esperar algo em troca Neste ato não há solidão há um ofertarse em direção ao outro Nesse sentido acontece a libertação dos participantes da comunicação pois na doação tanto o que doa como o que recebe são impactados por este movimento pois o que está se doando a si mesmo sem interesses se doa por se perceber dádiva assim é o que se verifica neste outro ato 4º ato Dar A força viva do ímpeto pessoal não está nem na reivindicação individualismo do pequenoburguês nem na luta de morte existencialismo mas na generosidade e no ato gratuito ou seja numa palavra na dádiva sem medida e sem esperança de recompensa A economia da pessoa é uma economia de dádiva não de compensação ou de cálculo A generosidade dissolve a opacidade e anula a solidão da pessoa mesmo quando esta nada recebe em troca contra a fileira cerrada dos instintos dos interesses dos raciocínios ela é em todo o sentido da palavra perturbante Desarma as recusas oferecendo aos outros um valor a seus próprios olhos elevado exatamente no momento em que eles esperariam ser expulsos como coisa indesejável e assim os prende à sua comunicação daí o valor libertador do perdão da confiança Só nada consegue contra certos ódios mais misteriosos do que o interesse e que parecem dirigidos contra o próprio desinteresse MOUNIER 2004 p 4748 A comunicação personalista é desafiadora ela implica fidelidade ao que se comunica e ao conteúdo da comunicação Assim dita o 5º ato Ser fiel A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento até a morte As decisões pessoais o amor amizade só podem ser perfeitos na continuidade MOUNIER 2004 p 48 Tratase de ser fiel a si mesmo em sua continuidade de vida com o outro logo em comunidade Esta continuidade não é porém repetição uniforme mas um ressurgir contínuo pois a fidelidade pessoal é criadora SEVERINO 1974 p 83 Mounier 2004 p 49 remete tudo o que foi proposto por ele ao ato de amor como a mais forte certeza do ser humano o cogito existencial irrefutável amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida Amo logo sou com os outros em um contínuo constituirmo nos em amor Entretanto esse amor apresenta uma característica ele é de uma cegueira extralúcida MOUNIER 2004 p 49 Não se negam as dificuldades a serem superadas que são obstáculos à comunicação Conforme o autor no outro há algo que me escapa ao esforço da comunicação o mal entendido vai existir mesmo diante de uma comunhão forte Há algo em nós que resiste à reciprocidade Esse algo inerente que em nós resiste está como uma barreira à livre comunicação mesmo quando formarmos um ambiente de reciprocidades quer familiar 58 corporeligioso ou pátrio cedo ou tarde o egocentrismo se levantará Por isso Mounier 2004 p 50 afirma que a comunicação é mais rara do que a felicidade mais frágil do que a beleza Um nada a pode suspender ou quebrar entre duas pessoas como podemos pois esperála entre um grande número O autor ressalta a dificuldade causada pelo número de participantes da comunicação Tanto a solidão como o grande número são complicadores Nesse contexto ele pergunta Mas qual é a medida a que o homem é feito MOUNIER 2004 p 50 entendendose que a feitura do homem se dá na comunicação Perguntase de outro modo qual é a medida da comunicação para se fazer o homem É na medida de uma estrutura social Ou na medida de uma família angelical Para o autor não nos fazemos humanos sós ou em um coletivo em meio à massa Na solidão não está a pequena comunidade ou a comunicação e nem no coletivo pois em virtude das estruturas ocorre a repetição O objetável acontece Logo não há comunicação Mounier não propõe dar padrão uniforme às sociedades humanas já que a escala humana difere segundo a relação humana que está em causa para darmos só um exemplo ela não é evidentemente a mesma na amizade e numa sociedade econômica moderna MOUNIER 2004 p 51 O autor apenas distingue o potencial maior ou menor de comunicação ou seja o potencial de personalização Na explicação da escala de comunicação das relações humanas Mounier parte do mundo do man de Heidegger como a forma mais baixa que se pode conceber de um universo de homens Mundo em que nos deixamos aglomerar quando renunciamos a sermos pessoas lúcidas e responsáveis mundo da consciência sonolenta dos instintos anônimos das opiniões vagas dos respeitos humanos das relações mundanas do dizquediz que cotidiano do conformismo social ou político da mediocridade moral da multidão das massas anônimas onde cada pessoa renuncia a sêlo para se transformar num qualquer não interessa quem de qualquer forma O mundo do man não se constitui nem um nós nem um todo MOUNIER 2004 p 52 Acima deste formato de sociedade surgem as sociedades vitais porém mais individualizadas que a precedente entretanto ligadas por funções por necessidades ou interesses Mounier as critica quer como na forma da família quer na forma das associações A família que se estabelece sobre a base individualizada ele a percebe como ninho de víboras onde só irão acontecer discórdias As associações com este formato nunca serão capazes de arrancar definitivamente o interesse ao seu vetor egocêntrico MOUNIER 2004 p 52 o que ocorre por não serem suficientemente personalizadas Há um endurecer nas 59 relações entre classes castas servo e senhor que tende à arrogância à guerra Para o autor o que ocorre é um todo que corrompe o nós Na escala humana a que se difere no nível de maior ou menor grau de comunicação o autor acrescenta à sua análise a sociedade racional a qual foi fundada num pensamento impessoal e no acordo de comportamento jurídico formal Nesse sentido ocorre o desprezo pelo absoluto pessoal não se pode estabelecer a universalidade esquecendo a pessoa MOUNIER 2004 p 53 Ao se esquecer a pessoa na universalidade dos direitos essa sociedade não se instaura tornase sufocada pelos direitos formais e pelas ideologizações posto que razão cativa às paixões às políticas às crueldades e à guerra Mounier ressalta ainda a necessidade de não ignorarmos a importância das mediações racionalistas as quais porém não são suficientes para assegurar uma plena comunidade pessoal A razão tem um ser que a pensa ela é própria do ser humano Este ser não pode ser esquecido na sua própria elaboração O pensamento só existe e irradia quando enraizado na pessoa Se no entanto o pensamento não se tornar comunicável e portanto em certa medida impessoal já não será pensamento mas delírio MOUNIER 2004 p 53 Para o autor na sociedade atual correse o risco de nos fecharmos e degradarmos quer isso se dê em pares de pessoas quer em grupos reduzidos ainda que com os melhores objetivos a serem realizados Para que se vincule ao universo pessoal fazse necessário que cada uma dessas experiências mantenhase virtualmente aberta à universalidade da pessoa Nesse contexto o que se põe é justamente a tensão fundamental e fundante na unidade pessoal a qual é para Mounier 2004 p 54 constituída por um duplo movimento aparentemente contraditório e realmente dialético para uma afirmação de um absoluto pessoal que resiste a qualquer redução e para a edificação de uma unidade universal no mundo das pessoas A pessoa é um contínuo constituirse em tensões opostas afirmandose no absoluto pessoal e edificandose numa unidade universal com os outros A afirmação do autor da unidade da humanidade no espaço e no tempo carrega a implicação da pessoa como aquilo que não pode ser repetido MOUNIER 2004 p 54 É preciso que haja entre as pessoas uma unidade comum não a repetição do ser humano O sentido de uma unidade comum não está implicado na ideia de uma natureza humana permanente fixando limites prévios mas está implicado na idéia de um gênero humano com uma história e destinos coletivos donde não se pode ser separado nenhum destino individual MOUNIER 2004 p 55 Essa ideia apresentada por Mounier foi buscada nas idéias pressentidas por algumas escolas do fim da Antiguidade e afirmadas pela tradição judeucristã MOUNIER 2004 p 55 como em Heráclito com a compreensão de 60 que tudo flui panta rei e a unidade dos contrários pois entre os contrários se cria uma espécie de luta constitutiva do logos da sabedoria e o estoicismo que apresentava uma união unificada do mundo defendia o desenvolvimento das emoções e a liberdade humana Nessas origens de pensamento está presente a compreensão de não haver distinção entre cor raça classe e religião Para os cristãos todos são homens criados à imagem de Deus e todos chamados à salvação em Jesus Cristo MOUNIER 2004 p 55 o local de igualdade está em uma mesma origem e o sentido do chamado em um objetivo comum a todos Segundo o autor a ideia moderna de igualdade de humanidade una e indivisível abarca o sentido dos vínculos humanos os quais se constituem fatores essenciais à igualdade na busca pela justiça e a fim de garantila Para Mounier a ideia de justiça primeiramente teve um aspecto de reivindicação pessoal e consequentemente o de renovar as desigualdades Ao mesmo tempo há nesta ideia um movimento de constituição de vínculos e de um reino em que a igualdade assume o caráter de transformar a exterioridade dos indivíduos É esse o sentido dado pelo personalismo à justiça de uma finalidade de humanidade uma unidade comum A comunicação como parte da estrutura do universo pessoal apresenta as seguintes características constituir a comunidade de pessoas pertencer a um ser que pensa e se irradia por meio do seu pensar e fazer parte do mesmo ser originário o Tu de modo que todos se tornam iguais e têm como busca de justiça uma finalidade de humanidade A comunicação é dialeticamente afirmação pessoal e edificação de uma unidade universal no mundo de pessoas o eu no Tu constituindo um nós ou seja Só na medida em que várias pessoas sejam realmente pessoas é que poderão ser igualmente comunidade O ato pedido para o surgir de um vínculo comunitário é um ato profundamente pessoal jamais se alienaria a pessoa por entregarse e irromperse a uma comunhão com o outro Pois continua válida aqui a bipolaridade dialética de toda a existência pessoal é preciso que a pessoa saia de si mesma para constituirse mas saindo de si mesma deve permanecer idêntica a si mesma não se perdendo E o aprendizado da comunidade só pode se fazer de próximo em próximo aos poucos e não por projeção quantitativa A aprendizagem da comunidade é pois a aprendizagem do próximo como pessoa em sua relação com minha pessoa o que se chamou de modo feliz aprendizagem do tu SEVERINO 1974 p 85 61 Nesse sentido a organização de uma comunidade de pessoas1 só pode ocorrer no campo de estruturas de um universo voltado à aprendizagem do tu já que a comunicação é uma experiência fundante que comporta potencial de personalização 223 Pessoa e recolhimento Mounier 2004 aborda a conversão íntima como um elemento pertencente à estrutura do universo pessoal O termo não consiste em uma conversão de religião ou troca de moeda uma coisa pela outra mas um recolhimento como um pulsar complementar da comunicação Não se trata de um afastarse do ser para o outro mas de uma busca por não coisificarse de um voltarse para a vida pessoal A vida pessoal começa com a capacidade de romper contatos com o meio de ripostar de recuperar para através de uma unificação tentada se constituir uma só MOUNIER 2004 p 58 A conversão íntima está em oposição à pessoa voltada para fora ao exibicionismo à pessoa exposta e vazia não tendo nada por trás de si O autor retrata a princípio este movimento que representa fuga no sentido de conversão de forças não como covardia diante do mundo A pessoa só recua para depois saltar melhor MOUNIER 2004 p 58 A pessoa foge do modo de vida imediato das distrações da nossa civilização sem projetos sem domínio para voltar para si recolherse O recolhimento como intento de ripostar e de se recuperar tem o sentido do ataque e da defesa diante do que nos impede de ser pessoa Não é uma busca pela pessoa como se ela estivesse sob uma análise sendo coisa mas é uma busca em direção ao seu centro pois nele habita o segredo do ser O recolhimento assegura à pessoa o seu segredo o mistério Compreendese que a vida pessoal esteja naturalmente ligada a um certo segredo MOUNIER 2004 p 59 O que ele busca expressar no recolhimento é a densidade a reserva a discrição que são manifestações de respeito da pessoa pelo seu infinito interior MOUNIER 2004 p 59 O autorrespeito possibilita formas indiretas de comunicação como a ironia humor paradoxo mito símbolo fábula etc MOUNIER 2004 p 59 Nesse sentido a comunicação gestada no recolhimento assegura o segredo o mistério pessoal nas interrelações Essa dinâmica posta pelo segredo esbarrase no pudor de inspiração personalista que corresponde ao sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões nem ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência uma 1 Conforme Severino 1974 e Peixoto 2009 Mounier construiu uma experiência de comunidade de pessoas a partir do ano de 1944 em Paris quando passou a viver com um grupo de famílias amigas que também defendiam os ideais do movimento Esprit 62 vez que esta totalmente se manifestasse MOUNIER 2004 p 59 Permitir a reserva na comunicação pelo veio da comunicação indireta consiste em autorrespeito e autopreservação na assunção da vida Ainda ao tratar o segredo Mounier não deixa de fora a relação com o corpo no sentido do pudor Ele entende a pessoa como sendo infinitamente mais do que o corpo quando olhado ou alcançado pelo outro O pudor revela sentimento que limita e trai Assim a vergonha ocorre não em virtude da nudez mas por parecer não ser mais do que isso MOUNIER 2004 p 59 No pudor há uma confirmação à pessoa de que ela não é objeto mas que é mais uma presença do que um ser um ser exposto MOUNIER 2004 p 59 A vulgaridade é a ausência do pudor uma vez que o corpo nessa situação se apresenta como nada além do que se mostra na aparência imediata quando é exibido a olhares Para o autor os falsos pudores como o sentimento mórbido do segredo têm de ser destruídos MOUNIER 2004 p 60 Dentro da conversão íntima Mounier aborda a intimidade com relação ao recolhimento do espaço privado Inicia a sua discussão tratando da experiência mais íntima e plena de um ser humano que é a do estado fetal e da posterior a esse momento que é a da criança nos braços da mãe São lugares de segurança magicamente isolados Ele não desconsidera estes estados como possibilidades vegetativas que se desdobram em situações de sentimentos diversos e de ambivalência Enquanto fases na vida do ser humano o útero e os braços maternos representam um recolhimento que é aqui naturalmente originário constitutivo e formativo mas na sequência do desenvolvimento humano esses lugares passam a não existir como espaço de recolhimento O sentimento de se estar em casa no útero e nos braços da mãe vai acompanhar o homem por toda a sua vida e Mounier o trata como necessário ao processo de personalização mesmo caracterizandoo como um momento em que me retiro de um combate pessoal Representa então uma demissão embora se cubra com os valores ligados ao recolhimento É nessa ambígua encruzilhada que se insere a zona do privado MOUNIER 2004 p 60 O que Mounier 2004 p 60 buscou defender foi a relação constitutiva do homem e da natureza em inteira interdependência Ao trazer o útero como o lugar como que plenitude ele considerou o ser humano tendo outro ser humano em desenvolvimento dentro de si Existem assim implicações de manutenções de vidas uma se mantém mantendo outra coabrigada O feto o bebê ou a criança necessitam da mãe e esta de uma situação de 63 condição de vida digna para manterse assegurando ao outro ser o pleno desenvolvimento humano Nesta abordagem de Mounier ele remonta a uma situação de plenitude ou seja uma situação perfeita no sentido de completude É este lugar que o homem irá buscar como condição de suprimento e de espaço como lugar pleno de ser Assim instauramse as necessidades das condições plenas o espaço privado e o suprimento para o desenvolvimento da vida humana Esse é o duplo problema humano que o autor se propôs a responder com a garantia do privado Para esta dinâmica ele traz implicações econômicas sociais e políticas no sentido do pleno desenvolvimento humano Moix 1968 p 92 esclarece Todo o esforço de Mounier no domínio político consistiu em buscar novas formas temporais que não sejam nem capitalistas nem marxistas Apegouse sobretudo a definir a democracia pluralista respeitadora dos direitos da pessoa humana e ciosa do bem comum Os direitos da pessoa e o bem comum defendidos por Mounier tomados na forma da analogia do útero e dos braços maternos expõem a dupla necessidade do ser humano para e no recolhimento o lugar interior e o lugar exterior à pessoa porém dela Nele há uma defesa de distribuição igualitária de bens na garantia do privado O lugar para que ocorra o recolhimento e a conversão íntima é o mundo e o homem está em relação constituinte com a natureza Os lugares perfeitos não estão dados mas tornase necessário construílos para que todos tenham o seu lugar a sua propriedade e a sua manutenção Observase nessa citação a seguir a implicação do lugar para a pessoa no mundo Não existe aquela árvore e uma imagem formada dentro de mim como dentro de uma caixa com o olhar da consciência na tampa Ter consciência daquela árvore é estar com ela entre seus ramos e folhas é de algum modo como dizem os hindus e os românticos numa expressãolimite ser aquela árvore pulsar ao seu doce calor primaveril crescer com ela no seu secular crescimento brotar com a alegria de seus rebentos sempre sendo eu próprio e sempre sendo distinto MOUNIER 2004 p 61 A discussão posta remete ao modo interligado em que ele compreende a relação pessoa conhecimento e mundo Ela consiste em uma tríade una amalgamada Ter consciência daquela árvore é estar com ela MOUNIER 2004 p 61 E para estar com ela é necessária a reflexão sobre ela ter a consciência intencionada como direção tanto pessoal como comunitária É a própria estrutura da vida pessoal que a isso nos obriga a reflexão não é somente um olhar interior é também intenção projeto de nós próprios MOUNIER 2004 p 61 É o estar com a árvore crescendo com ela e participando de seu 64 desenvolvimento enquanto o seu próprio eu ocorre em uma construção do projeto de si mesmo em comunidade Juntos na interdependência separados na afirmação pessoal Mounier ressalta o risco que se corre no recolhimento de uma vida interior fechada e exclusiva É a ambiguidade presente no recolhimento porém é nela que se insere a vida privada Nesse sentido o autor opôsse às práticas burguesas da vida privada pois estas trouxeram status inautênticos ao privado A prática da burguesia da vida privada desenvolveu largamente esta corrupção multiplicou os pseudossegredos dos negócios da casa das doenças das desordens domésticas MOUNIER 2004 p 61 Estes pseudossegredos promovidos pelo individualismo a ambição a inveja a imposição de uma classe sobre a outra são de fato a corrupção da vida privada Segundo o autor os regimes totalitários basearamse nesta sofisticação para radicalmente eliminar a esfera do privado MOUNIER 2004 p 61 Isso ocorreu também porque a propriedade privada foi sendo usada pelo capitalismo desenfreadamente O cuidado que se deveria ter em relação à natureza como elo de manutenção e suprimento das necessidades humanas foise transformando em meros meios de aquisição de riquezas sem assegurar o outro e a natureza afetando o modo de conhecer o mundo e de se constituir com ele A vida familiar é mais um aspecto importante da vida pessoal pois não é inteiramente seguro retirarmonos de toda a agitação MOUNIER 2004 p 61 A pessoa corre o risco da atração dos abismos Para o autor tratase de todos os meios empregados para a disfarçar indiferença conciliações conforto segurança mais não têm do que a fragilidade dos artifícios e dos enganos MOUNIER 2004 p 6162 É em meio à comunidade que advêm a segurança o constituirse e a força pessoal O personalismo de Mounier 2004 não põe demasiadamente em oposição o ser e o ter Nesse sentido a propriedade e a intimidade são exigências concretas da pessoa Excluílas por causa dos seus abusos é utopia Assim Não é possível ser sem ter embora nosso ser seja infinita capacidade de ter não seja nunca esgotável pelo que tem e o ultrapassado em muito pelo seu significado Sem ter a existência não se agarra perdese nos objetos Para mais possuir é entrar em contato renunciar à solidão à passividade há falsas pobrezas que mais não são do que escapatórias MOUNIER 2004 p 62 Remetese novamente ao útero e aos braços da mãe o lugar seguro de se fazer Nesse sentido o desenvolvimento da pessoa perpassa uma dialética personalista do ter porém de forma menos triunfante Pois esse desenvolvimento implica condições interiores de 65 despojamento de si e de seus bens Esse despojar despolariza o ego do tenho e do sou A pessoa só se encontra quando se perde MOUNIER 2004 p 63 A conversão íntima envolve o sentido da própria vida que pode ser tratado como a vocação como a busca por descobrir dentro de si o próprio desejo de procurar essa unidade viva MOUNIER 2004 p 64 Segundo o referido autor a vocação pode ser tratada como um chamamento silencioso É aquela voz no íntimo que vai aos poucos elucidando a identidade do sujeito e traduzindo a sua vida Mas para definir uma posição personalista basta pensar que toda pessoa tem uma significação tal que o lugar que ocupa no universo das pessoas não pode ser preenchido por outra qualquer MOUNIER 2004 p 64 Essa vocação é uma unidade pressentida desejada e nunca realizada porque só será completa quando ocorrer a morte Observese a afirmação de Mounier 2004 p 63 A vocação Unindose para se encontrar e a seguir expondose para se enriquecer e se tornar a encontrar depois de novo se unindo no despojamento a vida pessoal sístole diástole é a procura até à morte de uma unidade pressentida desejada e nunca realizada Assim como o movimento do batimento cardíaco o movimento de pulsar pausar por um pequeno instante e o voltar novamente a pulsar é a comparação posta por Mounier à vocação movimento contínuo e cada vez mais revelado no sentido dado e descoberto na própria vida O batimento cardíaco é pessoal o sentido dado é pessoal uma vez que a pessoa decifra incessantemente a sua vocação incessantemente destruindo qualquer pretensão menor podemos dizer que nesse sentido a pessoa é a própria gratuidade MOUNIER 2004 p 64 Ao darse sentido o indivíduo se doa a si mesmo ao caminho em direção ao dom Entretanto não se pode esquecer que este ato o de dar sentido está comprometido e destinado pois a unidade de um mundo de pessoas só se pode obter na diversidade de vocações e na autenticidade de adesões MOUNIER 2004 p 65 Mounier ainda ressalta no recolhimento a dialética interioridadeobjetividade por entender a importância do movimento de exteriorização e interiorização na existência pessoal sendo o objeto último da exteriorização o elemento que faz a pessoa se encontrar e se fortificar Ele esclarece É então que é preciso lembrar à pessoa que ela só se encontra e se fortifica por intermédio do objeto é preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade A pessoa é uma interioridade que tem necessidade de uma exterioridade A palavra existir indica pelo seu prefixo que ser é expandirse exprimirse MOUNIER 2004 p 66 66 Ao exteriorizarse a pessoa exerce pressão sobre a natureza dialetizando a pressão recebida desta transformandoa e se transformando ao se interiorizar novamente do mesmo modo como ocorre nas relações de trabalho como manutenção do homem Severino 1974 p 74 ressalta a importância tanto da exterioridade como da interioridade na experiência da própria autoconsciência é preciso lembrar ao sujeito que ele não se encontra e não se fortifica a não ser pela mediação do objeto Um verdadeiro diálogo constitutivo estabelecese entre o real e o homem Nesta dinâmica a vida exterior fortalece a interior e ao mesmo tempo em um movimento dialético o recolhimento libertanos desta prisão das coisas é preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade MOUNIER 2004 p 66 O que Mounier destaca é a força que o recolhimento pessoal fornece a uma reorientação interior seguida da exteriorização É o pulsar da comunicação que objetiva se aprimorar a si mesma 224 Pessoa e afrontamento Mounier 2004 tem cuidado ao tratar o tema afrontamento no sentido de que este pode ser mal interpretado ou mal utilizado por políticos e por militares a fim de porem as pessoas na defensiva em alguma ação de fronteira ou a trabalharem em obras defensivas Outro entendimento equivocado em relação ao afrontamento é considerar as pessoas que afrontam como excepcionais ou pessoas com uma vida pessoal de exceção O excepcional e a exceção são possibilidades de todas as pessoas Logo não podem ser usados para separálas em grupos ou seja Se a pessoa se cumpre na realização de valores infinitamente longe situados é no entanto chamada a atingir o extraordinário no próprio centro da vida cotidiana Esse extraordinário não a separa porque toda a pessoa é chamada para coisas extraordinárias MOUNIER 2004 p 68 É nesse sentido que a ética presente no personalismo chama a pessoa a atingir o extraordinário no cotidiano Tal ética é entendida como via dialógicoreflexiva em ação da verdade e da fidelidade do ser em direção a si mesmo ao outro e ao real na qualidade de ser pessoa Assim a pessoa é responsável pelo seu agir em liberdade condicionada na direção da transcendência A busca individual de cada um é a busca por ser extraordinariamente pessoa 67 Mounier 2004 p 67 entende que a pessoa expõese exprimese faz face é rosto A palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prósopon aquele que olha de frente que afronta Diante dessas afirmações sobre a pessoa ele trata o afrontamento como um elemento comum na vida cotidiana Mesmo sabendo que ela habita um mundo hostil onde se fazem necessárias atitudes de oposição e de proteção próprias à sua condição o autor evoca outro formato de enfrentamento o afrontamento Então o que é o afrontamento Para Mounier 2004 p 67 é o lugar em que o ser pessoal se singulariza eis uma sinonímia corrente na nossa linguagem O afrontamento envolve a singularização do indivíduo gerando rupturas protesto força afirmação e todos os elementos irredutíveis da pessoa Para o autor o existir é dizer sim é aceitar é aderir Entretanto se assim ocorrer sempre haverá um submergirse O existir pessoal é saber dizer não protestar e desligarse A mais humilde existência é já separação decisão MOUNIER 2004 p 6869 Nesta dinâmica do existir a dinâmica do sim e do não do aceitar e do protestar evocamse as relações entre o eu e o outro no sentido de este limitar a liberdade daquele Este mesmo movimento também evoca relações entre o eu e as minhas ações pois a obra que realizo me impõe o seu peso e entre o eu e o meu pensar já que a cada noção imobilizo o meu pensamento ou seja quando compreendo algo esse compreender fecha o movimento do pensar fazendo desnecessária a continuidade deste pensar Assim existir impõeme limites na liberdade confere peso às minhas ações e por vezes fecha o fluxo do meu pensar O autor diz que só conseguirei salvar parece tanto a minha capacidade para prosseguir como a própria juventude do meu ser se a cada momento for pondo tudo em dúvida crenças relações A ruptura a reviravolta são categorias essenciais da pessoa MOUNIER 2004 p 68 Pôr em dúvida e se pôr em dúvida é protestar é permitirse decidir é ruptura é dar continuidade O salvarme está intrinsicamente ligada à capacidade pessoal de prosseguir de fazer rupturas e à juventude do ser individual no sentido do protesto Entretanto ela envolve também atitudes de apaziguamento acolhimento de dádiva que são também constitutivas do nosso ser MOUNIER 2004 p 70 A força do afrontamento se expressa na força humana interior e eficaz espiritual e manifesta MOUNIER 2004 p 70 diferentemente da força bruta de poder O afrontamento é força da resistência é o amor Para o autor o amor é luta e a vida é luta contra a morte O afrontamento envolve o tomar consciência de si e de sua luta e envolve também optar por fidelidades que valem mais que a vida Nesse optar há o expressar pessoal da plena 68 maturidade Mounier 2004 p 71 retrata a importância da luta de força para a constituição de uma sociedade e observa que Não há sociedade ordem ou direito que não nasça de uma luta de força não exprima relações de força não viva baseada na força O direito é uma tentativa sempre precária para racionalizar a força e vergála ao domínio do amor Mas é também um combate Pretender o contrário só leva à hipocrisia ése contra a violência como se não participássemos indiretamente nos ocultos assassinos que a humanidade comete A utopia de um estado de repouso e harmonia reino de abundância reino do direito reino da liberdade paz perpétua é aspiração para que tende uma tarefa infinita e interminável não a deixemos apagarse num sonho pueril Há um reino de violência no estado de repouso diferentemente do estado de luta de força Para Mounier 2004 p 71 o verdadeiro problema está em que comprometidos enquanto durar a humanidade numa luta de forças temos ao mesmo tempo a vocação de luta contra o império da força e contra a instalação de estados de força Há um compromisso na luta de força na busca de valores que valem mais que a vida que é a luta pela permanência da humanidade no enquanto durar a humanidade É um exercício de autopreservação que preserva também a humanidade no homem O afrontar implica afirmarse é a pessoa como ato e como opção Ser é amar Mas é também afirmarse MOUNIER 2004 p 71 O ato da minha pessoa de dizer eu é um ato em que me afirmo me exprimo e é resultado de uma complexa cultura e de um frágil equilíbrio Dizer eu no sentido do afirmarme é um caminho longo de descentralizar o egocentrismo de superar o orgulho Esse afirmar é produto do meu equilíbrio biológico e sexual tanto como da maneira como reajo ao meio em que vivo E do juízo moral que na intimidade da minha consciência faço a mim próprio A pessoa por muito rica que possa ser destróise quando ele se destrói Exatamente agir é escolher por conseguinte cortar saber acabar a tempo e ao mesmo tempo que adotar recusar e repelir MOUNIER 2004 72 O que Mounier 2004 quer esclarecer ao explicar o eu é que ele consiste em um processo de desenvolvimento da saída da infância em que se vive a individualidade que nada quer excluir e nem causar sofrimento a ninguém O ato de dizer eu causa um movimento de exclusão do outro que se desdobra por vezes em fazêlo sofrer Essa dificuldade de sair da infância de dizer eu demonstra a incapacidade do indivíduo de escolher e demonstra também a abertura à confusão que daí resulta Edificar é sacrificar E a decisão não é um ato de força interior cego e arbitrário É a pessoa inteira a seu próprio futuro vinculada centrada num ato duro e rico MOUNIER 2004 p 72 69 São renúncias que custam e que por vezes são cruéis sem que causem porém mutilações Mounier 2004 esclarece que elas partem de uma plenitude exigente e são criadoras são opções responsáveis Novamente a palavra plenitude é posta na discussão do universo pessoal Assim o ato de dizer eu pagando o preço por dizêlo é uma atitude de quem se sente em plenitude suprido Sendo as negações da pessoa na maior parte das vezes dialéticas e solidárias para com uma recuperação há momentos em que ela vivencia intervalos de irredutíveis recusas é quando a dialética pessoal para em seu movimento Este é o momento em que o ser da pessoa está em jogo ela opta pela defesa do que lhe é irredutível Há na pessoa uma indomável paixão que nela arde como fogo divino MOUNIER 2004 p 73 É o momento em que a pessoa se vê ameaçada de servidão e prefere defenderse mais que a própria vida defender a sua dignidade de vida Entretanto para Mounier este tipo de pessoa é raro A maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco da independência Mas a revolta em tempo de domesticação a resistência à opressão recusa face ao aviltamento são privilégios inalienáveis da pessoa seu último recurso quando o mundo levanta contra o seu reino MOUNIER 2004 p 73 Conforme o autor fazse necessário que os poderes atuem a favor da pessoa que definam e protejam os direitos fundamentais a fim de garantir a existência pessoal no que se refere à Integridade da pessoa física e moral contra as violências sistemáticas os tratamentos degradantes as mutilações físicas ou mentais as sugestões e propagandas coletivas liberdade de movimentos de palavra de imprensa de associação e de educação inviolabilidade da propriedade privada e do domicílio habeas corpus presunção de inocência até prova de culpa proteção ao trabalho à saúde à raça ao sexo à fraqueza e ao isolamento Mas sempre as coletividades discutirão as fronteiras em que estes direitos se têm que harmonizar como o bem comum MOUNIER 2004 p 73 Mounier chama o Estado ao seu papel diante da opressão da pessoa dos aviltamentos da dignidade humana no que se refere a instaurar estes direitos e ao mesmo tempo de garantir uma sociedade que tenha suporte para efetiválos Desse modo a compreensão do autor sobre a sociedade perpassa todas as questões que envolvem políticas de Estado ou seja sociais econômicas políticas culturais jurídicas educacionais de segurança de saúde de moradia Cabe ressaltar a frase que dita mas sempre as coletividades discutirão as fronteiras em que estes direitos se têm que harmonizar como bem comum O que se põe como elemento decisivo aqui não é mais o Estado no papel de harmonizador dos direitos na 70 relação do pessoal e do coletivo mas o papel das coletividades de discutirem as fronteiras destes direitos Mounier ao esclarecer o afrontamento como um elemento da estrutura do universo pessoal não deixa de fora a articulação de discussão entre a pessoa a comunidade e o Estado Ele os imbrica de modo a comprometêlos entre si na garantia dos direitos da pessoa 225 Pessoa e liberdade Mounier ao discorrer sobre a liberdade com condições inicia a sua proposição criticando as formas de pensála e o porquê de tantas confusões A liberdade tem muitos apaniguados Os liberais consideramse defensores acreditados Mas os marxistas contra quem combatem pretendem preparar em oposição àqueles o verdadeiro reino da liberdade para lá das suas caricaturas Existencialistas e cristãos colocamna também no centro das suas perspectivas embora a sua concepção não coincida com nenhuma das outras duas Por que tanta confusão MOUNIER 2004 p 75 Na sua resposta ele apresenta a necessidade de tratála na estrutura total da pessoa Assim esclarece Porque cada vez que a isolamos da estrutura total da pessoa exilamos a liberdade para alguma aberração MOUNIER 2004 p 75 Para o autor a liberdade só existe porque é vivida por alguém ela não está lá no mundo A liberdade não é uma coisa A liberdade é afirmação da pessoa vivese não se vê MOUNIER 2004 p 75 Ele esclarece que no mundo há coisas ou situações que se cumprem e que não se pode instalar nelas a liberdade nem na ciência como perspectiva de desenvolvimento ou na superação do determinismo da natureza A liberdade não se ganha contra os determinismos naturais conquistase por cima deles mas com eles MOUNIER 2004 p 76 Eis a implicação do com condição a liberdade está em condições de dependência entre o eu o outro e a natureza ou seja na condição total da pessoa Portanto para Mounier a liberdade é uma conquista da pessoa que só se realiza depois que esta escolhe ser livre é a pessoa que se faz livre depois de ter escolhido ser livre MOUNIER 2004 p 77 São ações audaciosas o escolher ser livre e a experiência da liberdade A pessoa sofrerá o impacto desta escolha pois na liberdade há um peso múltiplo o que lhe vem de mim próprio do meu ser particular que a limita o que lhe vem do mundo das necessidades que constrangem e dos valores que a primem MOUNIER 2004 p 77 O autor continua a dizer sobre a escolha pela liberdade que a ela o homem não está ligado 71 como numa condenação mas que élhe posta como um dom Pode aceitála ou recusála MOUNIER 2004 p 78 Entretanto ele pergunta o que aconteceria à comunicação num mundo em que cada liberdade surgisse isoladamente MOUNIER 2004 p 78 O implicador desta pergunta está no fato de não sermos livres sozinhos Ele responde com a afirmação de Bakounine só somos verdadeiramente livres quando todos os seres humanos que me rodeiam homens e mulheres forem igualmente livres Só me torno livre através da liberdade dos outros MOUNIER 2004 p 78 No conceito de liberdade de Mounier 2004 está a ideia de cooperação de liberdade misturada aos instintos por meio da sua reivindicação e permeada pela comunicação Assim o sentido da liberdade começa com o sentido da liberdade dos outros a liberdade da pessoa cria à sua volta liberdade por uma como que leveza contagiosa MOUNIER 2004 p 7879 A liberdade só tem sentido para mim quando começa o sentido da liberdade dos outros A comunicação acontece de modo inteiro no à sua volta para além das falas dos gestos dos olhares a pessoa livre contagia com a sua leveza A liberdade como intenção coletiva contagia Já a liberdade no isolamento é alienação por ser ela situação do impessoal é permanente ocasião de alienação MOUNIER 2004 p 31 A liberdade nesse sentido só pode gerar a alienação conforme o autor A liberdade na condição total da pessoa traz a implicação do já dado do que já existia antes dela Assim a sua liberdade está na correspondência do seu condicionamento Segundo a afirmação de Mounier 2004 p 79 a liberdade do homem é liberdade de uma pessoa desta pessoa assim constituída e situada em si próprio no mundo e perante os valores Nesse sentido ele diz que a liberdade é condicionada e limitada pela nossa situação concreta então ser livre é em primeiro lugar aceitar esta condição para em seguida sair dela Está aqui a ideia de uma liberdade situada pois parte de uma situação real concreta de uma pessoa sendo ao mesmo tempo liberdade de pessoa valorizada No desdobrar da liberdade situada Mounier chama a atenção para os limites nem tudo é possível nem tudo é possível em todos os momentos Esses limites quando não são demasiados estreitos são uma força MOUNIER 2004 p 79 A liberdade como força de criação está na superação de obstáculos nas opções e nos sacríficos Neste sentido fazse necessário que se assegurem comuns condições de liberdade como se observa nesta afirmação A liberdade tal como o corpo só progride perante obstáculos opções e sacrifícios temos que assegurar comuns condições de liberdade biológicas econômicas 72 sociais politicas que permitam às forças médias a participação nos mais elevados apelos da humanidade MOUNIER 2004 p 80 O autor adentra novamente a ideia da liberdade situada no que se refere às comuns condições e ressalta que temos que nos preocupar com as liberdades tanto como com a liberdade MOUNIER 2004 p 80 Para ele ao buscarem a garantia de um lugar comum para as liberdades alguns a mistificam generalizandoa Como por exemplo as liberdades das nobrezas foram certa vez abaladas pelas liberdades das burguesias do mesmo modo as liberdades destas foram posteriormente abaladas pelas liberdades populares Assim o que foi considerado ontem liberdade amanhã pode não o ser Então se pergunta quando é que a liberdade é legítima Mounier responde que é quando recebe o sentido de uma personalização do mundo e do próprio eu ou seja de uma libertação espontânea dirigida e invocada como se nota de sua afirmação A nossa liberdade é liberdade de pessoas situadas e é também liberdade de pessoas valorizadas Não sou livre apenas porque exerço a minha espontaneidade tornome livre se der a essa espontaneidade o sentido de uma libertação ou seja de uma personalização do mundo e de mim próprio A minha liberdade não é somente manifestação espontânea mas antes dirigida ou ainda melhor invocada MOUNIER 2004 p 81 Nesta dinâmica da personalização do mundo e de mim próprio Mounier ressalta a necessidade de se reconhecer o sentido da história para nela sabermos nos inserir de modo a podermos inventar possibilidades inexploradas O autor ressalta que embora modesta a liberdade do homem deve ser intrépida Não se dá a liberdade aos homens do exterior com facilidades da vida ou com constituição MOUNIER 2004 p 82 Quando se dá a liberdade o que ocorre é um adormecimento nas liberdades e então os homens acordam escravos As liberdades não são mais do que possibilidades conferidas ao espírito de liberdade MOUNIER 2004 p 82 Para Mounier o espírito da liberdade afugenta e destrói as alienações As sujeições que atingem a nossa existência impõem a qualquer situação humana uma alienação mais ou menos difusa pertence à condição humana aspirar indefinidamente à autonomia tentar sem cessar atingila MOUNIER 2004 p 82 Porém falhase na sua procura Na condição humana estão as possibilidades contínuas de alienação e de libertação a batalha da liberdade não termina MOUNIER 2004 p 83 Em cada fase da busca pela liberdade ocorrem escolhas que se tornam o poder mesmo de quem as escolhe poder que faz com que o indivíduo possa chegar a afirmar que 73 optando por isso ou aquilo opto de cada vez indiretamente por mim próprio e na opção me edifico encontreime um pouco mais sem ainda me ter propriamente procurado MOUNIER 2004 p 83 A decisão é poder é origem criadora de uma nova ordem de uma nova inteligibilidade e de uma nova maturidade A liberdade é também repouso permeabilidade disponibilidade e adesão O ser humano livre para Mounier 2004 é aquele que interroga o mundo e que responde Nesse sentido ele é responsável e é um campo vivo de aprendizagem Assim a liberdade une promove uma religação entre as pessoas e a natureza e promove a devoção Liberdade não é o ser da pessoa mas o modo com que a pessoa é tudo o que é e éo mais plenamente do que por necessidade MOUNIER 2004 p 84 226 Pessoa e transcendência Mounier 2004 p 85 inicia a discussão sobre a eminente dignidade presente na estrutura do universo pessoal com a seguinte pergunta haverá uma realidade para além das pessoas Ele responde que para alguns personalistas como Mac Taggart Renouvier ou Howinson não há Já para Jaspers a realidade pessoal implica uma transcendência íntima transcendência radicalmente inominável e inatingível a não ser por uma qualquer forma de linguagem cifrada MOUNIER 2004 p 85 Tal como Jaspers Mounier 2004 p 85 compreende que o movimento que forma a pessoa a exteriorização e a interiorização não se fecha sobre ela mas indica uma transcendência que habita entre nós que se direciona para uma realidade superior em qualidade de ser A transcendência da pessoa se manifesta a partir da atividade produtora mas ela não pode ser reduzida a mera fabricação pois não resistiria a situações como o aspecto receptivo do conhecimento a admiração o testemunho G Marcel o irracional Meyrson o intencional Husserl MOUNIER 2004 p 86 A transcendência também não pode ser confundida com a agitação do ímpeto vital nem com o ímpeto social mas é a negação da visão de nós próprios como mundos fechados suficientes e isolados É o ato de direcionar nosso eu para o outro pois a pessoa é movimento de ser para o ser e se torna consistente no ser que visa Sem essa busca ou essa aspiração o ser se dispersa Esta riqueza íntima do seu ser conferelhe uma continuidade não de repetição mas de superabundância MOUNIER 2004 p 87 Segundo o autor o eu experimenta a transcendência como algo que o ultrapassa O autor esclarece essa afirmação remetendo ao pudor em relação ao corpo à timidez em 74 relação aos gestos ou palavras e à ironia em relação à expressão do ser para além do conteúdo verbal das ideias Observese O pudor diznos o meu corpo é mais do que o meu corpo a timidez sou mais do que meus gestos e minhas palavras a ironia a idéia é mais do que a idéia Na minha percepção o pensamento age sobre os sentimentos no pensamento a fé age sobre as determinações como a ação sobre as vontades que a implicam e o amor sobre os desejos que o despertam O homem dizia Malebranche é movimento para ir sempre mais longe MOUNIER 2004 p 87 Na transcendência ocorre uma abertura que perpassa o meu ser por inteiro por isso que Mounier 2004 fala dos desdobramentos de percepção do pensamento dos sentimentos da fé das vontades e do amor de modos interligados na direção do ir mais além de si Em qual direção A direção da transcendência personalista é o sair da despersonalização para a personalização é elevação não é só projeto é passar para além de visto que o ser pessoal é ser feito para se ultrapassar MOUNIER 2004 p 87 É o sentido do manterse de pé Conforme Mounier afirma o homem só se mantém de pé com um mínimo de força ascensional Ele ressalta que quando o homem perde a altivez se rebaixa mais que os animais Nenhum ser vivo a não ser o homem inventou as crueldades e baixezas em que este ainda se compraz MOUNIER 2004 p 87 O autor compreende o valor como direção da transcendência pertencente ao universo da liberdade em elevação pessoal A certeza do valor surge na plenitude da vida pessoal esta é a prova do valor que gera um equilíbrio ascensional no movimento de ir além de si Para a pessoa os valores são fontes inesgotáveis e vivas de determinações que revelam a singularidade expansiva e uma proximidade com o ser pessoal mais primitivo do que a sua direção para a generalidade Assim é a personalização dos valores que se incorporam num sujeito concreto quer individual quer coletivo Os valores apresentam tempo de duração Nesse sentido os que permanecem por mais tempo adquirem existência histórica Esse tempo consiste em um movimento que vai nascendo para a consciência da humanidade no percurso do seu desenvolvimento Exatamente como se cada época da humanidade tivesse por vocação descobrir ou inventar para as outras um novo setor de valores MOUNIER 2004 p 88 Aqui a vocação da humanidade está em descobrir este novo setor de valores conforme o seu movimento histórico Observese como Mounier 2004 p 8889 esclarece essa afirmação Temse falado em vocações de épocas ou de nações assim dizsepor exemplo que a honra é um valor medieval e a liberdade e a justiça social valores modernos ou 75 então no espaço a piedade valor hindu a raça valor francês a comunidade valor russo etc Cada uma delas nasce desenvolvese enfraquece depois desaparece durante um tempo numa espécie de sono histórico O próprio conceito do eterno ao contrário do geral preconceito é o oposto da imobilidade e exprimese sob aspectos incessantemente renovados Negamolo mesmo pretextando servilo sempre que o imobilizamos numa fonte histórica cujo declínio se esboça já Desse modo o autor compreende os valores que contêm relatividade histórica os que contêm a vocação de cada de época e de modo antagônico os que são movimento em contínua permanência Isso se dá porque o valor é renovado Entretanto para o personalismo cristão a direção da transcendência é o sentido axiológico dos valores que se agrupam para ele debaixo do apelo de uma Pessoa suprema MOUNIER 2004 p 88 Nesta compreensão está o valor absoluto como apelo à vocação humana de ser mais Nesse sentido o valor imutável ou absoluto está para um ser em contínua mudança em humanização Aquele que não muda em seu apelo é o Absoluto que apela à vocação de ser pessoa Mounier 2004 p 89 diz que a história exibenos o valor entre as generalidades e ao mesmo tempo os valores revelamse nas profundezas da liberdade da pessoa pois o seu verdadeiro lugar é o coração vivo das pessoas As pessoas sem os seus valores não existiriam plenamente Entretanto os valores só acedem para nós à existência através do fiat veritas tua pronunciado pelas pessoasMOUNIER 2004 p 89 Ou seja eles se tornam para a pessoa em sua existência plena a sua verdade e a sua liberdade é revelada no ato que os elege como seus Para o autor os valores não são realidades absolutas e não são subjetivos porquanto não dependem das particularidades empíricas de um sujeito dado MOUNIER 2004 p 89 Eles não existem sozinhos existem em relação a um sujeito Precisando ser recriados servem de mediações entre outros sujeitos e promovem interações que implicam a universalidade Os valores não são a projeção do eu pois neles existem as implicações da comunhão A pessoa é pois definitivamente movimento para um transpessoal simultaneamente anunciado pela existência da comunhão e da valorização MOUNIER 2004 p 8990 Esse movimento do pessoal ao transpessoal tornase um movimento combatente em que cada valor se instaura por meio da luta E é desta região que irradia a eminente dignidade do homem MOUNIER 2004 p 91 a região do lugar combatente Para Mounier 2004 p 90 a pessoa só existe a partir do momento em que constitui um círculo interior de valores ou de dedicação Este círculo interior tornase força contra os elementos que destroem as pessoas como as técnicas modernas de embrutecimento as facilidades do dinheiro as resignações burguesas dentre outros elementos que 76 despersonalizam o indivíduo O autor esclarece que o valor não pode ser abrangido por completo e nem comunicado em toda a sua plenitude O que ocorre são aproximações Nota se que o autor esclarece essa afirmação demonstrando a tensão entre a pessoa a eleição do valor e a vocação é preciso combater a violência mas fugir dela a qualquer preço é renunciar a qualquer grande tarefa humana MOUNIER 2004 p 90 No que diz respeito às direções dos valores e da sua articulação na vida pessoal Mounier 2004 apresenta a felicidade como valor que não pode ser vinculado a valores biológicos ou econômicos já que estes a isolam no egoísmo individual ou no mecanicismo coletivo É necessário que o homem saia da miséria fisiológica e social para ascender a valores superiores MOUNIER 2004 p 91 A felicidade para ele está nesta direção Conforme o autor depois da felicidade o grande ideal valorado dos dois últimos séculos é a ciência advinda da Revolução Renascentista com Nicolau Copérnico Galileu Galilei e Isaac Newton Nela estão as determinações objetivas necessárias ao movimento total da existência da ascese pessoal Não pode haver reflexão válida que não confira largo espaço à reflexão científica MOUNIER 2004 p 92 Ela a reflexão científica expulsa os mitos os preconceitos e as certezas instintivas instaurando uma direção objetiva existencial da pessoa com a realidade Outra direção para a qual apontam os valores é a verdade a qual consiste em um esboço de uma teoria personalista do conhecimento Nesta discussão Mounier 2004 se opõe à razão impessoal por ela não perseguir a universalidade de um mundo de pessoas Para ele tratase de tomar consciência da situação global do ser que conhece MOUNIER 2004 p 93 Uma vez que este ser é situado pertence a uma história tem um corpo logo ele está no e é comprometido com o conhecimento Nesta dinâmica do universo pessoal a verdade tem sempre propriedade Observese o espírito que conhece não é espelho neutro ou fábrica de conceitos que se interpusessem no seio da personalidade total é existente indissoluvelmente ligado a um corpo e a uma história chamado por um destino comprometido nessa situação por todos os seus atos e portanto também pelos seus atos de conhecimento Exatamente porque o homem é o ser que está sempre comprometido o compromisso do sujeito que conhece longe de ser um obstáculo é meio indispensável para um conhecimento verdadeiro A verdade não exerce sobre as pessoas impressões automáticas ou autoritárias Só consegue ser aceita se for proposta discretamente e só se dá àquele que a ela se oferecer de corpo e alma Assim num universo de pessoas a verdade tem sempre propriedade Exatamente porque não existe somente técnica mas uma conversão condição prévia para uma iluminação MOUNIER 2004 p 93 77 A verdade é um voltarse para si para o outro e para o mundo por inteiro corpo história destino de modo comprometido e progressivo Observase que existe em Mounier 2004 um método para a verdade É o que ele chamou de esboço de uma teoria O autor retoma a necessidade da comunicação e a continuidade temporal da pessoa implicadas com uma perspectiva da objetividade para afirmar que a verdade não é subjetiva A verdade é comunicável pois há conexões de reciprocidades entre o sujeito que conhece e o objeto conhecido na relação espaçotempo Desse modo são necessárias as mediações na busca da garantia da objetividade em que se faz uso do impessoal como aproximação primeira uma elaboração suprapessoal As mediações se tornam uma servidão e ao mesmo tempo uma disciplina na garantia da objetividade Para Mounier a mediação é nossa servidão mas é também nossa disciplina salutar MOUNIER 2004 p 94 Nesta direção existe uma lógica a ser edificada a lógica personalista Mounier 2004 p 94 afirma que ela não pode ser pura identidade pois o ultrapassar introduz a negação e a divisão a ambivalência ou tensão de contrários são dirigidas pelo piloto interior que mantém as suas fidelidades através das noites do espírito E esta lógica é ao mesmo tempo ruptura Da implicação ou síntese dialética às fases de autonegação e autosuspensão que devemos evitar se quebrem em estéreis ironias sucederão fases de compreensão de compromisso e de confiança ontológica a riqueza do seu espólio ameaçará sucessivamente um esmagamento do espírito ao peso da indecisão devendo então este cortar expulsar rejeitar E assim sucessivamente MOUNIER 2004 p 94 Para o autor a dialética personalista pode ser ameaçada por três perigos a fixação num mecanismo automático objetivado e objetivante que destrói o princípio criador da pessoa a paragem num momento da alternância da hesitação o encerramento no ecletismo Na dialética personalista não há busca da conciliação de teorias nem afirmações imediatas paixões subjetivas ou direção exterior Ela é movimento contínuo de interioridade exterioridade e rupturas Dentro da direção dos valores Mounier apresenta os valores morais como traços gerais de uma ética personalista O que ele coloca em discussão nesta direção é a liberdade e o valor presentes no universo pessoal Eles estão tão imbricados neste universo que podem ser confundidos com ele Entretanto Mounier abre uma frente de esclarecimento quanto à moral mistificada e às forças prémoralizantes que ele chama de perversões profundas da liberdade o conhecimento do bem e do mal não basta para dissipar tal como não basta uma simples técnica de higiene ou de sobrevivência É preciso uma conversão MOUNIER 2004 p 95 78 Além disso o autor esclarece que a obsessão moral tende a fechar caminhos da moralidade já que é melhor um encontro é mesmo melhor a viva e perturbante ferida do mal que a outrem se fez Só o sofrimento pode amadurecer o cogito moral MOUNIER 2004 p 95 Nesse sentido a ferida que a fraqueza abriu na alma habituada ao bem ou ao mal tem um poder de libertála do círculo mágico que a prende Diante de tal combate moral o autor afirma que se abrem duas direções que podem finalizar as inquietações que se tornam o final da moral ou alimentar o drama da liberdade Para ele é necessário saber alimentar a insatisfação e o drama da liberdade pois quando se finaliza a inquietação finalizamse a moralidade e a vida pessoal O movimento do drama da liberdade personalista é dirigido pela lei diante das tensões entre a ética da lei e a ética do amor À liberdade sucedese o legalismo que prolonga as pressões sociais e as intimidações infantis elimina a invenção moral e socializa este critério classificando segundo uma observância formal os maus e os bons O legalismo no entanto não condena a lei que é ainda necessária a uma liberdade incorporada e socializada Mediadora entre a prática e a invenção entre a intensidade absoluta da opção moral e a comunicação na generalidade da ideia moral a lei dirigida pela liberdade é instrumento da nossa contínua libertação e da nossa progressiva agregação a um universo de pessoas morais A tensão entre a ética da lei e a ética do amor situa o vasto campo da moralidade pessoal entre a banalidade da regra e o paradoxo da exceção entre a transfiguração paciente do cotidiano e as loucas investidas da liberdade exasperada MOUNIER 2004 p 9596 A ética da lei se situa na direção da instauração da liberdade do valor humano É nesse sentido que o universo pessoal define o universo moral mediante uma conversão ao mais humano Desse modo a liberdade incorporada e socializada amadurecida pelo cogito moral sucedese ao legalismo A ética do amor está na direção da superação da ética da lei porque nela está o euTu na direção do eunós a necessidade da exceção de ultrapassar a regra Ela é porém tensão por conta das investidas da liberdade exasperada o paradoxo da exceção entre a transfiguração paciente do cotidiano e as loucas investidas da liberdade exasperada MOUNIER 2004 p 96 Assim observase um movimento de crescimento moral no sentido da humanização do homem perpassado pelo ético do eunós em um movimento histórico ascendente e libertador que se expressa na vida pessoal e comunitária já que a lei dirigida pela liberdade é instrumento da nossa contínua libertação e da nossa progressiva agregação a um universo de pessoas morais MOUNIER 2004 p 96 Outra característica da direção do valor posta por Mounier é a comunidade dos destinos a história de cada um deles O autor aborda a história não como um objeto com uma estrutura já feita mas como um valor Eis a diferença entre este pensador e tantos outros 79 Nesta compreensão o que se discute é a história humana não uma história de pessoas solitárias com suas brotantes liberdades pois não pode haver entre elas uma história são outras tantas histórias incomunicáveis MOUNIER 2004 p 97 Para ele há uma história porque há uma humanidade Esta história não está com o destino fixado Se assim o fosse não haveria liberdade E explica A história não pode ser mais do que cocriação de homens livres e a liberdade deve guiar suas estruturas e seus condicionamentos Mas não o faz instantaneamente e esta margem entre a história deposta e a história assumida é a do determinismo histórico Mas essa retomada é obra humana por excelência Tem lugar numa experiência suficientemente conjectural para que ninguém em nome da História possa instalar a ditadura de uma hipótese antecipadora MOUNIER 2004 p 98 A liberdade como guia das estruturas e dos condicionamentos está na história humana correlata à assunção de um destino comum a toda a humanidade Nesta dinâmica o motor interno da história é o valor desse destino comum visto que essa retomada é obra humana por excelência Tem lugar numa experiência suficientemente conjectural para que ninguém em nome da história possa instalar a ditadura de uma hipótese antecipadora MOUNIER 2004 p 98 Essa compreensão do autor sobre o destino comum da humanidade é um dos mais altos valores entretanto ele não o trata como uma imposição mas atesta Postas estas condições o destino comum da humanidade é efetivamente para um conjunto de pessoas um dos mais altos valores MOUNIER 2004 p 98 Ao tratar de um destino comum e de um conjunto de pessoas Mounier abre a reflexão no sentido de que este destino comum ainda não é um alto valor em outros conjuntos de pessoas É por esse motivo que ele vincula a história como valor presente na estrutura do universo pessoal à expressão a comunidade dos destinos MOUNIER 2004 p 97 O que está implicado é cocriação de homens livres ou seja a liberdade presente na história que se faz presente na estrutura do universo pessoal em dialética contínua tendo como horizonte um mundo de pessoas A obra humana tem lugar numa experiência suficientemente conjectural para que ninguém em nome da História possa instalar a ditadura de uma hipótese antecipadora MOUNIER 2004 p 98 A última grande direção dos valores é apresentada por Mounier como os valores religiosos Personalismo e Cristianismo Tornase importante ressaltar que os valores para ele não são fixos mas seguem em transformações por pertencerem ao universo encarnado de pessoas que transcendem e que têm relação de Fé de um ser pessoal para outro ser Pessoal 80 que são incorporados na história e que têm como busca uma nova paisagem histórica Que paisagem será esta Para Mounier o personalismo cristão acrescentará Ou melhor Sublinhará contra o individualismo religioso o caráter comunitário tão desprezado de há dois séculos para cá da fé e da vida cristã reencontrando em novas perspectivas o equilíbrio da objetividade desconfiança tanto do subjetivismo religioso como de qualquer objetividade redutora do ato livre que está no centro de toda trajetória religiosa MOUNIER 2004 p 99 A nova paisagem da história é de caráter comunitário Este é o valor religioso em foco que apresenta o equilíbrio entre a objetividade e a subjetividade como centro da vida religiosa A direção dos valores encontra obstáculos O próprio ímpeto em direção aos valores implica uma como que fraqueza interna MOUNIER 2004 p 99 O movimento de contestação dos valores não é menos violento do que os seus combatentes como explica Mounier 2004 p 99 A felicidade passa depressa o caminho não atinge a inteligibilidade radical que tem em vista a arte não consegue tornar presente totalmente e a todos o milagre do mundo as morais não libertam do formalismo nem libertam o coração dos homens a história não elimina a violência a religião não se mantém na sua pura espiritualidade Nas mais altas obras do homem a queda surge sempre A morte rasga o seu caminho Os valores destroemse uns aos outros e não conseguem formar uma totalidade harmônica A vida valorizada oscila entre sofrimento apresentado em sua dramaticidade e a alegria dos valores triunfantes O sofrimento tem um caráter sensibilizador e traz um desenvolvimento à medida que a pessoa se enriquece em existência e promove a recuperação dos recursos da humanidade que desenvolve Tanto existe a escolha do bem como a do mal Este é um sinal da liberdade pois diante dos valores só escolhemos verdadeiramente se a liberdade puder escolher um nãovalor No entanto desde que o mal aparece desloca o universo pessoal corrompe e destrói a pessoa MOUNIER 2004 p 100 O desejo da plenitude do ser não se realiza na condição humana mas guiado por uma fé que ultrapassa qualquer experiência Ou seja se realiza na pessoa está presente em sua condição humana mas é excepcionalmente perpassado por ela 227 Pessoa e engajamento O compromisso pertencente à estrutura do universo pessoal chama à existência uma teoria da ação Conforme Mounier 2004 p 101 uma teoria da ação não é pois apêndice 81 ao personalismo é seu capítulo central A ação implica liberdade Entretanto se tiver uma orientação previamente fixada esta já não corresponderá à compreensão personalista da ação Ele chama o indivíduo à urgente necessidade de restituir o sentido da pessoa responsável e do imenso poder que esta detém quando confia em si própria MOUNIER 2004 p 102 Esse sentido responsável que se desdobra na ação é a própria afirmação do eu E assim que podemos dizer que o que não age não é MOUNIER 2004 p 101 Essa pessoa da ação não é isolada mas só é válida a ação em que cada consciência particular mesmo que retirada amadurece através da consciência total e do drama integral da sua época MOUNIER 2004 p 102 Esse amadurecimento da pessoa perpassa o ato de assumir o sentido humano assegurando a cooperação das liberdades e das qualidades e promove o controlar dos delírios e das mistificações que arrastam o indivíduo Esta dinâmica demonstra a ação não isolada no sentido da humanização do homem Mounier 2004 p 103 faz a seguinte pergunta Que exigiremos pois da ação Nela há a centralidade do seu pensamento Para ele não há ação que não esteja comprometida com a exigência de uma modificação da realidade exterior que forme as pessoas as aproximem entre si e que enriqueça seus universos de valores O autor responde a sua própria pergunta incluindo o nós porque nesta inclusão está todo o homem que dentro de nós se debruça para beber em cada um dos nossos atos Há na ação personalista um gesto de alimentar o homem interior ou melhor o homem da humanidade Que exigiremos pois da ação Que modifique a realidade exterior que nos forme que nos aproxime dos homens que enriqueça o nosso universo de valores Para sermos exatos exigimos de qualquer ação que responda mais ou menos a quatro exigências porque é todo o homem que dentro de nós se debruça para beber em cada um dos nossos atos MOUNIER 2004 p 103 As exigências da ação são apresentadas por Mounier 2004 dentro das quatro dimensões da ação A primeira situase no ato de fazer poiein cuja principal finalidade é dominar e organizar uma matéria exterior e cujo critério próprio é a eficácia A esta ação o autor chama de econômica e explica Ação do homem sobre as coisas ação do homem sobre o homem no plano das forças naturais ou produtivas está presente sempre que o homem até mesmo em problemas de cultura ou religião demonstra ilumina ou engendra determinismos É o domínio da ciência aplicada MOUNIER 2004 p 104 Entretanto essa ação ainda não está com o elemento da personalização assim não pode dar respostas definitivas aos seus problemas Ela alcança este nível na esfera política da 82 ação a qual se insere na ética É a um tal nível que se deve dar a personalização do econômico e a institucionalização do pessoal MOUNIER 2004 p 104 Aquele que foge desta zona vital da ação quer pela pura técnica pela pura meditação ou ainda por uma formação interior está na maioria dos casos praticando uma deserção espiritual Para Mounier a ação econômica personalista é uma ação política e ética vinculada ao rigor técnico A segunda exigência é vista sob o ângulo do agir prassein a ação ética tendo seu fim e sua dimensão na autenticidade ou seja na formação daquele que executa a sua capacidade as suas virtudes a sua unidade pessoal MOUNIER 2004 p 104 Nesse sentido aborda a ação ética ou a opção ética perpassada pela ordem econômica de modo dialético na perspectiva da formação daquele que a executa Assim esta ação é vista na relação dos fins com meios já que sobre uma escala de meios puramente técnicos o meio estaria então tão estreitamente ligado ao fim que entre eles nenhuma divergência seria possível MOUNIER 2004 p 105 Para Mounier 2004 p 105 na ação ética os próprios meios materiais se tornam meios humanos pois vivem nos homens por eles modificados e modificandoos a eles ao mesmo tempo que integram essa interação num processo total Nesta dinâmica o homem presente e a qualidade da sua presença agem sobre todos contaminandoos Técnica e ética são dois pólos da inseparável cooperação da presença e da operação em um ser que não age senão em proporção com o que é e que não é senão na medida em que se faz MOUNIER 2004 p 105106 A terceira exigência se refere aos valores teorein diz respeito ao aspecto da atividade que explora os valores e se enriquece à medida que estes se estendem sobre a humanidade Consiste em uma ação contemplativa do modo inteiro e seu fim é perfeição e universalidade mas através de uma obra finita e de uma ação singular MOUNIER 2004 p 106 Essa ação contemplativa como toda ação humana recebe influência dos condicionamentos naturais Ela age por todo o plano prático sendo a contemplação perpassada pela prática e a prática pela contemplação na exploração dos valores ou seja o contemplativo embora guardando como principal preocupação a exploração e a integral experiência de valores pode ter também diretamente em vista modificações de caráter prático MOUNIER 2004 p 106107 Nesse sentido a ação é do tipo profético Ela assegura o elo entre o contemplativo e o prático de modo a permitir uma ação política que abrange o ético e o econômico Podese 83 falar segundo Mounier 2004 até de intuições proféticas que têm o sentido do testemunho de um mundo futuro Ele aborda o ato profético com algumas observações no sentido do gesto desesperado na busca de uma afirmação vã e de o ato profético ser acompanhado por uma consciente intenção de exercer pressão sobre uma dada situação podendo ultrapassar toda a espessura da ação e do testemunho para se tornar um executante A quarta exigência é a coletiva que dita que a comunidade de trabalho comunidade de destino ou comunhão espiritual são indispensáveis à sua humanização integral MOUNIER 2004 p 108 A dimensão da ação coletiva acompanha a pessoa em e com a comunidade e o que se realiza em comunidade é o trabalho a vida em comunhão que se destina à humanização Assim a dimensão da ação coletiva tem nesta humanização seu único compromisso A teoria do compromisso de Mounier apresenta dois polos o político e o profético Para ele não basta afirmar a solidariedade entre a teoria e a prática importa traçar uma total geografia da ação para sabermos tudo que deve ser unido e como deve ser MOUNIER 2004 p 108 A ação vinculada ao compromisso tem a preocupação da eficácia e da contribuição com uma vida espiritual O homem para o autor demonstra incapacidade de realizar todas as suas possibilidades e tende então a especializar a ação E argumenta Não podemos ser tudo ao mesmo tempo mas a ação no sentido corrente da palavra aquela que sobre a vida pública incide não pode portanto sem implicar um desequilíbrio assumir bases mais estreitas do que o campo que vai do pólo político ao pólo profético O homem da ação realizado é aquele que vive no seu íntimo esta dupla polaridade percorre agitandose o caminho que vai de um a outro combatendo a um tempo para assegurar a autonomia e regular a força de cada um e para encontrar as comunicações que conduzem de um a outro MOUNIER 2004 p 108 grifo nosso Entretanto o homem da ação pode ser um homem realizado quando vive no seu íntimo esta dupla polaridade MOUNIER 2004 p 108 Dito de outro modo o homem em ato de realizarse irá percorrer a vida agitandose combatendose para garantir a autonomia e a força regulatória do profeta e do político presentes nele O compromisso aqui é assunção da condição humana estando presentes às imperfeições que pertencem ao drama coletivo da humanidade já que nós estamos comprometidos embarcados préocupados Eis por que toda a abstenção é ilusória MOUNIER 2004 p 109 A força criadora do compromisso nasce da tensão fecunda que suscita entre a imperfeição da causa e a sua absoluta fidelidade aos valores criados 84 MOUNIER 2004 p 110 Assim Mounier trata o compromisso dentro desta trágica estrutura da ação e por isso não se pode confundir compromisso com aventura Sabemos também que a ação é um modo de conhecimento e que a verdade se dá àqueles que a reconhecem e aceitam mesmo nas mais precárias bases Uma ação não mutilada é sempre dialética MOUNIER 2004 p 110 Mounier ao organizar o seu pensamento personalista estabeleceu um lugar que dele emana a humanização do homem que vai em direção a uma antítese do admirável mundo novo de Huxley a estrutura do universo pessoal O termo estrutura traz a compreensão de uma base que se estabelece cresce e se equilibra por ser é situada de modo tridimensional espaçovolumetempo o volume total do homem a pessoa tridimensional MOUNIER 2003b p 50 E no espaçovolume apresentamse o baixo o meio e o alto ou seja a estrutura completa encarnada porém aberta É um equilíbrio de comprimento largura e profundidade MOUNIER 2003b p 50 A estrutura do universo pessoal na perspectiva tridimensional apresenta a seguinte configuração a encarnação se realizando na existência incorporada e na liberdade em condição a vocação realizada na eminente dignidade no compromisso e na conversão íntima e a comunhão que se dá na comunicação e no afrontamento Esta estrutura compreende o volume total do homem Nela se cria e se corre o risco de uma liberdade responsável em ação dialética na qual não ocorre a síntese na perspectiva do contínuo ato de se dialetizar a força criadora humana Desse modo o personalismo de Mounier compreende uma perspectiva humanizadora que promove o contínuo vir a ser cada vez mais humano mediante o despertar da pessoa a personalização do homem 85 CAPÍTULO 3 O PERSONALISMO DE MOUNIER NOVO HUMANISMO 31 Influências teóricas A obra de Mounier está marcada pelas influências de várias correntes como o Cristianismo no seu sentido mais revolucionário e autêntico a Fenomenologia Existencial na dimensão da concepção dialética entre homem e o contexto natural e cultural o serabertoao mundo de modo intencional e o Marxismo na visão de Marx sobre a práxis e nas concepções sobre alienação Mounier buscou repensar estas correntes de pensamento vinculandoas à sociedade de seus dias e assim propôs um novo modo de pensar a pessoa humana 311 Cristianismo Mounier como pensador cristãocatólico se mostrou inquieto quanto ao modo de vida dos cristãos de seus dias preocupouse em dar testemunho do Evangelho que foi o dos pobres Seu trabalho se caracterizou por um compromisso com a realidade contra a miséria ignorância e opressão MOSQUERA 1990 p 36 Com a intenção de contribuir com esse contexto buscou repensálo na direção da construção de uma nova civilização Nesse sentido ele criticou a postura da Igreja Católica e a civilização burguesa ocidental Em suas críticas Mounier 2003b abordou as indiferenças dos cristãos diante das injustiças e da pobreza do homem denominandoas escândalo de silêncio hipocrisia de corações e traições dos cristãos Para o autor a Encarnação de Cristo foi esquecida pelos cristãos e pela Igreja O Deus que se fez carne na história para livramento do homem já não tem sua extensão nos corações dos cristãos e em suas obras uma vez que a essência do cristianismo encarnação transcendência traz suas implicações na vida dos cristãos situados no espaçotempo E justifica por que isso se dá A Encarnação coloca o cristão num estado de inquietude essencial Cidadão de duas cidades habita a primeira misturado com as necessidades e as preocupações de todos porém não encontra seu desabrochamento não só de cristão mas de homem senão na segunda Em luta constante contra as forças do mal vive muitas vezes no dilaceramento Chamado a realizar o eterno no temporal MOIX 1968 p 302 86 O Espírito ao fazerse carne é implicado pela época e pelo local da sua encarnação Ele recebe os efeitos do contexto que o sedia é a participação da desordem Assim a inquietação surge nos corações dos cristãos Foi justamente essa posição de desconforto promovida pela encarnação que os cristãos abandonaram provocando na Igreja a renúncia aos valores eternos o cristão abandonou esta posição desconfortável escolheu o mundo ou escolheu contra o mundo a tranqüilidade satisfeita MOIX 1968 302 Este abandono se deu por causa da influência do individualismo burguês inflado pelo liberalismo capitalista O cristão como habitante de duas cidades a natural e a sobrenatural é colocado em uma situação singular conforme Mounier 1992 A sua vida é perpassada e influenciada pelas necessidades e preocupações da cidade natural e pelo suprimento da sobrenatural O cristão leva uma vida dentro da sua vida vagueia entre os homens com um segredo em seu coração MOUNIER 1992 p 416 O cristão é o corpo de Cristo em sua continuidade expresso na Igreja Vejase sua explicação A igreja corpo e alma é para a teologia católica uma realidade transcendente a toda realidade natural propriamente é o corpo de Cristo ou é o Cristo continuado A igreja tem sua cabeça na própria Trindade que participa que segue os gestos de sua vida Seus órgãos visíveis dogmas instituições nunca manifestam adequadamente o Espírito que anima pois umas expressões parcialmente humanas são sempre inferiores à realidade divina MOUNIER 1992 p 416 tradução nossa Esse caráter divino que abriga o cristão não o torna imune ao pecado assim como o Divino que abriga o homem não se torna pecado Este é um paradoxo do cristianismo que se põe no habitar do Divino no humano o sentido restaurador do humano é o fim deste habitar Nesta dinâmica Mounier 1992 p 417 retrata a acomodação existente na superfície da igreja onde o mal pode chegar como uma ferrugem nesta área misteriosa ontologicamente externo da igreja onde a fé está ligada às obras A crítica do autor à Igreja da sua condição humana é a sua renúncia aos meios temporais Ela fracassou ao se ligar às riquezas deste mundo abandonando os meios pobres O próprio Cristo iniciou seu ministério pela recusa da riqueza e poderes da terra MOUNIER 1992 p 418 Porém o autor ressaltou que no interior do cristianismo existe um povo sem máscara e fiel ao chamado a ser discípulo Diante da Encarnação de Cristo é que se mostra o sentido restaurador da Igreja ao mundo as tensões vividas pelos cristãos e pela Igreja são contínuas nela Assim Moix 1968 p 303304 afirma Do cristianismo que é tensão entre a Encarnação e a transcendência inquietude paradoxo crucificação muitos cristãos se tornam a muralha contra o risco Outros à 87 força de tanto repetirem que o reino não é deste mundo esqueceram que ele começa a partir deste mundo É preciso recordarlhe que sua lei única é a do amor que sua vocação natural é a da santidade e que o caminho que conduz a ela passa pela esquina da Cruz Mounier 1992 criticou a indiferença dos cristãos aos riscos ao amor implicado pelo sentido da cruz Para ele só quando o cristão perceber a necessidade da contrição na primeira pessoa esta se ampliará na compreensão da real situação dos cristãos da necessidade de abandonarem o paganismo Assim se poderá dizer que se está iniciando a restauração do cristão O ato de se reconhecer a própria situação como um alarde promove a confissão Para o autor há a necessidade de se retornar ao cristianismo em sua origem e não de se buscar um novo cristianismo como ocorria em seus dias pois a túnica não tem costura ela é única sem remendo MOUNIER 2003b p 230 Para Mounier isto é necessário para que se possa perceber a essência mesma desta religião encarnaçãotranscendência em comunhão O autor defende que a Igreja deve inserirse na história pois é na história que se realiza sua ação A importância de sua influência sobre a história se mostra como processo de restauração e como fonte de justiça na superação das injustiças É nesse sentido que as tensões se mostram pois é na ação temporal que se vai ver certo número de perigos aos quais estão expostos os cristãos de uma maneira particular e as faltas que cometem MOIX 1968 p 304 O confronto com o real move o cristão à ação e é neste lugar o da ação que se dá o movimento espíritocorpo em direção à transcendência Transcendente será sempre tensão e luta com o mundo Encarnação deverá sempre buscar sua sempre fugidia intimidade com o mundo MOIX 1968 p 320 Ele o cristão sofre com os que sofrem alegrase com os que se alegram Este é o participar da miséria humana movido pelo bálsamo do Espírito e este mover só é possível mediante a relação euTu situada no mundo ou seja mediante a presença Conforme Moix 1968 foi na busca de dissociar o cristianismo da desordem estabelecida que Mounier tratou o moralismo dos cristãos como um modo de mascarar a pobreza de suas presenças Estes buscavam ajustálas a algumas fórmulas Para Mounier 1992 era necessário desconfiar das proclamações morais que não estão vinculadas à História pois ele entendia que a escapatória do moralismo é uma espécie de imitação da espiritualidade cristã mas vazia da sua substância Dogmatismo extremamente perigoso porque ignora a realidade e passa ao lado dos homens e seus problemas MOIX 1968 p 304 88 Para Mounier 1992 a Encarnação chama os cristãos ao aprendizado da resolução de problemas assim aos problemas políticos soluções políticas e não conceitos gerais nem o idealismo que invoca os pretextos do pecado original para a condução do progresso social ou ainda a fuga contemplativa do incompreendido causada simplesmente por medo de viver Moix 1968 p 307 retrata as consequências do cristianismo na ordem política das instituições como uma dupla vocação Uma condição negativa há em cada pessoa um limite que nenhum indivíduo tem direito e nenhuma coletividade tem direito de transpor Ele delimita o espaço necessário à pessoa para amadurecer e pôr livremente os atos essenciais de sua vocação Uma condição positiva as instituições devem oferecer à pessoa um clima favorável ao seu desenvolvimento é nesse sentido que a vida da Igreja martela continuamente entre dois movimentos inserirse no temporal e recolherse do temporal Entretanto Mounier 1992 adverte ao cristão que o cristianismo comanda um espírito político mas não uma política A tarefa do cristão não é fácil quanto a resoluções de problemas e não deve esperar soluções recebidas da Igreja já prontas pois para isso é necessário que cada um aprenda o seu ofício de homem em ação A transcendência do cristão e da Igreja se mostra nesta ação apreendida Nesse sentido a Encarnação é vinculada à transcendência radicalmente a vida do cristão e da Igreja é concretizada em comunhão de pessoas criadas à imagem e à visão de Deus é o reino de Deus entre nós e não só a nós MOUNIER 1992 p 421 Na Encarnação está o compromisso vivo do cristão da Igreja com o mundo que se faz expressão de um Deus vivo entre nós Este desafio está posto para todo o cristão se fazer carne se fazer presente em um mundo de valores em ruínas oriundos da desordem estabelecida A presença total do cristão no mundo demanda dele que sustente as duas extremidades da corrente não negligenciando nem a Encarnação nem a Transcendência MOIX 1968 p 313 O seu cuidado com a ação na terra é análogo à restauração da Palavra de Deus no seu valor sagrado Aqui se mostra a conversão em testemunho autêntico do cristão o engajamento o comprometimento com as instituições de novos valores PEIXOTO 2009 p 58 Valores estes que são vinculados à pessoa e à vida em comunidade Moix 1968 apresenta as contribuições do cristianismo com as noções de pessoa comunidade e justiça para com o governo da cidade Essas noções são cercadas de amálgamas com o mundo o que gera confusões Ao cristão compete purificálas através de uma ação constante de libertação MOIX 1968 p 314 Este é o desdobramento do cuidado com a Encarnação e a Transcendência que consiste em pensar e viver o cristianismo no sentido da 89 purificação em ações de libertação Assim o cristão se põe na humilde escola da experiência da vida já que a edificação do Reino de Deus se dá na participação no reino deste mundo e na purificação deste pelos meios temporais O cristão crê na eficácia da oração mas não negligência por causa disso os meios humanos MOIX 1968 p 316 Peixoto 2009 p 58 esclarece que o que Mounier desejava era que a Igreja Católica retornasse o compromisso das comunidades cristãs primitivas que tinham como preocupação a pessoa a comunidade a evangelização a justiça e a fé em Deus Era o desejo de que a Igreja estivesse ao lado do povo oprimido A ruptura do cristianismo com a desordem estabelecida se mostraria nesta nova ordem Conforme o autor Mounier contribuiu e muito com a renovação da prática da Igreja Católica Sob a influência do personalismo o movimento Ação Católica que procurava engajar a Igreja nas questões sociais espalhouse pela Europa e por várias outras partes do mundo PEIXOTO 2009 p 59 As contribuições do cristianismo para o pensamento personalista de Mounier se mostram na noção de pessoa Na obra O personalismo ele elenca alguns paradoxos do pensamento cristão que se desdobram na noção de um absoluto e sua multiplicidade O pensamento cristão traz para o personalismo a noção do nada ex nihilo em que Deus tudo criou do nada da não existência e se tornou múltiplo sendo um paradoxo para a compreensão dos filósofos de seu tempo a criação a partir do não concreto Esse não concreto não é no sentido da abstração mas foi o que Mounier 2004 p 18 chamou de atos de amor únicos ou seja O Ser supremo que por amor os fez existir não confere unidade ao mundo através da abstração de uma idéia mas através de uma infinita capacidade para se multiplicar indefinidamente esses atos de amor únicos Não sendo de forma alguma uma imperfeição essa multiplicidade nascida da superabundância implica por si mesma a superabundância da infinita troca no amor processada Nesse sentido o ser humano deixa de ser o cruzamento de realidades gerais como matéria e ideias para ser um todo indissociável cuja unidade porque no absoluto assente precede a multiplicidade MOUNIER 2004 p 19 A implicação dessa compreensão de pessoa como um absoluto constitui o valor mesmo dela A pessoa é um ser que tem como referência um Deus criador que é ele próprio pessoa um Deus que entregou a sua pessoa para assumir a transfiguração humana e que propõe a cada pessoa uma relação única em intimidade uma participação na sua divindade MOUNIER 2004 p 19 Deus assim se mostra não mais como um ser tirano que traz para o homem seu destinatário mas que antes 90 lhe outorga uma liberdade análoga à sua o que implica uma generosidade retribuída de um absoluto para outro no Absoluto Divino Mounier 2003a p 46 ao afirmar o valor absoluto da pessoa humana não quer dizer que ela é o Absoluto Divino e nem um absoluto do indivíduo biológico ou legal mas queremos dizer que tal como designamos a pessoa é um absoluto em relação a qualquer outro material ou realidade social e qualquer outra pessoa humana Logo a pessoa deve ser a única referência Sendo assim ela deve estar em uma integração de semelhantes tendo a sua vocação ser pessoa protegida Isto é propriamente o estar em comunidade Gerase então um valor fundamental à comunidade de modo a aproximála da noção de uma pessoa Observase neste pensamento de Mounier a relação buberniana do EuTu O Tu se encarna humano e se torna outro Eu Prefigurase não mais uma relação EuIsso ou EuEu mas sim TuTu ou seja a referência ao e como o Divino permeia as relações entre as pessoas reunidas em comunidade Assim se estabelece a relação de um absoluto para outro que forma uma tríade pessoapessoapessoa O conceito de valor absoluto ampliase em uma multiplicidade de absolutos por ser a pessoa humana a base deste pensamento como ser único que não se repete Mounier 2004 se preocupou em fazer com que esse ser único não fosse confundido com o individualismo burguês A garantia de o ser humano se tonar pessoa e não indivíduo reside no fato de ela viver em comunidade 312 Fenomenologia existencial A busca de Mounier pela fidelidade à existência como ela é de fato confirma em seu pensamento uma aproximação da elaboração de uma fenomenologia da existência Essa perspectiva filosófica apresenta uma articulação entre o método fenomenológico e a filosofia existencialista A fenomenologia é uma filosofia um método e também um estilo de vida intelectual aberto para a vida para a significação das coisas para valorização do humano da ética e do diálogo PEIXOTO 2003 p 30 Esta abordagem consiste na busca pela superação da dicotomia entre sujeito e objeto entre homem e mundo introduzida pelo racionalismo e pelo empirismo PEIXOTO 2009 p 10 Para o racionalismo o conhecimento advém do sujeito Já no empirismo o conhecimento surge do objeto Para a fenomenologia a experiência intencional mostra que esses dois polos são indissociáveis forma uma unidade dialética pois toda consciência é consciência de alguma coisa Observase que 91 A consciência é consciência de algo é de sua essência abrigar em si o sentido a quintaessência por assim dizer de alma de espírito de razão é consciência de uma ponta a outra fonte de toda razão e desrazão de toda legitimidade e ilegitimidade de toda realidade e ficção de todo valor e não valor de toda ação e inação HUSSERL 2006 p 197 A unidade dialética formada entre o objeto e o sujeito é resultante do modo intencional da percepção original que ocorre por meio da intuição em sua efetividade carne e osso HUSSERL 2006 p 69 Essa carne é o corpo que sente é o vivido e vivente que por meio da experiência da subjetividade adquiriu a doação de sentido Os fenômenos psíquicos e físicos comportam uma intencionalidade e estes podem ser percebidos na relação noético noemática estabelecida pela pessoa com a realidade É por meio da consciência que se constroem os significados Assim supera a dicotomia estabelecida pelo racionalismo e pelo empirismo PEIXOTO 2003 p 28 pois nasce a exigência de se considerar o sujeito pensante na reciprocidade com o objeto Isso se dá porque no sujeito há mais que o sujeito em virtude do fluxo subjetivo da vivência Nessa direção Severino 1974 esclarece que Mounier aborda o que outras ciências e filosofias não abordaram epistemologicamente o mistério do ser a plenitude e a densidade da existência Toda gnose científica ou filosófica se não se supera enquanto pura visão racional acaba não dando conta da real especificidade da existência SEVERINO 1990 p 26 Isso se dá porque a plenitude e a densidade da existência não se deixam atingir e explicitar pela abordagem racionalista da ciência e da filosofia Para Severino 1990 p 25 a postura epistemológica de Mounier representava uma reorientação do próprio logos da fenomenologia existencial o que se faz claro quando ele opta por radicalizar a afirmação de que a pessoa é inacessível à razão à diferença de todos os demais seres Tratase de uma busca pelo alcance de sentido da existência humana em sua totalidade sem que com isso sejam tomados a priori aspectos definidores da pessoa Silveira 2010 p 49 acrescenta que Mounier pretendia conferir significado ao personalismo como uma fenomenologia existencial que se situava entre o radicalismo objetivo da ciência e o subjetivismo da metafísica Severino 1974 p 131 explica A aproximação e a abordagem do ser pessoal necessárias para a explicitação e compreensão filosófica exigem mais do que um simples estabelecimento de relações objetivas ou lógicas A compreensão do homem é em última análise dada através do engajamento pessoal na aventura total da existência só assim encontrar seá o mistério pessoal 92 Além disso a influência da fenomenologia existencial sobre o pensamento de Mounier pode ser observada na própria obra Introduction aux existentialismes Introdução aos Existencialismos Nela o autor discorre sobre a estrutura da árvore existencialista demonstrando como o veio personalista foi sendo configurado tendo como raízes os filósofos Sócrates Stoiciens Santo Agostinho e Santo Bernardo O tronco desta árvore é composto por Pascal Maine de Biran e Kierkegaard Este tronco se bifurca a partir da fenomenologia gerando de um lado o ramo do existencialismo ateu com Nietzsche Heidegger e Sartre e de outro o ramo cristão que se desdobra em vários galhos dentre eles Jaspers Gabriel Marcel Solovier Peguy Bergson Buber Scheler K Barth Severino 1990 p 26 compreende que foi necessária uma nova sensibilidade para se pensar a fenomenologia existencial da pessoa em seu sentido histórico e como fonte de engajamento Para ele O modo de Mounier praticar a fenomenologia existencial se tece mediante uma nova sensibilidade que ecoa as vibrações das revoltas nietzschiana e kierkergaardiana as percepções intuitivas de Agostinho e Bergson bem como as pulsações místicas de uma vivência cristã radical É nesse sentido que a história é então vivenciada encontrandose aí a fonte do engajamento da práxis que a podem reconstruir Na sequência da análise da árvore existencialista Mounier 1990 apresenta a frase de Sócrates Conhecete a ti mesmo A mensagem tem como chamamento o autodomínio e o enfrentamento Ao finalizar a discussão dessa árvore o autor fala a respeito da necessidade de pôr o problema devidamente em ressonância com numerosos temas comuns a partir da origem Nesse sentido Moix 1968 p 199 esclarece o ponto em comum entre o personalismo e o existencialismo O personalismo e o existencialismo de maneira geral concordam num ponto a luta contra o sistema Ambos afirmam a primazia do existente De fato o existencialismo é uma reação filosófica do homem contra os excessos da filosofia idealista e da filosofia das coisas A existência do homem eis o problema primeiro da filosófica Tem razão Mounier ao fazer do personalismo um dos ramos da árvore existencialista Desse modo a pessoa é abordada diferentemente de todos os demais seres e dos objetos da ciência positiva ou da filosofia racionalista Para Mounier 1990 p 93 os filósofos da racionalidade esqueceram que o espírito que conhece é um espírito existente e não é como em virtude de alguma lógica imanente mas uma decisão pessoal e criadora 93 Para o autor é necessário conhecer o espírito existente antes de se preocupar com uma teoria do conhecimento O existente não busca uma verdade impessoal e indiferente a tudo mas uma promessa de universalidade vivente atenta às suas aspirações às expectativas de resolução de seus problemas Nesse sentido o existente não é uma cera que sobre ela imprime suas idéias crenças e instruções antes é um movimento dialético de pensamento implícito a um pensamento reflexivo MOUNIER 1990 p 93 que evoca a transcendência em busca deste coração a ser preenchido Isso exige que o pensamento se faça carne carne da existência e carne do homem de sua existência MOUNIER 1990 p 94 Aqui se articula a compreensão do ser na perspectiva da fenomenologia existencial é o serabertoao mundo de modo intencional e por meio da imanência e da transcendência A interioridade e a subjetividade são abordadas por Mounier 1990 como expressões da qualidade intensidade responsabilidade e como atitude do conhecedor existente Uma vez que o ser que conhece é inesgotável é sempre mais que o seu conhecimento É por assim dizer um ativo de saber MOUNIER 1990 p 97 portanto permanecerá sempre menor do que o ser que sabe Assim o autor retoma Gabriel Marcel para afirmar que o pensamento é mais um caminho de encomenda de uma perfuração do que de uma edificação não é tanto para a construção do que para cavar MOUNIER 1990 p 98 O pensamento exemplifica o autor é como uma aração repetida no mesmo lugar em vez de uma turnê MOUNIER 1990 p 98 O ato do pensar para Mounier é um aprofundar O pensamento se apresenta no sentido de uma atitude interior de um movimento dialético de interioridade e exterioridade É nessa direção que a abordagem da fenomenologia existencial se recusa a tomar as categorias racionais como monopólios da revelação da realidade Sublinhemos que se trata do estatuto da inteligência diante da revelação e não de uma racionalização lógica MOUNIER 1990 p 103 O ser que conhece exerce uma atitude mais complexa e mais rica o que caracteriza o fluxo de vivência como sendo um conjunto de diversos atos reflexivos construídos de maneira peculiar os quais eles mesmos entram novamente no fluxo vivido e podem e devem se tornar em reflexões correspondentes de níveis mais altos HUSSERL 2006 p 170 O movimento de elevação das reflexões para Husserl é o que para Mounier corresponde ao aprofundar ao cavar Nesse sentido o ser pessoal é acionado por inteiro o homem é corpo exatamente como é espirito é inteiramente corpo e é inteiramente espírito MOUNIER 2004 p 29 Isso porque toda e qualquer reflexão possui o caráter de uma modificação de consciência mais exatamente de uma tal que pode ser experimentada em princípio por toda consciência HUSSERL 2006 p 171 Peixoto 2009 p 11 esclarece que consciência e subjetividade não são percebidas apenas como inteligência 94 espírito liberdade nem só corporeidade determinismo inconsciente mas tudo isso numa constante relação dialéticaexistencial A pessoa de que fala Mounier 2004 foi passível de ser pensada mediante o método fenomenológico personalista como explica Severino 1974 p 132 O mistério do ser pessoal é dado afinal de contas a consciência do filósofo personalista que se abre a esta realidade estabelecendo com ela uma relação noético noemático simultaneamente subjetivo e objetivo Tirando deste relacionamento toda restrição que lhe fora imposta pela fenomenologia intelectualista Mounier lhe atribui implícita na descrição que dá da pessoa um alcance muito amplo na revelação deste ser A consciência estabelece com o mundo com o outro e consigo mesmo um relacionamento de vivências ricas de densidade e de significações Segundo o autor Mounier chamou a atenção para o espírito filosófico que deveria conter uma ética da inteligência no sentido de não trair a luz e a verdade que o real revela na relação entre o ser e os acontecimentos a serem refletidos Essa abordagem dada por Mounier deixa claro que a concepção que a fenomenologia tenta superar é a que reduz as explicações do homem da sociedade da educação etc aos fatores econômicos PEIXOTO 2009 p 11 O revelar do real é mais que o econômico perpassa o todo do ser que deve ser perscrutado significado problematizado de todas as maneiras pelas quais temos acesso ao sentido REZENDE 1990 p 40 Foi nesse sentido que consistiu o renovar o milagre da vida para o qual a geração de Mounier 2003b se sentiu chamada um chamamento ético do valor humano de se tomar a pessoa como absoluto 313 Marxismo A influência marxiana recebida por Mounier na construção do seu pensamento pode ser percebida na ação do engajamento na crítica ao capitalismo e na desordem estabelecida Nessa direção ele afirma Acreditamos e aqui vamos dar um passo para Marx que uma espiritualidade encarnada quando é ameaçada em sua carne tem como primeiro dever libertarse e libertar os homens de uma civilização opressora MOUNIER 2003a p 10 tradução nossa Essa busca de libertação se deve à compreensão de transformação que a práxis propicia Eis aqui o princípio da axiologia marxiana da teoria da ação que pode ser observada no engajamento em Mounier Neste princípio o valor está na ação de libertação da pessoa enquanto projeto de uma nova civilização 95 A práxis é compreendida por Marx como uma atividade humana fundamental prática e sensível em virtude da qual o homem produz realidade histórica e produz a si mesmo É a práxis que produz o homem como tal em sua terrenalidade de pensamento o ser encarnado Assim observase que a questão de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica mas sim uma questão prática É na práxis que o homem precisa provar a verdade isto é a realidade e a força a terrenalidade do seu pensamento MARX ENGELS 2008 p 100 Desse modo cada vez mais a ciência e a reflexão nos revelam um mundo que não pode passar sem o homem e um homem que não pode passar sem o mundo MOUNIER 2004 p 35 em ação E ainda conforme Vázquez 1985 a práxis é um projeto de transformação da realidade a partir de uma crítica radical ao existente que opera as mudanças nas circunstâncias históricas Segundo Cousso 1969 em Mounier ela determinou a ação no conhecimento Notase como Mounier 2004 p 35 se insere nesta compreensão é preciso repetir no plano da ação o que acabamos de dizer no plano da explicação Em qualquer problema prático é preciso assegurar a solução no plano das infraestruturas biológicas e econômicas se quisermos que sejam viáveis as medidas em outros planos como no espiritual já que o espiritual também é uma infraestrutura Peixoto 2009 ao esclarecer a influência marxiana sobre o pensamento de Mounier afirma que existe uma práxis personalista já que para este último a teoria se forma na experiência e por meio dela A influência de Marx livrou Mounier de uma denúncia puramente verbal ou moral da sociedade burguesa COUSSO 1969 p 88 pois Marx ao elaborar suas analises sobre as condições materiais do homem em seu processo histórico a partir das contradições observou as implicações devastadoras do sistema econômico burguês Notase na afirmação considero o sistema da economia burguesa nesta ordem capital propriedade fundiária trabalho assalariado Estado comércio exterior mercado mundial MARX 1978 p 127 Assim como para Marx há necessidade de luta historicamente constituída a ser travada na busca de uma nova sociedade também se põe para Mounier o engajamento diante da necessidade de uma nova ordem de sociedade uma mais humana implicado em ações éticas e políticas na direção da pessoa como primeira e única nesta nova ordem social Para Mounier a hegemonia econômica do capitalismo é questionada quando se coloca a pessoa como primeira e única referência do social econômico e político ou seja como um centro de reorientação do universo objetivo MOUNIER 2004 p 25 Desse modo o pensamento marxiano incita todo o pensamento contemporâneo a libertarse das mistificações idealistas a partir da comum condição dos homens a ligar a mais 96 alta filosofia aos problemas da cidade moderna MOUNIER 2004 p 25 Este ato de ligar a filosofia aos problemas concretos propicia ao pensamento de Mounier a ação política na defesa da pessoa em todas as esferas da sociedade Apoiandose numa concepção de pessoa abordada numa experiência existencial que deixa lugar ao indecifrável pessoal Mounier propõe objetivos éticos e políticos que só perspectivamente se apresentam como aqueles apontados pelo Marxismo SEVERINO 1974 p 132 Conforme o autor Mounier atevese ao pensamento original de Marx à sua concepção do homem distinguindoo de suas adaptações históricas na Europa a análise histórica da civilização ocidental elaborada por Mounier sem dúvida alguma reencontra muitos pontos comuns com a crítica marxista SEVERINO 1974 p 132 No sentido da concepção de homem comum entre ambos Mounier 1992 p 178 esclarece que há portanto muito claramente no mundo uma dialética revolucionária Mas não é ou não é unicamente uma batalha horizontal entre as forças materiais oprimidos e opressores A opressão é o tecido do nosso coração Para ele esta opressão como tecido do coração deixa o coração impermeável à lágrima vertical da vida espiritual da humanidade Mounier demonstrou essa indiferença que distancia o homem da compreensão da miséria humana ao fazer analogia ao calvário E usando uma das chaves interpretativas de Marx sobre o capitalismo o proletariado ao fundilo à pessoa de Cristo crucificado ao sofrimento do homemDeus encarnado identificou o individualismo burguês na sua indiferença para com o sofrimento do trabalhador Para Mounier isso ocorre quando o homem foge da dor da cruz e do próprio calvário do outro não se percebendo a si mesmo como parte dessas condições como humanidade O autor retrata essa analogia demonstrando as indiferenças das várias classes sociais para com o proletariado A Experiência ou proximidade da miséria aqui está o nosso batismo de fogo O corpo do proletariado como completamente ferido como Cristo na cruz os fariseus ao seu redor a alegria dos mercadores a fuga dos apóstolos e nossa indiferença quanto à noite abandonado no Calvário Nova vitória da infância que expôsnos indefesos e fracos MOUNIER 1992 p 164 tradução nossa Aqui quem é posto em sacrifício é o proletariado que é como mercadoria de troca traído e vendido Mounier critica a sociedade burguesa duramente por explorar o trabalhador expropriandoo de sua dignidade humana Essa é para o autor uma situação de miséria humana em que os presentes proletariados são abandonados em seu sofrimento Sentimento 97 de indiferença para com o outro mesmo se estando junto de alegria enquanto o outro sofre A fuga da necessidade do outro e a solidão sentida pelo proletariado na cruz demonstram a vitória de uma nova infância humana representada pela insensibilidade burguesa A filosofia personalista consiste em um chamamento à assunção da própria vida em comunidade logo ao compromisso para com o outro eis a saída da humanidade de sua infância Nesta direção o homem real em sua situação concreta em sua miséria humana tornouse a referência fundadora do pensamento personalista de Mounier O pensamento de Marx foi importante na constituição do pensamento de Mounier tanto na composição no modo de elaborar e viver o seu próprio pensamento como na oposição ele amou no marxismo a mais poderosa reação moderna contra a decadência do pensamento em ruminações intelectuais e em afirmações sentimentais LACROIX 1990 p 34 Foi neste movimento dialético e contínuo de se fazer e se opor na esfera da elaboração da ação do engajarse que Mounier mostrouse um personalista cristão porém atento às contradições históricas pois um pensamento concreto dizia ele é composto de duas idéias que se afrontam numa antítese flexível LACROIX 1969 p 34 314 Personalismo novo humanismo O humanismo filosoficamente é uma concepção da vida e do mundo em que o homem se constitui como centro das indagações e direção de convergência É portanto tomada como humanista qualquer tendência filosófica que leve em consideração as possibilidades as limitações do homem redimensionando os problemas filosóficos O humanismo se direciona na defesa da dignidade do homem diante das forças que o ameaçam Mendonça 2006 p 19 assim esclarece O humanismo numa perspectiva filosófica é toda reflexão em torno do ser humano reconhecendo portanto seus valores suas buscas seus limites suas possibilidades de liberdade seus interesses e todos os aspectos a ele relacionados Dessa maneira há diferentes formas de humanismos Existem diferentes formas de humanismo Para Nogare 1994 todas elas de alguma maneira têm sua origem na raiz do pensamento grego inclusive o humanismo cristão e em grau menor o romano Conforme Mendonça 2006 p 20 os pensamentos filosóficos e políticos predominantes na idade antiga cristã na idade Média e na idade Moderna tiveram como base e influência o pensamento de Sócrates Platão e Aristóteles 98 É a partir de Sócrates 469 aC399 aC que se têm como princípio das ideias os problemas humanos e a busca da melhor forma de vida A filosofia proposta por ele consiste no homem voltado para o homem Sócrates descia a filosofia do céu à terra vinculandoa ao cotidiano Para ele o homem deveria buscar dentro de si aquilo que ele é e o que deve fazer por entender que é a razão que conhece e julga corretamente as coisas Mendes 1995 esclarece a influência de Sócrates sobre os filósofos posteriores a ele e apresenta a primeira formulação explícita do humanismo Observese Quando a filosofia pela mão de Sócrates desceu do céu à terra na sugestiva expressão de Cícero o homem passou a ser o centro das indagações dos pensadores gregos Nas acerbas disputas que o opunham aos sofistas Platão atribui ao mestre a busca obsessiva do ser e do saber humanos Protágoras proclama que o homem é a medida de todas as coisas estabelecendo assim a primeira formulação explícita do humanismo MENDES 1995 p 791 Segundo Mendes Cícero criador do vocabulário abstrato latino que traduz muitos termos filosóficos gregos condensou na palavra Humanistas três conceitos distintos a característica que define homem como tal o vínculo que une um homem a um outro homem e a todos os homens com significado rigoroso do grego philanthropià e aquilo que forma educa e instrui o homem como tal equivalente ao grego paiáeia Assim as contribuições dos filósofos da antiguidade ao pensamento humanista da atualidade se devem às compreensões que se concentravam nos seres humanos que aceitavam a razão como a base de toda a percepção na existência de uma ordem universal e numa lei natural que se aplicava a todos os seres humanos A noção de humanismo de Mounier está vinculada ao humanismo cristão e configura se em uma visão antropológica do ser humano a partir da referência do pensamento judaico cristão ou seja a partir da referência a Cristo e sua encarnação na história Segundo Vigneron 2001 p 1 o humanismo cristão pode ser assim compreendido Uma doutrina teórica e prática que manifesta o princípio da dignidade inalienável de cada pessoa humana e que tem como objetivo procurar para cada pessoa seu pleno desenvolvimento e de defendêla contra todas as agressões políticas jurídicas morais econômicas e até religiosas As raízes do Humanismo Cristão encontramse no Evangelho de Mateus 25 3146 no texto do juízo final Em verdade eu vos declaro todas as vezes que o fizeste a um destes mais pequenos que são meus irmãos foi a mim que o fizestes O humanista cristão valoriza cada pessoa e reconhece nela a imagem de Deus 99 É nesta perspectiva que está o sentido da pessoa como absoluto no pensamento de Mounier 2004 considerar o outro como um Absoluto que se desdobra na sequência da relação do eu e Tu no considerarse a si mesmo outro Absoluto O humanismo cristão constituiu uma corrente filosófica francesa defendida principalmente por Jacques Maritain Georges Bernanos e pelo personalismo de Mounier Para Maritain 1999 no homem há mais do que o homem pois nele habita a presença divina Só pela presença do divino no homem este já é mais Para Mounier este habitar consiste no sopro divino que impele a humanidade MOUNIER 2004 p 39 impelindo o homem que é participante da sua humanização Neste contexto o homem é chamado à ação de se fazer mais e mais humano na relação euTunós ou seja comunitariamente Este participar do impelirse pelo sopro divino é um movimento em que o indivíduo se transcende em direção ao mais humano Mounier 2003a p 10 ao dizer sobre a ambição do personalismo afirma que a nossa ambição espiritual não deve ser menor do que a ambição histórica Ele questiona se se propõe a criação de um novo humanismo ou não Devemos falar também criamos um novo homem Em certo sentido não mas em um sentido sim MOUNIER 2003a p 11 tradução nossa O autor esclarece que o não é no sentido de que em cada período da história se produz um homem estrangeiro ao homem de épocas anteriores com o único propósito de vida e evolução coletiva da humanidade Ainda para o autor as estruturas externas ajudam ou atrapalham mas não criam o novo homem pois este só nasce pelo esforço pessoal Essas estruturas não têm domínio sobre todo o homem Para Mounier existem certos dados permanentes e também certas vocações da natureza humana O autor ao trabalhar a perspectiva histórica implicada na espiritual adverte que a evolução histórica humana sem a ambição espiritual consiste em indefinidos ensaios de erros acertos e aventuras para encontrar os limites do humano e do desumano Ao mesmo tempo Mounier rejeita o messianismo utópico e vago do homem novo na história Para ele estão implicadas história e espiritualidade e nesse sentido o novo homem nasce a partir do ouvir o chamado da história sobrehumano MOUNIER 2003a p 11 tradução nossa Ao perceberse historicamente constituído humano o homem sentese chamado ao para além do homem um chamado ao homem espiritual É nesse sentido que o novo humanismo de Mounier pretende refazer a Renascença Esta como movimento histórico representou o renascimento do Humanismo da Antiguidade 100 Grega que consistia na busca do homem e de suas atividades em substituição à presença de Deus e sua doutrina que predominou no período medieval A Renascença foi marcada por um resgate dos valores grecoromanos uma busca ao passado clássico à sua arte e cultura propiciando uma nova atitude em relação à humanidade uma nova visão do mundo natural um novo método científico empírico que retirou o controle do conhecimento da religião dando força ao científico e ressaltou a importância de se apreciar a vida Este movimento se voltou para os estudos do eu acentuando o individualismo que desencadeou o que se chamou de modernidade Segundo Chaui 1987 p 63 só muito recentemente os historiadores das idéias e da história sóciopolítica voltaram os seus estudos para o Renascimento de forma diferente não o entendendo como um momento de transição na história entre a Antiguidade e a Modernidade mas como uma fase que apresenta conceitos próprios passando assim a nela observar várias contribuições para a própria constituição do pensar filosófico posterior como por exemplo a idéia de que a política é uma esfera de ação laica ou profana independente da religião e da igreja CHAUI 1987 p 61 A ideia do valor da observação e da experiência para o conhecimento humano a valorização da capacidade da razão humana para conhecer e transformar a realidade que é uma das características principais do chamado Humanismo desenvolvido durante o Renascimento CHAUI 1987 p 62 que se mostra em contraposição à ideia medieval Teocêntrica conceito de semelhança que contribuiu para pensar as relações entre seres a ideia de imitação que aparece na teoria política a separação entre fé e razão natureza e religião política e igreja a perspectiva da fundamentação do saber e a discussão sobre a essência da alma humana como racional e passional tudo isso conduziu mais tarde o Sujeito do conhecimento ou a subjetividade Dentre outras contribuições e conceitos Chaui trata aqui do que Mounier 1992 já anunciava da importância do Renascimento para a humanização do homem que deveria se voltar para tal fase no sentido de resgatar o homem como centralidade de todo o pensar e o agir refazendoa A Renascença para Mounier 2003a sinaliza um marco na história humana para o qual é necessário se voltar em análise e compreensão do chamado da história como lugar de se reconstruir o novo sentido do humano Entretanto a humanidade se perdeu quando a sua atenção se voltou para a direção do progresso econômico técnico e científico secundarizando a preocupação com o homem Este perder da humanidade para Mounier 1992 ocorreu em virtude dos desvios das concepções mais estreitas e abstratas do indivíduo o que gerou as rupturas das comunidades 101 primitivas Estas pequenas comunidades garantiam ao homem o sentido da comunhão da solidariedade da partilha e da valorização do outro O refazer a Renascença para o autor consiste em um renascimento do homem concreto situado em e em relação constitutiva e axiológica com o euTu em totalidade o que implica uma revolução que forma uma nova compreensão de pessoa e de comunidade revolução personalista e comunitária uma chamada à libertação humana O termo revolução em Mounier deve ser entendido como mudança radical conversão íntima e comunitária NASCIMENTO 2007 p 126 A palavra revolução no personalismo está inteiramente ligada à pessoa e à comunidade O personalismo ao apostar no ser humano está também apostando na comunidade PEIXOTO 2009 p 25 É nesta relação pessoa e comunidade e a partir dela que ocorrem as transformações ou melhor a proposição de um projeto de uma nova civilização O refazer o Renascimento propõe uma mudança radical em face de um mundo em decadência LORENZON 2000 p 256 Este projeto se apresenta também na adesão a uma escala de valores em comunidade em uma nova proposição de cristandade desvinculada da desordem estabelecida uma vez que esta cristandade se perdeu vinculandose ao espírito burguês Este projeto caminha da propriedade capitalista à propriedade humana pessoal e comunitária e dá ouvido e voz às implicações das boas novas do evangelho se desdobrando na resposta adum Presente Conforme Lorenzon 2000 este é compromisso para com a proposição de uma nova civilização Peixoto 2009 p 25 afirma para garantir essa reestruturação é necessária uma profunda transformação política e social de modo que todas as instituições sejam estruturadas em função da promoção da pessoa No refazer a Renascença há uma proposta político econômicosocial centrada na pessoa para a qual tudo deve convergir para a sua formação Mounier 1992 ao analisar as proposições dos humanismos em seus dias apresentouos como vencidos pelas suas ambições dos tipos ideais Observase nesta descrição Temos visto surgir nos últimos tempos em todos os lugares essa preocupação por reencontrar o movimento interior do homem concreto Mas a partir do momento em que a intenção é expressa falta perspectiva Estamos unidos pela vaga sensação de que há algo que buscar de que não somente o corpo do homem tornouse demasiado grande para sua alma como denunciado por Bergson mas em vez de desenhar novas formas de uma intensão mais perfeita para o espírito ele tem crescido como um câncer tecido enfermo e mal formado e metade do caminho entre o homem interior e o homem social é fabricada para cada um de nós uma alma artificial e derrotada uma rede de abstrações sem intimidade com nossos amores Homem 102 artificial o homem do individualismo suporte sem conteúdo de uma liberdade sem orientação Homem artificial o cidadão sem poder que elege ao lado dos poderes homens que venderam o poder Homem artificial o indivíduo econômico do capitalismo suas mãos e suas mandíbulas parecem com Picasso Homem artificial o homem de uma classe isto é de um conjunto de costumes de conveniências e de expressões soldadas pela ignorância e desprezo Mas artífices viventes tiranos servidos pela facilidade e inércia Por essa razão apenas redescobrindo muito por baixo do nível em que eles atuam o destino orgânico e global do homem Estamos de volta ao centro o homem concreto é o homem que se entrega MOUNIER 1992 p 195 tradução e grifo nossos Mounier 1992 2004 não trabalha com a proposta de tipo ideal do homem mas com uma valoração humana que se encontra na dialética axiológica presente na imanência e na transcendência que se torna um autoelevar humano É este caracterizado pela metafísica com primazia para a axiologia humana Os tipos ideais levantados por Mounier 1992 em seus dias não carregam as perspectivas da dupla vocação mounieriana que estão no âmbito do crescimento vertical e horizontal da humanização Na discussão sobre o humanismo abstrato realizado por Mounier 1992 em outubro de 1934 ele fala desta dupla vocação humana do crescimento vertical sua liberdade sua personalidade seu próprio domínio o elevarse humano e da vocação esquecida do intercâmbio horizontal de devoção O autor afirma que essa dupla vocação foi desprezada historicamente gerando o humanismo abstrato a partir do Renascimento movimento dominado pela mística do indivíduo e posteriormente a partir do humanismo da União Soviética gerando o humanismo dominado pela mística do coletivismo Para Mounier essa é uma luta trágica pois o homem está em ambos os campos Foi justamente no terreno desta dupla vocação que Mounier 2004 construiu a sua compreensão de humanismo Nessa visão personalista e comunitária estão as raízes de uma concepção autenticamente humanista do desenvolvimento MONTEIRO apud SEVERINO 1974 p IX A busca de um novo humanismo por Mounier é por um mundo mais humano e para ele só é humano o mundo que der suas possibilidades às exigências essenciais do homem conforme esclarece Moix 1968 No sentido de dar possibilidades às exigências essenciais do homem Mounier propõe o humanismo personalista no qual há uma ideia de homem como pessoa e uma proposição de humanização Estamos de volta ao centro o homem concreto é o homem que se entrega ao despertar da pessoa MOUNIER 1992 p 195 tradução nossa O autor em todas as suas obras analisou os humanismos presentes em seus dias o humanismo burguês do capitalismo os totalitários do secular fascista e do marxista e o 103 existencialista e buscou uma nova reorientação para a humanização do homem ou seja foi em busca do novo humanismo Para Mounier conforme Moix 1968 o humanismo ligado à forma primeira do Renascimento havia se perdido dada a união entre burguesia e Igreja de forma meramente aparente movida por interesses como poder e ascensão social Os humanismos do individualismo e do capitalismo transformaram o homem em mero meio puro instrumento Moix afirma que para Mounier o espírito burguês criou um tipo de humanidade o burguês O humanismo burguês é caracterizado por Mounier 2003a p 15 tradução nossa como uma decadência do indivíduo individualismo é uma decadência do indivíduo antes do isolamento do indivíduo ele isolou os homens na medida em que tem degradado Para Mounier o burguês segue uma revolta que se desenvolveu na Renascença para o presente a revolta do indivíduo contra o absolutismo feudal pois o aparato social havia se tornado muito pesado O sistema feudal percebiase ameaçado por esse novo modo de produzir riqueza e procurava dificultálo com fiscalização cobrança de impostos e tarifas alfandegárias sobre os mercadores O sentido dado a esta revolta dos burgueses está na busca por um mundo de felicidade que foi aos poucos se configurando no liberalismo Sobre o liberalismo Alves 2007 p 7980 esclarece que o liberalismo deve ser visto como a expressão mais desenvolvida da visão de mundo burguesa Mas ela não surge do nada Sua gênese deuse no interior das lutas que a burguesia vinha travando contra a igreja católica e a nobreza no sentido de superar os entraves feudais postos ao desenvolvimento de seus negócios No âmbito do discurso essa classe alicerçava suas reivindicações nas liberdades individuais liberdade de comerciar liberdade de produzir liberdade de crença liberdade de trabalho etc Logo o liberalismo tendo sua doutrina formulada no século XVIII tinha suas raízes fincadas na existência da burguesia desde as suas origens Mounier 1992 esclarece as fases vividas pelo humanismo burguês que se inicia a partir da decadência do indivíduo com o surgimento do herói burguês Nesta fase heroica o homem é um lutador solitário se apresenta com um tipo viril de conquistador de tirania reformador o Don Juan Suas virtudes são as aventuras ousadia independência orgulho e habilidades que multiplicam apenas a audácia Nesta fórmula de civilização burguesa as defesas da iniciativa do risco e do liberalismo estão no abandono dos valores que foram assentados no início das cidades Assim as paixões pela aventura foram gradualmente substituídas pelos prazeres suaves do conforto mediante a conquista mecânica distribuidora impessoal do prazer mesmo que estas conquistas pela máquina gerassem a desumanidade justamente por serem recursos 104 desumanos A criação aqui já não é para novos projetos é criação para inércia no sentido do cada vez mais tranquilo Geraramse o lucro especulativo o lucro industrial e os valores do conforto foram direcionados para a criação Desse modo gradualmente foise destronando o ideal de individualismo para abrir caminho para a classe dominante Este é o espírito que chamamos burguês por causa de suas origens e que aparece como a mais exata antítese de toda espiritualidade MOUNIER 1992 p 593 Para Mounier os valores deste humanismo são o poder de opressão do homem sobre os homens e o poder adquirido facilmente a segurança e o dinheiro que expressam vitória Dinheiro separa Ele separa o homem do combate com força nivelando a resistência toda ele os separa dos homens pela comercialização Para o autor criouse um templo para este formato de humanismo em cujo altar está um deus sombrio e terrivelmente simpático o burguês MOUNIER 1992 p 593 Segundo Mounier o homem burguês perdeu o sentido do Ser ele se move entre as coisas e as coisas utilizáveis destituído do seu mistério Perdeu também o amor tornouse cristão descrente sem preocupações sem paixão que realiza uma corrida em torno de um pequeno sistema de paz psicológica e social Para o autor o burguês tem apenas um pensamento conseguir O conforto é o mundo do burguês o heroísmo foi do Renascimento e a santidade na cristandade medieval o último valor a ação móvel MOUNIER 1992 p 593 O humanismo burguês baseiase essencialmente no divórcio entre o espírito e a matéria entre o pensamento e a ação O espiritual no humanismo burguês apresentase como um corte que desamarrou o homem das brutalidades deste mundo para assistilo para monitorar e às vezes distrair MOUNIER 2003a p 18 tradução nossa O material entrou lentamente de volta para a humanidade por meio de uma classe de homens colocados à obra de suas mãos despossuídos de tal magnitude a de estar no controle do trabalho ou na participação de um grande projeto do homem O material expulsou o homem da cultura da alegria humilde no trabalho e teve o efeito de fazer com que ficassem muitos como expulsos alienados de si mesmos MOUNIER 2003a p 18 tradução nossa Sobre o humanismo secular fascista Mounier 2003b ao analisar profundamente o fascismo como uma espécie de atitude humana um pseudohumanismo afirma que há uma tentação fascista no mundo Quando ninguém mais vê o tudo claro e quando tudo fica pesado tornase conveniente entregar tudo nas mãos de um homem na espera cega por palavras de ordem a fim de se obedecer aos discursos heroicos sem questionamentos Para Mounier 105 1992 p 233 tradução nossa a origem do fascismo se deu por conta das situações de democracias esgotadas em momentos em que a despersonalização e a desordem são tamanhas que todos aspiram um salvador que levará todos os problemas prementes toda essa massa decomposta e fará milagre O autor o chama de totalitário e afirma que no fascismo está o verdadeiro significado do indivíduo em que tudo está no Estado e nada no humano ou espiritual O autor ao esclarecer o fascismo afirma que este consiste em uma reação de defesa no plano social político e econômico que abandona o liberalismo por um capitalismo de Estado mas sem rever profundamente a base do capitalismo a regra do lucro a fertilidade do dinheiro o poder econômico da oligarquia ainda é esperado que integra o movimento operário no governo do estado mas na mão e sob a ditadura do regime autoritário e capitalismo inflexível que intenta enfim levantar o país em uma mística vital de salvação pública especialmente em seus estágios iniciais e de grandeza nacional encarnadas ambas em uma mística de um homem chefe de partido encarnação do Estado revestido de autoridade totalitária em nome do Estadopartido exercendo por meio dela o governo dos homens com apoio de uma política espiritual Mas vamos expor mais profundamente o fascismo como uma espécie de atitude humana MOUNIER 1992 p 258259 tradução nossa Ao abordar o fascismo como uma atitude humana ele o traz para a dimensão mais perigosa o pseudohumanismo pseudoespiritualismo que inclina o homem para o ambíguo para o culto à raça nação estado a vontade de poder disciplina anônima o chefe ao sucesso esportivo e a conquista econômica Enfim ao novo materialismo MOUNIER 1992 p 259 tradução nossa Para ele o materialismo é reduzir e escravizar o homem em todos os aspectos Para Mounier 1992 p 232 o fascismo e o hitlerismo ou nazismo têm a mesma característica a despersonalização o esvaziamento da responsabilidade pessoal a degradação da pessoa e o fato de que ele à massa oferece um regime próprio da tirania mesclado exatamente a tirania do anonimato tradução nossa Segundo o autor está é uma situação vexatória inexorável especialmente quando forças sem nome se aproveitam desse anonimato para dirigilos em benefícios de suas empresas de poder MOUNIER 1992 p 232 tradução nossa Para o autor este homem anônimo é o do individualismo sem passado sem casa e sem família sem vocação É um símbolo matemático préfabricado para jogos inumanos A consciência deste homem é consciência de massa consciência de superioridade como potência de afirmação e muitas vezes reservas de autossacrifício mútuo MOUNIER 1992 p 232 tradução nossa 106 Conforme Mounier no fascismo e no nazismo existe uma mística do líder ou da cabeça na qual se estabelece por parte dos membros da coletividade uma espécie de delegação da personalidade Há um demitirse das iniciativas das vontades próprias para descansar em um homem que deseja por eles ser julgado por eles e atuará por eles Quando ele diz eu eles pensam nós e eles vão se sentir em consequência engrandecidos MOUNIER 1992 p 233 tradução nossa Para o autor a mística do chefe é feita de renúncia do homem responsável de iniciativa Esta mística suplanta o democrático e desloca o tomar consciência gerando um consentimento inconsciente escravizado uma vez que não se cura uma escravidão inconsciente com uma escravidão consentida MOUNIER 1992 p 260 tradução nossa Nessa discussão o autor retoma a questão da classe média trabalhadora possuída pelo sentimento vergonhoso de inferioridade pronta para receber ordens daqueles que se julgam prontos para elevála à dignidade Mounier rejeita igualmente o fascismo e o comunismo mas sem colocálos no mesmo plano pois não é menos verdade no entanto que ambos denunciam o liberalismo e o individualismo que os dois percebem que a humanidade faz um esforço necessário de socialização LACROIX 1969 p 24 Moix 1968 apresenta tanto as contribuições que Mounier via no marxismo como seus limites Sobre o humanismo marxista Moix 1968 p 242 escreve citando Mounier que O humanismo marxista escreve Mounier aparece como a filosofia última de uma era histórica que viveu sob o signo das ciências físicomatemáticas do racionalismo particular e bastante estreito que delas nasceu da forma de indústria desumana centralizada que de tudo isto encarna provisoriamente as técnicas O marxismo quer reparar o homem novo alforriando o indivíduo de duas maneiras pelo ateísmo que significa antes de tudo recusa das evasões espirituais pelo trabalho razão científica e esforço industrial graças ao qual o homem transforma a natureza Dentre as várias críticas ao marxismo feitas por Mounier Moix discorre sobre o que ele chamou de um materialismo mais radical que é o humanismo do trabalho e da função produtora que considera ilusórias outras dimensões não menos essenciais do homem como a interioridade e a transcendência na compreensão da pessoa e do humanismo Nesse sentido o autor esclarece que para o humanismo marxista as imperfeições do homem estão nas condições materiais a falta de condições materiais de vida é o único obstáculo para o desenvolvimento do homem novo pois obriga o homem de hoje a esquecer das dimensões 107 espirituais MOUNIER 2003a p 27 tradução nossa Para ele o primado do material nos aparece como é uma desordem metafísica e moral MOUNIER 1992 p 177178 tradução nossa Pois valores vitais não são liberados a partir do peso dos valores materiais MOUNIER 2003b p 70 tradução nossa Nessa direção ele afirma a primazia do espiritual como nossa razão de ser MOUNIER 1992 p 257 tradução nossa Para o autor há uma responsabilidade muito grande no marxismo para com o homem E diz por que é um marxismo que não é apenas um método de investigação ou um conjunto de intuições sobre a condição humana há um marxismo filosofia totalitária que converte toda atividade espiritual em uma reflexão das circunstâncias econômicas ocultando ou negando os mistérios do ser e do homem não considerando outra superfície do homem que a relação com a vida de nutrição e de relação e ameaçando a pessoa com os próprios mecanismos que destina a liberála MOUNIER 1992 p 265 tradução nossa As características do humanismo de Mounier 2004 encontramse na estrutura do universo pessoal e o refazer a Renascença pode ser observado nesta estrutura O termo universo significa um todo e implica uma universalidade que abrange tudo e se estende a tudo A universalidade é o pessoal aberto Ainda no grego a palavra universo significa pronúncia Então considerase o universo como um todo que se estende abertamente em pronúncia que é direcionado para o grande e a porta para a comunhão MOUNIER 2003b p 50 tradução nossa O sentido da pronúncia chama o termo identificado como pessoal pois quem é o ser da pronúncia A pessoa O termo pessoal completa a compreensão da estrutura do universo pessoal O humanismo de Mounier 2004 tem como característica uma estrutura como um todo pessoal que se estende a tudo pronunciado situado equilibrado porém em tensões contínuas a tensão em cada homem entre suas três dimensões espirituais Vocação encarnação comunhão MOUNIER 2003b p 50 tradução nossa Notese que o autor declarou que a pessoa é O volume total do homem É um equilíbrio de comprimento largura e profundidade a tensão em cada homem entre suas três dimensões espirituais uma que se eleva espiritual à medida que sobe do fundo e encarnada na carne e a que é dirigida para cima que equivale a um universal que é direcionada para o grande e a porta para a comunhão Vocação encarnação comunhão a pessoa tridimensional MOUNIER 2003b p 50 tradução nossa O humanismo de Mounier 2004 apresenta um ser histórico comprometido com a sua humanização que cria que é situado que corre o risco da liberdade em condição que busca a comunhão por meio da comunicação e do afrontamento que impregna em si mesmo e em 108 seus atos valores maiores que ele mesmo O fazer humano a ação humana construindo história só se constitui em progresso quando é instrumento de humanização PEIXOTO 2009 p 13 Nesse sentido existem o conhecer a direção da história e um sentido da história a humanização tendo um princípio posto o da imprevisibilidade que se mostra na afirmação do ser pessoal conforme Mounier Este é o sim que o autor deu ao afirmar que é uma proposição de um novo homem Desse modo o humanismo proposto por ele foge a uma sistematização fechada por ter o ser deste movimento de humanização um princípio de imprevisibilidade instaurado em sua estrutura Ele põe em movimento o tempo como aberto para a constatação dos problemas que envolvem a pessoa e os processos de humanização que estão na estrutura deste universo É a inspiração presente na ascensão de um humanismo integral no fazer cultura Para Mounier 2003a a ascensão de um humanismo total na perspectiva de um espiritualismo encarnado se desdobra e se mostra na ação se fazendo cultura Ele chama a atenção para três níveis desse processo de humanização a civilização que se processa na adaptação social no desenvolvimento biológico do homem no seu corpo e a seu ambiente no sentido de progresso a cultura na qual o homem adquire alargamento de sua consciência e passa a ter fluência no exercício da sua mente pertencente a um grupo social em um determinado tempo que tem sua participação em uma determinada forma de pensar e de reagir e a espiritualidade que consiste na descoberta da vida interior da sua pessoa Na perspectiva da ascensão ao humanismo total observase que na cultura está o lugar do retorno da pessoa ao que lhe incide Ele é o imprevisível da pessoa pois sendo ela tridimensional vocação encarnação e comunhão o que ela devolve ao seu lugar espaço tempohistória consiste em uma dinâmica de ações internas e externas em respostas à luz que sobre ela incide Entretanto esta luz retorna em forma de cultura multicolorida pois ao refletir no sentido do reflexo e da reflexão a pessoa apresenta uma cor única A pessoa é irrepetível logo a sua cor não se encontra em outro lugar O inesperado da pessoa é a resposta à luz que a ela incide O princípio da imprevisibilidade da pessoa e de sua afirmação central se mostra na luz que retorna dela em forma da vocação e da comunhão Mas sendo a existência de pessoas livres e criadoras a sua afirmação central introduz no centro dessas estruturas um princípio de imprevisibilidade que afasta qualquer desejo de sistematização definitiva MOUNIER 2004 p 14 No desdobramento da explicação da ascensão do homem total Mounier 2003a 109 apresenta como característica central deste movimento em caminho uma vida dedicada por cada um para uma realidade espiritual O em caminho gera a ideia de que enquanto se caminha se faz humano ou seja durante a caminhada vai se fazendo ser mais humano Para o autor a ambição espiritual não deve ser menor que a ambição histórica já que na correlação carne e espírito no encarnado se dá a especificidade da ação em caminho Foi o que o autor chamou de compromisso quando reconheceu que existe um fim a ser realizado neste caminhar Retomase à perspectiva fenomenológica humanista de Mounier na expressão da cultura como um alargamento de consciência que tem influência no fluxo da mente na constituição de sentidos Nesta dinâmica constitutiva cultural demonstrase uma base na estrutura do universo pessoal a intencionalidade que é ato e estrutura da consciência pelo qual esta cessa de ser uma interioridade fechada nela mesma para se abrir aos objetos do mundo visados DEPRAZ 2008 p 118 Ou seja o que fundamenta a estrutura do universo pessoal é a abertura de si aos objetos do mundo Configurase em uma estrutura que se faz base de outra estrutura Assim a intencionalidade percolase entremeando toda a estrutura do universo pessoal e se mostra na comunicação na eminente dignidade transcendência na conversão íntima na liberdade em condição no afrontamento e no compromisso por meio da existência encarnada na correlação carneespírito ou dito de modo husserliano na consciênciamundo Logo o princípio da imprevisibilidade da pessoa reside na intencionalidade husserliana O homem encarnado em um espaçotempohistórico foi o ponto de partida para a compreensão de um novo humanismo de Mounier Nessa direção há em seu pensamento a compreensão da unidade da humanidade no espaço e no tempo no sentido de vínculos humanos e de finalidade como ser histórico Se cada homem não é senão o que a si próprio se faz então não há nem humanidade nem história nem comunidade MOUNIER 2004 p 55 Conforme Mounier 2007a a humanidade é um movimento integral de modo histórico na perspectiva da humanização Ocorre neste pensamento a ideia de projeto de humanidade como destinos coletivos donde não pode ser separado nenhum destino individual MOUNIER 2004 p 55 Aqui se põe o implicativo do caráter comunitário como projeto de humanização Se a pessoa existe quando se constitui um círculo de íntimos valores é no caráter comunitário que este círculo se instaura Então a comunidade atua como o elemento que assegura a passagem histórica situada em um espaçotempo para o contínuo humanismo de Mounier o qual não é definido completamente justamente por conter o princípio da imprevisibilidade da pessoa em movimento de cada vez mais humano o que 110 ocorre por ser ela uma comunidade de pessoas Logo o humanismo personalista de Mounier apresentase em movimento contínuo dialético de modo integral na direção do humanismo total encarnação vocação e comunhão que se mostra na busca da unidade comum a perfeição de universos pessoais a ser alcançada através de atos libertários A perfeição do universo pessoal encarnado É perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente MOUNIER 2004 p 41 Este combate se configura em atos que se direcionam à dignidade humana A morte prematura de Mounier não o permitiu completar sua obra Andreola 1985 remetese a Ricouer para falar do diálogo interditado de Mounier pela sua morte pois o sentido de sua obra literária estava em curso Nesse sentido Costa MOUNIER 2004 no prefácio da obra O personalismo de Mounier publicada na língua portuguesa faz a seguinte observação Mounier deixounos o material onde podemos recolher dados para essa imensa tarefa de conferir ao personalismo as bases doutrinárias sem dúvida necessitantes mas que o seu tempo porque mais diretamente o obrigou a outros compromissos lhe não permitiu fazer Cremos que num sentido mais vasto é possível englobar sob esse ponto de vista toda a sua obra e dela tomar ponto de partida inesgotável e fecundo para as mais válidas meditações Porque a sua filosofia nunca foi um ponto de chegada mas um ponto de partida MOUNIER 2004 p 11 A filosofia de Mounier como ponto de partida nos convida ao aprofundamento e a direcionarnos a pensar juntamente com ele os meios as formas e os projetos de humanização do homem real É nesse sentido que o filósofo descreve sobre o destino do personalismo que é o movimento de acordar nos homens o sentido total do homem que se configura em um olhar cotidiano Esse olhar é a abertura do homem para o mundo de modo personalista que se realiza cotidianamente Um acordo entre os homens implica uma compreensão profunda fundamentada social política e economicamente no sentido total do homem o fazerse pessoa em comunidade de pessoas 111 CAPÍTULO 4 O Humanismo do Personalismo de Mounier e Suas Contribuições Para a Formação O humanismo personalista de Mounier 2004 p 48 abarca a compreensão de um projeto de libertação do homem em um contínuo renovamento em contínua conversão e criação de modo emancipatório Este projeto de libertação é mediado pelas relações interpessoais que enfrentam os vários obstáculos em uma provocação recíproca uma mútua fecundação e em um moverse histórico comunitário MOUNIER 2004 p 49 O humanismo personalista do autor apresenta uma perspectiva de uma nova civilização a qual tem a pessoa como centro de todas as ações econômicas políticas e sociais praticadas em comunidade de pessoas Sobre a civilização personalista Mounier 1992 p 625 tradução nossa afirma Uma civilização personalista é uma civilização cujas estruturas e cujo espírito se orientam para a realização como pessoa de cada um dos indivíduos que a compõem As comunidades naturais são reconhecidas em suas realidades e em suas finalidades próprias diferentes das simples somas de interesses individuais e superiores a interesses de indivíduo considerado materialmente superior No entanto tem como fim último de cada pessoa ser capaz de viver como pessoa é dizer de ter acesso ao máximo de iniciativa de responsabilidade de vida espiritual Severino 1994 esclarece que essa nova civilização tem como marca a humanização a humanização não é um atributo intrínseco que qualifica os homens só pelo fato de eles pertencerem à espécie humana É antes de tudo uma construção histórica SEVERINO 1994 p 101 Diante disso afirma que o ser humano só é plenamente humano se puder usufruir de todos os elementos das mediações objetivas e subjetivas de sua existência Desse modo para se compreender a humanização do homem é necessário perpassar a tríade do volume total do homem desenvolvimento pleno do homem encarnação vocação e comunhão caracterizada pela estrutura do universo pessoal em processo histórico Nessa perspectiva se dá o que Mounier 1990 p 586 tradução nossa chamou de uma resposta metafísica a um chamamento metafísico pois para ele uma civilização é antes de tudo uma resposta metafísica a um chamamento metafísico a metafísica se mostra no chamado resposta como uma evocação para que o homem se eleve a si mesmo em direção àquilo que está acima de si evocação esta que se configura no ser pessoal comprometido com o seu 112 processo de humanização em comunidade Não se pode compreender a formação humanizadora personalista dessa nova civilização sem a relação chamadarespostametafísica que se evidencia no engajamento Essa relação se mostra no compromisso pessoal dado o entendimento de que o homem só é homem pelo compromisso Mounier 1990 p 218 tradução nossa compromisso com um elevarse axiológico em comunidade de modo encarnado vocacionado e em comunhão com o fim de uma vida mais justa e ética Compromisso diante do qual o personalismo testemunha uma convergência de vontade e se põe a seu serviço MOUNIER 1992 p 583 tradução nossa em ações empenhadas na humanização do homem Assim é através dos problemas no engajamento assumido no terreno que este campo de estrutura personalista suscitará soluções humanizantes COQ 2012 p 21 Eis o personalismo politicamente situado Ele requer um movimento de se refazer a arte de pensar e de se fazer um modo pedagógico que vá ao encontro do real na busca de soluções eticamente mais humanas Desse modo o humanismo personalista tem como lugar de partida o homem concreto a pessoa encarnada e dialeticamente o chamado à interioridade e à exterioridade por meio da vocação que se desdobra na comunhão na aprendizagem do nós mediada pelo Tu Assim afirmase a humanização do homem compreendendose que o espiritual é ao mesmo tempo carnal conforme Mounier 2004 Na busca de se refazer a arte de pensar a formação humanizadora personalista observaramse três princípios formativos interligados no pensamento de Mounier Dois deles são o Realismo Espiritual pensamentolinguagemcompromisso e a Formação e Cultura que se interligam evocando o terceiro o AfrontamentoEngajamento 41 Realismo espiritual pensamentolinguagemcompromisso Há na filosofia de Mounier um conceito de pensamento vinculado à linguagem e ao compromisso que devem ser compreendidos dentro da estrutura do universo pessoal como categorias de humanização O pensamento é compreendido por Mounier 2003b a partir do realismo espiritual transcendência humana e divina e está em contraposição ao materialismo e ao espiritualismo Assim o autor esclarece a relação pensamentomatéria realidade espiritual da seguinte maneira Se estivéssemos atentos sentiríamos que os homens não são nossos únicos semelhantes Além deles e da matéria conhecemos um terceiro elo da sociedade todavia mais íntimos que é o que nos liga à realidade espiritual É um domínio que 113 se transformou o governo de nós mesmos um companheiro após os méritos de uma longa familiaridade MOUNIER 2003b p 3940 tradução nossa Nesse processo o conhecimento se dá na relação eu objeto e realidade espiritual por meio do terceiro elo que são os valores espirituais Na expressão se estivéssemos atentos o autor chama a atenção ao que acompanha o ser humano na relação social o governo de nós mesmos um companheiro após os méritos de uma longa familiaridade MOUNIER 2003b p 40 tradução nossa Para o autor os valores estão tão próximos e são tão familiares que se tornam imperceptíveis O conhecer aqui não é neutro há um permear valorativo intencional Assim para explicar como se configurou historicamente a compreensão da construção do pensamento a partir do realismo espiritual Mounier 2003b p 40 tradução nossa respondeu à seguinte pergunta O movimento está em nós ele completou fora de nós A discussão posta pelo autor consiste em uma crítica aos planejamentos e metas que se propõem ao conhecimento Nesse sentido o objeto é para o movimento de conhecer o próprio medo projetado o desejo de conforto O pensamento é para si o seu próprio objeto ele encontra nada termina os seus limites provisórios é pura imanência MOUNIER 2003b p 40 tradução nossa O autor critica a dificuldade de se sair de si mesmo como se pode notar Quando a inteligência em seus próprios esforços é incapaz de perceber a revelação de outro do que em si podese perguntar se a culpa não é mais geral se não devemos buscar primeiro o porquê dessa incapacidade de sair de casa em uma ignorância mais radical da presença e do amor do mundo dos homens MOUNIER 2003b p 40 tradução nossa Sobre a questão se a culpa não é mais geral ele interpõe afirmando que a salvação vem de cima ou seja é necessário ensinar o homem a sair de si mesmo para o que está para além dele mesmo como uma esperança que está progredindo verticalmente Nessa dinâmica a primeira preocupação do personalismo é descentrálo para colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa MOUNIER 2004 p 45 No primeiro momento da saída de si mesmo ocorrem resistência e hostilidade ao que o espírito revela ser em presença suave Numa primeira fase a consciência pessoal afirma se assumindo o meio natural MOUNIER 2004 p 37 Nesse momento se dá o que Mounier chamou de o encontro ou seja a percepção da presença real de ser e de seres o face a face Ocorre a percepção de que conhecer é um trabalho a dois nunca solitário Aqui há um ofertar do mundo de modo transcendente àquele que o percebe 114 O segundo momento do ato de conhecer é o elevar espiritual Nele ocorre um distanciamento em espaço porém uma unificação na mente a qual vivendo uma recusa à atividade imaginativa percebe nesta distância a presença do real É o que Mounier 2003b chamou de corpo universal Ele mantém a realidade das pessoas na realidade da comunhão universal que consiste na rede da metafísica da presença compreendida como força ascensional temporal e contínua que é unificante de modo relacional em transcendência axiológica é uma rede de contato que gera a característica de um inteiro de um todo humanizante Ela comporta os valores comuns como destino da humanidade que é o que nos liga à realidade espiritual MOUNIER 2003b p 41 tradução nossa O termo rede da metafísica da presença pertence à compreensão da metafísica da pessoa no personalismo de Mounier A presença pertence à pessoa em força ascensional como valor absoluto em unificação do universal no mundo pessoal e em permanência aberta A metafísica da pessoa que é pessoal e comunitária se configura em uma rede de elementos conectados pertencentes à estrutura pessoal existência incorporada comunicação conversão íntima afrontamento liberdade em condição eminente dignidade e compromisso que a compõe de modo unificador em totalidade de volume comprimento largura e profundidade que constituem a corporificação da encarnação da vocação e da comunhão A rede da metafísica da presença é a realidade espiritual que se corporifica na produção cultural como corpo universal a rede de contato Sobre a cultura Severino 1994 p 81 esclarece que os homens vão construindo sistemas simbólicos que expressam uma segunda realidade um segundo mundo uma segunda natureza formadas por representações simbólicas Assim o elevarse espiritual como segundo momento do conhecer é para o personalismo quando se dá a produção cultural como atividade subjetiva Tratase da capacidade de atribuição de uma dupla dimensão às coisas de um lado servindose da conceituação para dar às coisas um significado tentado dizer o que elas são em sua própria realidade de outro servindose da valoração para atribuir às coisas uma qualificação relacionada com a satisfação de interesses humanos SEVERINO 1994 p 81 A primeira dimensão subjetiva é o conhecimento É a capacidade de o ser humano encontrar e atribuir significado aos elementos que caem em seu campo de experiência mediante a utilização de conceitos SEVERINO 1994 p 8182 Desse modo o conhecimento se processa como uma articulação de nexos entre esses elementos que satisfaz 115 uma certa exigência do sujeito que corresponde a uma certa organização dos dados da experiência humana SEVERINO 1994 p 82 A segunda dimensão subjetiva é a própria experiência valorativa dos seres humanos em que os nexos estabelecidos buscam responder antes a necessidades de satisfação dos interesses vitais existenciais dos sujeitos que assim atribuem a esses elementos um coeficiente de valor SEVERINO 1994 p 82 Aqui estão as marcas da imanência pois o conhecimento não é algo que existe isolado do exercício vivo e integral da experiência humana Para Mounier 2003b a rede da metafísica da presença é possibilitada pela própria natureza humana em sua capacidade de instituir vínculos interpessoais que permitem a universalidade humana e a comunidade de destino na História SEVERINO 1974 p 139 Neste elevarse espiritual a percepção da presença exige profundidade no processo de conhecer Assim esclarece Mounier 2003b p 41 tradução nossa A percepção do que eu chamo a presença do real de ser e de seres essa presença é o mistério mais comovente da vida como destino da humanidade e a humanidade com ele jogar em torno de sua restauração ou a sua rejeição definitiva Este é o mais preciso dos nossos bens espirituais Ao perceberse no mundo a presença do real de ser e de seres cabe ao homem a decisão de restaurar ou não a si mesmo e ao mundo ou seja a decisão de personalizarse ou não Ao perceber o homem na sua totalidade encarnação vocação e comunhão é acionado a responder Sobre a ação no sentido da resposta Severino 1974 p 141 afirma A ação humana é duplamente engajada uma situação condicionante carregada de determinismo e numa esfera de valores significantes Se de um lado a situação engendra obstáculos impõe limites e tece alienações de outro os valores exigem a responsabilidade total Naturalmente a pessoa é livre ela é capaz de assumir estes valores e agir responsavelmente em função deles mesmo quando a leitura da situação seja difícil ou dramática Os valores permeiam a percepção e são eles os elementos que irão propiciar a não alienação No momento de percepção do real pode ocorrer a tomada de consciência que implica uma parada ativa Para Mounier 1993 p 286 tradução nossa esta parada não é um fim em si mesmo mas é condicionada a uma ação que mostra qualidade A tomada de consciência para o autor pode ser descrita como um ato de consciência exigente pois solicita do sujeito que ele reúna toda a sua força para bloquear pendências vitais no sentido da quebra do fluxo da impessoalidade e que examine com rapidez uma 116 situação completa triunfe sobre as múltiplas resistências forme um juízo que tome uma decisão e comece a executála Para ele a tomada de consciência é um combate Assim se dá a exterioridade do ser em ato condicionada a uma reflexão à interioridade que faz a ação mais perfeita em qualidade na presença do amor do mundo dos homens MOUNIER 2003b p 40 Mounier 1993 p 286 tradução nossa compreende a consciência como uma conduta entre outras e não uma fosforescência espontânea de toda conduta psíquica Para ele a consciência busca aventura perpetuamente como um sentido para a sua própria atividade A sua tomada de decisão é tomada de posse de um valor apenas apreendido ele aumenta seus ultimatos A consciência que capta é capturada por sua vez nas necessidades da eleição é cativa à sua captura MOUNIER 1993 p 287 tradução nossa Este é o drama do movimento mesmo da própria vida psicológica que consiste em disputas entre os sentimentos e as ideias Nestas condições se compreende que só tomamos consciência de um pequeno número de coisas e em realidade cada um de nós tem seus costumes e suas maneiras de tomar consciência MOUNIER 1993 p 287 tradução nossa Nesse sentido o processo de conhecer com o fim de tomar consciência apresenta a necessidade do ser de se situar espacialmente e de ser vinculado à comunidade O conhecimento na perspectiva do realismo espiritual parte de um ser em uma realidade local situada em comunidade É o sentido do eu no Tu ambos constituídos pelo nós e perpassados pelo processo de conhecer Não há um conhecer personalista isolado desterrado mas comunicado em comunidade o conhecimento pertencente a um ser encarnado e dotado das implicações da existência incorporada e da liberdade em condição bem como do próprio ser vocacionado pois o ato da consciência exigente requer o sentido da eminente dignidade e do compromisso Porém cabe ressaltar a preocupação de Mounier 2004 p 50 com um grave mal entendido Muitas vezes abusamos da mística do próximo como da mística do pequeno Para o autor a preocupação não deve ser do pequeno mas sim com o seu maior ou menor potencial comunitário MOUNIER 2004 p 52 O que se põe nesta discussão de Mounier é a crítica que ele faz ao gigantismo que leva a pensar o homem em massa e a negálo como pessoa Pode ser difícil alcançar a humanidade por sobre grandes massas e sem dúvidas devemos elaborar as mais vivas experiências nas sociedades mais pequenas MOUNIER 2004 p 51 Diante das diferentes feições das quais se devem tomar consciência Mounier 1993 demonstra as implicações da consciência cancerosa sonolenta reflexiva soberana e criadora 117 na tomada de decisão A consciência cancerosa é entorpecida pela própria capacidade que tem de se ocupar com o seu funcionamento Ela empenhase em processos da própria consciência em romper com a função mesma desta consciência É uma desculpa para desertar da vida exterior A introspecção substitui a ação em lugar de esclarecêla o sono substitui a realidade em lugar de transfigurála A política se perde no discurso o espírito público em opiniões a espiritualidade em efusão o pensamento em prolegómenos a energia em caprichos MOUNIER 1993 p 287 tradução nossa o pensamento se perde em explicações introdutórias preliminares A parada aqui inaugura o ato da consciência como um pretexto para se fugir da ação e a vida interior serve de desculpa para a vida exterior A consciência sonolenta se toma a si mesma e às coisas tal como são É o ser humano da indiferença que não se envolve passa ao lado das coisas sem ouvir suas poesias e ao lado dos homens sem ouvir seu chamado MOUNIER 1993 p 289 tradução nossa A esta disposição se juntam uma carência de vitalidade orgânica e uma inércia de impulso espiritual Para que ocorra o despertar desta consciência é necessária uma verdadeira conversão da consciência sonolenta para a consciência reflexiva ou seja tornase necessária a conversão íntima Sendo a consciência reflexiva fruto de uma verdadeira conversão íntima nela há a implicação do recolhimento que promove a libertação da prisão das coisas e ocorre o chamado silencioso para o despertar da pessoa em vocação A consciência soberana diz respeito à consciência que ao sentir a corrente da vida toma tal prazer e não quer reconhecer o que está mais além e nem a finalidade da existência Passa a ter atitudes de adolescente no respirar no amar perpetuamente e é expansão do frescor de dias felizes sem se perguntar pelas origens pelos fundamentos os fins dos problemas MOUNIER 1993 p 290 tradução nossa e por vezes chega à inumanidade A consciência criadora é impulso espiritual É o arrancarse tanto do sonho do automatismo como da fascinação do presente ou do esvaziamento da consciência sonhadora Para Mounier 1993 p 288 a consciência criadora é ação e domínio e o esforço faz a ação mais alta e o domínio mais eficaz Ao contrário a consciência cancerosa é retrocesso ante a ação Assim o autor esclarece que a consciência criadora é um processo de compromisso a consciência cancerosa é um procedimento de evasão A consciência criadora é um processo de verdade e clareza a consciência cancerosa é um aparato de engano tradução nossa Nesta discussão Mounier afirma que é possível que haja no fundo de toda consciência como um mal secreto um poder destruidor de si e do mundo mas esse mal da consciência não é para ele a sua essência É nesse sentido que ele evoca o compromisso com um contínuo fazerse tendo em vista que não se poderia portanto requerer a plenitude da 118 consciência se não se requerer a plenitude do compromisso pois a consciência atuante é suscetível de uma abertura mais ou menos grande sobre o campo da experiência MOUNIER 1993 p 288 tradução nossa É na existência encarnada que se dá a ação do chamamento a um contínuo restaurarse nomundocomooutro ou seja ao acabamento do ser que é a vida pessoal MOUNIER 2004 p 37 Este acabamento configurase em uma dialética também contínua que abre o campo da experiência incluso na cultura A igualdade da abertura da consciência pode variar em ressonância e em profundidade por ser ela própria implicada pela mirada pela intencionalidade e pela reflexão Assim Mounier 2003b p 29 tradução nossa responde que o movimento está em nós ele se completa fora de nós O em nós e o fora de nós na relação da construção do conhecimento chamam à necessidade do recolhimento uma vez que o que se põe em discussão é a personalização ou a despersonalização ou seja a humanização ou a desumanização do homem O ato da tomada de consciência a parada ativa perpassa o despertar da pessoa A garantia do despertar a pessoa é o movimento de saída de si mesma na direção da presença do real de ser e de seres Assim é preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade em compromisso do elevarse espiritual na ascensão dos valores MOUNIER 2004 p 66 Este movimento caracteriza o realismo espiritual e para alcançálo é imprescindível ir ao mais profundo por meio do recolhimento Pela experiência interior a pessoa surgenos como uma presença voltada para o mundo e para as outras pessoas sem limites misturadas com elas numa perspectiva de universalidade MOUNIER 2004 p 45 46 Esse é o sentido da comunhão perpassado pelo afrontamento e pela comunicação No recolhimento há uma linguagem interior em que o eu fala consigo mesmo mediado pelo objeto exterior e internalizado nele por meio da experiência que é a dialética interioridadeobjetividade MOUNIER 2004 p 65 Desse modo a pessoa é ela própria diálogo na tensão entre liberdade e engajamento MOIX 1968 p 35 que consiste em ir ao objeto sair de si mesmo na garantia de si e em um movimento de voltarse mediante o objeto se perguntando como posso me comprometer com o mais humano Ou seja como posso ascender à realidade espiritual Aqui se mostra uma metafísica da linguagem pessoal como chamamento e resposta na relação interioridade exterioridade e transcendência A ética da inteligência como método de acesso ao espiritual se apresenta em um duplo compromisso para com a fidelidade para com o eu e para com o real visto que o dever do compromisso se desdobra no que diz respeito às realidades a que uma pessoa está consagrada um dever de fidelidade com MOUNIER 1992 p 380 tradução nossa Esta 119 ética se põe como elemento constitutivo no recolhimento pois é na perspectiva do potencial de personalização em que se põe a relação eu objeto e conhecimento e há um engendrar pessoal e um conhecimento do real que se dão de modo implicado e que configuram o euno mundocomooutro no vir a ser mais humano uma vez que o fundamento de toda exigência ética é a dignidade da pessoa humana SEVERINO 1994 p 141 E é nesse sentido o da dignidade humana que Severino 1994 p 142 afirma que a ética só pode ser estabelecida através de um processo permanente de decifração do sentido da existência humana tal qual ela vai se desdobrando no tecido social e no tempo histórico de modo pessoal A tomada de consciência como ato exigente desencadeia uma série de outros atos originais pertencentes ao universo pessoal As formas de linguagens interior e exterior se direcionam à autocriação e à criação comunitária As linguagens interior e exterior se tornam atos exigentes na comunicação que são os atos originais já discorridos anteriormente sair de nós próprios compreender tomar sobre nós mesmos a responsabilidade dar ser fiel O não falado também expressa uma linguagem de respeito da pessoa por si mesma pelo seu infinito interior Nunca pode comunicar completamente através da comunicação direta e prefere por vezes meios indiretos ironia humor paradoxo mito símbolo fábula etc MOUNIER 2004 p 59 Desse modo o conhecimento está em uma perspectiva relacional axiológica do eu com o outro do eu com o objeto no mundo no sentido restaurador e criador O ter consciência do mundo é estar com ele sendo eu próprio e me comprometendo com o destino humano O meu mundo com o mundo dos outros não é um jardim de delícias É permanente provocação à luta à adaptação incitanos a ir mais além MOUNIER 2004 p 43 e perpassa o afrontar e o comprometerse no contínuo humanizarse com o outro No processo de conhecer a partir do realismo espiritual Mounier 1992 aborda o acontecimento ou o evento real que nos seres humanos provoca uma série de sentimentos e ações Os acontecimentos segunda sociedade detrás da sociedade dos homens oponentes mais fortes as nossas mudanças ao primeiro entusiasmo em ser MOUNIER 1992 p 203 tradução nossa O acontecimento é a revelação de todo elemento estranho seja ele oriundo da natureza ou do próprio homem que promove um encontro do universo exterior com o universo pessoal Existem acontecimentos que conduzem o homem a lugares para os quais ele não sabe ir Isso é o não planejado o não esperado que provoca no homem um ato de repensar a existência um impulso a transfigurar algo como o não saber aonde ir em um entrecruzamento de caminhos A revelação do universo aqui também termina em doação 120 MOUNIER 1992 p 205 tradução nossa O universo se dá a conhecer ao universo pessoal promovendo mudanças no ser que conhece O acontecimento pede um repensar que impele à busca de solucionálo de modo humanizante Desse modo o concreto para Mounier é a presença frente a frente ao alcance das mãos ou dos olhos ou do silêncio ou do pudor que ainda é envolta com o ser em um universo de presença O concreto ao ser acolhido pelo eu que o conhece o sedia tornando sua própria presença mais real A vida que sedia exerce um esforço de renúncia e ao se renunciar doase sentido logo conhecer para Mounier é se posicionar frente a frente ao objeto em abertura acolhedora de doação de sentido pessoal em um espaçotemporal O acontecimento como evento concreto promove a renúncia do eu que busca significado que busca compreendêlo e compreender a si mesmo em seu percurso de vida com os outros Severino 1974 p 63 esclarece o que é o acontecimento O encontro do homem com o real não é apenas uma pura representação mas a formação desta imagem aparentemente decalcada do real na imanência da sua consciência é fruto de uma coextensividade da pessoa inteira lutando afrontando o real que resiste No acontecimento se dá o encontro que promove o afrontar que permeia a relação de conhecer pois resiste ao real Ocorre então uma luta no processo de conhecer que se mostra em dialética contínua encontro afrontar interiorizar significar e exteriorizar em movimento de rupturas o que ocorre em razão dos vínculos pessoais para com o tempo o espaço e a história O conhecer a partir do realismo espiritual diz respeito ao elevarse da horizontalidade do ser humano um elevarse a partir das condições de encarnação que caracteriza união com o mundo espiritual Este elevarse espiritual consiste em uma rede de distância que entra em acordo e em desacordo de seres que compartilham da realidade da comunhão universal O encurtamento de distâncias se mostra na comunhão universal Existe portanto a unidade a uma distância e não há verdadeira distância que não seja espiritual Esta separação espiritual entre os seres através do qual o raio da luz do espírito em que todas as coisas são negociadas em vários modos é a dupla condição de solidão em que cada um se eleva verticalmente como uma árvore que cresce para cima de si mesma e a união sem confusão que une todos os participantes da mente em um corpo universal Talvez seja a nossa imagem central do mundo e nela poderíamos encontrar a análise e a conclusão É quando essas distâncias se distendem quando o espírito não pode atuar sobre elas e quando a matéria conduz desordenadamente a esse mundo desorganizado são elas quem mantêm a realidade das pessoas na realidade da comunhão universal Toda uma política e toda uma moral se condensam nesta metafísica MOUNIER 1992 p 201 tradução nossa 121 Aqui o autor discorre sobre a união com o mundo espiritual que pode ser caracterizada como realismo cultural visto que talvez seja nossa imagem central do mundo e nela poderíamos encontrar a análise e a conclusão MOUNIER 1992 p 201 tradução nossa É este crescer em união com todos os participantes em um corpo universal a partir do real Nesse sentido o realismo cultural se mostra como a manutenção da realidade das pessoas na realidade da comunhão universal Este manter se deve à metafísica da pessoa implicada política e moralmente em que se põe a humanização do homem ou a personalização pertence à esfera cultural que envolve o realismo que produz uma força ascensional O condensar na metafísica ou o manter a realidade não significa prisão é força ascensional em movimento combatente A experiência demonstra que não há valor que não nasça da luta desde a ordem política à justiça social desde o amor sexual à unidade humana MOUNIER 2004 p 90 A união com o mundo espiritual demonstra que existe uma aventura no coração dos homens e em seus pensamentos que transcende a cultura A união é a realidade inesgotável do espírito que se mostra axiologicamente e que requer um fazer pedagógico personalista para alcançála Este fazer pedagógico deve ser permeado pelos símbolos pelas criações de representação e de ideia pela linguagem na forma de se expressar pelos contatos pessoa pessoa e pessoamundo pelas vivências por meio das enquetes vivências de papéis pela espera do tempo de cada um em paciência pelo esclarecimento do sentido da união do mundo espiritual Logo este fazer pedagógico requer uma didática personalista a qual não pode perder de vista a tarefa de servir de mediação SEVERINO 1994 p 91 entre a pessoa e o acesso ao mundo espiritual Portanto esse acesso se dá a partir do acesso ao ser do homem através das atividades concretas de suas práticas reais mediadas didaticamente por três planos interligados pela natureza pelo outro e pela representação simbólica ou seja por meio dos signos elaborados no plano da subjetividade A didática personalista implica o eu na condição da solidão e o nós comunidade na união de todos os participantes em um corpo espiritual e na realidade da comunhão universal na perspectiva da transcendência espiritual Neste contexto o objetivo desta didática se dá pela mediação do processo de conscientização a fim de se gerar uma parada ativa que promova uma elevação dos valores pessoais Entretanto Severino 1974 p 115 chama a atenção ao perigo da mediação que pode alienar o homem por ser uma técnica embora esclareça que o perigo de toda mediação não é uma fatalidade Ela será aquilo que os homens dela fizerem 122 A presença da pessoa perante si mesma e perante o mundo só é percebida quando ela se doa ao mundo Esta é a presença real MOUNIER 1992 p 201 tradução nossa E este doar é um drama pois só o tem aquele que se perde Perderse ou doarse é o crescer verticalmente em valores espirituais Para Mounier 2003b existem muitas escalas de valores espirituais e estes se condensam política e moralmente na esfera humana mais alta que é o senso de profundidade ou melhor o sentido do mistério O mistério é tão comum e universal como a poesia em cada luz em cada gesto Isso não é trivial é reconhecêlo O mistério é a simplicidade é a profundidade do universo MOUNIER 2003b p 31 tradução nossa O mistério diz respeito ao conhecimento da presença e reconhecimento do amor do mundo e dos homens na unidade em condição de solidão do elevarse espiritual que une a mente em um corpo universal e que se mostra no compromisso de cada pessoa com a humanização do homem É no corpo universal que se mostra que o esforço no sentido da verdade e da justiça é um esforço coletivo MOUNIER 2003b p 55 tradução nossa A revelação do mistério diz respeito à tomada de consciência que responde ao chamado do despertar pessoa ou seja uma resposta metafísica a um chamamento metafísico 411 Formação e cultura 4111 Formação A formação personalista caracterizase pela formação da pessoa no homem e do homem nas exigências individuais e coletivas do universo pessoal MOUNIER 2004 p 133 É importante ressaltar que Mounier compreende a formação não como o processo de dar forma no sentido de forma em si mas no de se criar condições meios e situações para o despertar da pessoa uma vez que esta pertence à esfera do espiritual e que sua formação perpassa seu despertar Desse modo é a partir do realismo espiritual que se promove o despertar da pessoa Este é o sentido humanizante da comunidade Uma civilização personalista para Mounier 1992 é uma civilização cujas estruturas e espírito se orientam para a realização como pessoa de cada um dos indivíduos que a compõem Esta comunidade tem como fim último propor a cada pessoa ser capaz de viver como uma pessoa isso quer dizer poder acessar ao máximo de iniciativa responsabilidade e de vida espiritual MOUNIER 1992 p 625 tradução nossa Aqui se põe o condensar metafísico política e moralmente na defesa da pessoa O poder acessar ao máximo consiste em 123 um modo de vida que possibilita uma forma de subsistência e de independência em seu ser MOUNIER 1992 p 625 Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por uma forma de subsistência e de independência em seu ser mantém esta subsistência com a sua adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos em um compromisso responsável e em uma constante conversão unifica assim toda a sua atividade na liberdade e desenvolvimento além disso um impulso de atos criativos a singularidade da sua vocação MOUNIER 1992 p 625 tradução e grifo nossos Cabe à comunidade garantir as possibilidades de a pessoa acessar ao máximo a forma de subsistência as particularidades para a sobrevivência a estabilidade e a permanência da preservação de sua vida bem como a construção da sua própria independência A ação da comunidade é uma ação éticopolítica que visa a esta garantia A comunidade para Mounier 1992 2004 abarca a família grupos comunitários sindicatos associações clubes instituições de ensino e instituições governamentais Observase que em Mounier há uma pedagogia formativa do cuidado quanto ao despertar da pessoa que se deve justamente ao fato de que tal despertar se inicia no nascimento Garantir a subsistência estabilidade permanência da preservação da vida e independência para com o fim de despertar a pessoa demonstra o conceito mouneiriano do cuidado que é justamente o potencial da experiência primitiva da pessoa do eu no Tu na experiência da segunda pessoa no nós ou seja na pessoa em comunidade Desse modo há o sentido do vertical no horizontal de modo humanizador envolvendo ações éticopolíticas permanentes na garantia do processo de despertar pessoas Mounier 1992 entende que o cuidar é responsabilidade de todos e que parte do particular para o geral ou seja da família passando pela comunidade até ao Estado ou do geral para o particular Na realidade é um circulo de correspondência de responsabilidades A constituição da pessoa em comunidade se dá pela adesão a uma hierarquia de valores livremente adotados assimilados e vividos em um compromisso responsável e em uma constante conversão MOUNIER 1992 p 625 tradução nossa A comunidade é um espaço vivo de experiências importantíssimas para a pessoa pois as outras pessoas não a limitam promovemna ao crescimento Tanto o existir como o conhecer e o encontrar se dão mediante o outro Desde que o homem é presente todos são por ele contaminados Agem até pela qualidade da sua presença MOUNIER 2004 p 105 Outro elemento importante no processo civilizatório proposto por Mounier 1992 2004 é a perspectiva do acabamento da vida pessoal O eu no pensamento personalista é 124 um ser a ser construído a se autoconstruir continuamente O eu aqui é a pessoa Esta autoconstrução se dá mediante a afirmação pessoal movida pela dialética da existência incorporada na interiorizaçãoexteriorização Os processos que possibilitam a afirmação do eu são abordados por Mounier na estrutura do universo pessoal onde se destaca porém a implicação do sentido do chamamento para a libertação da humanidade Este sentido só é possível mediante o euTunomundo que se desdobra na valorização do eu como ser absoluto A valoração que se desenvolve no ato de compreensão da existência do Tu endereçado ao mundo como restaurador do eu assegura um campo semântico constitutivo do nós Imbricados o eu e o nós de modo a responder a um chamamento em ação libertadora o eu se afirma reconhecendose no espaçotemporal que é a sua situação de encarnação e é movido pela transcendência a superarse a si mesmo e à natureza Desse modo o homem real ou o eu real é assegurado pelo reconhecimento da sua real situação de encarnação Em uma sociedade capitalista em que profundas batalhas são travadas por aqueles que buscam instaurar processos humanizantes o reconhecer a situação da encarnação se torna a primeira porta a ser aberta para a afirmação do eu Um horizonte de esperança se abre tendo em vista uma luta constante envolta em um otimismo trágico Aqui há um sair de si em esperança e um voltar em recolhimento ao infinito interior MOUNIER 2004 p 59 Os momentos de recolhimento são constitutivos do ser pessoal pois por ser a pessoa espiritual ela pertence à esfera de uma vida de interioridade O recolhimento libertanos desta prisão das coisas MOUNIER 2004 p 65 Sem ele a pessoa se degrada na objetivação nas solicitações exteriores No entanto tudo que é demasiado se perde Assim no recolhimento pode ocorrer demasiada atenção a nós próprios mesmo que seja espiritual instala o egocentrismo como um cancro em terreno próprio MOUNIER 2004 p 65 O recolhimento é um movimento em equilíbrio da vida de interioridade e exterioridade na constituição da vida pessoal Por ser a pessoa um ser que se questiona Mounier 1992 esclarece que as perguntas se instalam no eu constituindo os processos de escolhas que se implicam no recolhimento e se apresentam como afirmação pessoal Notase como o autor discorre sobre o eu na relação eu sou e sobre suas próprias perguntas Uma interrogação está instalada em mim um manancial inesgotável de perguntas se eu profiro concentrado porém em uma declaração profunda eu sou Assim pois um existente é um homem que choca com o mistério mas choca por assim dizer em seu próprio interior talvez seja melhor dizer que o envolve O inexistente é um 125 homem que não se incomoda com perguntas MOUNIER 1990 p 100 tradução nossa O eu existente é um eu que se incomoda O sentido do compromisso consigo diante do incômodo das situações de desumanização o leva a mergulhar no mistério da vida pessoal na busca do seu acabamento se fazendo então pessoa em ação Desse modo o recolhimento recupera o próprio ser no fluxo de vida o recolhimento quer também que eu recupere meu ser no fluxo da vida MOUNIER 1990 p 102 tradução nossa Entretanto o recolhimento não é um apaziguar do eu O sentido posto para o eu no recolhimento é de libertação de recuperar meu ser na direção da humanização em comunidade de pessoas A perfeição do universo pessoal É a perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente em esperança MOUNIER 2004 p 41 Para Mounier apud Cousso 1969 p 86 a esperança é um componente essencial do estatuto ontológico do homem Segundo ele o ser autêntico do fracasso não é o ser empírico pois nele há limite na ação Mas a forma como é assumida e transfigurada a ação o modo de enfrentamento das situações e dos acontecimentos é que promove o acabamento do ser pessoal Não há acidente não há facticidade Tudo me pode servir de ocasião ou mais corretamente tudo pode ser uma oportunidade MOUNIER 1990 p 170 tradução nossa para a transcendência ao mais humano à personalização Não se pode pensar o acabamento do ser pessoal sem a esperança pois nele se espera uma ação transformadora um movimento do eu situado encarnado e vocacionado no sentido de vir a ser mais em comunidade de pessoas É no acabamento do ser pessoal que se dá a acessão da pessoa criadora em movimento histórico no mundo em conversão em um contínuo afrontar e mediante o diálogo Este acabamento pode se perder na despersonalização ou se conquistar e se construir em personalização Assim se põe a necessidade da comunicação do diálogo O diálogo é outro importante elemento formativo presente no pensamento personalista de Mounier 2004 Dialogar é ação em pronúncia do eu no Tu constitutiva do nós Foi o que Mounier chamou de fato primitivo É um processo combatente ao individualismo burguês Uma vez que é abertura para o outro é saída de si é compreender é assumir é dar é ser fiel a si e ao outro em continuidade pois quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros MOUNIER 2004 p 46 Desse modo a presença do outro ou seja a aceitação de outrem como um outro diferente de mim mesmo é o fato primitivo da comunicação MOIX 1968 p 207 É no diálogo que se permite uma dialética das relações pessoais que aumenta e confirma o ser de cada um de nós MOUNIER 2004 p 48 No diálogo se 126 possibilita humanizar personalizar Se há ausência dele ocorre a coisificação do ser pessoal um enrijecimento do humano uma estratificação das relações a objetificação do ser Já a compreensão de educação escolar em Mounier 2004 p 111 perpassa a ação cultural no sentido formativo das experiências vivas em comunidade e ainda para ele a educação personalista deve ser conduzida para uma cultura da ação O âmago desta proposta formativa o despertar da pessoa está na cultura A ela devese o vínculo axiológico no processo histórico de desenvolvimento de comunidades de pessoas É o modo de engajamento na defesa da pessoa humana como valor absoluto em transcendência ao mais humano A educação personalista é apresentada pelo autor a partir de princípios norteadores tendo como base binomial a liberdade e o compromisso O primeiro princípio dela parte da compreensão de que a educação não visa moldar dar forma conforme um ambiente social ou uma doutrina do Estado nem atribuir função a ser preenchida ou papel social A educação personalista visa fomentar o surgimento da pessoa Para o autor a educação não olha essencialmente para o cidadão nem o profissional nem a pessoa social Não tem como função diretora fazer cidadãos informados bons patriotas ou pequenos fascistas comunistas ou pequenos mundanos MOUNIER 1992 p 653 tradução nossa O centro de toda ação educativa personalista é o despertar da pessoa capaz de viver e comprometerse como tal no uso de sua liberdade e responsabilidade sendo estes processos desenvolvidos de forma gradual Desse modo Mounier 2004 p 133 esclarece a seguinte pergunta qual é o fim da educação Este não consiste em fazer mas sim em despertar pessoas Por definições uma pessoa suscitase por apelos não se fabrica domesticando A educação não pode ter como fim moldar a criança ao conformismo de um meio familiar social ou estadual nem se restringirá adaptála à função ou a papel que lhe caberá desempenhar quando adulto A transcendência da pessoa implica que a pessoa não pertença a mais ninguém senão ela própria a criança é sujeito não é RES societatis nem RES familiae nem Res ecclesiae A transcendência parte da pessoa que promove uma autogarantia Este é um mover um fluir único de cada um Não há como pertencer a outro Mas ao mesmo tempo a criança o adolescente o jovem e o adulto não são sujeitos isolados Eles estão inseridos em uma comunidade tendo todas as implicações deste contexto sendo formados nele e por ele O segundo princípio afirma que a atividade da pessoa é liberdade e conversão para a unidade de propósito e fé Segundo o autor uma educação baseada na pessoa não pode 127 ser totalitária material ou seja extrínseca e obrigatória pois há necessidade do espaço para a pessoa exercer a liberdade e a conversão MOUNIER 2003a p 71 tradução nossa Nesse sentido não pode haver uma educação neutra pois o espírito que conhece não é espelho neutro já que envolve concepções e atitudes diante da vida MOUNIER 2004 p 93 A educação personalista tratase de uma educação que se interessa pelo homem como um todo em uma perspectiva ética Para o personalismo nenhuma ação educativa pode justificar ou ocultar a exploração do homem pelo homem a prevalência do conformismo social ou razões de Estado a desigualdade moral e cívica das raças ou das classes a superioridade na vida privada ou pública de falsidade sobre a verdade instinto de amor em altruísmo MOUNIER 2003a p 7273 tradução nossa Sendo o fim último da educação personalista o compromisso de uma pessoa os meios não podem ser usados para a preparação para a técnica para o civismo dos cidadãos para o acúmulo de ensino e para salvar uma aparência de cultura Segundo o autor é preciso uma conversão É preciso alimentar o drama da liberdade MOUNIER 2004 p 95 Desse modo a educação é um processo tensional entre a liberdade e o compromisso em uma pessoa que se entrelaçam ligando todos os envolvidos nesse processo vivencial contínuo de formação As pessoas são tensionadas em suas liberdades pelo compromisso formativo do despertar O encontro aqui propiciado pela ação cultural alimenta o drama da liberdade e da conversão em compromisso Nesta dinâmica educar é tensão entre dois polos o político e o profético que se mostram na ação cultural em compromissos Podese afirmar que para Mounier a teoria da ação do professor envolve quatro dimensões da ação já tratadas anteriormente o fazer poiein que consiste em dominar a matéria exterior aqui envolvendo o domínio dos conteúdos relacionados à ação do ensinar é o domínio da ciência aplicada aos assuntos humanos o agir prassein ação como obra de construção interior a formação daquele que executa MOUNIER 2004 p 104 Esta tem como fim a ação ética na dimensão da autenticidade buscada tanto pelo professor como pelo educando em que a ética é entendida como uma revolução no ponto de vista dos seus resultados e o agir do professor é comprometido com eles ação teorein diz respeito à ação do homem inteiro ou seja do professor por inteiro que aspira a um reino de valores que abranja e desenvolva toda a atividade humana pertence à ação profética que assegura a ligação entre o contemplativo e o prático ético econômico como a ação política entre o ético e o econômico MOUNIER 2004 p 106107 Bem como por fim a dimensão coletiva da ação que 128 envolve toda a estrutura educacional como comunidade de trabalho de destino ou de comunhão espiritual em que se põe a teoria do compromisso da educação perpassada pelos polos políticos e proféticos Na perspectiva da dimensão coletiva da ação não é suficiente a solidariedade entre a teoria e a prática no fazer pedagógico do professor Importa traçar uma total geografia da ação para sabermos tudo que deve ser unido e como deve MOUNIER 2004 p 108 Isso quer dizer que uma total geografia implica uma compreensão das reais condições humanas em sua comunidade para a partir delas se tecerem ações integrando politicamente todos os elementos na direção do despertar da pessoa É nesta dinâmica que se aciona a estrutura do universo pessoal em direção ao realismo espiritual O trabalho do professor é caracterizado por Mounier como uma didática implicada pelo ato de se traçar uma total geografia da ação que articule os campos do pedagógico e os campos da teoria envolvendo princípios finalidades condições meios conteúdos e métodos SEVERINO 1994 p 91 É nesse sentido que para Mounier 1992 a ação política na defesa da pessoa ocorre sem autoritarismo e com distinções dos verdadeiros valores e das mais íntimas familiaridades humanas Assim a ação política instaura a ação profética na ação cultural pois há testemunhos de homens e de vidas vividas A tensão no processo educativo não se separa do drama coletivo das impurezas das ambições e imperfeições das causas É nesta dinâmica que a força criadora nasce como resposta à fidelidade aos valores criados no sentido de que uma ação não mutilada é sempre dialética MOUNIER 2004 p 111 A cada movimento não mutilado na teoria da ação compreendemse como tentativas no sentido de mediações e rupturas as tentativas de se chegar a ações mais humanas Mounier critica a educação dos seus dias diante da não ruptura a não decisão Para ele a educação que hoje em dia é distribuída prepara o pior possível para uma cultura da ação MOUNIER 2004 p 111 Para o autor há toda uma cultura a se modificar por via do veio tensional na direção da liberdade e do compromisso com uma cultura da ação E justifica A universidade distribui uma ciência formalista que conduz ao dogmatismo ideológico ou por reação à ironia estéril Os educadores espirituais conduzem na maior parte dos casos a formação moral para o escrúpulo ou para o caso de consciência em vez de a encaminharem para o culto da decisão É todo um clima a modificar se não quisermos ver mais os nossos intelectuais a dar o exemplo da cegueira e os mais conscientes da covardia MOUNIER 2004 p 111 129 Assim se põe o sentido único de cada um o acabamento pessoal tensionado pela liberdade e pelo compromisso o qual não pode ser utilizado para esse ou aquele fim uma vez que o homem só atingirá plenamente os pontos aonde inteiro chegar MOUNIER 2004 p 6465 Como se chega inteiro Promovendo a tomada de decisão o desenvolvimento da vocação e a comunhão em liberdade comprometida Desse modo a educação compreendida por Mounier não é algo instantâneo mas um caminho longo Nela não há a brutalidade do poder e nem a pressão mas há a possibilidade da formação da unidade de um mundo de pessoas O autor adverte o totalitarismo é a impaciência dos poderosos MOUNIER 2004 p 65 No terceiro princípio a criança deve ser educada como pessoa pelas formas de julgamento pessoal MOUNIER 2003a 74 e compromisso pessoal de aprendizagem livre Mas se a educação é um aprendizado da liberdade é precisamente porque não encontra a forma desde o seu começo MOUNIER 1992 p 657 tradução nossa Aqui há a influência gradual do adulto sobre a criança A autoridade nasce das relações primeiramente as familiares depois as comunitárias Entretanto retomase novamente a ideia do acabamento do ser pessoal que o autor trata como o compromisso pessoal da aprendizagem livre na sua autocriação Nesse princípio a busca primeira é pelo bemestar da criança e posteriormente pelo bem comum da cidade Há um sentido social imbricado no ser pessoal a pessoa se faz corresponsável em comunidade Mounier criticou a educação que sufoca ou extirpa a luta de força e deixou claro que extirpar toda a agressividade da educação afogar muito cedo a força viril em sonhos idealistas é arrancar um combatente aos seus ideais fabricar muito sossegadamente um eunuco MOUNIER 2004 p 71 Portanto a aprendizagem da liberdade implica lutas pois a pessoa é resistência é afrontamento em liberdade Nessa direção há um comprometimento da liberdade perpassada pela ação comunicativa Aprender a liberdade implica pronunciar eu de modo relacional Ser é amar Mas é também afirmarse MOUNIER 2004 p 71 Dizer eu requer uma organização uma técnica uma metodologia que afirme a pessoa em sua vocação fundamental a qual é fazer escolhas e ser responsável por elas em comunidade Desse modo há ação cultural da escolha implicada na constituição do eu Se não vejamos o ato pelo qual me afirmo exprimindome Este ato aparentemente tão simples é resultado de uma complexa cultura e de um frágil equilíbrio só muito lentamente a criança chega até ele endurece pelo egocentrismo delira no reivindicador e no orgulho esboroase em certas catástrofes psicológicas É produto do meu equilíbrio biológico e sexual tanto como da maneira como reajo ao meio em que vivo E do 130 juízo moral que na intimidade da minha consciência faço de mim próprio A pessoa por muito rica que possa ser destróise quando ele se destrói Exatamente agir é escolher por conseguinte cortar saber acabar a tempo e ao mesmo tempo que adotar recusar e repelir MOUNIER 2004 p 72 grifo nosso No exprimirse ato resultante do encontro se dá a saída de si em direção ao outro e a si mesmo o que possibilita experiências Assim o grau de maior ou menor personalização está na relação entre cultura equilíbrio do eu e vivência das escolhas Sendo a primeira composta pela esfera das significações e criações dos valores as escolhas se constituem em atos enquanto paradas ativas e ações valoradamente eleitas Nesta dinâmica está a luta do surgimento da pessoa já que há uma liberdade que afronta em compromisso responsável e em uma constante conversão a qual unifica as atividades da pessoa na liberdade tornandoa impulso de atos criativos e singular à vocação Assim Peixoto 2009 compreende a educação como mecanismo de garantia das manifestações e desenvolvimento da dimensão pessoal implicada na aprendizagem contínua da liberdade A educação por ser uma ação cultural se torna compromisso de todos os envolvidos não só na escola A responsabilidade é coparticipativa no despertar pessoa tornandose necessárias articulações políticas entre comunidade Estado e Nação em direção à dignidade da pessoa Mounier 1992 defende a educação pluralista por ser ela ação cultural dadas as existências de diversidades das famílias e comunidades espirituais A perspectiva pluralista remete à questão da discussão curricular na educação personalista Logo se pergunta Qual o currículo necessário à educação humanizadora personalista Mounier 1992 apresenta que nos anos iniciais fazse necessário um currículo que forme para aprender a viver vivência de escolhas e compromisso pessoal Este currículo diz respeito a uma compreensão de pessoa encarnada a partir da qual todas as ações educativas devem ter a dignidade da pessoa como valor fundante e constituinte Observese nenhuma escola pode justificar ou ocultar a exploração do homem pelo homem a prevalência do conformismo social ou a razão do Estado a desigualdade moral e civil das raças ou das classes a superioridade da vida privada ou pública da falsidade sobre a verdade do instinto sobre o amor e o altruísmo MOUNIER 1992 p 655 tradução nossa Assim retomase a questão posta é um domínio que se transformou o governo de nós mesmos um companheiro após os méritos de uma longa familiaridade MOUNIER 2003b p 40 tradução nossa O valor da dignidade humana é princípio da educação personalista pluralista o qual deve ser o companheiro de e após uma longa caminhada É o 131 tornar comum de modo vivido o valor da dignidade no testemunho familiar da escola do educador de comunidades do Estado e da Nação E ao mesmo tempo solicitamse novos valores temporais a serem constituídos e implicados pela liberdade e o compromisso Assim no pluralismo há a diversidade de famílias espirituais tendo como valor comum a dignidade humana Logo educação personalista solicita do educador que esteja sempre em mudança se reinventando e reinventando sua prática pedagógica Isso decorre das complexidades da escola pluralista e da questão do tempohistória Esta postura se torna uma referência democrática do ensinar visto que os contextos específicos educacionais e culturais evocam do educador mudanças contínuas em direção ao processo formativo do outro A abertura de si do educador é na direção do outro e dos vários outros que consiste em uma abertura flexionada que por sua vez se desdobra em várias aberturas porém não se perdendo e sim se doando O humanismo personalista de Mounier tem como característica a estrutura do universo pessoal pois é a busca do volume total do homem que envolve encarnação vocação e comunhão A proposição curricular personalista tem como critério formativo esta estrutura nessa tríade É um equilíbrio de comprimento largura e profundidade a tensão em cada homem entre suas três dimensões espirituais MOUNIER 2003b p 50 tradução nossa Aqui a concepção de currículo escolar tem como princípio formativo a pessoa a ser despertada Se nas séries iniciais Mounier propõe o aprender a viver a partir da encarnação como elemento constitutivo do currículo nas demais séries ou fases escolares o foco da educação cabe à compreensão dos elementos formativos da vocação e da comunhão pertencentes à estrutura do universo pessoal Na encarnação se dá um voltarse para fora de si em experiências de vida de transformações psicológicobiológicosociais na vocação É um voltarse para si no sentido da compreensão do chamado à sua potencialidade humana e um direcionarse para fora de si na resposta ao chamado Na comunhão o sentido da comunidade se põe como elemento comum em uma perspectiva de desenvolvimento da pessoa em afrontamentos e em comunicação Não significa que estas três dimensões se encontrem como fases do currículo até mesmo porque Mounier compreende o desenvolvimento humano em uma contínua dialética Estas três dimensões devem ser entendidas portanto como princípios a partir do universo pessoal A educação personalista como ação cultural solicita mudanças Nela há um contínuo reinventar nos processos formativos do eu e do nós por ser implicada no tempoespaço história Esta postura se torna uma referência democrática para as ações formativas 132 4112 Cultura Mounier 1992 entende que a rede da metafísica da presença como força ascensional unificante em transcendência axiológica de modo relacional se corporifica na produção cultural como corpo universal Esta rede de contato é o próprio realismo espiritual Nesse sentido tornase importante esclarecer a compreensão de cultura para Mounier 1990 Para ele a cultura não é uma fábrica ou um setor da sociedade mas é uma função global da vida pessoal A cultura atua sobre a vida pessoal propiciando componentes que a alimentam juntamente com criação na vida pessoal O processo configurase como uma via de mão dupla Assim tudo é cultura para um ser que é e que é através do desenvolvimento Isso significa que não existe uma cultura a respeito da qual todas as outras seriam incultas mas que existem tantas outras culturas com diversidades de valores Segundo o autor fazse necessário esclarecer sobre civilização livresca no sentido do acúmulo é necessário lembrar contra nossa civilização livresca uma vez que a vida pessoal é liberdade e superação não acúmulo ou repetição A cultura não consiste em um terreno lotado de conhecimento mas de uma transformação profunda do sujeito que se dispõe para maiores possibilidades mediante as chamadas interiores a cultura é o que resta quando já não se sabe de nada é o próprio homem MOUNIER 1990 p 546 tradução nossa Assim resulta dizer que tudo que pertence à pessoa e à cultura se desperta não se fabrica e nem se impõe Entretanto para Mounier 2004 p 135 nem tudo que é da pessoa se desenvolve em uma liberdade pura e sem restrições e sendo a pessoa invenção mesmo quando consome imobilizase na ortodoxia sucumbe ao peso do decreto A cultura como processo de humanização segundo o autor não suporta domesticação ela é movimento de liberdade Sendo assim ela é ato criativo e em comunidade Logo se a comunidade é criativa a pessoa se faz viva mas se a comunidade é medíocre a pessoa murcha Entretanto na pessoa sempre vem o ato criativo independente do tipo de comunidade Assim o autor esclarece que É evidente que uma cultura a certo nível pode e deve ser dirigida ou seria melhor dizer ajudada Entretanto ela não suporta ser domesticada e no nível criador ela necessita estar sozinha mesmo nessa solidão o mundo é movimentado livremente É verdade que o apoio da comunidade é essencial para a criação se eles estão vivendo 133 a vida faz se medíocre o murchar Mas o ato criativo de uma pessoa sempre vem mesmo que perdida em meio à multidão MOUNIER 1990 p 546 grifo nosso Aqui se mostram as implicações da imanência e da transcendência no fazer cultura como pessoa em comunidade A pessoa é sempre singularidade não se permite ser nivelada a um aglomerado Ela é ato criativo e como tal é força libertadora Para Mounier 1990 as concepções coletivas de cultura tendem a limitar a cultura à convenção nos acordos apesar de o povo ser um grande recurso de renovação cultural Toda cultura é transcendência e superação MOUNIER 1990 p 546 tradução nossa É nesse sentido que se põe em processo histórico de humanização um projeto de libertação humana mediado pela cultura Esse processo para Mounier 2003a realizase na cultura como projeto de libertação humana que visa ao desenvolvimento humano de modo processual à ascensão do humanismo total que passa pelo alargamento da consciência e pela fluência do exercício da mente e se insere em uma espiritualidade a vida interior da pessoa Ocorre o libertarse mediante um processo dialético de saída de si e retorno à vida interior na busca da transcendência à ascensão dos valores espirituais no sentido de unidade da humanidade A atividade propriamente intelectual que nos joga no exterior em realidades unificadoras é um dos melhores caminhos para o reino do amor MOUNIER 1990 p 198 tradução nossa O que se contrapõe à provisória invasão da obsessão mecânica e utilitária MOUNIER 2004 p 137 tradução nossa da produção cultural Para o autor é na cultura que se deve propiciar ao ser humano um novo hábito de ser pessoa que a propicie a percepção dos problemas humanos do ponto de vista do bem da comunidade e que possibilite ao ser humano condições para se tornar mais humano Toda a cultura é transcendente a ultrapassar na direção da dignidade humana MOUNIER 2004 p 136 Pois é na cultura que se possibilita o tornarse mais humano em vida mais humana mediante a transcendência do ser pessoal MOUNIER 1992 p 619 tradução nossa Para Mounier 1992 quando a cultura se mostra como utilitária como um sistema ideológico realizações de técnicas com função econômica há um nivelamento do ser pessoal perdemse características individuais a criatividade fica dirigida traçada anteriormente e o ato criativo se perde pois só a pessoa conhece o caminho e o ritmo da sua ascese pessoal Entre esta realidade e o homem a única via de comunicação possível é a meditação pessoal Toda obra toda cultura que dirige seu impulso a um fim situado mais baixo que a realidade permanecerá sendo uma obra uma cultura menor MOUNIER 1992 p 679 tradução nossa 134 A cultura caracterizada como um novo hábito de ser é movimento de liberdade a liberdade é afirmação da pessoa vivese MOUNIER 2004 p 75 Este movimento vivo é pessoal e comunitário em escolhas a liberdade da pessoa cria à sua volta liberdade por uma como que leveza contagiosa tal como inversamente a alienação engendra a alienação MOUNIER 2004 p 79 E só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me rodeiam homens e mulheres forem igualmente livres MOUNIER 2004 p 78 Nessa nova forma de ser o sentido comunitário se mostra imperativo não se pode ser livre sozinho A cultura passa a ser o lugar dos movimentos libertários nos quais o ser se encontra situado em si próprio no mundo e perante valores eleitos MOUNIER 2004 p 79 A cultura se mostra como manifestação espontânea invocada MOUNIER 2004 p 81 E ela assim o é por ser força ascensional em transcendência ao mais humano em comunidade Para o autor a liberdade como característica de um novo modo de ser pertence à perfeição do universo pessoal encarnado Esta liberdade é perfeição combatente em compromisso A cultura se torna esse meio de instauração dos processos combatentes ao mais humano Assim a perfeição do universo pessoal encarnado não é pois a perfeição de uma ordem como pretendem todas as filosofias e todas as políticas que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo É perfeição de uma liberdade que combate e que combate duramente Por isso subsiste até mesmo nas suas derrotas MOUNIER 2004 p 41 A cultura realiza um papel de mediação na interiorização e na exteriorização do eu no sentido de personalização Isso implica transformações profundas da pessoa que as põe em resposta às chamadas interiores Desse modo a cultura passa a ter como característica a resistência a não alienação É um movimento a partir de dentro do interior MOUNIER 1992 p 676 de combate às formas de culturas burguesas do consumo do vazio interior do homem abstrato do combate ao monopólio do poder e do espírito capitalista à arte como fabricação de modelos e à indústria cultural Isso porque a indústria cultural vende Cultura Para vendêla deve seduzir e agradar o consumidor Para seduzilo e agradálo não pode chocálo provocálo fazêlo pensar fazêlo ter informações novas que o perturbem mas deve devolverlhe com nova aparência o que ele já sabe já viu já fez A média é o senso comum cristalizado que a indústria cultural devolve com cara de coisa nova CHAUI 2000 p 423 135 Logo as resistências são combates que se exteriorizam opondose à alienação do ser pessoal à cultura de morte Desse modo o fim último do personalismo é também dar a todo homem sem exceção o máximo que ele pode lidar com a verdadeira cultura Só estamos contra os meios exteriores e maciços que atuam no sentido inverso ao seu propósito MOUNIER 1992 p 681 tradução nossa Em Mounier 1992 há uma proposição de afirmação da cultura popular como caminho de uma nova cultura Para ele existe uma fração do povo que não está contagiada pela decadência burguesa que traz consigo a promessa de uma nova cultura Eles discernem modestamente as promessas e sem violência o que irá ajudálos a encontrarse seguindo seu próprio caminho MOUNIER 1992 p 682 tradução nossa Isso se dá porque nessa fração do povo há experiências vivas do verdadeiro saber que são recursos de cultura em busca do seu próprio caminho Observase que nesse povo há uma promessa de uma cultura nova que deve ser valorizada Nesse sentido esta cultura não deve evitar a exigência fundamental de toda cultura que é transmitir o melhor da sua herança cultural pois não há mais cultura que a metafísica e pessoal Metafísica porque está acima do homem da sensação de utilidade de prazer de função social Pessoal porque se trata de um enriquecimento interior do sujeito MOUNIER 1992 p 682 tradução nossa A cultura encontra assim um princípio de totalidade e de respeito às opiniões diversas das pessoas Assim fazse necessário o despertar cultural dos novos tempos que deve ser possibilitado mediante irradiações progressivas de um núcleo independente MOUNIER 1992 p 682 tradução nossa Nesta implicação do despertar cultural e do retorno à discussão sobre o povo não contagiado pela burguesia Mounier evoca o trabalho dos intelectuais personalistas no sentido de ir ao povo para colher nas experiências vivas os conhecimentos reais à procura de todas as fontes de cultura que busque cegamente seu caminho na imensa reserva popular MOUNIER 1992 p 682 tradução nossa Para o autor deve haver um compromisso ético dos intelectuais com o processo de humanização que se deve dar em afrontamento a toda forma de cultura que esvazia o ser pessoal que não alimenta o drama de ser mais que despersonaliza 412 Afrontamento 136 Como já referido anteriormente os dois princípios formativos Realismo Espiritual pensamentolinguagemcompromisso Formação e Cultura se interligam evocando um terceiro princípio o Afrontamento O afrontamento pertencente à estrutura do universo pessoal e constituído pelo e no volume total do homem encarnação vocação e comunhão deve ser compreendido como condição para a humanização como elemento formador do mais humano por implicar nele o ser pessoal em comunidade visto que a pessoa expõese exprimese faz face é rosto MOUNIER 2004 p 67 tradução nossa Aqui a existência do ser pessoal se mostra na ação de afrontar o que não age não é MOUNIER 2004 p 101 Há uma dialética que constitui a interioridade e a exterioridade da pessoa presente no pensaragir em afrontamento no sentido da transcendência ao mais humano Isso ocorre porque no afrontar se dá o singularizarse a pessoa é o que nunca se repete MOUNIER 2004 p 67 Na ação de singularizarse o ser se põe por inteiro em originalidade à resposta a um chamado a atingir o extraordinário no próprio centro da vida cotidiana MOUNIER 2004 p 68 O autor compreende que para que ocorram transformações em direção ao mais humano é necessário o afrontar diante das situações que desumanizam É nesse sentido que o afrontar diz respeito à vida cotidiana ao comum do dia a dia Humanizase e desumanizase diariamente O homem verdadeiramente fora do comum é o homem verdadeiramente comum MOUNIER 2004 p 68 Para Mounier no cotidiano se faz necessária uma ética personalista no afrontar e na correspondência que se deve dar também cotidianamente pois existem situações que se impõem como alienantes para o ser pessoal Nessa direção explica o autor a palavra grega mais próxima da noção de pessoa é prósopon aquele que olha de frente que afronta MOUNIER 2004 p 67 Afrontar é ser pessoa singularizarse Não há um esconderse um omitirse um anularse diante do mundo hostil mas sim um face a face um afrontar como mudanças no eu na busca de mudanças para o mais humano no eunós O autor esclarece que o existir é dizer sim é aceitar é aderir Mas se for aceitando sempre se não recusar deixome submergir existir pessoalmente é muitas vezes saber dizer não protestar MOUNIER 2004 p 68 Aqui o afrontar se mostra como protesto como ruptura O ato como parada ativa se mostra na saída de si em ruptura Rompese mediante ações reflexivas do eu diante de situações desumanas a pessoa é afirmada e é constituída pela ruptura diante da recusa Desse modo para que ocorram mudanças sociais econômicas e políticas em ascensão à dignidade da pessoa como valor absoluto ao mais humano tornase necessária a existência 137 do ser pessoal em ação de protesto em recusa em ruptura em reviravolta Já que a sociedade atual busca a contínua prevalência do capital sobre o humano o ser humano desse modo é coisidade é objeto é contínua alienação do ser pessoal A pessoa aquele que olha de frente que afronta no afrontamento sai de si em protesto mas também em apaziguamento em acolhimento de dádiva que são também constitutivas do nosso ser MOUNIER 2004 p 70 A pessoa é contínua tensão ela afronta e acolhe é luta empenha força e dádiva é vida espiritual é força afirmativa do eu em pronúncia de um mundo humano A força no afrontar é força de resistência em afirmação pessoal a pessoa toma consciência de si própria não no êxtase mas numa luta de força A força é um de seus principais atributos MONIER 2004 p 70 A luta de força se caracteriza no ser pessoal como luta de resistência de ataque de garantia de si em comunidade a força humana simultaneamente interior e eficaz espiritual e manifesta MOUNIER 2004 p 70 O afrontamento como condição de humanização se apresenta também como movimento em direção à maturidade pessoal Nele existem a parada ativa a tomada de decisão as escolhas a saída de si na direção da maturidade A pessoa opta por ser fiel mesmo quando há prejuízo para ela porque a pessoa é ato de amar ela opta por amar ser é amar Mas é também afirmarse MOUNIER 2004 p 71 O personalismo chama a atenção para a contínua luta do ser pessoal A pessoa é um arrancarse em combates aos seus ideais é um sacrificarse em edificações É a pessoa inteira a seu próprio futuro vincada concentrada em ato duro e rico que resume a sua experiência e lhe insere uma outra nova MOUNIER 2004 p 72 A luta contínua do ser pessoal em afrontamento possibilita outras novas experiências que são as ações não mutiladas as que provocam a dialética contínua do ser pessoal em transcendência na realização da sua vocação ao mais humano Sem o afrontar o ser pessoal se estagna provocando um pendular na estrutura pessoal É importante ressaltar que no afrontamento o irredutível é o elemento que assegura a existência do ser pessoal Este é o momento em que a dialética da recusa e a da aceitação cessa o movimento O afrontar aqui é o assegurar os direitos inalienáveis da pessoa Quando a sua integridade é ameaçada quando em situações degradantes de existência o irredutível é resistência à opressão É a vida que está em jogo e este jogo se joga tendo como parceiros a comunidade e o Estado Para o personalismo se acontecer a perda nesse jogo o prejuízo é do humano no homem é da vida Tratase de uma luta contra um sistema desumano pronto a sacrificar vidas em prol do capital do lucro É nesta direção que o Estado é chamado à 138 responsabilidade Assim são necessárias políticas que protejam os direitos fundamentais do ser humano O Estado passa a ser o que assegura a vida a dignidade da vida humana como direito É preciso que os poderes definam e protejam os direitos fundamentais que garantam a existência pessoal MOUNIER 2004 p 73 Nesta discussão chamase a atenção para a relevância da proposição de humanização no personalismo de Mounier Aqui não há uma espera de um salvador político ou a crença no profético como espera de libertação No afrontar a pessoa é ação na defesa de si e do outro na seguridade do ser pessoal em comunidade Ela assume a sua própria libertação em comunidade na direção do mais humano que é a personalização O afrontamento desdobrase dentro da estrutura do universo pessoal em ações políticas no engajamento É nesse sentido que o autor fala da necessidade de se restituir o sentido da pessoa responsável em comunidade Frente a tanta demissão é urgente restituir o sentido da pessoa responsável e do imenso poder que esta detém quando confia em si própria MOUNIER 2004 p 102 O afrontamento é correlacionado ao compromisso e este se mostra como poder mas não é poder de autoexaltação e dominação É o contrário contendo o sentido por conta da sua defesa da causa do mais humano Nesse sentido esclarece Lacroix 1969 p 33 A pessoa é capacidade de afrontar coisas e homens Na base do ser há a oposição e a luta O diálogo é um esforço de sublimação mas não os destrói É um sempre arriscar o seu ser mas para afirmálo não para perdêlo é sair de si para tornarse o outro sem cessar de ser si mesmo O afrontamento implica esperança de se transformar uns aos outros uns através dos outros Aqui observase que a estrutura do universo pessoal imbricada como um inteiro e interligada ao sentido do compromisso pessoal no afrontar mostra o acabamento do ser pessoal em comunidade situada que evoca ações comunitárias Desse modo observase uma das grandes contribuições de Mounier 2004 à sociedade atual no sentido formativo o afrontar em compromisso de modo engajado da pessoa em pequenas comunidades comunidades de destino ao mais humano Nesse modo de afrontar assim como no realismo espiritual a característica do pequeno contribui para o ser mais Ações em pequenas comunidades carregam as implicações políticas de uma geografia das condições humanas da encarnação O real é compreendido no seu todo Portanto a ação é vinculada ao próximo é endereçada a uma situação em que o ser ainda se mostra menos como Mounier 1992 já esclareceu Isso não quer dizer que se trate da mística do pequeno mas da implicação do menor ou do maior potencial da ação para com 139 o homem concreto o homem real e em real situação de desumanidade com o fim de humanização Que exigiremos pois da ação Que modifique a realidade exterior que nos forme que nos aproxime dos homens que enriqueça o nosso universo de valores MOUNIER 2004 p 103 O afrontar parte do eu que se aciona em exteriorização engajada é o sair de si em afrontamento na ação e em formação para a aproximação entre os homens e para o elevar espiritual em acessão dos valores Retomase a cultura novamente vinculada ao formativo e à estrutura do universo pessoal Mounier 1992 chama à necessidade de se criar uma cultura da ação partindo da compreensão do afrontar como modo do ser pessoal cotidianamente engajado A pessoa se incomoda com a desigualdade com a desumanização com a alienação do homem e com a sua situação concreta Situação esta fruto de uma sociedade capitalista e de uma indústria cultural A pessoa não é indiferente à dor à miséria e à angústia do outro por ser ela eunós implicada no Tu É o doar no sentido do não se perder Foi o que Mounier 1992 denominou na sua própria vida de batismo do fogo O próximo que Mounier conheceu estava em um bairro operário de Genoble França em situação subhumana O afrontar fruto do movimento de acabamento pessoal permeado pelo Tu em direção ao nós possibilita a sensibilidade para com o outro que se mostra em ações tendo como finalidade o mais humano Para Mounier o afrontar de modo engajado pertence às esferas da ação denominadas política e profética implicado no espaçotempohistória É nessa dinâmica que se aciona a estrutura do universo pessoal em encarnação vocação e comunhão para o movimento em direção à elevação dos valores essencialmente humanos já que o destino comum da humanidade é efetivamente para um conjunto de pessoas um dos mais altos valores MOUNIER 2004 p 98 Afrontar em Mounier 2004 é um moverse por inteiro em ações personalizantes É pensamentoação de totalidade humana em direção ao mais humano 140 CONCLUSÃO Notase no pensamento de Mounier que o movimento de recolocar o homem como centralidade das preocupações do fazer humano se inicia com a sua própria história de vida na expressão do seu engajamento diante da crise social econômica e política de seus dias em favor da dignidade humana Este engajamento se deu pela sua rejeição aos modos do fazer o humano de seu tempo homem abstrato artificial desumano e envolto à mística do individualismo e à mística do coletivismo Assim empenhouse em um novo pensaração sobre este fazer humano projeto de civilização o personalismo Desse modo o autor propôs um retorno ao homem concreto o homem real e a partir deste homem influenciado pelo cristianismo pela fenomenologiaexistencial e pelo marxismo elaborou uma nova compreensão de humanização Nela a pessoa é apreendida como centralidade axiológica de todo pensamentoação Mounier elaborou um modo antropocêntrico do fazer humano implicado pela tríade euTunós e assegurado pela estrutura do universo pessoal por ser a pessoa volume total do homem a encarnação a vocação e a comunhão o desenvolvimento pleno do homem o humanismo total As contribuições levantadas nesta pesquisa partem da compreensão personalista deste novo fazer humano que se dá a partir do realismo espiritual caracterizado pela e presente na rede da metafísica da presença que se mostra na ação cultural do despertar da pessoa em comunidade de pessoas de modo histórico temporal situado éticopolítico e em permanência aberta contém o princípio da imprevisibilidade Isto se dá por ser a personalização do homem uma contínua dialética axiológica que ocorre mediante a exteriorizaçãointeriorização e tem como finalidade o acabamento do ser pessoal o autoconstruir continuamente Este movimento dialético ocorre em enfrentamento do homem real consigo mesmo e com o mundo mediado pelos acontecimentos pela facticidade pela temporalidade e pelas contingências em resposta ao chamado à personalização em comunidade de pessoas ou seja em movimento de humanização do homem Este movimento de enfrentamento ao encontro com o próprio homem concreto na direção da transcendência ao mais humano é antes de mais nada na intenção explícita de Mounier uma ética ou seja um apelo às consciências para que assumam seu destino com a exigida responsabilidade SEVERINO 1974 p 149 Desse modo a proposta de Mounier de refazer a Renascença nos coloca como participativos ao chamadoresposta para o despertar a humanidade do homem concreto em 141 afrontamentoengajamento e em ações que se mostram formativas tendo como princípio a valoração da dignidade humana a pessoa como valor maior Mounier 2003b compreende que se faz necessário ensinar o homem a sair de si mesmo para o que está para além de si É na perspectiva da superação do medo que se tem uma formação implicada no ato de amar como certeza do cogito existencial irrefutável amo logo o ser é e a vida vale a pena ser vivida Esse amor é de uma extrema lucidez pois o amor é cego mas de uma cegueira extralúcida MOUNIER 2004 p 49 É nessa e para essa extrema lucidez que se põe o trabalho formativo na perspectiva da saída de si mesmo Aqui se põe o compromisso em ação formativa da comunidade de pessoas no refazer a Renascença o ato de se ensinar a amar em afrontamento e engajamento amando a sua pessoa humana e a comunidade de pessoas na busca do mais humano Assim se dá o libertar o autêntico do inautêntico o permanente do caduco Aqui se encontra com o espírito do personalista MOUNIER 2004 p 137 No refazer a Renascença há um chamado a uma obra coletiva envolvendo a pessoa pequenas comunidades Estado e Nações em ações políticas econômicas e sociais uma vez que importa traçar uma tal geografia da ação para sabermos tudo que deve ser unido e como deve ser MOUNIER 2004 p 108 Para este refazer há a necessidade de um movimento integral em ações antropocêntricas na direção do desenvolvimento contínuo da autoelevação humana É no realismo cultural que se mostra a efetividade da ação formativa das dimensões axiológicas do novo humanismo Mounier demonstra em seu pensamento a cultura como elemento essencial ao processo de humanização ele a caracteriza como novo hábito de ser justamente por ser movimento de liberdade a expressão do próprio homem MOUNIER 1990 p 546 em ato criativo A cultura como força ascensional em transcendência ao ser mais humano é ação em e de comunidade é resistência às formas alienantes da indústria cultural e da cultura burguesa Para o autor é na cultura que se realiza o projeto de libertação como possibilidade do formativo do mais humano e nela se mostra o princípio da imprevisibilidade da pessoa presente na estrutura do universo pessoal que gera a possibilidade de resistência a qualquer forma de dominação e a possibilidade do sempre novo A centralidade do despertar a pessoa no pensamento personalista de Mounier traz implicações para a compreensão do processo formativo no sentido do acabamento da vida pessoal em ações éticas e educativas Segundo o autor para este despertar é necessária outra forma de educação de escola de currículo e de relação professor e educando pois o que se busca é o pleno desenvolvimento do ser humano em ascensão valorativa O papel da educação 142 no refazer a Renascença é de igual modo o da cultura a educação é ação cultural Ela tem por função acionar a força antropocêntrica axiológica ascensional por meio de tensões a fim de equilibrar a estrutura humanizante em liberdade e compromisso da pessoa Este modo antropocêntrico o despertar a pessoa humaniza o homem e este ao humanizarse humaniza o mundo e as relações inclusive as de produção a produção não tem valor senão quando visa o seu mais alto fim a instauração de um mundo de pessoa MOUNIER 2004 p 39 A existência encarnada humana contagia tudo pela qualidade da sua presença visto que a pessoa é densidade humana ela é volume total em largura comprimento e profundidade A extensão dessa densidade em ação é marcada pela transcendência em qualidade de vida mediante o compromisso como resposta ao chamado à libertação humana que é a personalização do homem Na compreensão mouneiriana da chamada à libertação humana a partir da tríade eu Tunós como palavra princípio é gerada a açãodialogal como movimento de desperta pessoa em comunidade de pessoas É a resposta ao chamado Absoluto a ser mais como valor absoluto a pessoa Assim na palavra princípio o afrontamento que se realiza no face a face se desdobra no afrontamento com Já não se está só no afrontar no singularizarse no fazerse face mas constituise comunidade de afrontamento o campo semântico do nós se efetiva em ações direcionadas à libertação Desse modo a partir do humanismo cristão a comunidade de afrontamento pode ser entendida por meio da afirmação do apóstolo João sobre a presença de Jesus desde o início da criação Verbo estava com Deus Segundo Champlin 1985 p 264 algumas traduções desta passagem trazem a expressão da seguinte forma Verbo estava face a face com Deus Para o mesmo autor a compreensão que se gera aqui é que há comunhão no face a face um com o outro e não somente o caráter distinto da pessoa Deus pai e da pessoa Deus filho A palavra grega pros aqui traduzida com assume o sentido de estar ao lado perto em um plano de igualdade O Logos que é o Verbo é apresentado no Evangelho de João como força criadora como força que mantém e como pessoa A resposta ao chamado em ato de afrontar a partir da palavra princípio passa a se configurar o caráter da comunhão em ação de libertação O verboforçaação está com configurase o fazerse face com na busca da instauração de um mundo mais humano O Logos chama à vida em afrontamento com assim o afrontamento passa a ser ação comunitária em favor do mais humano o engajamento Ocorre um singularizarse em comunhão na libertação o que se dá pelo fato de a pessoa constituirse no pros e no com o outro 143 É a esta comunidade de afrontamento pessoa e comunidade de pessoas que Mounier evoca na instauração do refazer a Renascença a revolução personalista e comunitária Resta uma saída e só uma afrontar inventar investir a única que desde as origens da vida pode sempre triunfar sobre as crises MOUNIER 2004 p 118 Para o autor a palavra revolução não pode ser aceita como mito da revolução tábuarasa e explica por quê Uma revolução é sempre uma crise mórbida e não fornece soluções automáticas Revolucionário quer dizer simplesmente mas rigorosamente que a desordem deste século é demasiado profunda e demasiado obstinada para se eliminar sem uma mudança de velocidade uma reorganização de estruturas uma profunda revisão de valores uma renovação das elites Admitido isto não podemos utilizar pior a palavra do que tornandoa em um conformismo em um slogan ou em um substituto do pensamento MOUNIER 2004 p 120 grifo nosso Para Mounier a desordem é profunda e as soluções não podem ser automáticas Há necessidade de mudança de velocidade na vida de interioridade no recolhimento Tratase de uma reorganização de estrutura a estrutura do universo pessoal uma profunda revisão de valores no que diz respeito à rede da metafísica da presença da pessoa por meio do realismo espiritual Concerne a uma renovação das elites em retorno à cultura popular na busca de experiências vivas do verdadeiro saber Nessa direção afrontar inventar e investir requerem pensamentoação para que ocorra um retorno ao homem concreto em ascensão do valor da pessoa humana como centralidade de toda a ação Entretanto se faz necessária uma parada ativa uma tomada de decisão a conversão à vocação em ato de despertar a pessoa em comunhão na busca do desenvolvimento pleno do homem o volume total do homem Assim o sentido da história pessoal fazerse mais humano no tempoespaço se faz um sentido comunitário que é o sentido de justiça como finalidade da humanidade Isso quer dizer uma resposta metafísica a um chamamento metafísico de modo que o destino de todos não exclua nenhum dos seres humanos Um século posterior ao de Mounier a sua crítica da desordem espiritual provocado pelo capitalismo MOIX 1968 p 64 e aos governos totalitários continua atual bem como suas contribuições para a formação pois o homem contemporâneo tem se mostrado mais abstrato individualista e massificado e o sistema capitalista mais devastador da humanidade do homem Mounier deixounos um legado a ser realizado já iniciado por ele o refazer a Renascença Isso para que um dia já não seja preciso atrair as atenções sobre aquilo que devia ser a própria banalidade do homem MOUNIER 2004 p 139 o pleno desenvolvimento da vida pessoal em contínua elevação axiológica 144 REFERÊNCIAS ALVES Gilberto Luiz O liberalismo e a produção da escola pública In LOMBARDI José Caudinei SANFELICE José Luiz Org Liberalismo e educação São Paulo Histedbr 2007 ANDREOLA Balduíno Antonio Emmanuel Mounier et Paulo Freire une pedagogia de la pesronne et de la communaute 1985 505 f Tese Doutorado LouvainlaNeuve 1985 Dimensões pedagógicas do personalismo de Mounier Revista Filosófica Brasileira Emmanuel Mounier Rio de Janeiro v 1 dez 1990 BEAUFRET Jean Introdução às filosofias da existência São Paulo Duas Cidades 1976 BUBER Martin Eu e tu Introdução e tradução de Newton Aquiles Von Zuben São Paulo Centauro 2004 BURGOS Juan Manuel É possível definir o personalismo 2012 Disponível em http Personalismomounierianoblogspotcombr201202epossiveldefiniro personalismohtml Acesso em 12 abr 2014 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tendência que navega por uma Ideologia do Individualismo Palavraschave pessoa personalismo sociedade filosofia Claudemiro Godoy do Nascimento A PRÁXIS FILOSÓFICA NO PENSAMENTO DE EMMANUEL N ão poderíamos deixar de lembrar e refletir acerca do pensamento de Emmanuel Mounier numa data em que se comemorou o centenário de nascimento desse filósofo da práxis e do engajamento Bem sabemos que a realidade mundial vive tempos de incertezas neste início do século XXI Mounier com seu pensamento filosófico pode ajudar na construção e na reflexão da tão sonhada sociedade diferente A lógica do capital está lançada no mundo como único modelo que determina as condições materiais de existência para o ser humano Com isso percebemos o grande desvio axiológico do homem pósmoderno se é que podemos falar de pós MOUNIER EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 118 modernidade Poderseia dizer que a existência humana está ameaçada por valores que estão a serviço do mercado do consumo do lucro e da acumu lação do capital especulativo Isto torna a sociedade voltada para si distante de sua concepção primeira e vocação por excelência que é a de voltarse para o todo A sociedade vem perdendo sua vocação de abertura ao diálogo Uma sociedade não dialógica FREIRE 1987 1996 tornase uma sociedade estática O homem em sua dimensão mais antropos possível vive sendo formado e condicionado pelos princípios que regem esta sociedade do con sumo que o torna um ser estático imutável dualista denso a cair nos extre mismos de uma época apologética e fundamentalista Mounier vem chamar a atenção de nossos tempos Quando Mounier aborda a necessidade de se ter uma revolução personalista e comunitária é no sentido de refazer a humanidade refazer a civilização como paradigma necessário que proponha novas alternativas ao ser humano que tem diante de si um único modelo a saber o capitalista Por isso devese passar da propriedade privada e capitalista para uma noção de propriedade humana A essência do cristianismo vem abordar exatamente esta dimensão O cristão deve ser a pessoa que se transforma em oposição aos modelos centralizados no paradigma todopoderoso a saber o capitalismo Mounier não apóia explicitamente o marxismo pois percebe seus limites sem negar que o capitalismo exclui a pessoa humana de participar do mundo ficando renegada aos porões da desumanidade Mounier é o homemfilósofo do engajamento Com certeza é um filósofo que assumiu a condição de pessoa preocupada com os rumos da humanidade e como cristão é indiscutível sua contribuição para a realização do Concílio Vaticano II 19621965 que teve como meta principal refazer a caminhada da Igreja para que estivesse presente no mundo e com o mundo ajudando as pessoas a serem mais humanas O HOMEM DO ENGAJAMENTO MOUNIER E SEU TEMPO Seu tema preferido tornouse a pessoa no seu valor transcendente isto é na sua relação com Deus Emmanuel Mounier nasceu em Grenoble sudes te da França no dia 1o de abril de 1905 Em 1927 terminou o curso de licen ciatura em Filosofia em sua cidade natal com o professor Jacques Chevalier Em Paris no ano de 1928 preparase para a agregação em Filosofia sendo recebido em 2o Lugar Foi professor de Filosofia no liceu de SaintOmer norte da França Enquanto lecionava tentava definir um tema para sua tese de doutorado em Filosofia sobre questões de personalidade e mística FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 119 Em 1930 desiludido com a estrutura da Sorbonne abandona a car reira do magistério redescobre Péguy filósofo francês cristão e planeja com alguns amigos lançar uma revista que se abra aos problemas colocados ao homem dos anos 30 pela civilização nascente e aqui iniciaramse os pri meiros contatos com os círculos de Jacques Maritain e de N Berdiaeff Mounier poderia ser chamado por muitos de apenas mais um pensador cristão que tenta renovar a Igreja em declínio mas prefiro aqui colocálo como o cristão o filósofo o educador o homem de ação e contemplação o polemista e principalmente um homem voltado para a ação política Deixou sua carreira acadêmica por um ideal maior fundando em 1932 a revista Esprit em Paris chegando a se opor à idéia academicista e carreirista existente em sua época Sua obra célebre O Personalismo destacase pelas circunstân cias na qual foi escrita num período de pósguerra e apenas três meses antes de sua morte repentina Em seu pensamento não há doutrinas MOUNIER 1978 pois se existissem estariam repletas de sistematizações Entretanto Mounier nos apresenta uma filosofia nova filosofia da pessoa em relação ao outro ou seja do espírito na forma pessoal que lhe é conatural e necessária Contudo a pessoa não está encerrada em si mesma mas ligada através da consciência a um mundo de pessoas que são os outros e a comunidade Sua filosofia não admite sistemas prontos e acabados dan do sentido ao conceito de liberdade humana outrora esquecida até mesmo pela filosofia Em 1935 Mounier casase com Paulette Leclercq instalandose em Bruxelas a fim de poder ministrar cursos no liceu francês No mês de março de 1938 nasce Françoise sua primeira filha que aos sete meses de idade foi atacada por uma encefalite vacinal Em setembro de 1939 Mounier como simples soldado fica confinado na região de Grenoble Com isso a doença de Françoise revelase incurável e em julho de 1940 Mounier desmobilizado instalase em Lião com a família Um ano depois a revista Esprit é suspensa pela censura Em janeiro de 1942 Mounier é posto na prisão em Vals e entra numa greve de fome Em outubro do mesmo ano é julgado em Lião e liber tado somente em 1943 A revista Esprit reaparece somente em dezembro de 1944 A revista edita de 1945 a 1950 vários números especiais e grandes estudos sobre os desafios daquele momento Em 1950 no dia 22 de março Emmanuel Mounier morre de enfarto às três horas da manhã ABBAGNANO 1984 Evidentemente na filosofia elaborada por Mounier há um conjunto de idéias coordenadas em seu ato de formular o pensamento São idéias sem corpos rigidamente formados e preestabelecidos pois é a partir do homem FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 120 em si que se constrói a pessoa com sua personalidade possibilitando assim que se possa interpretar seu pensamento como uma dimensão de testemu nho e mensagem que irão dar a cada um conforme sua realidade o sentido da existência pessoal Por isso mesmo Mounier entregase totalmente à defesa da pessoa humana Tornase o homem de seu tempo estabelecendo um diálogo franco com o mundo que o cerca Sendo o filósofo da ação fi losófica não hesitou em sacrificála ou seja usandoa para despertar no outro uma atitude cristã e crítica em relação ao mundo Poderia dizer que Mounier em toda a sua vida busca despertar no homem uma consciência filosófica que está em falta nos nossos dias MOUNIER 1978 Destacase o compromisso do homem Mounier que implica ação polí tica no resgate da pessoa humana Empenhandose nisso formulou seu pensa mento teórico baseado no personalismo que parte de um pressuposto existencial que o explica Precipitado seria se o considerasse apenas como o filósofo ou o homem da práxis mas antes de tudo Mounier é o homem do engajamento Aquele que está engajado está aberto para caminhar até o fundo da ação vincu lando sua prática a uma meditação encarnada concreta pelo testemunho da vida Ricoeur no Prefácio a O Personalismo de Mounier afirma que a filosofia personalista de Mounier poder ser analisada como um ponto de partida A sua filosofia nunca foi um ponto de chegada mas um ponto de partida e é no encontro com o homem ao longo das suas páginas na fidelidade à sua iniludível vocação de homem da práxis que o pode mos compreender como tal e apreender a sua dimensão MOUNIER 1976 p 10 Seria um equívoco compreender Mounier apenas pela sua teoria fi losófica Precisamos assimilálo pela ação enquanto homem que valorizou a pessoa na sociedade Para Mounier chega o momento de inverter os valo res ideológicos estabelecidos e estabelecer outros assumindo as opções pela vida Opção significa assumir um compromisso concreto O contexto em que surge o Personalismo no século XX se dá quando o mundo passa por uma crise política e espiritual principalmente na Eu ropa A revista Esprit fundada em 1932 coloca o termo personalismo num contexto diferente do que era usado anteriormente por Renouvier em 1903 e também por Walt Whitman em 1867 A pessoa para ele é antes de mais nada o não a recusa de aderir a possibilidade de se opor de duvidar de resistir à vertigem mental e FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 121 correlativamente a todas as formas de afirmação coletiva quer sejam teológicas quer sejam socialistas MOUNIER 1976 p 18 Para muitos até então o personalismo era tido como sinônimo do egocentrismo a pessoa sozinha é o centro do cosmos No entanto quando se fala do universo da pessoa humana falase do homem antropos em si MOUNIER 1976 Como foi assinalado o Personalismo não é um sistema com corpo formado pronto e acabado Ele se constrói no próprio homem Por isso é uma filosofia que desperta o homem para o engajamento O que caracteriza o Personalismo de Mounier é o princípio arché da imprevisibilidade com abertura hermenêutica ecumênica e libertadora para o homem São vários caminhos que o personalismo poderá seguir pois não há uma única alterna tiva não é um sistema O Personalismo vem respeitar as diferenças cultu rais étnicas e de classes dando o sentido de ver que não há um personalismo mas personalismos MOUNIER 1967 p 10 No sentido universal existe o conceito de personalismo diferenciado em cada realidade ou postura éticomoral Como diria Teilhard de Chardin ao analisar o transcendente presente nas culturas O Transcendente é um meio universal é o ponto final do qual convergem todas as realidades PENZO GIBELLINI 1998 p 385 Uma pessoa é um ser espiritual constituído como tal por um modo de subsistência e de independência no seu ser ela alimenta esta sub sistência por uma adesão a uma hierarquia de valores livremente adaptados assimilados e vividos por uma tomada de posição respon sável e uma constante conversão deste modo unifica ela toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo mediante atos criadores a singularidade da sua vocação MOUNIER 1967 p 84 O Personalismo não define a pessoa pois ela não é objeto exterior do homem Podese definir objetos mas Pessoa não é objeto Estaria construin do sistemas se a definisse MOUNIER 19761 O homem se faz pessoa em sua atividade criadora na comunidade e na adesão A experiência de se fazer pessoa pode converter os outros pelo testemunho que não deixam de florescer em si essa pessoa humana A gran de proposta do personalismo de Emmanuel Mounier é fazer com que a humanidade se liberte do pesado sono em que se encontra amortecida pelos horrores do século FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 122 A idéia central no personalismo se baseia no modo pessoal de existir sen do a forma primordial da existência humana pois esta busca seu crescimento na experiência de vida pessoal O apelo pessoal como testemunho para o outro nasce da simplicidade dos mais humildes A existência do homem deve ser conquis tada para uma busca concreta de libertação que não se dá de repente mas é um processo de transformação da própria consciência A libertação não se dará apenas e unicamente pela consciência do homem mas também no esforço do homem como pessoa em humanizar a humanidade humanizandose MOUNIER 1976 p 21 ou seja na sua relação com os outros por meio da comunidade É exatamente por isso que Mounier aponta Platão como sendo um teó rico do comunismo ao tentar reduzir a alma individual no nível duma parti cipação na natureza e duma participação na cidade MOUNIER 1976 p 22 Ao considerar a história da filosofia percebese que os gregos desde Tales de Mileto até Plotino afirmaram a dignidade do ser humano como processo de formação Paidéia do cidadão O humanismo grego tem o seu ponto culminante na frase de Sócrates Conhecete a ti mesmo caracte rizada por Mounier como a grande revolução personalista na idade clássica da filosofia grega O cristianismo é o arauto duma noção decisiva da pessoa segundo Mounier Para os gregos o homem é um ser social como disse Aristóteles no livro I da Política Entretanto os cristãos rompem e assimilam a singularidade desse ser social ou seja o homem é um ser social com suas particularidades pessoais Para os cristãos o próprio Deus se fez homem e veio fazer morada com a humanidade Jo 114 tornandose pessoa encarnada na História e propondo que cada homem venha participar dessa divindade pessoal Deus dá a liberdade de comungar com ele nesse ser pessoa O homem neste sentido se faz pessoa no amadurecer a si para atingir o amadurecimento da humani dade A concepção da Santíssima Trindade traz em si a própria negação da solidão É interessante destacar que o dogma da Santíssima Trindade talvez seja o mais importante da Igreja Católica desde a origem do Cristianismo pois nos remete a uma concepção comunitária da vida eclesial O mistério de Três Pessoas diferentes comungando o mesmo ideal é o maior exemplo de comunidade existente na história coletiva do homem Cf BOFF 1999 E não há dúvida de que justamente a história da teologia trinitária deva cons tituir a esse respeito um lugar obrigatório que mereça atenção evidenciando a correlação entre o homem Deus e o mundo O homem pessoa humana que se faz na História é um ser em si e para si ou seja é fermento que se constrói na história individual e coletiva da humanidade FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 123 Com Descartes nasce o subjetivismo Para ele a filosofia deixa de ser uma lição que aprende como era costume na escolástica decadente para ser uma meditação pessoal MOUNIER 1976 p 28 Poderia afirmar que Descartes nos propõe uma conversão da existência singularizada A Idade Média se altera na transição do feudalismo para o capitalismo mercantilista Mounier diz que a burguesia neste período tornase corpo efetivo no exaltar o indivíduo lançando as bases do individualismo econômico e espiritual do qual até hoje todos sofrem conseqüências drásticas O pensamento de Emmanuel Mounier retorna ao séc XIX com três pensadores que irão dar vida ao personalismo do século XX a saber Maine de Biran Kierkegaard e Marx Marx acusou Hegel de fazer do espírito abstrato e não do homem concreto o sujeito da história reduzindo à Idéia a realidade viva dos homens Esta alienação transcreve aos seus olhos a do mundo capi talista que trata o homem trabalhador e produtor como objeto da história MOUNIER 1976 p 30 No entanto dois ramos diferentes se formam no século XIX con tra as forças modernistas da sociedade burguesa e espiritualista da época A primeira com Kierkegaard chama o homem a ter uma consciência de sua subjetividade e liberdade e a segunda com Marx denuncia as mis tificações das estruturas sociais MOUNIER 1967 Aqui se percebe o extremismo histórico das separações e dicotomias pois de um lado temos o individualismo e de outro o coletivismo A tentativa de Mounier é fazer com que as idéias de Marx e Kierkegaard ultrapassem as divergên cias para atingir a unidade Daí o porquê de se estabelecer um conceito filosófico denominado personalismo O próprio Mounier considera que o problema da civilização está no fato de se fazer desta dicotomia uma geração com o pensamento ideológico da burguesia capitalista que irá usar o individualismo para possuir sua autonomia Na verdade o capi talismo não sobrevive se não existir o individualismo um pressupõe o outro No século XX duas correntes filosóficas irão se manifestar como principais o existencialismo que tenta solucionar os problemas personalistas como liberdade e angústia e o marxismo que tenta propor a desmistificação do idealismo em relação ao homem No personalismo o homem tem sua particularidade mas sempre em comum com o outro pois é no seu interior e fazse no social pelo diálogo FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 124 O HOMEM COMO EXISTÊNCIA INCORPORADA Desde o surgimento da filosofia na Grécia e principalmente com a cristianização do pensamento platônico realizada por Santo Agostinho hou ve uma grande divisão espiritualista na civilização ocidental Essa divisão se dá entre o mundo e o homem O mundo pode ser entendido como matéria e a partir de Descartes é identificado como racionalista O homem é espírito na concepção defendida pela escolástica na Idade Média Com o personalismo tal esquema dicotômico é desfeito pois a proposta é exatamente unir o dife rente apresentado pelas particularidades subjetivas e objetivas donde surgirá o homem novo respeitado como um todo não mais fragmentado A natureza do homem não é a separação categórica desses dois pólos mas a pessoa humana é corpo e espírito e como diz Mounier 1976 Tanto corpo como a alma são integralmente corpo e espírito pois ambos se com pletam O pensamento cristão une corpo e alma sendo que na visão cristã a alma está unida ao corpo matéria não podendo jamais ter uma separação pois daí resultaria a morte do homem Historicamente podese rever que o cristianismo em alguns momentos negou essa acepção de que corpo e alma fazem parte do todo humano Havia uma grande aversão ao corpo conside rada matéria que não leva a Deus É claro que se deve entender o momento histórico da época No entanto falar hoje que o homem tem um corpo e precisa cuidar da alma tornase equívoco gravíssimo O cristão que nega o corpo nega a própria tradição cristã Por isso é chamado a acabar com esse dualismo seja pela vivência encarnada e até mesmo no próprio pensamen to porque o homem é um todo em sua natureza Para Mounier as dicotomias existentes na humanidade são produtos da alienação do homem A alienação do homem é a miséria material é o não aceitar a pessoa como corpo e alma Neste sentido acabar com a miséria material colocaria também um fim à alienação O homem além de aliena do tornarseá impessoal não correspondendo ao ser que é de fato MOUNIER 1976 O próprio Marx escreveu em sua obra intitulada Economia política e filosófica que o homem é um ser natural mas um ser natural humano MOUNIER 1976 p 43 A singularidade do homem se dá por meio da transformação que acontece na sua própria natureza sendo o único capaz do ato de amar abrin dose ao outro A natureza neste sentido já é predeterminada Podese dar o exemplo a partir dos animais que agem conforme a situação que lhes é imposta Eles são sempre os mesmos nunca mudam ou FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 125 seja seus hábitos são naturais São determinados a ser aquilo que a natureza lhes ditar O homem é diferente age conforme o meio cultural social político econômico religioso a situação do momento histórico que seu pensar lhe dá e fornece O destino do homem é buscar um crescimento do corpo e da alma nessa postura de integração dialética Esse destino do ho mem jamais está pronto e determinado por uma ação construtiva no decor rer histórico O homem como criador de sua própria natureza adquire duas ten dências de uma pessoa criadora A primeira tendência é para a desperso nalização e a segunda se dá num movimento de personalização A tendência para a despersonalização faz do homem um ser caído em si mesmo rotinei ro incapaz de movimentarse por si próprio pois não vive a vida social mundo e a espiritual transcendente Já o movimento para a personalização tem esse desafio de ser seguro e estar socialmente integrado em suas relações A realidade pessoal é movida pela vida do espírito por paixões e sentimentos que enaltecem o materialismo O materialismo tem razão quando faz com que o homem atinja sua humanidade tirandoo da es cravidão individual que a realidade e o sistema lhe impõem É utopia pensar o homem como fruto de desejos e que somente a história e seus proces sos de transformações é que farão com que haja mudanças Todavia é o homem que faz a história acontecer Neste sentido não se pode classificar o personalismo como espiritualismo Mounier salienta que o espiritua lismo por si mesmo é impregnado de doutrinas moralizantes O homem sabese age pelo instinto segundo o conceito freudiano e pela economia na visão marxista Isso remete afirmarmos a tese de que o ser humano está mergulhado nesse dualismo por meio das contradições históricas da humanidade Neste sentido o personalismo opõese ao idealismo quando este re duz a matéria a todo o espírito humano o que vem dissolver o sujeito pes soal num amontoado de relações geométricas e inteligíveis Essa matéria corpo acontece como relações MOUNIER 1976 Na verdade o mun do só pode ser explicado se for vivido de forma que a relação da consciên cia seja percebida Conforme Mounier existe uma relação dialética entre matéria e consciência pois a matéria é o corpo em sua ação e a consciência é o pensamento nous que está ligado ao transcendente alma do homem A partir dessa colocação o desafio está lançado pelo personalismo cristão existencial em que a afirmação da pessoa tornase fator essencial da minha situação pessoal MOUNIER 1976 p 51 A existência corpórea bio lógica e subjetiva pensamento emana de uma mesma e única experiên FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 126 cia humana ou seja não se pode dicotomizar as diferenças mas apren der que o todo de cada uma o faz ser Homem verdadeiramente humano O ser que está ligado nessa realidade do ser pessoal como o amor ao corpo poderá se entregar aos outros e a si próprio lançandose nessa busca cons tante de dignificar o mundo humanizando a humanidade desumanizada Por isso é preciso servir pois o serviço é o alicerce para a consciência No serviço atingese o todo do mundo e do sujeito histórico que o cerca e aqui reside um princípio fundamental do cristianismo O ser é equilíbrio que integra o objetivo e o pessoal separandoos faríamos o não acontecer ideal do ser A pessoa se transforma e nessa ação criadora iniciamse as possibilidades de humanização do mundo Nessa trans formação o homem afirmase como pessoa que destrói os obstáculos e abre fronteiras Transformar é libertarse para um ato de libertação na sociedade Pessoa liberta libertando É chamada para libertar a humanidade como as coisas MOUNIER 1976 p 53 FREIRE 1987 Todos os seres são chama dos a construir a libertação Fazendo a libertação ou libertando afirmase como pessoa integrada e libertandose também pela práxis que têm no mundo Desde as revoluções industriais ou tecnológicas o capitalismo é a for ma que aprisiona o homem em seu egoísmo Para Marx o capitalismo degra da tudo em mercadorias em mecanismo de lucro causando a degradação das coisas O homem pessoa por natureza mantém relações dialéticas de permu ta e ascensão no que se refere ao capitalismo e ao mundo O homem trans forma a natureza pura ao humanizar a própria natureza pelas transformações A natureza quando transformada constrói o mundo produzindo e reprodu zindo Produzir é preciso e essencial mas se deve esclarecer que a produção em si é a própria valorização da pessoa que edifica a natureza humanizadao o que na dialética se torna uma atividade libertante e libertadora MOUNIER 1976 p 55 A crítica aos automatismos das máquinas e das técnicas feitas por Mounier levanta a problemática da despersonalização do homem pois o automatismo tecnológico rompe os contatos relação humanos Assim no mundo globalizado neste novo milênio o homem não passa de um objeto descartável Se não pertencer ao bloco daqueles que fazem parte do mercado estará automaticamente excluído da sociedade Num outro aspecto o automatismo tecnológico anunciado por Mounier como um perigo para a humanidade tornouse na atualidade uma realidade que vem gerando muito desemprego sendo o homem trocado por máquinas no trabalho que poderia estar nas mãos do próprio homem CNBB 1999 A tecnologia não tem um aspecto de sociabilidade pois individualiza as pes soas a viverem em um mundo insensível Nas palavras de Mounier 1976 FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 127 p 56 é uma poderosa força de despersonalização O homem poderá com o tecnicismo situarse num mundo diferente globalizado individualista O PERSONALISMO NO SÉCULO XXI Para Mounier precisase fazer uma Revolução personalista e comuni tária o que Boff acredita ser a Revolução em sua face ética no sentido de construir uma nova humanidade integrada e cooperada É o que vem alertando também todas as edições do Fórum Social Mundial que se reali zaram em Porto Alegre no Brasil e em Mumbai na Índia Desde o tempo de Mounier até nossos dias a civilização vem passan do por uma profunda crise Crise da civilização burguesacapitalista e da cristandade Por isso a grande importância de assumir um compromisso ético ao assumir também os desafios desse momento histórico com um discurso que possibilite a articulação dialética com a ação e o engajamento Os dois conceitos pessoa e comunidade são duas realidades que constituirseão luz e força O pensamento de Mounier é um programa re flexivo e acionário diria práxico Diante da crise mundial e crise da civili zação que vem sendo desmoronada Mounier propõe Refazer a Renascença mediante uma revolução que formasse uma nova visão de pessoa e de comu nidade2 Tanto em Mounier como em outros pensadores percebemos a urgência em edificar a necessidade de refazer um mundo uma humanidade diferente A palavra revolução adotada por Mounier é também adotada por pensadores marxistas em muitos momentos no sentido de se entender a revolução como mudança radical conversão íntima e comunitária Mounier é homem que tenta propor uma nova civilização Esta nova civilização vai contra o conceito de civilização individualista e burguesa que até então imperava e continua imperando em nossa sociedade Vai contra também o conceito de uma civilização coletivista Dessa maneira o binômio pessoa e comunidade vem caracterizar a proposta personalista de Emmanuel Mounier Para Mounier pessoa se faz na comunidade e a comunidade só pode ser entendida como comunidade de pessoas O interessante é que Boff 1998a 1998b realiza a metáfora do pensamento de Mounier onde a pes soa se faz como ser águia e ser galinha Pessoa no seu sentido mais puro ontologicamente falando pode ser entendida como corpo e espírito ser individual e relacional logo interpessoal movimento de interiorização e de exteriorização Um dado que precisa ser levado em conta é o fato de que pessoa e comunidade jamais podem ser entendidas como realidades estáticas FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 128 Quando se fala de Revolução Comunitária estará se pretendendo fazer um ato pedagógico de iniciação à comunidade O amor vai constituirse como unidade na comunidade Para Mounier há diferentes maneiras de se viver em comunidade Mas para ele a comunidade só pode ser entendida em seu sentido amplo como sendo comunidade personalista chamada por ele de pessoas de pessoas Leonardo Boff vem mostrando ultimamente seu novo estilo literá rio mais voltado para a reflexão sobre o Homem Assim percebemos sua intenção de se pensar uma humanidade livre que tornarseá águia por excelência Podese dizer que o Personalismo influenciou a civilização do século XX É possível falar de personalismo cristão em Mounier e de personalismo da libertação em Leonardo Boff Como poderia o personalismo humanizar a civilização ocidental desumanizada É viável afirmar que a teologia da li bertação na América Latina retornou ao personalismo cristão para propor uma nova humanidade baseada na lei do Amor São interrogações que podem ser aprofundadas a partir do momento em que façamos uma retrospectiva histórica deste século que vai se findando O século XX enterrou o homem num mundo de horrores e adversi dades Duas guerras mundiais que mostraram gemidos e lamentos de mor te O nazismo na Alemanha e o fascismo na Itália foram os grandes protagonistas da Segunda Guerra Mundial que silenciou um povo o povo de Israel os judeus Século marcado por uma geração de pessoas desespe rançadas Mounier fala das sombras de medo que foram acalentadas com as bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki inaugurando uma era de angústia e fanatismo escatológico com apologias ao fim do mundo A escatologia é um tempo de apocalipse As duas Guerras Mundiais torna ram possível visualizar a grande possibilidade do fim do mundo Para eles o fim do mundo tinha esse caráter apocalíptico Precisase distinguir o fim do mundo do fim de um mundo civiliza ção família sociedade pois o fim do mundo para os angustiados do medo é universal já o fim de uma civilização é um processo histórico que sempre aconteceu com o desenvolvimento do homem e da sociedade logo é um fato particular Por isso uma coisa é a consciência apocalíptica do fim do mundo outra é a consciência da decadência de uma determinada civili zação Na história da humanidade há três grandes erupções apocalípticas A primeira partiu da geração apocalíptica cristã que julgava viver a uma breve distância do fim dos tempos O ano 1000 um número bíblico e apocalíptico gerou muito sofrimento e convulsões públicas O clima era de calamidade FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 129 e medo pois o mundo parou para que se chegasse à arrematação final quando o Bem iria travar uma luta contra o Mal Essa foi a segunda geração A terceira se deu neste século XX com as duas grandes Guerras Mundiais No entanto desde a Renascença o homem vem sendo destruído aos poucos em sua natureza Mounier retrata a questão do fanatismo apocalíptico na seguinte frase Um homem brutalmente privado do futu ro é um homem privado já da própria vida MOUNIER 1979 p 15 O homem cristão é o único que não deve crer no fim do mundo crê no fim deste mundo que o deixa na miséria O cristão acredita sim na mudança do Reino ou seja o fim do mundo para Cristo é a passagem do homem que está vivendo num reino miserável para atingir definitivamente o Reino de Deus Jesus respondeu Meu Reino não é deste mundo Se meu Reino fosse deste mundo meus súditos teriam combatido para que eu não fosse entregue aos judeus Mas o meu Reino não é daqui Jo 1836 É digno salientar que a verdadeira esperança cristã não é a evasão MOUNIER 1979 p 17 Assim sendo podese perceber que quem irá deter minar o fim dos tempos será o próprio homem que pela sua vivência cristã gerará o inicio da passagem do reino da miséria para o Reino de Deus O ver dadeiro cristão acredita na revelação divina do apocalipse mas seu pensamento não está embasado no aniquilamento da raça humana mas na continuidade da vida Para Mounier escatologia ou o fim dos tempos podem ser entendidos de duas maneiras pelo espírito de apocalipse e pelo espírito de catástrofe A terceira característica da grande erupção apocalíptica do mundo contemporâneo é a tortura Visualizamse homens cansados e angustiados numa onda generalizada em busca da morte Parece que o século XX se tornou um século sem esperança cristã Para Mounier as duas grandes religiões do mundo são o Cristianismo e o Racionalismo Os cristãos perderam o entu siasmo e a esperança acabaramse os sonhos Percebese até hoje a forte influência do subjetivismo cartesiano de um princípio racionalista nas estruturas econômicas do capitalismo liberal neoliberal em nossa atualidade e na vida social da humanidade Tudo faz denunciar o anacronismo a fraqueza o absurdo da perma nência de um mundo em estado de destruição e aniquilamento O homem e seu tempo foram reduzidos à insignificância e ao esmagamento Talvez haja explicação do fato de o existencialismo ateu basearse nos clamores de que O homem está só lançado por aí para o nada num mundo absurdo MOUNIER 1979 p 25 O século XX é marcado por um niilismo profundo que difunde nos homens um pavor de uma singularidade baseada na paixão terrorista com FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 130 inspiração no espírito catastrófico O século XX é também um século de fuga para o artificialismo É um tempo de paixão para o abstrato tecnicismo exa gerado tornandose técnica robotização da técnica arte O milagre pro vém da ciência e da técnica Esses milagres estão em tudo desde um acendedor automático de microondas até na comunicação visual entre o mundo todo via aparelhos de comunicação O milagre está em poder fazer e o maior poder da técnica e da ciência é gerar o fim do mundo no ato de mandar tudo pelos ares o planeta e a humanidade com a criação das bombas atômicas A sociedade das máquinas há muito tempo lança ao mundo da mi séria milhares de homens no desemprego MOUNIER 1979 O homem do século XX na frase de Marx seria um membro vivo de mecanicista morto O grande problema não está no emprego das máquinas como re curso que ajude o homem a crescer mas está no capitalismo como modo social que gera a exploração deixando até mesmo a produção como secun dária Percebese portanto que o mecanicismo traz os germes da limitação humana MOUNIER 1979 A questão do trabalho na Grécia é que ele está ligado à identidade servil por isso não era bem visto pelos gregos Os cristãos analisam a con cepção do trabalho como obra criadora do homem e não em sua pureza ou em seu castigo O nascimento das máquinas compromete a sobrevivência da técnica manual conseqüentemente o trabalho está afetado É pela máquina que surge a guerra O progresso da técnica militar se deu num desenvolvimento superior ao progresso de outras artes como a própria agricultura Mecanizar a técnica significa mecanizar as almas Existe no ser humano uma ordem natural das coisas que é imutável Dentro dessa ordem existente um conceito sagrado é inatingível O grande paradoxo entre a natureza e o homem encontrase no fato da primeira levar milhares de anos para se constituir uma ordem das coisas já o homem com o poder da técnica industrial pode acabar com tudo em dois segundos Uma coisa está clara e evidente a natureza se oferece para ser recriada pelo ho mem MOUNIER 1979 p 61 Nesta aventura humana de recriar as coisas já criadas a natureza foi ameaçada e comprometida em sua existência A natureza modificada pelo homem tornase a modificação do próprio homem natural pois o homem age pela força a fim de transformar o já criado Em lugar de reali zar a hominização da natureza do homem pelo homem através da má quina não corre o risco de acarretar a coisificação do homem pela máquina MOUNIER 1979 FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 131 Com o século XX permanece nos homens a não crença na felicida de Todos esperam um futuro incerto MOUNIER 1979 Assim a idéia de progresso é uma idéia moderna e pode ser analisada sob quatro aspec tos primeiro a história tem um sentido a história do mundo e em segui da a história dos homens segundo esse movimento dirigido da história vai de um impulso profundo contínuo para um impulso melhor É esse movimento um movimento de libertação do próprio homem terceiro o que caracteriza a idéia moderna é o desenvolvimento das ciências e da técnica constituindo um momento decisivo do processo de libertação e por último o homem tem a missão de ser sujeito da própria libertação Nenhum povo etnia ou civilização possui desde os remotos tempos da Grécia a idéia de tempo e história Para eles o tempo é eterno Apenas os judeus possuíam essa dinâmica temporal que caracteriza a importância da história no processo de libertação dos judeus O mundo tem uma histó ria una e universal assim dizia o judaísmo Os judeus professavam o monoteísmo enquanto outros povos eram politeístas sendo que suas espe ranças como nação eram depositadas no Messias que estava por vir Era a esperança coletiva de um povo O cristianismo é herdeiro dessa tradição judaica que baseandose em três dimensões teológicas poderia associar a unidade do Todo como unidade de Deus unidade da História a unidade do Gênero Humano Assim há a idéia de progresso coletivo da humanidade O cristão é por excelência transcendente e imanente O cristianis mo é progressivo e escatológico O progresso do cristianismo não é uma acumulação do ter bens poder conforto mas uma marcha para a perfeição do ser O progresso da história segundo o Cristianismo não é um processo de acumulação contínua como o progresso técnico cuja lei é muito mais sumária É antes de tudo ascese e segue na humanidade como no indivíduo a lei de toda ascese é sacrifício ressurreição transfiguração MOUNIER 1979 p 125 Na perspectiva cristã existem duas verdades substanciais e constitu tivas que mostram o homem como ser cristão no mundo chamado por Mounier de humanismo cristão a primeira é que não existe mal no mundo tudo é bom3 a natureza a carne a matéria o espírito Assim o homem em si é por natureza bom Aliás neste sentido Mounier busca fontes se guras em São Bernardo e em Rousseau para assegurar que a natureza e FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 132 principalmente a carne e o corpo são valores que darão sentido ao existir espiritual pois estes estão anexados na concepção cristã ao desenvolvi mento vivo do Reino de Deus MOUNIER 1979 Diz Mounier 1979 p 1412 ao refletir sobre o papel do cristianismo no que se refere à carne e ao corpo Se a encarnação é completa e a Ressurreição total o Homem novo é ao mesmo tempo convidado a fazer uma terra nova o mundo dos corpos deve colaborar com todas as energias não apenas no contar mas ainda no construir a glória de Deus Mounier coloca duas proposições que constituem o universo do homem completo como pessoa dizer não aos extremismos teocêntricos e antropocêntricos mas unificálos em uma dialética que os faça na história O homem recebe a promessa da divinização e a missão de divinizador do cosmos MOUNIER 1979 A humanidade se fará lentamente e progres sivamente Por isso não se espera um Pascal um Kierkegaard mas constru tores de obras e esperanças para toda a humanidade MOUNIER 1979 Contudo o cristianismo não foi feito para dar soluções aos problemas da terra Como Cristo se fez homem todos devem também se tornar homens plenamente humanos Precisam se fazer homens plenamente homens O espírito de catástrofe do século XX na visão mounieriana foram os terrores dos campos de concentração que exprimiram a grande fraqueza européia e humana É preciso reconhecer a enfermidade da humanidade Por isso ao invés de catastróficos deveríamos ser humildes serenos com placentes com a realidade sem dramatizações inúteis MOUNIER 1979 CONCLUSÃO A época de Emmanuel Mounier traz muitas reflexões a respeito do homem e da sociedade Persistiam as velhas tentações teocráticas que tentavam dominar a sociedade no tradicionalismo liberal numa espécie de conserva dorismo social que dirigia o destino da fé com regimes ultrapassados Como já foi dito o cristianismo para Mounier não terá um fim A cristandade e o seu modelo conservador e doutrinário é que terá um fim para que se forme outra sociedade cristã onde haverá um retorno ao cristianismo pri mitivo da era apostólica Na verdade o Personalismo cristão propõe esse retorno às suas fontes primitivas Essa nova civilização não será nem teo crática muito menos liberal mas munida de transcendência encarnação FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 133 primitiva dos conselhos evangélicos Por isso a crise do século XX não é do cristianismo em sua essência mas dos valores religiosos de um mundo niilista Precisase urgentemente de uma nova civilização que busque li bertarse desses valores anticristãos que silenciam a vida plena Tornase necessária à participação de todos nesse desafio maior de construir uma nova realidade abrindo as fronteiras do advento do Reino Para isso torna se imprescindível avaliar o passado refletir o presente e ouvir o apelo dos novos desafios para este novo milênio que vem chegando Todos são convocados a renovar a Igreja de Jesus Para isso é pre ciso afrontar as doutrinas os sistemas e as estruturas de morte que im pedem com que o homem se torne pessoa Renovar a Igreja de Jesus significa redescobrir a mística e a espiritualidade e ser edificador do Reino como foram em seus respectivos tempos São Francisco de Assis São João da Cruz Charles de Foucauld e outros tantos e tantas A mística do Reino mostra uma ética evangélica que se faz uma exigência coerente a partir da dinâmica da história Ser místico do Reino presume com que todos os cristãos busquem identificarse com a proposta de Jesus Eu tive fome e me deste de comer Tive sede e me deste de beber4 O místico é uma figura perigosa que afronta É perigoso para as estruturas até mesmo da Igreja no entanto para os místicos a Igreja não é absoluta absoluto é o Reino de Deus O socialismo é o sonho do futuro no sentido de que para mim a busca e o sonho de construir o Reino de Deus promoverá o socialismo que tem sua essência verdadeira no cristianismo primitivo É uma questão aritmética de partilha de bens A eucaristia é um sacramento comunista logo personalista A cada momento que se celebrar a eucaristia estará se questionando a ordem social Por isso a nova civilização personalista deve ser uma civilização mística em que todas as pessoas tenham condições reais de vida e vida em plenitude Ter vida significa ter direitos e direitos de cidadania de vida em plenitude por natureza do Reino à alimentação à escolaridade à saúde digna ao trabalho ao lazer Direito de ser pessoa significa ter condições de manifestar sua prática religiosa seja na medita ção pessoal como na exterioridade do mundo Todos são vocacionados dessa nova civilização que caminha para o século XXI incerta do que virá e do que poderão realizar para sua trans formação Guerras absurdas continuam nos dias atuais denunciando a fra queza humana Iraque Afeganistão Haiti Colômbia e outros países que se encontram sob a égide de conflitos civis enfim vários países que estão FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 134 na miséria e o parlamento mundial ONU nada faz pois obedece somen te às ordens do império econômico dos EUA A África em vários países está assolada pela fome Os países da América Latina e da Ásia vivem à custa do FMI e do Banco Mundial que cobram horrores de impostos e juros especulativos por causa dos empréstimos Esses empréstimos são de terminados pelos próprios donos da economia mundial que controlam os mercados e as bolsas de ação financeira Na verdade homens e mulhe res sem entender nada ficam presos sem nada poder fazer Inspirarse no sonho de Jesus o Reino que se realiza já na história começando pelos últimos e sempre onde houver verdade justiça e amor Recriar o comprometimento de Jesus com os excluídos e com os empo brecidos na luta contra sua pobreza em favor da vida e da libertação Falar de Deus e de sua graça a partir da experiência do mundo da história do sofrimento e da certeza que a última palavra não é morte mas vida não é cruz mas ressurreição Dar centralidade à misericórdia e à ternura por que são elas que salvam a vida e o amor e revelam o rosto materno de Deus Compreender o ser humano como um projeto infinito como a própria Terra que sente pensa ama e venera Cuidar da Terra a Grande Mãe Pachamama e Gaia com a qual se tem a mesma origem e a mesma destinação de ser metáfora da Fonte originária de todos os seres A humanidade é chamada a reviver a piedade cósmica e a confraternização universal com todas as criaturas com todos os povos da terra no seguimento de Clara Francisco de Assis Charles e outrosas Isto é uma idéia central do personalismo de Mounier Construir e formar esta nova civilização requer adesão por parte da humanidade dos cristãos da Igreja das comunidades das famílias en fim adesão do homem O personalismo influencia a civilização pois se não tivesse influenciado não poderia estar refletindo sobre tal assunto Mounier e outros tantos como Gabriel Marcel Maritain e os teólogos da libertação na América Latina são cristãos que se dispuseram a pensar o homem em sua liberdade e em sua existência como um todo corpo e alma O cristianismo tanto em Mounier e para eles implica que o homem busque e almeje a liberdade Para isso é necessário que haja a libertação em sua totalidade A nova civilização exige de todos um retorno aos princípios do Evangelho que trata a pessoa com dignidade e liberdade O amor pela vida se dá na doação e na opção preferencial pela pessoa O sonho de todos os cristãos homens e mulheres comprometidos com o Reino é ver um dia o sonho se realizar O sonho dessa nova civilização exigirá no entanto que se faça a Revolução Personalista neste século XXI FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 135 Notas 1 Pessoa não é construída exteriormente pelo homem mas se faz de dentro a partir do ser transcen dente Assinalase o pensamento de Mounier no sentido da dimensão teológica da pessoa Pessoa significa a máscara teatral através da qual ressoa o seu dizer cujo homem é a personagem em grego prósopon em latim persona 2 Quando Mounier aborda a questão do ato de refazer a Renascença não significa de modo algum uma volta ou retorno da Cristandade Aliás Mounier se coloca contra a idéia de cristandade ao propor cionar um retorno à eclesiogênese das primeiras comunidades cristãs 3 Cf Gen 12 4 Cf Mt 25 3146 Referências ABBAGNANO N História da filosofia 3 ed Lisboa Presença 1984 v 9 BÍBLIA Português Bíblia Sagrada Edição Pastoral Tradução das Introduções e Notas por Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin São Paulo Paulinas 1991 BOFF L A águia e a galinha uma metáfora da condição humana 22 ed Petrópolis Vozes 1998 BOFF L A Santíssima Trindade é a melhor comunidade 6 ed Petrópolis Vozes 1999 BOFF L E a igreja se fez povo eclesiogênese a Igreja que nasce da fé do povo São Paulo Círculo do Livro 1986 BOFF L Ética da vida Brasília Letra Viva 1999 BOFF L Nova Era a civilização planetária 3 ed São Paulo Ática 1998a BOFF L O despertar da águia o diabólico e o simbólico na construção da realidade Petrópolis Vozes 1998b BOFF L O destino do homem e do mundo 8 ed Petrópolis Vozes 1981 BOFF L Saber cuidar ética do humano compaixão pela terra Petrópolis Vozes 1999 CNBB Campanha da Fraternidade 1999 a fraternidade dos desempregados São Paulo Salesianas 1999 COMBLIN J Cristãos rumo ao século XXI nova caminhada de libertação 3 ed São Paulo Paulus 1996 COMBLIN J Vocação para a liberdade 2 ed São Paulo Paulus 1998 FREIRE P Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 LORENZON A Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier 2 ed Ijuí Unijuí 1996 MONDIM B O Homem quem é ele Elementos de Antropologia Filosófica 8 ed São Paulo Paulus 1980 MOUNIER E Introdução aos existencialismos Lisboa M Fontes 1978 MOUNIER E Manifesto ao serviço do personalismo Lisboa Livraria Morais 1967 MOUNIER E O personalismo 4 ed Lisboa M Fontes 1976 MOUNIER E Sombras de medo sobre o século XX Lisboa Livraria Morais 1979 161 p PENZO G GIBELLINI R Deus na filosofia do século XX São Paulo Loyola 1998 FRAGMENTOS DE CULTURA Goiânia v 17 n 12 p 117136 janfev 2007 136 Abstract It can be affirmed that Emmanuel Mouniers thought continues being very current for our planetary reality and mainly LatinAmerican Emmanuel Mouniers Personalism brings a reflection that questions the society for the many nihilisms and skepticisms of our times as well as he she brings a new understanding concerning the human being The Human Persons valorization is made necessary and urgent Human person is made in the community and the man becomes a to be of communication I get with the other and with the world that surrounds himit Here is the alter beginningother community one presented by the persons revolution Mounier is the educator that it proposes at our times an ethical and global reflection concerning the human being non person and inhuman for many movements that make a strong tendency that navigates for an Ideology of the Individualism to happen Keywords person personalism society philosophy Este artigo é uma forma de comemorar o Centenário de nascimento desse filósofo cristão Emmanuel Mounier 19052005 No ano de 2005 Mounier completaria 100 anos de vida Morreu jovem com 45 anos Porém deixounos um legado atual para que possamos compreender a atitude do filósofo e da própria filosofia do engajamento político na história da humanidade CLAUDEMIRO GODOY DO NASCIMENTO Mestre em Educação pela Unicamp Professor na Universidade Estadual de Goiás em São Miguel do Araguaia Coordenador do Grupo de Estudos Movimentos Sociais Educação e Cidadania GEMEC Membro da Rede de Movimentos Sociais Filósofo Email claugnasgmailcom