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Fazemos parte do Claretiano Rede de Educação Ética ii Telma Apparecida Donzelli possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Santa Úrsula da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC mestrado Diploma de Estudos Superiores em Filosofia pela Faculté des Lettres et Sciences Humaines da Université de Paris e doutorado em Filosofia das Ciências Humanas também por essa universidade Atualmente é aposentada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ tem experiência na área de Filosofia Contemporânea atuando principalmente com Filosofia Metafísica Razão Mítica e Ética A professora Telma Apparecida Donzelli agradece ao exaluno Luis Henrique de Souza licenciado em Filosofia 2010 e especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia 2011 pelo apoio na seleção de textos nas traduções das obras de Spinoza Hume Kant e Schopenhauer e pela elaboração das Questões Autoavaliativas desta obra Claretiano Centro Universitário Rua Dom Bosco 466 Bairro Castelo Batatais SP CEP 14300000 ceadclaretianoedubr Fone 16 36601777 Fax 16 36601780 0800 941 0006 wwwclaretianobtcombr Telma Apparecida Donzelli Batatais Claretiano 2016 Ética ii Ação Educacional Claretiana 2013 Batatais SP Todos os direitos reservados É proibida a reprodução a transmissão total ou parcial por qualquer forma eou qualquer meio eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia gravação e distribuição na web ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana CORPO TÉCNICO EDITORIAL DO MATERIAL DIDÁTICO MEDIACIONAL Coordenador de Material Didático Mediacional J Alves Preparação Aline de Fátima Guedes Camila Maria Nardi Matos Carolina de Andrade Baviera Cátia Aparecida Ribeiro Dandara Louise Vieira Matavelli Elaine Aparecida de Lima Moraes Josiane Marchiori Martins Lidiane Maria Magalini Luciana A Mani Adami Luciana dos Santos Sançana de Melo Patrícia Alves Veronez Montera Raquel Baptista Meneses Frata Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Simone Rodrigues de Oliveira Revisão Cecília Beatriz Alves Teixeira Eduardo Henrique Marinheiro Felipe Aleixo Filipi Andrade de Deus Silveira Juliana Biggi Paulo Roberto F M Sposati Ortiz Rafael Antonio Morotti Rodrigo Ferreira Daverni Sônia Galindo Melo Talita Cristina Bartolomeu Vanessa Vergani Machado Projeto gráfico diagramação e capa Bruno do Carmo Bulgarelli Eduardo de Oliveira Azevedo Joice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa Ferrão Luis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de Oliveira Tamires Botta Murakami Videoaula Fernanda Ferreira Alves José Lucas Viccari de Oliveira Marilene Baviera Renan de Omote Cardoso Bibliotecária Ana Carolina Guimarães CRB7 6411 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil 170 D742e Donzelli Telma Apparecida Ética II Telma Apparecida Donzelli Batatais SP Claretiano 2016 254 p ISBN 9788583774808 1 Ética 2 Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno 3 A ética no seu contexto histórico e epistêmico 4 Ética renascença racionalismo criticismo empirismo e a abertura para um pensamento contemporâneo I Ética II CDD 170 CDD 658151 INFORMAÇÕES GERAIS Cursos Graduação Título Ética II Versão fev2016 Formato 15x21 cm Páginas 254 páginas SUMÁRiO CADERNO DE REFERêNCIA DE CONTEÚDO 1 INTRODUÇÃO 7 2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO 8 3 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 41 Unidade 1 A CONCEPÇÃO ÉTICA DO RENASCIMENTO 1 OBJETIVOS 43 2 CONTEÚDOS 43 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 43 4 INTRODUÇÃO 45 5 Giovanni Pico della Mirandola 14631494 47 6 Machiavel 14691527 52 7 PhilliPUs TheoPhrasTUs BoMBasTUs von hohenheiM Paracelso 14931591 62 8 Michel de MonTaiGne 15331592 64 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 72 10 CONSIDERAÇÕES 73 11 ereFerÊncias 74 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 74 Unidade 2 ÉTICA MODERNA RACIONALISMO E EMPIRISMO 1 OBJETIVOS 77 2 CONTEÚDOS 77 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 78 4 INTRODUÇÃO 79 5 renÉ descarTes 15961650 e UMa Moral de Provisão 81 6 BarUch sPinoZa 16321677 103 7 ThoMas hoBBes 15881679 124 8 John locke 16321704 130 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 136 10 CONSIDERAÇÕES 138 11 ereFerÊncia 139 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 139 Unidade 3 ÉTICA MODERNA HUME E KANT 1 OBJETIVOS 141 2 CONTEÚDOS 141 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 141 4 INTRODUÇÃO 142 5 david hUMe 17111776 146 6 iMManUel kanT 17241804 159 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 183 8 CONSIDERAÇÕES 185 9 ereFerÊncias 186 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 186 Unidade 4 PriMórdios da PósModernidade SCHOPENHAUER E NIETzSCHE 1 OBJETIVO 187 2 CONTEÚDOS 187 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 187 4 INTRODUÇÃO 190 5 arThUr schoPenhaUer 17881860 191 6 WilhelM Friedrich nieTZsche 18441900 220 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 247 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 251 9 ereFerÊncia 253 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 254 7 cadeRnO de RefeRência de cOnteúdO Conteúdo Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética no seu contexto histórico e epistêmico Renascença e a perspectiva sob diferentes razões Racionalismo de René Descartes Baruch Spinoza criticismo kantiano Empirismo Thomas Hobbes John Locke David Hume Arthur Schopenhauer e Friedrich W Nietszche e a abertura para um pensamento contemporâneo sobre a Ética 1 INTRODUÇÃO Nesta obra intitulada Ética II teremos por objetivo o estu do da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética e a moral em seu contexto histórico e epistêmico Iremos da Re nascença séculos 15 e 16 até fins do século 19 passando pelo pensamento do racionalismo e empirismo dos séculos 17 e 18 e os primórdios de uma pósmodernidade no século 19 Na Renascença séculos 15 e 16 mais precisamente trabalharemos as posições e pensamentos sobre a questão ética e a questão moral a partir das perspectivas dos seguintes filósofos Giovanni Pico Della Mirandola Nicolau Machiavel Phillipus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim e Michel de Montaigne No século 17 veremos as concepções de moral e Ética dos racionalistas René Descartes e Baruch Spinoza e dos empiristas Thomas Hobbes e John Locke 8 Ética ii caderno de referência de conteúdo No século 18 analisaremos as obras de David Hume e Immanuel Kant e finalmente no século 19 as de Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche Haverá ainda uma conclusão que versará sobre as impli cações e consequências das posições analisadas no universo do pensamento contemporâneo do século 20 até nossos dias Bons estudos 2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO Abordagem Geral Introdução Neste tópico apresentaremos uma visão geral do que será estudado nesta obra Aqui você entrará em contato com os as suntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade Desse modo essa Abordagem Geral visa fornecerlhe o conhecimento básico necessário a partir do qual você possa construir um referencial teórico com base sólida filosófica e cultural Vamos começar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que fundamentam esta obra Quando falamos em Ética encontramos concepções as mais variadas e diferentes E não poucas vezes o ético chega mesmo a ser identificado com o moral O ético porém não é o moral Por que então essa dificuldade em distinguilos 9 Ética ii caderno de referência de conteúdo Muitos autores têmse voltado para a origem etimológica da palavra grega ethos outros como o professor ernst Tugendhat em sua obra Lições sobre ética 2000 p 41 afirma Portanto não podemos tirar nenhuma conclusão para os termos moral e ética a partir de sua origem Estamos porém convencidos de que o estudo etimológico da palavra grega ethos em suas duas formas ethos com e longo ήθος e ethos com e breve έθος tem muito a nos esclarecer sobre o que funda propriamente o ético e o moral e os distingue essencialmente Em grego essas duas formas da palavra ethos tinham sen tidos muito diferentes Ethos com e longo significava maneira de ser interior modo de ser ou morada habitual caráter diz respeito à interioridade do ato humano àquilo que torna a ação propriamente humana ethos com e breve significava maneira exterior de proceder costumes decorrentes do sen tido comunitário da ação e dos valores culturais consta que o termo grego éthica foi identificado em seu sentido de costume à palavra mores do latim que também significa costume pelo grande orador romano cícero Talvez seja esta uma das razões da aproximação e mesmo por vezes identificação do ético com o moral Considerando as definições das duas formas do ethos ve mos que se distinguem profundamente O primeiro sentido de ethos se refere ao que é único próprio e singular o segundo sen tido diz respeito ao comportamento que se torna generalizado como hábito e que é o que entendemos por costume fundado em valores e como tal passível de regras e normas Além disso vale dizer que 10 Ética ii caderno de referência de conteúdo José Ferrater Mora 1990 afirma que o termo moral tem usualmente uma significação mais ampla que o vo cábulo ético a moral é o que se submete a um valor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira 2010 define a moral como um conjunto de regras e normas de condu ta consideradas válidas seja em um determinado tem po e lugar seja durante certos períodos de tempo O valor é uma determinação cultural Por valores temos entendido diferentes coisas ao longo dos tempos o que faz com que a moral de um povo ou de uma civilização não só possa va riar com o tempo mas possa ainda diferenciarse da moral de outro povo ou civilização Sobre valores diz Peter Kemp professor de Filosofia na Univer sidade de Copenhague nascido em 1937 em seu livro Lirremplaça ble une éthique de la technologie 1997 p 52 tradução nossa o herói grego era temperamental e corajoso o santo cristão da Idade Média humilde e devotado o homem do Renascimen to liberal e repleto da alegria de viver o burguês econômico e consciente de sua classe o pioneiro da indústria empreende dor e infatigável o socialista moderno cultiva a solidariedade e o técnico moderno eficiência Há uma relatividade histórica no que diz respeito a bens e valores Continuando diz Peter Kemp na mesma obra A Idade Média Cristã rejeitou a noção aristotélica de que só se pode viver bem quando se é cercado de amigos Substituiu pela ideia segundo a qual a Igreja é que faz da comunidade de fiéis um bem que permite viver na verdade Os cristãos rejeita ram a ideia de Aristóteles de que a fortuna e o nascimento são necessários à felicidade No lugar de tais valores defendem a fé como a coisa mais importante O cristianismo suscitou igualmente a ideia de que a liberdade constitui um bem 1997 p 52 tradução nossa 11 Ética ii caderno de referência de conteúdo Mas frequentemente quando se fala hoje em valores pensase menos em uma qualidade própria do ser humano e mais na maneira pela qual ele desejaria verdadeiramente viver sua vida E como vivemos em uma época em que o equilíbrio ecológico é condição de sobrevivência de nosso planeta não se fala somente em valores que condicionam nossa existência pes soal e social mas também em valores que possam nos garantir uma natureza viva O filósofo americano Ian G Barbour distinguiu estritamen te três níveis de valores diferentes o nível material o nível social e o nível ambiental Cita como valores materiais a sobrevivência a saúde o bemestar material e o trabalho Os valores sociais são a justa repartição dos bens a parti cipação do indivíduo nas decisões concernentes à sua própria existência a comunidade fundada no reconhecimento recí proco e a possibilidade para cada um de crescer em um sentido pessoal Os valores ambientais são a utilização de recursos renováveis a conservação de um ecossistema equilibrado e a proteção da natureza Certo número desses valores podem se opor entre eles por exemplo os valores do terceiro grupo podem se apresentar como dificilmente compatíveis com a exigência de crescimento pessoal dos indivíduos Certos valores podem mesmo depen dendo das situações ser pura e simplesmente excluídos por ou tros BARBOUR 1971 p 5254 tradução nossa Já para o pensador francês Jean Baudrillard 19292007 na realidade os valores hoje não possuem referencial definido Em sua obra A transparência do mal ensaios sobre fenômenos extremos diz o seguinte 12 Ética ii caderno de referência de conteúdo Após o estado natural advém o estado de mercado e em segui da o estado estrutural e finalmente o estado fractal da noção de valor Ao estado natural correspondia um referencial natural a noção de valor tem como referência um uso natural do mun do Ao estado de mercado correspondia um equivalente geral a noção de valor se desenvolve segundo uma lógica da mer cadoria No estado estrutural a noção de valor correspondia a um código tendo como referência um conjunto de modelos No estado fractal ou estado viral ou ainda estado de irradiação não há mais nenhum referencial a noção de valor se irradia em todas as direções em todos os interstícios sem relação com o que quer que seja por pura contiguidade Nesse estado fractal não há mais equivalência nem natural nem geral não há mais propriamente falando lei do valor há apenas uma espécie de epidemia do valor uma metástase geral do valor uma prolife ração e uma dispersão aleatória Rigorosamente não se deveria falar mais de valor uma vez que tal multiplicação e reação em cadeia torna impossível toda avaliação O que se dá é mais uma vez semelhante ao que se dá em microfísica impossível avaliar em termos de belo ou de feio de verdadeiro ou de falso de bem ou de mal da mesma maneira que é impossível calcular a velocidade e posição de uma partícula O Bem não se encontra mais situado de maneira vertical com relação ao Mal nada se posiciona mais à maneira de abscissas e ordenadas Cada par tícula segue seu próprio movimento cada valor ou fragmento de valor brilha por um instante no céu da simulação depois de saparece no vazio sob a forma de uma linha quebrada que só excepcionalmente encontra as dos outros É o próprio esquema do fractal e é o esquema atual de nossa cultura BAUDRILLARD 1990 p 1314 tradução nossa Observação fractal é um neologismo que significa irregular quebrado do latim fractus e que foi introduzido por Benoît Mandelbrot 19242010 matemático francês de origem polonesa 13 Ética ii caderno de referência de conteúdo O ético diferentemente do moral não advém desse sentido de valorização em comum mas diz respeito à dimensão pessoal do ato humano àquilo que gera uma ação genuinamente humana Para melhor expressar o que estamos querendo dizer busca remos recursos na distinção feita pelo filósofo francês Henri Bergson 18591941 em sua obra As duas fontes da moral e da religião entre o que chamou de moral fechada e moral aberta aplicandoas a um fato corriqueiro a fim de ficar claro que o ético não se confunde com o moral e isso vale para acontecimentos do nosso dia a dia O fato aconteceu no Rio de Janeiro em setembro de 1992 quando se encontrava internada em estado grave em uma clíni ca no bairro de Botafogo a mãe do então presidente da Repúbli ca O Jornal assim descrevia o acontecimento Excerto do Jornal Logo após o esquema montado pela polícia ser desfeito um grupo de 50 ma nifestantes começou a protestar em frente ao hospital Já sem o aparato poli cial estudantes de uma escola e outros manifestantes pediam a renúncia do Presidente Houve apenas um princípio de tumulto quando uma enfermeira aposentada do INAMPS surgiu e dirigindose aos manifestantes disse que era contra o protesto em frente ao hospital Muitos não gostaram da crítica e partiram para cima da enfermeira começando um bateboca A enfermeira tentava explicar e justificar sua atitude eu só estou dizendo que não é certo protestar em frente a um hospital dizia ela onde há pessoas doentes que nada têm a ver com a crise econômica motivo da manifestação e uma mulher que está quase à morte Respondiam os manifestantes por que a senhora não vai comprar remédios na farmácia para saber quanto custa Vá ao hospital do INAMPS para saber se não há gente que morre por falta de atendimento ou de remédio Insistia a enfermeira vocês não estão me entendendo Só estou querendo dizer que a crise econômica não tem nada a ver com estas pessoas que estão doentes Mas o bateboca só terminou quando alguns policiais militares conseguiram acalmar os manifestantes 14 Ética ii caderno de referência de conteúdo Temos aqui podemos dizer dois tipos de comportamen to um que chamaríamos de moral e outro que entenderíamos como sendo ético Bergson 1978 diz A sociedade é semelhante a um organismo cujas células unidas por invisíveis ligações subordinamse umas às outras visando ao bem da totalidade nem que para isso tenha que sacrificar a parte Em outras palavras embora cada um de nós nos sintamos livres para seguir o nosso pensamento gosto ou desejo temos obri gações para com a sociedade de cultivar o nosso eu social É o que a sociedade espera de nós A obediência a tal dever social pode significar uma resistência àquilo que desejamos fazer no entanto é nossa obrigação Não é exatamente essa a situação daqueles manifestantes diante da clínica Ali temos inclinação para o bem da totalidade bem este que leva ao sacrifício da parte ou seja a senhora em coma e os demais doentes podem ser sacrificados pois a gran de totalidade da população não pode sequer comprar remédios e não é atendida convenientemente nos hospitais Sentimonos socialmente na obrigação de protestar embora tenhamos que sacrificar a parte a senhora em estado grave e os demais doen tes Gostaríamos de considerar a situação daquela senhora e dos outros doentes afinal poderiam ser um dos nossos nossa mãe nossos parentes porém somos impelidos por uma obri gação social a nos manifestar em favor da maioria mesmo que isso prejudique aquelas pessoas Pensamos que essa atitude é essencialmente racional no entanto diz Bergson tratase de um hábito e de um hábito po deroso o hábito de proteger a sociedade Mais precisamente nossos deveres sociais visam à união social à coesão social Não 15 Ética ii caderno de referência de conteúdo se trata na verdade do bem da sociedade diz Bergson mas da sobrevivência da sociedade E observa que em tempo de guer ra o assassinato a pilhagem o roubo a mentira tornamse não só lícitos permitidos mas até meritórios concluindo que por mais que as sociedades progridam complicandose e espiritua lizandose esse seu comando permanecerá de maneira não só regular mas intensa Podemos pois dizer que à luz das considerações aqui fei tas orientandonos pelo pensamento de Bergson o comporta mento dos manifestantes é um comportamento moral porque se trata de defender o direito de todos e isto é um comando da sociedade o moral é pois fechado na expressão de Bergson Fechado porque visa a uma sociedade fechada em si mesma sacrifica a parte pelo todo é uma exigência do hábito e não da razão portanto não se abre ao diálogo o bateboca só terminou com a in tervenção dos policiais é fundado na impessoalidade do princípio da regra e da norma é preciso protestar porque este é o nosso dever com a sociedade Analisemos agora o comportamento da enfermeira Enquanto os manifestantes se encontram absorvidos em uma mesma tarefa voltados para si enquanto sociedade em penhados na conservação de si mesmos e dos outros membros na condição de membros dessa mesma sociedade a enfermeira ocupase do sentido mesmo da situação vivida ocupase do que é singular característico e único a esta ajustandose a ela Uma atitude que não se conforma ao que é estabelecido pe 16 Ética ii caderno de referência de conteúdo los interesses gerais o social o cultural mas atende à situação no seu caráter mais próprio Cremos poder dizer que a atitude da enfermeira enqua drase no que Bergson denominou de moral aberta aberta porque concretiza o que dela diz o filósofo 1 não consiste em um comando da sociedade mas em um apelo 2 não implica como no caso da atitude dos manifestan tes escolha e exclusão escolha de todos e exclusão de alguns 3 não depende de nenhuma meta não busca nada não quer nada a não ser expressar o que é adequado e justo àquela situação 4 não depende de nenhuma ideia ou princípio geral di ferentemente dos manifestantes que se encontram sensibilizados por uma ideia ou imagem representada a do bem de todos quer apenas atender ao em si mesmo da situação Vemos assim que estamos diante de dois comporta mentos perfeitamente compreendidos como essencialmente diferentes Por que então repetimos tanta dificuldade em distinguir o ético do moral A resposta a nosso ver está na natureza do tipo de saber que caracteriza nossa civilização ocidental O sentido de ethos costume encontrou um solo estrutu ral de saber favorável com o surgimento de um tipo de saber denominado conhecimento saber que se caracteriza por con 17 Ética ii caderno de referência de conteúdo ceber todo universal como sendo o geral constituindose es sencialmente como uma busca de leis e regras gerais Tal saber estruturase à luz de noções derivadas da expe riência cultural e de uma postura universalista sustentada pelo esforço e desenvolvimento de um universalabstrato caracterís tica do pensamento dito moderno Quanto ao ethos caráter cujo fundamento é a dimensão singular de cada indivíduo de cada ação de cada situação de cada comportamento de cada época dimensão essa que os caracteriza e os torna únicos mantevese quase que inteira mente ignorado pois um dos processos pelos quais se constrói o universalgeral base do conhecimento é o da abstração de toda singularidade aristóteles em outras palavras o singular não é objeto de conhecimento Vimos no entanto que a busca dessa singularidade se en contra presente no que diz respeito à Ética nos pensamentos de Sócrates Platão Aristóteles expressandose principalmente na ideia fundamental da justa medida dar o devido a algo ou alguém O desenvolvimento de um saber outro que não o do co nhecimento científico é uma tarefa de grande alcance filosófico pois requer necessariamente uma posição crítica com relação ao paradigma filosófico fundador do próprio conhecimento requer um tomar distância do modo de pensar que estruturou o nosso mundo moderno Somente em fins do século 19 diante dos limites da ciên cia e da constatação de sua incapacidade não só de levar a hu manidade a uma realização plena e principalmente diante do apoio sob a forma da tecnologia que essa mesma ciência pro 18 Ética ii caderno de referência de conteúdo porcionou aos trágicos acontecimentos da Primeira Guerra Mun dial 19141918 à preparação do advento da Segunda Guerra Mundial 19391945 vamos encontrar filosofias como as do alemão Edmund Husserl 18591939 e do francês Henri Bergson 18591941 ambos judeus que buscam estruturar um novo sa ber baseado não mais na razão teórica abstrata e geral mas na intuição e na compreensão Um novo paradigma de saber surge o paradigma da compreensão compreender não é conhecer conhecer é estabelecer causas e buscar resultados compreender é captar razões senti dos direções modos de ver modos de ser singularidades Sobre a ciência diz Husserl 1976 p 10 tradução nossa Nessa nossa vida infeliz ouvimos em todo lugar que essa ciência nada tem a nos dizer As questões que ela exclui por princípio são precisamente as questões mais importantes desta nossa época infeliz para uma humanidade abandonada aos transtor nos do destino são as questões que dizem respeito ao sentido ou à ausência de sentido de toda esta existência humana Para Husserl 1976 fazse urgente e necessária uma re formulação da ideia de ciência Propõe superar o universalismo abstrato do saber científico apresentando um novo modelo de ciência o qual denominou de método fenomenológico cuja meta é buscar o fundamento originário do sentido das coisas dos comportamentos e situações não por meio de conceitos e teorias mas daquilo que nelas se mostra em pessoa os fenô menos do grego phainomenon o que se mostra a razão teó ricotécnica e uma metafísica subordinada ao naturalismo levam a humanidade em direção a um vazio ético 19 Ética ii caderno de referência de conteúdo Por sua vez na França o filósofo Henri Bergson afirma que a ciência ocultaria o vivido pois fruto da inteligência com sua abordagem matemática vê o mundo à maneira de um mecanis mo que dá a ilusão de movimento a partir de instantâneos como acontece em uma fita cinematográfica A inteligência base da ciência pensa o tempo à maneira do espaço tempo de relógio e cai assim em um determinismo universal A intuição de acordo com Bergson diferentemente da in teligência propicia uma abordagem qualitativa do mundo uma vez que graças a ela temos acesso à compreensão da vida ao sentimento de liberdade e à dimensão das possibilidades no que diz respeito tanto às ações quanto aos comportamentos É den tro desse contexto que o filósofo francês distingue as duas for mas de moral a moral fechada e a moral aberta de que falamos anteriormente a moral aberta como foi visto define o ético na medida em que corresponde à busca do caráter da situação conside rada agindo na justa medida visando dar o devido a algo ou alguém Será pois esta a orientação básica deste nosso estudo queremos acompanhar por meio das obras de alguns filósofos e pensadores representativos da Antiguidade grega até fins da Idade Média e do século 15 até fins do século 19 o desenvol vimento do pensamento ocidental em direção a um saberco nhecimento cada vez mais dominante e a um fortalecimento da questão moral em detrimento da questão propriamente ética que no entanto permanece timidamente como pano de fundo suscitando às vezes reações conflitantes 20 Ética ii caderno de referência de conteúdo Glossário de Conceitos O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá pida e precisa das definições conceituais possibilitandolhe um bom domínio dos termos técnicocientíficos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados em Ética II Veja a seguir a definição dos principais conceitos 1 Ágape Transliteração da palavra grega comumente traduzida em português por aMor Ágape como uma preocupação ética reflete seu cognato hebraico hesed no sentido de que representa o valor de auto negação própria da benevolência como modo como se reflete no amor de deus pela criação GrenZ sMiTh 2005 p 9 É distinto de Eros que representa o amor do desejo de união e de posse Deve ser compreendi do como o amor que abre para diferente do amor que atrai para É portanto doação caridade 2 Angústia ética Um sentimento de desespero origina do pela necessidade de tomar decisões éticas ou mo rais A angustia ética é um atributo necessário à for mação do CARáTER moral na SOCEIDADE ética Søren Kierkegaard afirmava que a angustia era uma das marcas da verdadeira liberdade de escolha GrenZ SMITH 2005 p 11 Heidegger que foi fortemente in fluenciado pelo existêncialismo de Kierkegaard vê na angustia uma das características essênciais do Seraí É porque o homem é finito e se angustia com a finitude das possibilidades de ser que ele se abre para a possi bilidade mais fundamental de superar a inautênticida de e fazer uma escolha autêntica Com isso ele pode cuidar de si cuidar do outro e cuidar do mundo 21 Ética ii caderno de referência de conteúdo 3 Autonomia literalmente lei de si mesmo ou au togoverno e portanto o exercício independente da VONTADE individual ou da comunidade levando a rei vindicações morais consideradas como sendo determi nadas pelo indivíduo GrenZ sMiTh 2005 p 45 a autonomia moral é a crença de que a orientação mo ral é interior vindo à luz a partir da ação de um prin cípio que habita o agente moral individual GrenZ SMITH 2005 p 15 4 Bom bem bondade em sua forma de adjetivo e como um termo ético bom significa basicamente algo de excelência moral A bondade por sua vez sig nifica o estado ou a qualidade de ser bom A natureza dessa excelência moral contudo foi uma das questões centrais exploradas pelos eticistas em toda a história Enquanto o centro do debate na tradição filosófica gre ga envolveu o problema do que constitui um homem bom a perspectiva bíblica começa com a excelência moral de deus GrenZ sMiTh 2005 p 1920 o bom na modernidade pode se referir a uma qualidade mais mecânica de adequação a um sistema matemáti co A influência da Matemática será sentida mesmo na Ética com Spinoza 5 Justiça em geral a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem Podese distinguir dois significados principais 1º Justiça como conformidade da conduta a uma norma 2º como efi ciência de uma norma ou de um sistema de normas entendendose eficiência de uma norma uma certa ca pacidade de possibilitar as relações entre os homens No primeiro significado esse conceito é empregado 22 Ética ii caderno de referência de conteúdo para julgar o comportamento humano ou a pessoa hu mana esta última com base em seu comportamen to No segundo significado é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento A problemática histórica dos dois conceitos ainda que freqüentemente interligada e confundida é completa mente diferente 1º Justiça é a conformidade de um comportamen to a uma norma Esta pode ser de fato a norma natural a norma divina ou a norma positiva Aristóte les diz Uma vez que o transgressor da lei é injusto en quanto é justo quem se conforma à lei é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo de fato as coisas estabelecidas pelo poder legis lativo conformamse à lei e dizemos que cada uma de las é justa Et nic V 1 1129 b 11 segundo Aris tóteles a Justiça é a virtude integral e perfeita integral porque compreende todas as outras perfeita porque quem a possui pode utilizála não só em relação a si mesmo mas também em relação aos outros 2º No segundo conceito a Justiça não se refere ao comportamento ou à pessoa mas à norma expressa a eficiência da norma sua capacidade de possibilitar as relações humanas Neste caso obviamente o objeto do juízo é a própria norma e desse ponto de vista as diferentes teorias da Justiça são os diferentes concei tos de fim em relação ao qual se pretende medir a efi ciência da norma como regra para o comportamento intersubjetivo Platão foi o primeiro a insistir na Justi ça como instrumento Sócrates pergunta a Trasímaco Acreditas por acaso que uma cidade um exército um 23 Ética ii caderno de referência de conteúdo grupo de bandidos ou de ladrões ou qualquer outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto poderia chegar a fazer alguma coisa se os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros Não de certo respondeu Trasí maco E se não cometessem injustiça não seria me lhor Seguramente A razão disso Trasímaco é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens enquanto a Justiça produz acordo e amizade Rep 351 cd aBBaGnano 2007 p 682683 6 Liberdade esse termo tem três significados funda mentais correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizados da seguinte maneira 1ª como au toterminação ou como autocausalidade segundo a qual a Liberdade é ausência de condições e limites 2ª Liberdade como necessidade a autodeterminação mas atribuindoa à totalidade a que o homem perten ce Mundo Substância Estado 3ª Liberdade como possibilidade ou escolha segundo a qual a Liberdade é limitada e condicionada isto é finita Não constituem conceitos diferentes as formas que a Liberdade assu me nos vários campos como por exemplo Liberdade metafísica Liberdade moral Liberdade política Liber dade econômica etc As disputas metafísicas morais políticas econômicas etc em torno da Liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão aos quais portanto podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam ABBAGNANO 2007 p 699 24 Ética ii caderno de referência de conteúdo 7 Moral e Ética nesta obra a moral será tomada como o conjunto de normas e costumes que regulamentam as relações humanas de certa comunidade Nesse senti do pode haver muitas morais há uma moral aristocra ta uma moral cristã uma moral judaica etc Já no caso da Ética procurase aquilo que deve preceder toda e qualquer moral A vida é um valor ético já a pena de morte ou o aborto são decisões de uma determinada moral A moral geralmente se aplica de maneira ge neralizada a todos os indivíduos de uma sociedade A Ética tem de levar em conta a singularidade de cada ato ou dado Nesse sentido o advogado de defesa e o promotor de justiça apreciam o processo de acordo com as normas e costumes de uma sociedade Já o juiz tem de analisar o caso singular irrepetível de cada ação particular O advogado e o promotor cuidam da moral o juiz da Ética Portanto a Ética cuida do ser enquanto a moral da obrigação A moral é cultural a Ética é ontológica e pode ser metafísica A moral cuida do universal enquanto geral em relação ao particular a Ética do singular em relação ao universal Para me lhor compreender a distinção lembremos a passagem bíblica em que Jesus é convidado a decidir se Maria Madalena será ou não apedrejada Segundo a Lei e os Costumes do povo ela deveria ser condenada ao ape drejamento Os acusadores falam em nome da moral mas Jesus não a julga de acordo com a moral mas com a Ética e procura compreender a situação em si mes ma Preservando a vida como valor ele contrapõe va lores éticos a valores morais 25 Ética ii caderno de referência de conteúdo Glossário por autores Hobbes 1 Noção de direito é a liberdade de fazer o que não for impedido por obstáculos exteriores Todos têm um di reto natural a tudo o que for necessário para a conser vação de suas vidas O contrato consiste em transferir esse direito ao Soberano de acordo com o que pres creve a lei natural 2 Noção de Estado o estado é uma pessoa civil um produto do artifício humano segundo o mecanismo contratual O pacto social transforma a multidão dos homens em um corpo do Estado O Estado represen ta cada um de nós decide age por cada um de nós e devemos nos reconhecer como autores de tudo o que ele faz 3 Noção de estado de natureza a expressão estado de natureza designa a situação dos homens na ausência do estado isto é uma situação de guerra de uns con tra os outros 4 Guerra a guerra não consiste unicamente no fato de se bater Basta haver disposição para o combate reco nhecida durante um certo período sem que seja pos sível o contrário para se ter uma situação de guerra É nesse sentido que o estado de natureza pode ser cha mado de um estado de guerra 5 Liberdade é a ausência de obstáculos exteriores No estado de natureza a liberdade de cada um se confun de com seu direito natural As diversas liberdades se entrechocam e se paralisam Com o Estado os homens 26 Ética ii caderno de referência de conteúdo permanecem livres naqueles domínios sobre os quais a lei civil não se pronuncia uma vez que a lei não pode abarcar todos os aspectos da vida Domínios como o da opinião íntima o da vida familiar e o de uma grande parte da vida econômica 6 Lei a lei se opõe ao direito pelo fato de obrigar A lei da natureza é um imperativo ditado pela razão obriga o homem a buscar a paz Tal imperativo só pode ser realizado graças ao contrato É pois a lei natural que nos ordena a obedecer às leis civis 7 Marca marks marcas são símbolos que permitem ao homem e somente a ele dominar o tempo lembrando o passado e tornando possível uma verdadeira ante cipação do futuro os nomes são marcas arbitrárias por meio das quais notamos nossos pensamentos e graças às quais podemos calcular suas consequências A linguagem humana é assim a fonte e o fundamento dos artifícios políticos contrato Estado 8 Soberano é o que é supremo e não passível de ser limitado por outra coisa É o ser supremo advindo do contrato é um absoluto inviolável Descartes 1 Generosidade a verdadeira generosidade implica um conhecimento justo de si mesmo da própria liberda de da disposição em utilizar o poder de julgar o que é melhor Só será possível se saber responsável de si mesmo se o espírito se conhecer como espírito no cogito 27 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Moral de provisão é aquela especulação que nos con cede tempo suficiente para duvidar antes de encontrar a certeza quando a ação exige uma solução que não pode esperar Na ausência de princípios definitivos temos que adotar as máximas que nos permitem nos conduzir de maneira resoluta isto é sem nos deixar dominar pelos acontecimentos seguindo os costumes os mais moderados primeira máxima permanecen do constantes no que decidimos segunda máxima e sabendo encontrar alegria naquilo que depende de nós terceira máxima Spinoza 1 Adequado uma ideia adequada é uma verdadeira ideia porque é conforme o seu objeto isto é nos traz integralmente seu objeto de maneira que passamos a conhecêlo como Deus o conhece 2 Afecção ao nível psicológico a afecção é o sentimen to daquilo que favorece ou prejudica a nossa potência de ser Ao nível do corpo é o que aumenta ou diminui o seu poder de agir Quando a afecção é conhecida de maneira inadequada é uma paixão que nos submete aos acontecimentos do mundo 3 Amor o amor é uma alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior Quando conhecido inadequa damente o amor é uma paixão pois na paixão fica mos completamente submetidos a esta causa exte rior o amor nos permite igualmente compreender o amor de Deus reconhecendo sua presença em toda 28 Ética ii caderno de referência de conteúdo causa exterior reconhecendo a presença de deus em toda alegria 4 Atributo tradicionalmente entendese por atributo aquilo pelo qual uma substância pode ser conhecida Esta definição supõe uma dimensão íntima oculta não passível de conhecimento da substância em si mesma Spinoza rompe radicalmente com esta suposição Diz ele Por atributo entendo o que o entendimento per cebe da substância como constituindo sua essência o que significa que o entendimento percebe a substân cia como ela é na realidade Se nosso conhecimento de Deus não é completo pois conhecemos apenas dois de seus atributos o Pensamento e a Extensão tal co nhecimento no entanto é perfeito não há lugar para uma qualidade oculta 5 Causa é preciso distinguir a causa imanente que pro duz seu efeito em si mesmo da causa transitiva que produz seu efeito fora de si mesmo A Proposição 18 do livro i da Ética estabelece que deus é causa imanente mas não transitiva de todas as coisas desta distinção advém outra Deus é causa da essência das coisas na eternidade e de sua existência no tempo Neste sen tido as coisas são causas físicas produzindose umas às outras Cada existência singular é desta maneira submetida a uma dupla determinação é produzida por Deus sob a condição de ser determinada por outra existência singular que por sua vez é determinada por outra e assim até o infinito Ética I Proposição 28 6 Ciência intuitiva a ciência intuitiva conhecimento do terceiro gênero provem da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus ao conhecimento 29 Ética ii caderno de referência de conteúdo adequado da essência das coisas Ética II Proposição 40 Comentário II Tratase para a alma individual de conhecer o processamento de sua essência a partir de Deus e não de se fundir com o infinito em uma espé cie de intuição inefável Este conhecimento não pode se realizar senão através das demonstrações cuja geome tria graças ao seu método genético fornece o modelo a Ética demonstrada pela ordem geométrica se situa ao nível do conhecimento do terceiro gênero 7 Essência há em Deus fora de meu pensamento uma essência eterna do meu corpo distinta de sua exis tência assim como há uma essência eterna de minha alma precedendo sua existência 8 Ideias Gerais é preciso distinguir as ideias gerais ho mem ser coisa das noções comuns a exten são o movimento o repouso o caráter univer sal das noções comuns nos permite pensar a riqueza do particular pois o que é comum a todas as coisas se encontra paralelamente na parte e no todo Ética II Proposição 37 Ao mesmo tempo o conhecimen to das noções comuns segundo gênero é adequado pois é idêntico em nós e em deus o caráter univer sal das ideias gerais não provêm senão de sua confu são o corpo humano sendo limitado não pode formar senão um certo número de imagens a cada vez se este número for ultrapassado as imagens se confundem e a alma imagina sem nenhuma distinção 9 Liberdade Spinoza distingue uma falsa ideia de li berdade que seria a ausência de necessidade de uma verdadeira ideia de liberdade que seria a ausência de constrangimento A primeira é pura ilusão não se apli 30 Ética ii caderno de referência de conteúdo ca a nada de real e é prova de nossa ignorância isto é de nossa servidão A segunda se aplica a todo ser que existe e age somente segundo a necessidade de sua natureza sem sofrer necessariamente uma ação exterior Somente Deus é livre por natureza O homem pode se liberar através do conhecimento do segundo gênero que lhe permite realizar sua ação segundo a necessidade das coisas e também pelo conhecimento do terceiro gênero que lhe permite viver interiormen te o ato pelo qual Deus o criou para a eternidade 10 Modo contrariamente ao uso tradicional de Aristó teles até descartes spinoza não vê o modo como uma maneira de ser da substância mas como uma coi sa real um efeito da substância Chama as coisas reais modos porque estas coisas existem na substância sendo esta sua causa imanente 11 Superstição noção central do Tratado teológico po lítico a superstição é a paixão de um espírito escravo das oscilações entre a esperança e o medo Em relação à ilusão que nos apresenta deuses dirigindo a Natureza a superstição representa um grau superior da alienação Locke 1 Confiança trust a autoridade do poder político não se baseia nem em um direito divino nem em um poder natural mas no consentimento do povo O contrato social expressão desse consentimento é ao mesmo tempo um ato de confiança que os governados atri buem a seus governantes após o seu consentimento à sociedade civil 31 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Propriedade property no vocabulário de Locke a palavra propriedade não designa estritamente a pos se de bens materiais mas tudo o que é próprio de cada um ou seja sua vida sua liberdade tudo o que cada um conseguiu com seu trabalho e que por isso torna se sua propriedade legítima 3 Resistência Locke se opõe radicalmente a Hobbes ad mitindo o direito de resistência a opressão Não se trata do direito de destruir o governo o governo destrói a si mesmo quando trai sua missão e é essa autodestruição que legitima a oposição do povo Não se trata também de um direito à ação terrorista o direito à resistência não pertence aos indivíduos enquanto tais mas ao povo soberano ao qual compete julgar se o governo eleito por ele preenche corretamente sua missão Hume 1 Natureza humana enquanto natureza a natureza humana obedece a leis constantes a exemplo dos fe nômenos climáticos as variações históricas e geográfi cas não impedem que haja uma natureza humana uni forme no tempo e no espaço Pode se ver na natureza humana uma parte da natureza em geral mas é mais pertinente do ponto de vista filosófico considerar a natureza humana como o centro uma vez que as di ferentes ciências resultam do jogo das inclinações hu manas devendo ser a ciência dessas inclinações uma ciência central Essa ciência do homem como ciência central é o projeto inicial de Hume 32 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Senso moral a ideia de senso moral tinha um pa pel fundamental no pensamento de alguns moralistas ingleses e escoceses dentre os quais o mais impor tante foi Francis Hutcheson 16941747 Segundo es ses moralistas o ser humano teria uma faculdade de percepção moral semelhante às nossas faculdades de percepção sensorial Em nome dessa faculdade ime diata e desinteressada que nos permitiria reconhecer o bem e o mal rejeitavam a doutrina do egoísmo cal culador encontrada em Hobbes e Mandeville Bernard de Mandeville 16701733 tudo o que o homem faz pelo outro o faz calculando benefícios para si mesmo retomando a expressão senso moral hume lhe con fere uma dimensão bem maior Para ele o senso moral testemunha a impotência de nossa razão que jamais será capaz de nos dizer o que é o bem e o que é o mal 3 Simpatia a simpatia não é uma paixão específica mas o princípio da comunicação das paixões É graças a ela por exemplo que penetramos os sentimentos dos ri cos e dos pobres participamos do prazer de alguns e do aborrecimento de outros o que nos leva pretende Hume a respeitar o poder dos ricos e a desprezar a mediocridade dos pobres A simpatia torna possíveis a compaixão e a benevolência e não se limita a isso Ela me permite julgar a conduta moral do outro em virtu de dessa capacidade que ela me dá de me identificar com os outros É porém limitada no que concerne observa Hume ao julgamento do que é justo e do que é injusto 33 Ética ii caderno de referência de conteúdo Kant 1 A priori é o que não provem da experiência que dela é absolutamente independente Opõese pois ao empírico ou ao que vem da experiência o a posteriori enquanto a experiência só pode nos oferecer generalidades e contingência o a priori caracterizase pela universalidade e pela necessidade 2 Coisaemsi é o ente enquanto existe independente mente de nosso conhecimento kant denomina a coisa emsi de noumeno ou númeno do grego noúmenon em oposição ao fenômeno o númeno é o objeto do entendimento O fenômeno é objeto dos sentidos O nú meno não pode ser dado a uma intuição sensível porque se encontra fora dos limites da experiência possível por tanto pode ser pensado mas não pode ser conhecido isto é determinado em sua essência O númeno ou a coi saemsi é causa da representação ou fenômeno não no sentido de lhe ser exterior mas de estar nele presente constituindoo Ao nível da sensibilidade designa o que há de conceitual a existência Do ponto de visa do enten dimento a coisaemsi é o objeto pensado Corresponde ao conhecimento do fenômeno que teria o entendimen to divino que não podemos conhecer mas que podemos pensar 3 Entendimento faculdade dos conceitos Kant distin gue os conceitos empíricos os aspectos comuns a um grupo de objetos dos conceitos puros e a priori que definem a objetividade os aspectos comuns a todos os objetos isto é as regras de acordo com as quais devemos associar os dados dos sentidos para construí los como objetos O entendimento é uma faculdade 34 Ética ii caderno de referência de conteúdo ativa um poder de síntese porém um poder puramen te formal ou seja não produz de si mesmo nenhum conteúdo e pode funcionar perfeitamente na ausência dos dados da sensibilidade 4 Razão a noção de razão em Kant apresenta várias nuan ces mas em essência podemos dizer que é o poder de síntese do entendimento fora de todo dado sensível produzindo os conceitos racionais ou ideias o eu o mun do Deus manifestando assim a pretensão a um tipo de conhecimento puramente inteligível não sensível 5 Representação estado de consciência no qual encon tramonos em relação com algo que tornamos presen te a nós mesmos e que pensamos espontaneamente como existente 6 Sensibilidade é uma faculdade passiva e receptiva pela qual algo nos é dado não produzido por nós É a marca da finitude humana 7 Transcendental em Kant é o a priori enquanto o que delineia a forma da objetividade ou ainda é o conjunto das condições das possibilidades dos objetos enquanto objetos Opõese evidentemente ao empírico porém sobretudo ao transcendente o que está fora dos limi tes da experiência com o qual não deve ser confundido Nietzsche 1 Ativoreativo ativo é o que se afirma sem se opor sem negar sem destruir o que quer que seja reativo ao contrário é o que só se coloca opondose negando alguma coisa A criação artística manifesta a ativida de enquanto aberta à multiplicidade das forças vitais 35 Ética ii caderno de referência de conteúdo enquanto as pesquisas do cientista ou do filósofo são reativas na medida em que rejeitam o erro e portan to negam uma parte da vida 2 Genealogia crítica que consiste a considerar todo jul gamento moral científico filosófico etc como uma avaliação referente a um estado de relação entre as forças ativas e reativas isto é referente a um estado da vontade A prática genealógica desvela por trás de cada julgamento uma interpretação que conseguiu se impor recuperando a sua gênese 3 Niilismo segundo Nietzsche toda posição que nega a vida Tudo que é reativo é niilista por exemplo a vontade de verdade que exclui o erro Querer o verdadeiro é querer a morte Toda a filosofia a partir de Platão é niilista pois tal filosofia postulou constantemente valores superiores à vida as ideias o bem o verdadeiro etc Em um sentido mais específico o niilismo é também em Nietzsche o pen samento moderno advindo da Renascença e que atinge seu ponto culminante no século das Luzes porque em bora tal pensamento tenha combatido os valores superio res a morte de deus por ele decretada aconteceu por vingança e ressentimento ou seja de maneira reativa A vida com o pensamento moderno não foi enriquecida reencontramonos sós em um mundo sem valores e sem meta 4 Sintoma essa noção faz parte do arsenal genealógi co de Nietzsche e significa que todo julgamento é uma avaliação referente ao estado da vontade que o susten ta Em outras palavras tratase de uma manifestação de certa relação entre forças ativas e reativas Não tem o sentido da concepção médica clássica aproximase 36 Ética ii caderno de referência de conteúdo do sentido freudiano de um significante que não se re fere a nenhum significado fixo 5 Vida é o conjunto das forças ativas e reativas que lu tam entre si A vida é multiplicidade diferenciação perpétua e se opõe à identidade e à estabilidade 6 Vontade de poder é o fundamento da vida e de toda rea lidade Sendo a vida um jogo de forças sua tendência mais profunda é essa pressão permanente para obter sempre mais poder intensificando as forças que a constituem Observação as informações constituintes deste Glossário por autor foram obtidas do Glossaires par auteurs da obra Les temps des philosophes ROUXLANIER 1995 Esquema dos Conceitoschave Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo apresentamos a seguir Figura 1 um Esquema dos Conceitoschave da obra O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema de conceitoschave ou até mesmo o seu mapa mental Esse exercício é uma forma de você construir o seu conhecimento ressignificando as informações a partir de suas próprias percepções É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitoschave é representar de maneira gráfica as relações entre os conceitos por meio de palavraschave partindo dos mais com plexos para os mais simples Esse recurso pode auxiliar você na or denação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino Com base na teoria de aprendizagem significativa entende se que por meio da organização das ideias e dos princípios em 37 Ética ii caderno de referência de conteúdo esquemas e mapas mentais o indivíduo pode construir o seu co nhecimento de maneira mais produtiva e obter assim ganhos pe dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendizagem Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem esco lar tais como planejamentos de currículo sistemas e pesquisas em Educação o Esquema dos Conceitoschave baseiase ainda na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel que estabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de pro posições na estrutura cognitiva do aluno Assim novas ideias e infor mações são aprendidas uma vez que existem pontos de ancoragem Temse de destacar que aprendizagem não significa ape nas realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno é preci so sobretudo estabelecer modificações para que ela se configu re como uma aprendizagem significativa Para isso é importante considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os ma teriais de aprendizagem Além disso as novas ideias e os novos conceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno uma vez que ao fixar esses conceitos nas suas já existentes es truturas cognitivas outros serão também relembrados Nessa perspectiva partindose do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimen to por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas e externas o Esquema dos Conceitoschave tem por objetivo tornar significativa a sua aprendizagem transformando o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular ou seja estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo adaptado do site disponível em httppenta2ufrgs bredutoolsmapasconceituaisutilizamapasconceituaishtml Acesso em 11 mar 2010 38 Ética ii caderno de referência de conteúdo ÉTICA ETHOS e longo Princípios e Razões criados pelo sujeito Surge da reflexão interna do sujeito Impõese ao sujeito pela sua própria vontade e consciência ETHOS e breve MORAL Transmitido pelas gerações Estabelecidos no seio de uma sociedade Surgem do ambiente exterior ao indivíduo MORAL ABERTA BERGSON Religião Dinâmica Criatividade e Progresso Liberdade e Possibilidades MORAL FECHADA BERGSON Religião Estática Coesão Social Rigidez de Regras Obediência Estrita MODELOS ÉTICOS Renascentistas Modernos e Contemporâneos TEOLÓGICOS Julga a ação através de metas ou finalidades externas Consequência Ex Jeremy Bentham DEONTOLÓGICOS Baseiase na premissa da existência de deveres morais Ex Kant Descartes Thomas Hobbes Locke etc RELATIVISMOSUBJETIVISMO Nega que haja qualquer direito moral teoria padrão ao valor ético exclusivo Ex Michel de Montaigne Nietzsche Hume etc NICOLAU MACHIAVEL Cisão entre a dimensão ética e a dimensão política O fundamento ético ou a morada interior é abandonado Figura 1 Esquema dos Conceitoschave da obra Ética II Desenhar esquema 39 Ética ii caderno de referência de conteúdo Questões Autoavaliativas No final de cada unidade você encontrará algumas ques tões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados as quais podem ser de múltipla escolha abertas objetivas ou abertas dissertativas Responder discutir e comentar essas questões bem como relacionálas com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento Assim mediante a resolução de questões pertinentes ao assunto tratado você es tará se preparando para a avaliação final que será dissertativa Além disso essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua práti ca profissional Você encontrará ainda no final de cada unidade um gabarito que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões autoavaliativas de múltipla escolha As questões de múltipla escolha são as que têm como res posta apenas uma alternativa correta Por sua vez entendemse por questões abertas objetivas as que se referem aos conteú dos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determi nada inalterada Já as questões abertas dissertativas obtêm por resposta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado por isso normalmente não há nada relacionado a elas no item Gabarito Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma Bibliografia Básica É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos mas não se prenda só a ela Consulte também as bi bliografias complementares 40 Ética ii caderno de referência de conteúdo Figuras ilustrações quadros Nesta obra instrucional as ilustrações fazem parte inte grante dos conteúdos ou seja elas não são meramente ilus trativas pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto Não deixe de observar a relação dessas figuras com os conteúdos da obra pois relacionar aquilo que está no campo vi sual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual Dicas motivacionais O estudo desta obra convida você a olhar de forma mais apurada a Educação como processo de emancipação do ser hu mano É importante que você se atente às explicações teóricas práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica ção bem como partilhe suas descobertas com seus colegas pois ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa permitese descobrir algo que ainda não se conhece aprenden do a ver e a notar o que não havia sido percebido antes Obser var é portanto uma capacidade que nos impele à maturidade Você como aluno do curso de Licenciatura em Filosofia na modalidade EaD necessita de uma formação conceitual sólida e consistente Para isso você contará com a ajuda do tutor a dis tância do tutor presencial e sobretudo da interação com seus colegas Sugerimos pois que organize bem o seu tempo e reali ze as atividades nas datas estipuladas É importante ainda que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações pois no futuro elas po derão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de pro duções científicas 41 Ética ii caderno de referência de conteúdo Leia os livros da bibliografia indicada para que você amplie seus horizontes teóricos Cotejeos com o material didático discu ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas No final de cada unidade você encontrará algumas ques tões autoavaliativas que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação Indague reflita conteste e construa resenhas pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadurecimento intelectual Lembrese de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar ou seja interagir procuran do sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a esta obra entre em contato com seu tutor Ele estará pronto para ajudar você 3 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed São Paulo Martins Fontes 2007 BARBOUR I G Issues in science and religion New York Harper Row 1971 BAUDRILLARD J La transparence du mal essais sur les phénomènes extremes Paris Galilée 1990 BERGSON H As duas fontes da moral e da religião Rio de Janeiro zahar 1978 FERREIRA A B H Miniaurélio o minidicionário da língua portuguesa 8 ed Curitiba Positivo 2010 GRENz S J SMITH J T Dicionário de Ética mais de 300 termos definidos de forma clara e concisa São Paulo Editora Vida 2005 HUSSERL E La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcendantale Paris Gallimard 1976 KEMP P Lirremplaçable une éthique de la technologie Paris Cerf 1997 42 Ética ii caderno de referência de conteúdo MORA J F Diccionario de Filosofia 7 ed Madrid Alianza 1990 ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 TUGENDHAT E Lições sobre a Ética Petrópolis Vozes 2000 43 UNIDADE 1 a cOncepçãO Ética dO RenaSciMentO 1 OBJETIVOS Conhecer e compreender as características fundamen tais do pensamento filosófico da Renascença a partir das mudanças relacionadas a uma visão do mundo e do homem Conhecer as concepções sobre o ético e o moral de al guns importantes e representativos pensadores da épo ca renascentista 2 CONTEÚDOS Giovanni Pico della Mirandola Nicolau Machiavel Paracelso Michel de Montaigne 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 44 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 1 Antes de iniciar os estudos desta unidade para mer gulhar na atmosfera da Renascença seria interessante que você assistisse a filmes como Da Vinci e a Renascença 1987 Encyclopaedia Bri tannica são dois filmes Leonardo da Vinci e O es pírito da Renascença O homem que não vendeu a alma de 1966 com direção de Fred zinnemann O filme trata sobre a vida de Thomas More ou Morus mostrando o im pério das ideias humanistas e ao mesmo tempo a resistência às reformas protestantes Giordano Bruno de 1973 com direção de Giuliano Montaldo Discute a tese de um universo infinito contrariando a concepção aristotélica da finitude do universo e a concepção de que o homem e a terra não são o centro do universo O mercador de Veneza de 2004 com direção de Michael Radford Adaptação da peça homônima de William Shakespeare Lutero Luther no original de 2003 com direção de Eric Till Documentários da BBC sobre Isaac Newton e outros filósofos 2 Hermetismo nesta unidade significará doutrina esoté rica baseada nos escritos da época grecoromana que se considerava de inspiração do deus Hermes Trime gisto personagem mítico da Antiguidade Hermes é o deus grego mensageiro dos deuses denominado pelos romanos de Mercúrio e pelos egípcios de Thot a quem se atribui a inspiração para um conjunto de textos cha 45 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto mado Hermética constituído do Corpus Hermeticum e da Tábua Esmeralda O Corpus Hermeticum consiste em tratados místicofilosóficos em grego datando do perío do helenista período que vai da conquista por Alexan dre o Grande de uma parte do mundo mediterrâneo e da ásia até a dominação romana A Tábua Esmeralda é um texto da literatura alquímica prática da transmuta ção dos metais e de uma medicina universal panaceia nome que vem da deusa grega Panaceia que trazia aos homens remédios originários de plantas composto de uma dúzia de fórmulas obscuras e alegóricas que permitem expressar um ou mais sentidos além do li teral como na fábula e na parábola Nela se encontra a famosa correspondência entre o macrocosmo visão do universo como um todo cujas partes estão em cor respondência visualização sob o modelo do organismo humano e o microcosmo o homem enquanto imagem reduzida do mundo daí a célebre frase o que está em cima é igual ao que está em baixo e o que está em baixo é igual ao que está em cima 4 INTRODUÇÃO Iniciaremos o estudo desta unidade com um texto sobre o Renascimento de Marilena Chauí 2015 intitulado Filosofia moderna o historiador das idéias e das instituições européias Michel Foucault no livro As Palavras e as Coisas Les Mots et les Choses considera o Renascimento um período em que os conhecimen tos são regulados por um conceito fundamental o conceito de Semelhança graças ao qual são pensadas as relações entre se res que constituem toda a realidade motivo pelo qual ciências 46 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto como a medicina e a astronomia disciplinas como a retórica e a história teorias sobre a natureza humana a sociedade a política e a teologia empregam conceitos como os de simpatia e antipa tia nas doenças e nos movimentos dos astros de imitação ou emulação entre os seres humanos entre as coisas vivas entre humanos e coisas entre o visível e o invisível como no caso da alquimia conceitos que nada têm a ver com a magia como su perstição mas com a magia como forma de revelação do oculto pelos poderes da mente humana isto é a Semelhança define um certo tipo de saber e um certo tipo de poder Também é central o conceito de amizade como atração natural e espontânea dos iguais animais humanos e que serve de referência para pensar se a figura do tirano como inimigo do povo e criador de reinos regulados pela inimizade recíproca forma de compreender as divisões sociais e os conflitos entre poder e sociedade A Natureza é pensada como um grande Todo Vivente interna mente articulado e relacionado pelas formas variadas da Se melhança indo dos minerais escondidos no fundo da terra ao brilho dos astros no firmamento das coisas aos homens dos homens a Deus Estamos assim diante de um naturalismo em que todo ser inclusive o ser humano age à luz de princípios naturais e não sob o império da divindade Por sua vez pela noção de semelhança dáse igualmente a busca do conhecimento caracterizando uma racionalidade que se manifesta predominantemente à maneira de uma razão subje tiva a razão daquele que contempla e observa Uma racionalidade que baseandose na noção de semelhança descreve e interpre ta assumindo por vezes a dimensão de uma visão mágica das coisas a criação de obras pelo simples prazer de criação do belo e da beleza O resultado é uma época de grandes artistas pintores arquitetos como Leonardo da Vinci Rafael Michelangelo e outros 47 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Desse modo um antropocentrismo e um humanismo se impõem O mundo passa a ser visto a partir do humano Tudo pode ser explicado pela razão humana tudo pode ser criado por mãos humanas daí o desenvolvimento de técnicas Mas certo vínculo se mantém com a visão do homem me dieval salvaguardase a fé isto é para a mente renascentista tudo pode ser explicado pela razão humana porém alcançado pela fé Não há dessa maneira um rompimento total com a tra dição medieval embora dela se diferencie essencialmente na medida em que se busca ao contrário daquela uma aproxima ção da Natureza com o Divino É dentro de um tal contexto que a dimensão moral do ca ráter racional e passional da alma humana se torna um dos prin cipais temas de reflexão É o que veremos ao trabalhar o pensamento de quatro re presentantes desta visão renascentista Giovanni Pico della Mirandola Nicolau Machiavel Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim Paracelso Michel de Montaigne Seguiremos uma ordem cronológica baseada nas datas de nascimento desses pensadores 5 Giovanni Pico della Mirandola 14631494 O italiano Giovanni Pico della Mirandola foi discípulo de Marsílio Ficino 14331599 e de seu círculo neoplatônico na Academia de Florença Itália O neoplatonismo revivido na Re 48 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto nascença italiana por entre outros Marsílio Ficino é uma cor rente de pensamento iniciada no século 3º da nossa era por Plotino 205270 dC grande filósofo grego de Alexandria Ba seada em princípio nos ensinamentos de Platão dos quais se diferencia bastante foi reintroduzida no Ocidente por Plethon 13551452 um dos grandes pensadores de seu tempo que por sua vez dizia ter recebido os ensinamentos de Amônio Sa cas 175242 renomado filósofo grego de Alexandria Segundo o neoplatonismo o Uno referese a Deus que é indivisível e do Uno emanou uma sequência de seres menores Os neoplatôni cos não acreditavam na existência do mal que para eles seria a imperfeição Veremos essa ideia permear todo o pensamento de Pico della Mirandola na medida em que funda toda ética e moral na busca da perfeição Pico della Mirandola define o homem como meio de equi líbrio de todas as coisas criadas pela força do espírito e do inte lecto é o homem capaz de unir e harmonizar os elementos da natureza Apesar de ter falecido aos 31 anos de idade Pico della Mi randola é um dos representantes mais significativos dessa visão que coloca o homem como o centro do universo Ao lado do papel preponderante do homem na Criação Divina e sua con sequente miséria com a queda advinda do pecado original tão lembrada e descrita na visão religiosa há que se enfatizar segundo ele a dignidade que advém ao homem com o exercício da liberdade Esforçavase Pico della Mirandola por estabelecer uma nova fé cristã fundamentada no desenvolvimento das capacida des humanas por meio de uma excelente formação intelectual pelo estudo de correntes as mais diversas e mesmo opostas 49 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto O sincretismo tendência a reunir doutrinas ou teorias diversas ensinadas como verdadeiras seja por um autor seja por vários autores é uma das características de sua obra Propunhase a estudar um tema sob o maior número de pontos de vista ten tando chegar à visão ou ideia mais próxima possível da realidade observada Sendo por natureza um eclético busca em vários sistemas filosóficos e religiosos o que mais lhe parecia conter elementos interessantes para compor um único sistema de explicação da realidade observada Pico sintetizou as doutrinas filosóficas co nhecidas em sua época principalmente o platonismo os aristo telismos a escolástica os escritos hebraicos e talmúdicos textos fundamentais do judaísmo rabínico estruturados nos séculos 2º e 6º EC Era Cristã e reconhecidos como a norma do judaís mo assim como os textos do hermetismo do ponto de vista de uma Ética a obra de Giovanni Pico della Mirandola representa o que Henri Gouhier filósofo francês de inspiração cristã historiador de Filosofia e crítica dramática autor entre outras obras de LAntihumanisme du XVII siècle denominou de misticismo da nobreza humana Tratase de va lorizar o poder de escolha situado no íntimo de cada ser humano nisso consistindo sua dignidade somos dignos porque somos livres esse poder de escolha a liberdade seria uma potenciali dade do homem potencialidade que o liberta do dogma deter minista religioso ou astrológico a astrologia tinha grande auto ridade na época no que concerne à determinação do destino de cada indivíduo e que reduzia o homem a um mero instrumento de luta entre forças opostas O poder de escolher tornase um instrumento positivo de ação sobre a realidade O ser humano é um ser imperfeito mas cuja possibilidade de perfeição é ilimi 50 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tada podendo alcançar o grau de moralidade e intelectualidade que desejar Sensível para este humanista o amor fundamental na fé cristã possui capacidade de superar divergências e promover a har monia e a paz Giovanni é cônscio de que todo homem é um ser consciente dotado de valor inestimável e que é na dignidade que repousa a nobreza humana pois o que há de único nos se res humanos não é somente sua racionalidade Aristóteles ou sua imortalidade cristianismo mas a magnânima capacidade de autocriarse livremente podendo viraser sempre e muito mais do que já é por natureza FÉLIX 2015 Leiamos o texto a seguir extraído da obra de Giovanni Pico della Mirandola Da dignidade do homem escrito em 1486 Já Deus Pai e arquiteto supremo havia construído segundo as leis de uma sabedoria secreta esta morada do mundo que nós vemos augusto templo de sua divindade ele tinha ornado com espíritos a região supraceleste vivificado com almas eter nas os globos etéreos preenchido com uma multidão de seres de todo gênero as partes fétidas e impuras do mundo inferior Mas uma vez sua obra terminada o arquiteto desejava que houvesse alguém que pudesse avaliar o seu significado amar sua beleza admirar sua grandeza Do mesmo modo quando tudo estava terminado como atestam Moisés e Timeu pensou por último em criar o homem Ora não havia nos arquétipos nada com que criar uma nova raça nem nos tesouros o que ofe recer como herança ao novo filho nem havia no mundo inteiro o menor lugar onde o contemplador do universo pudesse se instalar Tudo estava já ocupado tudo havia sido distribuído às ordens superiores intermediárias e inferiores Finalmente o perfeito construtor decidiu que àquele que não podia rece ber nada de próprio seria comum tudo o que havia sido dado de particular a cada ser isoladamente Pegou pois o homem essa obra de imagem indistinta e tendo o colocado no meio do mundo dirigiulhe a palavra dizendo se não te demos adão um lugar determinado nem um aspecto que te seja próprio nem um dom particular é para que o lugar o aspecto os dons 51 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto que tu mesmo quiseres tu os tenha e possua de acordo com o teu desejo segundo a tua ideia Para os outros seres a na tureza deles definida é mantida presa a leis estabelecidas tu nenhuma lei te prende é a própria possibilidade de julgar que te conferi que te permitirá definir tua natureza Se te coloquei no mundo em posição intermediária é para que daí onde es tás possas examinar mais à vontade tudo o que se encontra no mundo ao teu redor Se nós não te fizemos nem celeste nem terrestre nem mortal nem imortal é para que dotado por as sim dizer do poder honorável de arbítrio possa te modelar e de elaborar a ti mesmo tu te dês a forma que preferires Tu poderás te degenerar em formas inferiores que são bestiais tu poderás por decisão de teu próprio espírito te regenerar em formas superiores que são divinas Ó suprema bondade de Deus o Pai suprema e admirável fe licidade do homem É te dado ter o que desejas ser o que quiseres Os animais no momento de seu nascimento tra zem com eles do ventre de sua mãe o que possuirão os espíritos superiores foram em sua totalidade ou quase des tinados a ser eternamente Mas ao homem ao nascer o Pai deu sementes de toda espécie e germes de todo tipo de vida Aqueles que cada um cultivar em si mesmo se desenvolve rão e frutificarão vegetativos o farão tornarse planta sen síveis farão dele um animal racionais o elevarão à altura da abóbada celeste intelectivos farão dele um anjo e um filho de Deus e se sem te contentar com o destino de nenhuma criatura reconhecete no centro de tua unidade formando com Deus um só espírito na solitária opacidade do Pai eleva do acima de todas as coisas tendo sobre todos a preponde rância Mirandola 1995 p 59 tradução nossa Temos de um lado o ideal almejado de chegar a uma ver dade geral via um conhecimento eclético de doutrinas filosóficas conhecidas e escritos hebraicos de outro lado há a preocupa ção em busca do caráter mais próprio e único do ser do humano e que seria a liberdade 52 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto A singularidade do humano o que o caracteriza e o torna único para Pico della Mirandola é a sua capacidade de agir li vremente Toda moralidade se fundaria nessa estrutura de liber dade as ações moralmente dignas devem ser essencialmente livres ações cujo dever é o de se aproximar da natureza celes tial caminhando em direção à intelectualidade e afastandose de toda sensualidade que aproxima dos animais 6 Machiavel 14691527 Outro importante pensador do Renascimento de interesse no que diz respeito ao ético particularmente na relação deste com a política foi sem dúvida Nicholas Machiavel Dele nos ocu paremos a seguir Nascido em Florença Nicholas Machiavel é conhecido so bretudo pela sua obra controvertida O príncipe Obra admirada por Napoleão e criticada por Descartes Diderot e outros Trata se de um manual dedicado aos príncipes para fortalecer e man ter seus poderes Florença cidade onde nasceu Machiavel fora libertada do governo da poderosa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia como República ao mesmo tempo democrática e teocrática sob a inspiração do monge dominicano Savanarole 14521498 Machiavel nascido de uma família da pequena burguesia eleito secretário da segunda chancelaria responsável pelas rela ções com o interior e com países estrangeiros com missões jun to a soberanos italianos e estrangeiros desenvolveu habilidades políticas Encarregado de organizar a defesa da cidade é vencido em 1512 Os espanhóis devastam a cidade e os Médicis retomam 53 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto o poder Machiavel é torturado e exilado Redige sua obra ini ciando por O Príncipe terminado em 1513 e só publicado em 1532 Escreveu também um importante comentário sobre a his tória romana intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio De volta a Florença em 1520 redige o Discurso sobre a língua comédias e obras históricas Como todo pensador de sua época Machiavel rompe com o poder da Igreja e em consequência com a tradição ética cristã trazida da Idade Média Voltase para os historiadores da Anti guidade e se impõe a tarefa de esclarecer de maneira rigorosa as práticas políticas de seu tempo Da mesma maneira que se procuram leis que dessem conta do comportamento da nature za Machiavel busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos Machiavel estuda o passado para compreender qual o ca minho para tomar o poder e mantêlo Mais precisamente quer encontrar as leis eternas da dominação dos homens pelos ho mens Pretende chegar ao conhecimento do sentido que funda a ação humana especialmente a ação política não baseada em uma visão mítica ou filosófica dos acontecimentos históricos e nem buscando dar conta das coisas pela ação de Deus ou da pro vidência divina Sua meta é prever os acontecimentos por meio da observação das ações humanas no presente particularmente das ações políticas Quanto ao comportamento ético em política ao observar os acontecimentos de sua época caracterizada pela ausência de um poder central e consequentemente por lutas constantes Machiavel conclui que a política não pode mais ser conduzida à luz de uma norma transcendente tal como o Bem dos filósofos e teólogos É necessário que a ação política seja prática em um 54 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto universo continuamente hostil Tratase de um mundo constituí do de indivíduos não éticos que julgam e decidem segundo seus desejos e necessidades imediatas Alguns autores observam que diferentemente de Aristó teles para quem a Ética e a política embora não se confundam são campos relacionados para Machiavel embora seja louvável exercer a política com integridade ética sempre que possível é preciso partir do princípio de que os homens são maus e de que a ação política só pode ser julgada por sua eficácia É a eficácia da ação política que permite aos homens uma coexistência ética O Estado é uma criação de alguns homens superiores e nenhuma ordem é possível senão pela coerção e pela força Enfim fundamentar a ação política por uma concepção fi losófica do dever ético é segundo Machiavel correr o risco de perder o que deve ser conservado o poder e com ele toda a possibilidade de governar A verdade em política é que para se atingir um bem como a paz e a prosperidade todo meio é legíti mo É o que o mundo real exige e o mundo segundo Machiavel é imutável A imutabilidade do mundo Em sua obra Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio Machiavel apresenta o mundo como imutável pois se o mundo não fosse constante não seria possível estabelecer suas leis Refletindo sobre o andamento das coisas humanas concluo que o mundo permanece na mesma situação através dos tem pos que há sempre a mesma quantidade de bem e de mal mas que este mal e este bem não fazem nada mais do que percorrer diferentes lugares diversos países 55 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Segundo o que conhecemos dos antigos impérios vimos todos se deteriorarem uns após os outros na medida em que seus costumes são modificados ou alterados Mas o mundo é sempre o mesmo MACHIAVEL 1995a p 177 tradução nossa As experiências do passado são assim válidas para o pre sente e para o futuro Ou seja embora os acontecimentos histó ricos se movimentem com rapidez diferente a história se repete e é sempre a mesma à semelhança do universo que é constante e sempre o mesmo apesar do fato de os corpos nele se movi mentarem em velocidades diferentes Em contrapartida as coisas humanas ao contrário do uni verso apresentam uma causalidade totalmente imprevisível É o que Machiavel denomina de Fortuna ou roda da fortuna O termo Fortuna tem uma origem míticofilosófica consistindo na personificação do acaso a ideia expressa por ele vem da deusa romana da sorte representando as coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos tanto na vida cotidiana quanto na Política Significa a impossibilidade de o homem dominar to talmente a história Porém como veremos no texto a seguir Ma chiavel considera que o homem tem possibilidade de até certo ponto e de uma certa maneira dominar o inevitável A mutabilidade dos negócios humanos Leiamos o trecho a seguir Sei que alguns pensaram e pensam que os negócios deste mun do são de tal maneira governados por Deus e pelo destino que os homens com toda a sua sabedoria não podem mudar e não encontram para isso remédio assim poderiam julgar que suar sangue e água para dominálos seria em vão em vez de se dei xar governar pelo destino Esse ponto de vista foi retomado em 56 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto nossa época por causa das grandes revoluções que se tem visto e que se veem todos os dias e que excedem toda conjectura por parte dos homens Se bem que algumas vezes eu mesmo pensando sobre isso me deixei levar em parte por essa visão No entanto nosso livre arbítrio não pode ser negado estimo que possa ser verdadeiro que a sorte seja a senhora de meta de de nossas obras mas que também ela nos deixa governar aproximadamente a outra metade Comparo o destino com um desses torrenciais que em sua cólera inundam as planícies ao redor destroem árvores e casas roubam a terra de um lado para levála para outro todos fogem diante deles todo mundo cede ao seu furor sem poder impedilos com diques e aterros mais elevados Apesar disso os homens em tempos amenos não deixam de ter a liberdade de construir diques e aterros de maneira que se o rio subir novamente suas águas desemboca rão em um canal ou sua fúria não será tão livre e tão destrui dora O mesmo acontece com a Fortuna que mostra seu poder onde não há construção que possa resistila e que ataca onde sabe que não há diques nem pontes para enfrentála MACHIA VEL 1995b p 177178 tradução nossa A necessidade leva a fins que a razão desconhece Esse fato explica os acidentes da história e sua aparência caótica Inimiga do homem de ação a Fortuna pode vir a ser um seu auxiliar com a condição de que ele saiba dominála por meio da política e nisto consiste a virtù ou seja na capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder Segundo Machiavel a tendência dos seres humanos é manter sempre a conduta que deu certo atitude que levaria à perda do poder Os grandes homens políticos que criam novas situações por sua virtù são os virtuosi Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos inspirandose no historiador grego Políbio 202120 aC e na República de Platão Segundo essa teoria existe um ci 57 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto clo determinado que se apresenta de maneira regular tornando possível a observação histórica O ciclo é o seguinte 1 O governo original é criado por vários homens de dife rentes procedências consistindo em um governo que é a monarquia 2 Não tarda tal governo entrar por sua vez em decadên cia degenerandose em tirania 3 Surge então um novo governo melhor a aristocracia 4 Este não demora a degenerarse em um governo oligárquico 5 A este sucede um governo democrático que também não tarda a cair na desordem anarquia 6 Nessa situação só um príncipe ou um monarca pode salvar o povo E o ciclo recomeça Para deixar o ciclo mais claro analisemos a Figura 1 a seguir Figura 1 Sucessão dos governos em Machiavel 58 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Considerações finais Sobre a questão de uma Ética em Machiavel diz o profes sor Renato Janine Ribeiro à Revista E A leitura dos textos de Maquiavel nos leva a perceber que ele não defendia a tese de que os fins justificam os meios e de que o mal deve ser praticado para conseguir um fim egoísta Ele se mostra preocupado com o fato de que na política não existem regras fixas governar isto é tomar a iniciativa política é um trabalho extremamente criativo e por isso mesmo sem parâ metros anteriores Assim essa preocupação do filósofo por curioso que pareça tornase um bom instrumento para repen sar a ética RIBEIRO 2015 Continuando Janine aproxima Machiavel de uma ética da responsabilidade classificação de Max Weber 18641920 so ciólogo e economista alemão Para falar de ética também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das duas éticas Weber depois da Primeira Guerra Mundial distingue a ética de princípios em que se apli cam valores já estabelecidos da ética da responsabilidade que é a ética do estadista Esta modalidade aponta para a necessi dade de pensar nos resultados possíveis de uma determinada ação De modo geral a ética da responsabilidade é uma reto mada de Maquiavel ela representa a interferência da política na ética Então o ponto interessante de Maquiavel e da questão ética está na maneira como nós a enxergamos sob a luz da política E hoje com o fim das garantias tradicionais para a ação do indiví duo privado estamos todos mais ou menos na posição do prín cipe de Maquiavel isto é num mundo de incertezas dentro do qual temos de inventar a melhor posição RIBEIRO 2015 A importância de Machiavel está sem dúvida nesse susci tar da reflexão sobre a Ética e sobre as dificuldades inerentes à 59 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tomada de decisões particularmente em campos especialmente móveis como a política ou hoje a tecnologia O filósofo francês Maurice MerleauPonty em sua obra intitulada Signos faz uma descrição fenomenológicoexistencial que visa compreender a obra de Machiavel dentro de seu con texto existencial Isso significa que MerleauPonty vê na obra de Machiavel um entendimento da política como algo eminente mente humano buscando a verdade dos acontecimentos des crevendoos segundo se apresentam no mundo real em sua ins tância de relação com o outro que seria um signo de valor na política parte da experiência de seu próprio tempo Assim por exemplo quando Machiavel escreve que o prín cipe deve ter as qualidades que ele aparenta estaria enunciando uma condição fundamental da política como ela era em seu tem po e continua a ser até os dias de hoje que é se desenrolar na aparência quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter do mínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser necessário isso significaria que no campo da política não há lugar para os valores de uma moral abstrata Enfim a verdade na política é aquela de quem tem o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros MerleauPonty vê na obra O Príncipe de Machiavel a des crição da política como ela tem sido e é através dos tempos e como vimos em tal política não há lugar para a Ética A questão que colocaríamos seria a seguinte É mesmo possível falar de uma Ética em Machiavel Responderíamos que a busca de Machiavel pela com preensão dos comportamentos sociais e políticos não tem como objetivo propriamente o caráter destes enquanto se mostram 60 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto em si mesmos mas sim enquanto se mostram à luz de uma meta geral a obtenção e a manutenção do poder político Uma visão ética é sempre uma visão concreta o que signifi ca uma visão completa tanto da morada interior ou seja tanto dos fenômenos em si mesmos quanto da morada exterior ou dos fatos em si a visão de Machiavel permanece na morada ex terior ou seja nos fatos e a pergunta final é O poder deve de correr do governar do caráter próprio deste do que lhe é único e singular Ou ao contrário o governar deve decorrer do poder Duas são as consequências principais da visão da política em Machiavel no que concerne à Ética a nosso ver 1 O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em suas considerações sobre a política uma vez que tais considerações não contemplam a ação política em seu sentido mais próprio buscando esse sentido fora dela 2 Não há regras propriamente de moralidade em sua concepção política pois sem fundamento ético não há moralidade As regras de comportamento por ele apresentadas são meros instrumentos de ação em busca do poder e de sua manutenção Para não citar senão algumas A opressão para permanecer no poder é permiti do segundo Machiavel usar de meios coercitivos como oprimir cultivando o medo Podese ainda recorrer a medidas primitivas mais sumárias com relação aos que subvertem a política adotada como as execuções A destruição em alguns casos de acordo com Ma chiavel é aconselhável destruir cidades inteiras quando o controle destas tornase difícil tendo em 61 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto vista a existência de grupos de cidadãos dotados de consciência política buscando subverter a política implantada A mentira diz Machiavel no capítulo XVIII da obra O Príncipe que um príncipe prudente não pode e nem deve guardar a palavra dada se isso vier a pre judicálo ou quando as causas que determinaram a palavra dada cessarem de existir Enfim ser um bom simulador e dissimulador é uma das qualida des do bom governante E assim muitos outros exemplos do pensamento em polí tica de Machiavel se encontram em sua obra principal O Príncipe cuja leitura aconselhamos Ao fazêla você perceberá o quanto suas ideias são atuais e em plena vigência em nossa época No que diz respeito a convicções pessoais estas configu ram uma moralidade pessoal e não propriamente uma Ética uma vez que se fundamentam em valores e normas culturais Quanto a uma Ética da responsabilidade ela concerne a consequências e não a resultados Em uma área como a políti ca particularmente assolada por circunstâncias a postura ética é essencial Aristóteles recordemos considerava a Ética como propedêutica à política pois toda circunstância por sua pró pria natureza não comporta regras ou princípios gerais Ela é fundamentalmente singular Atender às circunstâncias é buscar compreendêlas o que significa dar a justa medida captando seus sentidos direções e possibilidades É trabalho para uma equipe de profissionais pois implica a atuação de vários campos do saber não há savoirfaire nem mesmo o político como pa rece pretender Machiavel que substitua o saber das razões que fundamentam uma situação circunstancial 62 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 7 PHILLIPUS THEOPHRASTUS BOMBASTUS VON hohenheiM Paracelso 14931591 Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim médi co suíço autodenominado Paracelso era além de médico tam bém alquimista físico e astrólogo Alguns o consideram a própria expressão dessa visão mágica da natureza Para ele a natureza é uma força vital que cria produz e transforma Tudo é duplo há um macrocosmo e um microcosmo um mundo visível e um mundo invisível A natureza só poderia ser conhecida por meio da alquimia da astrologia e da magia O invisível não é um objeto e por isso nunca se apresenta como imagem é energia viva e criativa que a partir do interior das coisas transformaas no que elas são O invisível se mostra no visível embora oculto A natureza invisível se movimenta pela imaginação e uma imaginação suficientemente forte é a origem da magia É por meio da magia que captamos os sinais do invisí vel no visível Segundo Paracelso a saúde é um estado de equilíbrio das energias e a doença o desequilíbrio dessas mesmas energias O médico deve reconhecer a ação da natureza invisível no doente e a medicação deve responder ao modo como a natureza trabalha no visível respeitando determinados horários correspondentes a certas constelações planetárias Para curar é necessário abrir se às forças naturais invisíveis observandoas ROUXLANIER 1995 p 161 Embora seja tido por muitos como charlatão e visionário encontramos em Paracelso não propriamente uma Ética cristã resultado da institucionalização dos ensinamentos de Jesus o Cristo mas a Ética trazida por Jesus de Nazaré Segundo Para 63 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto celso o exercício da Medicina e os ensinamentos de Jesus são inseparáveis Tratase essencialmente de uma Ética da Fé e do corpo enquanto expressão do espírito e viceversa Deus segun do ele é uma entidade que devemos considerar antes de todas as outras coisas É o princípio que regula toda a vida princípio que denominou de Moral A Fé seria o elemento básico de toda cura pois é impossí vel curar o corpo sem curar ao mesmo tempo o espírito Todo mal que se faz ao corpo atinge o espírito pois o espírito é aquilo que sem matéria está dentro do corpo físico e é gerado pelas nossas sensações e meditações Por isso o espírito pode sofrer as mesmas doenças do corpo Por sua vez todo pensamento ne gativo sobre o outro poderá nos afetar porque é fruto de uma vontade fixa firme e intensa geradora do espírito Considerações finais um panenteísmo ético No que diz respeito à Ética a posição de Paracelso é deno minada de panenteísmo Essa palavra foi cunhada pelo filósofo alemão karl c F krause 17811832 e significa deus está pre sente em tudo o que não quer dizer panteísmo tudo é deus De fato a posição de Paracelso sobre o homem e a Ética expressa uma das características básicas do Renascimento que contrariamente à separação entre a natureza e o Divino que se deu na Idade Média busca reaproximálos Podemos dizer a partir do que aqui vimos que o transcen dental que funda o ético e o moral em Paracelso é a vontade di vina A liberdade estaria no reconhecimento de nossa submissão à vontade divina o ético e o moral se situariam nesse dever de se realizar a si mesmo mediante a obediência à vontade divina 64 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tendo em vista o que caracteriza o homem tornandoo único o seu realizarse está subordinado a uma instância superior que o ultrapassa mas que se impõe a ele incondicionalmente Deus fixa na natureza do homem a sua medida por meio dos dez mandamentos A liberdade do homem está em decidir sobre os meios para obedecer ou não a essa vontade A sociedade é a oportunidade para o ser humano se trans formar transmutação alquímica interior e se elevar desenvol vendo sua essência na vida social mediante o respeito à sua ori gem como filho de Deus Estamos assim diante de uma Ética de natureza empírica cujo fundamento é a fé JEANPIERRE 2012 8 Michel de MontaiGne 15331592 Michel de Montaigne nasceu em um château da região francesa do Périgord Recebeu educação esmerada e fez carreira política Viveu no período final da Renascença quando o entu siasmo e a confiança nos homens já havia decrescido muito Para Montaigne a ciência da qual o homem tanto se orgulha não pro picia um conhecimento certo pois seu instrumento principal a razão abstrata não tem maior valor que a imaginação que está sujeita às variações das impressões sensoriais A partir da leitura dos autores gregos e romanos Montaigne desenvolve uma análise crítica da razão humana Referindose às obras morais de Plutarco mostra nelas a vaidade de pensar que o homem é superior ao animal Chega assim a um ceticismo fi losófico Há sempre algo não passível de conhecimento algo que a razão humana jamais dominará Mostra que a experiência an tropológica apresenta opiniões e costumes os mais diversos Des creve um grande número de exemplos de experiências ou fatos 65 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto evidenciando o caráter ilimitado e misterioso da natureza con trariando toda interpretação unilateral Observa que quando nos abstemos de tomar partido em favor de uma determinada ideia ou interpretação nosso pensamento descobre ao mesmo tempo a prodigiosa riqueza do real e a diversidade do espírito humano Montaigne expõe experiências humanas as mais diversas e contraditórias que impossibilitam chegar a um conhecimento ge ral do ser humano Chega assim a um universo móvel incerto e múltiplo Não há segundo Montaigne nenhuma esperança para nós de encontrarmos a causa das coisas em meio a essa confu são e profusão de fatos Há que se meditar sobre a contingência ou impossibilidade de nossa razão chegar a uma só verdade Montaigne é sensível à dimensão ética propriamente dita a do caráter a do espaço existencial morada interior e do tem po campo de possibilidades de cada ser Quer recuperar o ideal humanista individualista da cultura antiga Por meio dos ensi namentos dos clássicos reconhece a limitação de nossa capa cidade de conhecer É cético quanto à possibilidade de conheci mento metafísico Voltase para a arte de viver Sob a influência dos estoicos busca o caminho da sabedoria para a solução dos problemas da vida sabedoria que consistia em saber deliberar entre o bem e o mal para viver melhor Dos estoicos traz também o agir de acordo com a natureza para enfrentar as adversidades e encontrar a paz O conhecimento generalizado é para Montaigne limitado Não há julgamento autônomo independente de uma consciên cia individual Só nós mesmos somos capazes de nos conhecer De nós o outro apenas consegue conjeturar a partir do que lhe mostramos O indivíduo carrega em si a essência da vida huma na essência essa que deve ser captada na singularidade do indi 66 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto víduo e não submetida a regras e conceitos gerais A orientação deve ser buscada à luz das singularidades Para Montaigne ser ético é principalmente cultivar a ami zade verdadeira que só pode ser vivida Segundo observação de vários autores a amizade enquanto valor ético não tem para ele apenas uma dimensão individual mas possui dimensão po lítica na medida em que ela só é possível onde há igualdade liberdade e justiça CALLADO 2005 Montaigne era muito amigo de Étienne de La Boétie 1530 1563 um dos criadores da ideia moderna de democracia a qual chamava de república livre pois como observam muitos essa noção de democracia ainda não existia Em sua obra Discurso sobre a Servidão Voluntária escrita a partir da observação dos acontecimentos de seu tempo rejeita todas as formas de dema gogia defende a liberdade e a igualdade de todos os homens no nível político evidencia a força da opinião pública prefere a república rejeitando a monarquia como forma de governo pois o poder de um só homem sobre os outros é ilegítimo A experiência da perda do amigo com quem debatia lon gamente questões importantes fez Montaigne confrontarse com a dor e a solidão experiência que surge frequentemente em sua obra Ensaios que escreveu já afastado da vida pública na po lítica Essa obra consiste em considerações humanistas sobre a existência próprias do fim do século 16 que vão desde temas da vida corrente até os de religião e filosofia Nela Montaigne ana lisa escritos de Lucrécio 9553 aC datas prováveis poeta e filósofo que escreveu o poema De Rerum Natura Sobre a Natu reza das Coisas um tratado de filosofia epicurista Cícero 106 43 aC advogado orador escritor romano e autor do célebre discurso contra Catilina patrício romano conspirador sem es 67 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto crúpulos recitado no Templo de Júpiter em 63 aC Sêneca 65 4 aC escritor filósofo romano e importante representante do estoicismo que defendia a Ética e a vida simples e sobretudo Plutarco 12045 aC filósofo grego que teve muita influência sobre ensaios e biografias na literatura ocidental cuja obra Bioi paralleloi Vida de homens ilustres consiste em 64 biografias de personagens gregos e romanos importantes e é considerada a fonte mais importante de ideias tradicionais sobre a Antiguidade grecoromana Visando ao homem comum Montaigne busca liberar a fi losofia de abordagens estritamente metafísicas e dogmáticas concretizando a liberdade de apresentar diferentes perspectivas ao mesmo tempo Montaigne escreve em francês é o primei ro pensador na época a se expressar em francês Embora não apresente o desenvolvimento sistemático de uma ideia sua obra é filosófica na medida em que situa suas considerações no nível daquilo que funda as diferentes razões que constroem o pensa mento da época ROUXLANIER 1995 Indo do homem universal à condição humana Montaigne em vez de partir de modelos morais como os dos sábios prefere proceder à observação concreta da variação que nos conduz ao indivíduo único e singular Preserva assim o caráter misterioso e imprevisível de cada ser mas não concebe esse caráter úni co de cada ser coisa ou situação como uma verdade objetiva o que chama de ciência moral não consiste em uma doutrina moral concebida à maneira dos estoicos para quem o universo pode ser explicado racionalmente porque tem uma estrutura ra cionalmente organizada consistindo a felicidade em ter fé nessa racionalidade oculta discernindoa e aceitandoa plenamente alcançando desta maneira a perfeição Para Montaigne a hon ra a fidelidade e a amizade são qualidades éticas importantes 68 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Para ele cujas obras tiveram grande influência sobre escritores e filósofos dos séculos seguintes é possível fazer o que atende ao caráter de cada um e de cada situação e assim ser feliz Viver eticamente é viver o momento presente é meditar sobre a mor te e a ela submeter a autenticidade de nossa vida No texto que se segue Montaigne critica a pretensão hu mana de tudo conhecer e chegar a verdades absolutas ou dog máticas por meio da razão filosófica Observa e analisa o fenô meno humano no seu caráter mais próprio Consideremos o homem só sem qualquer ajuda a ele estranha armado somente com suas armas e desprovido da graça e co nhecimento divinos os quais constituem toda a sua honorabili dade sua força e o fundamento de seu ser Vejamos quanto de dignidade há nesse belo revestimento Que ele me faça enten der pelo esforço de seu discurso sobre quais bases construiu as vantagens que ele pensa ter sobre as outras criaturas Quem o persuadiu que esta dança admirável da abóbada celeste que a luz eterna destes clarões que voam orgulhosamente sobre sua cabeça os movimentos terríveis deste mar infinito foram esta belecidos e mantidos durante tantos séculos para a sua como didade e a seu serviço É possível imaginar algo mais ridículo do que esta criatura frágil que nem mestre de si mesmo é passível de ser atingida pela ação violenta das coisas se proclamar mes tre e senhor do universo o qual não tem o poder de conhecer minimamente quanto mais de comandálo E esse privilégio que atribui a si mesmo de ser único nesta construção do uni verso de ser capaz de reconhecer sua beleza e partes de ser o único a dar graças ao seu arquiteto e entender a receita e a criação do mundo quem lhe concedeu esse privilégio A presunção é nossa doença natural e original A mais cala mitosa e frágil de todas as criaturas é o homem e ao mesmo tempo a mais orgulhosa Ele se sente e se vê alojado aqui em meio à lama e aos dejetos do mundo atado e pregado à pior à mais morta e vendida parte do universo situado no último lugar afastado da abobada celeste e vai se colocando pela 69 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto imaginação acima do círculo da lua e trazendo o céu para abai xo de seus pés É pela vaidade dessa mesma imaginação que ele se iguala a Deus que se atribui condições divinas que se distingue e se separa da multidão das outras criaturas classifica os animais seus irmãos e companheiros atribuindolhes deter minadas quantidades de faculdades e de forças a seu bel prazer Como conhece ele pela sua inteligência as formas internas e secretas dos animais Por meio de qual comparação deles co nosco chega à conclusão pouco refletida e inteligente sobre tais atribuições MONTAIGNE 1995 p 189190 tradução nossa A natureza não opera por distinções Mas quando estou em meio a opiniões mais moderadas em meio àqueles discursos que tentam mostrar a semelhança nos sa com os animais e como eles têm como nós os maiores pri vilégios e quanta semelhança possuem conosco certamente desconto muito dessa nossa pretensão e me libero com prazer dessa mistificação que nos atribui uma realeza imaginária em relação às outras criaturas Quando tudo o que aqui foi falado não for considerado que haja um certo respeito e um dever geral de humanidade nos ligando não apenas aos animais que têm vida e sentimento mas também às próprias árvores e às plantas Nós devemos justiça aos homens e a graça da clemência às outras criaturas capazes de bondade os turcos dão esmolas e têm hospitais para os animais Os Ro manos têm um cuidado público com o alimento das corujas seu Capitólio foi salvo graças à vigilância das corujas os atenienses ordenaram que as mulas e os jumentos que tivessem auxiliado a construção do templo chamado Hecatompedon fossem deixados livres e para pastar sem impedimento em qualquer lugar Os egípcios enterravam os lobos os ursos os crocodilos os cães e os gatos em lugares sagrados embalsamando seus corpos e guar dando luto MONTAIGNE 1995 p 190191 tradução nossa Veja no texto transcrito a seguir que Montaigne critica o instrumento pelo qual o ser humano acredita ser a mais elevada 70 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto das criaturas deste planeta a razão enquanto faculdade de abs trair e generalizar Chamo sempre razão esta aparência de raciocínio que cada um forja em si essa razão com relação à qual podem existir outras contrárias sobre o mesmo tema é um instrumento de chumbo e de cera prorrogável maleável e acomodada a qualquer viés e a todas as medidas não resta senão a capacidade de contorná la Seja qual for o plano bem intencionado que tenha um juiz se ele não se ouve no seu íntimo coisa que poucos gostam de fazêlo a inclinação à amizade ao parentesco à beleza e à vin gança e não somente a sentimentos tão dominantes mas ain da a este instinto fortuito que nos faz favorecer mais a um do que a outro e que na escolha de temas semelhantes mesmo estando presente a razão podem se insinuar insensivel mente em seu julgamento favorecer ou desfavorecer Eu que me vejo de mais perto que tenho os olhos incessante mente voltados para mim mal ousaria dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim Eu ando tão instável e tão mal assentado eu me acho tão susceptível de escorregar e de me desequilibrar e minha visão tão confusa a ponto de quando em jejum me sentir outro do que após me alimentar se tenho algo que me espeta os dedos do pé eis me carrancudo de mau humor e inacessível MONTAIGNE 1995 p 302303 tradução nossa Com relação a grupos humanos muito diferentes dos euro peus os quais temse o hábito de denominar de selvagens ou de bárbaros Montaigne faz uma reflexão sobre a precariedade de tais julgamentos sobre o que é civilizado e o que não é Penso voltando aos meus propósitos que não existe nada de bárbaro nem de selvagem naquilo que me relataram senão que cada um chama de bárbaro o que não corresponde a um costu me seu verdadeiro também parece dizer que não temos outra visão da verdade e da razão além daquela das opiniões e costu mes do país em que vivemos No nosso país a religião é perfeita a polícia é perfeita o uso de todas as coisas é perfeito São selva 71 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto gens da mesma maneira que consideramos selvagens os frutos que a natureza produz de si mesma e em seu desenvolvimento natural na verdade são aqueles frutos que alteramos artificial mente impedindoos de se desenvolverem naturalmente que deveriam ser denominados selvagens Nos primeiros estão vivas e vigorosas as verdadeiras e as mais úteis e naturais virtudes e propriedades as quais nós degeneramos e adaptamos de acordo com o nosso paladar corrompido Não há por que a arte ser mais considerada do que a mãe Natureza Nós sobrecarregamos de tal maneira a beleza e a riqueza das obras da natureza que a sufocamos MONTAIGNE 1995 p 305306 tradução nossa Com a reflexão de Montaigne sobre o problema ético en volvido na problemática da reflexão filosófica reflexão essa que pretende abarcar todos os seres singulares partindo de noções gerais ele chama a atenção para essa pretensão e aponta algu mas de suas falhas o que reflete uma forte crítica ao dogma tismo filosófico caracterizando o pensador com um autêntico cético em relação a essas pretensões humanas Chamamos a atenção para a crítica que Montaigne desfere nessa nossa últi ma citação à sociedade europeia de sua época que considera as outras sociedades como bárbaras essa crítica é bem avançada para o seu tempo e encontrará adeptos em vários pensadores da história da Filosofia Sugerimos que você procure responder discutir e comen tar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade ou seja do contexto humanista e antropocentris ta em que se desenvolve o Renascimento das implicações que essa nova visão de mundo que pretende explicar tudo a partir do homem e que busca uma divinização da Natureza terá sobre o pensamento moral e ético desse período Tentamos salientar aquilo que se fará presente em toda a nossa reflexão sobre o ético nesta obra ou seja a busca por encontrar na tradição fi 72 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto losófica as possíveis reflexões que tentaram de alguma forma tratar do característico de do singular ou do ético como sa lientamos em nossa Abordagem Geral 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para você testar o seu desempenho Se você encontrar dificuldades em responder a essas questões procure revisar os conteúdos es tudados para sanar as suas dúvidas Esse é o momento ideal para que você faça uma revisão desta unidade Lembrese de que na Educação a Distância a construção do conhecimento ocorre de forma cooperativa e colaborativa compartilhe portanto as suas descobertas com os seus colegas Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Sobre a Ética na Renascença é incorreto afirmar a É uma ética naturalista b É uma ética antropocêntrica c É uma ética humanista d É uma ética racionalista e É uma ética pragmatista 2 Assinale dentre as seguintes afirmações a única incorreta a Montaigne é um cético com relação a todo conhecimento absoluto b Segundo Montaigne o conhecimento generalizado é limitado c O comportamento ético com relação às pessoas e coisas fundamenta se em um julgamento autônomo e universal independente de uma consciência individual d Podemos dizer que Montaigne propõe como condição de toda condu ta ética a consideração das nuances subjetivas e culturais de que se revestem as diferentes situações e comportamentos 73 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 3 Por que a Ética do filosófo e pensador Giovanni Pico della Mirandola é denominada de Ética da nobreza humana 4 Faz sentido falar de uma Ética em Machiavel Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 e 2 c 3 Giovanni Pico della Mirandola vê no homem um ser de dignidade pois é livre reconheceo como o ser que possui a perfectibilidade capacidade de aperfeiçoamento e nisso consiste a sua nobreza 4 As considerações sobre a política em Machiavel procuram seu sentido nos resultados obtidos pela ação de seus governantes um misto de fortu na e virtù Esses resultados serão a medida com a qual analisamos se uma ação política foi bemsucedida ou não Como o ético procura o sentido interno de cada fenômeno seu caráter a Ética está necessariamente fora do entendimento de Machiavel sobre a política Para que o ético fosse contemplado em suas considerações sobre a ação política seria necessá rio que a avaliação da ação política fosse feita a partir da própria ação não pelos seus resultados a aquisição e a manutenção do poder 10 CONSIDERAÇÕES Para finalizar esta unidade não poderíamos deixar de nos re ferir brevemente à chamada Ética protestante surgida com lutero 14841546 teólogo e reformador religioso alemão e Jean Calvin João Calvino 15091564 teólogo e reformador religioso francês expondo a denominada Ética protestante em sua obra Ética protestante e o espírito do capitalismo Max Weber 18641920 so 74 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto ciólogo historiador e político alemão fala do surgimento na Renas cença no século 16 de uma Ética da responsabilidade à qual nos referimos na introdução desse estudo e também na parte referen te a Machiavel fundamentada em uma razão não mais advinda de uma ordem preestabelecida como no caso da Ética da virtude dos antigos Segundo Weber tal Ética fornecerá as bases para o desen volvimento do sistema capitalista 11 ereFerÊncias CALLADO T C A Ética em Michel de Montaigne Análise do úti e do honesto Kalagatos Fortaleza v 2 n 4 p 169200 2005 Disponível em httpwwwuece brkalagatosdmdocumentsV2N4AeticaemMicheldemontaignepdf Acesso em 30 mar 2015 CHAUÍ M Filosofia moderna Disponível em httpschasquewebufrgsbrslomp filosofiachauifilosofiamodernahtm Acesso em 12 ago 2015 FÉLIX L O que confere dignidade ao homem Disponível em httpwwwesdccom brCSFartigo200909dignidadehtm Acesso em 13 ago 2015 JEANPIERRE Paracelso Corpo Alma Disponível em httpwwwsophiabemvindo nettikiindexphppageParacelsoCorpoAlma Acesso em 8 mar 2012 RIBEIRO R J Entrevista à Revista E n 54 Disponível em httpwwwrenatojanine probrentrevistasrevistaE54html Acesso em 14 ago 2015 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHIAVEL N Discours sur la première décade de TiteLive In ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995a Le Prince In ROUXLANIER C Org Les temps des philosophes Paris Hatier 1995b Príncipe e escritos políticos 4 ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores MIRANDOLA G P De la Dignité de lhomme In ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 75 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Discurso sobre a dignidade do homem Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Edições 70 2001 MONTAIGNE M Essais In ROUXLANIER C Org Les temps des Philosophes Paris Hatier 1995 Ensaios 4 ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 77 Ética MOdeRna RaciOnaliSMO e eMpiRiSMO 1 OBJETIVOS Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernida de e relacionálas com as propostas da moral e da Ética do racionalismo e do empirismo modernos Compreender a proposta de uma moral de provisão em René Descartes Analisar os desdobramentos na proposta de Spinoza de uma Ética puramente racionalintuitiva demonstra da à maneira dos geômetras A moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John Locke O empirismo e o início de uma moral utilitarista com John Locke 2 CONTEÚDOS René Descartes Baruch Spinoza Thomas Hobbes John Locke Unidade 2 78 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 Para saber mais sobre a liberdade em Spinoza sugeri mos que não deixe de ler o seguinte artigo FRAGOSO E A R O conceito de liberdade na Éti ca de Benedictus de Spinoza Revista Conatus Filosofia de Spinoza v 1 n 1 p 2736 jul 2007 Disponível em httpbenedictusdominiotem porariocomdocRevistaConatusV1N1Artigo EmanuelFragosopdf Acesso em 31 mar 2015 2 O tema da liberdade em Spinoza é bastante interessan te para aprofundálo sugerimos que assista ao vídeo do Prof Claudio Ulpiano Pensamento e Liberdade em Espinosa Disponível em httpwwwyoutubecom watchvKMhuVkSDQPs Acesso em 18 ago 2015 3 Sobre Hobbes assista ao vídeo do programa de TV Café Pensamento da Mackenzie na entrevista com o professor Marcelo Bueno sobre a filosofia de Thomas Hobbes Disponível em httpwwwyoutubecom watchv41WURiF0nM Acesso em 18 ago 2015 4 Indicamos também os seguintes filmes Sobre o século 17 Cromwell O Chanceler de Ferro de 1970 direção de Ken Hugues a revolução puri tana na Inglaterra Sobre o século 18 a Revolução Francesa Danton O Processo da Revolução de 1982 direção de Andrzej Wajda 79 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Baseado na obra de mesmo nome o filme Ponto de Mutação de 1983 com direção de Bernt Capra aborda questões sociais políticas econômicas e mudanças de tendências passagem do velho para o novo e renovação do velho 4 INTRODUÇÃO Dentro do que temos nos proposto a trabalhar no que diz respeito à distinção entre o ético e o moral veremos no século 17 tema desta unidade o estabelecimento de uma estrutura de saber favorável ao desenvolvimento da noção de moral que se presta ao conceito de regras e princípios gerais em detrimento do que entendemos por ético propriamente dito De fato no século 17 passa a predominar um interesse cada vez maior em um saber racionalteórico fundamentado em um universalgeral iniciandose assim de maneira sistemáti ca o pensamento chamado moderno com suas características específicas Veremos a seguir alguns pontos básicos desse novo para digma de saber o conhecimento científico ou a ciência Iniciemos com a nova noção de mundo Durante a Idade Média a ideia de mundo era a aristotélica ou seja um todo or denado o cosmos limitado e hierarquizado onde cada coisa ti nha o seu lugar próprio segundo sua natureza Porém descober tas significativas surgem no século 17 que parecem negar essa visão Um exemplo é a lei da inércia inicialmente formulada por Descartes e posteriormente por Newton segundo a qual um corpo uma vez em movimento conservará para sempre esse mo vimento com a mesma velocidade se não sofrer nenhuma outra 80 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo ação como acontece no vácuo Essa lei significa que o univer so todo está em movimento e portanto em vez de um mundo fechado limitado e hierarquizado como se pensava temos um universo sem limites Essa visão a partir de uma lei universal geral consiste em uma visão abstrata do universo O mundo passa a ser visto como uma grande máquina previsível e passível de ser conhecida racionalmente Um todo em movimento movimento esse não em busca de um fim mas inteiramente decorrente de leis matemáticas Em outras pala vras ao contrário do cosmos antigo em que sob a inspiração aristotélica se explicavam as coisas pela finalidade o universo agora se apresenta reduzido a um puro mecanismo Não há lugares naturais com leis próprias como ensina va Aristóteles o espaço é homogêneo geométrico nele reina a identidade universal da lei ou a relação matemática constante A ordem cósmica dos antigos é substituída pela ordem rigorosa da matemática que se torna o modelo do pensamento verdadeiro Das inúmeras substâncias concebidas pelo pensamento grecoromano restam apenas três fundamentais a extensão res extensa o pensamento res cogitans e o infinito a substância divina No pensamento moderno só é conhecimento aquele que explica a partir da causa e apenas duas causas são admitidas a causa eficiente relação direta da causa e de seu efeito e a causa final que seria aquela existente entre Deus e os homens enquanto os gregos romanos e medievais concebiam as causas como sendo quatro classificação de Aristóteles 1 a causa material aquilo de que algo é feito 2 a causa formal a coisa em si 81 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 a causa eficiente o que dá origem ao processo do qual algo surge 4 a causa final aquilo para o qual algo é feito Outra questão que dominará a Idade Moderna é a questão do método Para se chegar ao conhecimento pelas causas fazse necessário um método ou um caminho A opção é pelo método da Matemática ordem e medida por ser este o caminho do conhecimento completo que domina inteiramente seu objeto No que diz respeito à nossa temática da Ética e da moral o surgimento do pensamento moderno com exceção do pensa mento de Baruch Spinoza foi pelas características epistêmicas aqui referidas favorável à expansão da questão moral É o que veremos a seguir 5 renÉ descartes 15961650 e uMa Moral de Provisão descartes como sabemos é o filósofo do método ou do caminho para se chegar a verdades claras e exatas Em 1619 es tando combatendo os espanhóis no exército do príncipe holan dês Maurício de Nassau Descartes tem três visões ou sonhos a partir dos quais concebe os fundamentos de uma ciência admi rável sobre a qual por volta de 1620 começa a redigir a obra Regras para a direção do espírito obra essa que só será publica da em 1701 Considerado o grande fundador do pensamento racionalis ta moderno sua marca inconfundível é o princípio da dúvida tudo o que pensamos saber ou acreditamos existir deverá passar pelo crivo da dúvida 82 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Nesse sentido em Meditações Meditação 1 afirma 1 Há algum tempo eu me apercebi de que desde meus primei ros anos recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras e de que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto de modo que me era necessário tentar seriamente uma vez em minha vida desfazer me de todas as opiniões a que até então dera crédito e começar tudo novamente desde os fundamentos se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências Mas parecendome ser muito grande essa empresa aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela na qual eu estivesse mais apto para executála o que me fez diferi la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir Agora pois que meu espírito está livre de todos os cuidados e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão aplicarmeei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas minhas antigas opiniões Ora não será necessário para alcançar esse desígnio provar que todas elas são falsas o que talvez nunca levasse a cabo mas uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedirme de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in dubitáveis do que às que parecem manifestamente ser falsas o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas DESCARTES 1973a p 93 a questão da moral em descartes uma moral de provisão Descartes propõe inicialmente em sua famosa obra Dis curso do Método o que chamou de moral de provisão par tindo para o estabelecimento de normas ou máximas que nos permitissem nos aproximar da verdadeira virtude normas ou máximas que são no entanto segundo o filósofo imperfeitas necessitando de aperfeiçoamento Tratase de uma moral pro 83 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo visória elaborada antes da construção das bases do edifício do saber a que se propunha e que permitiria orientar a conduta até que fosse possível a elaboração de uma moral definitiva a qual seria o ponto mais alto do referido edifício do saber São três as máximas por ele estabelecidas na obra citada 1 a vida de cada um deve ser conforme os desígnios de Deus e as leis e costumes de seu país 2 a prudência é a atitude que supriria a imperfeição 3 devese procurar vencer a si mesmo mudando os pró prios desejos e não a ordem do mundo A primeira máxima A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desíg nios divinos que seriam os mais justos mas ainda conforme a conduta daqueles que seguem as leis e os costumes de seu país e que são os moderados e sensatos Referindose a essa primeira regra diz Descartes A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância e governandome em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de vi ver Pois começando desde então a não contar para nada com minhas próprias opiniões porque eu as queria submeter todas a exame estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos E embora haja talvez entre os persas e chine ses homens tão sensatos como entre nós parecia que o mais útil seria pautarme por aqueles entre os quais teria de viver DESCARTES 1973a p 4950 84 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A segunda máxima a prudência Em vez de adotarmos teimosamente uma decisão ou de permanecermos indecisos quando não possuímos todas as in formações necessárias é prudente tomar a decisão de agir re solução em uma determinada direção Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas sempre que eu me tivesse decidido a tanto Imitando nisso os viajantes que vendose extraviados nalgu ma floresta não devem errar volteando ora para um lado ora para outro nem menos ainda deterse num sítio mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado e não mudá lo por fracas razões ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado sua escolha pois por este meio se não vão exatamente aonde desejam ao menos chegarão no fim a al guma parte onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta E assim como as ações da vida não su portam às vezes qualquer delonga é uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras devemos seguir as mais prováveis e mesmo ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras devemos não obstante decidirnos por algumas e considerálas depois não mais como duvidosas na medida em que se relacionam com a prática mas como muito verdadei ras e muito certas porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal E isto me permitiu desde então libertar me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar como boas as coisas que depois julgam más DESCARTES 1973a p 5051 85 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A terceira máxima a conduta correta é aquela que respeita as possibilidades de um mundo regido por leis imutáveis e acima de nosso alcance Descartes afirma que Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à sorte e de antes modificar os meus dese jos do que a ordem do mundo e em geral a de acostumarme a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder exceto os nossos pensamentos de sorte que depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exte riores tudo em que deixamos de nos sair bem é em relação a nós absolutamente impossível E só isso me parecia suficiente para impedirme no futuro de desejar algo que não pudesse adquirir e assim me tornar contente Pois inclinandose a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis é certo que se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem deverse ao nosso nascimento quando deles formos privados sem culpa nossa do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México e que fazendo como se diz da necessidade virtude não desejaremos mais estar sãos estando doentes ou estar livres estando na prisão do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes ou asas para voar como as aves DESCARTES 1973a p 51 Tal conduta exigiria preparo Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma me ditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos que puderam outro ra subtrairse ao império da fortuna e malgrado as dores e a pobreza disputar felicidade aos seus deuses Pois ocupando se incessantemente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza persuadiramse tão perfeitamente de 86 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos que só isso bastava para impedilos de sentir qualquer afecção por outras coisas e dispunham deles tão absolutamente que tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos mais poderosos mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens que não tendo esta filosofia por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna jamais dispõem assim de tudo quanto querem DESCARTES 1973a p 51 Porém em suas demais obras como Meditações e parti cularmente em sua correspondência com a princesa do Palatino Isabel da Boêmia a quem prometeu e escreveu o Tratado das Paixões da Alma sua última obra publicada em 1649 poucos meses antes de sua morte encontraremos mais subsídios para a possível configuração de uma moral cartesiana Nessas suas últimas obras Descartes procura elaborar uma moral mais per feita retomando em novos contextos o que dissera na moral de provisão Veremos nesses seus escritos que Descartes no que concerne à questão da conduta moral correta fundamentase em algumas verdades que considera essenciais a existência de Deus o fenômeno da vontade ilimitada a limitação do entendi mento o recurso ao hábito razão e liberdade a unidade da alma a união da alma e do corpo e as paixões a virtude como soberano bem A existência de Deus Ele existe pois sua existência pode ser demonstrada Diz Descartes Entendo por Deus uma substância infinita eterna imutável independente puro conhecimento puro poder pelo qual eu próprio e tudo o que existe se é verdade que há algo existen 87 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo te foi criado e produzido Ora tais vantagens são tão grandes e admiráveis que quanto mais atentamente eu as considero mais me convenço de que a ideia de Deus não pode se originar unicamente de mim E consequentemente se faz necessário concluir que Deus existe pois embora a ideia de substância exista em mim uma vez que sou uma substância não teria en tretanto a ideia de uma substância infinita eu que sou um ser finito se tal ideia não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que não fosse verdadeiramente infinita E não devo imaginar que tal concepção de infinito não seja uma verdadeira ideia mas somente resultado da negação do que é finito da mesma maneira que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz isso porque vejo claramente que existe mais realidade na substância infinita do que na substância finita e em consequência tenho em mim a noção de infinito e de Deus antes da noção de finito e de mim mesmo Pois como seria possível que eu pudesse saber que duvido e que desejo isto é que me falta algo e que não sou perfeito se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito do que o meu ser em comparação com o qual eu pudesse ter o conhecimento dos defeitos de minha natureza DESCARTES apud ROUXLANIER et al 1995 p 224 tradução nossa O fenômeno da vontade temos todos uma vontade ilimitada porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus E sobre o fenômeno da vontade Descartes conclui Não há senão a vontade que experimento em mim ser tão gran de que não concebo nenhuma outra mais ampla e mais ex tensa de maneira que é ela principalmente que me faz saber que trago em mim a imagem e a semelhança de Deus Pois ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim seja em razão do conhecimento e do poder que nele se encontram unidos tornandoa mais firme e mais eficaz seja em razão do objeto uma vez que ela se refere e se estende a um número infinitamente maior de coisas ela não me parece en 88 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo tretanto maior se eu a considero formalmente e precisamente nela mesma Pois ela consiste tão somente no fato de que po demos fazer algo ou não isto é afirmar ou negar perseguir ou fugir ou antes apenas afirmar ou negar perseguir ou fugir das coisas que o entendimento nos propõe sem sentir que alguma força exterior nos obrigue DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A questão da vontade e do entendimento o erro Vimos no texto anteriormente citado que a vontade hu mana é concebida por Descartes como sendo análoga à vontade divina descartes afirma nesse texto a infinitude da vontade humana quando diz que embora a vontade divina seja incom paravelmente mais firme e mais eficaz do que a vontade huma na quando considerada em si mesma em sua forma a vontade divina não me parece maior isso significa que a nossa vontade é ilimitada como a vontade divina Mas e o entendimento Em sua terceira máxima como vimos Descartes afirma que o mundo é regido por leis imutáveis acima de nosso alcan ce Portanto nosso entendimento é limitado Desse confronto entre uma vontade ilimitada e um enten dimento limitado surgiria a possibilidade de errar Erramos não porque nossas ideias sejam falsas o erro não estaria na ideia ou na pura representação do objeto mas no julgamento pelo qual afirmamos ou negamos que o objeto seja isso ou aquilo E a vontade é justamente essa capacidade de afirmar ou negar algo Como a vontade é ilimitada e o entendimento limitado o ser humano é capaz de não apenas julgar sobre o que ele pode reconhecer com certeza mas também aceitar como válido um 89 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo conhecimento duvidoso podendo dessa maneira cair no erro O erro decorre de um ato de nossa vontade quando esta não é mantida nos limites do entendimento O poder de dizer sim ou não é infinito e nos permite pronunciar mesmo quando não temos clareza de entendimento Portanto o conhecimento deve sempre preceder à determinação da vontade se não quisermos errar No que concerne à conduta moral nem sempre há certezas ab solutas e sim apenas probabilidades Embora toda conduta correta e verdadeiramente livre con sista em se basear em conhecimentos claros e evidentes deve mos na ausência de maiores conhecimentos seguir as condutas mais equilibradas sensatas e de maior probabilidade de acerto porque nem sempre temos o tempo necessário para chegar a conhecimentos claros a respeito de uma situação É o que afirma o filósofo como vimos em sua primeira e segunda máximas há segundo descartes que ir alcançando gradualmente conhecimentos firmes sobre a correta natureza das coisas re construindo opiniões de acordo com esses conhecimentos por meio da vivência com os outros E como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conver sando com os homens do que prosseguindo por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara E em todos os nove anos seguintes não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo daqui para ali procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se re presentam e efetuando particular reflexão em cada matéria sobre o que podia tornála suspeita e dar ocasião de nos equi vocarmos desenraizava entrementes do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado Não que 90 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo imitasse para tanto os céticos que duvidam apenas por du vidar e afetam ser sempre irresolutos pois ao contrário todo o meu intuito tendia tãosomente a me certificar e remover a terra movediça e a areia para encontrar a rocha ou a argila O que consegui muito bem pareceme tanto mais que pro curando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava não por fracas conjeturas mas por raciocínios claros e seguros não me deparava com quaisquer tão duvidosa que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa quando mais não fosse a de que não continha nada de certo E como ao demolir uma velha casa reservamse comumente os escombros para servir à construção de outra nova assim ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas fazia diversas observações e adquiria muitas experiências que me serviram depois para estabelecer outras mais certas DES CARTES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A liberdade está fundada no conhecimento e não na vontade a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente não de pende da vontade pois esta é indiferente mas se funda em conhecimentos claros e evidentes A indiferença é o mais baixo grau de liberdade é a carên cia de conhecimento Se tivéssemos sempre um conhecimento claro daquilo que julgamos seríamos completamente livres A vontade é livre quando não há limite externo ou seja quando está sujeita a uma determinação interior ou quando se sente in clinada por um conhecimento certo e distinto ou ainda por uma graça divina Pois para que eu seja livre não é necessário que eu seja indi ferente a escolher um ou outro de dois contrários mas quanto mais tendo para um seja porque conheço de maneira evidente que nele se encontram o bem e o verdadeiro seja porque Deus assim dispõe o interior de meu pensamento mais livremente faço a escolha e a assumo E certamente a graça divina e o 91 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo conhecimento natural longe de diminuir minha liberdade a aumentam e a fortificam De maneira que esta indiferença que sinto quando não tendo nem para um lado nem para o outro por força de alguma razão é o grau mais baixo de liberdade assemelhandose mais a um defeito do conhecimento do que a uma perfeição da vontade pois se conheço sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom jamais teria dificuldade em deliberar qual julgamento e qual escolha deveria fazer e assim eu seria inteiramente livre sem jamais ser indiferente DESCAR TES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A Alma todo conhecimento se fundamenta na identidade una da alma a alma é uma substância pensante do latim res cogitans A substância da alma é o pensamento somos uma substância cuja essência e natureza consiste em pensar Deve ser atribuído a nossa alma tudo o que existe em nós e que não concebemos como passível de pertencer a um corpo como os pensamentos a alma é una não extensa indissolúvel e simples É o que diz Descartes na obra Regras para a orientação do espírito Regra 1 Os homens têm o hábito cada vez que descobrem uma seme lhança entre duas coisas de atribuir tanto a uma quanto à ou tra mesmo naquilo que as distingue o que reconheceram como sendo verdadeiro em uma delas Assim fazendo uma compara ção falsa entre ciências que se encontram inteiramente no co nhecimento que tem o espírito e as artes que requerem certo exercício e certa disposição do corpo e vendo por outro lado que todas as artes não poderiam ser aprendidas ao mesmo tem po pelo mesmo homem mas que aquele que cultiva uma única arte tornase mais facilmente um excelente artista porque as mesmas mãos não podem cultivar ao mesmo tempo os campos 92 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo e tocar citara ou cultivar várias artes diferentes tão facilmente quanto uma só acreditaram que o mesmo se passaria também com as ciências e as distinguiram umas das outras de acordo com a diversidade de seus objetos pensaram que se fazia necessário cultivar cada uma à parte sem se ocupar de todas as outras E nisto se enganaram Pois tendo em vista que todas as ciências não são outra coisa que sabedoria humana que permanece una e sempre a mesma por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplique e que não é modificada pela mudança de seus objetos mais do que a luz do sol o é pela variedade das coisas que ela ilumina não há necessidade de impor limites ao espírito o conhecimento de uma verdade não nos impede de descobrir outra como o exercício de uma arte nos impede de aprender outra arte mas pelo contrário nos ajuda DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 219220 tradução nossa A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo resultaria segundo Descartes de um ato de vontade de Deus e foge a uma compreensão clara e evidente Embora possamos conhecer separadamente a alma e o corpo da união entre eles só existem diz o filósofo ideias confusas Quando sentimos dor fome sede por exemplo não percebemos essa dor fome e sede pelo entendimento de fora para dentro mas via sentimentos que são modos de pensar con fusos porque procedem e dependem de uma interação de mo vimentos entre a alma e o corpo Diferentemente de Aristóteles Descartes concebe a alma e o corpo como duas substâncias de natureza diferente uma é não extensa a alma a outra é extensa o corpo Portanto a união da alma e do corpo que em Aristóteles era essencial passa a não ser essencial em Descartes São distintas pois de um lado tenho uma ideia clara de mim mesmo como uma coisa pensante 93 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo e não extensa e de outro tenho uma ideia também clara de que sou um corpo uma coisa extensa que não pensa Meu eu isto é minha alma pela qual eu sou o que sou é inteiramente distinta de meu corpo podendo existir sem ele Os pensamentos são atribuídos pelo filósofo à alma o mo vimento e o calor na medida em que não dependem do pensa mento são atribuídos ao corpo O corpo é concebido como uma máquina que obedece às leis da natureza Todos os movimentos que fazemos que não dependam de nossa vontade como andar respirar comer enfim todas as ações que são comuns a nós e aos animais dependem da conformação de nossos membros e do que chamou de espíritos animais entendendo por isso as partes mais sutis e voláteis do sangue os circuitos elétricos de hoje talvez seguindo para o cérebro via nervos e músculos tal como o movimento de um relógio movimento esse produzido exclusivamente pela força da mola do relógio e da forma de suas rodas A união da alma e do corpo é de tal maneira íntima que a ação de um é sempre referente ao outro porém não consiste em uma ação direta porque a alma e o corpo permanecem duas substâncias completas e opostas O corpo humano afeta do pelos eventos externos faz com que a alma sinta perceba Assim as percepções os conhecimentos em nós não são feitos pela alma são recebidos das coisas e representados pela alma por meio de suas ideias Descartes dá um exemplo que se tornou célebre Em Me ditações Meditação 2 diz Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser retirado da colmeia ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha continua a apresentar o odor das flores das quais foi recolhido sua cor sua figura seu tamanho são aparentes é 94 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo duro frio pode ser tocado e se nele batermos emitirá um som Enfim tudo que nos permite constatar a existência de um corpo nele se encontra Mas eis que enquanto falo aproximoo do fogo o que nele restava de sabor se exala o odor desaparece sua cor muda ele esquenta mal posso tocálo e embora nele bata não emi tirá mais nenhum som Tratase da mesma cera após essa mu dança É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de cera ninguém pode negar O que então neste pedaço de cera é conhecido como tal Certamente nada do que foi constatado pelos sentidos uma vez que tudo aquilo que veio pelo pala dar pelo olfato pela vista pelo tato ou pelo ouvido se encontra modificado e no entanto a cera permanece a mesma Talvez penso agora a cera não era nem essa doçura do mel nem esse agradável odor das flores nem essa brancura nem essa figura nem esse som mas somente um corpo que um pouco antes me era dado sob essas formas e que agora se apresenta sob outras formas Mas o que exatamente imagino quando a concebo dessa maneira Consideremos a cera atentamente afastando tudo o que não lhe pertence e vejamos o que resta O que é certo é que não resta senão algo extenso flexível e mutável Ora o que é isto flexível e mutável Não seria o fato de que imagino que esta cera sendo redonda pode vir a ser quadrada e passar de quadrada a uma figura triangular Não certamen te não seria isso pois a concebo capaz de receber uma infinida de de semelhantes mudanças mas não seria entretanto capaz de percorrer essa infinidade de mudanças com a minha imagi nação o que me faz concluir que essa concepção que tenho da cera não se dá por meio da faculdade de imaginar DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 223224 tradução nossa A afirmação da permanência da cera nas diferentes modifi cações percebidas não resultaria nem da imaginação pois somos incapazes de percorrer com a imaginação a infinidade de mudan ças passíveis de serem recebidas pela cera e nem da percepção uma vez que toda percepção é contemporânea do que percebe 95 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo cada modificação da cera é objeto de uma percepção e a todo instante ultrapassamos cada percepção de uma modificação afirmando a permanência da cera A afirmação da permanên cia da cera nas diferentes modificações recebidas resultaria das representações pela alma dessas modificações mediante uma ideia a de extensão Em outras palavras todo corpo é conhecido como corpo aquilo que permanece a despeito de modificações e variações por meio de uma ideia ou julgamento a ideia de extensão ideia essa de um sujeito conhecedor a alma Só a ideia de extensão torna possível a representação de um corpo como tal Em outras palavras o que temos é a representação de um corpo graças a uma ideia a ideia de extensão e esta como já foi dito é produto da alma Ações e paixões Quando a alma busca imaginar o que não existe ou conce be algo puramente inteligível estaríamos diante de ações ou seja de percepções dependentes principalmente da vontade As paixões diferentemente se situariam no domínio da união da alma e do corpo As paixões Os eventos externos causam na alma as paixões que são assim a mediação entre as duas substâncias corpo e alma res ponsáveis pela comunicação entre elas Paixões seriam portan to percepções sentimentos ou emoções que vêm à alma pelos nervos podem também vir segundo Descartes do movimento dos espíritos animais as que são vinculadas a objetos exterio 96 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo res se referem ao conhecimento das coisas exteriores que afe tam nossos sentidos fazendo com que a alma os sinta As que são vinculadas ao corpo como a fome a sede a dor etc senti mos em nossos próprios membros e não em corpos externos Há ainda um terceiro tipo de percepções sentimentos e emoções que vinculamos à própria alma como alegria tristeza cólera etc As paixões segundo Descartes são inseparáveis das ações que as provocam assim o seu estudo também é inseparável do estudo do corpo que é o agente dessas ações Descartes elege a glândula pineal situada entre os olhos como a sede da alma por ser a única parte do corpo conhecida na época que não seria dupla Os olhos são duplos os ouvidos são duplos mas o pensamento não é por isso a glândula pineal seria a sede do pensamento ou da alma Essa glândula é cercada de pequenas ramificações das carótidas as principais artérias do pescoço que trariam os espíritos animais ao cérebro O poder da vontade ilimitado quanto à própria capacidade de querer não seria ilimitado com relação ao corpo e às percepções da alma porque a natureza estabelece uma ligação entre cada vontade e o movimento da glândula com base na conservação da união não no arbítrio Um exemplo é o fato de que se quisermos ver algo de perto haverá uma redução da pupila porém se simplesmente quisermos reduzila só por querer a redução não se dará As seis paixões primitivas Descartes na segunda parte de seu Tratado das Paixões da Alma enumera segundo o efeito dos objetos em nós seis 97 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo paixões que considera como primitivas admiração amor ódio alegria e tristeza A admiração constituise de uma súbita surpresa da alma É causada pela impressão que se tem no cérebro representando o objeto como raro e extraordinário Ocorre antes de sabermos se o objeto é conveniente ou não É a primeira paixão pois sem uma admiração inicial isto é sem um contemplar com surpresa e como ção não seria possível surgirem paixões A admiração é positiva quando nos leva à aquisição de conhecimento pode porém ser nociva quando em excesso como o espanto no espanto percebemos apenas a primeira face apresentada pelo objeto o que nos impede de ad quirir conhecimentos mais profundos Por essa razão seria aconselhável segundo Descartes nos exercitar na consideração das coisas que nos parecem estranhas O amor e o ódio tais paixões envolveriam o unirse ou separarse voluntariamente no amor unimonos ao que amamos como um todo do qual seríamos uma parte e a coisa amada seria a outra parte No ódio dá se o contrário nos consideramos um todo totalmente separado da coisa que repudiamos Desejo essa paixão se manifesta quando desejamos que se apresentem em nosso futuro aquilo que nos é conveniente e que não o temos como aquilo que nos é conveniente e temos no presente Além disso essa pai xão também se manifesta quando desejamos que um mal atualmente existente não venha a continuar como algum mal eventual que possa vir a ocorrer no futuro 98 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A alegria e a tristeza a alegria é o gozo do bem pre sente a tristeza é o sentimento de algo incômodo que buscamos repelir Todas essas paixões servem segundo Descartes à conser vação e ao aperfeiçoamento do corpo A alma só é advertida das coisas que a prejudicam pelo sentimento da dor que inicialmen te a entristece em seguida a faz odiar e finalmente levaa a desejar se livrar daquele mal repelindo o que a pode destruir Assim para Descartes todas as paixões são boas em si mesmas No entanto é preciso e é possível regulamentálas para não pervertêlas Como foram instituídas pela natureza fazse necessário conhecer as leis dessa instituição para poder agir so bre elas Busca portanto explorar racionalmente este obscuro campo da união que são as paixões As paixões e a vida moral Segundo Descartes a vida moral se situa na união da alma e do corpo pois é por causa dessa união que a avaliação do que é ou não bom é perturbada pelas paixões As paixões são moral mente relevantes porque influenciam nossas ações por meio do desejo pelo qual regulam nossos costumes A função da moral seria regrar e controlar o desejo Portanto a moral cartesiana se fundamenta no melhor conhecimento possível e no correto manejo das paixões ou controle do desejo As paixões dispõem a alma a querer as coisas para as quais preparam o corpo A vida moral colocará em questão certas ações assim corroboradas pelas paixões exigindo um redirecio namento destas pela razão E para tanto é preciso distinguir as coisas que dependem inteiramente de nós daquelas que não de 99 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo pendem Portanto segundo o filósofo é preciso rejeitar a afir mação comum de que existe fora de nós uma espécie de sorte que faz com que as coisas venham ou não a nós a seu bel prazer Tudo é conduzido pela providência divina e nada acontece que não seja necessário Desejar que acontecesse de outra forma é cometer um erro É necessário pois limitar o campo do possível regulando o desejo pelo conhecimento verdadeiro não do bem em geral mas do bem que depende de nós É o que vimos em essência na terceira máxima da moral provisória Ainda segundo Descartes a alma pode dominar as paixões menores desviando o corpo para outros objetos Nas paixões muito violentas não há como superálas porém podese sus pender os movimentos a que elas dispõem o corpo por exem plo não consigo deixar de sentir medo mas posso conterme e não correr o conceito de virtude Por virtude entende o filósofo o hábito da alma que a orienta para determinados pensamentos pensamentos esses gerados pela alma e muitas vezes fortalecidos por movimentos dos espíritos o que faz com que sejam ao mesmo tempo vir tudes e paixões Tratase da firme resolução de não nos des viarmos pelo desejo em direção ao que não depende de nós As almas fortes são virtuosas têm poder sobre as paixões com armas próprias ou seja com juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal à luz dos quais decidiu conduzir suas ações A ação moral para Descartes não deve estar fundada ape nas no conhecimento possível mas também no correto con 100 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo trole das paixões pois são elas que pelo desejo comandam a passagem do pensamento à ação e esse comando quando vol tado para o possível dandose à luz do livrearbítrio é a própria virtude operando por meio da generosidade Na terceira parte do Tratado sobre as Paixões da Alma Descartes apresenta as paixões derivadas das primitivas Dentre essas paixões destacase a da generosidade Virtude e hábito a generosidade A generosidade é o hábito que leva a alma a pensar no sentido e na grandiosidade do livrearbítrio gerando a firme re solução de usálo corretamente O homem cartesiano é o homem generoso que valoriza a sua liberdade que soube descobrir em si o poder de duvidar que assume a responsabilidade pelos seus erros que sabe agir diante da obscuridade da vida ROUXLANIER 1995 p 218 Podemos desenvolver segundo Descartes as virtudes Se riam as próprias paixões segundo o filósofo que indicariam de si mesmas a maneira segundo a qual podemos agir sobre elas Diz ele Nossas paixões não podem ser provocadas nem eliminadas por nossa vontade mas podem ser indiretamente pela repre sentação das coisas que habitualmente costumam se associar às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que remos rejeitar DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 228 tra dução nossa Assim embora não possamos combater diretamente as paixões é possível fazêlo indiretamente criando hábitos basea dos nas ideias contrárias a determinadas paixões Poderíamos 101 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo por exemplo desenvolver a generosidade buscando o que ha bitualmente costuma representála como a sabedoria de que todo louvor ou recriminação se refere unicamente ao uso que fazemos do bem e do mal e o fato de sentindonos capazes de ações virtuosas acreditarmos que assim como nós todos os ou tros também são capazes pois isso não depende de circunstân cias alheias mas somente da boa vontade É o que diz Descartes Assim creio que a verdadeira generosidade que faz com que um homem se estime no mais alto grau possível de se estimar de maneira legítima consiste simplesmente em parte no fato de saber que nada verdadeiramente lhe pertence a não ser essa livre disposição de suas vontades que não existe outra razão para ser louvado ou recriminado a não ser pelo uso que faz do bem ou do mal e em parte no fato de sentir em si mesmo um poder de decisão firme e constante de fazer bom uso de suas capacidades isto é de nunca falhar na vontade de empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores isto é seguir perfeitamente a virtude Aqueles que têm esse conhecimento e sentimento de si mes mos são facilmente convencidos de que todos os outros ho mens os têm igualmente porque não há nada em tal situação que dependa do outro É por isso que jamais desprezam al guém e que embora vejam frequentemente os outros come terem erros que revelam a sua fraqueza tendem entretanto a desculpálos em vez de recriminálos e a acreditar que é mais por desconhecimento do que por falta de vontade que cometem tais faltas e como não pensam serem inferiores aos que possuem mais bens ou honras ou têm mais espírito mais saber mais beleza ou os superam em algumas outras perfei ções não se consideram da mesma maneira superiores aos que ultrapassam porque todas essas coisas lhes parecem de pouco valor em comparação com o fato de se ter boa vontade única qualidade que possui para eles valor qualidade que su põem também existir ou pelo menos poder existir em todos os homens DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 228 tradução nossa 102 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Considerações finais Dentro da orientação básica do presente estudo distin guindo essencialmente o ético do moral gostaríamos de en fatizar nestas considerações finais as dificuldades do filósofo francês em abarcar a questão da consciência moral em sua tota lidade mediante o método por ele proposto De fato encontramos em Descartes os pilares da consti tuição do que entendemos por moral são estes pilares a no ção de uma razão generalizante cuja meta é o individual e o geral as máximas os hábitos ou costumes e a noção de bom senso Inspirado segundo alguns sobretudo em Aristóteles concebe a criação do hábito como vimos como uma das realidades funda mentais no que concerne à conduta moral Porém embora configurando uma moral racional não chega Descartes a uma moral científica Começa por distinguir pensamento da ação podemos pensar de uma maneira e agir de outra É na ação porém que residiria a dimensão moral da conduta Em contrapartida podemos ser virtuosos mesmo não possuindo um conhecimento claro e distinto pois os juízos mo rais podem não ser absolutamente certos embora devam ser os melhores possíveis A virtude base de toda conduta moral consistiria no esforço para compreender o melhor possível e de acordo com isso agir o melhor possível Reconhece portanto Descartes as dificuldades em esta belecer uma moral definitiva fundada na verdade e na ciência As decisões morais segundo ele estão baseadas em ideias con fusas uma vez que a união da alma e do corpo foge às nossas possibilidades de conhecimento O conhecimento da consciên cia moral é obscuro embora acredite o filósofo que seja possí 103 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo vel melhorar esse conhecimento gradualmente estimulando o entendimento Trabalharemos a seguir o cartesiano Spinoza que irá to mar diante das dificuldades presentes no pensamento de Des cartes sobretudo no que diz respeito ao problema da consciência moral uma direção totalmente nova optando por considerála em sua dimensão eminentemente ética Veremos com Spinoza que embora tudo pareça indicar não ser possível a construção de uma moral baseada em um co nhecimento exato como é o conhecimento científico pode ser possível pensar a consciência moral em sua dimensão ética via um saber rigoroso que é o saber compreensivo rigoroso por que busca considerar todas as nuances possíveis constituintes do objeto trabalhado na sua singularidade 6 Baruch sPinoZa 16321677 Consta que Spinoza como pessoa era gentil apaixonado pelo conhecimento e pela cultura e cultivador de amizades Sa bese que foi perseguido e expulso da comunidade judaica prin cipalmente por criticar o conceito judaico de Deus Dominava várias línguas inclusive o português idioma fa lado correntemente nas ruas de Amsterdam na época onde ha via uma grande comunidade judaica de origem portuguesa Grande conhecedor do Velho Testamento publicou em vida duas obras Os princípios da filosofia de Descartes em 1663 e Tractatus TheologicoPoliticus em 1670 obra que proje tou Spinoza fora de seu país 104 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A obra Ética de Spinoza da qual trataremos neste estudo foi escrita por Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg perto de Leyde cidade situada na Holanda do Sul onde possuía mui tos amigos Foi editada após a sua morte Sobre ela encontra mos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em 1665 para Guillaume de Blyenberg Entendo por um homem justo aquele que deseja constante mente que cada um possua o que lhe é devido e demonstro em minha Ética não ainda editada que esse desejo nos homens piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus SPINO zA 1965 prefácio tradução nossa A escolha da Geometria como linguagem O discurso de Spinoza ao desenvolver sua concepção de Ética é o da Geometria A linguagem geométrica é a linguagem do imaginário o imaginário é um dado da reflexão como se pode dizer da Filosofia da Matemática Foi trabalhado por Gauss que demonstrou sua importância na fundamentação da Geometria Na linguagem do imaginário a atenção e o interesse se concentram não mais na diversidade do efetivamente dado mas na maneira segundo a qual os elementos procedem uns dos ou tros ou se relacionam uns com os outros Tal linguagem não se fecha nas limitações da representação mas fixase na dedução dos princípios que regem o encadeamento das condições orde nadoras do que é percebido de maneira que os juízos e enuncia dos que decorrem desse processo de dedução constituem pro jeções em estado puro das relações nas quais se funda o que é observado 105 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Spinoza constrói seu discurso sob o modelo da Geome tria mediante proposições seguidas rigorosamente das respec tivas demonstrações explicações axiomas etc Deduz assim fundamentando a existência de Deus como substância única e singular a beatitude como terceiro gênero de conhecimento o conhecimento libertador a alma o corpo o segundo gênero de conhecimento que se dá pelas ideias comuns o primeiro gênero de conhecimento constituído de ideias abstratas e da imaginação Ética e razão intuitiva Se quiséssemos sintetizar em um único princípio o pensa mento de Spinoza sobre a questão da Ética talvez pudéssemos fazêlo repetindo suas próprias palavras o esforço para com preender é a primeira e única base da virtude O que é compreender segundo Spinoza Compreender é chegar ao conhecimento libertador me diante uma razão intuitiva É o que denomina de beatitude e classifica como o terceiro gênero de conhecimento Consiste es sencialmente em uma visão de toda existência como inseparável da substância infinita e eterna Deus Em outras palavras a bea titude é um perceber a si mesmo a tudo e a todos como parte integrante e necessária da natureza de deus essa percepção intuitiva de que somos partes integrantes dessa substância única e singular que é Deus é a compreensão de que fazemos parte da essência de Deus e como tal somos uma extensão da potência divina 106 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Deus é uma substância singular e única A substância segundo Spinoza não possui causa fora de si é uma causa não causada ou seja uma causa em si A substância é em si e é concebida por si cujo conceito não é formado por outro conceito Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido isto é aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado SPI NOzA 2008 p 13 A substância portanto é singular a ponto de não poder ser concebida por outra coisa que não ela mesma Como não pode ser produzida por outra substância não existe nada que a limite sendo ela portanto infinita Tratase de uma substância cuja essência é existir pois se pudesse não existir haveria uma divisão e seria então limitada por outra Essa substância única e absolutamente infinita é Deus ou a Natureza não há pois criação mas produção imanente de uma única substância Deus ou a Natureza Em outras palavras não existe a obra de um Deus transcendente separado do mundo A beatitude ou compreensão libertadora essa compreensão intuitiva que é a Beatitude não é uma experiência mística O estado de beatitude é conseguido por meio de um esforço árduo contínuo e dedicado ao exercício de uma captação pela razão intuitiva por meio da qual vamos além da percepção limitada da unidade dos sentidos e das imagens para nos perceber universais Para Spinoza o mundo de Deus ou da Natureza é essen cialmente um mundo de rigor matemático Vejamos na quinta 107 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo parte da Ética o discurso de Spinoza sobre a beatitude inspirado nos princípios do discurso da Geometria Proposição 42 A beatitude não é o prêmio da virtude mas a própria virtude e não a desfrutamos porque refreamos os ape tites lúbricos mas em vez disso podemos refrear os apetites lúbricos porque a desfrutamos Demonstração A beatitude consiste no amor para com Deus pela prop 36 juntamente com seu esc o qual provém cer tamente do terceiro gênero de conhecimento pelo corol da prop 32 Por isso esse amor pelas prop 56 e 3 da p 3 deve estar referido à mente à medida que esta age e portanto pela def 8 da p 4 ele é a própria virtude Era este o primeiro pon to Por outro lado quanto mais a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude tanto mais compreende pela prop 32 isto é pelo corol da prop 3 tanto maior é o seu poder de refrear os afetos e pela prop 38 tanto menos ela padece dos afetos que são maus Assim porque a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude ela tem o poder de refrear os apetites lúbricos E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no intelecto ninguém desfruta pois dessa beatitude porque refreou os afetos mas em vez disso o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da beatitude C Q D Escólio Tornase com isso evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é superior ao ignorante que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico Pois o ignorante além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas exteriores e de nunca gozar da verdadeira satisfação de ânimo vive ainda quase inconsciente de si mesmo de Deus e das coisas e tão logo deixa de padecer deixa também de ser Por outro lado o sábio enquanto con siderado como tal dificilmente tem o ânimo perturbado Em vez disso consciente de si mesmo de Deus e das coisas em virtude de uma certa necessidade eterna nunca deixa de ser mas desfruta sempre da verdadeira satisfação do ânimo Se o caminho conforme já demonstrei que conduz a isso parece muito árduo ele pode entretanto ser encontrado E deve ser 108 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço como explicar que ela seja negligenciada por quase todos Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro SPINOzA 2008 p 411 Escólio anotação em geral breve com a finalidade de explicar esclarecer Essa busca das diferentes direções do tema considerado no caso a beatitude consiste essencialmente em um processo rigoroso de produção de novas possibilidades Ao exercer esse terceiro gênero de conhecimento o homem constituise a si mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi mento de todas as coisas existentes à maneira de Deus ou da Natureza e só nessa condição é livre A alma e o corpo Continuando seu discurso dedutivo diz Spinoza não so frendo o conceito de substância em princípio nenhuma limi tação compreende uma infinidade de atributos dos quais cada um não podendo ser limitado senão por ele mesmo é infinito em seu gênero o atributo é aquilo que da substância o intelec to percebe como constituindo a sua essência sPinoZa 2008 p 23 O entendimento percebe assim a substância como ela é na realidade Ética Primeira Parte Proposição 10 Demonstra ção Desses atributos nosso entendimento segundo Spinoza só pode conhecer o pensamento e a extensão Em contrapartida da mesma maneira que as propriedades do triângulo decorrem geometricamente de sua essência dos 109 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo atributos da substância divina decorre uma infinidade de mo dos que são segundo spinoza modificações ou afecções da substância que se apresentam no real Por modo compreendo as afecções de uma substância ou seja aquilo que existe em outra coisa por meio da qual é também concebido SPINOzA 2008 p 13 essas modificações da substância ou modos são classifi cadas por Spinoza em cinco categorias 1 Os modos infinitos imediatos do pensamento que é todo o entendimento absolutamente infinito o pró prio intelecto de Deus 2 Os modos infinitos da extensão que são as leis univer sais imutáveis 3 Os modos infinitos mediatos que são a essência do mundo físico 4 Os modos finitos do pensamento que são as ideias mentes almas 5 Os modos finitos da extensão que são todo o universo material corpos movimento repouso a alma humana e o corpo humano são pois dois modos de Deus dois efeitos da substância única e infinita que é Deus A alma se refere ao atributo pensamento o corpo ao atributo extensão Não podemos formar a ideia da alma humana senão nos referindo ao atributo do pensamento e a ideia do corpo humano senão nos referindo ao atributo da extensão Por isso embora substanciais porque se referem a atributos da substância alma e corpo não são duas substâncias distintas contrariando aqui Descartes 110 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo não consistiria nem em uma mistura nem em uma ação recíproca de um sobre o outro Di ferentemente do que afirma Descartes Spinoza nega que possa haver alguma forma de controle da mente sobre o corpo Mente e corpo não podem ser concebidos e nem existem um sem o outro Ética Parte 3 Proposição 2 Escólio Isso porque um é a manifes tação mesma do outro nada afeta o corpo que a mente não capte Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta questão creio entretanto que a menos que se dê desta verdade uma confirmação experimental os homens dificilmente serão leva dos a examinar esse ponto com um espírito de isenção de tal ma neira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe ora cessa de se mover por um simples comando da Alma e que realiza um grande número de atos que dependem unicamente da vontade da alma e de sua arte de pensar Ninguém é verdade determinou até o pre sente momento o que pode o Corpo isto é a experiência não en sinou a ninguém até o momento o que unicamente pelas leis da Natureza considerada enquanto corporal o Corpo pode fazer e o que não pode fazer a não ser determinado pela Alma Ninguém de fato conhece tão exatamente a estrutura do Corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções para não falar do que se observa inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacidade humana e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o sono que não ousariam fazer quando acordados e isso mostra sufi cientemente que o Corpo pode só pelas leis de sua natureza fazer muitas coisas que causam surpresa à sua Alma Ninguém sabe por outro lado em qual condição ou por quais meios a Alma move o Corpo nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com qual rapidez ela pode movêlo De onde se conclui que quando os homens dizem que tal ou tal ação do Corpo vem da Alma a qual tem um domínio sobre o Corpo não sabem o que dizem e não fazem mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorância da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 137138 tradução nossa 111 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo É preciso para compreender a união da alma e do corpo con siderar a unicidade da potência divina exprimindose por meio de cada um de seus atributos A potência divina implica de um lado uma perfeita identidade entre a ordem e a conexão das coisas e de outro a ordem e a conexão das ideias A alma não é assim mais do que a ideia do corpo o corpo nada mais é do que o objeto da alma é o que se chama paralelismo da alma e do corpo Enquanto ideia do corpo existindo no tempo e no espaço a alma é pela sua existência uma parte perecível do entendimen to de Deus enquanto ideia da essência eterna desse corpo ela é por sua essência uma parte eterna do entendimento de Deus A parte perecível da alma é constituída por sua imaginação e per cepção do que sofre o corpo humano em seus encontros com outros corpos humanos A parte eterna da alma é constituída pelo seu entendimento lugar do conhecimento verdadeiro No que concerne ao corpo segundo Spinoza ele se indivi dualizaria não em função de uma substância particular mas por meio do tempo e da mudança devido ao movimento e ao repou so à velocidade e à lentidão Em outras palavras como identida de individual o corpo resultaria de um processo de manutenção de suas partes em uma determinada proporção de movimento e repouso proporção essa que o corpo humano conseguiria man ter ao passar por uma série de modificações afecções e afetos impostas pelo movimento e repouso de outros corpos Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra Ética Spinoza apresenta os seguintes postulados sobre o corpo I O Corpo humano é composto de um grande número de in divíduos de natureza diversa e cada indivíduo é também composto 112 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo II Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns são fluidos alguns são moles alguns enfim são duros III Os indivíduos que compõem o Corpo humano são afetados e consequentemente o Corpo humano é ele próprio afetado de inúmeras maneiras diferentes advindas de corpos exteriores IV O Corpo humano tem necessidade para se conservar de um grande número de outros corpos por meio dos quais ele é con tinuamente conservado V Quando uma parte fluida do Corpo humano é afetada por um corpo exterior de maneira a tocar frequentemente uma parte mole ela muda a superfície desta e imprime nela por assim dizer certos vestígios do corpo exterior que a afeta VI O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os corpos exteriores de inúmeras formas SPINOzA 1965 p 91 tradução nossa Uma ética da alegria Alegria e tristeza são afecções ou afetos A alegria é o afe to que aumenta a capacidade do corpo de manter a sua potên cia de agir e pensar e quando associada a uma causa exterior transformase em amor a tristeza ao contrário é sempre des trutiva e quando associada a uma causa exterior transformase em ódio Por essa razão a ética de spinoza é denominada de ética da alegria Os indivíduos se esforçam para ter alegria buscando man ter sua existência tanto quanto possível Esse esforço é denomi nado por spinoza de desejo ou conatus palavra do latim que significa esforço ou determinação para sobreviver 113 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O segundo gênero de conhecimento as noções comuns ou ideias adequadas Dentro desse contexto de pensamento sobre Deus a alma e o corpo Spinoza classifica como segundo gênero de conheci mento as noções comuns ou ideias adequadas Aqui se inicia o exercício da razão enquanto conhecimento do que está fora de nós daquilo que existe Dessa maneira devemos compreender nossos afetos e os dos demais seres humanos por meio de noções comuns obtidas pela razão Para tanto fazse necessário de acordo com Spinoza viver em um meio humano buscando o útil em comum Nada mais útil ao homem do que o homem os homens digo não podem desejar nada de maior valor para a conservação de seu ser do que concordarem todos sobre todas as coisas de ma neira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só Alma e um só Corpo nada de maior valor do que se esforçarem todos em conjunto para conservar seu ser e procurar tudo o que lhes é útil em comum do que se conclui que os homens que são governados pela Razão isto é aqueles que procuram o que lhes é útil conduzindose pela Razão não desejam para eles mesmos nada que não desejem também para os outros homens e são justos de boa fé e honestos Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a conhecer aqui em poucas palavras antes de começar a de monstrálos em ordem de maneira mais prolixa e o meu moti vo para fazêlo foi o de chamar se possível a atenção daqueles que creem que este princípio cada um deve procurar o que lhe é útil é a origem da imoralidade não da virtude e da morali dade Depois de ter mostrado brevemente que é exatamente o contrário continuo demonstrandoo com os mesmos argu mentos apresentados até aqui em nosso caminhar SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 259 tradução nossa 114 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Spinoza em seu Tratado Político dá como exemplo desse segundo gênero de conhecimento pelas ideias comuns conquis tadas pela razão o poder da cidade o poder da cidade vem do fato de que nela os homens têm desejos comuns e ela só conserva esse poder na medida em que consegue unir os dese jos dos homens A dimensão social da cidade oferece às paixões individuais um lugar de coexistência em que os homens podem evitar os efeitos negativos da tristeza e do ódio Como no estado natural cada um é seu próprio mestre en quanto não sofrer a opressão de outro e no qual sozinho se esforça para se proteger de todos enquanto o direito natural humano for determinado pelo poder de cada um este direito na realidade será inexistente ou pelo menos não terá senão uma existência puramente teórica pois não se tem nenhum meio seguro de conserválo É certo também que cada um tem menos poder e consequentemente menos direito na medida em que tiver mais razões de temer Acrescentemos que sem auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar sua alma Chegamos pois a esta conclusão o direito natural no que concerne propriamente ao gênero humano dificilmente pode ser concebido a não ser quando os homens têm direitos comuns terras que podem habitar e cultivar juntos quando po dem velar pela manutenção de seu poder protegerse repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a todos Quanto maior for o número dos que assim se reunirem mais direito terão em comum SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 260 tradução nossa E um pouco mais adiante naquela mesma obra Conhecese facilmente qual é a condição de qualquer Estado considerando o fim em vista do qual um estado civil é fundado esse fim não é outro senão a paz e a segurança da vida Conse quentemente o melhor governo é aquele sob o qual os homens passam sua vida na concórdia e cujas leis são observadas sem violação É certo de fato que as revoltas as guerras e o despre zo ou transgressões das leis são imputáveis não tanto à malícia 115 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo das pessoas mas a um vício do regime instituído Os homens de fato não nascem cidadãos mas tornamse As afecções naturais que se encontram são além disso as mesmas em todo país se pois uma malícia maior reina em uma cidade e se ali se cometem pecados em maior número do que em outras isso provém do fato de ela não ter obtido concórdia suficiente de suas institui ções não serem suficientemente prudentes e de não ter conse quentemente estabelecido em absoluto um direito civil Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o império do terror devese dizer não que ali a paz não reina mas que ali a guerra não reina A paz efetivamente não é a ausên cia de guerra é uma virtude que tem sua origem na força pois a obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que de acordo com o direito comum da Cidade deve ser feito Uma ci dade é preciso ainda dizer onde a paz é um efeito da inércia de sujeitos conduzidos como um rebanho e educados unicamente para servir merece o nome de deserto em vez de cidade Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os ho mens vivem na concórdia entendo que eles vivem uma vida propriamente humana uma vida que não se define pela circu lação do sangue e pela realização das outras funções comuns a todos os outros animais mas que se define principalmente pela razão pela virtude da alma e pela vida verdadeira SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 261 tradução nossa Segundo Spinoza quanto mais a alma conhece à maneira do terceiro gênero de conhecimento beatitude e desse segun do gênero de conhecimento noções comuns e adequadas mais ela segue unicamente a necessidade de sua natureza O primeiro gênero de conhecimento as ideias gerais e a ima ginação não nos permitem chegar ao conhecimento libertador Os homens observa o filósofo partem das percepções sensíveis e incapazes de considerálas isoladamente por não en 116 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo tenderem que as coisas se produzem de si mesmas imanência divina formam ideias gerais daquilo que se repete frequen temente Baseados na mesma ignorância da natureza divina os homens exercem a imaginação que consiste em estabelecer uma distância entre o ser e o dever ser desconhecendo que não há nenhum dever ser que possa ser aplicado ao plano do ser pois esse é o plano repetimos da imanência divina Constituem ambas as ideias gerais e a imaginação o que Spinoza denomina de conhecimento inadequado Uma das con sequências desse conhecimento inadequado seriam as paixões ao entendermos inadequadamente nossas afecções ou afetos estes se transformam em paixões a paixão é desapropriação de si ou seja alienação isso acontece segundo spinoza por não compreendermos o desejo como sendo o efeito em nós do poder eterno e infinito de Deus acreditando tratarse de uma ca rência Daí a absorção do espírito na busca do prazer da riqueza e da honra para suprir essa carência enganosa As ocorrências mais frequentes na vida aquelas que os homens como transparecem em todas as suas obras tomam como sen do o soberano bem se referem de fato a três objetos riqueza honra prazer dos sentidos Ora cada um destes distrai o espírito de todo pensamento relativo a um outro bem no prazer a alma é suspensa como se ela tivesse encontrado um bem no qual pu desse descansar ela se encontra no mais alto ponto impedida de pensar em um outro bem após o prazer por outro lado vem uma extrema tristeza que se não suspende o pensamento o per turba e o enfraquece A busca da honra e da riqueza não absor ve menos o espírito a da riqueza sobretudo quando é buscada por si mesma pois que lhe é dado um grau de soberano bem quanto à honra absorve o espírito de uma maneira ainda bem mais exclusiva porque nunca se deixa de considerála uma coisa boa em si mesma e como um fim último em direção ao qual vão todas as ações Além disso a honra e a riqueza não são seguidas de arrependimento como o prazer ao contrário quanto mais se 117 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo possui seja uma seja outra mais a satisfação que se experimenta é maior daí a consequência de se sentir cada vez mais levado a aumentálas mas se em alguma ocasião nos enganamos em nossa esperança então surge uma tristeza extrema A honra en fim é ainda um grande impedimento pelo fato de que para atin gila é necessário dirigir a própria vida de acordo com a maneira de ver dos homens isto é fugir do que comumente eles fogem e buscar o que eles buscam A servidão passional nasce assim da ignorância e a alimenta dividindo o mundo em coisas boas e coisas más acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm Tratase de um pseudoconhecimento das causas finais o que leva à superstição religiosa com a ideia de um deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal em fun ção do culto que lhe rendemos SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 251 tradução nossa Consequências do conhecimento inadequado O preconceito natural ou crença nas causas finais é o princípio de todos os nossos erros diz Spinoza Se tudo o que existe é emanação de uma substância única e ilimitada Deus como causa imanente da natureza identificando se nesse sentido com ela estando totalmente nela presente não depende a natureza da afirmação ou negação de nenhuma vontade outra de nenhum princípio transcendente para ser o que ela é sua substancialidade não há pois vontade entendida como o poder de afir mar ou negar o que é verdadeiro ou o que é falso assim como não há finalidade ou causas finais uma vez que não há uma essência imóvel e transcendente em vista da qual foram as coisas criadas 118 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo É suficiente no momento colocar em princípio o que todos de vem reconhecer que todos os homens nascem sem nenhum conhecimento das causas das coisas e que todos são levados a buscar o que lhes é útil e do qual têm consciência Daí se segue que 1 os homens se imaginam livres porque têm consciência de seus desejos e do que lhes apetece e não pensam nem em sonho sobre as causas que os levam a desejar e a querer não tendo sobre isso nenhum conhecimento Daí se segue 2 que os homens agem sempre em vista de um fim saber o útil que os apetece Disso resulta que se esforçam sempre unicamente no sentido de conhecer as causas finais das coisas realizadas e descansam quando são informados sobre elas não existindo para eles mais nenhuma razão de se inquietar Como por outro lado encontram em si mesmos e fora de si mesmos um grande número de meios que contribuem grandemente para atingir o útil assim por exemplo os olhos para ver os dentes para mastigar as ervas e os animais para a alimentação o sol para clarear o mar para alimentar os peixes passam a conside rar todas essas coisas como sendo meios para seu uso Sabendo ter encontrado esses meios mas não os tendo procurado con cluem que alguém os providenciou para o seu uso Não podem de fato após considerar as coisas como meios acreditar que elas se produzem de si mesmas mas tirando sua conclusão dos meios que costumam utilizar se persuadem de que existem um ou mais condutores da natureza dotados da liberdade huma na que suprem a todos as suas necessidades fazendo tudo para sua utilização SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 255 tra dução nossa Ao ignorar assim as razões ou causas das coisas passa mos a ter do mundo uma visão fundada em milagres crença em deuses que conduzem a natureza para satisfazer nossos desejos crença de que as coisas naturais foram criadas tendo em vista o homem Como a experiência não valida tais crenças os homens são levados às superstições buscando adivinhos para interpretar os fenômenos 119 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Por sua vez essa servidão a causas finais favorece as paixões tristes o ódio da vida a amargura com relação a tudo o que é levando os homens a confrontar o real com um ideal ilusório proíbe amar o que é e conhecêlo na alegria Acreditando na realidade do mal lastimam sua sorte pensam que a perfeição não é deste mundo e que a verdadeira vida está em outro lugar Essa extensão da tristeza multiplica as ocasiões de ódio entre os homens os ódios os mais terríveis como os que inspiram as diferentes superstições religiosas SPI NOzA in ROUXLANIER 1995 p 251 tradução nossa Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens Só Deus é livre Outra consequência do conhecimento inadequado seria a crença no livre arbítrio Vejamos o que diz Spinoza Chamo livre no que me concerne algo que é e age unicamente segundo a necessidade da natureza coagido é aquele que é deter minado por outro a existir e a agir de certa maneira determinada Deus por exemplo existe livremente ainda que necessariamente porque existe unicamente em função da necessidade de sua na tureza Também Deus conhece a si mesmo e todas as coisas livre mente porque decorre de sua própria natureza de Deus conhecer todas as coisas Veja bem não concebo a liberdade consistindo em um livre decreto mas em uma necessidade livre Mas desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a existir e a agir de certa maneira definida Para tornar isso claro e inteligível concebamos algo muito simples uma pedra por exem plo recebe certa quantidade de movimento de uma causa exterior que a move e cessando o impulso da causa exterior ela continuará a se mover necessariamente Essa persistência da pedra em seu movimento é uma coerção não por necessidade mas se define como um impulso de uma causa exterior E o que é verdadeiro com relação à pedra deve sêlo no que se refere a toda coisa singular qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir não 120 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo importando quão numerosas forem suas aptidões porque toda coisa singular é necessariamente determinada a existir e a agir de certa maneira determinada por uma causa exterior Concebamos agora que a pedra enquanto continua a se mover pensa e sabe que ela faz esforço tanto quanto pode para se mover Essa pedra seguramente pois que ela tem somente consciência de seu esforço e que ela não é de maneira alguma indiferente acredita rá que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque não quer Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que consiste unicamente no fato de que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determi nam SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 261 tradução nossa Segundo Spinoza tanto a decisão da mente quanto o ape tite e a determinação do corpo são uma só e mesma coisa as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites Ética Parte 3 Proposição 2 Escólio Um homem embriagado também acredita que é pela livre de cisão de sua mente que fala aquilo sobre o qual mais tarde já sóbrio preferiria terse calado Igualmente o homem que diz loucuras a mulher que fala demais a criança e muitos outros do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por uma livre decisão da mente quando na verdade não são capazes de conter o impulso que os leva a falar Assim a própria ex periência ensina não menos claramente que a razão que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações mas desconhecem as causas pelas quais são determina dos Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites elas variam portanto de acordo com a variável disposição do corpo Assim cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e além disso aqueles que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem en quanto aqueles que não têm nenhum afeto são pelo menor impulso arrastados de um lado para outro Sem dúvida tudo isso mostra claramente que tanto a decisão da mente quanto o apetite e a determinação do corpo são por natureza coisas 121 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo simultâneas ou melhor são uma só e mesma coisa que cha mamos decisão quando considerada sob o atributo do pen samento e explicada por si mesma e determinação quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso SPINOzA 2008 p 171 Considerações finais A obra de Spinoza se destaca das demais obras do século 17 em que viveu É considerada uma admirável sistematização do saber o que é característico da Modernidade Da obra de Spinoza diz o professor Marcos André Gleizer A filosofia de Baruch Espinosa 16321677 é uma das mais extraor dinárias produções do espírito humano sua obra principal a Ética demonstrada à Maneira dos Geômetras ocupa uma posição ímpar na história da filosofia Sua forma dedutiva constitui a exemplifica ção mais perfeita do ideal de sistematização do saber característico da modernidade Seu conteúdo encadeado rigorosamente ao longo das cinco partes que a compõem constrói um espaço teórico inova dor que rompe radicalmente com o universo conceitual da tradição metafísicomoral judaicocristã Partindo do conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a natureza a Ética pretende con duzirnos como que pela mão ao conhecimento da alma humana e de sua beatitude suprema GleiZer 2004 Em contrapartida como observam alguns estudiosos de sua obra Spinoza contraria princípios fundamentais que rege ram o pensamento moderno como sua opção por temáticas re ferentes hoje às áreas da Antropologia Psicologia Sociologia Pedagogia e Política em detrimento dos domínios pertencentes à Física à Metafísica e à Lógica Depois de sua morte Spinoza foi como observam seus bió grafos um dos filósofos mais comentados e pouco lidos Para mui tos como John Locke cujo pensamento será objeto da presente 122 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo unidade e David Hume que estudaremos na Unidade 3 desta obra as ideias ateias de Spinoza eram tolas O filósofo Immanuel Kant objeto de nosso estudo também na Unidade 3 o ignorou Foi apenas após Goethe 17491832 pensador e escritor alemão seu admirador que suas obras passaram a ser lidas com o devido cuidado Spinoza teve grande influência sobre o chamado Idealismo Alemão também denominado de Idealismo Absoluto que é um movimento de pensamento do século 18 segundo o qual o mundo se identifica com o pensamento objetivo e não com o fluxo da ex periência ou com o fenômeno de pensamento de cada indivíduo A influência de Spinoza se fez no sentido de dar a esse movimento a direção de um monismo imanentista Monismo imanentista por que como vimos concebe Deus e a natureza como sendo a mesma realidade monismo um todo imanente e não transcendente tudo que existe existe em Deus é parte essencial de Deus O mundo é uma expressão necessária e absoluta de Deus imanentismo A influência de Spinoza não só sobre filósofos mas igual mente sobre artistas e poetas se estende até os dias de hoje Recentemente foi lançado o livro de Roberto Leon Ponczek pro fessor da UFBA intitulado Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física 2009 em que entre outros as suntos é descrita a grande influência de Spinoza sobre Albert Einstein Na contracapa desse livro lêse Certa vez quando lhe perguntaram se acreditava em Deus einstein teria respondido sim o deus no qual eu acredito é o deus de spinoza de fato einstein entendeu como ninguém que o Deus ou seja a Natureza de Spinoza se reflete do mais ínfimo spin eletrônico às mais extensas galáxias do universo Para Einstein a ciência não poderia ser apenas uma útil conta de chegada às aplicações tecnológicas mas deveria ter uma di 123 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo mensão quase religiosa Para ambos Deus é a Natureza inteli gente e autoconsciente sempre muito mais ampla do que qual quer coisa que possa ser dita ou descrita por números Deus é o jardim que não carece de jardineiro pois se faz por Si próprio O ser humano é tão somente um pequenino arbusto de limitada existência plantado neste Jardim infinito que a ele se desvela com mistério e espanto PONCzEK 2009 contracapa Sugestão de leitura PONCZEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 Disponível em httpsrepositorioufbabrribitstreamufba2071Deus20 ou20seja20a20naturezapdf Acesso em 21 ago 2015 No que se refere à orientação básica dada a esta obra segun do a qual o ético distinguese essencialmente do moral a Ética de Spinoza exemplifica admiravelmente em muitos aspectos o que se espera de um discurso que se situe na instância do singular e que seria eminentemente o discurso ético distinguindoo radicalmente do moral De fato Spinoza se ocupa fundamentalmente do ético diríamos que quanto à moral a saber regras e dever normativo com base em ideias gerais e no dever ser imaginativo o filósofo entende que só imperarão na medida em que essa razão intuitiva fundante a nosso ver da instância ética ainda não dominar Embora os limites da presente obra não nos permita de senvolver suficientemente o que seria esse pensamento do sin gular solo a nosso ver do fenômeno ético uma vez que para isso seria necessário recorrer ao pensamento contemporâneo não objeto deste nosso trabalho faremos aqui apenas a seguin te observação encontramos na filosofia de Spinoza várias ca racterísticas básicas de um pensamento do singular tais como uma visão à luz do imaginário discurso da Geometria e o fato 124 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo de ser um discurso interessado em um pensamento objetivo das possibilidades de um objeto ação ou situação e que no caso de Spinoza tratouse de uma substância única e singular Deus uma concepção do entendimento como compreensão isto é como captação da unidade a partir de seu próprio sentido ou direção considerando o não expresso ou subentendido em vez de julgálo de fora e finalmente uma concepção da razão como intuitiva 7 thoMas hoBBes 15881679 O empirista Hobbes não apela para modelos a priori a se rem imitados não invoca entidades metafísicas Sua concepção de moral não tem por base um transcendente ou seja um Deus ou uma concepção metafísica do ser mas está fundamentada no que se poderia definir como a virtude da prudência conquista da pela experiência ao longo dos tempos pelos seres humanos Prudência que leva a humanidade a passar do Direito Natural ou seja da liberdade que cada ser humano tem de usar o próprio poder para a conservação da vida para a instituição do chama do Direito Positivo ou Contrato Social Hobbes é considerado um dos fundadores da teoria moderna do Estado que é a da passa gem do Estado de Natureza ao Estado Civil do Estado Apolítico ao Estado Político Ao contrário da tradição aristotélica e tomista que situa o fundamento da Ética e da Filosofia Política na Cosmologia e na Teologia Hobbes procura esse fundamento na Antropologia Nossa felicidade não estaria na satisfação de um Soberano Bem mas na satisfação contínua do próprio desejo 125 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Por costumes não entendo aqui boas maneiras por exemplo a maneira como devemos saudar uns aos outros lavar a boca e escovar os dentes perto dos outros e todas as outras regras do saber viver mas as qualidades dos homens que interes sam a uma coabitação pacífica e a reunião dos mesmos Nessa perspectiva é preciso considerar que a felicidade nesta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito Pois não exis tem na realidade nem finis últimus ou meta final nem este summum bonum ou bem supremo de que falam as obras dos antigos moralistas Aquele cujos desejos atingiram seu fim não viverá mais do que aquele no qual cessaram toda sensação e toda imaginação A felicidade é uma marcha contínua diante do desejo de um objeto a outro sendo a satisfação do primeiro o caminho que leva ao segundo A razão disso é que o desejo do homem não é o de usufruir uma única vez e durante um só ins tante mas o de assegurar o caminho de seu desejo futuro Da mesma maneira as ações voluntárias e as inclinações de todos os homens não buscam somente uma vida de satisfação mas também garantila Diferem somente no caminho que tomam as que decorrem da diversidade das paixões nos diferentes in divíduos e as que decorrem da diferença no que diz respeito ao conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que produzem o efeito desejado Assim coloco no primeiro plano a título de inclinação geral de toda a humanidade um desejo perpétuo e sem trégua de ad quirir poder e mais poder desejo que não cessa senão com a morte A causa nem sempre é a de se esperar um prazer mais intenso do que aquele que já se obteve ou de não se conten tar com um poder moderado mas a causa é que não se pode tornar seguro a não ser adquirindo mais o poder ou os meios dos quais dependem o bemestar que se possui no presente HOBBES 1983 p 9596 tradução nossa Essa satisfação contínua dos próprios desejos leva os ho mens em seu estado natural a viver em guerra uns com os ou tros Vivem em constante angústia com o temor da morte vio lenta pelos outros Guerreiam entre si porque a natureza os fez 126 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo iguais e essa igualdade os leva a entender que cada um pode ter o que o outro possui As diferenças naturais entre os homens são insignificantes e portanto insuficientes para levar o mais fraco a pensar em poder derrotar o mais forte No capítulo XIII de sua obra Leviatã Hobbes diz A natureza fez os homens tão iguais nas faculdades de corpo e mente a ponto que embora possa se encontrar algumas vezes um homem de corpo manifestamente mais forte ou de mente mais rápida que outro quando se leva em conta todo o conjun to a diferença entre um homem e outro não é tão considerável a ponto de que um deles possa com base nela reclamar para si algum benefício ao qual o outro não possa pretender tanto quanto ele HOBBES 1996 p 8687 tradução nossa A boa ação segundo Hobbes não é julgada pela boa intenção mas pela sua utilidade em trazer felicidade ao maior número de pessoas possível Essa felicidade do maior número possível de pessoas só será viável diz Hobbes com a repressão da animalidade natu ral o que só será possível a partir do momento em que cada um abrir mão de seu direito natural em favor de um terceiro um Soberano um representante de todos ou uma assembleia de representantes A única maneira de erigir tal poder comum apto a defender as pessoas do ataque de estranhos e do mal que poderiam fa zer uns aos outros e desse modo protegêlas de forma que pelo seu trabalho e produção da terra pudessem se alimentar e viver satisfeitos é confiar todo seu poder e toda sua força a um só homem ou a uma única assembleia que pudesse reunir suas vontades pela regra da maioria em uma só vontade O que significa dizer designar um homem ou uma assembleia para assumir sua personalidade e que cada um confesse e se reconheça como autor de tudo que tal homem terá feito ou 127 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo ordenar que se faça no que diz respeito às coisas que concer nem à paz e segurança comum que cada um consequen temente submeta sua vontade e seu julgamento à vontade e ao julgamento desse homem ou assembleia Isso vai além do consenso e da concórdia tratase de uma unidade real de todos em uma só e mesma pessoa unidade realizada por meio de um acordo de cada um com cada um feito de tal maneira que seria como se cada um dissesse a cada um autorizo este homem ou esta assembleia e eu confiro a eles meu direito de me governar com a condição que abandone seu direito e autorize todas as suas ações da mesma maneira Feito isso a multidão assim unida em uma só pessoa é chamada de república em latim civitas Tal é a geração deste grande leviatã ou falando com mais reverência deste deus mortal ao qual devemos sob o deus imortal nossa paz e proteção hoBBes 1983 p 177 178 tradução nossa A construção do Estado ou contrato social É mediante um contrato social que uma multidão de ho mens passa a constituir um corpo de Estado O Estado represen ta cada um de nós decidindo e agindo por nós e em consequên cia devemos nos reconhecer como responsáveis e coautores de tudo o que ele faz A civilização nasce desse contrato social Essa nova situa ção entretanto só pode ser mantida com a existência de um Leviatã Leviatã é o nome de um animal monstruoso descrito em detalhes no livro de Jó que se expressa preferencialmente na figura de um rei que gera em todos o medo da punição garantin do assim a continuidade do Estado civil A obra em que Hobbes compara o poder absoluto de um comandante supremo à figura de um Leviatã intitulase Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil publicada em 1651 128 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O poder soberano baseado no contrato social é absoluto e inviolável O Soberano homem ou assembleia é uma criação nossa Nós o obedecemos não por ser ele o mais forte mas para darlhe a força para manter a paz É na obediência a um terceiro que os homens cessam de formar uma multidão e se tornam um povo ou o corpo de um Estado tendo por alma o Soberano Esse absolutismo de Hobbes enfatizam vários autores não significa apologia da monarquia absoluta ou defesa de um siste ma político o deus mortal o leviatã como vimos pode ser um homem um conselho ou uma assembleia O que interessa é a essência do poder a obediência A prosperidade de um povo não depende da forma de seu governo mas da concórdia e obe diência de todos Em contrapartida como o poder político não pode aten der a todos os aspectos da vida naquilo que a lei civil não se pronuncia existe segundo Hobbes espaço onde a liberdade das pessoas pode se realizar O que conta não é a extensão do poder mas o seu caráter imperioso de imposição Quais seriam os recursos da humanidade para chegar à consti tuição desse contrato social O homem diz Hobbes tem acesso ao tempo por meio dos sinais que lhe permitem a memória e a antecipação do futuro A linguagem dos sinais torna assim possível a razão e consequentemente a ciência que é o conhecimento das sucessões associações e concatenações de sinais a razão não nasce conosco como a sensação e a lembrança e também não se adquire só pela experiência como a prudência mas se adquire pelo trabalho primeiro atribuindo corretamente as denominações e em seguida indo graças 129 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo à aquisição de um método correto e ordenado a partir dos elementos que são as denominações até as asserções formadas pela colocação de uma denominação em relação com uma outra e daí aos silogismos que são a colocação em relação de uma asserção com uma outra para chegar ao conhecimento de todas as consecuções de denominações que concernem o tema considerado é isso que os homens chamam ciência Enquanto a sensação e a lembrança não são senão um conhecimento do fato que é uma coisa passada e irrevogável a ciência é o conhecimento das consecuções da dependência de um fato de um outro fato é por meio dessa dependência que a partir do que nós podemos produzir presentemente sabemos como produzir algo de outro se quisermos ou repetir algo semelhante mais uma vez pois vendo como uma coisa é produzida por quais causas e de que maneira percebemos no caso de causas semelhantes se darem como fazêlas produzir efeitos semelhantes HOBBES 1983 p 4243 tradução nossa Tornando possível assim a razão e a ciência a linguagem tornaria igualmente possíveis os contratos sociais e o Estado en fim todos os recursos humanos de que trata a Filosofia Política Em sua concepção de moral Hobbes observa Yara Adario Fra teschi 2005 em seu trabalho Filosofia da natureza e filosofia moral em hobbes concebia a Filosofia Moral como fazendo parte da Filosofia Natural tal como a Física Sua visão do comportamento humano seria inspirada na teoria mecânica do movimento Isso significa basicamen te que segundo Hobbes o homem tende a manterse em movimen to buscando não fins mas meios para continuar vivo O discurso de Hobbes caracterizarseia pela explicação mecânica as paixões advi riam automaticamente das reações do homem às circunstâncias em que se encontra prevalecendo sempre a inclinação natural à autopre servação Em outras palavras Hobbes visualiza os costumes e hábitos humanos não à luz de uma doutrina do bem e do mal do justo ou do injusto mas sim à luz das leis naturais e da vontade humana 130 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Considerações finais A questão moral em Hobbes se encontra voltada essencial mente para a instância do Direito e nesse sentido sua obra tem particular importância na área jurídica Sua obra tem sido muito trabalhada nesses últimos tem pos no que concerne particularmente à questão da justiça Al guns exemplos dessas discussões são Segundo Hobbes seria a natureza a fonte de um Direito e de um Estado ideal e mais justo Em outras palavras a obra de Hobbes levanos a afirmar a existência de uma or dem ou sistema ético subordinado a um conjunto de leis universais e necessárias decorrentes diretamente da na tureza humana sendo o Direito expressão dessa ordem Isso é o que defendem os adeptos da corrente doutriná ria em Filosofia do direito chamada jusnaturalismo Hobbes considera que os homens independentemente de sua natureza criam normas para reger uma determinada sociedade em uma determinada época visando à valida de dessas mesmas normas como decorrentes não de leis naturais mas do próprio processo de ordenamento des sas normas o que significaria que a lei não é natural mas de natureza positiva escrita gravada codificada nesse caso estaria Hobbes fundamentando outra posição em Fi losofia do direito denominada justapositivismo Essa discussão persiste até os dias de hoje 8 John locke 16321704 John Locke viveu em fins do século 17 e início do século 18 É sua a famosa frase a mente é uma tábua rasa em que 131 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo só a experiência escreve É classificado como empirista por al guns e por outros como não propriamente um empirista uma vez que admite a existência de dois tipos de experiência a expe riência externa e a experiência interna assim como três tipos de conhecimento o direto ou intuitivo que garantiria um grau máximo de certeza o indireto ou demonstrativo como a Lógica e a Matemática o sensível que seria o conhecimento da existência de objetos exteriores Por sua vez distingue um mundo em si fundamentado nas chamadas qualidades primárias a solidez a extensão etc e o mundo para nós baseado nas qualidades secundárias cores sons etc O moral dentro de um contexto político Como Hobbes Locke concebe o moral em um contexto politicamente constituído Parte do mesmo ponto de Hobbes o estado da natureza seguido do surgimento da sociedade via um contrato social Porém a posição de locke diverge essencial mente da de Hobbes no que concerne ao entendimento do que seja esse estado da natureza Enquanto para Hobbes como vimos o estado de direito é algo feito para coibir a violência do estado da natureza não sendo o viver em sociedade uma disposição inata ao ser huma no mas surgindo quando o homem se vê ameaçado buscando então o acordo de um contrato social e gerando assim a consti tuição do Estado para Locke diferentemente o homem adquire 132 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo direitos a partir do momento mesmo em que passa a existir O estado de natureza é o estado dos direitos naturais O homem mesmo no estado da natureza é dotado de razão é senhor de si mesmo não sendo subordinado a ninguém O crescimento demográfico e a escassez de terra segundo Locke tornaram necessário estabelecer leis além da lei da nature za Unindose uns aos outros para preservar vidas e a liberdade de usufruto e conservação de propriedades conseguidas pelo traba lho os homens constituíram a sociedade civil A sociedade civil se faz necessária quando a lei moral ou da natureza não é mais res peitada constituise assim um pacto de conscientização para preservar os direitos que já existiam no estado da natureza Os homens tendo nascido iguais como está provado em uma liberdade perfeita e com o direito de usufruir tranquilamente e sem contradição de todos os direitos e de todos os privilégios das leis da natureza cada um tem pela natureza o poder não somente de conservar seus próprios bens isto é sua vida sua liberdade e suas riquezas contra todas as ações todos os atentados dos outros mas ainda de julgar e de punir aque les que violam as leis da natureza quando considerar que a ofensa merece de punir mesmo com a morte no caso de se tratar de algum crime hediondo que julgar merecer a morte ora porque não pode haver sociedade política e sobreviver se ela não tem poder de conservar o que lhe pertence e por essa razão punir as faltas de seus membros só existe socie dade pública quando cada um dos membros abdicarem de seu poder colocandoo nas mãos da sociedade para que ela possa dispor dele em todas as espécies de causas o que não impede de recorrer às leis estabelecidas por ela através desse meio todo julgamento de particulares estando excluído a so ciedade adquire o direito de soberania e as leis sendo esta belecidas e certos homens autorizados pela comunidade para executálas acabam todas as diferenças que possam existir en tre os membros da sociedade em questão referente a qualquer matéria de direito e punemse as faltas cometidas por algum 133 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo membro contra a sociedade em geral ou contra alguém per tencente ao corpo de juízes conforme as penas estabelecidas pelas leis LOCKE 1992 p 206 tradução nossa O contrato social O contrato social para Locke diferentemente da visão de Hobbes a respeito não implica submissão ao governo Este é obrigado a respeitar as leis estabelecidas tanto quanto cada in divíduo O povo tem direito de rebelião contra o abuso de poder das autoridades e uma vez mantidos os direitos naturais resul tado de um consenso todo governo é limitado Um poder arbitrário e absoluto e um governo sem leis estabele cidas e estáveis não seriam capazes de atender aos fins da so ciedade e do governo De fato os homens deixariam a liberda de do estado natural para se submeter a um governo no qual suas vidas suas liberdades seu descanso seus bens não teriam segurança Não nos é possível supor que tenham a intenção ou mesmo o direito de conceder a um homem ou a vários um poder absoluto e arbitrário sobre si mesmos e seus bens e de permitir ao magistrado ou ao príncipe fazer em relação a eles tudo o que quisessem arbitrariamente e sem limites o que se ria seguramente se colocar em uma situação muito pior do que aquela do estado natural no qual se tem a liberdade de defen der seu direito contra as injúrias de outro e de se manter no caso de se possuir força suficiente contra a invasão do outro ou de um grupo De fato na suposição de nos entregar ao poder absoluto e à vontade arbitrária de um legislador estaríamos de sarmando a nós mesmos e armando esse legislador de maneira que aqueles que lhe são submissos tornamse sua presa e são tratados como ele assim o desejar LOCKE 1992 p 245246 tradução nossa 134 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O princípio constitutivo do Estado Deus Na obra de Locke diferentemente da de Hobbes há um princípio constitutivo da moral e do Estado Deus Segundo a teoria dos mandamentos divinos a verdade ou falsidade dos juí zos morais dependem da vontade de Deus o que significa dizer que os fatos éticos e morais são simples convenções estabeleci das por Deus Para Locke os direitos naturais o direito à vida à liberdade e à propriedade estão fundados no fato de que a vida é obra divina e pertence a Deus Por exemplo O direito à vida Deus criou os homens como iguais e independentes e por isso é proibida toda agressão à vida humana daí o direito à autodefesa O direito à liberdade se os homens nasceram iguais ne nhum tem direito sobre o outro Porém existem limites legítimos que impedem que os homens sejam sempre li vres São os decretos naturais como o direito segundo o qual a liberdade não pode violar o direito à propriedade pois se Deus criou os homens iguais todos têm a mesma chance de conquistar terras e de cultiválas Neste sentido afirma o estado de natureza é regido por um direito natural que se impõe a todos e com respeito à razão que é este direito toda a humanida de aprende que sendo todos iguais e independentes ninguém deve lesar o outro em sua vida sua saúde sua liberdade ou seus bens todos os homens são obra de um único Criador todopoderoso e infinitamente sábio todos servindo a um único senhor soberano enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço são portanto sua propriedade daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém Dotados de faculdades similares dividindo tudo em uma única comunidade da natureza não se pode conceber que exista entre nós uma hierarquia que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros como se tivéssemos sido feitos para 135 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo servir de instrumento às necessidades uns dos outros da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas LOCKE 2015 p 36 Considerações finais Do ponto de vista da distinção entre o moral e o ético en contramos na obra de Locke além das normas de conduta moral e de cidadania a preocupação do filósofo com o ético propria mente dito na medida em que escreveu várias obras em defesa do princípio de tolerância como intrínseco ao que é singular mente próprio à questão da liberdade Tratase especificamen te da tolerância religiosa pois em sua época eram comuns as guerras e perseguições religiosas Desenvolveu sua teoria da tolerância por meio de debates com o teólogo de Oxford Jonas Proast que defendia a tese con trária escreveu a respeito sob o pseudônimo de Philanthropus principalmente as chamadas Segunda Carta e Terceira Carta pu blicadas respectivamente em 1690 e 1692 Sua teoria da tolerância é eminentemente ética na medida em que procura estabelecer o sentido de uma liberdade espiri tual irrestrita Em sua busca pela compreensão dos fundamentos da opção religiosa Locke expressa não apenas sua posição sobre os limites da atividade do Estado mas ainda procede a uma in vestigação da estrutura epistêmica do dogma religioso Para Locke a tolerância é um bem para a sociedade e para a própria religião porque traz a paz e a ordem tarefas do Estado segundo o filósofo não temos outro guia que não seja a razão e esta não aceita submissão cega à vontade e às ordens de outrem 136 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Com relação à moral em Descartes é incorreto afirmar a Busca tranquilidade para o bem pensar para estabelecer a melhor for ma de proceder diante dos fatos imediatos da vida não se furtando à prática mas procurando de maneira provisória seguir aquilo que se apresenta para a razão como a melhor forma de proceder b É na noção de utilidade que se funda o pensamento de Descartes pois devemos procurar aquilo que nos torna mais felizes mesmo que para isso devamos desrespeitar as leis e os costumes de um povo procu rando assim alterar a ordem do mundo e não os nossos desejos c Sempre agir de forma moderada evitando os excessos a fim de não se distanciar demais da verdade por ter escolhido um dos excessos bem como por ser o excesso sempre prejudicial d A fim de vencer os desejos por bens exteriores procurar sempre ven cer a si mesmo e não a ordem do mundo procurando imitar nisso aqueles filósofos que mesmo não possuindo bens exteriores pude ram disputar a felicidade aos seus deuses 2 Sobre a relação da alma com o corpo para Spinoza é incorreto afirmar a alma e corpo são modos dos atributos pensamento e extensão que por sua vez são manifestações de uma mesma e única substância Deus b Diferentemente de Descartes para quem o corpo seria apenas um me canismo ou uma máquina que obedece os mandamentos da alma ou razão para Spinoza alma e corpo tem o mesmo status ontológico ou seja não há domínio da alma sobre o corpo nem do corpo sobre a alma c Assim como para Descartes Spinoza apesar de compreender a exis tência de uma única substância que é infinita Deus acredita que a alma é quem comanda o corpo pois faz parte do atributo pensamento o qual se identifica de maneira mais perfeita com a substância divina d Não há nada que não afete o corpo que não afete também a mente Proposição conversível Ambos são manifestação de uma mesma subs tância infinita efeitos de sua existência necessária 137 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 Pensando nos gêneros de conhecimento propostos por Spinoza faça a re lação deles com a felicidade e a liberdade para esse pensador I Primeiro gênero de conhecimento a imaginação ou ideias inadequadas II Segundo gênero de conhecimento noções comuns ou ideias adequadas III Terceiro gênero de conhecimento a beatitude visão das coisas singu lares do ponto de vista da eternidade À medida que a mente compreende as coisas como necessárias ela tem um poder maior sobre seus afetos ou seja deles padece menos A servidão passional nasce assim da ignorância e a alimenta dividin do o mundo em coisas boas e coisas más acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm Tratase de um pseudoconhecimento das causas finais o que leva à superstição religiosa com a ideia de um Deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal em função do culto que lhe rendemos Sem auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar sua alma Chegamos pois a esta conclusão o direito natural no que concerne propriamente ao gênero humano dificilmente pode ser con cebido a não ser quando os homens têm direitos comuns terras que podem habitar e cultivar juntos quando podem velar pela manuten ção de seu poder protegerse repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a todos Quanto maior for o número dos que assim se reunirem mais direito terão em comum 4 Podemos afirmar que a diferença essencial entre o pensamento de Hobbes de Locke consiste em que a Para Hobbes a moral só existe dentro de um Estado de direito pois no Estado de natureza todos têm poder ilimitado sobre tudo ao contrá rio para Locke o homem já nasce com direitos inalienáveis garantidos pela razão e por seu criador Deus b Hobbes é um contratualista enquanto Locke não o é c Locke discorda de Hobbes no sentido de que não entende o Estado de direito como sendo necessário para a vida em sociedade podendo cada um gerir a si mesmo e tomar conta de suas propriedades 138 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo d Hobbes pensa que o Estado de natureza era melhor que o Estado de direito pois naquele estado o homem tem direito a todas as coisas enquanto Locke pensa no Estado de natureza como sendo um terri tório de ninguém onde a vida do homem é breve bruta e miserável Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 b 2 c 3 III I e II 4 a 10 CONSIDERAÇÕES Nesta unidade vimos as principais mudanças e os pensado res que foram decisivos para uma nova Epistemologia que será o novo paradigma da Modernidade Tal Epistemologia fundada na ra zão matemática e na experimentação controlada como se buscou mostrar ao longo do estudo desta obra não foi capaz de contemplar o ético em sua dimensão própria levandonos a um significativo de senvolvimento da moral No entanto como veremos em alguns dos filósofos modernos aqui e ali a questão da Ética toma corpo e vai delineando um anseio para o seu tratamento adequado Nesse sentido é importante que você siga nesta obra procu rando reconhecer em que medida a questão do ético aparece em meio a uma epistemologia nova moderna razão teórica e experi mentação controlada e o esforço dos filósofos em face dessa nova Epistemologia para encontrar um fundamento para a moral 139 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 11 ereFerÊncia FRATESCHI Y A Filosofia da Natureza e Filosofia Moral em Hobbes Cadernos de História e Filosofia da Ciência Campinas v 15 n 1 p 732 janjun 2005 Disponível em httpwwwcleunicampbrcadernospdfYara20Frateschipdf Acesso em 24 ago 2015 GLEIzER M A A beatitude de Espinosa Folha de S Paulo São Paulo 30 maio 2004 Disponível em httpescritonasestrelascomfilosofarindexphpoptioncontentt askviewid19Itemid33 Acesso em 22 abr 2015 HOBBES T Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil Trad João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva Disponível em httpwww dhnetorgbrdireitosanthistmarcoshdhthomashobbesleviatanpdf Acesso em 28 ago 2015 LOCKE J Segundo tratado sobre o governo civil Trad Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa Disponível em httpwwwxrprobrIFLOCKESegundoTratadoSobreO Governopdf Acesso em 24 ago 2015 PONCzEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 Disponível em httpsrepositorioufbabrribitstream ufba2071Deus20ou20seja20a20naturezapdf Acesso em 21 ago 2015 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESCARTES R Discurso do Método In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973a Meditações concernetes à primeira filosofia In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973b As paixões da alma In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973c Cartas In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973d Regras para a orientação do espírito São Paulo Martins Fontes 2007 Coleção Clássicos HOBBES T Léviathan Paris Silrey 1983 Leviathan London Cambridge University Press 1996 140 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil 2 ed São Paulo Martins Fontes 2008 LOCKE J Traité du gouvernement civil Paris GarnierFlammarion 1992 Carta acerca da tolerância Segundo tratado sobre o governo Ensaio acerca do entendimento humano 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 Os pensadores PONCzEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 SPINOzA B Ética Trad Tomaz Tadeu 2 ed Belo Horizonte Autêntica Editora 2008 Éthique Paris GF Flammarin 1965 141 Ética MOdeRna HUMe e Kant 1 OBJETIVOS Compreender a proposta do empirista David Hume so bre a moral Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel Kant 2 CONTEÚDOS O método empirista de David Hume O criticismo de Immanuel Kant 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 Como forma de sensibilização ao conteúdo tratado nes ta unidade indicamos que assista os seguintes filmes Amadeus de 1984 com direção de Milos Forman Barry Lyndon de 1975 com direção de Stanley Kubrick Danton o processo da Revolução de 1982 com di reção de Andrzej Wajda Unidade 3 142 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 2 Para iniciar nossa especulação sobre Kant e Hume in dicamos os vídeos a seguir SAVATER F La Aventura del Pensamiento Immanuel Kant Disponível em httpswwwyoutubecom watchvjNPRlhJlj2A Acesso em 25 ago 2015 La Aventura del Pensamiento David Hume Disponível em httpswwwyoutubecom watchvvHUNfRLzKhA Acesso em 23 abr 2015 GHIRALDELLI P Kant e a subjetividade moderna 1 Disponível em httpwwwyoutubecomwatch vSGPK7tGiXg0featurerelmfu Acesso em 25 ago 2015 Kant e a subjetividade moderna 2 Disponível em httpwwwyoutubecom watchv3gQamHOPtn4 Acesso em 25 ago 2015 4 INTRODUÇÃO Entre os anos de 1680 e 1715 verificase uma crise cultural na Europa Tudo que constituía a base da sociedade tradicional será passado sob o crivo da razão É o Século das Luzes Iluminis mo movimento intelectual social e político de todas as classes cultas São características desse movimento 1 O método da observação controlada dos fatos em bus ca de leis universais modelo de investigação inspirado na construção da Física de Newton 2 Crítica ao racionalismo dogmático que concebe a razão como detentora de todo conhecimento A razão pode tudo conhecer desde que bem conduzida 143 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 3 Herança de Descartes só o que for reconhecido legí timo pela razão do sujeito individual deve e pode ser considerado como tal 4 Início da era industrial com o crescimento do interesse pelos fenômenos econômicos 5 A salvação passa a não mais depender de Deus mas da boa vontade de cada um a origem do mal está na intenção daquele que age o homem ao contrário do que ensinava a religião não é incapaz por sua queda ou pecado original de chegar à verdade e ao bem 6 Em política a legitimidade do poder não é mais atri buída a uma ordem divina ou natural mas fundada na vontade dos indivíduos Duas grandes revoluções a americana e a francesa resultam desse processo de emancipação 7 A visão do ser humano que no século 16 se caracte rizava por uma profunda relação com a natureza tor nase predominantemente histórica Cada vez mais a humanidade se volta para uma existência baseada em projetos e não na repetição de ideias hábitos e cos tumes tradicionais visualizandose como passível de constante aperfeiçoamento por meio da educação e da história a Na segunda metade do século 18 o progresso no campo da difusão do conhecimento levará à for mação de uma opinião pública mais esclarecida o que permitirá reformas do estado social e político b Grande progresso das ciências e técnicas c A burguesia foi a principal responsável pelo movi mento resultou na globalização da economia 144 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt d Grande preocupação com o conhecimento incidin do sobre ele a chamada interpretação fenomenista presente na história da Filosofia desde a Antiguida de por exemplo os céticos e que como já disse mos consiste no caso do conhecimento em negar a possibilidade de conhecimento de todo em si 8 No campo das questões filosóficas propriamente ditas temos o desenvolvimento do empirismo na Inglaterra sua introdução na França o desenvolvimento do racio nalismo na Alemanha culminando com a superação de si mesmo tornandose como consequência do pen samento kantiano uma filosofia transcendental no sentido de uma filosofia que submete tudo ao crivo da razão 9 No que diz respeito à moral surgem inúmeras posi ções pois o desenvolvimento do empirismo abala de maneira significativa o caráter absoluto que era confe rido à moral até então relativizandoa Temos a Jeremy Bentham 17481832 defensor de uma moral utilitarista segundo a qual o fundamento da moral é a felicidade dos indivíduos sem prejuízo para o bemestar coletivo Sistematizou o princípio da utilidade Tratase de uma doutrina para a qual toda ação ou inação deverá promover o bemestar de todos os seres Observemos que tal posição já se encontra na Filosofia Antiga em Epicuro Importante para o utilitarismo não são os agen tes morais se são bons generosos ou não mas as consequências dos atos uma vez que dentro de circunstâncias diferentes um mesmo ato pode ser moral ou imoral dependendo de 145 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt suas consequências boas ou más É o que se denomina de consequencialismo agir sem pre de forma a produzir a maior quantidade de bemestar possível O critério para classificar o ato como bom ou mau seriam os resultados em todos os indiví duos afetados pela ação ou seja a quantidade total de bemestar produzida Assim é válido sa crificar uma minoria pois o bemestar de cada indivíduo tem o mesmo peso com relação ao bemestar geral Em outras palavras atribuem se valores ao bemestar independentemente de indivíduos e culturas Há dessa maneira um universalismo b Temos ainda como representante da posição uti litarista James Mill 17331836 filósofo e histo riador escocês c Bernard de Mandeville 16701733 filósofo ho landês segundo o qual não há princípios morais de valor absoluto que fundamentem os atos sociais Os homens agem de acordo com seus interesses individuais portanto a moral se basearia em fato res referentes aos interesses dos indivíduos expe rimentalmente comprovados d Adam Smith 17231790 filósofo e economista escocês concebe a moral também baseada na experiência Para ele a simpatia seria o critério da moralidade Por simpatia entendia a comunica ção à nossa alma das emoções de outrem Agimos bem quando o que fazemos merece a simpatia a mais universal possível 146 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 10 Como reação ao empirismo temos a chamada Escola Escocesa Originase na Sociedade Filosófica fundada pelo filósofo escocês Thomas Reid 17101796 É tam bém chamada Escola do Senso Comum Um de seus re presentantes principais foi Anthony A C Shaftesbury fi lósofo inglês cuja posição sobre a moral é denominada de moral do sentimento Baseia sua concepção de moral nos juízos do senso comum e também na existência de Deus uma vez que o senso comum seria inspirado por Deus Para ele embora a fonte comum do conhecimen to seja a experiência existem algumas ideias peculiares que acompanham as sensações como as ideias do bem e do belo que são inatas não resultam da experiência Surgem como uma disposição especial da alma São imediatas universais desinteressadas Tratase de uma faculdade moral que tem por objeto a bondade moral Na presente unidade selecionamos para um estudo mais aprofundado dois dos mais influentes representantes das posi ções empirista e racionalista no século 18 e que são respectiva mente David Hume e Immanuel Kant 5 david huMe 17111776 Nascido em Edimburgo Escócia Hume lutou desde o iní cio para poder se dedicar à literatura e à Filosofia opondose à própria família que desejava vêlo seguir a carreira jurídica Também o sucesso demorou a acontecer Com o sucesso porém sua filosofia é ainda hoje consi derada como uma das grandes influências sobre o pensamen to contemporâneo tanto no que concerne à chamada Filosofia 147 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Analítica que reduz a Filosofia a uma pesquisa sobre a lingua gem quanto no que se refere a filosofias como a Fenomenologia de Edmund Husserl que busca levar a atitude de Descartes às suas últimas consequências visando a uma fundação radical do conhecimento A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de hume encontrase no livro 3 intitulado da Moral de sua obra Tratado da natureza humana O fenômeno da moralidade segundo Hume surge no rela cionamento dos indivíduos entre si Para Hume não é concebível que todos os atos das pessoas sejam tidos como moralmente equivalentes que todos os atos sejam igualmente dignos de es tima e consideração As distinções morais são para ele uma rea lidade Seu objetivo é descobrir quais são os princípios univer sais dos quais deriva toda censura ou aprovação e quais tipos de percepções nos permitem fazer distinções morais como entre o bem e o mal entre o certo e o errado etc Busca igualmente saber em quais circunstâncias essas percepções surgem Hume entende a questão moral como uma questão de leis e regras de funcionamento da natureza humana nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na na tureza humana algum motivo que a produza A teoria moral de Hume não tem pois como referência um transcendente independente da experiência dos sentidos como a vontade de Deus ou uma razão a priori Volta sua reflexão para a interioridade pura pressupondo que a alma seja um campo de percepções impressões e ideias Para o filósofo nada existe previamente no nosso pensamento Tudo vem da experiência e é portanto de natureza sensível 148 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A questão moral está fundada no movimento emotivo ou emoção e não no entendimento A primeira questão colocada por Hume é a de saber se as distinções morais são derivadas da razão Entende a razão como um puro cálculo de meios capaz apenas de avaliar os melhores meios para um determinado fim mas sem o poder de demons trar o caráter desejável ou não desses fins em si mesmos Uma ação não é virtuosa ou viciosa pelo fato de obedecer à razão mas pelo fato de nos proporcionar uma sensação agradável ou desagradável Ao entender a razão teórica como um puro cálculo de meios Hume postula uma moral fundada inteiramente em uma capacidade emotiva ou seja na capacidade humana de agir impulsionada por um motivo por algo que move ou que causa ou dá origem a algo Para Hume a ação é apenas um sinal externo pois a ava liação moral diz respeito ao motivo que produziu a ação A ação moralmente correta segundo o filósofo seria aquela na qual o agente age movido por um motivo virtuoso mesmo no caso de não realização da ação em razão de outras causas É o que vere mos no texto do filósofo a seguir 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consideramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Te mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali dade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixa mos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 149 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa rea lize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos su pondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o te nha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situação descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por algu ma circunstância que nos era desconsiderada retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que te ríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Segundo Hume portanto a razão tem apenas um papel instrumental o papel de ser apenas guia da ação a razão não diz quais devem ser os nossos objetivos apenas o que devemos fazer para atingilos pode nos dizer em que acreditamos mas não pode nos dizer no que devemos acreditar A aprovação moral logo não é um juízo da razão sobre conceitos ou fatos Em outras palavras não basta conhecer o ca ráter de virtude de uma ação o sentido de sua dimensão moral é necessário agir movido por um motivo virtuoso A ação moral mente virtuosa não é aquela em que o agente é simplesmente movido pelo caráter de virtude da ação mas aquela em que o agente é movido por um motivo virtuoso Vejamos um texto de Hume a esse respeito 4 Vemos portanto que todas as ações virtuosas derivam seu mérito unicamente de motivos virtuosos sendo tidas apenas como signos desses motivos Desse princípio concluo que o pri meiro motivo virtuoso que confere mérito a uma ação nunca pode ser uma consideração pela virtude dessa ação devendo ser antes algum outro motivo ou princípio natural Supor que a mera consideração pela virtude da ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio circular Pra que possamos ter tal consideração a ação tem de 150 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt ser realmente virtuosa e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso conseqüentemente o motivo virtuoso precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne vir tuosa Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude Portanto algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração 7 Em resumo podemos estabelecer como uma máxima indu bitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produza distinto do sentido de sua moralidade HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Hume dá como exemplo uma ação de honestidade e faz a dis tinção entre o simples conhecimento do caráter de virtude de uma ação de honestidade e a existência ou não de um motivo virtuoso propriamente dito Mostra que não é simplesmente o agir por con siderar a honestidade uma virtude que torna a ação honesta mas o motivo virtuoso presente ou não no interior da natureza do agente 9 Agora apliquemos tudo isso ao caso presente Suponhamos que uma pessoa tenha me emprestado uma soma em dinheiro sob a condição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns dias suponhamos também que no fim do prazo combinado ela me peça o dinheiro de volta Pergunto que razão ou motivo tenho para devolverlhe o dinheiro Dirseá talvez que meu respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestida de são para mim razões suficientes se possuo um mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação Sem dúvida essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu es tado de civilização e quando formado segundo certa discipli na e educação Mas em sua condição rude e mais natural se quereis chamar de natural tal condição essa resposta seria re jeitada como completamente ininteligível e sofística Pois uma pessoa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos perguntaria em que consiste essa honestidade e justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da 151 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt propriedade alheia Certamente não está na ação externa Por conseguinte tem de estar no motivo de que essa externa foi derivada Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela honestidade da ação pois é uma clara falácia dizer que é preci so um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta e ao mes mo tempo em que a consideração pela honestidade é o moti vo da ação Só podemos ter consideração pela virtude de uma ação se a ação for de antemão virtuosa Ora uma ação só pode ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso Um motivo vir tuoso portanto deve anteceder a consideração pela virtude é impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude sejam a mesma coisa HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Quando o motivo de uma ação for tão somente o sentido da moralidade ou do dever ela pode estar expressando uma ca rência É o que diz Hume 8 Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode produzir uma ação sem qualquer outro motivo Respondo que sim mas que isso não constitui uma objeção à presente doutri na Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na na tureza humana uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão e pode rea lizar a ação sem o motivo apenas por certo sentido do dever ao menos para disfarçar para si mesma tanto quanto possível sua carência Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu íntimo pode apesar disso ter prazer em praticar cer tos atos de gratidão pensando desse modo ter realizado o seu dever As ações inicialmente são consideradas somente como signos de motivos mas o que costuma ocorrer nesse caso e em todos os demais é que acabamos fixando nossa atenção apenas nos signos negligenciando em parte a coisa significada HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 E Hume conclui 10 É preciso encontrar portanto para os atos de justiça e ho nestidade algum motivo distinto de nossa consideração pela honestidade e é nisso que está a grande dificuldade Porque 152 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt se disséssemos que a preocupação com nosso interesse priva do ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as ações honestas seguirseia que sempre que cessa tal preocu pação a honestidade não poderia mais ter lugar Mas é certo que o amor a si próprio quando age livremente em vez de nos levar a ações honestas é fonte de toda injustiça e violência e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 essa capacidade emotiva que propicia ações moralmente vir tuosas é para hume uma percepção Por influência da teoria do senso comum dos moralistas ingleses e escoceses de que falamos na introdução desta unida de Hume concebe essa capacidade emotiva como sendo uma faculdade de percepção moral imediata e desinteressada simi lar às faculdades de percepção sensorial uma faculdade que de tectaria qualidades morais em pessoas ações comportamentos e situações tal como nossos sentidos externos captam qualida des nos objetos externos Ao examinar o que nos motiva a agir de certa maneira podemos determinar a natureza de uma virtu de especificamente se ela é natural ou artificial Virtudes naturais e artificiais as virtudes naturais seriam aquelas naturalmente apro vadas a benevolência a humildade a caridade a generosidade As virtudes artificiais por sua vez seriam as mais necessá rias porque segundo Hume os valores morais mais importantes são uma questão de convenção social São elas a justiça o cum primento de promessas a lealdade a modéstia etc 153 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt No homem observase uma conjunção antinatural de fragilida de e de necessidade Hume afirma 2 De todos os animais que povoam nosso planeta à primeira vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel dadas as inúmeras carências e necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe fornece para aliviar essas necessidades Em outras criaturas esses dois pontos em geral se compensam mutuamente Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro descobriremos que é cheio de necessidades mas se prestarmos atenção em sua constitui ção e temperamento sua agilidade sua coragem suas armas e sua força veremos que nele as vantagens são proporcionais às carências O carneiro e o boi carecem de todas essas vanta gens mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil de obter Apenas no homem se pode observar em toda a sua perfeição essa conjunção antinatural de fragilidade e necessi dade Não somente o alimento necessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação ou ao menos exige traba lho para ser produzido como além disso o homem precisa de roupas e abrigo para se defender das intempéries Entretanto considerado apenas em si mesmo ele não possui armas força ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau condizente com as necessidades HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 Pela sociedade e pela formação da família o homem se torna superior às demais criaturas Para o filósofo 3 Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiên cias igualandose às demais criaturas e até mesmo adquirindo uma superioridade sobre elas Pela sociedade todas as suas de bilidades são compensadas embora nessa situação suas ne cessidades se multipliquem a cada instante suas capacidades 154 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt se ampliam ainda mais deixandoo em todos os aspectos mais satisfeito e mais feliz do que jamais poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária Quando cada indivíduo trabalha isoladamente e apenas para si mesmo sua força é limitada de mais para executar qualquer obra considerável tem de empre gar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades e sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer a ruína e a infelicidade A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenientes A conjunção de forças amplia nosso poder a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade e o auxílio mú tuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes É por essa força capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa 4 Mas para que a sociedade se forme não basta que ela seja vantajosa os homens também têm de se dar conta de suas vantagens Entretanto em seu estado selvagem e inculto é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse conhecimento Felizmente junto com essas necessidades cujos remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessida de que por ter um remédio mais imediato e evidente pode ser legitimamente considerada o princípio primeiro e original da sociedade humana Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natural que existe entre os sexos unindoos e preser vando sua união até o surgimento de um outro laço ou seja a preocupação com sua prole comum Essa nova preocupação também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos formando uma sociedade mais numerosa em que os pais go vernam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria e ao mesmo tempo têm o exercício de sua autoridade limitado pela afeição natural que sentem por seus filhos Em pouco tem po o costume e o hábito agindo sobre as tenras mentes dos filhos tornamnos sensíveis às vantagens que podem extrair da sociedade além de gradualmente formálos para essa socieda de aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem sua coalizão HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 155 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O poder das paixões pode ser um obstáculo ao exercício da ge nerosidade advinda do convívio social Hume diz 6 Entretanto embora devamos reconhecer em honra da na tureza humana a existência dessa generosidade podemos ao mesmo tempo observar que essa paixão tão nobre em vez de preparar os homens para a vida em sociedades é quase tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo Pois enquanto cada pessoa amar a si mesma mais que a qualquer outro e em seu amor pelos demais sentir maior afeição por seus parentes e amigos essa situação deve necessariamente produzir uma oposição de paixões e conseqüentemente uma oposição de ações e para uma união recémestabelecida isso só pode ser perigoso 7 Notese entretanto que essa contrariedade de paixões se ria pouco perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstâncias externas que dá a ela oportunidade de se exercer Os bens que possuímos podem ser de três espécies diferentes a satisfação interior do espírito as qualidades ex teriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com o nosso trabalho e nossa boa sorte Podemos usufruir dos primeiros com plena segurança os segundos podem nos ser tomados mas não beneficiam em nada a quem deles nos priva Apenas os últimos podem ser transferidos sem sofrer alguma perda ou alteração além disso não existem em quan tidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas Por isso assim como o aperfeiçoamento desses bens é a principal vantagem da sociedade assim tam bém a instabilidade de sua posse justamente com a sua es cassez é seu maior impedimento HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 156 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A solução são as virtudes artificiais a necessidade de uma con venção social O filósofo afirma 9 O remédio portanto não vem da natureza mas do artifício ou mais corretamente falando a natureza fornece no juízo e no entendimento um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos Porque quando os homens em sua primeira educação na sociedade tornamse sensíveis às infi nitas vantagens que dela resultam e além disso adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversação e quando observam que a principal perturbação da sociedade se deve a esses bens que denominamos externos a sua mobilidade e à facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra en tão precisam buscar um remédio que ponha esses bens tanto quanto possível em pé de igualdade com as vantagens firmes e constantes da mente e do corpo Ora o único meio de rea lizar isso é por uma convenção de que participam todos os membros da sociedade para dar estabilidade à posse desses bens externos permitindo que todos gozem pacificamente da quilo que puderam adquirir por trabalho ou boa sorte Desse modo cada qual sabe aquilo que pode possuir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e con traditórios Tal restrição não é contrária às paixões se o fosse jamais poderia ser feita nem mantida É contrária apenas a seu movimento cego e impetuoso Em vez de abrir mão de nossos interesses próprios ou do interesse de nossos amigos mais próximos abstendonos dos bens alheios não há melhor meio de atender a ambos que por essa convenção porque é desse modo que mantemos a sociedade tão necessária a seu bemestar e subsistência como também aos nossos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 157 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A ideia de justiça é uma virtude artificial porque é obtida por uma convenção social e funda e explica as ideias de proprieda de de direito e de obrigação Hume prossegue 11 Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses surgem imediatamente as idéias de justiça e de in justiça bem como as de propriedade direito e obrigação Essas últimas são absolutamente ininteligíveis sem a compreensão das primeiras Nossa propriedade não é senão aqueles bens cuja posse constante é estabelecida pelas leis da sociedade isto é pelas leis da justiça Portanto aqueles que utilizam as palavras propriedade direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça ou que fazem uso daquelas para explicar essa última estão come tendo uma falácia grosseira mostrandose incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido A propriedade de uma pessoa é um objeto a ela relacionado essa relação não é natural mas moral e fundada na justiça É absurdo portanto imaginar que podemos ter uma idéia de propriedade sem compreender completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção humana A origem da justiça explica a da propriedade Ambas são geradas pelo mesmo artifício Como nosso primeiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estranhos é impos sível que exista naturalmente algo como um direito ou uma pro priedade estabelecida enquanto as paixões opostas dos homens impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhu ma convenção ou acordo HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 Um ato isolado de justiça não atinge a sua finalidade porque sendo isolado e único é frequentemente contrário ao interesse público Sendo a justiça produto de uma convenção social tem como fim o interesse público Portanto um ato isolado e privado de justiça não atingiria a sua finalidade 158 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 22 Quando um homem de mérito dado à caridade restitui uma grande fortuna a um avaro ou a um enganador desleal ele agiu de maneira justa e louvável mas o grupo sofrerá as conseqüên cias Todo ato isolado de justiça considerado separadamente não contribui nem ao interesse privado nem ao interesse público e poderemos facilmente conceber de que maneira alguém pode empobrecer em conseqüência de um caso isolado de integridade e em razão de desejar que por um só ato as leis da justiça sejam em todo o universo suspensas por um instante Mas embora os atos isolados de justiça sejam contrários ao interesse públi co e privado é certo que um plano ou esquema de vários atos contribuem altamente através da verdade e são absolutamente necessários à sustentação da sociedade e um benefício para cada indivíduo É impossível separar o bem do mal Ainda que um grupo sofra em determinado caso este mal temporário é grande mente compensado pela obediência constante à regra e pela paz e ordem que ela institui na sociedade HUME 1991 p 9899 Considerações finais Finalizando gostaríamos de assinalar que o afastamento de uma razão abstrata e conceitual como fonte ética da ação moral conduz Hume na direção do que entendemos como sen do uma das facetas essenciais do ético propriamente dito tal como o estamos compreendendo nesta obra e que consiste em contemplar o caráter intencional singular de cada ato compor tamento e situação Contemplar o caráter intencional de uma ação comportamento ou situação é contemplar sua morada interior e não a morada exterior ou o fato da ação em si a realização externa não tem nenhum mérito diz hume vimos como o filósofo descreve essa morada interior fundamentandoa na motivação o que importa é o caráter emotivo da ação aquilo que a move e que a distingue da mo rada exterior que é a ação apenas como puro sinal 159 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt No tópico seguinte a este trabalharemos a posição do filóso fo Immanuel Kant cujas reflexões sobre a moral receberam como ele mesmo diz grande influência do pensamento de Hume a quem atribui o despertar do sono dogmático em que se encontrava 6 iMManuel kant 17241804 Kant nasceu viveu e morreu em Königsberg Prússia Oriental atual Alemanha Nasceu em uma família de poucos recursos finan ceiros Recebeu uma educação particularmente de sua mãe fun dada nos princípios do pietismo corrente radical do protestantismo prussiano originário de um movimento da Igreja Luterana alemã do século 18 lutou sempre com dificuldades tanto materiais quanto no que se refere à compreensão de sua proposta filosófica inovado ra Mantevese porém firme em seu trabalho de grande rigor A época em que viveu Kant o século 18 como foi dito na introdução desta unidade é chamada de Século das Luzes ou Ilu minismo ou ainda Era da Razão época da qual é um dos maio res representantes e que tinha por objetivo principal reformar a sociedade contra a intolerância da Igreja e do Estado Kant não nega a importância da religião que tem segundo ele sua razão de ser uma vez que existe todo um mundo que escapa às capacidades da razão Porém quer mostrar que o fun damento do conhecimento e da moral pode ser encontrado fora da religião que até então dominara Segundo Kant não podemos pretender conhecer realida des transcendentes às quais não temos acesso Devemos nos li mitar a buscar conhecer a realidade que é objeto de experiência para nós E para tanto fazse necessário esclarecer qual seria a estrutura de nossas capacidades cognitivas aquelas que não de 160 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt correm de experiências individuais e particulares mas que dizem respeito a toda a humanidade como tal A conclusão a que chega é que as duas fontes do conheci mento sensibilidade e entendimento estão no sujeito e não no mundo leia o tópico kant e o iluminismo desta mesma unidade Kant e a moral As quatro principais obras de Kant em que a moral é trata da mais longamente são Fundamentação da metafísica dos costumes 1785 Crítica da razão prática 1788 Crítica da faculdade de julgar 1790 A paz perpétua um projeto filosófico 1795 a teoria da boa vontade Kant começa afirmando que a única coisa que merece a denominação de bem e de bom é o que chamou de boa vontade a boa vontade é no dizer de kant o que é possí vel conceber no ou fora do mundo como bom sem restrição Os diversos talentos do espírito como inteligência capacidade de julgar coragem decisão perseverança e temperança serão coisas boas ou ruins dependendo das disposições próprias ou do caráter da vontade que os esteja usando Poderíamos dizer o mesmo de dons como poder riqueza felicidade Tais talentos ou dons trazem segundo o filósofo uma confiança em si que frequentemente na ausência de uma boa vontade se conver tem em presunção NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo ou mesmo fora do mundo que sem restrição possa ser considerada boa a 161 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt não ser uma só uma BOA VONTADE A inteligência o dom de apreender as semelhanças das coisas a faculdade de julgar e os demais talentos do espírito seja qual for o nome que se lhes dê ou a coragem a decisão a perseverança nos propósitos como qualidades do temperamento são sem dúvida sob múl tiplos respeitos coisas boas e apetecíveis podem entretanto estes dons da natureza tornarse extremamente maus e preju diciais se não for boa vontade que deles deve servirse e cuja especial disposição se denomina caráter O mesmo se diga dos dons da fortuna O poder a riqueza a honra a própria saúde e o completo bemestar e satisfação do próprio estado em resu mo o que se chama felicidade geram uma confiança em si mes mo que muitas vezes se converte em presunção quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação Isto sem contar que um especta dor razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz KANT 1994 p 4 A boa vontade é boa em si mesma não está condicionada a circunstâncias O homem é regido por ele mesmo é criador de valores morais Essa consciência moral não é nem instintiva nem emotiva É a própria razão Kant e Hume Para Kant a razão não tem apenas um papel instrumental como para Hume Toda moralidade funda sua autoridade apenas na razão Só a razão determina se uma ação é boa ou má inde pendentemente de nossos desejos Enquanto seres sensíveis estamos submissos ao mecanis mo natural porém como seres dotados de inteligência somos 162 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt capazes de pensar conhecer a nós mesmos e emitir juízos mo rais o que nos torna capazes de escapar ao determinismo da natureza Apenas em alguns casos nossas ações podem ser produ zidas por desejos e crenças Isso acontece quando agimos por inclinação Quando nossas ações são guiadas por considerações morais a razão determina não apenas os meios mas também os fins de nossas ações A questão que se coloca é então a se guinte que razão é essa que por si mesma ordena o que deve acontecer independentemente de todo e qualquer fenômeno e portanto universalmente a todo ser humano Propõe Kant a si então a tarefa de circunscrever os limites de possibilidade tanto da razão responsável pelo conhecimento a especulativa quanto da razão responsável pela moral A razão responsável pela moral é a razão prática Ao tentar fundamentar a moral Kant é levado à proposi ção de uma razão distinta da razão especulativa É a razão que denominou de prática a consciência moral é a razão prática segundo Kant Como observa García Morente em Fundamentos da filosofia 1980 Kant vai buscar em Aristóteles essa denomi nação em cuja também a moral significa razão prática razão prática quer dizer que na consciência moral atua algo que se assemelha à razão mas não é a razão especulativa A consciência moral ou razão prática contém princípios racionais em virtude dos quais nós seres humanos regemos nossa vida É a razão aplicada à ação Essa razão prática contém qualificativos como bom mal moral imoral etc Não tendo a ra zão prática como tem a razão especulativa que rege o conheci 163 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt mento por meta determinar a essência das coisas seus qualifi cativos não se aplicam a coisas as coisas não são boas ou más morais ou imorais mas só se aplicam ao homem Os qualificati vos morais se aplicam ao que o homem quer fazer ou seja ao exercício da vontade Assim por exemplo se alguém comete um erro involuntariamente não podemos qualificálo nem de bom nem de mau nem de moral nem de imoral porque o ato não foi cometido no exercício de sua vontade As três grandes dimensões da consciência moral ou razão prática Trabalharemos a noção de razão prática ou consciência moral em Kant a partir de três grandes dimensões a ela con feridas pelo filósofo São elas a dimensão da universalidade a dimensão da autonomia e a dimensão da liberdade A dimensão da universalidade a razão pura prática ou consciência moral determina a vontade a partir de imperativos O critério fundamental racional para qualificar uma ação como ação moral isto é como ação universalmente válida se ria segundo Kant a existência dessa razão pura prática capaz de estabelecer uma universalidade no que se refere à moral assim como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni versalidade no que diz respeito ao conhecimento Temos então uma razão pura universal que se diferencia em razão pura espe culativa e razão pura prática A razão pura especulativa possuiria a capacidade de determinar a priori o conhecimento do sujeito cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa mesma capaci dade de determinar a priori a vontade do sujeito agente 164 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A razão pura prática daria à vontade de cada um vontade subjetiva particular ordenamentos objetivos Esses ordenamen tos seriam imperativos diz kant A representação de um princípio objectivo enquanto obrigante para uma vontade chamase um mandamento da razão e a fór mula do mandamento chamase imperativo KANT 1960 p 48 Em outras palavras todo ato voluntário se apresenta à ra zão na forma de um imperativo ou seja todo ato ao se realizar aparece à consciência à maneira de um mandamento faça isto não aja assim Os imperativos diz Kant podem ser hipotéticos ou cate góricos Os imperativos hipotéticos sujeitam o mandamento em questão a uma condição se queres obter x faça y Nos impe rativos categóricos ao contrário o mandamento não está sob nenhuma condição impera de maneira absoluta Vejamos a res peito um texto de Kant Ora todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categori camente Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer ou que é possível que se queira O impera tivo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma sem relação com qualquer outra finalidade KANT 1960 p 4851 O imperativo da moralidade é um imperativo categórico Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamen te necessária e boa em si mesma portanto o imperativo da moralidade é um imperativo categórico Há por fim um imperativo que sem se basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comporta mento ordena imediatamente este comportamento Este im 165 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt perativo é categórico Não se relaciona com a matéria da acção e com o que dela deve resultar mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva e o essencialmente bom na acção reside na disposição Gesinnung seja qual for o resultado Este imperativo podese chamar o imperativo da moralidade KANT 1960 p 52 grifo nosso A lei moral enquanto imperativo categórico é universal O imperativo categórico é universal porque contém ao mesmo tempo a lei e o princípio da necessidade de se confor mar com essa lei Como não há condição que limite a lei todo imperativo categórico é universal Vejamos o texto de Kant a esse respeito Quando penso um imperativo hipotético em geral não sei de an temão o que ele poderá conter Só o saberei quando a condição me seja dada Mas se pensar um imperativo categórico então sei imediatamente o que é que ele contém Porque não contendo o imperativo além da lei senão a necessidade da máxima que manda conformarse com esta lei e não contendo a lei nenhuma condição que a limite nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da acção deve ser conforme conformidade essa que só o imperativo nos representa propria mente como necessária KANT 1960 p 5859 Consequentemente a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de imperativos Querer o bem ou a busca do bem não poderia portanto segundo Kant fazer parte da moralidade pois o princípio moral é por sua própria natureza independente de crenças culturas e tradições Fundamentase em algo universal a lei Assim uma vontade perfeitamente boa como seriam a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de imperativos não se apresen tam como obrigadas a leis Diz Kant que 166 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto igualmente submetida a leis objectivas do bem mas não se poderia repre sentar como obrigada a acções conformes à lei pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pela representação do bem Por isso os imperativos não valem para a vontade divina nem em geral para uma vontade santa o de ver Sollen não está aqui no seu lugar porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei KANT 1960 p 4851 A dimensão da autonomia toda ação moral é uma ação autônoma As leis morais seriam segundo Kant destituídas de todo valor moral se seu princípio determinante tivesse outra origem que não fosse a lei que traz nela mesma essa certeza apodítica certeza evidente Assim ao contrário da ação heterônoma que é instintiva e não decorre da vontade do agente como seria o caso da moral aristocrática que depende de ideais transcendentes e da mo ral utilitarista que depende de ideais que emanam de coisas a ação moral segundo Kant é uma ação autônoma Esse princípio de autonomia da ação moral consiste no fato de as regras ou máximas serem compreendidas como leis univer sais que não advêm da experiência que são absolutamente in dependentes e necessárias que comandam apoditicamente de maneira necessariamente verdadeira opondose ao empírico o que vem da experiência que é contingente e generalizável O indivíduo deve estar livre para agir ou seja não obede cer a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente se dá enquanto possuidor de uma vontade e não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura Por essa razão o princípio que rege a ação de uma vontade li 167 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt vre legisladora universal que é a ação moral é como vimos um imperativo categórico que por ser universal não se funda em nenhuma condição em nenhuma hipótese Assim o princípio segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas má ximas se fosse seguramente estabelecido conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que exactamente por cau sa da idéia da legislação universal ele se não funda em nenhum interesse e portanto de entre todos os imperativos possíveis é o único que pode ser incondicional ou melhor ainda invertendo a proposição se há um imperativo categórico isto é uma lei para a vontade de todo o ser racional ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultanea mente se possa ter a si mesma por objecto como legisladora universal pois só então é que o princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais porque não têm interesse algum sobre que se fundem KANT 1960 p 74 Tratase de uma Ética deontológica a Ética de kant é portanto deontológica ou seja defen de que o valor moral de uma ação reside na própria ação e não em suas consequências É o que veremos mais claramente a seguir a partir da noção kantiana de dever Deontologia é um termo criado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham 17481832 e se refere à ética como tendo por objeto de estudo os fundamentos do dever e das normas enquanto de correntes de uma ação considerada em si mesma Compreende por exemplo o conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres decorrentes de uma determinada ação profissional O primeiro Código de Deontologia foi da área da medicina e foi fei to nos Estados Unidos da América do Norte A palavra é formada por deon dever obrigação em grego e logos ciência 168 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O Dever Este agir sem qualquer motivação livre de interesses subordi nando a vontade a uma legislação universal eis o dever diz kant Pois o dever deve ser a necessidade práticaincondicionada da ac ção tem de valer portanto para todos os seres racionais os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana KANT 1960 p 64 na moralidade o dever não é porém a mera conformidade com o que prescreve a lei Na moralidade o dever é essencialmente impulso para o dever o dever pelo dever inexiste qualquer outro motivo O va lor moral de um ato fundase na pureza de intenção na medida em que ela independe de qualquer outro motivo que não seja o cumprimento do dever pelo dever Vejamos o que diz Kant É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente e quando o movimento do negócio é grande o comerciante esperto também não faz se melhante coisa mas mantém um preço fixo geral para toda a gente de forma que uma criança pode comprar na sua mer cearia tão bem como qualquer outra pessoa Ése pois servido honradamente mas isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princí pios de honradez o seu interesse assim o exigia mas não é de aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses de maneira a não fazer por amor deles preço mais vantajoso a um do que a outro A acção não foi por tanto praticada nem por dever nem por inclinação imediata mas somente com intenção egoísta KANT 1960 p 27 169 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt e isto porque uma ação só é moral quando realizada por dever e não conforme ao dever Diz Kant Pelo contrário conservar cada qual a sua vida é um dever e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação ime diata Mas por isso mesmo é que o cuidado por vezes ansioso que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral Os homens conservam a sua vida conforme ao dever sem dúvida mas não por dever Em contraposição quando as con trariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver quando o infeliz com fortaleza de alma deseja a morte e conserva contudo a vida sem a amar não por inclina ção ou medo mas por dever então a sua máxima tem conteúdo moral KANT 1960 p 27 Fazer a caridade não por inclinação mas por dever O filósofo alemão afirma Ser caritativo quando se pode sêlo é um dever e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que mesmo sem ne nhum outro motivo de vaidade ou interesse acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o conten tamento dos outros enquanto este é obra sua Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção por conforme ao dever por amável que ela seja não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral mas vai emparelhar com outras inclinações por exemplo o amor das honras que quando por feliz acaso topa aquilo que efectiva mente é de interesse geral e conforme ao dever é consequente mente honroso e merece louvor e estímulo mas não estima pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem não por inclinação mas por dever Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pes soal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados 170 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria se agora que nenhuma inclinação o estimula já ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e prati casse a acção sem qualquer inclinação simplesmente por dever só então é que ela teria o seu autêntico valor moral Mais ainda Se a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pou ca simpatia se ele homem honrado de resto fosse por tempera mento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas quali dades dos outros se a natureza não tivesse feito de um tal homem que em boa verdade não seria o seu pior produto propriamente um filantropo não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum temperamento bondoso Sem dúvida É exactamen te aí é que começa o valor do carácter que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto e que consiste em fazer o bem não por inclinação mas por dever KANT 1960 p 28 Portanto a essência do cumprimento por dever estaria na capacidade da vontade de contrariar as tendências naturais não se deixando causar por fatores externos mas atender a im perativos como agir como se o princípio de nossa ação pudesse ser erigido em lei universal da natureza Essa autonomia da razão prática ou consciência moral é o fun damento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional tornandoas um fim e não um meio Diz Kant Ora digo eu O homem e duma maneira geral todo o ser racio nal existe como fim em si mesmo não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade Pelo contrário em todas as suas acções tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais ele tem sempre de ser con siderado simultaneamente como fim KANT 1960 p 68 171 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O imperativo é aja de tal maneira que a humanidade seja tratada tão bem na nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro e sempre como um fim e nunca como meio A terceira dimensão da ação moral a da liberdade A possibilidade da moral segundo Kant não depende nem da ciência nem da religião nem da metafísica ela está fundada na ideia de uma vontade livre a vontade segundo kant é um poder agir ou um poder causar ou ainda um poder querer livres porque possui justa mente esta propriedade de ser a sua própria lei uma vez que não é determinada por causas estranhas como influências e interes ses sensíveis do contrário não se trataria de um ato de vontade A liberdade portanto embora não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais na natureza nos seres irracio nais impera e domina a necessidade é propriedade da vontade nos seres racionais sobre a vontade enquanto poder causador próprio aos seres racionais e a liberdade como propriedade desse mesmo poder causador independentemente de causas estranhas diz Kant é uma espécie de causalidade dos seres vivos enquanto ra cionais e liberdade seria a propriedade desta causalidade pela qual ela pode ser eficiente independentemente de causas estra nhas que a determinem assim como a necessidade é a proprie dade dos seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas KANT 1960 p 9394 grifo nosso 172 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Mas a liberdade enquanto propriedade da vontade não seria desprovida de lei A liberdade não seria desprovida de lei pois é a proprieda de de um poder causador vontade ou seja de uma relação de causa e efeito e como tal é baseada em leis imutáveis Diz Kant Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis se gundo as quais por meio de uma coisa a que chamamos causa tem de ser posta outra coisa que se chama efeito assim a liberdade se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais não é por isso desprovida de lei mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis ainda que de uma espécie particular pois de outro modo uma vontade livre seria absurdo KANT 1960 p 9394 Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis imutáveis independentes de circunstâncias particulares Tratase portanto de uma liberdade transcendental se gundo a expressão de kant em que o poder querer ou a von tade antecede a experiência e independe dela A moral kantiana é uma moral não eudaimônica ou seja não tem por meta a felicidade Eudaimonia palara de origem grega eu bem daimon es pírito significando felicidade não no sentido de uma emoção ou de uma visão utilitarista mas no sentido em que foi empre gada no pensamento grego antigo bemviver prosperidade Embora Kant considere que o fim do homem seja a procura da felicidade como Platão e Aristóteles distingue felicidade de moralidade A razão prática não nos pode ensinar e nem defi 173 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt nir o que é a felicidade apesar desta ser a finalidade dos seres racionais observa que embora estar bem não se oponha a fa zer bem o fato de se estar bem não significa fazer bem a moral nos ensina ou nos leva a ser merecedores da felicidade porém não nos torna felizes O caminho para a felicidade segundo Kant é o dever O cumprimento do dever embora consista em obediência incondi cional não significa renunciar à felicidade porém também não significa subordinação à procura da felicidade Na obra Crítica da Razão Prática Kant observa que a feli cidade não seria o objetivo e fundamento da moralidade pois é um conceito empírico consistindo em um sentimento do agen te Para Kant a felicidade provém da satisfação dos nossos dese jos e por essa razão ela não depende de nós uma vez que esse satisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas à nossa vontade O homem é um ser que pertence à natureza sua felicidade escapa à sua vontade E se escapa à vontade do agente como poderia ser um objetivo da moralidade Relacionada à alegria e aos prazeres a felicidade não dis tingue entre prazeres superiores e inferiores Em outras palavras não é possível definir racionalmente a felicidade independente mente da experiência A felicidade de cada um depende de sua sensibilidade aos diferentes prazeres da vida Assim podese ser feliz com a riqueza beleza inteligência etc Não há conexão necessária no homem entre a moralidade e a felicidade uma vez que a felicidade é dependente de bens contingentes O cumprimento das exigências da lei moral não 174 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt nos concederá por si só nenhuma felicidade a não ser em uma situação absolutamente contingente Diz Kant A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual na totalidade da sua existência tudo corre segundo o seu desejo e a sua vontade e fundase pois na harmonia da natureza com o fim integral desse ser e igualmente com o principio determi nante essencial da sua vontade Ora a lei moral enquanto lei da liberdade ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar como móbeis mas o ser racional agente no mundo não é contudo simultaneamente causa do mundo e da própria natureza Portanto não existe na lei moral a menor conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela proporcionada de um ser que fazendo parte do mundo e por tanto dele dependendo não pode por isso mesmo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazêla por suas próprias forças coadunarse inteiramente KANT 1994 p 143 A razão é contrária à felicidade Segundo Kant podemos mesmo dizer que a razão é con trária à felicidade quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade tanto mais o homem se afasta do verda deiro contentamento e daí provém que em muitas pessoas e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão se elas quiserem ter a sinceridade de o confessar surja um cer to grau de misologia quer dizer de ódio à razão E isto porque uma vez feito o balanço de todas as vantagens que elas tiram não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar mas ainda das ciências que a elas lhes parecem no fim e ao cabo serem também um luxo do entendimento descobrem contu do que mais se sobrecarregaram de fadigas do que ganharam em felicidade e que por isso finalmente invejam mais do que desprezam os homens de condição inferior que estão mais pró ximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande 175 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt influência sobre o que fazem ou deixam de fazer KANT 1960 p 2426 Enfim o supremo destino da razão prática é a fundação de uma vontade e não da felicidade Kant afirma Portanto se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objectos e à satisfação de todas as nossas necessidades que ela mesma a razão em parte multiplica visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim e se no entanto a razão nos foi dada como faculdade prática isto é como facul dade que deve exercer influência sobre a vontade então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade não só boa quiçá como meio para outra intenção mas uma vontade boa em si mesma para o que a razão era absolutamente neces sária uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais mesmo de toda a aspiração de felicidade E neste caso é fácil de conci liar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos que a cultura da razão que é necessária para a primeira e incondicio nal intenção de muitas maneiras restringe pelo menos nesta vida a consecução da segunda que é sempre condicionada quer dizer da felicidade e pode mesmo reduzila a menos de nada sem que com isto a natureza falte à sua finalidade por que a razão que reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole isto é a que pode achar ao atingir um fim que só ela a razão determina ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da inclinação KANT 1960 p 2426 176 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Kant e o Iluminismo Em seu texto sobre o Iluminismo respondendo em 1784 à pergunta de uma revista alemã de Berlim Kant expõe seu ideal de apelo ao exercício autônomo da razão aqui descrito Reflete sobre o momento social e político de sua época visando à elevação do homem à sua condição singular e única de ser livre cada um é responsável por essa liberação da me noridade somente cada um com liberdade pode dela se livrar Essa liberação só é possível com o esclarecimento do próprio pensar esclarecimento que deve ser contínuo de maneira a po der ver o mundo com outros olhos livres de conceitos e normas estabelecidos A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido per mite por sua vez a discussão e o intercâmbio de ideias o qual fundamentará a realização da ação transformadora Ético é pois para Kant conquistar deliberadamente a pró pria liberdade incondicionada servindose de sua capacidade ra cional Este seria o caráter singular e único de toda ação humana Observação a palavra alemã Aufklärung é traduzida por escla recimento ilustração Iluminismo Diz Kant 2015 p 12 lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem Tal menorida de é por culpa própria se a sua causa não residir na carência de entendimento mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a guia de outrem Sapere aude Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento Eis a palavra de ordem do Iluminismo 177 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte após a natureza os ter há muito libertado do con trole alheio naturaliter maiorennes 482 continuarem toda via de bom grado menores durante toda a vida e também de a outros se tornar tão fácil assumirse como seus tutores É tão cómodo ser menor Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim um director espiritual que em vez de mim tem cons ciência moral um médico que por mim decide da dieta etc então não preciso de eu próprio me esforçar Não me é forçoso pensar quando posso simplesmente pagar outros empreende rão por mim essa tarefa aborrecida Porque a imensa maioria dos homens inclusive todo o belo sexo considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles Depois de terem primeiro embrutecido os seus animais do mésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pací ficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram mostramlhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas Ora este perigo não é assim tão grande pois acabariam por aprender muito bem a andar Só que um tal exemplo intimida e em geral gera pavor perante todas as tentativas ulteriores É pois difícil a cada homem desprenderse da menoridade que para ele se tomou 483 quase uma natureza Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu pró prio entendimento porque nunca se lhe permitiu fazer seme lhante tentativa regras e fórmulas são laços de uma menoridade eterna Preceitos e fórmulas instrumentos mecânicos do uso racional ou antes do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso por que não está habituado ao movimento livre São pois muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancarse à menoridade e encetar então um andamento seguro KANT 2015 p 2 178 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt com liberdade é possível sair do estado de menoridade Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça Mais ainda é quase inevitável se para tal lhe for con cedida a liberdade Sempre haverá de facto alguns que pen sam por si mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que após terem arrojado de si o jugo da menoridade espalharão à sua volta o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por si mesmo Importante aqui é que o público antes por eles sujeito a este jugo os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores pessoalmente incapazes de qual quer ilustração é a isso 484 incitado Semear preconceitos é muito danoso porque acabam por se vingar dos que pessoal mente ou os seus predecessores foram os seus autores Por conseguinte um público só muito lentamente consegue chegar à ilustração Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar Novos preconceitos justamente como os antigos servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento KANT 2015 p 2 A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz uso público da própria razão em todos os campos Mas para esta ilustração leiase esclarecimento nada mais se exige do que a liberdade e claro está a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade a saber a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos Agora po rém de todos os lados ouço gritar não raciocines Diz o oficial não raciocines mas faz exercícios Diz o funcionário de Finan ças não raciocines paga E o clérigo não raciocines acredita Apenas um único senhor no mundo diz raciocinai tanto quan to quiserdes e sobre o que quiserdes mas obedecei Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo Qual a restrição que o não impede antes o fomenta 179 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Respondo o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode entre os homens levar a cabo a ilustração 485 mas o uso privado da razão pode muitas vezes coarctarse restringirse fortemente sem que no entanto se entrave as sim notavelmente o progresso da ilustração KANT 2015 p 3 Kant 2015 p 34 distingue o uso público do uso privado da razão Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um enquanto erudito dela faz perante o grande público do mundo letrado Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele con fiado Ora em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade é necessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de mediante uma unanimidade artificial serem orientados pelo governo para fins públicos ou de pelo menos serem impedidos de destruir tais fins Neste caso não é decerto permitido raciocinar mas tem de se obedecer Na medida porém em que esta parte da máquina se considera também como elemento de uma co munidade total e até da sociedade civil mundial portanto na qualidade de um erudito que se dirige por escrito a um público em entendimento genuíno pode certamente raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que em parte como membro passivo se encontra sujeito Seria pois muito pernicioso se um oficial a quem o seu superior ordenou algo quisesse em serviço sofismar em voz alta 486 acerca da incon veniência ou utilidade dessa ordem tem de obedecer mas não se lhe pode impedir de um modo justo enquanto perito fazer observações sobre os erros do serviço militar e expôlas ao seu público para que as julgue O cidadão não pode recusarse a pagar os impostos que lhe são exigidos e uma censura imperti nente de tais obrigações se por ele devem ser cumpridas pode mesmo punirse como um escândalo que poderia causar uma insubordinação geral Mas apesar disso não age contra o de ver de um cidadão se como erudito ele expuser as suas idéias 180 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescri ções Do mesmo modo um clérigo está obrigado a ensinar os instruídos de catecismo e a sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja a cujo serviço se encontra pois ele foi admitido com esta condição Mas como erudito tem plena liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bemintenciona dos sobre o que de erróneo há naquele símbolo e as propostas para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja Nada aqui existe que possa constituir um peso na consciência Com efeito o que ele ensina em virtude da sua função como ministro da Igreja expõeno como algo em relação 487 ao qual não tem o livre poder de ensinar segun do a sua opinião própria mas está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de outrem Dirá a nossa Igreja ensina isto ou aquilo são estes os argumentos comprovativos de que ela se serve Em seguida ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de preceitos que ele próprio não subscre veria com plena convicção mas a cuja exposição se pode no entanto comprometer porque não é de todo impossível que neles resida alguma verdade oculta De qualquer modo porém não deve neles haver coisa alguma que se oponha à religião interior pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição então não poderia em consciência desempenhar o seu ministé rio teria de renunciar Por conseguinte o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua comunidade é apenas um uso privado porque ela por maior que seja é sempre ape nas uma assembleia doméstica e no tocante a tal uso ele como sacerdote não é livre e também o não pode ser porque exerce uma incumbência alheia Em contrapartida como erudito que mediante escritos fala a um público genuíno a saber ao mun do por conseguinte o clérigo no uso público da sua razão goza de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de falar em seu nome próprio 181 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O avanço progressivo no esclarecimento é uma deter minação original da natureza humana e um sagrado direito da humanidade A pedra de toque 489 de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta poderia um povo impor a si próprio essa lei Seria decerto possível na expectativa por assim dizer de uma lei melhor por um determinado e curto prazo para introduzir uma certa ordem Ao mesmo tempo facultarseia a cada cidadão em especial ao clérigo na qua lidade de erudito fazer publicamente isto é por escritos as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteriores entretanto a ordem introduzida continuaria em vi gência até que o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os cidadãos unindo as suas vozes embora não todas poderiam apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem as comunidades que de acordo com o seu conceito do melhor discernimento se teriam coadunado numa organização religio sa modificada sem todavia impedir os que quisessem aterse à antiga Mas é de todo interdito coadunarse numa constituição religiosa pertinaz por ninguém posta publicamente em dúvi da mesmo só durante o tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar por assim dizer um período de tempo no pro gresso da humanidade para o melhor e tornálo infecundo e prejudicial para a posteridade Um homem para a sua pessoa 490 e mesmo então só por algum tempo pode no que lhe incumbe saber adiar a ilustração mas renunciar a ela quer seja para si quer ainda mais para a descendência significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo pois a sua autorida de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a vontade conjunta do povo Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem ci vil pode então permitir que em tudo o mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a sal vação da sua alma Não é isso que lhe importa mas compete 182 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt lhe obstar a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fomento da mesma KANT 2015 p 5 Considerações finais Vimos que Kant ao se ocupar do fundamento da moral é levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe culativa própria do conhecimento científico razão que chamou de razão prática a moralidade não decorreria das regras de um código de conduta não se limitaria em agir de acordo com normas Para Kant regras morais se identificam facilmente com causas exteriores à razão São do domínio das leis enquanto con venções sociais e do Direito positivo Variam segundo as culturas e épocas Não são os hábitos de conduta e de comportamento que nos levam a optar pelo cumprimento do dever ou decisões con duzidas pela boa vontade Em outras palavras não são a trans missão e o respeito a um código de conduta que nos levarão a um comportamento moral Propõe assim uma moralidade autônoma fundada na teoria dos imperativos categóricos essencialmente universais daí o nome de universalismo ético dado à posição kantiana Uma moralidade dependente inteiramente de uma razão práti ca ou seja independente de condicionamentos externos sejam eles históricos étnicos sociais etc A razão prática é a razão que guia a ação É uma forma pura que pode ser aplicada a qualquer situação Tem a validade universal das leis que regem a natureza Assumida como algo ab soluto não pode ser exercida sob condições Sua inteligibilidade pode ser alcançada porém não pela razão teórica 183 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A razão prática não depende de nada a não ser de si mes ma é absolutamente livre e nisso é o contrário da natureza esta atua segundo leis a razão prática que é a vontade racional hu mana atua segundo a ideia de lei ultrapassando tudo o que seja sensível para ser ela mesma Causa incondicionada de si mesma é a manifestação da razão como tal em toda a sua força e superioridade Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien tíficas porque como estas são igualmente universais e im pessoais não se referem a pessoas lugares ou épocas Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade mediata ou seja é construído mediante uma generalização de conteúdos advindos da experiência empírica a máxima em que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de generalização não contém conteúdo empírico mas é de nature za imediata Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar por meio do pensamento de diferentes filósofos a presença de uma dimensão ética propriamente dita não passível de ser trabalha da à luz da razão especulativa generalizante Um saber daquela morada interior singular e única e nem por isso menos uni versal provida de uma inteligibilidade pura isenta de conteúdos sensíveis saber que nos põe em contato com uma dimensão hu mana não cognoscitiva mas de natureza valorizadora 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 184 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 1 Com base no trecho de Hume a seguir presente em sua célebre obra in titulada Tratado da natureza humana redija um comentário procuran do sinalizar em que medida está presente na reflexão humeana o ético morada interior e o moral morada exterior na forma como estamos tentando encontrar essa distinção na História da Filosofia 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consideramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Te mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali dade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixa mos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa re alize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o tenha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situa ção descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por alguma circunstância que nos era desconsiderada retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exi gíamos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 2 De que forma Kant une a vontade livre a uma causalidade da vontade a Para Kant a causalidade é uma propriedade apenas da natureza em que um objeto determina o outro necessariamente Nesse sentido a causalidade da vontade determinaria um outro objeto a agir de uma determinada forma nisso consistindo a liberdade b A liberdade da vontade é uma propriedade dos seres humanos racio nais A vontade é livre para se autodeterminar ou seja sua autodetermi nação é uma causalidade interna própria dos seres racionais Mas essa autodeterminação segue necessariamente leis causais que embora não sejam naturais são imutáveis pois o conceito de causalidade já traz consigo o de lei Sendo assim uma vontade livre que não pudesse se autodeterminar segundo suas próprias leis universais seria um absurdo 185 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt c Não pode haver causalidade na vontade livre pois para Kant a liber dade não pode ser autodeterminada por meio de leis universais Nesse sentido seria absurdo propor uma causalidade para a liberdade sen do esta isenta de toda a lei d Todas as respostas anteriores estão corretas Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 Nesta questão você deve levar em consideração o signo exterior da ação como sendo constitutivo da morada exterior e o motivo virtuoso interno como o objeto de investigação da morada interior 2 b 8 CONSIDERAÇÕES Vimos que Kant ao se ocupar do fundamento da moral é levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe culativa própria do conhecimento científico razão que chamou de razão prática Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien tíficas porque como estas são igualmente universais e im pessoais não se referem a pessoas lugares ou épocas Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade mediata ou seja é construído mediante uma generalização de conteúdos advindos da experiência empírica a máxima em que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de generalização não contém conteúdo empírico mas é de nature za imediata 186 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar por meio do pensamento de diferentes filósofos a presença de uma dimen são ética propriamente dita não passível de ser trabalhada à luz da razão especulativa generalizante Um saber daquela morada inte rior singular e única e nem por isso menos universal provida de uma inteligibilidade pura isenta de conteúdos sensíveis saber que nos põe em contato com outra dimensão humana uma dimensão não cognoscitiva mas de natureza estimativa e valorizadora 9 ereFerÊncias CONTE J A natureza da moral de Hume 2004 Tese Doutorado em Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2004 Disponível em httpwwwtedeufscbrtesesUSP1019Tpdf Acesso em 31 ago 2015 GARCÍA MORENTE M Fundamentos de filosofia lições preliminares Trad Guilhermo de la Cruz Coronado 8 ed São Paulo Mestre Jou 1980 Disponível em http copyfightmeAcervolivrosMORENTE20Manuel20Garcia20Fundamentos20 de20Filosofiapdf Acesso em 26 ago 2015 KANT I Resposta à pergunta o que é o iluminismo Tradução de athur Mourão Disponível em httpwwwlusosofianettextoskantoiluminismo1784pdf Acesso em 28 ago 2015 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HUME D Tratado da natureza humana uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Trad Débora Danowski 2 ed São Paulo Unesp 2009 Traité de la nature humaine Paris GarnierFlammarion 1991 KANT I Fundamentação da metafísica dos costumes Trad Paulo Quintela Lisboa Edições 70 1960 Textos Filosóficos Crítica da razão prática Trad Artur Morão Lisboa Edições 70 1994 Textos Filosóficos ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 187 pRiMóRdiOS da póSMOdeRnidade ScHOpenHaUeR e nietzScHe 1 OBJETIVO Verificar a acentuação da preocupação ética em detri mento da moral no pensamento de Schopenhauer e Nietzsche 2 CONTEÚDOS A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer O problema da valoração moral em Nietzsche 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 A fim de se ambientar com o pensamento de Arthur Schopenhauer indicamos o vídeo dividido em par tes do Prof Dr José Thomaz Brum Observações sobre Schopenhauer BRUM J T Observações sobre Schopenhauer Par te 1 Disponível em httpwwwyoutubecom watchvP4Px9zajVXE Acesso em 31 ago 2015 Unidade 4 188 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observações sobre Schopenhauer Parte 2 Disponível em httpwwwyoutubecomwa tchvufkcJ0MrnBsfeatureendscreenNR1 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 3 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1v8kvUCPtgUiw Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 4 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1vUCjQcIBU9Ak Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 5 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1vTvd59opNEjU Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 6 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chNR1featureendscreenvLa5qBut9Mw0 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 7 Disponível em httpwwwyoutubecomwa tchNR1featureendscreenvds7JfLGtGk Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 8 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chvUD6iAUXBdycfeatureendscreenNR1 Acesso em 31 ago 2015 189 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observações sobre Schopenhauer Parte 9 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chvak3rp3sp4e4featureendscreen Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Par te 10 Disponível em httpwwwyoutubecom watchvDiJA0gpwt8 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Fi nal Disponível em httpwwwyoutubecom watchv6VJxgpSFrdM Acesso em 31 ago 2015 2 Sobre a Filosofia de Nietzsche sugerimos que você assista ao episódio do Café Filosófico da TV Cultura com palestra da Profª Viviane Mosé Disponível em httpwwwyoutubecomwatchvwszgKT2zSc Acesso em 31 ago 2015 3 No decorrer de seus estudos talvez você sinta a neces sidade de conhecer mais a respeito de determinado assunto Por isso seria interessante que você adqui risse o hábito de consultar dicionários específicos da filosofia Sugerimos a seguir dois dos dicionários mais utilizados por aqueles que se interessam por Filosofia talvez você os encontre em versões mais atualizadas ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed Trad Ivone Castilho Benedetti São Paulo Martins Fon tes 2007 LALANDE A Vocabulário técnico e crítico da Filoso fia 3 ed São Paulo Martins Fontes 1999 190 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE 4 INTRODUÇÃO A modernidade preparou uma espécie de otimismo em re lação ao desenvolvimento da ciência e atrelado a ele a crença de que a ciência seria responsável por uma constante melhoria da situação existencial da vida humana De Descartes a Kant te mos uma valorização da razão que se pretende como a única ca paz de levar a cabo o projeto de uma humanidade esclarecida Tal projeto encarnase como movimento histórico do chamado século das luzes com o iluminismo no entanto sorrateiramen te a mesma modernidade vai fazendo brotar uma compreensão pessimista com relação a esse mesmo projeto futurístico uma desconfiança de que os rumos traçados pela razão não levarão ao fim desejado Os valores iluministas a crença na razão acabam levan do a um esgotamento de suas possibilidades A metafísica ra cional chega ao seu ápice com o pensamento de Hegel para o qual todo o real é racional e ao mesmo tempo esgota suas possibilidades Schopenhauer e Nietzsche mais do que filósofos que integram em suas filosofias a questão do irracional da von tade do pessimismo etc são os filósofos que deixam emergir os problemas que apareciam como questões de segunda ordem na modernidade e vislumbram novas possibilidades de filosofar mesmo disparando duros golpes à razão a questão ética o ca ráter começa a aparecer no primeiro plano das preocupações desses filósofos enquanto o problema moral vai perdendo es paço Assim convidamos você a acompanhar os pensamentos desses dois grandes expoentes da Filosofia Vamos lá 191 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE 5 arthur schoPenhauer 17881860 Schopenhauer pertencia a uma família de ricos comercian tes e estava destinado a se dedicar ao comércio Das inúmeras viagens na companhia de seu pai ficalhe a certeza do caráter trágico da vida humana Decide então mergulhar no estudo das obras de Kant Inscrevese na Universidade alemã de Göttingen para es tudar Medicina e Ciências Exatas porém seu interesse pela Filo sofia é maior Assiste em Berlim aos cursos de Fichte discípulo de Kant cujo entendimento do criticismo kantiano consiste em um idealismo imanentista ou seja movimento de pensamento para o qual as coisas não existem em si todo conhecimento é representação Retirase para Rudolstadt cidade alemã fundada em 776 onde medita e escreve durante cinco anos Sua obra O mundo como vontade e como representação é publicada em Leipzig em 1818 Após tentar e não conseguir se dedicar ao ensino na Uni versidade de Berlim instalase em 1831 na cidade de Frankfurt Com a publicação em 1851 da obra Parerga e paralipome na que significa trabalhos menores e que consiste em uma série de pensamentos ordenados sobre diversos assuntos inclusive os famosos Aforismos para a sabedoria e vida tornase conhecido Uma Ética da compaixão o fundamento da moral em schopenhauer é a compai xão do latim compassione que significa uma compreensão do estado emocional de outrem colocandose no seu lugar bus cando minorar o seu sofrimento O princípio ético fundamental 192 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE para Schopenhauer é não faças mal a ninguém mas ajudes a todos que puderes Dentro do contexto do pensamento de Schopenhauer a compaixão implicaria a negação do querer viver nichtwollen Vejamos o porquê no próximo tópico Vontade e representação Para Schopenhauer tudo no mundo é vontade e representação Vontade Toda existência seria a manifestação de um querer es sencial O conceito de vontade tem no pensamento do filósofo uma extensão muito mais ampla do que aquela em que é comu mente entendido pois a vontade é para Schopenhauer o que funda toda a realidade Conhecida de imediato nada é mais bem compreendido por nós do que a vontade diz o filósofo Na segunda parte de sua obra O mundo como vontade e como representação Schopenhauer diz que a solução do enigma do mundo deve ser buscada no homem uma vez que é a expe riência interior que nos levará à essência do mundo Na reflexão sobre si mesmo o sujeito surge como querer e não como en tendimento A vontade não é como o conhecimento comandada pelo cérebro é uma força original que cria e mantém o corpo com suas funções conscientes e inconscientes A vontade é o que está na origem de todas as forças inor gânicas da natureza substância íntima e original é idêntica quanto à matéria em todas as mudanças e movimentos dos cor 193 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pos em todas as suas variações nos minerais nos vegetais nos animais e nos humanos Faz germinar e crescer a planta dá a forma regular ao cristal manifestase na matéria mais bruta sob a forma de peso Embora todas essas coisas se deem a nós dis tintas umas das outras na realidade são individuações de uma mesma vontade O mundo em si desde o inorgânico ao ser hu mano seria um querer viver um fluxo perpétuo e eterno de afirmação da vida sua origem e seu fim Continuando o filósofo diz que o conhecimento preciso e imediato nos é fornecido pelos movimentos de nosso próprio corpo e a isso chamamos vontade A força que age e move a na tureza e se manifesta nos fenômenos de maneira cada vez mais perfeita elevase bastante alto para que o conhecimento a escla reça por meio de uma luz direta Em outras palavras essa força que age e move a natureza apresentase de maneira cada vez mais perfeita até se tornar passível de conhecimento Chegada essa força ao estado de consciência de si revelase propriamen te como vontade noção da qual temos conhecimento preciso e que por isso mesmo longe de ser explicada por qualquer ou tro elemento estranho explicase a si mesma a vontade é pois o que se expressa das mais variadas maneiras em tudo o que existe no mundo é a essência do mun do e a substância de todos os fenômenos Representação Por sua vez o mundo existe apenas como representação ou seja na relação com um ser que percebe A realidade seja ela o que for não seria separável das formas de apreensão de um sujeito formas como 194 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE a do tempo responsável pela finitude do mundo a do espaço responsável pela multiplicidade a da causalidade responsável pela necessidade A vontade diferentemente do mundo dos fenômenos ou do mundo como representação não seria determinada pe las três formas a priori citadas pois a vontade não depende do tempo porque é eterna nem do espaço porque é una nem da causalidade porque é livre Enfim a base ou fundamento cons titutivo de toda realidade se inscreve na falta de determinação temporal espacial e causal Segundo o filósofo o mundo fenomênico ou da represen tação é o espelho da vontade de vida A Vontade que considerada puramente em si destituída de conhecimento é apenas um ímpeto cego e irresistível como a vemos entrar em cena na natureza inorgânica e na natureza vegetal assim como na parte vegetativa da nossa própria vida atinge pela entrada em cena do mundo como representação desenvolvida para o seu serviço o conhecimento de sua volição e daquilo que ela quer a saber nada senão este mundo a vida justamente como esta existe Por isso denominamos o mundo fenomênico seu espelho sua objetidade e como o que a Vontade sempre quer é a vida precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação é in diferente e tão somente um pleonasmo se em vez de simples mente dizermos a vontade dizemos a vontade de vida Onde existe Vontade existirá vida mundo Portanto à Vontade de vida a vida é certa e pelo tempo em que estivermos preen chidos de Vontade de vida não precisamos temer por nossa exis tência nem pela visão da morte SCHOPENHAUER 2005 p 358 O fundo de todas as formas vivas é assim constituído desse esforço incessante o qual ao alcançar o ponto alto de suas mani festações objetivas seu princípio verdadeiro e mais geral revela 195 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE se a si mesmo como vontade encarnada em um corpo que lhe impõe suas leis tornado este corpo a própria vontade de viver o querer é a condição do surgimento do eu Os atos de nosso corpo ocorrem no tempo e no espaço ligados pela lei da causalidade Ao surgir nossa condição de sujei tos cognoscentes devido ao princípio de individuação como dis tintos uns dos outros passamos a nos perceber imediatamente como sujeitos volitivos O sujeito cognoscente ilumina o sujei to volitivo e o primeiro sinal de consciência de nossa existência surge como o querer pois no momento em que queremos temos consciência de que o ser que conhece é o mesmo ser que quer Portanto o querer é a condição do surgimento do eu o querer não é substância autônoma individual mas é o próprio corpo e suas ações A condição humana todo querer tem por princípio uma neces sidade uma carência e portanto uma dor Schopenhauer descreve a existência humana como trágica e dolorosa como um pêndulo que oscila sem cessar entre o so frimento e o tédio Seu horizonte é a morte Já na matéria bruta encontramos um esforço contínuo sem fim e sem repouso os animais e os homens apresentam uma sede insaciável de que rer Somos todos prisioneiros da dor pela própria natureza pois todo querer tem por princípio uma necessidade uma carência portanto uma dor Se a vontade não é satisfeita ou o desejo não é atendido os homens caem no tédio e suas existências tornam se intoleráveis 196 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Sendo o homem a mais perfeita das formas objetivas da vontade é também de todos os seres o mais atormentado pelas necessidades de se manter vivo ele é inteiramente vontade colocado na Terra incerto de tudo salvo de sua escravidão às necessidades necessidades estas difíceis de satisfazer e a cada vez renovadas Há ainda outra necessidade trazida pela exigência de con servação da vida e que é a perpetuação da espécie Para a gran de maioria dos homens a vida é um combate perpétuo pela so brevivência De acordo com o filósofo o que faz o ser humano lutar não é propriamente o amor à vida mas a angústia e o medo da morte sempre à espreita em qualquer lugar e em qualquer tempo Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor pode dizerse que não tem razão alguma de ser no mundo Porque é absurdo admitir que a dor sem fim que nasce da miséria ine rente à vida e enche o mundo seja apenas um puro acidente e não o próprio fim Cada desgraça particular parece é certo uma exceção mas a desgraça geral é a regra Assim como um regato corre sem ímpetos enquanto não encon tra obstáculos do mesmo modo na natureza humana como na natureza animal a vida corre inconsciente e cuidadosa quando coisa alguma se lhe opõe à vontade Se a atenção desperta é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade tudo o que a contra ria ou a resiste isto é tudo o que há desagradável e de doloroso sentimolo ato contínuo e muito nitidamente Não atentamos na saúde geral do nosso corpo mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios e só pensamos numa ninharia insignificante que nos desgosta O bemestar e a felicidade são portanto negativos só a dor é positiva SCHOPENHAUER sd p 2122 197 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A experiência do desejo a morte e a vontade de viver Em sua obra O mundo como vontade e como representa ção Schopenhauer diz que a experiência do desejo é a ausência de algo que falta e a vida consiste em tentar preencher essa fal ta Correse de objeto em objeto em uma perseguição insaciável indo da privação sofrimento para a experiência do tédio após a posse ou realização do desejo Enfim aos seres vivos pesam suas naturezas e suas existências de maneira intolerável As angústias do medo da morte os sofrimentos e as mágoas chegam a tal grau que a morte se torna desejável Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as formas visíveis revestidas de vontade chegando ao ponto mais alto de suas manifestações objetivas encontra seu princípio ver dadeiro e mais geral A vontade então se revela a ela mesma em um corpo vivo que lhe impõe uma lei de ferro o de se alimentar e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada Quais motivos nos levam a transformar um querer em ação O egoísmo é segundo Schopenhauer a potência mais determinante do agir humano Caracterizase por privilegiar a realização do querer individual É a potência moral intrínseca à vontade de viver Faz parte da natureza da vontade dominar se apropriar buscar o próprio prazer e isso significa provocar dor no outro O bemestar de alguns diz o filósofo significa o malestar de ou tros o lucro desmedido de patrões custa suor e lágrimas de ou tros em benefício de alguns impõese trabalho duro a crianças e há ainda a escravidão do ser humano pelo próprio ser humano 198 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE acrescentase a isso o fato da alimentação da espécie humana custar a morte de outros animais e assim por diante outro motivo que nos leva a transformar um querer em ação é a crueldade Enquanto no egoísmo agimos com vistas ao nosso próprio bem na crueldade agimos visando ao mal do outro seja um ser humano ou outros seres como o animal por exemplo A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia porque estreitamente aparentada à cruel dade se distingue propriamente desta apenas como a teoria da prática e localizandose precisamente onde deveria ser o lugar da compaixão que como seu oposto constitui a verda deira fonte de toda genuína justiça e amor pela humanidade SCHOPENHAUER 1974 p 104 A compaixão Mitleid seria um terceiro motivo para agir nesse caso agir pelo bem do outro No ser humano o egoísmo e a crueldade superam em muito a compaixão Na compaixão negamos essa pulsão da vontade esse nosso querer viver agindo pelo bem de outrem diminuímos a distância entre nós mesmos e o outro nos identificando com ele Esse é segundo Schopenhauer o nosso único ato de liber dade expresso no mundo da representação pois compreenden do que o outro sou eu eliminamos as ilusões do mundo da re presentação a infinitude e a liberdade Liberdade e compaixão consistem pois para Schopenhauer em negar esta pulsão da vontade Liberdade e negação do livrearbítrio A posição de Schopenhauer sobre a liberdade é essencial mente original Segundo ele as ações humanas são regidas por 199 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE rigoroso determinismo determinismo esse que se deve à ação vimos dos motivos do egoísmo da crueldade sobre o caráter Tendo em vista esse determinismo o uso prático da razão não é decisivo na moralidade Em outras palavras o fundamen to de toda moral é a vontade um suprassensível inatingível por uma razão prática A autêntica bondade de disposição a virtude desinteressada e a pureza não se originam do conhecimento abstrato embora sem dúvida se originem do conhecimento a saber de um co nhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínio Ora precisamente por não ser abstra to não pode ser comunicado mas tem de brotar em cada um de nós SCHOPENHAUER 2005 p 470471 A justiça e a caridade As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações do ato de negar a pulsão da vontade pois são movimentos que contrariam o sentido fundamental do querer viver que como vimos é essencialmente um voltarse para si mesmo para o pró prio bemestar quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o justo e o injusto mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha quem conseqüentemente jamais na afirmação da própria vontade vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo é JUSTO Portanto não infli girá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bemestar vale dizer não cometerá crimes respeitará o direito e a proprie dade alheios Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de visão através do principii individuationis enquan to o injusto ao contrário permanece completamente envolto neste princípio Um tal olharatravésde se dá não apenas no grau exigido pela justiça mas também em graus mais elevados 200 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE os quais impulsionam à benevolência à beneficência positiva à caridade e isso é algo que pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade que aparece em um semelhante indivíduo SCHOPENHAUER 2005 p 471473 Todos os seres vivos somos a expressão de uma única vontade de viver Todo indivíduo sentindo a vontade de viver intensamente tende a se considerar como o centro do mundo e assim há tan tos centros do mundo quanto há indivíduos centros esses que se afrontam mutuamente É a luta de todos contra todos No entanto tal luta é uma agressão a si mesmo uma vez que todos é a expressão de uma única e mesma vontade de viver Quando o véu de Maya o que representa no pensamento hindu a aparência ilusória que esconde a realidade propriamen te dita é levantado diante dos olhos de um ser humano este não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro É então capaz de tomar as dores do outro como suas e sacrificar sua pessoa pelo outro Reconhece a si mesmo em cada ser considera as infinitas dores de todo ser vivo como sendo suas próprias dores toman do para si a miséria do mundo Para tal homem não existe mais essa alternância de bem e de mal na qual consiste a visão da grande maioria dos homens ainda escravos do egoísmo Tal ho mem passa a conhecer a essência de todas as coisas e perceber que elas consistem em um fluxo perpétuo em um esforço esté ril em uma contradição íntima e em um sofrimento contínuo Schopenhauer então pergunta como conhecendo assim o mundo pode tal homem por meio de incessantes atos de von tade afirmar a vida ligandose a ela cada vez mais estreitamen 201 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE te aliviando o seu peso O filósofo responde que quando isso acontece a vontade se desliga da vida e tal homem alcança o estado de abnegação voluntária resignandose e vivenciando a verdadeira calma e o término do querer Se como exceção rara encontramos um homem dotado de uma considerável fortuna mas que usufruiu muito pouco dela doando todo o resto aos necessitados enquanto ele mesmo re nuncia a muitos gozos ao conforto se a partir disso tentamos elucidar para nós mesmos o seus atos notaremos que tirante no todo os dogmas pelos quais ele mesmo quer tornar conce bível seus atos à sua razão em verdade a expressão simples e geral e o caráter essencial de sua conduta é que ele ESTABELE CE MENOS DIFERêNÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE SI MESMO E OS OUTROS Se esta diferença mesma aos olhos de muitos é tão grande que o sofrimento alheio se tor na para o malvado uma alegria imediata e para o injusto um meio bemvindo ao próprio bemestar e ainda se o homem justo se furta a provocar semelhante sofrimento por fim se em geral a maioria dos homens sabe e conhece em sua proxi midade inumeráveis sofrimentos de outros seres sem entretan to se decidirem a aliviálos visto que assim sofreriam alguma privação se portanto em todos esses casos parece instituirse em diferença poderosa entre o eu pessoal e o eu alheio ao contrário naquele homem nobre que temos em mente tal dife rença é insignificante O principii individuationis a forma do fe nômeno não mais o enreda tão firmemente mas o sofrimento visto em outros o afeta quase tanto como se fosse seu procura então restabelecer o equilíbrio renuncia aos gozos aceita pro vações para aliviar o sofrimento alheio O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem que para o mau é um grande abismo pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório reconhece imediatamente sem cálculos que o Emsi do seu fe nômeno é também o Emsi do fenômeno alheio a saber aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa que vive em tudo sim que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza logo ele também não causará tormento a animal algum SCHOPENHAUER 2005 p 473474 202 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A completa inversão da negação da vontade o suicídio O suicídio é para Schopenhauer a inversão completa des sa negação da vontade descrita anteriormente 69 Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de con sideração e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno do que a afetiva supressão de seu fenômeno individual na efetividade pelo SUICÍDIO O suicida quer a vida porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive Quando destrói o fenômeno individual ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida mas tãosomente à vida Ele ainda quer a vida quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo porém como a combinação das circunstân cias não o permite o resultado é um grande sofrimento O suicí dio em realidade é a obraprima de Maia na forma do mais gri tante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma O sofrimento se aproxima e enquanto tal abrelhe a possi bilidade de negação da Vontade porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade o corpo de tal forma que a Vontade permanece inquebrantável SCHOPENHAUER 2005 p 504 O único caminho de salvação é conhecer a própria essência da vontade para suprimila A salvação só se daria com a supressão da vontade pois esta é a razão do sofrimento e da dor E para suprimila é neces sário que a vontade apareça livremente como tal Livremente e não por violência Isso só acontece quando a vontade alcança o conhecimento de si mesma libertandose do mundo dos fenô menos e de toda motivação verificandose assim o que os cris tãos chamam de recebimento da Graça e renascimento esse estado em que o desejo se detém e se cala schopenhauer chama de bem absoluto e seria o único que nos liberta 203 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECI MENTO Por isso o único caminho de salvação é este que a Von tade apareça livremente a fim de neste fenômeno CONHECER a sua essência Só em conseqüência deste conhecimento pode suprimir a si mesma e assim também pôr fim ao sofrimento in separável de seu fenômeno Isso entretanto não é possível por violência como a destruição do embrião a morte do recémnas cido o suicídio A natureza conduz a Vontade à luz porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção Eis por que se deve fomentar de todas as formas os fins da natureza desde que a Vontade de vida o seu íntimo tenha decidido SCHOPENHAUER 2005 p 506 70 Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam EFEITO DA GRAÇA e RENASCIMENTO é para nós a única e ime diata exteriorização da LIBERDADE DA VONTADE Esta só entra em cena quando a Vontade após alcançar o conhecimento de sua essência em si obter dele um QUIETIVO quando então é removido o efeito dos MOTIVOS os quais residem em outro do mínio de conhecimento cujos objetos são apenas fenômenos SCHOPENHAUER 2005 p 515516 Só o conhecimento da essência do mundo como vontade permite a resignação o desprendimento e a serenidade O ódio e a maldade partem do egoísmo e este advém da sujeição da inteligência ao princípio da individuação O critério de uma ação verdadeiramente boa dotada de valor moral seria a ausência de toda motivação egoísta Em um grau superior de desenvolvimento a justiça a do çura e a generosidade no que elas têm de mais elevado se ori ginam na inteligência que compreende o princípio de que su primindo toda diferença entre nós como indivíduos e os outros tornase possível a intenção perfeitamente boa 204 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Na medida em que se dá a compreensão desse princípio diz Schopenhauer nossa influência sobre a vontade cresce O desvelamento do princípio de individuação libera o homem da distinção egoísta entre ele e o outro Esse homem que reconhece em cada ser o que há de mais íntimo e verdadeiro em si mesmo é capaz de tomar para si a miséria do mundo inteiro A partir de então nenhum sofrimento lhe é alheio e desconhecido Todas as dores dos outros todos os sofrimentos que ele vê e que rara mente pode sanar todos os sofrimentos que ele sabe possíveis pesam sobre seu coração como se fossem seus Tudo o toca de perto Passa a perceber a essência das coisas como sendo o per pétuo desenrolar do sofrimento contínuo de uma humanidade miserável e de um universo que desaparece se transformando a vontade então se desliga da vida o homem chega ao es tado de abnegação voluntária de resignação de verdadeira cal ma e de parada total e absoluta do querer schoPenhaUer 1956 p 203204 a negação e a supressão do querer abririam uma passagem para o nada a supressão do querer levaria ao nada entendendo por nada como observa Schopenhauer não uma negação absoluta mas uma negação relativa ao mundo como representação mun do este que é o espelho da vontade e que é nós mesmos e tudo o que existe Não mirando mais a vontade nesse seu espelho que é o mundo a vontade se perde no nada Após a nossa consideração finalmente ter chegado ao ponto em que a negação e supressão do querer apresentamse diante de nossos olhos de um mundo cuja existência inteira se apresenta como sofrimento daí se abriria uma passagem para o NADA vazio Mas sobre isso tenho antes de observar que o con 205 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado que ele nega Porém numa considera ção mais acurada não existe o nada absoluto não existe o nihil negativum propriamente dito nem sequer ele é pensável mas de qualquer nada deste gênero considerado de um ponto de vista superior ou subsumido em um conceito mais amplo é sempre apenas o nihil privativum Qualquer nada o é apenas quando pensado em relação a outro Até mesmo uma contradi ção lógica é um nada relativo embora não seja um pensamento da razão nem por isso é um nada absoluto Tratase ali de uma combinação de palavras de um exemplo do não pensável ne cessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensamento O universalmente tomado como positivo o qual denominamos SER e cuja negação é expressa pelo concei to NADA na sua significação mais geral é exatamente o mundo como representação que demonstrei como a objetividade o espelho da Vontade Esta Vontade e este mundo são justamente nós mesmos e ele pertence a representação em geral como um de seus lados A forma desta representação é espaço e tempo e assim deste ponto de vista tudo o que existe tem de estar em algum lugar num dado tempo Negação supressão viragem da Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo seu espelho Se não miramos mais a Vontade neste espelho então perguntamos debalde para que direção ela se virou e em seguida já não há mais onde e quando lamentamos que ela se perdeu no nada SCHOPENHAEUR 2005 p 515517 O recurso à arte e à contemplação estética Schopenhauer vê na contemplação estética a oportuni dade de um desapego das coisas do mundo do egoísmo e do desejo uma vez que o conhecimento do belo é uma representa ção que não está submissa ao princípio da razão Tratase de um saber intuitivo não empírico desvinculado de qualquer conhe cimento interessado 206 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Em sua obra já citada O mundo como vontade e como re presentação e na obra Metafísica do belo Schopenhauer expõe sua filosofia da arte Vimos que para o filósofo os objetos do mundo são re presentações e como tais estão sujeitas às formas do princípio da razão suficiente ou seja o tempo o espaço e a causalidade representações que são elaboradas pelo sujeito O próprio corpo é um objeto e os órgãos dotados de sensibilidade são os objetos imediatos Vimos também que a Vontade é a coisaemsi cuja exis tência não depende do sujeito e que todos os objetos são mani festações da vontade O acesso à natureza da coisaemsi é feito pelo sujeito e não pelos objetos O primeiro estágio de objetivação da vontade em que ela se manifesta como fenômeno é segundo Schopenhauer consti tuído do que Platão denominou ideias ou seja os arquétipos eternos de tudo o que existe no mundo A arte seria a repre sentação dessas ideias Assim a arquitetura representa as leis físicas a pintura as formas dos objetos Em alguns homens o conhecimento pode libertarse da escravidão da vontade permanecendo ele mesmo independen temente de todo alvo voluntário como puro e claro espelho do mundo Esses são os homens capazes de produzir arte A genia lidade do artista consiste em reproduzir a ideia por trás de um objeto do mundo assim um retrato representa a ideia única e eterna do caráter da pessoa A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam essas ideias eternas mesmo não tendo a genialidade do artista O saber do artista procede da vontade e pertence à essência dos 207 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE graus mais elevados de seu processo de objetivação Compara a existência da maior parte dos homens a uma espera tola ple na de sofrimentos inúteis uma marcha titubeante pelas quatro idades de vida funcionam sem saber por que a arte possui ria o poder de suprimir ainda que por um tempo limitado essa submissão do conhecimento à vontade Na experiência estética absorvido em contemplação profunda o sujeito antes domina do pelo querer tornase sujeito puro do conhecer isento de vontade O princípio de individuação tornase então inoperante esquecemonos de nossa individualidade de nossa vontade e subsistimos como puro sujeito como claro espelho do objeto como se só o objeto existisse sem ninguém que o percebesse sujeito e intuição confundindose no mesmo ser O sujeito na obra de arte forma com os objetos represen tados uma unidade da essência comum de que compartilham a vontade A vontade passa a ser uma só no indivíduo e no objeto contemplado Ao elevarse a tal contemplação dáse a consciên cia de si mesmo como puro sujeito tornandose a vontade que se conhece a si mesma O conhecimento originariamente servidor da vontade passa a ser desinteressado pois com a supressão da individuali dade a vontade renuncia a seus fins o belo é para schopenhauer tudo o que na arte e na na tureza é capaz de causar um estado contemplativo que escape à ditadura do querer Todo objeto pode se tornar belo caso um gênio veja nele suas ideias fixandoas em sua obra tornandoas acessíveis aos demais O grande gênio da arte é um professor de resignação um mestre a guiar a humanidade no caminho do conhecimento e da renúncia à vontade tirânica 208 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O gênio da arte é um contemplador das ideias eternas li bertando o conhecimento originariamente submisso à vontade A essência do gênio é essa aptidão para a contemplação absorvi da no objeto exigindo esquecimento completo da personalidade e de suas relações aptidão que permite manterse na intuição pura aí se perdendo libertando o conhecimento originariamen te submisso à vontade O objeto é belo quando consegue despertar no observa dor um estado contemplativo de intuição pura durante o qual se calam temores esperanças ânsias e preocupações Dentre as artes a música é para Schopenhauer a que melhor pode preen cher essa função é a linguagem universal que penetra a intimi dade do indivíduo Observação existem excelentes trabalhos acessíveis na internet sobre essa relação da Ética e da estética em Schopenhauer Dentre outros citamos o de João Coviello intitulado O vínculo entre Ética e estética no pensamento de Schopenhauer com um olhar especial sobre a arte contemporânea Disponível em httpwwwbibliotecapucprbrtedetdebuscaarquivo phpcodArquivo477 Acesso em 1 set 2015 Schopenhauer hinduísmo e budismo Três são as principais influências recebidas por Schopenhauer e por ele reconhecidas na elaboração de seu pensamento os Upanishads uma das partes do Vedanta Platão e Kant A filosofia de KANT portanto é a única cuja familiaridade ínti ma é requerida para o que aqui será exposto Se no entanto o leitor já freqüentou a escola do divino PLATÃO estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir Mas se além disso iniciouse no pensamento dos Veda cujo acesso permitido pela Upanixad aos meus olhos é a grande vantagem que este século 209 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ainda jovem tem a mostrar aos anteriores pois penso que a in fluência da literatura sânscrita não será menos impactante que o renascimento da literatura grega no século XV e se recebeu e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana então estará preparado da melhor maneira possível para ouvir o que tenho a dizer Não lhe soará como a muitos estranho ou mesmo hostil Gostaria até de afirmar caso não soe muito orgulhoso que cada aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixad pode ser deduzido como conseqüência do pensamento comunicado por mim embora este inversamente não esteja lá de modo algum contido SCHOPENHAUER 2005 p 23 O pensamento de Schopenhauer se estrutura dentro da quele contexto do pensamento oriental hindu fundamentado na meta do encontro de uma sabedoria que se define essencial mente como um mergulhar em si mesmo em busca do princí pio mesmo de nossos desejos sofrimentos prazeres karma e virtudes Dharma Uma sabedoria que transforma Uma sabe doria que não pode ser atingida pelo esforço intelectual Schopenhauer tomou contato com os Upanishads por meio da leitura da obra em latim Oupnekhat Podese dizer que Schopenhauer é o único grande filósofo ocidental a assimilar ideias do pensamento oriental em seu sistema filosófico Diz Schopenhauer Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento da moral repousa em última instância sobre aquela verdade que está expressa no Veda e Vedanta pela fórmula mística tat twam asi isto és tu que é afirmada com referência a todo ser vivo seja homem ou animal denominandose então o Mahavakya o grande verbo SCHOPENHAUER 1974 p 107 vedas é uma palavra sânscrita o sânscrito é uma das línguas oficiais da Índia usada por várias religiões que significa conhecimento os vedas são constituídos dos livros sagrados 210 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE do Hinduísmo Vedanta por sua vez significa o último dos Vedas e é a essência do que entendemos hoje por Hinduísmo Sobre a frase tat twam asi isto és tu alguns dos maio res especialistas no pensamento da Índia como zimmer assim interpreta o seu significado tat significaria a essência eterna ilimitada e imutável do universo twam ou tvam significa tu é o indivíduo ser limi tado temporal e mutável asi és verbo Tratase da afirmação da unidade do universo A essência do pensamento dos Vedas seria segundo zimmer a busca dessa unidade na multiplicidade Zimmer 1991 p 18 diz que A principal motivação da filosofia védica desde o período dos mais remotos hinos filosóficos preservados nas partes mais re centes do RigVeda tem sido sem alteração a busca de uma uni dade básica que fundamente a multiplicidade Essa teimosa persistência em buscar uma unidade na mul tiplicidade dos seres do universo vem de uma consciência mís tica de que tudo e todos pertencem em essência a algo Uno gerador de toda multiplicidade Um sentirse parte do Cosmo uma experiência de si mesmo como presença e não simplesmen te como presente ou seja a sensibilidade ao fato de apesar das diferenças dos seres entre si estarmos todos presentes ao mes mo tempo em comunhão existencial No indivíduo limitado temporal e mutável encontrase o Ãtman o Eu não o ego fundado na eterna imutabilidade que comanda o universo O texto a seguir ilustra essa ideia da unida de na multiplicidade no pensamento védico 211 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Diz o velho sábio brâmane Aruni a seu filho Trazeme um figo de lá Aqui está senhor Divideo Está dividido Que vês aí Estas sementes muito pequenas Divide uma delas por favor Está dividida Que vês aí Absolutamente nada senhor Então disselhe o pai Em verdade meu querido esta suti líssima essência que tu não percebes em verdade meu queri do dessa sutilíssima essência é que surge esta grande figueira sagrada Acreditame meu querido disse ele isso que é a essência mais sutil este mundo inteiro tem isso como seu Eu Isso é a Realidade Isso é ãtman Aquilo és tu Poderias senhor poderias instruirme ainda mais Assim seja meu querido disse ele Coloca este sal na água Pela manhã vem ter comigo Assim o fez Então disselhe o pai O sal que puseste na água ontem à noite tragame aqui por favor Então ele quis pegálo mas não o encontrou porque estava completamente dissolvido Por favor sorve a água deste lado disselhe o pai Como está Salgada 212 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Sorve deste lado disselhe Como está Salgada Deixea de lado Logo vem ter comigo Ele assim o fez dizendo Ela é sempre a mesma Então disselhe o pai Em verdade na realidade meu queri do tu não podes perceber o Ser aqui Em verdade na realida de meu querido Ele está aqui Aquilo que é a essência sutilíssima este mundo inteiro tem Aquilo como seu Eu Aquilo é a Realidade Aquilo é ãtman Tu Svetaketu és Aquilo zIMMER 1991 p 239240 Schopenhauer dá a essa máxima da unidade imutável e única uma dimensão ética e moral Para ele ela expressa a ideia de compaixão já vista por nós porque compreendendo que a essência do universo é única o homem passa a amar seu próxi mo pois ambos são um só Conceitos do hinduísmo e do budismo surgem em toda a obra do filósofo No segundo parágrafo de sua obra Parerga e paralipomena diz Eis Sansara e tudo em seu interior o anuncia mais do que tudo porém o mundo dos homens em que moralmente do minam a maldade e a infâmia intelectualmente a incapacidade e a estupidez em medidas assustadoras Contudo nela se apre sentam embora esporadicamente mas sempre de novo a nos surpreender manifestações da franqueza da bondade e mes mo da generosidade e também do entendimento abrangente do espírito pensante e mesmo do gênio Estas nunca se extin guem completamente brilham ao nosso encontro quais pontos luminosos isolados da grande massa obscura Devemos tomá las como garantia de que existe um princípio bom e redentor neste Sansara que pode atingir o rompimento e preencher e libertar o todo SCHOPENHAUER 1974 p 106107 213 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE sansara significa em sânscrito perambulação ou o flu xo de renascimentos através dos mundos materiais No Vedan ta é a transmigração do Ãtman alma individual ou verdadei ro eu o mais elevado princípio humano a essência divina na matéria O ego ignorante e iludido considerandose distinto de tudo e de todos peregrina por várias existências até compreen der que na verdade ele e a essência divina são Um só Ao falar da Vontade de vida diz Schopenhauer A Vontade de vida aparece tanto na morte autoimposta Shiva quanto no prazer da conservação pessoal Vishinu e na volúpia da procriação Brahma Essa é a significação íntima da UNIDADE DO TRIMURTI que cada homem é por inteiro em bora no tempo seja destacada ora uma ora outra de suas três cabeças SCHOPENHAUER 2005 p 504 o Trimurti é a Trindade hindu É constituída de Brahma primeira divindade do Trimurti É o deus ener gia de todos os seres tem o poder de criar por emana ção É a origem a causa a essência de todo o universo Vishinu segunda divindade do Trimurti É o deus energia redentor preservador e mantenedor do universo Shiva terceira divindade do Trimurti É a energia des truidora e ao mesmo tempo construtora pois a des truição aqui é uma exigência da própria criação A dança de Shiva bastante conhecida representa as cinco ativi dades divinas a criação a conservação a destruição a encarnação e a liberação das almas Outra influência do hinduísmo no pensamento de Schopenhauer é certamente a noção de Maya Deusa da ilusão nos textos indianos mais antigos Maya significa arte sabedoria 214 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE poder extraordinário nos textos indianos mais recentes adquiriu os significados de ilusão irrealidade magia imagem ilusória e se torna o maior obstáculo para o desapego das seduções do mundo sensorial Maya é a base do mundo objetivo criado pelo Absoluto Brachman mas dele se distingue Vimos que Schopenhauer concebe o mundo fenomênico da representação como ilusório Para o filósofo o mundo re presentado pode criar a ilusão de que a causa última dos fenô menos ou a essência do mundo representado esteja na própria representação e que consequentemente nada mais existe além da representação Criase assim uma realidade ilusória Porém como o caráter ilusório da representação dela não advém mas sim da vontade que governa tudo o que existe da vontade vi mos advém toda objetividade aparência o mundo como repre sentação o homem poderá romper com essa ilusão e refletir sobre a Vontade Portanto é Maya acreditar que se possa ces sar o desejo que atormenta e traz dor consumandoo ou seja objetivandoo 68 Se aquele Véu de Maia o principii individuationis é de tal ma neira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais di ferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos então daí seguese automaticamente que esse homem reco nhece em todos esses seres o próprio íntimo o seu verdadeiro simesmo e desse modo tem de considerar também os sofri mentos infinitos de todos os seres viventes como se fossem seus assim toma para si mesmo as dores de todo o mundo nenhum sofrimento lhe é estranho 215 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE o homem que vê através do principii individuationis e reconhece a essência em si das coisas portanto o todo não é mais suscetível a um semelhante consolo Vê a si em todos os lugares ao mesmo tem po e se retira Sua Vontade se vira ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno mas a nega O acontecimento pelo qual isso se anuncia é a transição da virtude à ASCESE não mais adianta amar os outros como a si mesmo por eles fazer tanto como se fosse por si mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão vale dizer uma repulsa pela Vontade de vida núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias SCHOPENHAUER 2005 p 481482 Schopenhauer e Kant São vários os temas e posições que Schopenhauer herda de Kant sobre a temática da moral Começa por elogiar Kant por ter purificado a ética de todo eudemonismo eudemonismo ou eudaimonismo do grego eudaimonia significa felicidade os filósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e cri tério supremo da Ética Diz Schopenhauer O grande mérito de Kant na ética foi têla purificado de todo Eu demonismo A ética dos antigos era eudemonista e a dos moder nos na maioria das vezes uma doutrina da salvação Os antigos queriam demonstrar virtude e felicidade como idênticas estas porém eram como duas figuras que não se recobrem não impor ta o modo como as coloquemos Os modernos querem colocálas numa ligação não de acordo com o princípio de identidade mas com o de razão suficiente fazendo portanto da felicidade a conse qüência da virtude No que entretanto tiveram de recorrer quer a um outro mundo que não conhecido de modo possível quer a sofismas Apenas Platão faz exceção entre os antigos sua ética não é eudemonista por isso contudo tornase mística Em contrapar tida até mesmo a ética dos cínicos e dos estóicos é tãosomente um eudemonismo de tipo especial SCHOPENHAUER 1995 p 17 216 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE No que diz respeito à questão da Ética e da moral Schopenhauer à semelhança de Kant sentiu a necessidade de manter uma instância transcendental a instância de um princípio a priori segundo kant o determinismo da ciência é incompatível com a responsabilidade moral esta só poderia ser pensada via um saber transcendental Para Kant sabemos só podemos conhecer a coisa em nós não a coisaemsi esta é independente do conhecimento que temos dela desligada de qualquer subjetividade distingue o fe nômeno a coisa em nós a interpretação o mundo da represen tação e a coisaemsi Schopenhauer assimila a noção kantiana de coisa em si A instância da coisa em si seria em ambos a instância transcendental Buscaram dessa maneira salvaguardar a in dependência da dimensão ética e moral de toda ingerência da Teologia e do conhecimento especulativo pensando a realida de do mundo e a idealidade conhecimento especulativo como distintas entre si uma vez que com o conceito de coisaemsi mantémse a existência de um real distinto da instância da ideia e consequentemente de todo conhecimento especulativo Por sua vez o conceito de coisaemsi possibilitaria limitar o co nhecimento ao fenômeno abrindo espaço para a moralidade isto é para a possibilidade de postular a liberdade Kant ou de negála Schopenhauer Reencontramos pois em Schopenhauer o que já vimos em Kant a presença de uma dimensão ética propriamente dita uma dimensão transcendental não passível de ser trabalhada à luz de uma razão abstrata generalizante o que viria a corroborar mais uma vez a linha mestra desta obra que é mostrar a existên cia de uma distinção essencial entre o ethos com e longo que 217 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE define a instância de uma morada interior da realidade de ní vel transcendental do ethos com e breve referente à morada exterior dos fenômenos e fatos Porém Schopenhauer irá discordar de Kant em pontos fun damentais Assim por exemplo vimos que Kant procurou mos trar que existe no campo transcendental uma ordem superior capaz de responder pela dimensão ética e moral do ser humano e que essa ordem é a de uma razão prática Tal razão é autônoma e independente de qualquer capacidade cognitiva não necessi tando igualmente dos dados da sensibilidade Sendo o princípio da moral puro a priori não se apoiando em nada empírico ou em algo objetivo do mundo exterior ou mesmo subjetivo senti mento impulso ou inclinação Kant fundamenta a lei moral na sua própria forma que é a da legalidade universal para todos Embora Schopenhauer concorde com a distinção kantia na entre fenômeno e coisaemsi essa concepção kantiana da dimensão transcendental como sendo a de uma razão prática porém significará para Schopenhauer uma recaída no dogmatis mo Segundo ele o imperativo categórico base da razão prática ou moral em Kant não contemplaria o sentido moral da ação humana uma vez que a razão não é fator decisivo na moralida de ou seja ser dotado de razão e utilizála adequadamente não é ser necessariamente moral Muitos indivíduos observa usam corretamente a razão e no entanto cometem ações não morais Para Schopenhauer a razão pelo contrário aprimora os recursos imorais por meio dos quais os homens abusam e exploram uns aos outros Ainda em sua crítica à Kant Schopenhauer observa que cabe à reflexão filosófica sobre o ético buscar o esclarecimento 218 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE do dado isto é daquilo que o comportamento ou a ação éticos são e não de como deveriam ser como o faz Kant o próton pseudós primeiro passo em falso de kant está no seu conceito da própria ética que encontramos exposto de modo mais claro p 62 numa filosofia prática não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece mas leis daquilo que deve acontecer mesmo que nunca aconteça isto já é uma petitio principii petição de princípio decisiva Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem submeterse Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece O que vos dá o direito de antecipálo e logo impor uma ética na forma legislativoimperati va como a única para nós possível Digo contrapondome a Kant que em geral tanto o ético quanto o filosófico têm de contentarse com o esclarecimento do dado portanto com o que é com o que acontece realmente para chegarem ao seu entendimento e que eles aí têm muito o que fazer muito mais do que foi feito desde há séculos até hoje de acordo com a acima citada petitio princi pii kantiana admitese no Prefácio referente ao tema antes de qualquer investigação que existem leis morais puras depois tal suposição continua firme e é a mais profunda fundamentação de todo o sistema No entanto queremos antes investigar o concei to de uma lei O seu significado próprio e originário limitase à lei civil lex nomos uma instituição humana que repousa sobre o arbítrio humano O conceito de lei tem um significado segundo tropológico figurativo e metafórico quando aplicado à nature za cujos modos de proceder conhecidos em parte a priori em parte dela apreendidos a posteriori que se mantêm sempre constantes nós os chamamos metaforicamente leis da natureza É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que se dá a ver a priori e é isto que constitui o que kant isolou de modo perspicaz e excelente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza Para a vontade humana existe também por certo uma lei desde que o homem pertence à natureza e mesmo uma lei estritamente demonstrável inviolável sem exceções irrevo gável que não traz consigo nenhuma necessidade vel quase de uma certa maneira como o imperativo categórico mas uma necessidade efetiva SCHOPENHAUER 1995 4 p 23 219 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE É essencial à Ética como filosofia manter uma atitude con templativa e não prática inquirindo e não prescrevendo regras ou buscando moldar o caráter 53 Na minha opinião contudo toda a filosofia é sempre teórica já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa e sempre inquirir em vez de prescrever re gras Tornarse prática conduzir a ação moldar o caráter eis aí pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandonálas Pois aqui quando se trata do valor ou da ausência de valor da existência da salvação ou da perdi ção os mortos não decidem e sim a essência mais íntima do homem seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu como diz Platão em vez de ser escolhido seu caráter inteligí vel como Kant se expressa A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio sim para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento Por conseguinte seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas ar tistas plásticos e músicos SCHOPENHAUER 2005 p 354 Considerações Schopenhauer foi um dos mais influentes pensadores so bretudo até a segunda metade do século 20 Portavoz do irra cionalismo corrente filosófica que sustenta que quanto mais supera os limites do racional mais o homem é capaz de apreen der a realidade combateu o racionalismo absoluto do idealismo de Hegel 17701831 segundo o qual a contradição entre racio nal e irracional não é senão aparente pois a razão se realiza no e pelo seu contrário o irracional 220 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE alguns se referem a schopenhauer como o filósofo sem público de fato o reconhecimento de sua obra demorou bas tante a chegar Talvez essa demora se deva ao fato de que sua obra como muitos observam não se enquadra em nenhuma das filosofias vigentes Porém sua influência foi grande Freud 18561939 médico neurologista judeuaustría co reconheceu que a análise da repressão processo de fuga e condenação de impulsos do instinto no conscien te fora feita antes dele por Schopenhauer nas artes particularmente na música o famoso Richard Wagner 18131883 compositor alemão declarou ter escrito a ópera Tristão e Isolda como reação à leitura de Schopenhauer na literatura influenciou Léon Tolstoi 18281910 escri tor russo Anton Tcheckov 18601904 escritor russo Émile zola 18401902 escritor francês e outros inclu sive o nosso Machado de Assis no que concerne sobre tudo ao sentimento de uma inexorabilidade do destino como observa Eugênio Gomes 18971972 crítico lite rário brasileiro E Nietzsche o filósofo que estudaremos a seguir na segun da parte desta Unidade 4 disse tornarse filósofo devido à leitu ra de schopenhauer a quem chamava de cavaleiro solitário 6 WilhelM Friedrich nietZsche 18441900 Nietzsche nasceu de uma família de clérigos sendo seu pai ministro protestante ficou órfão de pai ainda bem jovem e foi educado por sua mãe e por sua irmã mais velha 221 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Aos 25 anos após estudos brilhantes de Filologia e Teo logia é nomeado professor na Universidade de Basiléia Suíça na fronteira com a Alemanha e França onde lecionou de 1869 a 1879 Dois acontecimentos influenciaram grandemente Nietzsche em sua maneira de pensar a leitura quando estudante da obra O mundo como vontade e como representação de Schopenhauer e sua amizade com o grande compositor Richard Wagner Segundo estudiosos Schopenhauer influenciou Nietzsche de diversas maneiras por exemplo no sentido de buscar uma nova maneira de ver o mundo diferente dos valores morais escravos de uma visão metafísica pensar sob o modelo da vida subordinar o intelecto à vontade considerar a vontade como cega e arbitrária e em con sequência o mundo como caótico e despojado de todo e qualquer caráter divino considerar a arte como sendo em sua essência uma li beração ou afastamento de todo processo racional Alguns autores observam ainda que o fato de Schopenhauer como os gregos antigos estabelecer uma relação entre o gênio e a loucura levará Nietzsche a uma atitude particular com relação à sua própria condição de doente com distúrbios mentais Possuía uma visão de toda doença como sendo apenas um exagero dos fenômenos normais da vida Não haveria dessa maneira diferença de essência entre o normal e o patológico a diferença seria apenas de grau Chega a conceber como consequência de sua vivência de distúrbios mentais sua visão da vida como vontade de potência 222 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Para Schopenhauer vimos a capacidade de captar o es sencial e tornálo objeto da arte é uma característica do gênio Associa essa capacidade ao fato do intelecto sair do âmbito das coisas particulares e apreender o universal no que existe O mun do como vontade e como representação Tomos I e II Essa carac terística do gênio seria contrária à própria natureza humana na qual segundo Schopenhauer a razão ou intelecto está a serviço da vontade e por essa razão o gênio seria muito mais susceptí vel a um desequilíbrio diante dos afetos e paixões Nietzsche e a questão da moral Em sua obra La généalogie de la morale 1971 p 56 tra dução nossa Nietzsche expressa o quanto considera importante e central a questão da moral para os filósofos e cientistas Observação Aproveito a ocasião que me dá esta dissertação para formular publicamente e expressar um desejo que não ex pus até o momento presente senão eventualmente em meus diálogos com os cientistas que uma faculdade de Filosofia ad quire mérito ao encorajar por meio de concursos acadêmicos os estudos de história da moral quem sabe este livro possa dar um rigoroso impulso nesse sentido Em vista de tal eventua lidade proponho a questão seguinte merecedora da atenção não apenas dos filósofos propriamente ditos mas também dos filólogos e historiadores Quais indicações a linguística e sobretudo a etimologia nos fornecem para a história da avaliação dos conceitos morais Por outro lado não é certamente menos interessante obter a participação de fisiologistas e de médicos no estudo desses pro blemas concernentes ao valor das avaliações que se deram até o momento presente De fato todo o repertório de valo res todos os tu deves que a história ou a etnologia conhecem teriam necessidade antes de mais nada de ser esclarecidos e interpretados pela fisiologia mais ainda do que pela psicolo 223 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE gia todos reclamam também a crítica das ciências médicas A questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores esta ou aquela moral demanda que sejam colocadas sob as perspecti vas as mais diversas principalmente não se analisará com su ficiente escrúpulo a questão bom por quê o bemestar da maioria e o bemestar da minoria são critérios de avaliação opostos acreditar que o primeiro possui em si um valor supe rior é o que deixaremos à ingenuidade dos biologistas ingleses Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do filósofo entendendo por esta tarefa o seguinte ao filósofo cabe resolver o problema do valor cabe determinar a hierarquia dos valores O espírito histórico escaparia aos historiadores e aos filósofos Nietzsche acusa a filosofia de até então considerar a reali dade desprovida da dimensão histórica do vir a ser descon siderando a dimensão histórica tornam a realidade uma sub specie aeterni uma subespécie do eterno Toda mudança é por eles refutada diz o filósofo o que é não vem a ser o que vem a ser não é Tomando como exemplo o conceito de bom nietzsche procura mostrar que a origem do conceito moral de bom apre sentada por historiadores e filósofos contém sinais de reações pessoais ou características dos psicólogos ingleses os quais atri buem à utilidade ao esquecimento ao hábito e ao erro a condição de base de um valor no caso o valor moral bom Na origem decretam eles as ações desinteressadas foram louvadas e denominadas boas por aqueles em favor dos quais elas tinham sido realizadas consequentemente para aqueles aos quais tinham sido úteis mais tarde esquecendo que ti nham provindo do elogio simplesmente sentiuse como boas as ações não egoístas porque tinham sido por hábito sempre 224 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE louvadas como tais como se elas fossem algo de bom em si NIETzSCHE 1971 p 21 tradução nossa Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a verdadeira morada do conceito de bom geneticamente falando o julgamento de bom não vem daquilo com relação ao qual manifestase a bondade são os próprios bons isto é os nobres os poderosos os homens de condição superior e de alma elevada que se sentiram eles mesmos bons e considera ram seus atos bons ou seja de primeira ordem em oposição a tudo que é baixo mesquinho comum e vulgar NIETzSCHE 1971 p 21 tradução nossa A formação universitária básica de Nietzsche foi a Filologia ciência que estuda uma língua literatura cultura ou civilização sob uma visão histórica Para ele o verdadeiro método para encontrar o surgimento dos conceitos de bom e mau é o da etimologia Referindose às expressões de bom e mau em diversas línguas diz encontrei que todas remetem à mesma transformação dos conceitos em todas elas distinto nobre no sentido de clas se social é o conceito fundamental de onde nascem e se desen volvem necessariamente as ideias de bom significando alma distinta e nobre no sentido de alma superior de alma privilegiada essa evolução se faz paralelamente àquela que acaba por transformar as ideias de comum popular vil na de mau nieTZsche 1971 p 24 tradução nossa Diante de tais fatos que mostram a origem de julgamentos de valor destinados a estabelecer hierarquias falar de utilidade conclui Nietzsche seria apresentar a sensibilidade pobre de uma inteligência calculadora Como acabo de dizer o pathos da nobreza e da distância senti mento geral tão fundamental tão preponderante tão vivaz em uma espécie superior e dominante em suas relações com uma espécie inferior com algo embaixo eis a origem da oposição entre bom e mau nieTZsche 1971 p 22 tradução nossa 225 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observação pathos é uma palavra grega que significa paixão assujeitamento Esse conceito foi cunhado por Descartes para designar algo que acontece ou o que é passivo de um aconteci mento Nietzsche quer significar com essa palavra a distância e o domínio que acontece entre a classe nobre e a classe baixa e inferior dos seres humanos na origem da oposição bom e mau portanto não haveria a priori ligação necessária entre a palavra bom e as ações não egoístas como querem os genealogistas da moral É apenas quan do os julgamentos de valor aristocráticos declinam que se impõe pouco a pouco a famosa oposição egoístanão egoísta Não há fatos morais todo julgamento moral é falso De sua análise etimológica de valores como a origem do bom e do mau nietzsche conclui que não existem fatos mo rais porém todo julgamento moral é um sintoma sintoma aqui não no sentido médico da palavra mas no sentido de um significante o que significa sem nenhum significado fixo Cabe ao filósofo situarse além do bem e do mal colocarse acima da ilusão do julgamento moral O julgamento moral e o religioso têm em comum o fato de crerem em realidades que não existem Sabese o que exijo do filósofo colocarse além do bem e do mal colocar abaixo a ilusão do julgamento moral Essa exigên cia é o resultado de um exame que realizei pela primeira vez cheguei à conclusão de que não há fatos morais o juízo mo ral tem em comum com o juízo religioso crer em realidades que não existem A moral não é senão a interpretação de certos fe nômenos mas uma falsa interpretação O juízo moral pertence como o juízo religioso a um grau de ignorância em que a noção de realidade a distinção entre o geral e o imaginário nem mes mo existem de maneira que em um tal grau a verdade de 226 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE signa coisas que chamamos hoje de imaginação eis porque o juízo moral não deve nunca ser tomado ao pé da letra literal mente ele seria sempre um contrassenso Mas como lingua gem permanece inestimável revela pelo menos para aquele que sabe as realidades mais preciosas sobre culturas e talentos de gênio que não sabiam o bastante para compreender a eles mesmos A moral não é senão a linguagem dos sinais uma sintomatologia é preciso saber do que se trata para poder se beneficiar NIETzSCHE 1952a 17 p 126 tradução nossa Não há consciência moral toda consciência nada mais é do que um acidente segundo descartes a consciência é o centro do eu seu núcleo substancial e o eu subjetivo é o eu pensante a cons ciência para Nietzsche é um acidente não é o essencial da sub jetividade De acordo com Nietzsche nós nos deixamos enganar quando achamos que é o nosso eu que pensa e mais que o sujeito da frase eu penso seja uma substância ou algo em si Em seu livro Além do bem e do mal observa que um pensamen to não vem senão quando quer e não porque é o eu quem quer alguma coisa pensa mas acreditar que esta coisa seja o eu é pura suposição além disso observa que o caráter geral do conceito não é capaz de expressar a singularidade da subjetividade e esta por sua vez jamais coincide com ela mesma quando digo eu ex presso o que tenho em comum com todos os outros eu De fato o projeto genealógico de Nietzsche destrói a noção do eu como sujeito autoconsciente e uno ver no tópico Erefe rências o texto A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche de Ângela zamora 227 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Investigando a história da humanidade Nietzsche procura mostrar que o surgimento da autoconsciência do pensamento e da linguagem é de natureza histórica Para sobreviver o ser humano teve que se reunir a outros seres humanos formando agrupamentos Surgiu então a necessidade de se comunicar com o outro e para tanto fazse necessário saber quem se é o que se quer É dessa relação do humano com o humano que decorreriam a consciência o pensamento e a linguagem Consequentemente a consciência faz parte da existência em comunidade da existência à maneira de rebanho e a subje tividade não mais se identifica com uma natureza humana imu tável pelo contrário o processo de conscientização no homem está em constante mobilidade sendo que essa conscientização é cada vez maior o critério para a busca de valores é a vida e a vida é vontade de poder Os valores reais para Nietzsche não decorrem de algo são inventados há que buscálos em seu emergir em sua pro veniência através da história e o critério é a vida e a vida é vontade de poder Uma vontade de poder que é orgânica e própria a todo ser vivo uma busca constante por mais vida por apropriarse dominar Uma vontade de poder que se estrutura em uma relação de mandar e obedecer A vida é apropriação e sujeição daquele que é o mais fraco É opressão dureza exploração Todo com portamento humano é motivado pela busca do poder e tal poder se manifesta como independência criatividade e originalidade no alémdohomem superhomem conforme expressão cria da pelo filósofo 228 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A vida é um jogo de forças é vontade de poder desejo perma nente de intensificação de ultrapassagem em direção a mais poder seja na oposição entre duas forças seja no interior de uma mesma força Essa vontade de crescimento não se reduz ao instinto de conservação pois a afirmação de sua força pode levar um ser vivo a colocar em causa sua própria conservação o que Nietzsche interpreta como uma limitação da vontade de viver Dentre essas forças umas são ativas capazes de se afirmar sem se opor a outras forças outras são reativas só se opõem mutilando as demais O ideal de Nietzsche consiste em afirmar seus valores sem a preocupação de justificação Sócra tes ao contrário é o protótipo do homem reativo pois que ao erro opõe o verdadeiro ao mal o bem etc ROUXLANIER 1995 p 473 tradução nossa Nenhum juízo pró ou contra a vida pode ser verdadeiro Juízos apreciações pró ou contra a vida não podem em últi ma instância ser verdadeiros não têm outro valor senão o de ser sintomas não contam senão como sintomas em si tais juízos são estupidez É preciso alcançar esta sutileza de com preender que o valor da vida não pode ser apreciado nem por aquele dotado de vida porque ele é parte é mesmo objeto de litígio e não de julgamento nem por um morto por outra razão da parte de um filósofo ver um problema no valor da vida consiste em uma contradição em um ponto de interroga ção com relação ao seu saber uma falta de sabedoria Como E todos estes grandes sábios teriam eles sido não somente de cadentes mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios NIETzSCHE 1952a p 9698 tradução nossa Contra toda dialética Em sua obra Crepúsculo dos ídolos Nietzsche ataca a for ma de pensamento que predominou no pensamento ocidental e que se inicia com Sócrates Sócrates para Nietzsche é o inventor do homem teórico ou dialético que se contrapõe ao aristocrata 229 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE grego cuja nobreza se impunha de si mesma sem justificativa O homem dialético reclama sempre a prova de tudo que se afirma Toda deliberação argumentada é condenada pelo filósofo porque nela se daria o desaparecimento da solidariedade tra dicional instintiva nos antigos helenos gregos responsável por sua força e saúde A origem dessa decadência que leva ao mundo moderno estaria na vitória da dialética socrática sobre o sentido do trágico dos antigos gregos Vitória de Sócrates que Nietzsche atribui ao triunfo das forças reativas sobre as forças ativas É portanto um sintoma da decadência Antes de Sócra tes observa a sociedade grega considerava falta de boas manei ras buscar justificar argumentando dialeticamente pois o que precisa ser demonstrado não têm valor Aquele que em vez de comandar usa da dialética para demonstrar suas razões seria segundo nietzsche um polichinelo isto é alguém que não é levado a sério sócrates foi o polichinelo que se tomou a sério Com Sócrates a tendência do pensamento grego se altera em favor da dialética o que é que se passa exatamente Antes de mais nada tratase de uma vitória sobre uma tendência nobre com a dialética o povo alcança a posição mais alta Antes de Só crates discursos dialéticos eram eliminados da boa sociedade eram considerados como capazes de corromper a juventude Desconfiavam também de todos aqueles que argumentassem de tal maneira O que precisa ser demonstrado não vale grande coisa Em todo lugar onde a autoridade ainda está de acordo com as normas sociais em todo lugar onde não se dis cute mas se comanda aquele que exerce a dialética é uma espécie de polichinelo é motivo de riso não é tomado a sério sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser tomado a sério NIETzSCHE 1952a p 9698 tradução nossa 230 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A moral vigente corresponde ao instinto de rebanho no indivíduo Os valores tradicionais representam para Nietzsche uma moralidade escrava uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que por interesse estimularam comportamentos bondosos Nietzsche distingue duas classes de seres humanos a dos senhores e a dos escravos A classe dos senhores compreende a dos guerreiros aristocrática e a sacerdotal A classe sacerdotal deriva da classe guerreira ou aristocrática caracterizandose po rém pela impotência em vez de praticar as virtudes do corpo como a classe aristocrática inventa virtudes Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de mo ral a dos senhores e a dos escravos A classe dos guerreiros é dominante a sacerdotal é débil e enferma A classe sacerdotal reage invertendo os valores aristocráticos criando uma moral escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assumi da pelo cristianismo É a moral surgida do ressentimento segundo a qual a força que o forte sendo livre exterioriza é algo ruim pois destrói os mais fracos nesse processo de transvalorização transformam impotência em bondade baixeza em humildade covardia em paciência miséria em prova bemaventurada dos eleitos e cria se a noção de justiça a invenção da moral foi uma defesa contra os poderosos Os valores tradicionais representam assim para Nietzsche uma moralidade escrava uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que por interesse estimularam comporta mentos bondosos 231 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O mundo chamado pela filosofia de verdadeiro não passa de uma ilusão de ordem moral Estamos habituados diz Nietzsche a considerar como ver dadeiro só o estável o que permanece uno idêntico a si mesmo Dá como exemplo Platão que situa a verdadeira realidade no do mínio inteligível o mundo das Ideias em oposição à diversidade sensível sempre mutante considerando esta como aparência Essa determinação da essência da verdade que se apre senta como evidente não o é diz Nietzsche supõe uma sepa ração e uma avaliação julgamento moral que implica uma re jeição do sensível e do múltiplo ou seja da vida em toda a sua riqueza O problema da ciência é um problema moral Em sua obra A Gaia Ciência Nietzsche diz que no domínio da ciência as convicções não têm lugar Só quando assumem a forma de hipótese experimental conseguem acessar o domínio do conhecimento Isso significaria dizer que a convicção só ad quire o direito de pertencer à ciência quando deixa de ser uma convicção Acontece observa o filósofo que a ciência ou discipli na do espírito começa sempre a partir de convicções Podemos concluir que a própria ciência se baseia em uma crença a da necessidade de postular e a necessidade de se fazer ciência se funda em outro postulado nada é mais necessário do que a verdade Mas o que é esta vontade absoluta de verdade Querer a verdade observa Nietzsche pode ser secretamente querer a morte quem quer intensamente a verdade afirmando sua fé na ciência afirma por isso mesmo a existência de outro mundo que 232 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE não é o da vida o da natureza e o da história o que significaria necessariamente negálos O problema da ciência seria então um problema moral É dito com justa razão que no domínio da ciência as convicções não têm direito de ser consideradas somente quando submeti das às formas provisórias da hipótese do ponto de vista expe rimental da ficção reguladora podemos concederlhes acesso ao domínio do conhecimento e reconhecer nelas um certo va lor com a condição de que permaneçam porém sob vigilân cia policial sob o controle da suspeita Mas isso não significa no fundo dizer que é unicamente quando a convicção cessa de ser convicção que ela pode adquirir direito de cidadania na ciência A disciplina do espírito científico não começaria so mente com a recusa de toda convicção É provável res ta saber se a existência de uma convicção não é indispensável para que essa disciplina possa ela mesma começar e se a exis tência de uma convicção não seja tão imperiosa tão absoluta que obrigue todas as outras a se sacrificar a ela Vêse por isso que a própria ciência se baseia em uma crença não há ciência sem postulado a ciência é necessária É preciso para que ela pudesse vir a existir que essa questão fosse antes respondi da não apenas afirmativamente mas afirmativa a tal ponto que ela expressasse este princípio esta fé esta convicção nada é mais necessário do que o verdadeiro nada em seu valor tem importância senão secundária o que é esta vontade absoluta de verdade Querer o verdadeiro poderia ser secretamente querer a mor te Sem nenhuma dúvida quem vê o verdadeiro no sentido intrépido e supremo que supõe a fé na ciência afirma por esta mesma vontade outro mundo que não o da vida da natureza da história e na medida em que afirma este outro mundo não nega necessariamente por este fato mesmo o seu antípoda este mundo o nosso NIETzSCHE 1950 344 p 286289 tra dução nossa 233 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A crítica ao cristianismo e à democracia Ao criticar toda argumentação Nietzsche se opõe igual mente à democracia Segundo ele esse regime político seria a última etapa da decadência histórica que se iniciou com Sócrates e conduzida pelo judaísmo e pelo cristianismo chega às ideias presentes na Revolução Francesa Na obra Crepúsculo dos ídolos o filósofo elabora uma crítica do cristianismo como origem da democracia A ideia de imortalidade pessoal destrói toda razão e toda natureza do ins tinto ou seja tudo que é vital O cristianismo deve sua vitória a essa lamentável adulação da vaidade pessoal a salvação da alma isto é o mundo gira ao redor de mim a doutrina cristã da igualdade de direitos de que a salvação é para todos consis te para Nietzsche no maior e mais malvado atentado contra a humanidade nobre ninguém mais tem coragem de reivindicar privilégios e o poder de dominação Transmitida ao longo das gerações a partir de Sócrates e via cristianismo os direitos dos homens o liberalismo e o socia lismo essa preocupação de igualdade é uma vontade reativa que mutila a vida negando as diferenças Quando o centro de gravidade da vida é colocado não nela mesma mas no além no nada então se retirou da vida o seu centro de gravidade A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão todo instinto natural tudo que há nos instintos que seja benéfico vivificante que assegure o futuro agora é causa de desconfiança Viver de modo que a vida não tenha sentido agora esse é o sentido da vida Para que o espírito público Para que se orgulhar pela origem e antepassados Para que cooperar confiar preocuparse com o bemestar geral e servir a ele outras tantas tentações outros tantos desvios do bom caminho somente uma coi sa é necessária Que todo homem por possuir uma alma 234 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE imortal tenha tanto valor quanto qualquer outro homem que na totalidade dos seres a salvação de todo indivíduo possa reivindicar uma importância eterna que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor não há como ex pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum até a insolência E contudo o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá vel bajulação de vaidade pessoal foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados os insatisfeitos os vencidos todo o refugo e vômito da humanidade a salvação da alma em outras palavras o mundo gira ao meu redor a venenosa doutrina dos direitos iguais para todos foi propagada como um princípio cristão a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho mens ou seja contra o primeiro prérequisito de toda evolu ção de todo desenvolvimento da civilização do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós contra tudo que é nobre alegre magnânimo sobre a terra contra nossa felicidade na Terra conceder a imortalidade a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política Atualmente nin guém mais possui coragem para os privilégios para o direito de dominar para os sentimentos de veneração por si e seus iguais para o pathos da distância Nossa política está debilitada por essa falta de coragem Os sentimentos aristocráticos fo ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas e se a crença nos privilégios da maioria faz e con tinuará a fazer revoluções é o cristianismo não duvidemos disso são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime NIETzSCHE 1989 LXIII É necessário entretanto observar que Nietzsche em mui tos momentos de sua obra distingue com clareza a mensagem 235 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE de Jesus de Nazaré do cristianismo Vejamos a respeito alguns extratos da obra O anticristo toda a história do cristianismo da morte na cruz em diante é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um simbolismo original Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu surgiu a necessida de de tornálo mais vulgar e bárbaro absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio NIETzSCHE 1989 XXXVII Mais adiante naquela mesma obra diz Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica histó ria do cristianismo a própria palavra cristianismo é um mal entendido no fundo só existiu um cristão e ele morreu na cruz o evangelho morreu na cruz o que desse momento em diante chamouse evangelho era exatamente o oposto do que ele viveu más novas um Dysangelium NIETzSCHE 1989 XXXIX Dysangelium um dos muitos neologismos de Nietzsche Ele compõe esse vocábulo de angelium cuja origem vem do grego e que significa nova notícia fazendo oposição com os pre fixos dys mau infeliz notícia má e eu bom feliz boa nova boa notícia E mais adiante e a partir desse momento surgiu um problema absurdo como pôde deus permitilo Para o qual a perturbada lógica da pe quena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados De uma vez acabaram com o Evangelho O sacrifício pelos pecados e em sua forma mais obnóxia e bárbara o sa crifício do inocente pelo pecado dos culpados Que paganismo apavorante O próprio Jesus havia suprimido o conceito de 236 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE culpa negava a existência de um abismo entre deus e o ho mem ele viveu essa unidade entre Deus e o homem que era precisamente a sua boa nova nieTZsche 1989 Xli A crença é sinal de vontade fraca De acordo com Nietzsche em A Gaia Ciência a fé surge quando falta vontade pois a vontade sendo a energia do co mando é o sinal da dominação e da força Quanto menos sabe mos comandar mais aspiramos por um ser seja um deus um príncipe uma classe um dogma etc O budismo e o cristianismo teriam nascido de uma extraor dinária anemia da vontade levaram os homens ao fanatismo dandolhes uma nova possibilidade de querer O fanatismo é a força de vontade própria dos fracos hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual das pessoas com um único ponto de vista que no caso dos cristãos é a fé Quando alguém se convence de que deve ser comandado ele se torna um crente Um espírito livre ao contrário experimenta o prazer de se governar de rejei tar segundo sua vontade toda necessidade de certeza É sempre lá onde mais falta vontade que a fé é mais desejada mais necessária pois a vontade sendo a energia do comando é o sinal diferenciador do domínio e da força Quanto menos se sabe comandar mais se aspira ao ser e ao ser rigorosamente seja ele um deus um príncipe uma classe um médico um con fessor um dogma uma consciência de partido O que autorizaria a concluir que as duas grandes religiões do mundo o budismo e o cristianismo poderiam ter nascido de uma extraordinária ane mia da vontade que explicaria ainda melhor a rapidez de sua propagação E de fato assim é essas duas religiões encontraram uma necessidade imperativa exaltada até a loucura o desespero pela anemia da vontade todas as duas ensinaram o fanatismo em uma época de apatia e propuseram a uma multidão incal culável um ponto de apoio uma nova possibilidade de querer 237 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE um prazer a ser realizado o fanatismo é de fato a única força de vontade a qual é possível atribuir aos fracos e indecisos pois ele hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual em benefício da assimilação abundante de um só ponto de vista de um senti mento único o cristão o chama sua fé o qual a partir de en tão hipertrofiado domina Quando um homem se convence de que deve ser comandado ele é crente ao contrário podese imaginar certo prazer de se governar certo poder no exercício do predomínio individual certa liberdade de querer que permitam a um espírito rejeitar de acordo com sua vontade toda fé toda necessidade de certeza podese imaginálo viver mantido pelas correntes as mais leves pelas possibilidades as mais diminutas a dançar até às bordas dos abismos este seria o espírito livre por excelência NIETzSCHE 1950 347 p 294295 tradução nossa O ideal do ascetismo Em sua obra já citada A genealogia da moral Nietzsche pergunta Por que sofrer o homem não rejeita o sofrimento em si ele até busca o sofrimento desde que lhe seja mostrado a razão deste a ausência de sentido da dor é a maldição que tem pesado sobre a humanidade o ideal ascético lhe dá um sentido Graças a ele o sofrimento é explicado o vazio imen so parece preenchido Porém a interpretação que se dá à vida nesse caso traria um novo sofrimento mais profundo mais ín timo mais envenenado mais mortal o sofrimento do castigo por causa do pecado Por que sofrer o homem o mais valente o mais apto ao sofrimento de todos os animais não rejeita o sofrimento em si ele o procura mesmo desde que lhe seja mostrada a razão de ser deste o porquê deste sofrimento a ausência de sentido da dor e não a própria dor é a maldição que até hoje pesou so bre a humanidade ora o ideal ascético lhe deu um sentido Era até então o único sentido que lhe foi dado não importa qual seja o sentido este vale mais do que nenhum sentido o ideal 238 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ascético não era sob todo ponto de vista senão a ausência de um sentido melhor e por excelência a sua única peculiari dade Graças a ele o sofrimento foi explicado o vazio imenso parecia preenchido a porta se fechava diante de toda espécie de niilismo de todo o desejo de acabamento A interpretação que se dava à vida levava inconfundivelmente a um novo so frimento mais profundo mais íntimo mais envenenado mais mortal fez ver todo sofrimento como o castigo de um pecado Mas apesar de tudo trazia ao homem a salvação o ho mem tinha um sentido não era mais a folha arrastada pelo vento o jogo sem razão da ausência de sentido ele poderia a partir de então querer algo não importando o que quisesse a própria vontade estava pelo menos salva nieTZsche 1968 p 244246 tradução nossa O mundo é um caos visão perspectivista O mundo é um caos eterno sobre ele podemos ter múl tiplas perspectivas ou seja ele é passível de uma infinidade de interpretações a partir da morte de deus a ideia de mundo segundo nietzsche desaparece ou como diz o filósofo o mun do tornase novamente infinito Deus está morto Deus permanece morto E quem o matou fomos nós Como haveremos de nos consolar nós os algozes dos algozes O que o mundo possuiu até agora de mais sa grado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nos sas lâminas Quem nos limpará desse sangue Qual a água que nos lavará Que solenidades de desagravo que jogos sagrados haveremos de inventar A grandiosidade desse ato não será demasiada para nós Não teremos de nos tornar nós próprios deuses para parecermos apenas dignos dele Nunca existiu ato mais grandioso e quem quer que nasça depois de nós passará a fazer parte mercê desse ato de uma história superior a toda a história até hoje NIETzSCHE 1950 125 tradução nossa 239 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O que Nietzsche quer significar com a famosa frase Deus está morto Deus está morto é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda a filosofia Entendêla literalmente como se Deus pudesse estar fisicamente morto ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo na cruz ou ainda como uma simples declaração de ateísmo são ideias oriundas de uma análise descontextualizada da frase que se acha profundamente enraizada na obra nietzscheana O dito anuncia o fim dos fundamentos transcendentais da existência de Deus como justificativa e fonte de valoração para o mundo tanto na civilização quanto na vida das pessoas segundo o filósofo mesmo que estas não o queiram admitir Nietzsche não se coloca como o assassino de Deus como o tom provocador pode dar a entender o filósofo enfatiza um acontecimento cultural e diz fomos nós que o matamos A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação mas uma constatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto filosófico de superar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que julgam o nosso mundo na opinião do filósofo o único existente a partir de um outro mundo superior e além deste A morte de Deus metaforiza o facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e por fim à descrença em quaisquer valores Isso conduziria ao niilismo que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao facto de ainda mantermos uma sombra um tro no vazio um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído que não podemos voltar a ocupar Para isso ele procurou com o seu projecto da transmutação dos valores reformular os fundamentos dos valores humanos em bases segundo ele mais profundas do que as crenças do cristianismo WIKIPEDIA 2012 A ideia metafísica de mundo desaparece dando lugar a uma infinidade de perspectivas Nietzsche pergunta ainda em sua obra A Gaia Ciência até onde vai o caráter perspectivo da existência há uma existência sem razão Toda existência não é essencialmente explicativa Não há análise do intelecto por mais cuidadosa que seja que possa decidir isso porque o espírito hu mano não pode deixar de ver à luz de sua própria perspectiva uma existência sem explicação sem razão não se torna uma loucura Por outro lado toda existência não é essencial 240 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE mente passível de explicação É o que não conseguem deci dir as análises mais cuidadas do intelecto as mais pacientes e minuciosas introspecções pois o espírito do homem em suas análises não pode se impedir de se ver segundo sua própria perspectiva e não pode se ver senão e de acordo com ela Não podemos ver a não ser com nossos olhos é uma curio sidade sem esperança de sucesso buscar saber quais outras espécies de intelectos e de perspectivas podem existir se por exemplo existem seres que sentem passar o tempo em outro sentido ou sucessivamente em direção para frente e para trás o que mudaria a direção da vida e inverteria a concepção da causa e do efeito Espero entretanto que estejamos hoje lon ge da ridícula pretensão de decretar que nosso pequeno ângulo de visão seja o único do qual se tem o direito de ter uma pers pectiva Ao contrário o mundo para nós voltou a ser infinito no sentido de que não podemos lhe recusar a possibilidade de ser disponível a uma infinidade de interpretações NIETzSCHE in ROUXLANIER 1995 p 477 tradução nossa A solução segundo Nietzsche não é recuar para o estado de prémodernidade mas ir além da modernidade o eterno retorno Tudo o que acontece segundo Nietzsche já aconteceu em um número infinito de vezes e acontecerá novamente infinitas vezes É o seu célebre conceito do eterno retorno o aforismo 341 de sua obra A Gaia Ciência é frequentemente citado E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse esta vida assim como tu a vi ves agora e como a viveste terás de vivêla ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e não haverá nela nada de novo cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivel mente pequeno e de grande em tua vida há de retornar e tudo na mesma ordem e sequência e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores e do mesmo modo este instante e eu próprio A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez e tu com ela poeirinha da poeira não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te 241 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE falasse assim Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que responderias Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino se esse pensamento adquirisse poder sobre ti assim como tu és ele te transformaria e talvez te triturasse a pergunta diante de tudo e de cada coisa Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir Ou então como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida para não desejar nada mais do que essa última eter na confirmação e chancela NIETzSCHE apud WIKIPEDIA 2015 É preciso esclarecer que a noção de eterno retorno não corresponde a uma concepção cíclica do tempo pois o conceito de história do filósofo não é o de um tempo cíclico o eterno retorno diz respeito observam vários estudiosos ao fato de es tarmos sempre vivenciando um número determinado de aconte cimentos que se repetiram no passado se repetem no presente e se repetirão no futuro como guerras crises econômicas epi demias etc Isso porque o mundo é uma realidade múltipla mas única que não tem meta ou finalidade Com o Eterno Retorno Nietzsche questiona a ordem das coisas Indica um mundo não feito de pólos opostos e inconciliáveis mas de faces complementares de uma mesma múltipla mas única realidade Logo bem e mal angústia e prazer são instân cias complementares da realidade instâncias que se alternam eternamente Como a realidade não tem objetivo ou finalidade pois se tivesse já a teria alcançado a alternância nunca finda Ou seja considerandose o tempo infinito e as combinações de forças em conflito que formam cada instante finitas em algum momento futuro tudo se repetirá infinitas vezes Assim vemos sempre os mesmos fatos retornarem indefinidamente WIKIPE DIA 2015 nessa doutrina do eterno retorno o mundo não resulta ria de uma intenção e nem perseguiria um fim Negase o sujeito humano como origem dos acontecimentos Toda ideia de corri 242 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE gir um período passado no caso o pensamento moderno não poderia ser entendida como um retorno ao passado mas seria a própria evolução da modernidade e de suas conquistas que trariam as condições de um retorno ao universo tradicional o caminho do grande estilo Esse retorno ao universo tradicional não consiste segundo nietzsche em voltar à aristocracia natural dos habitantes da Grécia Antiga denominada Hélade os chamados grandes hele nos mas para além do caminho ascético inaugurado por Sócra tes e continuado pelo cristianismo o qual consiste em submeter as forças instintivas à tirania da razão e da verdade mutilando a vida abrese uma outra possibilidade Ela não consiste em negar os instintos mas em hierarqui zar o conjunto dessas forças vitais inclusive as forças da razão e da lógica desenvolvidas por Sócrates e seus discípulos Esse caminho representado pelos antigos helenos enriquecido com aquisições da modernidade é o que nietzsche chama de gran de estilo essa hierarquização e apenas ela nos permitirá esca par do ascetismo de maneira não reativa Apenas negar a razão nos deixaria ainda prisioneiros da atitude reativa inaugurada por Sócrates A hierarquização harmoniosa de todas as forças vitais inclusive da razão nos permitiria uma intensificação da vida O Retorno eterno integra no decorrer de seu ciclo as forças que a vida desenvolveu progressivamente Os grandes helenos eram no fundo inconscientes de sua nobreza moral Como diz nietzsche eles eram espontaneamente virtuosos sem se per guntar por quê representavam um tipo de humanidade frágil destinada a sucumbir sob as interrogações de Sócrates ROUX LANIER 1995 p 475 tradução nossa 243 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE o grande estilo portanto é o estilo clássico que expressa um imenso fluir e refluir de paixão sublime sobrehumana que liberta os instintos capitais e a vontade de potência e nos capacita a dominar o caos que nós somos Sugestão de leitura NASSER E O romantismo em Nietzsche enquanto um problema temporal estético e ético Revista Trá gica estudos sobre Nietzsche v 2 n 2 p 3146 2009 Dispo nível em httptragicaorgartigos0403eduardopdf Acesso em 4 set 2015 A filosofia como estética Muito mais verdadeira do que a ciência e a filosofia para Nietzsche seria a arte Isso porque se adéqua à multiplicidade da vida e ao seu processo constante de diferenciação O artista é o único que não possui a pretensão de expressar uma verdade absoluta mas sua obra se limita a uma perspectiva Por essa razão Nietzsche acreditava que o filósofo e a filosofia deveriam se transformar em estética O professor Miguel Angel de Barrenechea observa em seu artigo Nietzsche e o discurso filosófico uma linguagem pessoal 2011 que o Nietzsche jovem buscava em sua obra O nascimento da tragédia uma metafísica de artista Tratase de uma explicação estética do universo assim como do próprio devir da cultura Orientase pelas imagens da tradição helênica valorizando particularmente a tragédia e a música que conside rava como expressões da própria essência da realidade Sob a inspiração de Schopenhauer e do compositor Richard Wagner desenvolve naquela obra uma visão da realidade onde ainda se mantém ligado aos dualismos da tradição filosófica tais como 244 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE fenômeno e coisaemsi aparência e essência vontade e repre sentação É assim que naquela obra Nietzsche vê nas figuras de Apolo divindade da mitologia grecoromana identificado como o sol e como a luz da verdade e de Dionísio em Nietzsche sim bolizando a vontade de viver representantes respectivamente do aspecto fenomenal da realidade e das forças provindas de um fundo primordial da essência do mundo Posteriormente ao es crever Assim falava Zaratrusta Nietzsche vai à busca de uma lin guagem essencialmente não conceitual mas artística e literária por meio de imagens e metáforas Considerações O professor Jelson Oliveira da PUC do Rio de Janeiro em seu artigo intitulado A grande Ética de Nietzsche propõe que se possa falar de uma grande Ética em nietzsche diz ele Trataremos de avaliar a possibilidade de pensar o problema da ética em Nietzsche a partir da compreensão do uso instrumen tal do adjetivo grosse grande Consideraremos a título de exemplo o uso feito pelo filósofo do adjetivo grosse em expres sões como grande saúde grande política grande razão e grande homem pelo qual se pode descobrir pistas que remetem às noções de autosupressão diferença conflito e hierarquia Essas noções se ligam à idéia de uma grande ética cuja referência passa a ser o pathos e não mais simplesmente o ethos OLIVEIRA 2011a p 1 observa que o terreno dessa grande Ética seria o pathos ao contrário do terreno da moral vigente a do ethos fundado na conduta guiada pela universalidade dos imperativos ligado ao duradouro via a racionalidade Pathos é entendido por Nietzsche como aquilo que diz respeito à conduta do nobre ou seja a de um distanciamento gerador da diferença do conflito e da hierar 245 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE quia terreno de uma ética que não se fundamenta em princípios universais à luz de uma vontade de sistema como características dessa grande Ética desse ir além de toda moralidade vigente nietzsche fala de uma ética aris tocrática e de uma ética da amizade Uma ética aristocráti ca uma vez que segundo Nietzsche só o nobre seria capaz de vivenciar esse ir além essa transvalorização esse recriar e reinventar valores por meio de um jogo de perspectivas sem definhar Uma ética da amizade significa no caso uma revalori zação dos afetos No prefácio ao livro Para uma ética da amizade em Nietzsche do professor Jelson Oliveira Oswaldo Giacóia Junior diz citando Nietzsche É certo que Nietzsche mesmo em cerrada oposição ao seu mes tre Arthur Schopenhauer não se propõe a depor completamente uma ética da compaixão substituindoa por um ethos da felici dade compartilhada pura e simplesmente em termos de uma oposição absoluta mas não é menos certo que tal como cons tatamos na citação abaixo transcrita ele contrapõe Mitfreude alegrarse com a Mitleiden compaixão E esse sentimento po sitivo de alegrarse com só é plenamente possível entre amigos aqueles que podem sentir alegria conosco são mais elevados e próximos do que aqueles que sofrem conosco Alegria com partilhada faz o amigo aquele que se alegracom compaixão faz o companheiro de sofrimento Uma ética da compaixão carece de um complemento por meio de uma ética da amiza de ainda mais elevada nieTZsche F Fragmento póstumo nu merado como 19 9 In Nachgelassene Fragmente In Kritische Studienausgabe ksa Ed G Colli e M Montinari Berlin New York München de Gruyter dtv 1980 vol 8 p 333 Nietzsche faz aqui um jogo de palavras irresgatável em português entre Freude alegria e Freunde amigo transitando entre alegria e amizade ele opõe amigoalegria por meio dos verbos freuen alegrarse e do neologismo cunhado por ele mesmo freuenden 246 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE alegrarse amistosamente a uma ética da compaixão Mitleid sofrer com A ética da amizade seria ao mesmo tempo uma complementação Ergänzung e um patamar ético mais elevado que a ética da compaixão GIACÓIA JR in OLIVEIRA 2011b Quanto à Ética conforme a estamos considerando nesta obra ou seja como saber do singular distinguindose da moral na medida em que esta se funda em um saber abstrato genera lizante podemos dizer que ela literalmente se manifesta de ma neira explosiva no pensamento de nietzsche Isso porque como vimos ao tratar a moral vigente no pen samento ocidental como algo falso e ilusório por ter por fun damento uma razão abstraída da vida coloca a nu um domínio de saber que é o de uma universalidade não do geral não do igual mas do singular da diferença E nesse sentido várias são as questões de ordem filosófica polêmicas no que concerne ao pensamento do filósofo alemão com implicações no tema da Ética Assim por exemplo para não citar senão algumas a questão da existência no pensamento de Nietzsche de um transcendental não transcendente a de um saber da singularidade a da distinção entre singularidade e individualidade a da subjetividade Relembremos que os sentidos de transcendental de trans cendente e de imanente assumem nuances diversas no pen samento de alguns filósofos Aqui estamos entendendo como transcendental a concepção de um princípio da realidade que pode ser visto como transcendente no caso de significar a exis tência de uma ordem especial de realidades que não se encon tram no nível dos sentidos é o caso de uma posição metafísica ou pode ser concebido como imanente no caso de significar a 247 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE existência de uma causa do mundo real fechada no próprio uni verso não regulada por um princípio superior distinto e exterior São questões debatidas atualmente dentro de visões mui tas vezes paradigmaticamente diferentes e que compõem o qua dro de reflexões contemporâneas sobre o tema da ética ques tões que se situam além dos limites estritos da presente obra Sugerimos que você procure responder discutir e comen tar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade ou seja o emergir de uma desconfiança nos po deres da razão especulativa para o tratamento das questões éti cas da busca por um novo recurso de conhecimento do recurso à arte e à intuição como fontes de conhecimento da realidade 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Qual seria o fundamento do agir ético para Schopenhauer a A justiça b A razão prática c A amizade d A compaixão e O respeito 2 Schopenhauer identifica uma incapacidade de formar santos ou artistas por meio de educação teórica sobre a arte ou sobre a Ética Nesse sentido ele afirma 53 Na minha opinião contudo toda a filosofia é sempre teórica já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa e sempre inquirir em vez de prescrever re gras Tornarse prática conduzir a ação moldar o caráter eis aí 248 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandonálas Pois aqui quando se trata do valor ou da ausência de valor da existência da salvação ou da perdi ção os mortos não decidem e sim a essência mais íntima do homem seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu como diz Platão em vez de ser escolhido seu caráter inteligí vel como Kant se expressa A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio sim para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento Por conseguinte seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas ar tistas plásticos e músicos SCHOPENHAUER 2005 p 354 Dessa forma de compreender o ético podemos afirmar que a Schopenhauer identifica Ética e estética em seu pensamento impon do limites à razão enquanto pretensão de impor regras racionais ao comportamento humano assim como de impor regras à produção do gênio b No pensamento de Schopenhauer não há uma ética propriamente dita visto que não apresenta valores racionais que possam nortear o comportamento humano c A filosofia deve moldar as regras de conduta assim como também deve preparar a produção artística sendo tanto santos quanto gênios devedores da especulação filosófica d Schopenhauer propõe uma ética fundada em valores aceitos pela so ciedade e empreende uma defesa dos valores iluministas 3 Segundo Nietzsche faltou aos filósofos buscar uma genealogia para os conceitos de bom e mau Na sua gênese segundo o filósofo qual era o significado desses conceitos Como eles trocaram de papel O que passa ram a significar 4 Podemos constatar o esforço intelectual de Nietzsche para o desenvolvi mento de um saber da singularidade e da diferença Isso se pode notar em várias passagens dentre as quais achamos relevante retomar uma já citada Quando o centro de gravidade da vida é colocado não nela mesma mas no além no nada então se retirou da vida o seu centro de gravidade A grande mentira da imortalidade 249 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pessoal destrói toda razão todo instinto natural tudo que há nos instintos que seja benéfico vivificante que assegure o futuro agora é causa de desconfiança Viver de modo que a vida não tenha sentido agora esse é o sentido da vida Para que o espírito público Para que se orgulhar pela origem e antepassados Para que cooperar confiar preocuparse com o bemestar geral e servir a ele outras tantas tentações outros tantos desvios do bom caminho somente uma coi sa é necessária Que todo homem por possuir uma alma imortal tenha tanto valor quanto qualquer outro homem que na totalidade dos seres a salvação de todo indivíduo possa reivindicar uma importância eterna que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor não há como ex pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum até a insolência E contudo o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá vel bajulação de vaidade pessoal foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados os insatisfeitos os vencidos todo o refugo e vômito da humanidade a salvação da alma em outras palavras o mundo gira ao meu redor a venenosa doutrina dos direitos iguais para todos foi propagada como um princípio cristão a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho mens ou seja contra o primeiro prérequisito de toda evolu ção de todo desenvolvimento da civilização do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós contra tudo que é nobre alegre magnânimo sobre a terra contra nossa felicidade na Terra conceder a imortalidade a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política Atualmente nin guém mais possui coragem para os privilégios para o direito de dominar para os sentimentos de veneração por si e seus iguais para o pathos da distância Nossa política está debilitada por essa falta de coragem Os sentimentos aristocráticos fo ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade 250 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE das almas e se a crença nos privilégios da maioria faz e con tinuará a fazer revoluções é o cristianismo não duvidemos disso são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime NIETzSCHE 1989 LXIII A partir dessa passagem podemos dizer a Nietzsche coloca em questão a homogeneização das condutas huma nas pretendidas pelos dogmas religiosos e propõe uma Ética que ad mita as singularidades não como exceção à regra mas como a própria regra da vida b Nietzsche critica qualquer ideia de salvação que não nos encaminhe para um alémmundo c Nietzsche retoma uma posição aristotélica em relação aos valores tra dicionais propondo uma Ética que não só nos encaminhe para uma igualdade mas que aceita um meio termo em relação às atitudes de senhores e escravos para que estes convivam em paz d Nenhuma das alternativas anteriores está correta 5 Segundo os conteúdos aqui tratados porque podemos dizer que tanto para Nietzsche como para Schopenhauer a razão teórica não deve se tor nar prática E por que podemos dizer que no pensamento desses filó sofos a questão moral começa a perder força e a questão ética se impõe com mais força do que nos pensadores anteriores Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 d 2 a 3 Bom era o conceito que designava os grandes homens as suas ações Es ses homens seriam os nobres capazes de guerrear e conquistar Homens capazes de aumento de força e poder Tais ações de homens nobres eram as ações boas e justas e não careciam de justificações Más seriam as ações dos fracos os que se deixam escravizar e dominar A casta sacerdo tal também pertencia aos nobres mas não tinham a força para guerrear e 251 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE conquistar Então por um exercício de retórica e justificação poderíamos dizer que fizeram valer uma nova visão sobre as ações virtuosas colocan doas a seu favor A partir de então sua condição foi aceita como a atitude correta digna de respeito e admiração que conduz ao céu Então a impo tência dos sacerdotes assim como a dos que se deixam dominar passou a significar as atitudes verdadeiramente boas e justas 4 a 5 Em Schopenhauer e Nietzsche as pretensões iluministas de se formar uma sociedade esclarecida pela razão ou dialeticamente como o próprio Nietzsche se refere está fadada ao fracasso pois se trata sempre de refor mular o que já se deve crer de antemão ou seja que a razão ou verda de racional é a única capaz de compreender a realidade Pelo descrédito desses filósofos no tocante ao alcance da razão abrese caminho para novas abordagens sobre a realidade A intuição a arte e a compreensão passam a figurar entre as possibilidades de se alcançar novas formas de pensamento Com isso a moral desenvolvida dialeticamente e historica mente acompanhada e entrelaçada ao próprio desenvolvimento da razão perde força Assim a Ética o conhecimento do singular do caráter apare ce no horizonte desses filósofos com muito mais força e podemos arriscar a pensar que isso se deve de fato à mudança que estes operam no campo epistêmico sendo algo decisivo para a construção do pensamento de am bos os filósofos guardadas as divergências entre eles 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos em Ética II que quando buscamos entender a ação ou comportamento éticos propriamente ditos defrontamonos com um saber que tem por objeto a capacidade humana de transcendência que nos leva além de nós mesmos de nossos hábitos costumes e interesses pessoais mergulhandonos no caráter ou na singularidade de uma situação de um comporta mento de uma ação Assim dentro dessa visão aqui apresentada podemos dizer que o ético não depende do moral embora o moral 252 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ou a moralidade também se deva a uma capacidade de trans cendência diríamos que o moral decorre daquela capacidade humana de transcendendo o individual estabelecer regras gerais de ação dentro de contextos específicos tais como os de uma época civilização cultura um grupo profissional por exem plo Nesse sentido consideramos inadequada a designação de código de ética profissional no nosso entender tratase de uma moralidade estabelecida por um determinado grupo profissional A diferenciação básica entre essas duas capacidades de transcendência se daria a nosso ver no fato de a moral diferen temente da Ética consistir em um transcender o individual em busca de regras gerais e por isso por se realizar à luz do indi vidual e do universal geral frequentemente o moral entra em conflito com o ético uma vez que este último como já foi dito trabalha no nível da singularidade e individualidade e singularidade são essencialmente diferentes É assim que exemplificando diante dos valores culturais moral da civilização islâ mica com relação às mulheres nos sentimos enquanto seres éticos indignados temos enormes dificuldades em aceitar os valores a moral de grupos neonazistas da KluKluxKlan da Má fia etc revoltamonos diante de costumes culturais como o do infanticídio entre os índios No decorrer deste nosso estudo tivemos a oportunidade de encontrar ao estudarmos as obras de alguns dos filósofos mais representativos questões relativas a essas duas trans cendências com predominância da questão da moral uma 253 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE vez que como assinalamos na introdução a esta obra o período analisado do Renascimento ao chamado pensamento moder no consiste essencialmente no desenvolvimento de uma razão teóricoespeculativa ou seja geral e abstrata que é a base da moralidade Ao nos depararmos no século 19 com os pensamentos de Schopenhauer e Nietzsche vemos surgir com maior clareza a distinção entre o ético e o moral com predominância da preocu pação com o ético propriamente dito É o que vamos ver acon tecer no pensamento contemporâneo chamado pósmoderno com inúmeros e diversos posicionamentos a respeito da Ética Não constituindo a filosofia contemporânea matéria da presente obra damos aqui por encerrado esse nosso estudo na esperança de ter contribuído até certo ponto para uma reflexão sobre a Ética e a moral por meio de um histórico do que consi deramos um lento emergir de suas diferenças 9 ereFerÊncia Barrenechea M a nietzsche e o discurso filosófico uma linguagem pessoal Cadernos Nietzsche São Paulo n 28 2011 Disponível em http wwwcadernosnietzscheunifespbrhomeitem161nietzscheeodiscurso filosC3B3ficoumaE2809Clinguagempessoal Acesso em 4 set 2015 OLIVEIRA J A grande ética de Nietzsche Revista Índice revista eletrônica de filosofia v 3 n 1 2011a Disponível em httpwwwrevistaindicecombr Acesso em 8 mar 2012 WIKIPEDIA Deus está morto Disponível em httpsptwikipediaorgwikiDeus EstC3A1Morto Acesso em 8 mar 2012 Eterno retorno Disponível em httpsptwikipediaorgwikiEterno retorno Acesso em 9 set 2015 254 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE zAMORA A A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche Disponível em http revistapandorabrasilcomrevistapandoranietzschenocaohtm Acesso em 3 set 2015 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed Trad Ivone Castilho Benedetti São Paulo Martins Fontes 2007 LALANDE A Vocabulário técnico e crítico da Filosofia 3 ed São Paulo Martins Fontes 1999 NIETzSCHE F W Anticristo anatema sobre o cristianismo Lisboa Edições 70 1989 Textos Filosóficos La généalogie de la morale Paris Gallimard 1971 La généalogie de la morale Paris Gallimard 1968 Coll Idées Le crépuscule des idoles Paris Mércure de France 1952a Le problème de Sócrate Paris Mércure de France 1952b Le Gai Savoir Paris Gallimard 1950 OLIVEIRA J Para uma Ética da amizade em Friedrich Nietzsche Rio de Janeiro 7letras 2011b ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 SCHOPENHAUER A O mundo como vontade e como representação In A arte de viver e a sabedoria Textos escolhidos Paris PUF 1956 O mundo como vontade e como representação Trad Jair Barboza São Paulo Unesp 2005 Parerga e paralipomena In CIVITA V Os pensadores Schopenhauer e Kierkgaard São Paulo Abril Cultural 1974 v 31 Sobre o fundamento da moral São Paulo Martins Fontes 1995 Dores do mundo o amor a morte a arte moral a religião a política o homem e a sociedade Rio de Janeiro Edições Ediouro sd Universidade de Bolso zIMMER Filosofia da Índia São Paulo Palas Athena 1991
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Fazemos parte do Claretiano Rede de Educação Ética ii Telma Apparecida Donzelli possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Santa Úrsula da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC mestrado Diploma de Estudos Superiores em Filosofia pela Faculté des Lettres et Sciences Humaines da Université de Paris e doutorado em Filosofia das Ciências Humanas também por essa universidade Atualmente é aposentada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ tem experiência na área de Filosofia Contemporânea atuando principalmente com Filosofia Metafísica Razão Mítica e Ética A professora Telma Apparecida Donzelli agradece ao exaluno Luis Henrique de Souza licenciado em Filosofia 2010 e especialista em Filosofia e Ensino de Filosofia 2011 pelo apoio na seleção de textos nas traduções das obras de Spinoza Hume Kant e Schopenhauer e pela elaboração das Questões Autoavaliativas desta obra Claretiano Centro Universitário Rua Dom Bosco 466 Bairro Castelo Batatais SP CEP 14300000 ceadclaretianoedubr Fone 16 36601777 Fax 16 36601780 0800 941 0006 wwwclaretianobtcombr Telma Apparecida Donzelli Batatais Claretiano 2016 Ética ii Ação Educacional Claretiana 2013 Batatais SP Todos os direitos reservados É proibida a reprodução a transmissão total ou parcial por qualquer forma eou qualquer meio eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia gravação e distribuição na web ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do autor e da Ação Educacional Claretiana CORPO TÉCNICO EDITORIAL DO MATERIAL DIDÁTICO MEDIACIONAL Coordenador de Material Didático Mediacional J Alves Preparação Aline de Fátima Guedes Camila Maria Nardi Matos Carolina de Andrade Baviera Cátia Aparecida Ribeiro Dandara Louise Vieira Matavelli Elaine Aparecida de Lima Moraes Josiane Marchiori Martins Lidiane Maria Magalini Luciana A Mani Adami Luciana dos Santos Sançana de Melo Patrícia Alves Veronez Montera Raquel Baptista Meneses Frata Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Simone Rodrigues de Oliveira Revisão Cecília Beatriz Alves Teixeira Eduardo Henrique Marinheiro Felipe Aleixo Filipi Andrade de Deus Silveira Juliana Biggi Paulo Roberto F M Sposati Ortiz Rafael Antonio Morotti Rodrigo Ferreira Daverni Sônia Galindo Melo Talita Cristina Bartolomeu Vanessa Vergani Machado Projeto gráfico diagramação e capa Bruno do Carmo Bulgarelli Eduardo de Oliveira Azevedo Joice Cristina Micai Lúcia Maria de Sousa Ferrão Luis Antônio Guimarães Toloi Raphael Fantacini de Oliveira Tamires Botta Murakami Videoaula Fernanda Ferreira Alves José Lucas Viccari de Oliveira Marilene Baviera Renan de Omote Cardoso Bibliotecária Ana Carolina Guimarães CRB7 6411 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil 170 D742e Donzelli Telma Apparecida Ética II Telma Apparecida Donzelli Batatais SP Claretiano 2016 254 p ISBN 9788583774808 1 Ética 2 Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno 3 A ética no seu contexto histórico e epistêmico 4 Ética renascença racionalismo criticismo empirismo e a abertura para um pensamento contemporâneo I Ética II CDD 170 CDD 658151 INFORMAÇÕES GERAIS Cursos Graduação Título Ética II Versão fev2016 Formato 15x21 cm Páginas 254 páginas SUMÁRiO CADERNO DE REFERêNCIA DE CONTEÚDO 1 INTRODUÇÃO 7 2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO 8 3 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 41 Unidade 1 A CONCEPÇÃO ÉTICA DO RENASCIMENTO 1 OBJETIVOS 43 2 CONTEÚDOS 43 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 43 4 INTRODUÇÃO 45 5 Giovanni Pico della Mirandola 14631494 47 6 Machiavel 14691527 52 7 PhilliPUs TheoPhrasTUs BoMBasTUs von hohenheiM Paracelso 14931591 62 8 Michel de MonTaiGne 15331592 64 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 72 10 CONSIDERAÇÕES 73 11 ereFerÊncias 74 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 74 Unidade 2 ÉTICA MODERNA RACIONALISMO E EMPIRISMO 1 OBJETIVOS 77 2 CONTEÚDOS 77 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 78 4 INTRODUÇÃO 79 5 renÉ descarTes 15961650 e UMa Moral de Provisão 81 6 BarUch sPinoZa 16321677 103 7 ThoMas hoBBes 15881679 124 8 John locke 16321704 130 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 136 10 CONSIDERAÇÕES 138 11 ereFerÊncia 139 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 139 Unidade 3 ÉTICA MODERNA HUME E KANT 1 OBJETIVOS 141 2 CONTEÚDOS 141 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 141 4 INTRODUÇÃO 142 5 david hUMe 17111776 146 6 iMManUel kanT 17241804 159 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 183 8 CONSIDERAÇÕES 185 9 ereFerÊncias 186 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 186 Unidade 4 PriMórdios da PósModernidade SCHOPENHAUER E NIETzSCHE 1 OBJETIVO 187 2 CONTEÚDOS 187 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE 187 4 INTRODUÇÃO 190 5 arThUr schoPenhaUer 17881860 191 6 WilhelM Friedrich nieTZsche 18441900 220 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS 247 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 251 9 ereFerÊncia 253 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRáFICAS 254 7 cadeRnO de RefeRência de cOnteúdO Conteúdo Estudo da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética no seu contexto histórico e epistêmico Renascença e a perspectiva sob diferentes razões Racionalismo de René Descartes Baruch Spinoza criticismo kantiano Empirismo Thomas Hobbes John Locke David Hume Arthur Schopenhauer e Friedrich W Nietszche e a abertura para um pensamento contemporâneo sobre a Ética 1 INTRODUÇÃO Nesta obra intitulada Ética II teremos por objetivo o estu do da evolução do pensamento filosófico moderno sobre a Ética e a moral em seu contexto histórico e epistêmico Iremos da Re nascença séculos 15 e 16 até fins do século 19 passando pelo pensamento do racionalismo e empirismo dos séculos 17 e 18 e os primórdios de uma pósmodernidade no século 19 Na Renascença séculos 15 e 16 mais precisamente trabalharemos as posições e pensamentos sobre a questão ética e a questão moral a partir das perspectivas dos seguintes filósofos Giovanni Pico Della Mirandola Nicolau Machiavel Phillipus Theophrastus Bombastus Von Hohenheim e Michel de Montaigne No século 17 veremos as concepções de moral e Ética dos racionalistas René Descartes e Baruch Spinoza e dos empiristas Thomas Hobbes e John Locke 8 Ética ii caderno de referência de conteúdo No século 18 analisaremos as obras de David Hume e Immanuel Kant e finalmente no século 19 as de Arthur Schopenhauer e Friedrich Nietzsche Haverá ainda uma conclusão que versará sobre as impli cações e consequências das posições analisadas no universo do pensamento contemporâneo do século 20 até nossos dias Bons estudos 2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO Abordagem Geral Introdução Neste tópico apresentaremos uma visão geral do que será estudado nesta obra Aqui você entrará em contato com os as suntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada unidade Desse modo essa Abordagem Geral visa fornecerlhe o conhecimento básico necessário a partir do qual você possa construir um referencial teórico com base sólida filosófica e cultural Vamos começar nossa aventura pela apresentação das ideias e dos princípios básicos que fundamentam esta obra Quando falamos em Ética encontramos concepções as mais variadas e diferentes E não poucas vezes o ético chega mesmo a ser identificado com o moral O ético porém não é o moral Por que então essa dificuldade em distinguilos 9 Ética ii caderno de referência de conteúdo Muitos autores têmse voltado para a origem etimológica da palavra grega ethos outros como o professor ernst Tugendhat em sua obra Lições sobre ética 2000 p 41 afirma Portanto não podemos tirar nenhuma conclusão para os termos moral e ética a partir de sua origem Estamos porém convencidos de que o estudo etimológico da palavra grega ethos em suas duas formas ethos com e longo ήθος e ethos com e breve έθος tem muito a nos esclarecer sobre o que funda propriamente o ético e o moral e os distingue essencialmente Em grego essas duas formas da palavra ethos tinham sen tidos muito diferentes Ethos com e longo significava maneira de ser interior modo de ser ou morada habitual caráter diz respeito à interioridade do ato humano àquilo que torna a ação propriamente humana ethos com e breve significava maneira exterior de proceder costumes decorrentes do sen tido comunitário da ação e dos valores culturais consta que o termo grego éthica foi identificado em seu sentido de costume à palavra mores do latim que também significa costume pelo grande orador romano cícero Talvez seja esta uma das razões da aproximação e mesmo por vezes identificação do ético com o moral Considerando as definições das duas formas do ethos ve mos que se distinguem profundamente O primeiro sentido de ethos se refere ao que é único próprio e singular o segundo sen tido diz respeito ao comportamento que se torna generalizado como hábito e que é o que entendemos por costume fundado em valores e como tal passível de regras e normas Além disso vale dizer que 10 Ética ii caderno de referência de conteúdo José Ferrater Mora 1990 afirma que o termo moral tem usualmente uma significação mais ampla que o vo cábulo ético a moral é o que se submete a um valor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira 2010 define a moral como um conjunto de regras e normas de condu ta consideradas válidas seja em um determinado tem po e lugar seja durante certos períodos de tempo O valor é uma determinação cultural Por valores temos entendido diferentes coisas ao longo dos tempos o que faz com que a moral de um povo ou de uma civilização não só possa va riar com o tempo mas possa ainda diferenciarse da moral de outro povo ou civilização Sobre valores diz Peter Kemp professor de Filosofia na Univer sidade de Copenhague nascido em 1937 em seu livro Lirremplaça ble une éthique de la technologie 1997 p 52 tradução nossa o herói grego era temperamental e corajoso o santo cristão da Idade Média humilde e devotado o homem do Renascimen to liberal e repleto da alegria de viver o burguês econômico e consciente de sua classe o pioneiro da indústria empreende dor e infatigável o socialista moderno cultiva a solidariedade e o técnico moderno eficiência Há uma relatividade histórica no que diz respeito a bens e valores Continuando diz Peter Kemp na mesma obra A Idade Média Cristã rejeitou a noção aristotélica de que só se pode viver bem quando se é cercado de amigos Substituiu pela ideia segundo a qual a Igreja é que faz da comunidade de fiéis um bem que permite viver na verdade Os cristãos rejeita ram a ideia de Aristóteles de que a fortuna e o nascimento são necessários à felicidade No lugar de tais valores defendem a fé como a coisa mais importante O cristianismo suscitou igualmente a ideia de que a liberdade constitui um bem 1997 p 52 tradução nossa 11 Ética ii caderno de referência de conteúdo Mas frequentemente quando se fala hoje em valores pensase menos em uma qualidade própria do ser humano e mais na maneira pela qual ele desejaria verdadeiramente viver sua vida E como vivemos em uma época em que o equilíbrio ecológico é condição de sobrevivência de nosso planeta não se fala somente em valores que condicionam nossa existência pes soal e social mas também em valores que possam nos garantir uma natureza viva O filósofo americano Ian G Barbour distinguiu estritamen te três níveis de valores diferentes o nível material o nível social e o nível ambiental Cita como valores materiais a sobrevivência a saúde o bemestar material e o trabalho Os valores sociais são a justa repartição dos bens a parti cipação do indivíduo nas decisões concernentes à sua própria existência a comunidade fundada no reconhecimento recí proco e a possibilidade para cada um de crescer em um sentido pessoal Os valores ambientais são a utilização de recursos renováveis a conservação de um ecossistema equilibrado e a proteção da natureza Certo número desses valores podem se opor entre eles por exemplo os valores do terceiro grupo podem se apresentar como dificilmente compatíveis com a exigência de crescimento pessoal dos indivíduos Certos valores podem mesmo depen dendo das situações ser pura e simplesmente excluídos por ou tros BARBOUR 1971 p 5254 tradução nossa Já para o pensador francês Jean Baudrillard 19292007 na realidade os valores hoje não possuem referencial definido Em sua obra A transparência do mal ensaios sobre fenômenos extremos diz o seguinte 12 Ética ii caderno de referência de conteúdo Após o estado natural advém o estado de mercado e em segui da o estado estrutural e finalmente o estado fractal da noção de valor Ao estado natural correspondia um referencial natural a noção de valor tem como referência um uso natural do mun do Ao estado de mercado correspondia um equivalente geral a noção de valor se desenvolve segundo uma lógica da mer cadoria No estado estrutural a noção de valor correspondia a um código tendo como referência um conjunto de modelos No estado fractal ou estado viral ou ainda estado de irradiação não há mais nenhum referencial a noção de valor se irradia em todas as direções em todos os interstícios sem relação com o que quer que seja por pura contiguidade Nesse estado fractal não há mais equivalência nem natural nem geral não há mais propriamente falando lei do valor há apenas uma espécie de epidemia do valor uma metástase geral do valor uma prolife ração e uma dispersão aleatória Rigorosamente não se deveria falar mais de valor uma vez que tal multiplicação e reação em cadeia torna impossível toda avaliação O que se dá é mais uma vez semelhante ao que se dá em microfísica impossível avaliar em termos de belo ou de feio de verdadeiro ou de falso de bem ou de mal da mesma maneira que é impossível calcular a velocidade e posição de uma partícula O Bem não se encontra mais situado de maneira vertical com relação ao Mal nada se posiciona mais à maneira de abscissas e ordenadas Cada par tícula segue seu próprio movimento cada valor ou fragmento de valor brilha por um instante no céu da simulação depois de saparece no vazio sob a forma de uma linha quebrada que só excepcionalmente encontra as dos outros É o próprio esquema do fractal e é o esquema atual de nossa cultura BAUDRILLARD 1990 p 1314 tradução nossa Observação fractal é um neologismo que significa irregular quebrado do latim fractus e que foi introduzido por Benoît Mandelbrot 19242010 matemático francês de origem polonesa 13 Ética ii caderno de referência de conteúdo O ético diferentemente do moral não advém desse sentido de valorização em comum mas diz respeito à dimensão pessoal do ato humano àquilo que gera uma ação genuinamente humana Para melhor expressar o que estamos querendo dizer busca remos recursos na distinção feita pelo filósofo francês Henri Bergson 18591941 em sua obra As duas fontes da moral e da religião entre o que chamou de moral fechada e moral aberta aplicandoas a um fato corriqueiro a fim de ficar claro que o ético não se confunde com o moral e isso vale para acontecimentos do nosso dia a dia O fato aconteceu no Rio de Janeiro em setembro de 1992 quando se encontrava internada em estado grave em uma clíni ca no bairro de Botafogo a mãe do então presidente da Repúbli ca O Jornal assim descrevia o acontecimento Excerto do Jornal Logo após o esquema montado pela polícia ser desfeito um grupo de 50 ma nifestantes começou a protestar em frente ao hospital Já sem o aparato poli cial estudantes de uma escola e outros manifestantes pediam a renúncia do Presidente Houve apenas um princípio de tumulto quando uma enfermeira aposentada do INAMPS surgiu e dirigindose aos manifestantes disse que era contra o protesto em frente ao hospital Muitos não gostaram da crítica e partiram para cima da enfermeira começando um bateboca A enfermeira tentava explicar e justificar sua atitude eu só estou dizendo que não é certo protestar em frente a um hospital dizia ela onde há pessoas doentes que nada têm a ver com a crise econômica motivo da manifestação e uma mulher que está quase à morte Respondiam os manifestantes por que a senhora não vai comprar remédios na farmácia para saber quanto custa Vá ao hospital do INAMPS para saber se não há gente que morre por falta de atendimento ou de remédio Insistia a enfermeira vocês não estão me entendendo Só estou querendo dizer que a crise econômica não tem nada a ver com estas pessoas que estão doentes Mas o bateboca só terminou quando alguns policiais militares conseguiram acalmar os manifestantes 14 Ética ii caderno de referência de conteúdo Temos aqui podemos dizer dois tipos de comportamen to um que chamaríamos de moral e outro que entenderíamos como sendo ético Bergson 1978 diz A sociedade é semelhante a um organismo cujas células unidas por invisíveis ligações subordinamse umas às outras visando ao bem da totalidade nem que para isso tenha que sacrificar a parte Em outras palavras embora cada um de nós nos sintamos livres para seguir o nosso pensamento gosto ou desejo temos obri gações para com a sociedade de cultivar o nosso eu social É o que a sociedade espera de nós A obediência a tal dever social pode significar uma resistência àquilo que desejamos fazer no entanto é nossa obrigação Não é exatamente essa a situação daqueles manifestantes diante da clínica Ali temos inclinação para o bem da totalidade bem este que leva ao sacrifício da parte ou seja a senhora em coma e os demais doentes podem ser sacrificados pois a gran de totalidade da população não pode sequer comprar remédios e não é atendida convenientemente nos hospitais Sentimonos socialmente na obrigação de protestar embora tenhamos que sacrificar a parte a senhora em estado grave e os demais doen tes Gostaríamos de considerar a situação daquela senhora e dos outros doentes afinal poderiam ser um dos nossos nossa mãe nossos parentes porém somos impelidos por uma obri gação social a nos manifestar em favor da maioria mesmo que isso prejudique aquelas pessoas Pensamos que essa atitude é essencialmente racional no entanto diz Bergson tratase de um hábito e de um hábito po deroso o hábito de proteger a sociedade Mais precisamente nossos deveres sociais visam à união social à coesão social Não 15 Ética ii caderno de referência de conteúdo se trata na verdade do bem da sociedade diz Bergson mas da sobrevivência da sociedade E observa que em tempo de guer ra o assassinato a pilhagem o roubo a mentira tornamse não só lícitos permitidos mas até meritórios concluindo que por mais que as sociedades progridam complicandose e espiritua lizandose esse seu comando permanecerá de maneira não só regular mas intensa Podemos pois dizer que à luz das considerações aqui fei tas orientandonos pelo pensamento de Bergson o comporta mento dos manifestantes é um comportamento moral porque se trata de defender o direito de todos e isto é um comando da sociedade o moral é pois fechado na expressão de Bergson Fechado porque visa a uma sociedade fechada em si mesma sacrifica a parte pelo todo é uma exigência do hábito e não da razão portanto não se abre ao diálogo o bateboca só terminou com a in tervenção dos policiais é fundado na impessoalidade do princípio da regra e da norma é preciso protestar porque este é o nosso dever com a sociedade Analisemos agora o comportamento da enfermeira Enquanto os manifestantes se encontram absorvidos em uma mesma tarefa voltados para si enquanto sociedade em penhados na conservação de si mesmos e dos outros membros na condição de membros dessa mesma sociedade a enfermeira ocupase do sentido mesmo da situação vivida ocupase do que é singular característico e único a esta ajustandose a ela Uma atitude que não se conforma ao que é estabelecido pe 16 Ética ii caderno de referência de conteúdo los interesses gerais o social o cultural mas atende à situação no seu caráter mais próprio Cremos poder dizer que a atitude da enfermeira enqua drase no que Bergson denominou de moral aberta aberta porque concretiza o que dela diz o filósofo 1 não consiste em um comando da sociedade mas em um apelo 2 não implica como no caso da atitude dos manifestan tes escolha e exclusão escolha de todos e exclusão de alguns 3 não depende de nenhuma meta não busca nada não quer nada a não ser expressar o que é adequado e justo àquela situação 4 não depende de nenhuma ideia ou princípio geral di ferentemente dos manifestantes que se encontram sensibilizados por uma ideia ou imagem representada a do bem de todos quer apenas atender ao em si mesmo da situação Vemos assim que estamos diante de dois comporta mentos perfeitamente compreendidos como essencialmente diferentes Por que então repetimos tanta dificuldade em distinguir o ético do moral A resposta a nosso ver está na natureza do tipo de saber que caracteriza nossa civilização ocidental O sentido de ethos costume encontrou um solo estrutu ral de saber favorável com o surgimento de um tipo de saber denominado conhecimento saber que se caracteriza por con 17 Ética ii caderno de referência de conteúdo ceber todo universal como sendo o geral constituindose es sencialmente como uma busca de leis e regras gerais Tal saber estruturase à luz de noções derivadas da expe riência cultural e de uma postura universalista sustentada pelo esforço e desenvolvimento de um universalabstrato caracterís tica do pensamento dito moderno Quanto ao ethos caráter cujo fundamento é a dimensão singular de cada indivíduo de cada ação de cada situação de cada comportamento de cada época dimensão essa que os caracteriza e os torna únicos mantevese quase que inteira mente ignorado pois um dos processos pelos quais se constrói o universalgeral base do conhecimento é o da abstração de toda singularidade aristóteles em outras palavras o singular não é objeto de conhecimento Vimos no entanto que a busca dessa singularidade se en contra presente no que diz respeito à Ética nos pensamentos de Sócrates Platão Aristóteles expressandose principalmente na ideia fundamental da justa medida dar o devido a algo ou alguém O desenvolvimento de um saber outro que não o do co nhecimento científico é uma tarefa de grande alcance filosófico pois requer necessariamente uma posição crítica com relação ao paradigma filosófico fundador do próprio conhecimento requer um tomar distância do modo de pensar que estruturou o nosso mundo moderno Somente em fins do século 19 diante dos limites da ciên cia e da constatação de sua incapacidade não só de levar a hu manidade a uma realização plena e principalmente diante do apoio sob a forma da tecnologia que essa mesma ciência pro 18 Ética ii caderno de referência de conteúdo porcionou aos trágicos acontecimentos da Primeira Guerra Mun dial 19141918 à preparação do advento da Segunda Guerra Mundial 19391945 vamos encontrar filosofias como as do alemão Edmund Husserl 18591939 e do francês Henri Bergson 18591941 ambos judeus que buscam estruturar um novo sa ber baseado não mais na razão teórica abstrata e geral mas na intuição e na compreensão Um novo paradigma de saber surge o paradigma da compreensão compreender não é conhecer conhecer é estabelecer causas e buscar resultados compreender é captar razões senti dos direções modos de ver modos de ser singularidades Sobre a ciência diz Husserl 1976 p 10 tradução nossa Nessa nossa vida infeliz ouvimos em todo lugar que essa ciência nada tem a nos dizer As questões que ela exclui por princípio são precisamente as questões mais importantes desta nossa época infeliz para uma humanidade abandonada aos transtor nos do destino são as questões que dizem respeito ao sentido ou à ausência de sentido de toda esta existência humana Para Husserl 1976 fazse urgente e necessária uma re formulação da ideia de ciência Propõe superar o universalismo abstrato do saber científico apresentando um novo modelo de ciência o qual denominou de método fenomenológico cuja meta é buscar o fundamento originário do sentido das coisas dos comportamentos e situações não por meio de conceitos e teorias mas daquilo que nelas se mostra em pessoa os fenô menos do grego phainomenon o que se mostra a razão teó ricotécnica e uma metafísica subordinada ao naturalismo levam a humanidade em direção a um vazio ético 19 Ética ii caderno de referência de conteúdo Por sua vez na França o filósofo Henri Bergson afirma que a ciência ocultaria o vivido pois fruto da inteligência com sua abordagem matemática vê o mundo à maneira de um mecanis mo que dá a ilusão de movimento a partir de instantâneos como acontece em uma fita cinematográfica A inteligência base da ciência pensa o tempo à maneira do espaço tempo de relógio e cai assim em um determinismo universal A intuição de acordo com Bergson diferentemente da in teligência propicia uma abordagem qualitativa do mundo uma vez que graças a ela temos acesso à compreensão da vida ao sentimento de liberdade e à dimensão das possibilidades no que diz respeito tanto às ações quanto aos comportamentos É den tro desse contexto que o filósofo francês distingue as duas for mas de moral a moral fechada e a moral aberta de que falamos anteriormente a moral aberta como foi visto define o ético na medida em que corresponde à busca do caráter da situação conside rada agindo na justa medida visando dar o devido a algo ou alguém Será pois esta a orientação básica deste nosso estudo queremos acompanhar por meio das obras de alguns filósofos e pensadores representativos da Antiguidade grega até fins da Idade Média e do século 15 até fins do século 19 o desenvol vimento do pensamento ocidental em direção a um saberco nhecimento cada vez mais dominante e a um fortalecimento da questão moral em detrimento da questão propriamente ética que no entanto permanece timidamente como pano de fundo suscitando às vezes reações conflitantes 20 Ética ii caderno de referência de conteúdo Glossário de Conceitos O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rá pida e precisa das definições conceituais possibilitandolhe um bom domínio dos termos técnicocientíficos utilizados na área de conhecimento dos temas tratados em Ética II Veja a seguir a definição dos principais conceitos 1 Ágape Transliteração da palavra grega comumente traduzida em português por aMor Ágape como uma preocupação ética reflete seu cognato hebraico hesed no sentido de que representa o valor de auto negação própria da benevolência como modo como se reflete no amor de deus pela criação GrenZ sMiTh 2005 p 9 É distinto de Eros que representa o amor do desejo de união e de posse Deve ser compreendi do como o amor que abre para diferente do amor que atrai para É portanto doação caridade 2 Angústia ética Um sentimento de desespero origina do pela necessidade de tomar decisões éticas ou mo rais A angustia ética é um atributo necessário à for mação do CARáTER moral na SOCEIDADE ética Søren Kierkegaard afirmava que a angustia era uma das marcas da verdadeira liberdade de escolha GrenZ SMITH 2005 p 11 Heidegger que foi fortemente in fluenciado pelo existêncialismo de Kierkegaard vê na angustia uma das características essênciais do Seraí É porque o homem é finito e se angustia com a finitude das possibilidades de ser que ele se abre para a possi bilidade mais fundamental de superar a inautênticida de e fazer uma escolha autêntica Com isso ele pode cuidar de si cuidar do outro e cuidar do mundo 21 Ética ii caderno de referência de conteúdo 3 Autonomia literalmente lei de si mesmo ou au togoverno e portanto o exercício independente da VONTADE individual ou da comunidade levando a rei vindicações morais consideradas como sendo determi nadas pelo indivíduo GrenZ sMiTh 2005 p 45 a autonomia moral é a crença de que a orientação mo ral é interior vindo à luz a partir da ação de um prin cípio que habita o agente moral individual GrenZ SMITH 2005 p 15 4 Bom bem bondade em sua forma de adjetivo e como um termo ético bom significa basicamente algo de excelência moral A bondade por sua vez sig nifica o estado ou a qualidade de ser bom A natureza dessa excelência moral contudo foi uma das questões centrais exploradas pelos eticistas em toda a história Enquanto o centro do debate na tradição filosófica gre ga envolveu o problema do que constitui um homem bom a perspectiva bíblica começa com a excelência moral de deus GrenZ sMiTh 2005 p 1920 o bom na modernidade pode se referir a uma qualidade mais mecânica de adequação a um sistema matemáti co A influência da Matemática será sentida mesmo na Ética com Spinoza 5 Justiça em geral a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a essa ordem Podese distinguir dois significados principais 1º Justiça como conformidade da conduta a uma norma 2º como efi ciência de uma norma ou de um sistema de normas entendendose eficiência de uma norma uma certa ca pacidade de possibilitar as relações entre os homens No primeiro significado esse conceito é empregado 22 Ética ii caderno de referência de conteúdo para julgar o comportamento humano ou a pessoa hu mana esta última com base em seu comportamen to No segundo significado é empregado para julgar as normas que regulam o próprio comportamento A problemática histórica dos dois conceitos ainda que freqüentemente interligada e confundida é completa mente diferente 1º Justiça é a conformidade de um comportamen to a uma norma Esta pode ser de fato a norma natural a norma divina ou a norma positiva Aristóte les diz Uma vez que o transgressor da lei é injusto en quanto é justo quem se conforma à lei é evidente que tudo aquilo que se conforma à lei é de alguma forma justo de fato as coisas estabelecidas pelo poder legis lativo conformamse à lei e dizemos que cada uma de las é justa Et nic V 1 1129 b 11 segundo Aris tóteles a Justiça é a virtude integral e perfeita integral porque compreende todas as outras perfeita porque quem a possui pode utilizála não só em relação a si mesmo mas também em relação aos outros 2º No segundo conceito a Justiça não se refere ao comportamento ou à pessoa mas à norma expressa a eficiência da norma sua capacidade de possibilitar as relações humanas Neste caso obviamente o objeto do juízo é a própria norma e desse ponto de vista as diferentes teorias da Justiça são os diferentes concei tos de fim em relação ao qual se pretende medir a efi ciência da norma como regra para o comportamento intersubjetivo Platão foi o primeiro a insistir na Justi ça como instrumento Sócrates pergunta a Trasímaco Acreditas por acaso que uma cidade um exército um 23 Ética ii caderno de referência de conteúdo grupo de bandidos ou de ladrões ou qualquer outro amontoado de pessoas que se ponha de acordo para fazer algo de injusto poderia chegar a fazer alguma coisa se os seus integrantes cometessem injustiça uns para com os outros Não de certo respondeu Trasí maco E se não cometessem injustiça não seria me lhor Seguramente A razão disso Trasímaco é que a injustiça dá origem a ódios e lutas entre os homens enquanto a Justiça produz acordo e amizade Rep 351 cd aBBaGnano 2007 p 682683 6 Liberdade esse termo tem três significados funda mentais correspondentes a três concepções que se sobrepuseram ao longo de sua história e que podem ser caracterizados da seguinte maneira 1ª como au toterminação ou como autocausalidade segundo a qual a Liberdade é ausência de condições e limites 2ª Liberdade como necessidade a autodeterminação mas atribuindoa à totalidade a que o homem perten ce Mundo Substância Estado 3ª Liberdade como possibilidade ou escolha segundo a qual a Liberdade é limitada e condicionada isto é finita Não constituem conceitos diferentes as formas que a Liberdade assu me nos vários campos como por exemplo Liberdade metafísica Liberdade moral Liberdade política Liber dade econômica etc As disputas metafísicas morais políticas econômicas etc em torno da Liberdade são dominadas pelos três conceitos em questão aos quais portanto podem ser remetidas as formas específicas de liberdade sobre as quais essas disputas versam ABBAGNANO 2007 p 699 24 Ética ii caderno de referência de conteúdo 7 Moral e Ética nesta obra a moral será tomada como o conjunto de normas e costumes que regulamentam as relações humanas de certa comunidade Nesse senti do pode haver muitas morais há uma moral aristocra ta uma moral cristã uma moral judaica etc Já no caso da Ética procurase aquilo que deve preceder toda e qualquer moral A vida é um valor ético já a pena de morte ou o aborto são decisões de uma determinada moral A moral geralmente se aplica de maneira ge neralizada a todos os indivíduos de uma sociedade A Ética tem de levar em conta a singularidade de cada ato ou dado Nesse sentido o advogado de defesa e o promotor de justiça apreciam o processo de acordo com as normas e costumes de uma sociedade Já o juiz tem de analisar o caso singular irrepetível de cada ação particular O advogado e o promotor cuidam da moral o juiz da Ética Portanto a Ética cuida do ser enquanto a moral da obrigação A moral é cultural a Ética é ontológica e pode ser metafísica A moral cuida do universal enquanto geral em relação ao particular a Ética do singular em relação ao universal Para me lhor compreender a distinção lembremos a passagem bíblica em que Jesus é convidado a decidir se Maria Madalena será ou não apedrejada Segundo a Lei e os Costumes do povo ela deveria ser condenada ao ape drejamento Os acusadores falam em nome da moral mas Jesus não a julga de acordo com a moral mas com a Ética e procura compreender a situação em si mes ma Preservando a vida como valor ele contrapõe va lores éticos a valores morais 25 Ética ii caderno de referência de conteúdo Glossário por autores Hobbes 1 Noção de direito é a liberdade de fazer o que não for impedido por obstáculos exteriores Todos têm um di reto natural a tudo o que for necessário para a conser vação de suas vidas O contrato consiste em transferir esse direito ao Soberano de acordo com o que pres creve a lei natural 2 Noção de Estado o estado é uma pessoa civil um produto do artifício humano segundo o mecanismo contratual O pacto social transforma a multidão dos homens em um corpo do Estado O Estado represen ta cada um de nós decide age por cada um de nós e devemos nos reconhecer como autores de tudo o que ele faz 3 Noção de estado de natureza a expressão estado de natureza designa a situação dos homens na ausência do estado isto é uma situação de guerra de uns con tra os outros 4 Guerra a guerra não consiste unicamente no fato de se bater Basta haver disposição para o combate reco nhecida durante um certo período sem que seja pos sível o contrário para se ter uma situação de guerra É nesse sentido que o estado de natureza pode ser cha mado de um estado de guerra 5 Liberdade é a ausência de obstáculos exteriores No estado de natureza a liberdade de cada um se confun de com seu direito natural As diversas liberdades se entrechocam e se paralisam Com o Estado os homens 26 Ética ii caderno de referência de conteúdo permanecem livres naqueles domínios sobre os quais a lei civil não se pronuncia uma vez que a lei não pode abarcar todos os aspectos da vida Domínios como o da opinião íntima o da vida familiar e o de uma grande parte da vida econômica 6 Lei a lei se opõe ao direito pelo fato de obrigar A lei da natureza é um imperativo ditado pela razão obriga o homem a buscar a paz Tal imperativo só pode ser realizado graças ao contrato É pois a lei natural que nos ordena a obedecer às leis civis 7 Marca marks marcas são símbolos que permitem ao homem e somente a ele dominar o tempo lembrando o passado e tornando possível uma verdadeira ante cipação do futuro os nomes são marcas arbitrárias por meio das quais notamos nossos pensamentos e graças às quais podemos calcular suas consequências A linguagem humana é assim a fonte e o fundamento dos artifícios políticos contrato Estado 8 Soberano é o que é supremo e não passível de ser limitado por outra coisa É o ser supremo advindo do contrato é um absoluto inviolável Descartes 1 Generosidade a verdadeira generosidade implica um conhecimento justo de si mesmo da própria liberda de da disposição em utilizar o poder de julgar o que é melhor Só será possível se saber responsável de si mesmo se o espírito se conhecer como espírito no cogito 27 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Moral de provisão é aquela especulação que nos con cede tempo suficiente para duvidar antes de encontrar a certeza quando a ação exige uma solução que não pode esperar Na ausência de princípios definitivos temos que adotar as máximas que nos permitem nos conduzir de maneira resoluta isto é sem nos deixar dominar pelos acontecimentos seguindo os costumes os mais moderados primeira máxima permanecen do constantes no que decidimos segunda máxima e sabendo encontrar alegria naquilo que depende de nós terceira máxima Spinoza 1 Adequado uma ideia adequada é uma verdadeira ideia porque é conforme o seu objeto isto é nos traz integralmente seu objeto de maneira que passamos a conhecêlo como Deus o conhece 2 Afecção ao nível psicológico a afecção é o sentimen to daquilo que favorece ou prejudica a nossa potência de ser Ao nível do corpo é o que aumenta ou diminui o seu poder de agir Quando a afecção é conhecida de maneira inadequada é uma paixão que nos submete aos acontecimentos do mundo 3 Amor o amor é uma alegria que acompanha a ideia de uma causa exterior Quando conhecido inadequa damente o amor é uma paixão pois na paixão fica mos completamente submetidos a esta causa exte rior o amor nos permite igualmente compreender o amor de Deus reconhecendo sua presença em toda 28 Ética ii caderno de referência de conteúdo causa exterior reconhecendo a presença de deus em toda alegria 4 Atributo tradicionalmente entendese por atributo aquilo pelo qual uma substância pode ser conhecida Esta definição supõe uma dimensão íntima oculta não passível de conhecimento da substância em si mesma Spinoza rompe radicalmente com esta suposição Diz ele Por atributo entendo o que o entendimento per cebe da substância como constituindo sua essência o que significa que o entendimento percebe a substân cia como ela é na realidade Se nosso conhecimento de Deus não é completo pois conhecemos apenas dois de seus atributos o Pensamento e a Extensão tal co nhecimento no entanto é perfeito não há lugar para uma qualidade oculta 5 Causa é preciso distinguir a causa imanente que pro duz seu efeito em si mesmo da causa transitiva que produz seu efeito fora de si mesmo A Proposição 18 do livro i da Ética estabelece que deus é causa imanente mas não transitiva de todas as coisas desta distinção advém outra Deus é causa da essência das coisas na eternidade e de sua existência no tempo Neste sen tido as coisas são causas físicas produzindose umas às outras Cada existência singular é desta maneira submetida a uma dupla determinação é produzida por Deus sob a condição de ser determinada por outra existência singular que por sua vez é determinada por outra e assim até o infinito Ética I Proposição 28 6 Ciência intuitiva a ciência intuitiva conhecimento do terceiro gênero provem da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus ao conhecimento 29 Ética ii caderno de referência de conteúdo adequado da essência das coisas Ética II Proposição 40 Comentário II Tratase para a alma individual de conhecer o processamento de sua essência a partir de Deus e não de se fundir com o infinito em uma espé cie de intuição inefável Este conhecimento não pode se realizar senão através das demonstrações cuja geome tria graças ao seu método genético fornece o modelo a Ética demonstrada pela ordem geométrica se situa ao nível do conhecimento do terceiro gênero 7 Essência há em Deus fora de meu pensamento uma essência eterna do meu corpo distinta de sua exis tência assim como há uma essência eterna de minha alma precedendo sua existência 8 Ideias Gerais é preciso distinguir as ideias gerais ho mem ser coisa das noções comuns a exten são o movimento o repouso o caráter univer sal das noções comuns nos permite pensar a riqueza do particular pois o que é comum a todas as coisas se encontra paralelamente na parte e no todo Ética II Proposição 37 Ao mesmo tempo o conhecimen to das noções comuns segundo gênero é adequado pois é idêntico em nós e em deus o caráter univer sal das ideias gerais não provêm senão de sua confu são o corpo humano sendo limitado não pode formar senão um certo número de imagens a cada vez se este número for ultrapassado as imagens se confundem e a alma imagina sem nenhuma distinção 9 Liberdade Spinoza distingue uma falsa ideia de li berdade que seria a ausência de necessidade de uma verdadeira ideia de liberdade que seria a ausência de constrangimento A primeira é pura ilusão não se apli 30 Ética ii caderno de referência de conteúdo ca a nada de real e é prova de nossa ignorância isto é de nossa servidão A segunda se aplica a todo ser que existe e age somente segundo a necessidade de sua natureza sem sofrer necessariamente uma ação exterior Somente Deus é livre por natureza O homem pode se liberar através do conhecimento do segundo gênero que lhe permite realizar sua ação segundo a necessidade das coisas e também pelo conhecimento do terceiro gênero que lhe permite viver interiormen te o ato pelo qual Deus o criou para a eternidade 10 Modo contrariamente ao uso tradicional de Aristó teles até descartes spinoza não vê o modo como uma maneira de ser da substância mas como uma coi sa real um efeito da substância Chama as coisas reais modos porque estas coisas existem na substância sendo esta sua causa imanente 11 Superstição noção central do Tratado teológico po lítico a superstição é a paixão de um espírito escravo das oscilações entre a esperança e o medo Em relação à ilusão que nos apresenta deuses dirigindo a Natureza a superstição representa um grau superior da alienação Locke 1 Confiança trust a autoridade do poder político não se baseia nem em um direito divino nem em um poder natural mas no consentimento do povo O contrato social expressão desse consentimento é ao mesmo tempo um ato de confiança que os governados atri buem a seus governantes após o seu consentimento à sociedade civil 31 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Propriedade property no vocabulário de Locke a palavra propriedade não designa estritamente a pos se de bens materiais mas tudo o que é próprio de cada um ou seja sua vida sua liberdade tudo o que cada um conseguiu com seu trabalho e que por isso torna se sua propriedade legítima 3 Resistência Locke se opõe radicalmente a Hobbes ad mitindo o direito de resistência a opressão Não se trata do direito de destruir o governo o governo destrói a si mesmo quando trai sua missão e é essa autodestruição que legitima a oposição do povo Não se trata também de um direito à ação terrorista o direito à resistência não pertence aos indivíduos enquanto tais mas ao povo soberano ao qual compete julgar se o governo eleito por ele preenche corretamente sua missão Hume 1 Natureza humana enquanto natureza a natureza humana obedece a leis constantes a exemplo dos fe nômenos climáticos as variações históricas e geográfi cas não impedem que haja uma natureza humana uni forme no tempo e no espaço Pode se ver na natureza humana uma parte da natureza em geral mas é mais pertinente do ponto de vista filosófico considerar a natureza humana como o centro uma vez que as di ferentes ciências resultam do jogo das inclinações hu manas devendo ser a ciência dessas inclinações uma ciência central Essa ciência do homem como ciência central é o projeto inicial de Hume 32 Ética ii caderno de referência de conteúdo 2 Senso moral a ideia de senso moral tinha um pa pel fundamental no pensamento de alguns moralistas ingleses e escoceses dentre os quais o mais impor tante foi Francis Hutcheson 16941747 Segundo es ses moralistas o ser humano teria uma faculdade de percepção moral semelhante às nossas faculdades de percepção sensorial Em nome dessa faculdade ime diata e desinteressada que nos permitiria reconhecer o bem e o mal rejeitavam a doutrina do egoísmo cal culador encontrada em Hobbes e Mandeville Bernard de Mandeville 16701733 tudo o que o homem faz pelo outro o faz calculando benefícios para si mesmo retomando a expressão senso moral hume lhe con fere uma dimensão bem maior Para ele o senso moral testemunha a impotência de nossa razão que jamais será capaz de nos dizer o que é o bem e o que é o mal 3 Simpatia a simpatia não é uma paixão específica mas o princípio da comunicação das paixões É graças a ela por exemplo que penetramos os sentimentos dos ri cos e dos pobres participamos do prazer de alguns e do aborrecimento de outros o que nos leva pretende Hume a respeitar o poder dos ricos e a desprezar a mediocridade dos pobres A simpatia torna possíveis a compaixão e a benevolência e não se limita a isso Ela me permite julgar a conduta moral do outro em virtu de dessa capacidade que ela me dá de me identificar com os outros É porém limitada no que concerne observa Hume ao julgamento do que é justo e do que é injusto 33 Ética ii caderno de referência de conteúdo Kant 1 A priori é o que não provem da experiência que dela é absolutamente independente Opõese pois ao empírico ou ao que vem da experiência o a posteriori enquanto a experiência só pode nos oferecer generalidades e contingência o a priori caracterizase pela universalidade e pela necessidade 2 Coisaemsi é o ente enquanto existe independente mente de nosso conhecimento kant denomina a coisa emsi de noumeno ou númeno do grego noúmenon em oposição ao fenômeno o númeno é o objeto do entendimento O fenômeno é objeto dos sentidos O nú meno não pode ser dado a uma intuição sensível porque se encontra fora dos limites da experiência possível por tanto pode ser pensado mas não pode ser conhecido isto é determinado em sua essência O númeno ou a coi saemsi é causa da representação ou fenômeno não no sentido de lhe ser exterior mas de estar nele presente constituindoo Ao nível da sensibilidade designa o que há de conceitual a existência Do ponto de visa do enten dimento a coisaemsi é o objeto pensado Corresponde ao conhecimento do fenômeno que teria o entendimen to divino que não podemos conhecer mas que podemos pensar 3 Entendimento faculdade dos conceitos Kant distin gue os conceitos empíricos os aspectos comuns a um grupo de objetos dos conceitos puros e a priori que definem a objetividade os aspectos comuns a todos os objetos isto é as regras de acordo com as quais devemos associar os dados dos sentidos para construí los como objetos O entendimento é uma faculdade 34 Ética ii caderno de referência de conteúdo ativa um poder de síntese porém um poder puramen te formal ou seja não produz de si mesmo nenhum conteúdo e pode funcionar perfeitamente na ausência dos dados da sensibilidade 4 Razão a noção de razão em Kant apresenta várias nuan ces mas em essência podemos dizer que é o poder de síntese do entendimento fora de todo dado sensível produzindo os conceitos racionais ou ideias o eu o mun do Deus manifestando assim a pretensão a um tipo de conhecimento puramente inteligível não sensível 5 Representação estado de consciência no qual encon tramonos em relação com algo que tornamos presen te a nós mesmos e que pensamos espontaneamente como existente 6 Sensibilidade é uma faculdade passiva e receptiva pela qual algo nos é dado não produzido por nós É a marca da finitude humana 7 Transcendental em Kant é o a priori enquanto o que delineia a forma da objetividade ou ainda é o conjunto das condições das possibilidades dos objetos enquanto objetos Opõese evidentemente ao empírico porém sobretudo ao transcendente o que está fora dos limi tes da experiência com o qual não deve ser confundido Nietzsche 1 Ativoreativo ativo é o que se afirma sem se opor sem negar sem destruir o que quer que seja reativo ao contrário é o que só se coloca opondose negando alguma coisa A criação artística manifesta a ativida de enquanto aberta à multiplicidade das forças vitais 35 Ética ii caderno de referência de conteúdo enquanto as pesquisas do cientista ou do filósofo são reativas na medida em que rejeitam o erro e portan to negam uma parte da vida 2 Genealogia crítica que consiste a considerar todo jul gamento moral científico filosófico etc como uma avaliação referente a um estado de relação entre as forças ativas e reativas isto é referente a um estado da vontade A prática genealógica desvela por trás de cada julgamento uma interpretação que conseguiu se impor recuperando a sua gênese 3 Niilismo segundo Nietzsche toda posição que nega a vida Tudo que é reativo é niilista por exemplo a vontade de verdade que exclui o erro Querer o verdadeiro é querer a morte Toda a filosofia a partir de Platão é niilista pois tal filosofia postulou constantemente valores superiores à vida as ideias o bem o verdadeiro etc Em um sentido mais específico o niilismo é também em Nietzsche o pen samento moderno advindo da Renascença e que atinge seu ponto culminante no século das Luzes porque em bora tal pensamento tenha combatido os valores superio res a morte de deus por ele decretada aconteceu por vingança e ressentimento ou seja de maneira reativa A vida com o pensamento moderno não foi enriquecida reencontramonos sós em um mundo sem valores e sem meta 4 Sintoma essa noção faz parte do arsenal genealógi co de Nietzsche e significa que todo julgamento é uma avaliação referente ao estado da vontade que o susten ta Em outras palavras tratase de uma manifestação de certa relação entre forças ativas e reativas Não tem o sentido da concepção médica clássica aproximase 36 Ética ii caderno de referência de conteúdo do sentido freudiano de um significante que não se re fere a nenhum significado fixo 5 Vida é o conjunto das forças ativas e reativas que lu tam entre si A vida é multiplicidade diferenciação perpétua e se opõe à identidade e à estabilidade 6 Vontade de poder é o fundamento da vida e de toda rea lidade Sendo a vida um jogo de forças sua tendência mais profunda é essa pressão permanente para obter sempre mais poder intensificando as forças que a constituem Observação as informações constituintes deste Glossário por autor foram obtidas do Glossaires par auteurs da obra Les temps des philosophes ROUXLANIER 1995 Esquema dos Conceitoschave Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais importantes deste estudo apresentamos a seguir Figura 1 um Esquema dos Conceitoschave da obra O mais aconselhável é que você mesmo faça o seu esquema de conceitoschave ou até mesmo o seu mapa mental Esse exercício é uma forma de você construir o seu conhecimento ressignificando as informações a partir de suas próprias percepções É importante ressaltar que o propósito desse Esquema dos Conceitoschave é representar de maneira gráfica as relações entre os conceitos por meio de palavraschave partindo dos mais com plexos para os mais simples Esse recurso pode auxiliar você na or denação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos de ensino Com base na teoria de aprendizagem significativa entende se que por meio da organização das ideias e dos princípios em 37 Ética ii caderno de referência de conteúdo esquemas e mapas mentais o indivíduo pode construir o seu co nhecimento de maneira mais produtiva e obter assim ganhos pe dagógicos significativos no seu processo de ensino e aprendizagem Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem esco lar tais como planejamentos de currículo sistemas e pesquisas em Educação o Esquema dos Conceitoschave baseiase ainda na ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel que estabelece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos conceitos e de pro posições na estrutura cognitiva do aluno Assim novas ideias e infor mações são aprendidas uma vez que existem pontos de ancoragem Temse de destacar que aprendizagem não significa ape nas realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno é preci so sobretudo estabelecer modificações para que ela se configu re como uma aprendizagem significativa Para isso é importante considerar as entradas de conhecimento e organizar bem os ma teriais de aprendizagem Além disso as novas ideias e os novos conceitos devem ser potencialmente significativos para o aluno uma vez que ao fixar esses conceitos nas suas já existentes es truturas cognitivas outros serão também relembrados Nessa perspectiva partindose do pressuposto de que é você o principal agente da construção do próprio conhecimen to por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações internas e externas o Esquema dos Conceitoschave tem por objetivo tornar significativa a sua aprendizagem transformando o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular ou seja estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de mundo adaptado do site disponível em httppenta2ufrgs bredutoolsmapasconceituaisutilizamapasconceituaishtml Acesso em 11 mar 2010 38 Ética ii caderno de referência de conteúdo ÉTICA ETHOS e longo Princípios e Razões criados pelo sujeito Surge da reflexão interna do sujeito Impõese ao sujeito pela sua própria vontade e consciência ETHOS e breve MORAL Transmitido pelas gerações Estabelecidos no seio de uma sociedade Surgem do ambiente exterior ao indivíduo MORAL ABERTA BERGSON Religião Dinâmica Criatividade e Progresso Liberdade e Possibilidades MORAL FECHADA BERGSON Religião Estática Coesão Social Rigidez de Regras Obediência Estrita MODELOS ÉTICOS Renascentistas Modernos e Contemporâneos TEOLÓGICOS Julga a ação através de metas ou finalidades externas Consequência Ex Jeremy Bentham DEONTOLÓGICOS Baseiase na premissa da existência de deveres morais Ex Kant Descartes Thomas Hobbes Locke etc RELATIVISMOSUBJETIVISMO Nega que haja qualquer direito moral teoria padrão ao valor ético exclusivo Ex Michel de Montaigne Nietzsche Hume etc NICOLAU MACHIAVEL Cisão entre a dimensão ética e a dimensão política O fundamento ético ou a morada interior é abandonado Figura 1 Esquema dos Conceitoschave da obra Ética II Desenhar esquema 39 Ética ii caderno de referência de conteúdo Questões Autoavaliativas No final de cada unidade você encontrará algumas ques tões autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados as quais podem ser de múltipla escolha abertas objetivas ou abertas dissertativas Responder discutir e comentar essas questões bem como relacionálas com a prática do ensino de Filosofia pode ser uma forma de você avaliar o seu conhecimento Assim mediante a resolução de questões pertinentes ao assunto tratado você es tará se preparando para a avaliação final que será dissertativa Além disso essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhecimentos e adquirir uma formação sólida para a sua práti ca profissional Você encontrará ainda no final de cada unidade um gabarito que lhe permitirá conferir as suas respostas sobre as questões autoavaliativas de múltipla escolha As questões de múltipla escolha são as que têm como res posta apenas uma alternativa correta Por sua vez entendemse por questões abertas objetivas as que se referem aos conteú dos matemáticos ou àqueles que exigem uma resposta determi nada inalterada Já as questões abertas dissertativas obtêm por resposta uma interpretação pessoal sobre o tema tratado por isso normalmente não há nada relacionado a elas no item Gabarito Você pode comentar suas respostas com o seu tutor ou com seus colegas de turma Bibliografia Básica É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus estudos mas não se prenda só a ela Consulte também as bi bliografias complementares 40 Ética ii caderno de referência de conteúdo Figuras ilustrações quadros Nesta obra instrucional as ilustrações fazem parte inte grante dos conteúdos ou seja elas não são meramente ilus trativas pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto Não deixe de observar a relação dessas figuras com os conteúdos da obra pois relacionar aquilo que está no campo vi sual com o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual Dicas motivacionais O estudo desta obra convida você a olhar de forma mais apurada a Educação como processo de emancipação do ser hu mano É importante que você se atente às explicações teóricas práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica ção bem como partilhe suas descobertas com seus colegas pois ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa permitese descobrir algo que ainda não se conhece aprenden do a ver e a notar o que não havia sido percebido antes Obser var é portanto uma capacidade que nos impele à maturidade Você como aluno do curso de Licenciatura em Filosofia na modalidade EaD necessita de uma formação conceitual sólida e consistente Para isso você contará com a ajuda do tutor a dis tância do tutor presencial e sobretudo da interação com seus colegas Sugerimos pois que organize bem o seu tempo e reali ze as atividades nas datas estipuladas É importante ainda que você anote as suas reflexões em seu caderno ou no Bloco de Anotações pois no futuro elas po derão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de pro duções científicas 41 Ética ii caderno de referência de conteúdo Leia os livros da bibliografia indicada para que você amplie seus horizontes teóricos Cotejeos com o material didático discu ta a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas No final de cada unidade você encontrará algumas ques tões autoavaliativas que são importantes para a sua análise sobre os conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos para sua formação Indague reflita conteste e construa resenhas pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadurecimento intelectual Lembrese de que o segredo do sucesso em um curso na modalidade a distância é participar ou seja interagir procuran do sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a esta obra entre em contato com seu tutor Ele estará pronto para ajudar você 3 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed São Paulo Martins Fontes 2007 BARBOUR I G Issues in science and religion New York Harper Row 1971 BAUDRILLARD J La transparence du mal essais sur les phénomènes extremes Paris Galilée 1990 BERGSON H As duas fontes da moral e da religião Rio de Janeiro zahar 1978 FERREIRA A B H Miniaurélio o minidicionário da língua portuguesa 8 ed Curitiba Positivo 2010 GRENz S J SMITH J T Dicionário de Ética mais de 300 termos definidos de forma clara e concisa São Paulo Editora Vida 2005 HUSSERL E La crise des sciences européenes et la phénoménologie transcendantale Paris Gallimard 1976 KEMP P Lirremplaçable une éthique de la technologie Paris Cerf 1997 42 Ética ii caderno de referência de conteúdo MORA J F Diccionario de Filosofia 7 ed Madrid Alianza 1990 ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 TUGENDHAT E Lições sobre a Ética Petrópolis Vozes 2000 43 UNIDADE 1 a cOncepçãO Ética dO RenaSciMentO 1 OBJETIVOS Conhecer e compreender as características fundamen tais do pensamento filosófico da Renascença a partir das mudanças relacionadas a uma visão do mundo e do homem Conhecer as concepções sobre o ético e o moral de al guns importantes e representativos pensadores da épo ca renascentista 2 CONTEÚDOS Giovanni Pico della Mirandola Nicolau Machiavel Paracelso Michel de Montaigne 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 44 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 1 Antes de iniciar os estudos desta unidade para mer gulhar na atmosfera da Renascença seria interessante que você assistisse a filmes como Da Vinci e a Renascença 1987 Encyclopaedia Bri tannica são dois filmes Leonardo da Vinci e O es pírito da Renascença O homem que não vendeu a alma de 1966 com direção de Fred zinnemann O filme trata sobre a vida de Thomas More ou Morus mostrando o im pério das ideias humanistas e ao mesmo tempo a resistência às reformas protestantes Giordano Bruno de 1973 com direção de Giuliano Montaldo Discute a tese de um universo infinito contrariando a concepção aristotélica da finitude do universo e a concepção de que o homem e a terra não são o centro do universo O mercador de Veneza de 2004 com direção de Michael Radford Adaptação da peça homônima de William Shakespeare Lutero Luther no original de 2003 com direção de Eric Till Documentários da BBC sobre Isaac Newton e outros filósofos 2 Hermetismo nesta unidade significará doutrina esoté rica baseada nos escritos da época grecoromana que se considerava de inspiração do deus Hermes Trime gisto personagem mítico da Antiguidade Hermes é o deus grego mensageiro dos deuses denominado pelos romanos de Mercúrio e pelos egípcios de Thot a quem se atribui a inspiração para um conjunto de textos cha 45 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto mado Hermética constituído do Corpus Hermeticum e da Tábua Esmeralda O Corpus Hermeticum consiste em tratados místicofilosóficos em grego datando do perío do helenista período que vai da conquista por Alexan dre o Grande de uma parte do mundo mediterrâneo e da ásia até a dominação romana A Tábua Esmeralda é um texto da literatura alquímica prática da transmuta ção dos metais e de uma medicina universal panaceia nome que vem da deusa grega Panaceia que trazia aos homens remédios originários de plantas composto de uma dúzia de fórmulas obscuras e alegóricas que permitem expressar um ou mais sentidos além do li teral como na fábula e na parábola Nela se encontra a famosa correspondência entre o macrocosmo visão do universo como um todo cujas partes estão em cor respondência visualização sob o modelo do organismo humano e o microcosmo o homem enquanto imagem reduzida do mundo daí a célebre frase o que está em cima é igual ao que está em baixo e o que está em baixo é igual ao que está em cima 4 INTRODUÇÃO Iniciaremos o estudo desta unidade com um texto sobre o Renascimento de Marilena Chauí 2015 intitulado Filosofia moderna o historiador das idéias e das instituições européias Michel Foucault no livro As Palavras e as Coisas Les Mots et les Choses considera o Renascimento um período em que os conhecimen tos são regulados por um conceito fundamental o conceito de Semelhança graças ao qual são pensadas as relações entre se res que constituem toda a realidade motivo pelo qual ciências 46 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto como a medicina e a astronomia disciplinas como a retórica e a história teorias sobre a natureza humana a sociedade a política e a teologia empregam conceitos como os de simpatia e antipa tia nas doenças e nos movimentos dos astros de imitação ou emulação entre os seres humanos entre as coisas vivas entre humanos e coisas entre o visível e o invisível como no caso da alquimia conceitos que nada têm a ver com a magia como su perstição mas com a magia como forma de revelação do oculto pelos poderes da mente humana isto é a Semelhança define um certo tipo de saber e um certo tipo de poder Também é central o conceito de amizade como atração natural e espontânea dos iguais animais humanos e que serve de referência para pensar se a figura do tirano como inimigo do povo e criador de reinos regulados pela inimizade recíproca forma de compreender as divisões sociais e os conflitos entre poder e sociedade A Natureza é pensada como um grande Todo Vivente interna mente articulado e relacionado pelas formas variadas da Se melhança indo dos minerais escondidos no fundo da terra ao brilho dos astros no firmamento das coisas aos homens dos homens a Deus Estamos assim diante de um naturalismo em que todo ser inclusive o ser humano age à luz de princípios naturais e não sob o império da divindade Por sua vez pela noção de semelhança dáse igualmente a busca do conhecimento caracterizando uma racionalidade que se manifesta predominantemente à maneira de uma razão subje tiva a razão daquele que contempla e observa Uma racionalidade que baseandose na noção de semelhança descreve e interpre ta assumindo por vezes a dimensão de uma visão mágica das coisas a criação de obras pelo simples prazer de criação do belo e da beleza O resultado é uma época de grandes artistas pintores arquitetos como Leonardo da Vinci Rafael Michelangelo e outros 47 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Desse modo um antropocentrismo e um humanismo se impõem O mundo passa a ser visto a partir do humano Tudo pode ser explicado pela razão humana tudo pode ser criado por mãos humanas daí o desenvolvimento de técnicas Mas certo vínculo se mantém com a visão do homem me dieval salvaguardase a fé isto é para a mente renascentista tudo pode ser explicado pela razão humana porém alcançado pela fé Não há dessa maneira um rompimento total com a tra dição medieval embora dela se diferencie essencialmente na medida em que se busca ao contrário daquela uma aproxima ção da Natureza com o Divino É dentro de um tal contexto que a dimensão moral do ca ráter racional e passional da alma humana se torna um dos prin cipais temas de reflexão É o que veremos ao trabalhar o pensamento de quatro re presentantes desta visão renascentista Giovanni Pico della Mirandola Nicolau Machiavel Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim Paracelso Michel de Montaigne Seguiremos uma ordem cronológica baseada nas datas de nascimento desses pensadores 5 Giovanni Pico della Mirandola 14631494 O italiano Giovanni Pico della Mirandola foi discípulo de Marsílio Ficino 14331599 e de seu círculo neoplatônico na Academia de Florença Itália O neoplatonismo revivido na Re 48 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto nascença italiana por entre outros Marsílio Ficino é uma cor rente de pensamento iniciada no século 3º da nossa era por Plotino 205270 dC grande filósofo grego de Alexandria Ba seada em princípio nos ensinamentos de Platão dos quais se diferencia bastante foi reintroduzida no Ocidente por Plethon 13551452 um dos grandes pensadores de seu tempo que por sua vez dizia ter recebido os ensinamentos de Amônio Sa cas 175242 renomado filósofo grego de Alexandria Segundo o neoplatonismo o Uno referese a Deus que é indivisível e do Uno emanou uma sequência de seres menores Os neoplatôni cos não acreditavam na existência do mal que para eles seria a imperfeição Veremos essa ideia permear todo o pensamento de Pico della Mirandola na medida em que funda toda ética e moral na busca da perfeição Pico della Mirandola define o homem como meio de equi líbrio de todas as coisas criadas pela força do espírito e do inte lecto é o homem capaz de unir e harmonizar os elementos da natureza Apesar de ter falecido aos 31 anos de idade Pico della Mi randola é um dos representantes mais significativos dessa visão que coloca o homem como o centro do universo Ao lado do papel preponderante do homem na Criação Divina e sua con sequente miséria com a queda advinda do pecado original tão lembrada e descrita na visão religiosa há que se enfatizar segundo ele a dignidade que advém ao homem com o exercício da liberdade Esforçavase Pico della Mirandola por estabelecer uma nova fé cristã fundamentada no desenvolvimento das capacida des humanas por meio de uma excelente formação intelectual pelo estudo de correntes as mais diversas e mesmo opostas 49 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto O sincretismo tendência a reunir doutrinas ou teorias diversas ensinadas como verdadeiras seja por um autor seja por vários autores é uma das características de sua obra Propunhase a estudar um tema sob o maior número de pontos de vista ten tando chegar à visão ou ideia mais próxima possível da realidade observada Sendo por natureza um eclético busca em vários sistemas filosóficos e religiosos o que mais lhe parecia conter elementos interessantes para compor um único sistema de explicação da realidade observada Pico sintetizou as doutrinas filosóficas co nhecidas em sua época principalmente o platonismo os aristo telismos a escolástica os escritos hebraicos e talmúdicos textos fundamentais do judaísmo rabínico estruturados nos séculos 2º e 6º EC Era Cristã e reconhecidos como a norma do judaís mo assim como os textos do hermetismo do ponto de vista de uma Ética a obra de Giovanni Pico della Mirandola representa o que Henri Gouhier filósofo francês de inspiração cristã historiador de Filosofia e crítica dramática autor entre outras obras de LAntihumanisme du XVII siècle denominou de misticismo da nobreza humana Tratase de va lorizar o poder de escolha situado no íntimo de cada ser humano nisso consistindo sua dignidade somos dignos porque somos livres esse poder de escolha a liberdade seria uma potenciali dade do homem potencialidade que o liberta do dogma deter minista religioso ou astrológico a astrologia tinha grande auto ridade na época no que concerne à determinação do destino de cada indivíduo e que reduzia o homem a um mero instrumento de luta entre forças opostas O poder de escolher tornase um instrumento positivo de ação sobre a realidade O ser humano é um ser imperfeito mas cuja possibilidade de perfeição é ilimi 50 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tada podendo alcançar o grau de moralidade e intelectualidade que desejar Sensível para este humanista o amor fundamental na fé cristã possui capacidade de superar divergências e promover a har monia e a paz Giovanni é cônscio de que todo homem é um ser consciente dotado de valor inestimável e que é na dignidade que repousa a nobreza humana pois o que há de único nos se res humanos não é somente sua racionalidade Aristóteles ou sua imortalidade cristianismo mas a magnânima capacidade de autocriarse livremente podendo viraser sempre e muito mais do que já é por natureza FÉLIX 2015 Leiamos o texto a seguir extraído da obra de Giovanni Pico della Mirandola Da dignidade do homem escrito em 1486 Já Deus Pai e arquiteto supremo havia construído segundo as leis de uma sabedoria secreta esta morada do mundo que nós vemos augusto templo de sua divindade ele tinha ornado com espíritos a região supraceleste vivificado com almas eter nas os globos etéreos preenchido com uma multidão de seres de todo gênero as partes fétidas e impuras do mundo inferior Mas uma vez sua obra terminada o arquiteto desejava que houvesse alguém que pudesse avaliar o seu significado amar sua beleza admirar sua grandeza Do mesmo modo quando tudo estava terminado como atestam Moisés e Timeu pensou por último em criar o homem Ora não havia nos arquétipos nada com que criar uma nova raça nem nos tesouros o que ofe recer como herança ao novo filho nem havia no mundo inteiro o menor lugar onde o contemplador do universo pudesse se instalar Tudo estava já ocupado tudo havia sido distribuído às ordens superiores intermediárias e inferiores Finalmente o perfeito construtor decidiu que àquele que não podia rece ber nada de próprio seria comum tudo o que havia sido dado de particular a cada ser isoladamente Pegou pois o homem essa obra de imagem indistinta e tendo o colocado no meio do mundo dirigiulhe a palavra dizendo se não te demos adão um lugar determinado nem um aspecto que te seja próprio nem um dom particular é para que o lugar o aspecto os dons 51 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto que tu mesmo quiseres tu os tenha e possua de acordo com o teu desejo segundo a tua ideia Para os outros seres a na tureza deles definida é mantida presa a leis estabelecidas tu nenhuma lei te prende é a própria possibilidade de julgar que te conferi que te permitirá definir tua natureza Se te coloquei no mundo em posição intermediária é para que daí onde es tás possas examinar mais à vontade tudo o que se encontra no mundo ao teu redor Se nós não te fizemos nem celeste nem terrestre nem mortal nem imortal é para que dotado por as sim dizer do poder honorável de arbítrio possa te modelar e de elaborar a ti mesmo tu te dês a forma que preferires Tu poderás te degenerar em formas inferiores que são bestiais tu poderás por decisão de teu próprio espírito te regenerar em formas superiores que são divinas Ó suprema bondade de Deus o Pai suprema e admirável fe licidade do homem É te dado ter o que desejas ser o que quiseres Os animais no momento de seu nascimento tra zem com eles do ventre de sua mãe o que possuirão os espíritos superiores foram em sua totalidade ou quase des tinados a ser eternamente Mas ao homem ao nascer o Pai deu sementes de toda espécie e germes de todo tipo de vida Aqueles que cada um cultivar em si mesmo se desenvolve rão e frutificarão vegetativos o farão tornarse planta sen síveis farão dele um animal racionais o elevarão à altura da abóbada celeste intelectivos farão dele um anjo e um filho de Deus e se sem te contentar com o destino de nenhuma criatura reconhecete no centro de tua unidade formando com Deus um só espírito na solitária opacidade do Pai eleva do acima de todas as coisas tendo sobre todos a preponde rância Mirandola 1995 p 59 tradução nossa Temos de um lado o ideal almejado de chegar a uma ver dade geral via um conhecimento eclético de doutrinas filosóficas conhecidas e escritos hebraicos de outro lado há a preocupa ção em busca do caráter mais próprio e único do ser do humano e que seria a liberdade 52 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto A singularidade do humano o que o caracteriza e o torna único para Pico della Mirandola é a sua capacidade de agir li vremente Toda moralidade se fundaria nessa estrutura de liber dade as ações moralmente dignas devem ser essencialmente livres ações cujo dever é o de se aproximar da natureza celes tial caminhando em direção à intelectualidade e afastandose de toda sensualidade que aproxima dos animais 6 Machiavel 14691527 Outro importante pensador do Renascimento de interesse no que diz respeito ao ético particularmente na relação deste com a política foi sem dúvida Nicholas Machiavel Dele nos ocu paremos a seguir Nascido em Florença Nicholas Machiavel é conhecido so bretudo pela sua obra controvertida O príncipe Obra admirada por Napoleão e criticada por Descartes Diderot e outros Trata se de um manual dedicado aos príncipes para fortalecer e man ter seus poderes Florença cidade onde nasceu Machiavel fora libertada do governo da poderosa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia como República ao mesmo tempo democrática e teocrática sob a inspiração do monge dominicano Savanarole 14521498 Machiavel nascido de uma família da pequena burguesia eleito secretário da segunda chancelaria responsável pelas rela ções com o interior e com países estrangeiros com missões jun to a soberanos italianos e estrangeiros desenvolveu habilidades políticas Encarregado de organizar a defesa da cidade é vencido em 1512 Os espanhóis devastam a cidade e os Médicis retomam 53 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto o poder Machiavel é torturado e exilado Redige sua obra ini ciando por O Príncipe terminado em 1513 e só publicado em 1532 Escreveu também um importante comentário sobre a his tória romana intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio De volta a Florença em 1520 redige o Discurso sobre a língua comédias e obras históricas Como todo pensador de sua época Machiavel rompe com o poder da Igreja e em consequência com a tradição ética cristã trazida da Idade Média Voltase para os historiadores da Anti guidade e se impõe a tarefa de esclarecer de maneira rigorosa as práticas políticas de seu tempo Da mesma maneira que se procuram leis que dessem conta do comportamento da nature za Machiavel busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos Machiavel estuda o passado para compreender qual o ca minho para tomar o poder e mantêlo Mais precisamente quer encontrar as leis eternas da dominação dos homens pelos ho mens Pretende chegar ao conhecimento do sentido que funda a ação humana especialmente a ação política não baseada em uma visão mítica ou filosófica dos acontecimentos históricos e nem buscando dar conta das coisas pela ação de Deus ou da pro vidência divina Sua meta é prever os acontecimentos por meio da observação das ações humanas no presente particularmente das ações políticas Quanto ao comportamento ético em política ao observar os acontecimentos de sua época caracterizada pela ausência de um poder central e consequentemente por lutas constantes Machiavel conclui que a política não pode mais ser conduzida à luz de uma norma transcendente tal como o Bem dos filósofos e teólogos É necessário que a ação política seja prática em um 54 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto universo continuamente hostil Tratase de um mundo constituí do de indivíduos não éticos que julgam e decidem segundo seus desejos e necessidades imediatas Alguns autores observam que diferentemente de Aristó teles para quem a Ética e a política embora não se confundam são campos relacionados para Machiavel embora seja louvável exercer a política com integridade ética sempre que possível é preciso partir do princípio de que os homens são maus e de que a ação política só pode ser julgada por sua eficácia É a eficácia da ação política que permite aos homens uma coexistência ética O Estado é uma criação de alguns homens superiores e nenhuma ordem é possível senão pela coerção e pela força Enfim fundamentar a ação política por uma concepção fi losófica do dever ético é segundo Machiavel correr o risco de perder o que deve ser conservado o poder e com ele toda a possibilidade de governar A verdade em política é que para se atingir um bem como a paz e a prosperidade todo meio é legíti mo É o que o mundo real exige e o mundo segundo Machiavel é imutável A imutabilidade do mundo Em sua obra Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio Machiavel apresenta o mundo como imutável pois se o mundo não fosse constante não seria possível estabelecer suas leis Refletindo sobre o andamento das coisas humanas concluo que o mundo permanece na mesma situação através dos tem pos que há sempre a mesma quantidade de bem e de mal mas que este mal e este bem não fazem nada mais do que percorrer diferentes lugares diversos países 55 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Segundo o que conhecemos dos antigos impérios vimos todos se deteriorarem uns após os outros na medida em que seus costumes são modificados ou alterados Mas o mundo é sempre o mesmo MACHIAVEL 1995a p 177 tradução nossa As experiências do passado são assim válidas para o pre sente e para o futuro Ou seja embora os acontecimentos histó ricos se movimentem com rapidez diferente a história se repete e é sempre a mesma à semelhança do universo que é constante e sempre o mesmo apesar do fato de os corpos nele se movi mentarem em velocidades diferentes Em contrapartida as coisas humanas ao contrário do uni verso apresentam uma causalidade totalmente imprevisível É o que Machiavel denomina de Fortuna ou roda da fortuna O termo Fortuna tem uma origem míticofilosófica consistindo na personificação do acaso a ideia expressa por ele vem da deusa romana da sorte representando as coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos tanto na vida cotidiana quanto na Política Significa a impossibilidade de o homem dominar to talmente a história Porém como veremos no texto a seguir Ma chiavel considera que o homem tem possibilidade de até certo ponto e de uma certa maneira dominar o inevitável A mutabilidade dos negócios humanos Leiamos o trecho a seguir Sei que alguns pensaram e pensam que os negócios deste mun do são de tal maneira governados por Deus e pelo destino que os homens com toda a sua sabedoria não podem mudar e não encontram para isso remédio assim poderiam julgar que suar sangue e água para dominálos seria em vão em vez de se dei xar governar pelo destino Esse ponto de vista foi retomado em 56 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto nossa época por causa das grandes revoluções que se tem visto e que se veem todos os dias e que excedem toda conjectura por parte dos homens Se bem que algumas vezes eu mesmo pensando sobre isso me deixei levar em parte por essa visão No entanto nosso livre arbítrio não pode ser negado estimo que possa ser verdadeiro que a sorte seja a senhora de meta de de nossas obras mas que também ela nos deixa governar aproximadamente a outra metade Comparo o destino com um desses torrenciais que em sua cólera inundam as planícies ao redor destroem árvores e casas roubam a terra de um lado para levála para outro todos fogem diante deles todo mundo cede ao seu furor sem poder impedilos com diques e aterros mais elevados Apesar disso os homens em tempos amenos não deixam de ter a liberdade de construir diques e aterros de maneira que se o rio subir novamente suas águas desemboca rão em um canal ou sua fúria não será tão livre e tão destrui dora O mesmo acontece com a Fortuna que mostra seu poder onde não há construção que possa resistila e que ataca onde sabe que não há diques nem pontes para enfrentála MACHIA VEL 1995b p 177178 tradução nossa A necessidade leva a fins que a razão desconhece Esse fato explica os acidentes da história e sua aparência caótica Inimiga do homem de ação a Fortuna pode vir a ser um seu auxiliar com a condição de que ele saiba dominála por meio da política e nisto consiste a virtù ou seja na capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder Segundo Machiavel a tendência dos seres humanos é manter sempre a conduta que deu certo atitude que levaria à perda do poder Os grandes homens políticos que criam novas situações por sua virtù são os virtuosi Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos inspirandose no historiador grego Políbio 202120 aC e na República de Platão Segundo essa teoria existe um ci 57 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto clo determinado que se apresenta de maneira regular tornando possível a observação histórica O ciclo é o seguinte 1 O governo original é criado por vários homens de dife rentes procedências consistindo em um governo que é a monarquia 2 Não tarda tal governo entrar por sua vez em decadên cia degenerandose em tirania 3 Surge então um novo governo melhor a aristocracia 4 Este não demora a degenerarse em um governo oligárquico 5 A este sucede um governo democrático que também não tarda a cair na desordem anarquia 6 Nessa situação só um príncipe ou um monarca pode salvar o povo E o ciclo recomeça Para deixar o ciclo mais claro analisemos a Figura 1 a seguir Figura 1 Sucessão dos governos em Machiavel 58 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Considerações finais Sobre a questão de uma Ética em Machiavel diz o profes sor Renato Janine Ribeiro à Revista E A leitura dos textos de Maquiavel nos leva a perceber que ele não defendia a tese de que os fins justificam os meios e de que o mal deve ser praticado para conseguir um fim egoísta Ele se mostra preocupado com o fato de que na política não existem regras fixas governar isto é tomar a iniciativa política é um trabalho extremamente criativo e por isso mesmo sem parâ metros anteriores Assim essa preocupação do filósofo por curioso que pareça tornase um bom instrumento para repen sar a ética RIBEIRO 2015 Continuando Janine aproxima Machiavel de uma ética da responsabilidade classificação de Max Weber 18641920 so ciólogo e economista alemão Para falar de ética também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das duas éticas Weber depois da Primeira Guerra Mundial distingue a ética de princípios em que se apli cam valores já estabelecidos da ética da responsabilidade que é a ética do estadista Esta modalidade aponta para a necessi dade de pensar nos resultados possíveis de uma determinada ação De modo geral a ética da responsabilidade é uma reto mada de Maquiavel ela representa a interferência da política na ética Então o ponto interessante de Maquiavel e da questão ética está na maneira como nós a enxergamos sob a luz da política E hoje com o fim das garantias tradicionais para a ação do indiví duo privado estamos todos mais ou menos na posição do prín cipe de Maquiavel isto é num mundo de incertezas dentro do qual temos de inventar a melhor posição RIBEIRO 2015 A importância de Machiavel está sem dúvida nesse susci tar da reflexão sobre a Ética e sobre as dificuldades inerentes à 59 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tomada de decisões particularmente em campos especialmente móveis como a política ou hoje a tecnologia O filósofo francês Maurice MerleauPonty em sua obra intitulada Signos faz uma descrição fenomenológicoexistencial que visa compreender a obra de Machiavel dentro de seu con texto existencial Isso significa que MerleauPonty vê na obra de Machiavel um entendimento da política como algo eminente mente humano buscando a verdade dos acontecimentos des crevendoos segundo se apresentam no mundo real em sua ins tância de relação com o outro que seria um signo de valor na política parte da experiência de seu próprio tempo Assim por exemplo quando Machiavel escreve que o prín cipe deve ter as qualidades que ele aparenta estaria enunciando uma condição fundamental da política como ela era em seu tem po e continua a ser até os dias de hoje que é se desenrolar na aparência quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter do mínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser necessário isso significaria que no campo da política não há lugar para os valores de uma moral abstrata Enfim a verdade na política é aquela de quem tem o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros MerleauPonty vê na obra O Príncipe de Machiavel a des crição da política como ela tem sido e é através dos tempos e como vimos em tal política não há lugar para a Ética A questão que colocaríamos seria a seguinte É mesmo possível falar de uma Ética em Machiavel Responderíamos que a busca de Machiavel pela com preensão dos comportamentos sociais e políticos não tem como objetivo propriamente o caráter destes enquanto se mostram 60 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto em si mesmos mas sim enquanto se mostram à luz de uma meta geral a obtenção e a manutenção do poder político Uma visão ética é sempre uma visão concreta o que signifi ca uma visão completa tanto da morada interior ou seja tanto dos fenômenos em si mesmos quanto da morada exterior ou dos fatos em si a visão de Machiavel permanece na morada ex terior ou seja nos fatos e a pergunta final é O poder deve de correr do governar do caráter próprio deste do que lhe é único e singular Ou ao contrário o governar deve decorrer do poder Duas são as consequências principais da visão da política em Machiavel no que concerne à Ética a nosso ver 1 O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em suas considerações sobre a política uma vez que tais considerações não contemplam a ação política em seu sentido mais próprio buscando esse sentido fora dela 2 Não há regras propriamente de moralidade em sua concepção política pois sem fundamento ético não há moralidade As regras de comportamento por ele apresentadas são meros instrumentos de ação em busca do poder e de sua manutenção Para não citar senão algumas A opressão para permanecer no poder é permiti do segundo Machiavel usar de meios coercitivos como oprimir cultivando o medo Podese ainda recorrer a medidas primitivas mais sumárias com relação aos que subvertem a política adotada como as execuções A destruição em alguns casos de acordo com Ma chiavel é aconselhável destruir cidades inteiras quando o controle destas tornase difícil tendo em 61 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto vista a existência de grupos de cidadãos dotados de consciência política buscando subverter a política implantada A mentira diz Machiavel no capítulo XVIII da obra O Príncipe que um príncipe prudente não pode e nem deve guardar a palavra dada se isso vier a pre judicálo ou quando as causas que determinaram a palavra dada cessarem de existir Enfim ser um bom simulador e dissimulador é uma das qualida des do bom governante E assim muitos outros exemplos do pensamento em polí tica de Machiavel se encontram em sua obra principal O Príncipe cuja leitura aconselhamos Ao fazêla você perceberá o quanto suas ideias são atuais e em plena vigência em nossa época No que diz respeito a convicções pessoais estas configu ram uma moralidade pessoal e não propriamente uma Ética uma vez que se fundamentam em valores e normas culturais Quanto a uma Ética da responsabilidade ela concerne a consequências e não a resultados Em uma área como a políti ca particularmente assolada por circunstâncias a postura ética é essencial Aristóteles recordemos considerava a Ética como propedêutica à política pois toda circunstância por sua pró pria natureza não comporta regras ou princípios gerais Ela é fundamentalmente singular Atender às circunstâncias é buscar compreendêlas o que significa dar a justa medida captando seus sentidos direções e possibilidades É trabalho para uma equipe de profissionais pois implica a atuação de vários campos do saber não há savoirfaire nem mesmo o político como pa rece pretender Machiavel que substitua o saber das razões que fundamentam uma situação circunstancial 62 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 7 PHILLIPUS THEOPHRASTUS BOMBASTUS VON hohenheiM Paracelso 14931591 Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim médi co suíço autodenominado Paracelso era além de médico tam bém alquimista físico e astrólogo Alguns o consideram a própria expressão dessa visão mágica da natureza Para ele a natureza é uma força vital que cria produz e transforma Tudo é duplo há um macrocosmo e um microcosmo um mundo visível e um mundo invisível A natureza só poderia ser conhecida por meio da alquimia da astrologia e da magia O invisível não é um objeto e por isso nunca se apresenta como imagem é energia viva e criativa que a partir do interior das coisas transformaas no que elas são O invisível se mostra no visível embora oculto A natureza invisível se movimenta pela imaginação e uma imaginação suficientemente forte é a origem da magia É por meio da magia que captamos os sinais do invisí vel no visível Segundo Paracelso a saúde é um estado de equilíbrio das energias e a doença o desequilíbrio dessas mesmas energias O médico deve reconhecer a ação da natureza invisível no doente e a medicação deve responder ao modo como a natureza trabalha no visível respeitando determinados horários correspondentes a certas constelações planetárias Para curar é necessário abrir se às forças naturais invisíveis observandoas ROUXLANIER 1995 p 161 Embora seja tido por muitos como charlatão e visionário encontramos em Paracelso não propriamente uma Ética cristã resultado da institucionalização dos ensinamentos de Jesus o Cristo mas a Ética trazida por Jesus de Nazaré Segundo Para 63 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto celso o exercício da Medicina e os ensinamentos de Jesus são inseparáveis Tratase essencialmente de uma Ética da Fé e do corpo enquanto expressão do espírito e viceversa Deus segun do ele é uma entidade que devemos considerar antes de todas as outras coisas É o princípio que regula toda a vida princípio que denominou de Moral A Fé seria o elemento básico de toda cura pois é impossí vel curar o corpo sem curar ao mesmo tempo o espírito Todo mal que se faz ao corpo atinge o espírito pois o espírito é aquilo que sem matéria está dentro do corpo físico e é gerado pelas nossas sensações e meditações Por isso o espírito pode sofrer as mesmas doenças do corpo Por sua vez todo pensamento ne gativo sobre o outro poderá nos afetar porque é fruto de uma vontade fixa firme e intensa geradora do espírito Considerações finais um panenteísmo ético No que diz respeito à Ética a posição de Paracelso é deno minada de panenteísmo Essa palavra foi cunhada pelo filósofo alemão karl c F krause 17811832 e significa deus está pre sente em tudo o que não quer dizer panteísmo tudo é deus De fato a posição de Paracelso sobre o homem e a Ética expressa uma das características básicas do Renascimento que contrariamente à separação entre a natureza e o Divino que se deu na Idade Média busca reaproximálos Podemos dizer a partir do que aqui vimos que o transcen dental que funda o ético e o moral em Paracelso é a vontade di vina A liberdade estaria no reconhecimento de nossa submissão à vontade divina o ético e o moral se situariam nesse dever de se realizar a si mesmo mediante a obediência à vontade divina 64 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto tendo em vista o que caracteriza o homem tornandoo único o seu realizarse está subordinado a uma instância superior que o ultrapassa mas que se impõe a ele incondicionalmente Deus fixa na natureza do homem a sua medida por meio dos dez mandamentos A liberdade do homem está em decidir sobre os meios para obedecer ou não a essa vontade A sociedade é a oportunidade para o ser humano se trans formar transmutação alquímica interior e se elevar desenvol vendo sua essência na vida social mediante o respeito à sua ori gem como filho de Deus Estamos assim diante de uma Ética de natureza empírica cujo fundamento é a fé JEANPIERRE 2012 8 Michel de MontaiGne 15331592 Michel de Montaigne nasceu em um château da região francesa do Périgord Recebeu educação esmerada e fez carreira política Viveu no período final da Renascença quando o entu siasmo e a confiança nos homens já havia decrescido muito Para Montaigne a ciência da qual o homem tanto se orgulha não pro picia um conhecimento certo pois seu instrumento principal a razão abstrata não tem maior valor que a imaginação que está sujeita às variações das impressões sensoriais A partir da leitura dos autores gregos e romanos Montaigne desenvolve uma análise crítica da razão humana Referindose às obras morais de Plutarco mostra nelas a vaidade de pensar que o homem é superior ao animal Chega assim a um ceticismo fi losófico Há sempre algo não passível de conhecimento algo que a razão humana jamais dominará Mostra que a experiência an tropológica apresenta opiniões e costumes os mais diversos Des creve um grande número de exemplos de experiências ou fatos 65 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto evidenciando o caráter ilimitado e misterioso da natureza con trariando toda interpretação unilateral Observa que quando nos abstemos de tomar partido em favor de uma determinada ideia ou interpretação nosso pensamento descobre ao mesmo tempo a prodigiosa riqueza do real e a diversidade do espírito humano Montaigne expõe experiências humanas as mais diversas e contraditórias que impossibilitam chegar a um conhecimento ge ral do ser humano Chega assim a um universo móvel incerto e múltiplo Não há segundo Montaigne nenhuma esperança para nós de encontrarmos a causa das coisas em meio a essa confu são e profusão de fatos Há que se meditar sobre a contingência ou impossibilidade de nossa razão chegar a uma só verdade Montaigne é sensível à dimensão ética propriamente dita a do caráter a do espaço existencial morada interior e do tem po campo de possibilidades de cada ser Quer recuperar o ideal humanista individualista da cultura antiga Por meio dos ensi namentos dos clássicos reconhece a limitação de nossa capa cidade de conhecer É cético quanto à possibilidade de conheci mento metafísico Voltase para a arte de viver Sob a influência dos estoicos busca o caminho da sabedoria para a solução dos problemas da vida sabedoria que consistia em saber deliberar entre o bem e o mal para viver melhor Dos estoicos traz também o agir de acordo com a natureza para enfrentar as adversidades e encontrar a paz O conhecimento generalizado é para Montaigne limitado Não há julgamento autônomo independente de uma consciên cia individual Só nós mesmos somos capazes de nos conhecer De nós o outro apenas consegue conjeturar a partir do que lhe mostramos O indivíduo carrega em si a essência da vida huma na essência essa que deve ser captada na singularidade do indi 66 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto víduo e não submetida a regras e conceitos gerais A orientação deve ser buscada à luz das singularidades Para Montaigne ser ético é principalmente cultivar a ami zade verdadeira que só pode ser vivida Segundo observação de vários autores a amizade enquanto valor ético não tem para ele apenas uma dimensão individual mas possui dimensão po lítica na medida em que ela só é possível onde há igualdade liberdade e justiça CALLADO 2005 Montaigne era muito amigo de Étienne de La Boétie 1530 1563 um dos criadores da ideia moderna de democracia a qual chamava de república livre pois como observam muitos essa noção de democracia ainda não existia Em sua obra Discurso sobre a Servidão Voluntária escrita a partir da observação dos acontecimentos de seu tempo rejeita todas as formas de dema gogia defende a liberdade e a igualdade de todos os homens no nível político evidencia a força da opinião pública prefere a república rejeitando a monarquia como forma de governo pois o poder de um só homem sobre os outros é ilegítimo A experiência da perda do amigo com quem debatia lon gamente questões importantes fez Montaigne confrontarse com a dor e a solidão experiência que surge frequentemente em sua obra Ensaios que escreveu já afastado da vida pública na po lítica Essa obra consiste em considerações humanistas sobre a existência próprias do fim do século 16 que vão desde temas da vida corrente até os de religião e filosofia Nela Montaigne ana lisa escritos de Lucrécio 9553 aC datas prováveis poeta e filósofo que escreveu o poema De Rerum Natura Sobre a Natu reza das Coisas um tratado de filosofia epicurista Cícero 106 43 aC advogado orador escritor romano e autor do célebre discurso contra Catilina patrício romano conspirador sem es 67 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto crúpulos recitado no Templo de Júpiter em 63 aC Sêneca 65 4 aC escritor filósofo romano e importante representante do estoicismo que defendia a Ética e a vida simples e sobretudo Plutarco 12045 aC filósofo grego que teve muita influência sobre ensaios e biografias na literatura ocidental cuja obra Bioi paralleloi Vida de homens ilustres consiste em 64 biografias de personagens gregos e romanos importantes e é considerada a fonte mais importante de ideias tradicionais sobre a Antiguidade grecoromana Visando ao homem comum Montaigne busca liberar a fi losofia de abordagens estritamente metafísicas e dogmáticas concretizando a liberdade de apresentar diferentes perspectivas ao mesmo tempo Montaigne escreve em francês é o primei ro pensador na época a se expressar em francês Embora não apresente o desenvolvimento sistemático de uma ideia sua obra é filosófica na medida em que situa suas considerações no nível daquilo que funda as diferentes razões que constroem o pensa mento da época ROUXLANIER 1995 Indo do homem universal à condição humana Montaigne em vez de partir de modelos morais como os dos sábios prefere proceder à observação concreta da variação que nos conduz ao indivíduo único e singular Preserva assim o caráter misterioso e imprevisível de cada ser mas não concebe esse caráter úni co de cada ser coisa ou situação como uma verdade objetiva o que chama de ciência moral não consiste em uma doutrina moral concebida à maneira dos estoicos para quem o universo pode ser explicado racionalmente porque tem uma estrutura ra cionalmente organizada consistindo a felicidade em ter fé nessa racionalidade oculta discernindoa e aceitandoa plenamente alcançando desta maneira a perfeição Para Montaigne a hon ra a fidelidade e a amizade são qualidades éticas importantes 68 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Para ele cujas obras tiveram grande influência sobre escritores e filósofos dos séculos seguintes é possível fazer o que atende ao caráter de cada um e de cada situação e assim ser feliz Viver eticamente é viver o momento presente é meditar sobre a mor te e a ela submeter a autenticidade de nossa vida No texto que se segue Montaigne critica a pretensão hu mana de tudo conhecer e chegar a verdades absolutas ou dog máticas por meio da razão filosófica Observa e analisa o fenô meno humano no seu caráter mais próprio Consideremos o homem só sem qualquer ajuda a ele estranha armado somente com suas armas e desprovido da graça e co nhecimento divinos os quais constituem toda a sua honorabili dade sua força e o fundamento de seu ser Vejamos quanto de dignidade há nesse belo revestimento Que ele me faça enten der pelo esforço de seu discurso sobre quais bases construiu as vantagens que ele pensa ter sobre as outras criaturas Quem o persuadiu que esta dança admirável da abóbada celeste que a luz eterna destes clarões que voam orgulhosamente sobre sua cabeça os movimentos terríveis deste mar infinito foram esta belecidos e mantidos durante tantos séculos para a sua como didade e a seu serviço É possível imaginar algo mais ridículo do que esta criatura frágil que nem mestre de si mesmo é passível de ser atingida pela ação violenta das coisas se proclamar mes tre e senhor do universo o qual não tem o poder de conhecer minimamente quanto mais de comandálo E esse privilégio que atribui a si mesmo de ser único nesta construção do uni verso de ser capaz de reconhecer sua beleza e partes de ser o único a dar graças ao seu arquiteto e entender a receita e a criação do mundo quem lhe concedeu esse privilégio A presunção é nossa doença natural e original A mais cala mitosa e frágil de todas as criaturas é o homem e ao mesmo tempo a mais orgulhosa Ele se sente e se vê alojado aqui em meio à lama e aos dejetos do mundo atado e pregado à pior à mais morta e vendida parte do universo situado no último lugar afastado da abobada celeste e vai se colocando pela 69 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto imaginação acima do círculo da lua e trazendo o céu para abai xo de seus pés É pela vaidade dessa mesma imaginação que ele se iguala a Deus que se atribui condições divinas que se distingue e se separa da multidão das outras criaturas classifica os animais seus irmãos e companheiros atribuindolhes deter minadas quantidades de faculdades e de forças a seu bel prazer Como conhece ele pela sua inteligência as formas internas e secretas dos animais Por meio de qual comparação deles co nosco chega à conclusão pouco refletida e inteligente sobre tais atribuições MONTAIGNE 1995 p 189190 tradução nossa A natureza não opera por distinções Mas quando estou em meio a opiniões mais moderadas em meio àqueles discursos que tentam mostrar a semelhança nos sa com os animais e como eles têm como nós os maiores pri vilégios e quanta semelhança possuem conosco certamente desconto muito dessa nossa pretensão e me libero com prazer dessa mistificação que nos atribui uma realeza imaginária em relação às outras criaturas Quando tudo o que aqui foi falado não for considerado que haja um certo respeito e um dever geral de humanidade nos ligando não apenas aos animais que têm vida e sentimento mas também às próprias árvores e às plantas Nós devemos justiça aos homens e a graça da clemência às outras criaturas capazes de bondade os turcos dão esmolas e têm hospitais para os animais Os Ro manos têm um cuidado público com o alimento das corujas seu Capitólio foi salvo graças à vigilância das corujas os atenienses ordenaram que as mulas e os jumentos que tivessem auxiliado a construção do templo chamado Hecatompedon fossem deixados livres e para pastar sem impedimento em qualquer lugar Os egípcios enterravam os lobos os ursos os crocodilos os cães e os gatos em lugares sagrados embalsamando seus corpos e guar dando luto MONTAIGNE 1995 p 190191 tradução nossa Veja no texto transcrito a seguir que Montaigne critica o instrumento pelo qual o ser humano acredita ser a mais elevada 70 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto das criaturas deste planeta a razão enquanto faculdade de abs trair e generalizar Chamo sempre razão esta aparência de raciocínio que cada um forja em si essa razão com relação à qual podem existir outras contrárias sobre o mesmo tema é um instrumento de chumbo e de cera prorrogável maleável e acomodada a qualquer viés e a todas as medidas não resta senão a capacidade de contorná la Seja qual for o plano bem intencionado que tenha um juiz se ele não se ouve no seu íntimo coisa que poucos gostam de fazêlo a inclinação à amizade ao parentesco à beleza e à vin gança e não somente a sentimentos tão dominantes mas ain da a este instinto fortuito que nos faz favorecer mais a um do que a outro e que na escolha de temas semelhantes mesmo estando presente a razão podem se insinuar insensivel mente em seu julgamento favorecer ou desfavorecer Eu que me vejo de mais perto que tenho os olhos incessante mente voltados para mim mal ousaria dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim Eu ando tão instável e tão mal assentado eu me acho tão susceptível de escorregar e de me desequilibrar e minha visão tão confusa a ponto de quando em jejum me sentir outro do que após me alimentar se tenho algo que me espeta os dedos do pé eis me carrancudo de mau humor e inacessível MONTAIGNE 1995 p 302303 tradução nossa Com relação a grupos humanos muito diferentes dos euro peus os quais temse o hábito de denominar de selvagens ou de bárbaros Montaigne faz uma reflexão sobre a precariedade de tais julgamentos sobre o que é civilizado e o que não é Penso voltando aos meus propósitos que não existe nada de bárbaro nem de selvagem naquilo que me relataram senão que cada um chama de bárbaro o que não corresponde a um costu me seu verdadeiro também parece dizer que não temos outra visão da verdade e da razão além daquela das opiniões e costu mes do país em que vivemos No nosso país a religião é perfeita a polícia é perfeita o uso de todas as coisas é perfeito São selva 71 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto gens da mesma maneira que consideramos selvagens os frutos que a natureza produz de si mesma e em seu desenvolvimento natural na verdade são aqueles frutos que alteramos artificial mente impedindoos de se desenvolverem naturalmente que deveriam ser denominados selvagens Nos primeiros estão vivas e vigorosas as verdadeiras e as mais úteis e naturais virtudes e propriedades as quais nós degeneramos e adaptamos de acordo com o nosso paladar corrompido Não há por que a arte ser mais considerada do que a mãe Natureza Nós sobrecarregamos de tal maneira a beleza e a riqueza das obras da natureza que a sufocamos MONTAIGNE 1995 p 305306 tradução nossa Com a reflexão de Montaigne sobre o problema ético en volvido na problemática da reflexão filosófica reflexão essa que pretende abarcar todos os seres singulares partindo de noções gerais ele chama a atenção para essa pretensão e aponta algu mas de suas falhas o que reflete uma forte crítica ao dogma tismo filosófico caracterizando o pensador com um autêntico cético em relação a essas pretensões humanas Chamamos a atenção para a crítica que Montaigne desfere nessa nossa últi ma citação à sociedade europeia de sua época que considera as outras sociedades como bárbaras essa crítica é bem avançada para o seu tempo e encontrará adeptos em vários pensadores da história da Filosofia Sugerimos que você procure responder discutir e comen tar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade ou seja do contexto humanista e antropocentris ta em que se desenvolve o Renascimento das implicações que essa nova visão de mundo que pretende explicar tudo a partir do homem e que busca uma divinização da Natureza terá sobre o pensamento moral e ético desse período Tentamos salientar aquilo que se fará presente em toda a nossa reflexão sobre o ético nesta obra ou seja a busca por encontrar na tradição fi 72 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto losófica as possíveis reflexões que tentaram de alguma forma tratar do característico de do singular ou do ético como sa lientamos em nossa Abordagem Geral 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para você testar o seu desempenho Se você encontrar dificuldades em responder a essas questões procure revisar os conteúdos es tudados para sanar as suas dúvidas Esse é o momento ideal para que você faça uma revisão desta unidade Lembrese de que na Educação a Distância a construção do conhecimento ocorre de forma cooperativa e colaborativa compartilhe portanto as suas descobertas com os seus colegas Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Sobre a Ética na Renascença é incorreto afirmar a É uma ética naturalista b É uma ética antropocêntrica c É uma ética humanista d É uma ética racionalista e É uma ética pragmatista 2 Assinale dentre as seguintes afirmações a única incorreta a Montaigne é um cético com relação a todo conhecimento absoluto b Segundo Montaigne o conhecimento generalizado é limitado c O comportamento ético com relação às pessoas e coisas fundamenta se em um julgamento autônomo e universal independente de uma consciência individual d Podemos dizer que Montaigne propõe como condição de toda condu ta ética a consideração das nuances subjetivas e culturais de que se revestem as diferentes situações e comportamentos 73 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto 3 Por que a Ética do filosófo e pensador Giovanni Pico della Mirandola é denominada de Ética da nobreza humana 4 Faz sentido falar de uma Ética em Machiavel Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 e 2 c 3 Giovanni Pico della Mirandola vê no homem um ser de dignidade pois é livre reconheceo como o ser que possui a perfectibilidade capacidade de aperfeiçoamento e nisso consiste a sua nobreza 4 As considerações sobre a política em Machiavel procuram seu sentido nos resultados obtidos pela ação de seus governantes um misto de fortu na e virtù Esses resultados serão a medida com a qual analisamos se uma ação política foi bemsucedida ou não Como o ético procura o sentido interno de cada fenômeno seu caráter a Ética está necessariamente fora do entendimento de Machiavel sobre a política Para que o ético fosse contemplado em suas considerações sobre a ação política seria necessá rio que a avaliação da ação política fosse feita a partir da própria ação não pelos seus resultados a aquisição e a manutenção do poder 10 CONSIDERAÇÕES Para finalizar esta unidade não poderíamos deixar de nos re ferir brevemente à chamada Ética protestante surgida com lutero 14841546 teólogo e reformador religioso alemão e Jean Calvin João Calvino 15091564 teólogo e reformador religioso francês expondo a denominada Ética protestante em sua obra Ética protestante e o espírito do capitalismo Max Weber 18641920 so 74 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto ciólogo historiador e político alemão fala do surgimento na Renas cença no século 16 de uma Ética da responsabilidade à qual nos referimos na introdução desse estudo e também na parte referen te a Machiavel fundamentada em uma razão não mais advinda de uma ordem preestabelecida como no caso da Ética da virtude dos antigos Segundo Weber tal Ética fornecerá as bases para o desen volvimento do sistema capitalista 11 ereFerÊncias CALLADO T C A Ética em Michel de Montaigne Análise do úti e do honesto Kalagatos Fortaleza v 2 n 4 p 169200 2005 Disponível em httpwwwuece brkalagatosdmdocumentsV2N4AeticaemMicheldemontaignepdf Acesso em 30 mar 2015 CHAUÍ M Filosofia moderna Disponível em httpschasquewebufrgsbrslomp filosofiachauifilosofiamodernahtm Acesso em 12 ago 2015 FÉLIX L O que confere dignidade ao homem Disponível em httpwwwesdccom brCSFartigo200909dignidadehtm Acesso em 13 ago 2015 JEANPIERRE Paracelso Corpo Alma Disponível em httpwwwsophiabemvindo nettikiindexphppageParacelsoCorpoAlma Acesso em 8 mar 2012 RIBEIRO R J Entrevista à Revista E n 54 Disponível em httpwwwrenatojanine probrentrevistasrevistaE54html Acesso em 14 ago 2015 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHIAVEL N Discours sur la première décade de TiteLive In ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995a Le Prince In ROUXLANIER C Org Les temps des philosophes Paris Hatier 1995b Príncipe e escritos políticos 4 ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores MIRANDOLA G P De la Dignité de lhomme In ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 75 Ética ii UNIDADE 1 A CoNCEpção ÉtICA Do RENAsCImENto Discurso sobre a dignidade do homem Trad Maria de Lurdes Sirgado Ganho Lisboa Edições 70 2001 MONTAIGNE M Essais In ROUXLANIER C Org Les temps des Philosophes Paris Hatier 1995 Ensaios 4 ed São Paulo Nova Cultural 1987 Os Pensadores ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 77 Ética MOdeRna RaciOnaliSMO e eMpiRiSMO 1 OBJETIVOS Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernida de e relacionálas com as propostas da moral e da Ética do racionalismo e do empirismo modernos Compreender a proposta de uma moral de provisão em René Descartes Analisar os desdobramentos na proposta de Spinoza de uma Ética puramente racionalintuitiva demonstra da à maneira dos geômetras A moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John Locke O empirismo e o início de uma moral utilitarista com John Locke 2 CONTEÚDOS René Descartes Baruch Spinoza Thomas Hobbes John Locke Unidade 2 78 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 Para saber mais sobre a liberdade em Spinoza sugeri mos que não deixe de ler o seguinte artigo FRAGOSO E A R O conceito de liberdade na Éti ca de Benedictus de Spinoza Revista Conatus Filosofia de Spinoza v 1 n 1 p 2736 jul 2007 Disponível em httpbenedictusdominiotem porariocomdocRevistaConatusV1N1Artigo EmanuelFragosopdf Acesso em 31 mar 2015 2 O tema da liberdade em Spinoza é bastante interessan te para aprofundálo sugerimos que assista ao vídeo do Prof Claudio Ulpiano Pensamento e Liberdade em Espinosa Disponível em httpwwwyoutubecom watchvKMhuVkSDQPs Acesso em 18 ago 2015 3 Sobre Hobbes assista ao vídeo do programa de TV Café Pensamento da Mackenzie na entrevista com o professor Marcelo Bueno sobre a filosofia de Thomas Hobbes Disponível em httpwwwyoutubecom watchv41WURiF0nM Acesso em 18 ago 2015 4 Indicamos também os seguintes filmes Sobre o século 17 Cromwell O Chanceler de Ferro de 1970 direção de Ken Hugues a revolução puri tana na Inglaterra Sobre o século 18 a Revolução Francesa Danton O Processo da Revolução de 1982 direção de Andrzej Wajda 79 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Baseado na obra de mesmo nome o filme Ponto de Mutação de 1983 com direção de Bernt Capra aborda questões sociais políticas econômicas e mudanças de tendências passagem do velho para o novo e renovação do velho 4 INTRODUÇÃO Dentro do que temos nos proposto a trabalhar no que diz respeito à distinção entre o ético e o moral veremos no século 17 tema desta unidade o estabelecimento de uma estrutura de saber favorável ao desenvolvimento da noção de moral que se presta ao conceito de regras e princípios gerais em detrimento do que entendemos por ético propriamente dito De fato no século 17 passa a predominar um interesse cada vez maior em um saber racionalteórico fundamentado em um universalgeral iniciandose assim de maneira sistemáti ca o pensamento chamado moderno com suas características específicas Veremos a seguir alguns pontos básicos desse novo para digma de saber o conhecimento científico ou a ciência Iniciemos com a nova noção de mundo Durante a Idade Média a ideia de mundo era a aristotélica ou seja um todo or denado o cosmos limitado e hierarquizado onde cada coisa ti nha o seu lugar próprio segundo sua natureza Porém descober tas significativas surgem no século 17 que parecem negar essa visão Um exemplo é a lei da inércia inicialmente formulada por Descartes e posteriormente por Newton segundo a qual um corpo uma vez em movimento conservará para sempre esse mo vimento com a mesma velocidade se não sofrer nenhuma outra 80 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo ação como acontece no vácuo Essa lei significa que o univer so todo está em movimento e portanto em vez de um mundo fechado limitado e hierarquizado como se pensava temos um universo sem limites Essa visão a partir de uma lei universal geral consiste em uma visão abstrata do universo O mundo passa a ser visto como uma grande máquina previsível e passível de ser conhecida racionalmente Um todo em movimento movimento esse não em busca de um fim mas inteiramente decorrente de leis matemáticas Em outras pala vras ao contrário do cosmos antigo em que sob a inspiração aristotélica se explicavam as coisas pela finalidade o universo agora se apresenta reduzido a um puro mecanismo Não há lugares naturais com leis próprias como ensina va Aristóteles o espaço é homogêneo geométrico nele reina a identidade universal da lei ou a relação matemática constante A ordem cósmica dos antigos é substituída pela ordem rigorosa da matemática que se torna o modelo do pensamento verdadeiro Das inúmeras substâncias concebidas pelo pensamento grecoromano restam apenas três fundamentais a extensão res extensa o pensamento res cogitans e o infinito a substância divina No pensamento moderno só é conhecimento aquele que explica a partir da causa e apenas duas causas são admitidas a causa eficiente relação direta da causa e de seu efeito e a causa final que seria aquela existente entre Deus e os homens enquanto os gregos romanos e medievais concebiam as causas como sendo quatro classificação de Aristóteles 1 a causa material aquilo de que algo é feito 2 a causa formal a coisa em si 81 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 a causa eficiente o que dá origem ao processo do qual algo surge 4 a causa final aquilo para o qual algo é feito Outra questão que dominará a Idade Moderna é a questão do método Para se chegar ao conhecimento pelas causas fazse necessário um método ou um caminho A opção é pelo método da Matemática ordem e medida por ser este o caminho do conhecimento completo que domina inteiramente seu objeto No que diz respeito à nossa temática da Ética e da moral o surgimento do pensamento moderno com exceção do pensa mento de Baruch Spinoza foi pelas características epistêmicas aqui referidas favorável à expansão da questão moral É o que veremos a seguir 5 renÉ descartes 15961650 e uMa Moral de Provisão descartes como sabemos é o filósofo do método ou do caminho para se chegar a verdades claras e exatas Em 1619 es tando combatendo os espanhóis no exército do príncipe holan dês Maurício de Nassau Descartes tem três visões ou sonhos a partir dos quais concebe os fundamentos de uma ciência admi rável sobre a qual por volta de 1620 começa a redigir a obra Regras para a direção do espírito obra essa que só será publica da em 1701 Considerado o grande fundador do pensamento racionalis ta moderno sua marca inconfundível é o princípio da dúvida tudo o que pensamos saber ou acreditamos existir deverá passar pelo crivo da dúvida 82 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Nesse sentido em Meditações Meditação 1 afirma 1 Há algum tempo eu me apercebi de que desde meus primei ros anos recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras e de que aquilo que depois fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto de modo que me era necessário tentar seriamente uma vez em minha vida desfazer me de todas as opiniões a que até então dera crédito e começar tudo novamente desde os fundamentos se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências Mas parecendome ser muito grande essa empresa aguardei atingir uma idade que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela na qual eu estivesse mais apto para executála o que me fez diferi la por tão longo tempo que doravante acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me resta para agir Agora pois que meu espírito está livre de todos os cuidados e que consegui um repouso assegurado numa pacífica solidão aplicarmeei seriamente e com liberdade a destruir em geral todas minhas antigas opiniões Ora não será necessário para alcançar esse desígnio provar que todas elas são falsas o que talvez nunca levasse a cabo mas uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidadosamente impedirme de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in dubitáveis do que às que parecem manifestamente ser falsas o menor motivo de dúvida que eu nelas encontrar bastará para me levar a rejeitar todas DESCARTES 1973a p 93 a questão da moral em descartes uma moral de provisão Descartes propõe inicialmente em sua famosa obra Dis curso do Método o que chamou de moral de provisão par tindo para o estabelecimento de normas ou máximas que nos permitissem nos aproximar da verdadeira virtude normas ou máximas que são no entanto segundo o filósofo imperfeitas necessitando de aperfeiçoamento Tratase de uma moral pro 83 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo visória elaborada antes da construção das bases do edifício do saber a que se propunha e que permitiria orientar a conduta até que fosse possível a elaboração de uma moral definitiva a qual seria o ponto mais alto do referido edifício do saber São três as máximas por ele estabelecidas na obra citada 1 a vida de cada um deve ser conforme os desígnios de Deus e as leis e costumes de seu país 2 a prudência é a atitude que supriria a imperfeição 3 devese procurar vencer a si mesmo mudando os pró prios desejos e não a ordem do mundo A primeira máxima A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desíg nios divinos que seriam os mais justos mas ainda conforme a conduta daqueles que seguem as leis e os costumes de seu país e que são os moderados e sensatos Referindose a essa primeira regra diz Descartes A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país retendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infância e governandome em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e as mais distanciadas do excesso que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de vi ver Pois começando desde então a não contar para nada com minhas próprias opiniões porque eu as queria submeter todas a exame estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensatos E embora haja talvez entre os persas e chine ses homens tão sensatos como entre nós parecia que o mais útil seria pautarme por aqueles entre os quais teria de viver DESCARTES 1973a p 4950 84 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A segunda máxima a prudência Em vez de adotarmos teimosamente uma decisão ou de permanecermos indecisos quando não possuímos todas as in formações necessárias é prudente tomar a decisão de agir re solução em uma determinada direção Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas sempre que eu me tivesse decidido a tanto Imitando nisso os viajantes que vendose extraviados nalgu ma floresta não devem errar volteando ora para um lado ora para outro nem menos ainda deterse num sítio mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado e não mudá lo por fracas razões ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado sua escolha pois por este meio se não vão exatamente aonde desejam ao menos chegarão no fim a al guma parte onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta E assim como as ações da vida não su portam às vezes qualquer delonga é uma verdade muito certa que quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras devemos seguir as mais prováveis e mesmo ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras devemos não obstante decidirnos por algumas e considerálas depois não mais como duvidosas na medida em que se relacionam com a prática mas como muito verdadei ras e muito certas porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal E isto me permitiu desde então libertar me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar como boas as coisas que depois julgam más DESCARTES 1973a p 5051 85 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A terceira máxima a conduta correta é aquela que respeita as possibilidades de um mundo regido por leis imutáveis e acima de nosso alcance Descartes afirma que Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que à sorte e de antes modificar os meus dese jos do que a ordem do mundo e em geral a de acostumarme a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso poder exceto os nossos pensamentos de sorte que depois de termos feito o melhor possível no tocante às coisas que nos são exte riores tudo em que deixamos de nos sair bem é em relação a nós absolutamente impossível E só isso me parecia suficiente para impedirme no futuro de desejar algo que não pudesse adquirir e assim me tornar contente Pois inclinandose a nossa vontade naturalmente a desejar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma como possíveis é certo que se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós como igualmente afastados de nosso poder não lamentaremos mais a falta daqueles que parecem deverse ao nosso nascimento quando deles formos privados sem culpa nossa do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México e que fazendo como se diz da necessidade virtude não desejaremos mais estar sãos estando doentes ou estar livres estando na prisão do que desejamos ter agora corpos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes ou asas para voar como as aves DESCARTES 1973a p 51 Tal conduta exigiria preparo Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma me ditação amiúde reiterada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas e creio que é principalmente nisso que consistia o segredo desses filósofos que puderam outro ra subtrairse ao império da fortuna e malgrado as dores e a pobreza disputar felicidade aos seus deuses Pois ocupando se incessantemente em considerar os limites que lhes eram impostos pela natureza persuadiramse tão perfeitamente de 86 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo que nada estava em seu poder além dos seus pensamentos que só isso bastava para impedilos de sentir qualquer afecção por outras coisas e dispunham deles tão absolutamente que tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos mais poderosos mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens que não tendo esta filosofia por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna jamais dispõem assim de tudo quanto querem DESCARTES 1973a p 51 Porém em suas demais obras como Meditações e parti cularmente em sua correspondência com a princesa do Palatino Isabel da Boêmia a quem prometeu e escreveu o Tratado das Paixões da Alma sua última obra publicada em 1649 poucos meses antes de sua morte encontraremos mais subsídios para a possível configuração de uma moral cartesiana Nessas suas últimas obras Descartes procura elaborar uma moral mais per feita retomando em novos contextos o que dissera na moral de provisão Veremos nesses seus escritos que Descartes no que concerne à questão da conduta moral correta fundamentase em algumas verdades que considera essenciais a existência de Deus o fenômeno da vontade ilimitada a limitação do entendi mento o recurso ao hábito razão e liberdade a unidade da alma a união da alma e do corpo e as paixões a virtude como soberano bem A existência de Deus Ele existe pois sua existência pode ser demonstrada Diz Descartes Entendo por Deus uma substância infinita eterna imutável independente puro conhecimento puro poder pelo qual eu próprio e tudo o que existe se é verdade que há algo existen 87 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo te foi criado e produzido Ora tais vantagens são tão grandes e admiráveis que quanto mais atentamente eu as considero mais me convenço de que a ideia de Deus não pode se originar unicamente de mim E consequentemente se faz necessário concluir que Deus existe pois embora a ideia de substância exista em mim uma vez que sou uma substância não teria en tretanto a ideia de uma substância infinita eu que sou um ser finito se tal ideia não tivesse sido colocada em mim por alguma substância que não fosse verdadeiramente infinita E não devo imaginar que tal concepção de infinito não seja uma verdadeira ideia mas somente resultado da negação do que é finito da mesma maneira que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz isso porque vejo claramente que existe mais realidade na substância infinita do que na substância finita e em consequência tenho em mim a noção de infinito e de Deus antes da noção de finito e de mim mesmo Pois como seria possível que eu pudesse saber que duvido e que desejo isto é que me falta algo e que não sou perfeito se não tivesse em mim a ideia de um ser mais perfeito do que o meu ser em comparação com o qual eu pudesse ter o conhecimento dos defeitos de minha natureza DESCARTES apud ROUXLANIER et al 1995 p 224 tradução nossa O fenômeno da vontade temos todos uma vontade ilimitada porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus E sobre o fenômeno da vontade Descartes conclui Não há senão a vontade que experimento em mim ser tão gran de que não concebo nenhuma outra mais ampla e mais ex tensa de maneira que é ela principalmente que me faz saber que trago em mim a imagem e a semelhança de Deus Pois ainda que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim seja em razão do conhecimento e do poder que nele se encontram unidos tornandoa mais firme e mais eficaz seja em razão do objeto uma vez que ela se refere e se estende a um número infinitamente maior de coisas ela não me parece en 88 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo tretanto maior se eu a considero formalmente e precisamente nela mesma Pois ela consiste tão somente no fato de que po demos fazer algo ou não isto é afirmar ou negar perseguir ou fugir ou antes apenas afirmar ou negar perseguir ou fugir das coisas que o entendimento nos propõe sem sentir que alguma força exterior nos obrigue DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A questão da vontade e do entendimento o erro Vimos no texto anteriormente citado que a vontade hu mana é concebida por Descartes como sendo análoga à vontade divina descartes afirma nesse texto a infinitude da vontade humana quando diz que embora a vontade divina seja incom paravelmente mais firme e mais eficaz do que a vontade huma na quando considerada em si mesma em sua forma a vontade divina não me parece maior isso significa que a nossa vontade é ilimitada como a vontade divina Mas e o entendimento Em sua terceira máxima como vimos Descartes afirma que o mundo é regido por leis imutáveis acima de nosso alcan ce Portanto nosso entendimento é limitado Desse confronto entre uma vontade ilimitada e um enten dimento limitado surgiria a possibilidade de errar Erramos não porque nossas ideias sejam falsas o erro não estaria na ideia ou na pura representação do objeto mas no julgamento pelo qual afirmamos ou negamos que o objeto seja isso ou aquilo E a vontade é justamente essa capacidade de afirmar ou negar algo Como a vontade é ilimitada e o entendimento limitado o ser humano é capaz de não apenas julgar sobre o que ele pode reconhecer com certeza mas também aceitar como válido um 89 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo conhecimento duvidoso podendo dessa maneira cair no erro O erro decorre de um ato de nossa vontade quando esta não é mantida nos limites do entendimento O poder de dizer sim ou não é infinito e nos permite pronunciar mesmo quando não temos clareza de entendimento Portanto o conhecimento deve sempre preceder à determinação da vontade se não quisermos errar No que concerne à conduta moral nem sempre há certezas ab solutas e sim apenas probabilidades Embora toda conduta correta e verdadeiramente livre con sista em se basear em conhecimentos claros e evidentes deve mos na ausência de maiores conhecimentos seguir as condutas mais equilibradas sensatas e de maior probabilidade de acerto porque nem sempre temos o tempo necessário para chegar a conhecimentos claros a respeito de uma situação É o que afirma o filósofo como vimos em sua primeira e segunda máximas há segundo descartes que ir alcançando gradualmente conhecimentos firmes sobre a correta natureza das coisas re construindo opiniões de acordo com esses conhecimentos por meio da vivência com os outros E como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conver sando com os homens do que prosseguindo por mais tempo encerrado no quarto aquecido onde me haviam ocorrido esses pensamentos recomecei a viajar quando o inverno ainda não acabara E em todos os nove anos seguintes não fiz outra coisa senão rolar pelo mundo daqui para ali procurando ser mais espectador do que ator em todas as comédias que nele se re presentam e efetuando particular reflexão em cada matéria sobre o que podia tornála suspeita e dar ocasião de nos equi vocarmos desenraizava entrementes do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem insinuado Não que 90 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo imitasse para tanto os céticos que duvidam apenas por du vidar e afetam ser sempre irresolutos pois ao contrário todo o meu intuito tendia tãosomente a me certificar e remover a terra movediça e a areia para encontrar a rocha ou a argila O que consegui muito bem pareceme tanto mais que pro curando descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava não por fracas conjeturas mas por raciocínios claros e seguros não me deparava com quaisquer tão duvidosa que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa quando mais não fosse a de que não continha nada de certo E como ao demolir uma velha casa reservamse comumente os escombros para servir à construção de outra nova assim ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas fazia diversas observações e adquiria muitas experiências que me serviram depois para estabelecer outras mais certas DES CARTES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A liberdade está fundada no conhecimento e não na vontade a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente não de pende da vontade pois esta é indiferente mas se funda em conhecimentos claros e evidentes A indiferença é o mais baixo grau de liberdade é a carên cia de conhecimento Se tivéssemos sempre um conhecimento claro daquilo que julgamos seríamos completamente livres A vontade é livre quando não há limite externo ou seja quando está sujeita a uma determinação interior ou quando se sente in clinada por um conhecimento certo e distinto ou ainda por uma graça divina Pois para que eu seja livre não é necessário que eu seja indi ferente a escolher um ou outro de dois contrários mas quanto mais tendo para um seja porque conheço de maneira evidente que nele se encontram o bem e o verdadeiro seja porque Deus assim dispõe o interior de meu pensamento mais livremente faço a escolha e a assumo E certamente a graça divina e o 91 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo conhecimento natural longe de diminuir minha liberdade a aumentam e a fortificam De maneira que esta indiferença que sinto quando não tendo nem para um lado nem para o outro por força de alguma razão é o grau mais baixo de liberdade assemelhandose mais a um defeito do conhecimento do que a uma perfeição da vontade pois se conheço sempre claramente o que é verdadeiro e o que é bom jamais teria dificuldade em deliberar qual julgamento e qual escolha deveria fazer e assim eu seria inteiramente livre sem jamais ser indiferente DESCAR TES in ROUXLANIER 1995 p 225 tradução nossa A Alma todo conhecimento se fundamenta na identidade una da alma a alma é uma substância pensante do latim res cogitans A substância da alma é o pensamento somos uma substância cuja essência e natureza consiste em pensar Deve ser atribuído a nossa alma tudo o que existe em nós e que não concebemos como passível de pertencer a um corpo como os pensamentos a alma é una não extensa indissolúvel e simples É o que diz Descartes na obra Regras para a orientação do espírito Regra 1 Os homens têm o hábito cada vez que descobrem uma seme lhança entre duas coisas de atribuir tanto a uma quanto à ou tra mesmo naquilo que as distingue o que reconheceram como sendo verdadeiro em uma delas Assim fazendo uma compara ção falsa entre ciências que se encontram inteiramente no co nhecimento que tem o espírito e as artes que requerem certo exercício e certa disposição do corpo e vendo por outro lado que todas as artes não poderiam ser aprendidas ao mesmo tem po pelo mesmo homem mas que aquele que cultiva uma única arte tornase mais facilmente um excelente artista porque as mesmas mãos não podem cultivar ao mesmo tempo os campos 92 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo e tocar citara ou cultivar várias artes diferentes tão facilmente quanto uma só acreditaram que o mesmo se passaria também com as ciências e as distinguiram umas das outras de acordo com a diversidade de seus objetos pensaram que se fazia necessário cultivar cada uma à parte sem se ocupar de todas as outras E nisto se enganaram Pois tendo em vista que todas as ciências não são outra coisa que sabedoria humana que permanece una e sempre a mesma por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplique e que não é modificada pela mudança de seus objetos mais do que a luz do sol o é pela variedade das coisas que ela ilumina não há necessidade de impor limites ao espírito o conhecimento de uma verdade não nos impede de descobrir outra como o exercício de uma arte nos impede de aprender outra arte mas pelo contrário nos ajuda DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 219220 tradução nossa A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo resultaria segundo Descartes de um ato de vontade de Deus e foge a uma compreensão clara e evidente Embora possamos conhecer separadamente a alma e o corpo da união entre eles só existem diz o filósofo ideias confusas Quando sentimos dor fome sede por exemplo não percebemos essa dor fome e sede pelo entendimento de fora para dentro mas via sentimentos que são modos de pensar con fusos porque procedem e dependem de uma interação de mo vimentos entre a alma e o corpo Diferentemente de Aristóteles Descartes concebe a alma e o corpo como duas substâncias de natureza diferente uma é não extensa a alma a outra é extensa o corpo Portanto a união da alma e do corpo que em Aristóteles era essencial passa a não ser essencial em Descartes São distintas pois de um lado tenho uma ideia clara de mim mesmo como uma coisa pensante 93 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo e não extensa e de outro tenho uma ideia também clara de que sou um corpo uma coisa extensa que não pensa Meu eu isto é minha alma pela qual eu sou o que sou é inteiramente distinta de meu corpo podendo existir sem ele Os pensamentos são atribuídos pelo filósofo à alma o mo vimento e o calor na medida em que não dependem do pensa mento são atribuídos ao corpo O corpo é concebido como uma máquina que obedece às leis da natureza Todos os movimentos que fazemos que não dependam de nossa vontade como andar respirar comer enfim todas as ações que são comuns a nós e aos animais dependem da conformação de nossos membros e do que chamou de espíritos animais entendendo por isso as partes mais sutis e voláteis do sangue os circuitos elétricos de hoje talvez seguindo para o cérebro via nervos e músculos tal como o movimento de um relógio movimento esse produzido exclusivamente pela força da mola do relógio e da forma de suas rodas A união da alma e do corpo é de tal maneira íntima que a ação de um é sempre referente ao outro porém não consiste em uma ação direta porque a alma e o corpo permanecem duas substâncias completas e opostas O corpo humano afeta do pelos eventos externos faz com que a alma sinta perceba Assim as percepções os conhecimentos em nós não são feitos pela alma são recebidos das coisas e representados pela alma por meio de suas ideias Descartes dá um exemplo que se tornou célebre Em Me ditações Meditação 2 diz Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser retirado da colmeia ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha continua a apresentar o odor das flores das quais foi recolhido sua cor sua figura seu tamanho são aparentes é 94 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo duro frio pode ser tocado e se nele batermos emitirá um som Enfim tudo que nos permite constatar a existência de um corpo nele se encontra Mas eis que enquanto falo aproximoo do fogo o que nele restava de sabor se exala o odor desaparece sua cor muda ele esquenta mal posso tocálo e embora nele bata não emi tirá mais nenhum som Tratase da mesma cera após essa mu dança É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de cera ninguém pode negar O que então neste pedaço de cera é conhecido como tal Certamente nada do que foi constatado pelos sentidos uma vez que tudo aquilo que veio pelo pala dar pelo olfato pela vista pelo tato ou pelo ouvido se encontra modificado e no entanto a cera permanece a mesma Talvez penso agora a cera não era nem essa doçura do mel nem esse agradável odor das flores nem essa brancura nem essa figura nem esse som mas somente um corpo que um pouco antes me era dado sob essas formas e que agora se apresenta sob outras formas Mas o que exatamente imagino quando a concebo dessa maneira Consideremos a cera atentamente afastando tudo o que não lhe pertence e vejamos o que resta O que é certo é que não resta senão algo extenso flexível e mutável Ora o que é isto flexível e mutável Não seria o fato de que imagino que esta cera sendo redonda pode vir a ser quadrada e passar de quadrada a uma figura triangular Não certamen te não seria isso pois a concebo capaz de receber uma infinida de de semelhantes mudanças mas não seria entretanto capaz de percorrer essa infinidade de mudanças com a minha imagi nação o que me faz concluir que essa concepção que tenho da cera não se dá por meio da faculdade de imaginar DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 223224 tradução nossa A afirmação da permanência da cera nas diferentes modifi cações percebidas não resultaria nem da imaginação pois somos incapazes de percorrer com a imaginação a infinidade de mudan ças passíveis de serem recebidas pela cera e nem da percepção uma vez que toda percepção é contemporânea do que percebe 95 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo cada modificação da cera é objeto de uma percepção e a todo instante ultrapassamos cada percepção de uma modificação afirmando a permanência da cera A afirmação da permanên cia da cera nas diferentes modificações recebidas resultaria das representações pela alma dessas modificações mediante uma ideia a de extensão Em outras palavras todo corpo é conhecido como corpo aquilo que permanece a despeito de modificações e variações por meio de uma ideia ou julgamento a ideia de extensão ideia essa de um sujeito conhecedor a alma Só a ideia de extensão torna possível a representação de um corpo como tal Em outras palavras o que temos é a representação de um corpo graças a uma ideia a ideia de extensão e esta como já foi dito é produto da alma Ações e paixões Quando a alma busca imaginar o que não existe ou conce be algo puramente inteligível estaríamos diante de ações ou seja de percepções dependentes principalmente da vontade As paixões diferentemente se situariam no domínio da união da alma e do corpo As paixões Os eventos externos causam na alma as paixões que são assim a mediação entre as duas substâncias corpo e alma res ponsáveis pela comunicação entre elas Paixões seriam portan to percepções sentimentos ou emoções que vêm à alma pelos nervos podem também vir segundo Descartes do movimento dos espíritos animais as que são vinculadas a objetos exterio 96 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo res se referem ao conhecimento das coisas exteriores que afe tam nossos sentidos fazendo com que a alma os sinta As que são vinculadas ao corpo como a fome a sede a dor etc senti mos em nossos próprios membros e não em corpos externos Há ainda um terceiro tipo de percepções sentimentos e emoções que vinculamos à própria alma como alegria tristeza cólera etc As paixões segundo Descartes são inseparáveis das ações que as provocam assim o seu estudo também é inseparável do estudo do corpo que é o agente dessas ações Descartes elege a glândula pineal situada entre os olhos como a sede da alma por ser a única parte do corpo conhecida na época que não seria dupla Os olhos são duplos os ouvidos são duplos mas o pensamento não é por isso a glândula pineal seria a sede do pensamento ou da alma Essa glândula é cercada de pequenas ramificações das carótidas as principais artérias do pescoço que trariam os espíritos animais ao cérebro O poder da vontade ilimitado quanto à própria capacidade de querer não seria ilimitado com relação ao corpo e às percepções da alma porque a natureza estabelece uma ligação entre cada vontade e o movimento da glândula com base na conservação da união não no arbítrio Um exemplo é o fato de que se quisermos ver algo de perto haverá uma redução da pupila porém se simplesmente quisermos reduzila só por querer a redução não se dará As seis paixões primitivas Descartes na segunda parte de seu Tratado das Paixões da Alma enumera segundo o efeito dos objetos em nós seis 97 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo paixões que considera como primitivas admiração amor ódio alegria e tristeza A admiração constituise de uma súbita surpresa da alma É causada pela impressão que se tem no cérebro representando o objeto como raro e extraordinário Ocorre antes de sabermos se o objeto é conveniente ou não É a primeira paixão pois sem uma admiração inicial isto é sem um contemplar com surpresa e como ção não seria possível surgirem paixões A admiração é positiva quando nos leva à aquisição de conhecimento pode porém ser nociva quando em excesso como o espanto no espanto percebemos apenas a primeira face apresentada pelo objeto o que nos impede de ad quirir conhecimentos mais profundos Por essa razão seria aconselhável segundo Descartes nos exercitar na consideração das coisas que nos parecem estranhas O amor e o ódio tais paixões envolveriam o unirse ou separarse voluntariamente no amor unimonos ao que amamos como um todo do qual seríamos uma parte e a coisa amada seria a outra parte No ódio dá se o contrário nos consideramos um todo totalmente separado da coisa que repudiamos Desejo essa paixão se manifesta quando desejamos que se apresentem em nosso futuro aquilo que nos é conveniente e que não o temos como aquilo que nos é conveniente e temos no presente Além disso essa pai xão também se manifesta quando desejamos que um mal atualmente existente não venha a continuar como algum mal eventual que possa vir a ocorrer no futuro 98 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A alegria e a tristeza a alegria é o gozo do bem pre sente a tristeza é o sentimento de algo incômodo que buscamos repelir Todas essas paixões servem segundo Descartes à conser vação e ao aperfeiçoamento do corpo A alma só é advertida das coisas que a prejudicam pelo sentimento da dor que inicialmen te a entristece em seguida a faz odiar e finalmente levaa a desejar se livrar daquele mal repelindo o que a pode destruir Assim para Descartes todas as paixões são boas em si mesmas No entanto é preciso e é possível regulamentálas para não pervertêlas Como foram instituídas pela natureza fazse necessário conhecer as leis dessa instituição para poder agir so bre elas Busca portanto explorar racionalmente este obscuro campo da união que são as paixões As paixões e a vida moral Segundo Descartes a vida moral se situa na união da alma e do corpo pois é por causa dessa união que a avaliação do que é ou não bom é perturbada pelas paixões As paixões são moral mente relevantes porque influenciam nossas ações por meio do desejo pelo qual regulam nossos costumes A função da moral seria regrar e controlar o desejo Portanto a moral cartesiana se fundamenta no melhor conhecimento possível e no correto manejo das paixões ou controle do desejo As paixões dispõem a alma a querer as coisas para as quais preparam o corpo A vida moral colocará em questão certas ações assim corroboradas pelas paixões exigindo um redirecio namento destas pela razão E para tanto é preciso distinguir as coisas que dependem inteiramente de nós daquelas que não de 99 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo pendem Portanto segundo o filósofo é preciso rejeitar a afir mação comum de que existe fora de nós uma espécie de sorte que faz com que as coisas venham ou não a nós a seu bel prazer Tudo é conduzido pela providência divina e nada acontece que não seja necessário Desejar que acontecesse de outra forma é cometer um erro É necessário pois limitar o campo do possível regulando o desejo pelo conhecimento verdadeiro não do bem em geral mas do bem que depende de nós É o que vimos em essência na terceira máxima da moral provisória Ainda segundo Descartes a alma pode dominar as paixões menores desviando o corpo para outros objetos Nas paixões muito violentas não há como superálas porém podese sus pender os movimentos a que elas dispõem o corpo por exem plo não consigo deixar de sentir medo mas posso conterme e não correr o conceito de virtude Por virtude entende o filósofo o hábito da alma que a orienta para determinados pensamentos pensamentos esses gerados pela alma e muitas vezes fortalecidos por movimentos dos espíritos o que faz com que sejam ao mesmo tempo vir tudes e paixões Tratase da firme resolução de não nos des viarmos pelo desejo em direção ao que não depende de nós As almas fortes são virtuosas têm poder sobre as paixões com armas próprias ou seja com juízos firmes e determinados sobre o conhecimento do bem e do mal à luz dos quais decidiu conduzir suas ações A ação moral para Descartes não deve estar fundada ape nas no conhecimento possível mas também no correto con 100 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo trole das paixões pois são elas que pelo desejo comandam a passagem do pensamento à ação e esse comando quando vol tado para o possível dandose à luz do livrearbítrio é a própria virtude operando por meio da generosidade Na terceira parte do Tratado sobre as Paixões da Alma Descartes apresenta as paixões derivadas das primitivas Dentre essas paixões destacase a da generosidade Virtude e hábito a generosidade A generosidade é o hábito que leva a alma a pensar no sentido e na grandiosidade do livrearbítrio gerando a firme re solução de usálo corretamente O homem cartesiano é o homem generoso que valoriza a sua liberdade que soube descobrir em si o poder de duvidar que assume a responsabilidade pelos seus erros que sabe agir diante da obscuridade da vida ROUXLANIER 1995 p 218 Podemos desenvolver segundo Descartes as virtudes Se riam as próprias paixões segundo o filósofo que indicariam de si mesmas a maneira segundo a qual podemos agir sobre elas Diz ele Nossas paixões não podem ser provocadas nem eliminadas por nossa vontade mas podem ser indiretamente pela repre sentação das coisas que habitualmente costumam se associar às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que remos rejeitar DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 228 tra dução nossa Assim embora não possamos combater diretamente as paixões é possível fazêlo indiretamente criando hábitos basea dos nas ideias contrárias a determinadas paixões Poderíamos 101 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo por exemplo desenvolver a generosidade buscando o que ha bitualmente costuma representála como a sabedoria de que todo louvor ou recriminação se refere unicamente ao uso que fazemos do bem e do mal e o fato de sentindonos capazes de ações virtuosas acreditarmos que assim como nós todos os ou tros também são capazes pois isso não depende de circunstân cias alheias mas somente da boa vontade É o que diz Descartes Assim creio que a verdadeira generosidade que faz com que um homem se estime no mais alto grau possível de se estimar de maneira legítima consiste simplesmente em parte no fato de saber que nada verdadeiramente lhe pertence a não ser essa livre disposição de suas vontades que não existe outra razão para ser louvado ou recriminado a não ser pelo uso que faz do bem ou do mal e em parte no fato de sentir em si mesmo um poder de decisão firme e constante de fazer bom uso de suas capacidades isto é de nunca falhar na vontade de empreender e executar todas as coisas que julgar serem as melhores isto é seguir perfeitamente a virtude Aqueles que têm esse conhecimento e sentimento de si mes mos são facilmente convencidos de que todos os outros ho mens os têm igualmente porque não há nada em tal situação que dependa do outro É por isso que jamais desprezam al guém e que embora vejam frequentemente os outros come terem erros que revelam a sua fraqueza tendem entretanto a desculpálos em vez de recriminálos e a acreditar que é mais por desconhecimento do que por falta de vontade que cometem tais faltas e como não pensam serem inferiores aos que possuem mais bens ou honras ou têm mais espírito mais saber mais beleza ou os superam em algumas outras perfei ções não se consideram da mesma maneira superiores aos que ultrapassam porque todas essas coisas lhes parecem de pouco valor em comparação com o fato de se ter boa vontade única qualidade que possui para eles valor qualidade que su põem também existir ou pelo menos poder existir em todos os homens DESCARTES in ROUXLANIER 1995 p 228 tradução nossa 102 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Considerações finais Dentro da orientação básica do presente estudo distin guindo essencialmente o ético do moral gostaríamos de en fatizar nestas considerações finais as dificuldades do filósofo francês em abarcar a questão da consciência moral em sua tota lidade mediante o método por ele proposto De fato encontramos em Descartes os pilares da consti tuição do que entendemos por moral são estes pilares a no ção de uma razão generalizante cuja meta é o individual e o geral as máximas os hábitos ou costumes e a noção de bom senso Inspirado segundo alguns sobretudo em Aristóteles concebe a criação do hábito como vimos como uma das realidades funda mentais no que concerne à conduta moral Porém embora configurando uma moral racional não chega Descartes a uma moral científica Começa por distinguir pensamento da ação podemos pensar de uma maneira e agir de outra É na ação porém que residiria a dimensão moral da conduta Em contrapartida podemos ser virtuosos mesmo não possuindo um conhecimento claro e distinto pois os juízos mo rais podem não ser absolutamente certos embora devam ser os melhores possíveis A virtude base de toda conduta moral consistiria no esforço para compreender o melhor possível e de acordo com isso agir o melhor possível Reconhece portanto Descartes as dificuldades em esta belecer uma moral definitiva fundada na verdade e na ciência As decisões morais segundo ele estão baseadas em ideias con fusas uma vez que a união da alma e do corpo foge às nossas possibilidades de conhecimento O conhecimento da consciên cia moral é obscuro embora acredite o filósofo que seja possí 103 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo vel melhorar esse conhecimento gradualmente estimulando o entendimento Trabalharemos a seguir o cartesiano Spinoza que irá to mar diante das dificuldades presentes no pensamento de Des cartes sobretudo no que diz respeito ao problema da consciência moral uma direção totalmente nova optando por considerála em sua dimensão eminentemente ética Veremos com Spinoza que embora tudo pareça indicar não ser possível a construção de uma moral baseada em um co nhecimento exato como é o conhecimento científico pode ser possível pensar a consciência moral em sua dimensão ética via um saber rigoroso que é o saber compreensivo rigoroso por que busca considerar todas as nuances possíveis constituintes do objeto trabalhado na sua singularidade 6 Baruch sPinoZa 16321677 Consta que Spinoza como pessoa era gentil apaixonado pelo conhecimento e pela cultura e cultivador de amizades Sa bese que foi perseguido e expulso da comunidade judaica prin cipalmente por criticar o conceito judaico de Deus Dominava várias línguas inclusive o português idioma fa lado correntemente nas ruas de Amsterdam na época onde ha via uma grande comunidade judaica de origem portuguesa Grande conhecedor do Velho Testamento publicou em vida duas obras Os princípios da filosofia de Descartes em 1663 e Tractatus TheologicoPoliticus em 1670 obra que proje tou Spinoza fora de seu país 104 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A obra Ética de Spinoza da qual trataremos neste estudo foi escrita por Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg perto de Leyde cidade situada na Holanda do Sul onde possuía mui tos amigos Foi editada após a sua morte Sobre ela encontra mos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em 1665 para Guillaume de Blyenberg Entendo por um homem justo aquele que deseja constante mente que cada um possua o que lhe é devido e demonstro em minha Ética não ainda editada que esse desejo nos homens piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus SPINO zA 1965 prefácio tradução nossa A escolha da Geometria como linguagem O discurso de Spinoza ao desenvolver sua concepção de Ética é o da Geometria A linguagem geométrica é a linguagem do imaginário o imaginário é um dado da reflexão como se pode dizer da Filosofia da Matemática Foi trabalhado por Gauss que demonstrou sua importância na fundamentação da Geometria Na linguagem do imaginário a atenção e o interesse se concentram não mais na diversidade do efetivamente dado mas na maneira segundo a qual os elementos procedem uns dos ou tros ou se relacionam uns com os outros Tal linguagem não se fecha nas limitações da representação mas fixase na dedução dos princípios que regem o encadeamento das condições orde nadoras do que é percebido de maneira que os juízos e enuncia dos que decorrem desse processo de dedução constituem pro jeções em estado puro das relações nas quais se funda o que é observado 105 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Spinoza constrói seu discurso sob o modelo da Geome tria mediante proposições seguidas rigorosamente das respec tivas demonstrações explicações axiomas etc Deduz assim fundamentando a existência de Deus como substância única e singular a beatitude como terceiro gênero de conhecimento o conhecimento libertador a alma o corpo o segundo gênero de conhecimento que se dá pelas ideias comuns o primeiro gênero de conhecimento constituído de ideias abstratas e da imaginação Ética e razão intuitiva Se quiséssemos sintetizar em um único princípio o pensa mento de Spinoza sobre a questão da Ética talvez pudéssemos fazêlo repetindo suas próprias palavras o esforço para com preender é a primeira e única base da virtude O que é compreender segundo Spinoza Compreender é chegar ao conhecimento libertador me diante uma razão intuitiva É o que denomina de beatitude e classifica como o terceiro gênero de conhecimento Consiste es sencialmente em uma visão de toda existência como inseparável da substância infinita e eterna Deus Em outras palavras a bea titude é um perceber a si mesmo a tudo e a todos como parte integrante e necessária da natureza de deus essa percepção intuitiva de que somos partes integrantes dessa substância única e singular que é Deus é a compreensão de que fazemos parte da essência de Deus e como tal somos uma extensão da potência divina 106 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Deus é uma substância singular e única A substância segundo Spinoza não possui causa fora de si é uma causa não causada ou seja uma causa em si A substância é em si e é concebida por si cujo conceito não é formado por outro conceito Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido isto é aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado SPI NOzA 2008 p 13 A substância portanto é singular a ponto de não poder ser concebida por outra coisa que não ela mesma Como não pode ser produzida por outra substância não existe nada que a limite sendo ela portanto infinita Tratase de uma substância cuja essência é existir pois se pudesse não existir haveria uma divisão e seria então limitada por outra Essa substância única e absolutamente infinita é Deus ou a Natureza não há pois criação mas produção imanente de uma única substância Deus ou a Natureza Em outras palavras não existe a obra de um Deus transcendente separado do mundo A beatitude ou compreensão libertadora essa compreensão intuitiva que é a Beatitude não é uma experiência mística O estado de beatitude é conseguido por meio de um esforço árduo contínuo e dedicado ao exercício de uma captação pela razão intuitiva por meio da qual vamos além da percepção limitada da unidade dos sentidos e das imagens para nos perceber universais Para Spinoza o mundo de Deus ou da Natureza é essen cialmente um mundo de rigor matemático Vejamos na quinta 107 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo parte da Ética o discurso de Spinoza sobre a beatitude inspirado nos princípios do discurso da Geometria Proposição 42 A beatitude não é o prêmio da virtude mas a própria virtude e não a desfrutamos porque refreamos os ape tites lúbricos mas em vez disso podemos refrear os apetites lúbricos porque a desfrutamos Demonstração A beatitude consiste no amor para com Deus pela prop 36 juntamente com seu esc o qual provém cer tamente do terceiro gênero de conhecimento pelo corol da prop 32 Por isso esse amor pelas prop 56 e 3 da p 3 deve estar referido à mente à medida que esta age e portanto pela def 8 da p 4 ele é a própria virtude Era este o primeiro pon to Por outro lado quanto mais a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude tanto mais compreende pela prop 32 isto é pelo corol da prop 3 tanto maior é o seu poder de refrear os afetos e pela prop 38 tanto menos ela padece dos afetos que são maus Assim porque a mente desfruta desse amor divino ou dessa beatitude ela tem o poder de refrear os apetites lúbricos E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusivamente no intelecto ninguém desfruta pois dessa beatitude porque refreou os afetos mas em vez disso o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da beatitude C Q D Escólio Tornase com isso evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é superior ao ignorante que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico Pois o ignorante além de ser agitado de muitas maneiras pelas causas exteriores e de nunca gozar da verdadeira satisfação de ânimo vive ainda quase inconsciente de si mesmo de Deus e das coisas e tão logo deixa de padecer deixa também de ser Por outro lado o sábio enquanto con siderado como tal dificilmente tem o ânimo perturbado Em vez disso consciente de si mesmo de Deus e das coisas em virtude de uma certa necessidade eterna nunca deixa de ser mas desfruta sempre da verdadeira satisfação do ânimo Se o caminho conforme já demonstrei que conduz a isso parece muito árduo ele pode entretanto ser encontrado E deve ser 108 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo certamente árduo aquilo que tão raramente se encontra Pois se a salvação estivesse à disposição e pudesse ser encontrada sem maior esforço como explicar que ela seja negligenciada por quase todos Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro SPINOzA 2008 p 411 Escólio anotação em geral breve com a finalidade de explicar esclarecer Essa busca das diferentes direções do tema considerado no caso a beatitude consiste essencialmente em um processo rigoroso de produção de novas possibilidades Ao exercer esse terceiro gênero de conhecimento o homem constituise a si mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi mento de todas as coisas existentes à maneira de Deus ou da Natureza e só nessa condição é livre A alma e o corpo Continuando seu discurso dedutivo diz Spinoza não so frendo o conceito de substância em princípio nenhuma limi tação compreende uma infinidade de atributos dos quais cada um não podendo ser limitado senão por ele mesmo é infinito em seu gênero o atributo é aquilo que da substância o intelec to percebe como constituindo a sua essência sPinoZa 2008 p 23 O entendimento percebe assim a substância como ela é na realidade Ética Primeira Parte Proposição 10 Demonstra ção Desses atributos nosso entendimento segundo Spinoza só pode conhecer o pensamento e a extensão Em contrapartida da mesma maneira que as propriedades do triângulo decorrem geometricamente de sua essência dos 109 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo atributos da substância divina decorre uma infinidade de mo dos que são segundo spinoza modificações ou afecções da substância que se apresentam no real Por modo compreendo as afecções de uma substância ou seja aquilo que existe em outra coisa por meio da qual é também concebido SPINOzA 2008 p 13 essas modificações da substância ou modos são classifi cadas por Spinoza em cinco categorias 1 Os modos infinitos imediatos do pensamento que é todo o entendimento absolutamente infinito o pró prio intelecto de Deus 2 Os modos infinitos da extensão que são as leis univer sais imutáveis 3 Os modos infinitos mediatos que são a essência do mundo físico 4 Os modos finitos do pensamento que são as ideias mentes almas 5 Os modos finitos da extensão que são todo o universo material corpos movimento repouso a alma humana e o corpo humano são pois dois modos de Deus dois efeitos da substância única e infinita que é Deus A alma se refere ao atributo pensamento o corpo ao atributo extensão Não podemos formar a ideia da alma humana senão nos referindo ao atributo do pensamento e a ideia do corpo humano senão nos referindo ao atributo da extensão Por isso embora substanciais porque se referem a atributos da substância alma e corpo não são duas substâncias distintas contrariando aqui Descartes 110 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo A união da alma e do corpo A união da alma e do corpo não consistiria nem em uma mistura nem em uma ação recíproca de um sobre o outro Di ferentemente do que afirma Descartes Spinoza nega que possa haver alguma forma de controle da mente sobre o corpo Mente e corpo não podem ser concebidos e nem existem um sem o outro Ética Parte 3 Proposição 2 Escólio Isso porque um é a manifes tação mesma do outro nada afeta o corpo que a mente não capte Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta questão creio entretanto que a menos que se dê desta verdade uma confirmação experimental os homens dificilmente serão leva dos a examinar esse ponto com um espírito de isenção de tal ma neira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe ora cessa de se mover por um simples comando da Alma e que realiza um grande número de atos que dependem unicamente da vontade da alma e de sua arte de pensar Ninguém é verdade determinou até o pre sente momento o que pode o Corpo isto é a experiência não en sinou a ninguém até o momento o que unicamente pelas leis da Natureza considerada enquanto corporal o Corpo pode fazer e o que não pode fazer a não ser determinado pela Alma Ninguém de fato conhece tão exatamente a estrutura do Corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções para não falar do que se observa inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacidade humana e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o sono que não ousariam fazer quando acordados e isso mostra sufi cientemente que o Corpo pode só pelas leis de sua natureza fazer muitas coisas que causam surpresa à sua Alma Ninguém sabe por outro lado em qual condição ou por quais meios a Alma move o Corpo nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com qual rapidez ela pode movêlo De onde se conclui que quando os homens dizem que tal ou tal ação do Corpo vem da Alma a qual tem um domínio sobre o Corpo não sabem o que dizem e não fazem mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorância da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 137138 tradução nossa 111 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo É preciso para compreender a união da alma e do corpo con siderar a unicidade da potência divina exprimindose por meio de cada um de seus atributos A potência divina implica de um lado uma perfeita identidade entre a ordem e a conexão das coisas e de outro a ordem e a conexão das ideias A alma não é assim mais do que a ideia do corpo o corpo nada mais é do que o objeto da alma é o que se chama paralelismo da alma e do corpo Enquanto ideia do corpo existindo no tempo e no espaço a alma é pela sua existência uma parte perecível do entendimen to de Deus enquanto ideia da essência eterna desse corpo ela é por sua essência uma parte eterna do entendimento de Deus A parte perecível da alma é constituída por sua imaginação e per cepção do que sofre o corpo humano em seus encontros com outros corpos humanos A parte eterna da alma é constituída pelo seu entendimento lugar do conhecimento verdadeiro No que concerne ao corpo segundo Spinoza ele se indivi dualizaria não em função de uma substância particular mas por meio do tempo e da mudança devido ao movimento e ao repou so à velocidade e à lentidão Em outras palavras como identida de individual o corpo resultaria de um processo de manutenção de suas partes em uma determinada proporção de movimento e repouso proporção essa que o corpo humano conseguiria man ter ao passar por uma série de modificações afecções e afetos impostas pelo movimento e repouso de outros corpos Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra Ética Spinoza apresenta os seguintes postulados sobre o corpo I O Corpo humano é composto de um grande número de in divíduos de natureza diversa e cada indivíduo é também composto 112 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo II Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns são fluidos alguns são moles alguns enfim são duros III Os indivíduos que compõem o Corpo humano são afetados e consequentemente o Corpo humano é ele próprio afetado de inúmeras maneiras diferentes advindas de corpos exteriores IV O Corpo humano tem necessidade para se conservar de um grande número de outros corpos por meio dos quais ele é con tinuamente conservado V Quando uma parte fluida do Corpo humano é afetada por um corpo exterior de maneira a tocar frequentemente uma parte mole ela muda a superfície desta e imprime nela por assim dizer certos vestígios do corpo exterior que a afeta VI O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os corpos exteriores de inúmeras formas SPINOzA 1965 p 91 tradução nossa Uma ética da alegria Alegria e tristeza são afecções ou afetos A alegria é o afe to que aumenta a capacidade do corpo de manter a sua potên cia de agir e pensar e quando associada a uma causa exterior transformase em amor a tristeza ao contrário é sempre des trutiva e quando associada a uma causa exterior transformase em ódio Por essa razão a ética de spinoza é denominada de ética da alegria Os indivíduos se esforçam para ter alegria buscando man ter sua existência tanto quanto possível Esse esforço é denomi nado por spinoza de desejo ou conatus palavra do latim que significa esforço ou determinação para sobreviver 113 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O segundo gênero de conhecimento as noções comuns ou ideias adequadas Dentro desse contexto de pensamento sobre Deus a alma e o corpo Spinoza classifica como segundo gênero de conheci mento as noções comuns ou ideias adequadas Aqui se inicia o exercício da razão enquanto conhecimento do que está fora de nós daquilo que existe Dessa maneira devemos compreender nossos afetos e os dos demais seres humanos por meio de noções comuns obtidas pela razão Para tanto fazse necessário de acordo com Spinoza viver em um meio humano buscando o útil em comum Nada mais útil ao homem do que o homem os homens digo não podem desejar nada de maior valor para a conservação de seu ser do que concordarem todos sobre todas as coisas de ma neira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só Alma e um só Corpo nada de maior valor do que se esforçarem todos em conjunto para conservar seu ser e procurar tudo o que lhes é útil em comum do que se conclui que os homens que são governados pela Razão isto é aqueles que procuram o que lhes é útil conduzindose pela Razão não desejam para eles mesmos nada que não desejem também para os outros homens e são justos de boa fé e honestos Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a conhecer aqui em poucas palavras antes de começar a de monstrálos em ordem de maneira mais prolixa e o meu moti vo para fazêlo foi o de chamar se possível a atenção daqueles que creem que este princípio cada um deve procurar o que lhe é útil é a origem da imoralidade não da virtude e da morali dade Depois de ter mostrado brevemente que é exatamente o contrário continuo demonstrandoo com os mesmos argu mentos apresentados até aqui em nosso caminhar SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 259 tradução nossa 114 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Spinoza em seu Tratado Político dá como exemplo desse segundo gênero de conhecimento pelas ideias comuns conquis tadas pela razão o poder da cidade o poder da cidade vem do fato de que nela os homens têm desejos comuns e ela só conserva esse poder na medida em que consegue unir os dese jos dos homens A dimensão social da cidade oferece às paixões individuais um lugar de coexistência em que os homens podem evitar os efeitos negativos da tristeza e do ódio Como no estado natural cada um é seu próprio mestre en quanto não sofrer a opressão de outro e no qual sozinho se esforça para se proteger de todos enquanto o direito natural humano for determinado pelo poder de cada um este direito na realidade será inexistente ou pelo menos não terá senão uma existência puramente teórica pois não se tem nenhum meio seguro de conserválo É certo também que cada um tem menos poder e consequentemente menos direito na medida em que tiver mais razões de temer Acrescentemos que sem auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar sua alma Chegamos pois a esta conclusão o direito natural no que concerne propriamente ao gênero humano dificilmente pode ser concebido a não ser quando os homens têm direitos comuns terras que podem habitar e cultivar juntos quando po dem velar pela manutenção de seu poder protegerse repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a todos Quanto maior for o número dos que assim se reunirem mais direito terão em comum SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 260 tradução nossa E um pouco mais adiante naquela mesma obra Conhecese facilmente qual é a condição de qualquer Estado considerando o fim em vista do qual um estado civil é fundado esse fim não é outro senão a paz e a segurança da vida Conse quentemente o melhor governo é aquele sob o qual os homens passam sua vida na concórdia e cujas leis são observadas sem violação É certo de fato que as revoltas as guerras e o despre zo ou transgressões das leis são imputáveis não tanto à malícia 115 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo das pessoas mas a um vício do regime instituído Os homens de fato não nascem cidadãos mas tornamse As afecções naturais que se encontram são além disso as mesmas em todo país se pois uma malícia maior reina em uma cidade e se ali se cometem pecados em maior número do que em outras isso provém do fato de ela não ter obtido concórdia suficiente de suas institui ções não serem suficientemente prudentes e de não ter conse quentemente estabelecido em absoluto um direito civil Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o império do terror devese dizer não que ali a paz não reina mas que ali a guerra não reina A paz efetivamente não é a ausên cia de guerra é uma virtude que tem sua origem na força pois a obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que de acordo com o direito comum da Cidade deve ser feito Uma ci dade é preciso ainda dizer onde a paz é um efeito da inércia de sujeitos conduzidos como um rebanho e educados unicamente para servir merece o nome de deserto em vez de cidade Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os ho mens vivem na concórdia entendo que eles vivem uma vida propriamente humana uma vida que não se define pela circu lação do sangue e pela realização das outras funções comuns a todos os outros animais mas que se define principalmente pela razão pela virtude da alma e pela vida verdadeira SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 261 tradução nossa Segundo Spinoza quanto mais a alma conhece à maneira do terceiro gênero de conhecimento beatitude e desse segun do gênero de conhecimento noções comuns e adequadas mais ela segue unicamente a necessidade de sua natureza O primeiro gênero de conhecimento as ideias gerais e a ima ginação não nos permitem chegar ao conhecimento libertador Os homens observa o filósofo partem das percepções sensíveis e incapazes de considerálas isoladamente por não en 116 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo tenderem que as coisas se produzem de si mesmas imanência divina formam ideias gerais daquilo que se repete frequen temente Baseados na mesma ignorância da natureza divina os homens exercem a imaginação que consiste em estabelecer uma distância entre o ser e o dever ser desconhecendo que não há nenhum dever ser que possa ser aplicado ao plano do ser pois esse é o plano repetimos da imanência divina Constituem ambas as ideias gerais e a imaginação o que Spinoza denomina de conhecimento inadequado Uma das con sequências desse conhecimento inadequado seriam as paixões ao entendermos inadequadamente nossas afecções ou afetos estes se transformam em paixões a paixão é desapropriação de si ou seja alienação isso acontece segundo spinoza por não compreendermos o desejo como sendo o efeito em nós do poder eterno e infinito de Deus acreditando tratarse de uma ca rência Daí a absorção do espírito na busca do prazer da riqueza e da honra para suprir essa carência enganosa As ocorrências mais frequentes na vida aquelas que os homens como transparecem em todas as suas obras tomam como sen do o soberano bem se referem de fato a três objetos riqueza honra prazer dos sentidos Ora cada um destes distrai o espírito de todo pensamento relativo a um outro bem no prazer a alma é suspensa como se ela tivesse encontrado um bem no qual pu desse descansar ela se encontra no mais alto ponto impedida de pensar em um outro bem após o prazer por outro lado vem uma extrema tristeza que se não suspende o pensamento o per turba e o enfraquece A busca da honra e da riqueza não absor ve menos o espírito a da riqueza sobretudo quando é buscada por si mesma pois que lhe é dado um grau de soberano bem quanto à honra absorve o espírito de uma maneira ainda bem mais exclusiva porque nunca se deixa de considerála uma coisa boa em si mesma e como um fim último em direção ao qual vão todas as ações Além disso a honra e a riqueza não são seguidas de arrependimento como o prazer ao contrário quanto mais se 117 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo possui seja uma seja outra mais a satisfação que se experimenta é maior daí a consequência de se sentir cada vez mais levado a aumentálas mas se em alguma ocasião nos enganamos em nossa esperança então surge uma tristeza extrema A honra en fim é ainda um grande impedimento pelo fato de que para atin gila é necessário dirigir a própria vida de acordo com a maneira de ver dos homens isto é fugir do que comumente eles fogem e buscar o que eles buscam A servidão passional nasce assim da ignorância e a alimenta dividindo o mundo em coisas boas e coisas más acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm Tratase de um pseudoconhecimento das causas finais o que leva à superstição religiosa com a ideia de um deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal em fun ção do culto que lhe rendemos SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 251 tradução nossa Consequências do conhecimento inadequado O preconceito natural ou crença nas causas finais é o princípio de todos os nossos erros diz Spinoza Se tudo o que existe é emanação de uma substância única e ilimitada Deus como causa imanente da natureza identificando se nesse sentido com ela estando totalmente nela presente não depende a natureza da afirmação ou negação de nenhuma vontade outra de nenhum princípio transcendente para ser o que ela é sua substancialidade não há pois vontade entendida como o poder de afir mar ou negar o que é verdadeiro ou o que é falso assim como não há finalidade ou causas finais uma vez que não há uma essência imóvel e transcendente em vista da qual foram as coisas criadas 118 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo É suficiente no momento colocar em princípio o que todos de vem reconhecer que todos os homens nascem sem nenhum conhecimento das causas das coisas e que todos são levados a buscar o que lhes é útil e do qual têm consciência Daí se segue que 1 os homens se imaginam livres porque têm consciência de seus desejos e do que lhes apetece e não pensam nem em sonho sobre as causas que os levam a desejar e a querer não tendo sobre isso nenhum conhecimento Daí se segue 2 que os homens agem sempre em vista de um fim saber o útil que os apetece Disso resulta que se esforçam sempre unicamente no sentido de conhecer as causas finais das coisas realizadas e descansam quando são informados sobre elas não existindo para eles mais nenhuma razão de se inquietar Como por outro lado encontram em si mesmos e fora de si mesmos um grande número de meios que contribuem grandemente para atingir o útil assim por exemplo os olhos para ver os dentes para mastigar as ervas e os animais para a alimentação o sol para clarear o mar para alimentar os peixes passam a conside rar todas essas coisas como sendo meios para seu uso Sabendo ter encontrado esses meios mas não os tendo procurado con cluem que alguém os providenciou para o seu uso Não podem de fato após considerar as coisas como meios acreditar que elas se produzem de si mesmas mas tirando sua conclusão dos meios que costumam utilizar se persuadem de que existem um ou mais condutores da natureza dotados da liberdade huma na que suprem a todos as suas necessidades fazendo tudo para sua utilização SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 255 tra dução nossa Ao ignorar assim as razões ou causas das coisas passa mos a ter do mundo uma visão fundada em milagres crença em deuses que conduzem a natureza para satisfazer nossos desejos crença de que as coisas naturais foram criadas tendo em vista o homem Como a experiência não valida tais crenças os homens são levados às superstições buscando adivinhos para interpretar os fenômenos 119 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Por sua vez essa servidão a causas finais favorece as paixões tristes o ódio da vida a amargura com relação a tudo o que é levando os homens a confrontar o real com um ideal ilusório proíbe amar o que é e conhecêlo na alegria Acreditando na realidade do mal lastimam sua sorte pensam que a perfeição não é deste mundo e que a verdadeira vida está em outro lugar Essa extensão da tristeza multiplica as ocasiões de ódio entre os homens os ódios os mais terríveis como os que inspiram as diferentes superstições religiosas SPI NOzA in ROUXLANIER 1995 p 251 tradução nossa Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens Só Deus é livre Outra consequência do conhecimento inadequado seria a crença no livre arbítrio Vejamos o que diz Spinoza Chamo livre no que me concerne algo que é e age unicamente segundo a necessidade da natureza coagido é aquele que é deter minado por outro a existir e a agir de certa maneira determinada Deus por exemplo existe livremente ainda que necessariamente porque existe unicamente em função da necessidade de sua na tureza Também Deus conhece a si mesmo e todas as coisas livre mente porque decorre de sua própria natureza de Deus conhecer todas as coisas Veja bem não concebo a liberdade consistindo em um livre decreto mas em uma necessidade livre Mas desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a existir e a agir de certa maneira definida Para tornar isso claro e inteligível concebamos algo muito simples uma pedra por exem plo recebe certa quantidade de movimento de uma causa exterior que a move e cessando o impulso da causa exterior ela continuará a se mover necessariamente Essa persistência da pedra em seu movimento é uma coerção não por necessidade mas se define como um impulso de uma causa exterior E o que é verdadeiro com relação à pedra deve sêlo no que se refere a toda coisa singular qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir não 120 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo importando quão numerosas forem suas aptidões porque toda coisa singular é necessariamente determinada a existir e a agir de certa maneira determinada por uma causa exterior Concebamos agora que a pedra enquanto continua a se mover pensa e sabe que ela faz esforço tanto quanto pode para se mover Essa pedra seguramente pois que ela tem somente consciência de seu esforço e que ela não é de maneira alguma indiferente acredita rá que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque não quer Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que consiste unicamente no fato de que os homens têm consciência de seus apetites e ignoram as causas que os determi nam SPINOzA in ROUXLANIER 1995 p 261 tradução nossa Segundo Spinoza tanto a decisão da mente quanto o ape tite e a determinação do corpo são uma só e mesma coisa as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites Ética Parte 3 Proposição 2 Escólio Um homem embriagado também acredita que é pela livre de cisão de sua mente que fala aquilo sobre o qual mais tarde já sóbrio preferiria terse calado Igualmente o homem que diz loucuras a mulher que fala demais a criança e muitos outros do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por uma livre decisão da mente quando na verdade não são capazes de conter o impulso que os leva a falar Assim a própria ex periência ensina não menos claramente que a razão que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações mas desconhecem as causas pelas quais são determina dos Ensina também que as decisões da mente nada mais são do que os próprios apetites elas variam portanto de acordo com a variável disposição do corpo Assim cada um regula tudo de acordo com o seu próprio afeto e além disso aqueles que são afligidos por afetos opostos não sabem o que querem en quanto aqueles que não têm nenhum afeto são pelo menor impulso arrastados de um lado para outro Sem dúvida tudo isso mostra claramente que tanto a decisão da mente quanto o apetite e a determinação do corpo são por natureza coisas 121 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo simultâneas ou melhor são uma só e mesma coisa que cha mamos decisão quando considerada sob o atributo do pen samento e explicada por si mesma e determinação quando considerada sob o atributo da extensão e deduzida das leis do movimento e do repouso SPINOzA 2008 p 171 Considerações finais A obra de Spinoza se destaca das demais obras do século 17 em que viveu É considerada uma admirável sistematização do saber o que é característico da Modernidade Da obra de Spinoza diz o professor Marcos André Gleizer A filosofia de Baruch Espinosa 16321677 é uma das mais extraor dinárias produções do espírito humano sua obra principal a Ética demonstrada à Maneira dos Geômetras ocupa uma posição ímpar na história da filosofia Sua forma dedutiva constitui a exemplifica ção mais perfeita do ideal de sistematização do saber característico da modernidade Seu conteúdo encadeado rigorosamente ao longo das cinco partes que a compõem constrói um espaço teórico inova dor que rompe radicalmente com o universo conceitual da tradição metafísicomoral judaicocristã Partindo do conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a natureza a Ética pretende con duzirnos como que pela mão ao conhecimento da alma humana e de sua beatitude suprema GleiZer 2004 Em contrapartida como observam alguns estudiosos de sua obra Spinoza contraria princípios fundamentais que rege ram o pensamento moderno como sua opção por temáticas re ferentes hoje às áreas da Antropologia Psicologia Sociologia Pedagogia e Política em detrimento dos domínios pertencentes à Física à Metafísica e à Lógica Depois de sua morte Spinoza foi como observam seus bió grafos um dos filósofos mais comentados e pouco lidos Para mui tos como John Locke cujo pensamento será objeto da presente 122 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo unidade e David Hume que estudaremos na Unidade 3 desta obra as ideias ateias de Spinoza eram tolas O filósofo Immanuel Kant objeto de nosso estudo também na Unidade 3 o ignorou Foi apenas após Goethe 17491832 pensador e escritor alemão seu admirador que suas obras passaram a ser lidas com o devido cuidado Spinoza teve grande influência sobre o chamado Idealismo Alemão também denominado de Idealismo Absoluto que é um movimento de pensamento do século 18 segundo o qual o mundo se identifica com o pensamento objetivo e não com o fluxo da ex periência ou com o fenômeno de pensamento de cada indivíduo A influência de Spinoza se fez no sentido de dar a esse movimento a direção de um monismo imanentista Monismo imanentista por que como vimos concebe Deus e a natureza como sendo a mesma realidade monismo um todo imanente e não transcendente tudo que existe existe em Deus é parte essencial de Deus O mundo é uma expressão necessária e absoluta de Deus imanentismo A influência de Spinoza não só sobre filósofos mas igual mente sobre artistas e poetas se estende até os dias de hoje Recentemente foi lançado o livro de Roberto Leon Ponczek pro fessor da UFBA intitulado Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física 2009 em que entre outros as suntos é descrita a grande influência de Spinoza sobre Albert Einstein Na contracapa desse livro lêse Certa vez quando lhe perguntaram se acreditava em Deus einstein teria respondido sim o deus no qual eu acredito é o deus de spinoza de fato einstein entendeu como ninguém que o Deus ou seja a Natureza de Spinoza se reflete do mais ínfimo spin eletrônico às mais extensas galáxias do universo Para Einstein a ciência não poderia ser apenas uma útil conta de chegada às aplicações tecnológicas mas deveria ter uma di 123 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo mensão quase religiosa Para ambos Deus é a Natureza inteli gente e autoconsciente sempre muito mais ampla do que qual quer coisa que possa ser dita ou descrita por números Deus é o jardim que não carece de jardineiro pois se faz por Si próprio O ser humano é tão somente um pequenino arbusto de limitada existência plantado neste Jardim infinito que a ele se desvela com mistério e espanto PONCzEK 2009 contracapa Sugestão de leitura PONCZEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 Disponível em httpsrepositorioufbabrribitstreamufba2071Deus20 ou20seja20a20naturezapdf Acesso em 21 ago 2015 No que se refere à orientação básica dada a esta obra segun do a qual o ético distinguese essencialmente do moral a Ética de Spinoza exemplifica admiravelmente em muitos aspectos o que se espera de um discurso que se situe na instância do singular e que seria eminentemente o discurso ético distinguindoo radicalmente do moral De fato Spinoza se ocupa fundamentalmente do ético diríamos que quanto à moral a saber regras e dever normativo com base em ideias gerais e no dever ser imaginativo o filósofo entende que só imperarão na medida em que essa razão intuitiva fundante a nosso ver da instância ética ainda não dominar Embora os limites da presente obra não nos permita de senvolver suficientemente o que seria esse pensamento do sin gular solo a nosso ver do fenômeno ético uma vez que para isso seria necessário recorrer ao pensamento contemporâneo não objeto deste nosso trabalho faremos aqui apenas a seguin te observação encontramos na filosofia de Spinoza várias ca racterísticas básicas de um pensamento do singular tais como uma visão à luz do imaginário discurso da Geometria e o fato 124 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo de ser um discurso interessado em um pensamento objetivo das possibilidades de um objeto ação ou situação e que no caso de Spinoza tratouse de uma substância única e singular Deus uma concepção do entendimento como compreensão isto é como captação da unidade a partir de seu próprio sentido ou direção considerando o não expresso ou subentendido em vez de julgálo de fora e finalmente uma concepção da razão como intuitiva 7 thoMas hoBBes 15881679 O empirista Hobbes não apela para modelos a priori a se rem imitados não invoca entidades metafísicas Sua concepção de moral não tem por base um transcendente ou seja um Deus ou uma concepção metafísica do ser mas está fundamentada no que se poderia definir como a virtude da prudência conquista da pela experiência ao longo dos tempos pelos seres humanos Prudência que leva a humanidade a passar do Direito Natural ou seja da liberdade que cada ser humano tem de usar o próprio poder para a conservação da vida para a instituição do chama do Direito Positivo ou Contrato Social Hobbes é considerado um dos fundadores da teoria moderna do Estado que é a da passa gem do Estado de Natureza ao Estado Civil do Estado Apolítico ao Estado Político Ao contrário da tradição aristotélica e tomista que situa o fundamento da Ética e da Filosofia Política na Cosmologia e na Teologia Hobbes procura esse fundamento na Antropologia Nossa felicidade não estaria na satisfação de um Soberano Bem mas na satisfação contínua do próprio desejo 125 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Por costumes não entendo aqui boas maneiras por exemplo a maneira como devemos saudar uns aos outros lavar a boca e escovar os dentes perto dos outros e todas as outras regras do saber viver mas as qualidades dos homens que interes sam a uma coabitação pacífica e a reunião dos mesmos Nessa perspectiva é preciso considerar que a felicidade nesta vida não consiste no repouso de um espírito satisfeito Pois não exis tem na realidade nem finis últimus ou meta final nem este summum bonum ou bem supremo de que falam as obras dos antigos moralistas Aquele cujos desejos atingiram seu fim não viverá mais do que aquele no qual cessaram toda sensação e toda imaginação A felicidade é uma marcha contínua diante do desejo de um objeto a outro sendo a satisfação do primeiro o caminho que leva ao segundo A razão disso é que o desejo do homem não é o de usufruir uma única vez e durante um só ins tante mas o de assegurar o caminho de seu desejo futuro Da mesma maneira as ações voluntárias e as inclinações de todos os homens não buscam somente uma vida de satisfação mas também garantila Diferem somente no caminho que tomam as que decorrem da diversidade das paixões nos diferentes in divíduos e as que decorrem da diferença no que diz respeito ao conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que produzem o efeito desejado Assim coloco no primeiro plano a título de inclinação geral de toda a humanidade um desejo perpétuo e sem trégua de ad quirir poder e mais poder desejo que não cessa senão com a morte A causa nem sempre é a de se esperar um prazer mais intenso do que aquele que já se obteve ou de não se conten tar com um poder moderado mas a causa é que não se pode tornar seguro a não ser adquirindo mais o poder ou os meios dos quais dependem o bemestar que se possui no presente HOBBES 1983 p 9596 tradução nossa Essa satisfação contínua dos próprios desejos leva os ho mens em seu estado natural a viver em guerra uns com os ou tros Vivem em constante angústia com o temor da morte vio lenta pelos outros Guerreiam entre si porque a natureza os fez 126 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo iguais e essa igualdade os leva a entender que cada um pode ter o que o outro possui As diferenças naturais entre os homens são insignificantes e portanto insuficientes para levar o mais fraco a pensar em poder derrotar o mais forte No capítulo XIII de sua obra Leviatã Hobbes diz A natureza fez os homens tão iguais nas faculdades de corpo e mente a ponto que embora possa se encontrar algumas vezes um homem de corpo manifestamente mais forte ou de mente mais rápida que outro quando se leva em conta todo o conjun to a diferença entre um homem e outro não é tão considerável a ponto de que um deles possa com base nela reclamar para si algum benefício ao qual o outro não possa pretender tanto quanto ele HOBBES 1996 p 8687 tradução nossa A boa ação segundo Hobbes não é julgada pela boa intenção mas pela sua utilidade em trazer felicidade ao maior número de pessoas possível Essa felicidade do maior número possível de pessoas só será viável diz Hobbes com a repressão da animalidade natu ral o que só será possível a partir do momento em que cada um abrir mão de seu direito natural em favor de um terceiro um Soberano um representante de todos ou uma assembleia de representantes A única maneira de erigir tal poder comum apto a defender as pessoas do ataque de estranhos e do mal que poderiam fa zer uns aos outros e desse modo protegêlas de forma que pelo seu trabalho e produção da terra pudessem se alimentar e viver satisfeitos é confiar todo seu poder e toda sua força a um só homem ou a uma única assembleia que pudesse reunir suas vontades pela regra da maioria em uma só vontade O que significa dizer designar um homem ou uma assembleia para assumir sua personalidade e que cada um confesse e se reconheça como autor de tudo que tal homem terá feito ou 127 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo ordenar que se faça no que diz respeito às coisas que concer nem à paz e segurança comum que cada um consequen temente submeta sua vontade e seu julgamento à vontade e ao julgamento desse homem ou assembleia Isso vai além do consenso e da concórdia tratase de uma unidade real de todos em uma só e mesma pessoa unidade realizada por meio de um acordo de cada um com cada um feito de tal maneira que seria como se cada um dissesse a cada um autorizo este homem ou esta assembleia e eu confiro a eles meu direito de me governar com a condição que abandone seu direito e autorize todas as suas ações da mesma maneira Feito isso a multidão assim unida em uma só pessoa é chamada de república em latim civitas Tal é a geração deste grande leviatã ou falando com mais reverência deste deus mortal ao qual devemos sob o deus imortal nossa paz e proteção hoBBes 1983 p 177 178 tradução nossa A construção do Estado ou contrato social É mediante um contrato social que uma multidão de ho mens passa a constituir um corpo de Estado O Estado represen ta cada um de nós decidindo e agindo por nós e em consequên cia devemos nos reconhecer como responsáveis e coautores de tudo o que ele faz A civilização nasce desse contrato social Essa nova situa ção entretanto só pode ser mantida com a existência de um Leviatã Leviatã é o nome de um animal monstruoso descrito em detalhes no livro de Jó que se expressa preferencialmente na figura de um rei que gera em todos o medo da punição garantin do assim a continuidade do Estado civil A obra em que Hobbes compara o poder absoluto de um comandante supremo à figura de um Leviatã intitulase Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil publicada em 1651 128 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O poder soberano baseado no contrato social é absoluto e inviolável O Soberano homem ou assembleia é uma criação nossa Nós o obedecemos não por ser ele o mais forte mas para darlhe a força para manter a paz É na obediência a um terceiro que os homens cessam de formar uma multidão e se tornam um povo ou o corpo de um Estado tendo por alma o Soberano Esse absolutismo de Hobbes enfatizam vários autores não significa apologia da monarquia absoluta ou defesa de um siste ma político o deus mortal o leviatã como vimos pode ser um homem um conselho ou uma assembleia O que interessa é a essência do poder a obediência A prosperidade de um povo não depende da forma de seu governo mas da concórdia e obe diência de todos Em contrapartida como o poder político não pode aten der a todos os aspectos da vida naquilo que a lei civil não se pronuncia existe segundo Hobbes espaço onde a liberdade das pessoas pode se realizar O que conta não é a extensão do poder mas o seu caráter imperioso de imposição Quais seriam os recursos da humanidade para chegar à consti tuição desse contrato social O homem diz Hobbes tem acesso ao tempo por meio dos sinais que lhe permitem a memória e a antecipação do futuro A linguagem dos sinais torna assim possível a razão e consequentemente a ciência que é o conhecimento das sucessões associações e concatenações de sinais a razão não nasce conosco como a sensação e a lembrança e também não se adquire só pela experiência como a prudência mas se adquire pelo trabalho primeiro atribuindo corretamente as denominações e em seguida indo graças 129 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo à aquisição de um método correto e ordenado a partir dos elementos que são as denominações até as asserções formadas pela colocação de uma denominação em relação com uma outra e daí aos silogismos que são a colocação em relação de uma asserção com uma outra para chegar ao conhecimento de todas as consecuções de denominações que concernem o tema considerado é isso que os homens chamam ciência Enquanto a sensação e a lembrança não são senão um conhecimento do fato que é uma coisa passada e irrevogável a ciência é o conhecimento das consecuções da dependência de um fato de um outro fato é por meio dessa dependência que a partir do que nós podemos produzir presentemente sabemos como produzir algo de outro se quisermos ou repetir algo semelhante mais uma vez pois vendo como uma coisa é produzida por quais causas e de que maneira percebemos no caso de causas semelhantes se darem como fazêlas produzir efeitos semelhantes HOBBES 1983 p 4243 tradução nossa Tornando possível assim a razão e a ciência a linguagem tornaria igualmente possíveis os contratos sociais e o Estado en fim todos os recursos humanos de que trata a Filosofia Política Em sua concepção de moral Hobbes observa Yara Adario Fra teschi 2005 em seu trabalho Filosofia da natureza e filosofia moral em hobbes concebia a Filosofia Moral como fazendo parte da Filosofia Natural tal como a Física Sua visão do comportamento humano seria inspirada na teoria mecânica do movimento Isso significa basicamen te que segundo Hobbes o homem tende a manterse em movimen to buscando não fins mas meios para continuar vivo O discurso de Hobbes caracterizarseia pela explicação mecânica as paixões advi riam automaticamente das reações do homem às circunstâncias em que se encontra prevalecendo sempre a inclinação natural à autopre servação Em outras palavras Hobbes visualiza os costumes e hábitos humanos não à luz de uma doutrina do bem e do mal do justo ou do injusto mas sim à luz das leis naturais e da vontade humana 130 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Considerações finais A questão moral em Hobbes se encontra voltada essencial mente para a instância do Direito e nesse sentido sua obra tem particular importância na área jurídica Sua obra tem sido muito trabalhada nesses últimos tem pos no que concerne particularmente à questão da justiça Al guns exemplos dessas discussões são Segundo Hobbes seria a natureza a fonte de um Direito e de um Estado ideal e mais justo Em outras palavras a obra de Hobbes levanos a afirmar a existência de uma or dem ou sistema ético subordinado a um conjunto de leis universais e necessárias decorrentes diretamente da na tureza humana sendo o Direito expressão dessa ordem Isso é o que defendem os adeptos da corrente doutriná ria em Filosofia do direito chamada jusnaturalismo Hobbes considera que os homens independentemente de sua natureza criam normas para reger uma determinada sociedade em uma determinada época visando à valida de dessas mesmas normas como decorrentes não de leis naturais mas do próprio processo de ordenamento des sas normas o que significaria que a lei não é natural mas de natureza positiva escrita gravada codificada nesse caso estaria Hobbes fundamentando outra posição em Fi losofia do direito denominada justapositivismo Essa discussão persiste até os dias de hoje 8 John locke 16321704 John Locke viveu em fins do século 17 e início do século 18 É sua a famosa frase a mente é uma tábua rasa em que 131 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo só a experiência escreve É classificado como empirista por al guns e por outros como não propriamente um empirista uma vez que admite a existência de dois tipos de experiência a expe riência externa e a experiência interna assim como três tipos de conhecimento o direto ou intuitivo que garantiria um grau máximo de certeza o indireto ou demonstrativo como a Lógica e a Matemática o sensível que seria o conhecimento da existência de objetos exteriores Por sua vez distingue um mundo em si fundamentado nas chamadas qualidades primárias a solidez a extensão etc e o mundo para nós baseado nas qualidades secundárias cores sons etc O moral dentro de um contexto político Como Hobbes Locke concebe o moral em um contexto politicamente constituído Parte do mesmo ponto de Hobbes o estado da natureza seguido do surgimento da sociedade via um contrato social Porém a posição de locke diverge essencial mente da de Hobbes no que concerne ao entendimento do que seja esse estado da natureza Enquanto para Hobbes como vimos o estado de direito é algo feito para coibir a violência do estado da natureza não sendo o viver em sociedade uma disposição inata ao ser huma no mas surgindo quando o homem se vê ameaçado buscando então o acordo de um contrato social e gerando assim a consti tuição do Estado para Locke diferentemente o homem adquire 132 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo direitos a partir do momento mesmo em que passa a existir O estado de natureza é o estado dos direitos naturais O homem mesmo no estado da natureza é dotado de razão é senhor de si mesmo não sendo subordinado a ninguém O crescimento demográfico e a escassez de terra segundo Locke tornaram necessário estabelecer leis além da lei da nature za Unindose uns aos outros para preservar vidas e a liberdade de usufruto e conservação de propriedades conseguidas pelo traba lho os homens constituíram a sociedade civil A sociedade civil se faz necessária quando a lei moral ou da natureza não é mais res peitada constituise assim um pacto de conscientização para preservar os direitos que já existiam no estado da natureza Os homens tendo nascido iguais como está provado em uma liberdade perfeita e com o direito de usufruir tranquilamente e sem contradição de todos os direitos e de todos os privilégios das leis da natureza cada um tem pela natureza o poder não somente de conservar seus próprios bens isto é sua vida sua liberdade e suas riquezas contra todas as ações todos os atentados dos outros mas ainda de julgar e de punir aque les que violam as leis da natureza quando considerar que a ofensa merece de punir mesmo com a morte no caso de se tratar de algum crime hediondo que julgar merecer a morte ora porque não pode haver sociedade política e sobreviver se ela não tem poder de conservar o que lhe pertence e por essa razão punir as faltas de seus membros só existe socie dade pública quando cada um dos membros abdicarem de seu poder colocandoo nas mãos da sociedade para que ela possa dispor dele em todas as espécies de causas o que não impede de recorrer às leis estabelecidas por ela através desse meio todo julgamento de particulares estando excluído a so ciedade adquire o direito de soberania e as leis sendo esta belecidas e certos homens autorizados pela comunidade para executálas acabam todas as diferenças que possam existir en tre os membros da sociedade em questão referente a qualquer matéria de direito e punemse as faltas cometidas por algum 133 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo membro contra a sociedade em geral ou contra alguém per tencente ao corpo de juízes conforme as penas estabelecidas pelas leis LOCKE 1992 p 206 tradução nossa O contrato social O contrato social para Locke diferentemente da visão de Hobbes a respeito não implica submissão ao governo Este é obrigado a respeitar as leis estabelecidas tanto quanto cada in divíduo O povo tem direito de rebelião contra o abuso de poder das autoridades e uma vez mantidos os direitos naturais resul tado de um consenso todo governo é limitado Um poder arbitrário e absoluto e um governo sem leis estabele cidas e estáveis não seriam capazes de atender aos fins da so ciedade e do governo De fato os homens deixariam a liberda de do estado natural para se submeter a um governo no qual suas vidas suas liberdades seu descanso seus bens não teriam segurança Não nos é possível supor que tenham a intenção ou mesmo o direito de conceder a um homem ou a vários um poder absoluto e arbitrário sobre si mesmos e seus bens e de permitir ao magistrado ou ao príncipe fazer em relação a eles tudo o que quisessem arbitrariamente e sem limites o que se ria seguramente se colocar em uma situação muito pior do que aquela do estado natural no qual se tem a liberdade de defen der seu direito contra as injúrias de outro e de se manter no caso de se possuir força suficiente contra a invasão do outro ou de um grupo De fato na suposição de nos entregar ao poder absoluto e à vontade arbitrária de um legislador estaríamos de sarmando a nós mesmos e armando esse legislador de maneira que aqueles que lhe são submissos tornamse sua presa e são tratados como ele assim o desejar LOCKE 1992 p 245246 tradução nossa 134 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo O princípio constitutivo do Estado Deus Na obra de Locke diferentemente da de Hobbes há um princípio constitutivo da moral e do Estado Deus Segundo a teoria dos mandamentos divinos a verdade ou falsidade dos juí zos morais dependem da vontade de Deus o que significa dizer que os fatos éticos e morais são simples convenções estabeleci das por Deus Para Locke os direitos naturais o direito à vida à liberdade e à propriedade estão fundados no fato de que a vida é obra divina e pertence a Deus Por exemplo O direito à vida Deus criou os homens como iguais e independentes e por isso é proibida toda agressão à vida humana daí o direito à autodefesa O direito à liberdade se os homens nasceram iguais ne nhum tem direito sobre o outro Porém existem limites legítimos que impedem que os homens sejam sempre li vres São os decretos naturais como o direito segundo o qual a liberdade não pode violar o direito à propriedade pois se Deus criou os homens iguais todos têm a mesma chance de conquistar terras e de cultiválas Neste sentido afirma o estado de natureza é regido por um direito natural que se impõe a todos e com respeito à razão que é este direito toda a humanida de aprende que sendo todos iguais e independentes ninguém deve lesar o outro em sua vida sua saúde sua liberdade ou seus bens todos os homens são obra de um único Criador todopoderoso e infinitamente sábio todos servindo a um único senhor soberano enviados ao mundo por sua ordem e a seu serviço são portanto sua propriedade daquele que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém Dotados de faculdades similares dividindo tudo em uma única comunidade da natureza não se pode conceber que exista entre nós uma hierarquia que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros como se tivéssemos sido feitos para 135 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo servir de instrumento às necessidades uns dos outros da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas LOCKE 2015 p 36 Considerações finais Do ponto de vista da distinção entre o moral e o ético en contramos na obra de Locke além das normas de conduta moral e de cidadania a preocupação do filósofo com o ético propria mente dito na medida em que escreveu várias obras em defesa do princípio de tolerância como intrínseco ao que é singular mente próprio à questão da liberdade Tratase especificamen te da tolerância religiosa pois em sua época eram comuns as guerras e perseguições religiosas Desenvolveu sua teoria da tolerância por meio de debates com o teólogo de Oxford Jonas Proast que defendia a tese con trária escreveu a respeito sob o pseudônimo de Philanthropus principalmente as chamadas Segunda Carta e Terceira Carta pu blicadas respectivamente em 1690 e 1692 Sua teoria da tolerância é eminentemente ética na medida em que procura estabelecer o sentido de uma liberdade espiri tual irrestrita Em sua busca pela compreensão dos fundamentos da opção religiosa Locke expressa não apenas sua posição sobre os limites da atividade do Estado mas ainda procede a uma in vestigação da estrutura epistêmica do dogma religioso Para Locke a tolerância é um bem para a sociedade e para a própria religião porque traz a paz e a ordem tarefas do Estado segundo o filósofo não temos outro guia que não seja a razão e esta não aceita submissão cega à vontade e às ordens de outrem 136 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Com relação à moral em Descartes é incorreto afirmar a Busca tranquilidade para o bem pensar para estabelecer a melhor for ma de proceder diante dos fatos imediatos da vida não se furtando à prática mas procurando de maneira provisória seguir aquilo que se apresenta para a razão como a melhor forma de proceder b É na noção de utilidade que se funda o pensamento de Descartes pois devemos procurar aquilo que nos torna mais felizes mesmo que para isso devamos desrespeitar as leis e os costumes de um povo procu rando assim alterar a ordem do mundo e não os nossos desejos c Sempre agir de forma moderada evitando os excessos a fim de não se distanciar demais da verdade por ter escolhido um dos excessos bem como por ser o excesso sempre prejudicial d A fim de vencer os desejos por bens exteriores procurar sempre ven cer a si mesmo e não a ordem do mundo procurando imitar nisso aqueles filósofos que mesmo não possuindo bens exteriores pude ram disputar a felicidade aos seus deuses 2 Sobre a relação da alma com o corpo para Spinoza é incorreto afirmar a alma e corpo são modos dos atributos pensamento e extensão que por sua vez são manifestações de uma mesma e única substância Deus b Diferentemente de Descartes para quem o corpo seria apenas um me canismo ou uma máquina que obedece os mandamentos da alma ou razão para Spinoza alma e corpo tem o mesmo status ontológico ou seja não há domínio da alma sobre o corpo nem do corpo sobre a alma c Assim como para Descartes Spinoza apesar de compreender a exis tência de uma única substância que é infinita Deus acredita que a alma é quem comanda o corpo pois faz parte do atributo pensamento o qual se identifica de maneira mais perfeita com a substância divina d Não há nada que não afete o corpo que não afete também a mente Proposição conversível Ambos são manifestação de uma mesma subs tância infinita efeitos de sua existência necessária 137 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 3 Pensando nos gêneros de conhecimento propostos por Spinoza faça a re lação deles com a felicidade e a liberdade para esse pensador I Primeiro gênero de conhecimento a imaginação ou ideias inadequadas II Segundo gênero de conhecimento noções comuns ou ideias adequadas III Terceiro gênero de conhecimento a beatitude visão das coisas singu lares do ponto de vista da eternidade À medida que a mente compreende as coisas como necessárias ela tem um poder maior sobre seus afetos ou seja deles padece menos A servidão passional nasce assim da ignorância e a alimenta dividin do o mundo em coisas boas e coisas más acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm Tratase de um pseudoconhecimento das causas finais o que leva à superstição religiosa com a ideia de um Deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal em função do culto que lhe rendemos Sem auxílio mútuo os homens não podem manter sua vida e cultivar sua alma Chegamos pois a esta conclusão o direito natural no que concerne propriamente ao gênero humano dificilmente pode ser con cebido a não ser quando os homens têm direitos comuns terras que podem habitar e cultivar juntos quando podem velar pela manuten ção de seu poder protegerse repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a todos Quanto maior for o número dos que assim se reunirem mais direito terão em comum 4 Podemos afirmar que a diferença essencial entre o pensamento de Hobbes de Locke consiste em que a Para Hobbes a moral só existe dentro de um Estado de direito pois no Estado de natureza todos têm poder ilimitado sobre tudo ao contrá rio para Locke o homem já nasce com direitos inalienáveis garantidos pela razão e por seu criador Deus b Hobbes é um contratualista enquanto Locke não o é c Locke discorda de Hobbes no sentido de que não entende o Estado de direito como sendo necessário para a vida em sociedade podendo cada um gerir a si mesmo e tomar conta de suas propriedades 138 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo d Hobbes pensa que o Estado de natureza era melhor que o Estado de direito pois naquele estado o homem tem direito a todas as coisas enquanto Locke pensa no Estado de natureza como sendo um terri tório de ninguém onde a vida do homem é breve bruta e miserável Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 b 2 c 3 III I e II 4 a 10 CONSIDERAÇÕES Nesta unidade vimos as principais mudanças e os pensado res que foram decisivos para uma nova Epistemologia que será o novo paradigma da Modernidade Tal Epistemologia fundada na ra zão matemática e na experimentação controlada como se buscou mostrar ao longo do estudo desta obra não foi capaz de contemplar o ético em sua dimensão própria levandonos a um significativo de senvolvimento da moral No entanto como veremos em alguns dos filósofos modernos aqui e ali a questão da Ética toma corpo e vai delineando um anseio para o seu tratamento adequado Nesse sentido é importante que você siga nesta obra procu rando reconhecer em que medida a questão do ético aparece em meio a uma epistemologia nova moderna razão teórica e experi mentação controlada e o esforço dos filósofos em face dessa nova Epistemologia para encontrar um fundamento para a moral 139 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo 11 ereFerÊncia FRATESCHI Y A Filosofia da Natureza e Filosofia Moral em Hobbes Cadernos de História e Filosofia da Ciência Campinas v 15 n 1 p 732 janjun 2005 Disponível em httpwwwcleunicampbrcadernospdfYara20Frateschipdf Acesso em 24 ago 2015 GLEIzER M A A beatitude de Espinosa Folha de S Paulo São Paulo 30 maio 2004 Disponível em httpescritonasestrelascomfilosofarindexphpoptioncontentt askviewid19Itemid33 Acesso em 22 abr 2015 HOBBES T Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil Trad João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva Disponível em httpwww dhnetorgbrdireitosanthistmarcoshdhthomashobbesleviatanpdf Acesso em 28 ago 2015 LOCKE J Segundo tratado sobre o governo civil Trad Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa Disponível em httpwwwxrprobrIFLOCKESegundoTratadoSobreO Governopdf Acesso em 24 ago 2015 PONCzEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 Disponível em httpsrepositorioufbabrribitstream ufba2071Deus20ou20seja20a20naturezapdf Acesso em 21 ago 2015 12 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DESCARTES R Discurso do Método In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973a Meditações concernetes à primeira filosofia In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973b As paixões da alma In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973c Cartas In CIVITA V Ed Os pensadores Trad J Guinsburg e Bento Prado Junior São Paulo Abril SA Cultural e Editorial 1973d Regras para a orientação do espírito São Paulo Martins Fontes 2007 Coleção Clássicos HOBBES T Léviathan Paris Silrey 1983 Leviathan London Cambridge University Press 1996 140 Ética ii UNIDADE 2 ÉtIcA MoDErNA rAcIoNAlIsMo E EMpIrIsMo Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil 2 ed São Paulo Martins Fontes 2008 LOCKE J Traité du gouvernement civil Paris GarnierFlammarion 1992 Carta acerca da tolerância Segundo tratado sobre o governo Ensaio acerca do entendimento humano 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 Os pensadores PONCzEK R L Deus ou seja a natureza Spinoza e os novos paradigmas da física Salvador EDUFBA 2009 ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 SPINOzA B Ética Trad Tomaz Tadeu 2 ed Belo Horizonte Autêntica Editora 2008 Éthique Paris GF Flammarin 1965 141 Ética MOdeRna HUMe e Kant 1 OBJETIVOS Compreender a proposta do empirista David Hume so bre a moral Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel Kant 2 CONTEÚDOS O método empirista de David Hume O criticismo de Immanuel Kant 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 Como forma de sensibilização ao conteúdo tratado nes ta unidade indicamos que assista os seguintes filmes Amadeus de 1984 com direção de Milos Forman Barry Lyndon de 1975 com direção de Stanley Kubrick Danton o processo da Revolução de 1982 com di reção de Andrzej Wajda Unidade 3 142 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 2 Para iniciar nossa especulação sobre Kant e Hume in dicamos os vídeos a seguir SAVATER F La Aventura del Pensamiento Immanuel Kant Disponível em httpswwwyoutubecom watchvjNPRlhJlj2A Acesso em 25 ago 2015 La Aventura del Pensamiento David Hume Disponível em httpswwwyoutubecom watchvvHUNfRLzKhA Acesso em 23 abr 2015 GHIRALDELLI P Kant e a subjetividade moderna 1 Disponível em httpwwwyoutubecomwatch vSGPK7tGiXg0featurerelmfu Acesso em 25 ago 2015 Kant e a subjetividade moderna 2 Disponível em httpwwwyoutubecom watchv3gQamHOPtn4 Acesso em 25 ago 2015 4 INTRODUÇÃO Entre os anos de 1680 e 1715 verificase uma crise cultural na Europa Tudo que constituía a base da sociedade tradicional será passado sob o crivo da razão É o Século das Luzes Iluminis mo movimento intelectual social e político de todas as classes cultas São características desse movimento 1 O método da observação controlada dos fatos em bus ca de leis universais modelo de investigação inspirado na construção da Física de Newton 2 Crítica ao racionalismo dogmático que concebe a razão como detentora de todo conhecimento A razão pode tudo conhecer desde que bem conduzida 143 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 3 Herança de Descartes só o que for reconhecido legí timo pela razão do sujeito individual deve e pode ser considerado como tal 4 Início da era industrial com o crescimento do interesse pelos fenômenos econômicos 5 A salvação passa a não mais depender de Deus mas da boa vontade de cada um a origem do mal está na intenção daquele que age o homem ao contrário do que ensinava a religião não é incapaz por sua queda ou pecado original de chegar à verdade e ao bem 6 Em política a legitimidade do poder não é mais atri buída a uma ordem divina ou natural mas fundada na vontade dos indivíduos Duas grandes revoluções a americana e a francesa resultam desse processo de emancipação 7 A visão do ser humano que no século 16 se caracte rizava por uma profunda relação com a natureza tor nase predominantemente histórica Cada vez mais a humanidade se volta para uma existência baseada em projetos e não na repetição de ideias hábitos e cos tumes tradicionais visualizandose como passível de constante aperfeiçoamento por meio da educação e da história a Na segunda metade do século 18 o progresso no campo da difusão do conhecimento levará à for mação de uma opinião pública mais esclarecida o que permitirá reformas do estado social e político b Grande progresso das ciências e técnicas c A burguesia foi a principal responsável pelo movi mento resultou na globalização da economia 144 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt d Grande preocupação com o conhecimento incidin do sobre ele a chamada interpretação fenomenista presente na história da Filosofia desde a Antiguida de por exemplo os céticos e que como já disse mos consiste no caso do conhecimento em negar a possibilidade de conhecimento de todo em si 8 No campo das questões filosóficas propriamente ditas temos o desenvolvimento do empirismo na Inglaterra sua introdução na França o desenvolvimento do racio nalismo na Alemanha culminando com a superação de si mesmo tornandose como consequência do pen samento kantiano uma filosofia transcendental no sentido de uma filosofia que submete tudo ao crivo da razão 9 No que diz respeito à moral surgem inúmeras posi ções pois o desenvolvimento do empirismo abala de maneira significativa o caráter absoluto que era confe rido à moral até então relativizandoa Temos a Jeremy Bentham 17481832 defensor de uma moral utilitarista segundo a qual o fundamento da moral é a felicidade dos indivíduos sem prejuízo para o bemestar coletivo Sistematizou o princípio da utilidade Tratase de uma doutrina para a qual toda ação ou inação deverá promover o bemestar de todos os seres Observemos que tal posição já se encontra na Filosofia Antiga em Epicuro Importante para o utilitarismo não são os agen tes morais se são bons generosos ou não mas as consequências dos atos uma vez que dentro de circunstâncias diferentes um mesmo ato pode ser moral ou imoral dependendo de 145 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt suas consequências boas ou más É o que se denomina de consequencialismo agir sem pre de forma a produzir a maior quantidade de bemestar possível O critério para classificar o ato como bom ou mau seriam os resultados em todos os indiví duos afetados pela ação ou seja a quantidade total de bemestar produzida Assim é válido sa crificar uma minoria pois o bemestar de cada indivíduo tem o mesmo peso com relação ao bemestar geral Em outras palavras atribuem se valores ao bemestar independentemente de indivíduos e culturas Há dessa maneira um universalismo b Temos ainda como representante da posição uti litarista James Mill 17331836 filósofo e histo riador escocês c Bernard de Mandeville 16701733 filósofo ho landês segundo o qual não há princípios morais de valor absoluto que fundamentem os atos sociais Os homens agem de acordo com seus interesses individuais portanto a moral se basearia em fato res referentes aos interesses dos indivíduos expe rimentalmente comprovados d Adam Smith 17231790 filósofo e economista escocês concebe a moral também baseada na experiência Para ele a simpatia seria o critério da moralidade Por simpatia entendia a comunica ção à nossa alma das emoções de outrem Agimos bem quando o que fazemos merece a simpatia a mais universal possível 146 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 10 Como reação ao empirismo temos a chamada Escola Escocesa Originase na Sociedade Filosófica fundada pelo filósofo escocês Thomas Reid 17101796 É tam bém chamada Escola do Senso Comum Um de seus re presentantes principais foi Anthony A C Shaftesbury fi lósofo inglês cuja posição sobre a moral é denominada de moral do sentimento Baseia sua concepção de moral nos juízos do senso comum e também na existência de Deus uma vez que o senso comum seria inspirado por Deus Para ele embora a fonte comum do conhecimen to seja a experiência existem algumas ideias peculiares que acompanham as sensações como as ideias do bem e do belo que são inatas não resultam da experiência Surgem como uma disposição especial da alma São imediatas universais desinteressadas Tratase de uma faculdade moral que tem por objeto a bondade moral Na presente unidade selecionamos para um estudo mais aprofundado dois dos mais influentes representantes das posi ções empirista e racionalista no século 18 e que são respectiva mente David Hume e Immanuel Kant 5 david huMe 17111776 Nascido em Edimburgo Escócia Hume lutou desde o iní cio para poder se dedicar à literatura e à Filosofia opondose à própria família que desejava vêlo seguir a carreira jurídica Também o sucesso demorou a acontecer Com o sucesso porém sua filosofia é ainda hoje consi derada como uma das grandes influências sobre o pensamen to contemporâneo tanto no que concerne à chamada Filosofia 147 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Analítica que reduz a Filosofia a uma pesquisa sobre a lingua gem quanto no que se refere a filosofias como a Fenomenologia de Edmund Husserl que busca levar a atitude de Descartes às suas últimas consequências visando a uma fundação radical do conhecimento A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de hume encontrase no livro 3 intitulado da Moral de sua obra Tratado da natureza humana O fenômeno da moralidade segundo Hume surge no rela cionamento dos indivíduos entre si Para Hume não é concebível que todos os atos das pessoas sejam tidos como moralmente equivalentes que todos os atos sejam igualmente dignos de es tima e consideração As distinções morais são para ele uma rea lidade Seu objetivo é descobrir quais são os princípios univer sais dos quais deriva toda censura ou aprovação e quais tipos de percepções nos permitem fazer distinções morais como entre o bem e o mal entre o certo e o errado etc Busca igualmente saber em quais circunstâncias essas percepções surgem Hume entende a questão moral como uma questão de leis e regras de funcionamento da natureza humana nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na na tureza humana algum motivo que a produza A teoria moral de Hume não tem pois como referência um transcendente independente da experiência dos sentidos como a vontade de Deus ou uma razão a priori Volta sua reflexão para a interioridade pura pressupondo que a alma seja um campo de percepções impressões e ideias Para o filósofo nada existe previamente no nosso pensamento Tudo vem da experiência e é portanto de natureza sensível 148 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A questão moral está fundada no movimento emotivo ou emoção e não no entendimento A primeira questão colocada por Hume é a de saber se as distinções morais são derivadas da razão Entende a razão como um puro cálculo de meios capaz apenas de avaliar os melhores meios para um determinado fim mas sem o poder de demons trar o caráter desejável ou não desses fins em si mesmos Uma ação não é virtuosa ou viciosa pelo fato de obedecer à razão mas pelo fato de nos proporcionar uma sensação agradável ou desagradável Ao entender a razão teórica como um puro cálculo de meios Hume postula uma moral fundada inteiramente em uma capacidade emotiva ou seja na capacidade humana de agir impulsionada por um motivo por algo que move ou que causa ou dá origem a algo Para Hume a ação é apenas um sinal externo pois a ava liação moral diz respeito ao motivo que produziu a ação A ação moralmente correta segundo o filósofo seria aquela na qual o agente age movido por um motivo virtuoso mesmo no caso de não realização da ação em razão de outras causas É o que vere mos no texto do filósofo a seguir 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consideramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Te mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali dade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixa mos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 149 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa rea lize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos su pondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o te nha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situação descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por algu ma circunstância que nos era desconsiderada retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que te ríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exigíamos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Segundo Hume portanto a razão tem apenas um papel instrumental o papel de ser apenas guia da ação a razão não diz quais devem ser os nossos objetivos apenas o que devemos fazer para atingilos pode nos dizer em que acreditamos mas não pode nos dizer no que devemos acreditar A aprovação moral logo não é um juízo da razão sobre conceitos ou fatos Em outras palavras não basta conhecer o ca ráter de virtude de uma ação o sentido de sua dimensão moral é necessário agir movido por um motivo virtuoso A ação moral mente virtuosa não é aquela em que o agente é simplesmente movido pelo caráter de virtude da ação mas aquela em que o agente é movido por um motivo virtuoso Vejamos um texto de Hume a esse respeito 4 Vemos portanto que todas as ações virtuosas derivam seu mérito unicamente de motivos virtuosos sendo tidas apenas como signos desses motivos Desse princípio concluo que o pri meiro motivo virtuoso que confere mérito a uma ação nunca pode ser uma consideração pela virtude dessa ação devendo ser antes algum outro motivo ou princípio natural Supor que a mera consideração pela virtude da ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um raciocínio circular Pra que possamos ter tal consideração a ação tem de 150 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt ser realmente virtuosa e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso conseqüentemente o motivo virtuoso precisa ser diferente da consideração pela virtude da ação É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne vir tuosa Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude Portanto algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração 7 Em resumo podemos estabelecer como uma máxima indu bitável que nenhuma ação pode ser virtuosa ou moralmente boa a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produza distinto do sentido de sua moralidade HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Hume dá como exemplo uma ação de honestidade e faz a dis tinção entre o simples conhecimento do caráter de virtude de uma ação de honestidade e a existência ou não de um motivo virtuoso propriamente dito Mostra que não é simplesmente o agir por con siderar a honestidade uma virtude que torna a ação honesta mas o motivo virtuoso presente ou não no interior da natureza do agente 9 Agora apliquemos tudo isso ao caso presente Suponhamos que uma pessoa tenha me emprestado uma soma em dinheiro sob a condição de que eu lhe restituísse essa soma em alguns dias suponhamos também que no fim do prazo combinado ela me peça o dinheiro de volta Pergunto que razão ou motivo tenho para devolverlhe o dinheiro Dirseá talvez que meu respeito pela justiça e minha repulsa à vilania e à desonestida de são para mim razões suficientes se possuo um mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação Sem dúvida essa resposta é correta e satisfatória para o homem em seu es tado de civilização e quando formado segundo certa discipli na e educação Mas em sua condição rude e mais natural se quereis chamar de natural tal condição essa resposta seria re jeitada como completamente ininteligível e sofística Pois uma pessoa que se encontrasse nessa situação imediatamente vos perguntaria em que consiste essa honestidade e justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da 151 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt propriedade alheia Certamente não está na ação externa Por conseguinte tem de estar no motivo de que essa externa foi derivada Esse motivo nunca poderia ser a consideração pela honestidade da ação pois é uma clara falácia dizer que é preci so um motivo virtuoso para tornar uma ação honesta e ao mes mo tempo em que a consideração pela honestidade é o moti vo da ação Só podemos ter consideração pela virtude de uma ação se a ação for de antemão virtuosa Ora uma ação só pode ser virtuosa se procede de um motivo virtuoso Um motivo vir tuoso portanto deve anteceder a consideração pela virtude é impossível que o motivo virtuoso e a consideração pela virtude sejam a mesma coisa HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 Quando o motivo de uma ação for tão somente o sentido da moralidade ou do dever ela pode estar expressando uma ca rência É o que diz Hume 8 Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode produzir uma ação sem qualquer outro motivo Respondo que sim mas que isso não constitui uma objeção à presente doutri na Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na na tureza humana uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo pode odiar a si mesma por essa razão e pode rea lizar a ação sem o motivo apenas por certo sentido do dever ao menos para disfarçar para si mesma tanto quanto possível sua carência Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu íntimo pode apesar disso ter prazer em praticar cer tos atos de gratidão pensando desse modo ter realizado o seu dever As ações inicialmente são consideradas somente como signos de motivos mas o que costuma ocorrer nesse caso e em todos os demais é que acabamos fixando nossa atenção apenas nos signos negligenciando em parte a coisa significada HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 E Hume conclui 10 É preciso encontrar portanto para os atos de justiça e ho nestidade algum motivo distinto de nossa consideração pela honestidade e é nisso que está a grande dificuldade Porque 152 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt se disséssemos que a preocupação com nosso interesse priva do ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as ações honestas seguirseia que sempre que cessa tal preocu pação a honestidade não poderia mais ter lugar Mas é certo que o amor a si próprio quando age livremente em vez de nos levar a ações honestas é fonte de toda injustiça e violência e ninguém pode corrigir esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 essa capacidade emotiva que propicia ações moralmente vir tuosas é para hume uma percepção Por influência da teoria do senso comum dos moralistas ingleses e escoceses de que falamos na introdução desta unida de Hume concebe essa capacidade emotiva como sendo uma faculdade de percepção moral imediata e desinteressada simi lar às faculdades de percepção sensorial uma faculdade que de tectaria qualidades morais em pessoas ações comportamentos e situações tal como nossos sentidos externos captam qualida des nos objetos externos Ao examinar o que nos motiva a agir de certa maneira podemos determinar a natureza de uma virtu de especificamente se ela é natural ou artificial Virtudes naturais e artificiais as virtudes naturais seriam aquelas naturalmente apro vadas a benevolência a humildade a caridade a generosidade As virtudes artificiais por sua vez seriam as mais necessá rias porque segundo Hume os valores morais mais importantes são uma questão de convenção social São elas a justiça o cum primento de promessas a lealdade a modéstia etc 153 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt No homem observase uma conjunção antinatural de fragilida de e de necessidade Hume afirma 2 De todos os animais que povoam nosso planeta à primeira vista parece ser o homem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel dadas as inúmeras carências e necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe fornece para aliviar essas necessidades Em outras criaturas esses dois pontos em geral se compensam mutuamente Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro descobriremos que é cheio de necessidades mas se prestarmos atenção em sua constitui ção e temperamento sua agilidade sua coragem suas armas e sua força veremos que nele as vantagens são proporcionais às carências O carneiro e o boi carecem de todas essas vanta gens mas seus apetites são moderados e seu alimento é fácil de obter Apenas no homem se pode observar em toda a sua perfeição essa conjunção antinatural de fragilidade e necessi dade Não somente o alimento necessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação ou ao menos exige traba lho para ser produzido como além disso o homem precisa de roupas e abrigo para se defender das intempéries Entretanto considerado apenas em si mesmo ele não possui armas força ou qualquer outra habilidade natural que seja em algum grau condizente com as necessidades HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 Pela sociedade e pela formação da família o homem se torna superior às demais criaturas Para o filósofo 3 Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas deficiên cias igualandose às demais criaturas e até mesmo adquirindo uma superioridade sobre elas Pela sociedade todas as suas de bilidades são compensadas embora nessa situação suas ne cessidades se multipliquem a cada instante suas capacidades 154 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt se ampliam ainda mais deixandoo em todos os aspectos mais satisfeito e mais feliz do que jamais poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária Quando cada indivíduo trabalha isoladamente e apenas para si mesmo sua força é limitada de mais para executar qualquer obra considerável tem de empre gar seu trabalho para suprir as mais diferentes necessidades e sua força e seu sucesso não são iguais o tempo todo a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer a ruína e a infelicidade A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenientes A conjunção de forças amplia nosso poder a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade e o auxílio mú tuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes É por essa força capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa 4 Mas para que a sociedade se forme não basta que ela seja vantajosa os homens também têm de se dar conta de suas vantagens Entretanto em seu estado selvagem e inculto é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse conhecimento Felizmente junto com essas necessidades cujos remédios são remotos e obscuros existe uma outra necessida de que por ter um remédio mais imediato e evidente pode ser legitimamente considerada o princípio primeiro e original da sociedade humana Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natural que existe entre os sexos unindoos e preser vando sua união até o surgimento de um outro laço ou seja a preocupação com sua prole comum Essa nova preocupação também se torna um princípio de união entre os pais e os filhos formando uma sociedade mais numerosa em que os pais go vernam em virtude da superioridade de sua força e sabedoria e ao mesmo tempo têm o exercício de sua autoridade limitado pela afeição natural que sentem por seus filhos Em pouco tem po o costume e o hábito agindo sobre as tenras mentes dos filhos tornamnos sensíveis às vantagens que podem extrair da sociedade além de gradualmente formálos para essa socieda de aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem sua coalizão HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 155 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O poder das paixões pode ser um obstáculo ao exercício da ge nerosidade advinda do convívio social Hume diz 6 Entretanto embora devamos reconhecer em honra da na tureza humana a existência dessa generosidade podemos ao mesmo tempo observar que essa paixão tão nobre em vez de preparar os homens para a vida em sociedades é quase tão contrária a estas quanto o mais acirrado egoísmo Pois enquanto cada pessoa amar a si mesma mais que a qualquer outro e em seu amor pelos demais sentir maior afeição por seus parentes e amigos essa situação deve necessariamente produzir uma oposição de paixões e conseqüentemente uma oposição de ações e para uma união recémestabelecida isso só pode ser perigoso 7 Notese entretanto que essa contrariedade de paixões se ria pouco perigosa se não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstâncias externas que dá a ela oportunidade de se exercer Os bens que possuímos podem ser de três espécies diferentes a satisfação interior do espírito as qualidades ex teriores de nosso corpo e a fruição dos bens que adquirimos com o nosso trabalho e nossa boa sorte Podemos usufruir dos primeiros com plena segurança os segundos podem nos ser tomados mas não beneficiam em nada a quem deles nos priva Apenas os últimos podem ser transferidos sem sofrer alguma perda ou alteração além disso não existem em quan tidade suficiente para suprir os desejos e as necessidades de todas as pessoas Por isso assim como o aperfeiçoamento desses bens é a principal vantagem da sociedade assim tam bém a instabilidade de sua posse justamente com a sua es cassez é seu maior impedimento HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 156 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A solução são as virtudes artificiais a necessidade de uma con venção social O filósofo afirma 9 O remédio portanto não vem da natureza mas do artifício ou mais corretamente falando a natureza fornece no juízo e no entendimento um remédio para o que há de irregular e inconveniente nos afetos Porque quando os homens em sua primeira educação na sociedade tornamse sensíveis às infi nitas vantagens que dela resultam e além disso adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversação e quando observam que a principal perturbação da sociedade se deve a esses bens que denominamos externos a sua mobilidade e à facilidade com que se transmitem de uma pessoa a outra en tão precisam buscar um remédio que ponha esses bens tanto quanto possível em pé de igualdade com as vantagens firmes e constantes da mente e do corpo Ora o único meio de rea lizar isso é por uma convenção de que participam todos os membros da sociedade para dar estabilidade à posse desses bens externos permitindo que todos gozem pacificamente da quilo que puderam adquirir por trabalho ou boa sorte Desse modo cada qual sabe aquilo que pode possuir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parciais e con traditórios Tal restrição não é contrária às paixões se o fosse jamais poderia ser feita nem mantida É contrária apenas a seu movimento cego e impetuoso Em vez de abrir mão de nossos interesses próprios ou do interesse de nossos amigos mais próximos abstendonos dos bens alheios não há melhor meio de atender a ambos que por essa convenção porque é desse modo que mantemos a sociedade tão necessária a seu bemestar e subsistência como também aos nossos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 157 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A ideia de justiça é uma virtude artificial porque é obtida por uma convenção social e funda e explica as ideias de proprieda de de direito e de obrigação Hume prossegue 11 Uma vez firmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios e uma vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses surgem imediatamente as idéias de justiça e de in justiça bem como as de propriedade direito e obrigação Essas últimas são absolutamente ininteligíveis sem a compreensão das primeiras Nossa propriedade não é senão aqueles bens cuja posse constante é estabelecida pelas leis da sociedade isto é pelas leis da justiça Portanto aqueles que utilizam as palavras propriedade direito ou obrigação sem ter antes explicado a origem da justiça ou que fazem uso daquelas para explicar essa última estão come tendo uma falácia grosseira mostrandose incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido A propriedade de uma pessoa é um objeto a ela relacionado essa relação não é natural mas moral e fundada na justiça É absurdo portanto imaginar que podemos ter uma idéia de propriedade sem compreender completamente a natureza da justiça e mostrar sua origem no artifício e na invenção humana A origem da justiça explica a da propriedade Ambas são geradas pelo mesmo artifício Como nosso primeiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de nossas paixões e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estranhos é impos sível que exista naturalmente algo como um direito ou uma pro priedade estabelecida enquanto as paixões opostas dos homens impelem em direções contrárias e não são restringidas por nenhu ma convenção ou acordo HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 2 Um ato isolado de justiça não atinge a sua finalidade porque sendo isolado e único é frequentemente contrário ao interesse público Sendo a justiça produto de uma convenção social tem como fim o interesse público Portanto um ato isolado e privado de justiça não atingiria a sua finalidade 158 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 22 Quando um homem de mérito dado à caridade restitui uma grande fortuna a um avaro ou a um enganador desleal ele agiu de maneira justa e louvável mas o grupo sofrerá as conseqüên cias Todo ato isolado de justiça considerado separadamente não contribui nem ao interesse privado nem ao interesse público e poderemos facilmente conceber de que maneira alguém pode empobrecer em conseqüência de um caso isolado de integridade e em razão de desejar que por um só ato as leis da justiça sejam em todo o universo suspensas por um instante Mas embora os atos isolados de justiça sejam contrários ao interesse públi co e privado é certo que um plano ou esquema de vários atos contribuem altamente através da verdade e são absolutamente necessários à sustentação da sociedade e um benefício para cada indivíduo É impossível separar o bem do mal Ainda que um grupo sofra em determinado caso este mal temporário é grande mente compensado pela obediência constante à regra e pela paz e ordem que ela institui na sociedade HUME 1991 p 9899 Considerações finais Finalizando gostaríamos de assinalar que o afastamento de uma razão abstrata e conceitual como fonte ética da ação moral conduz Hume na direção do que entendemos como sen do uma das facetas essenciais do ético propriamente dito tal como o estamos compreendendo nesta obra e que consiste em contemplar o caráter intencional singular de cada ato compor tamento e situação Contemplar o caráter intencional de uma ação comportamento ou situação é contemplar sua morada interior e não a morada exterior ou o fato da ação em si a realização externa não tem nenhum mérito diz hume vimos como o filósofo descreve essa morada interior fundamentandoa na motivação o que importa é o caráter emotivo da ação aquilo que a move e que a distingue da mo rada exterior que é a ação apenas como puro sinal 159 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt No tópico seguinte a este trabalharemos a posição do filóso fo Immanuel Kant cujas reflexões sobre a moral receberam como ele mesmo diz grande influência do pensamento de Hume a quem atribui o despertar do sono dogmático em que se encontrava 6 iMManuel kant 17241804 Kant nasceu viveu e morreu em Königsberg Prússia Oriental atual Alemanha Nasceu em uma família de poucos recursos finan ceiros Recebeu uma educação particularmente de sua mãe fun dada nos princípios do pietismo corrente radical do protestantismo prussiano originário de um movimento da Igreja Luterana alemã do século 18 lutou sempre com dificuldades tanto materiais quanto no que se refere à compreensão de sua proposta filosófica inovado ra Mantevese porém firme em seu trabalho de grande rigor A época em que viveu Kant o século 18 como foi dito na introdução desta unidade é chamada de Século das Luzes ou Ilu minismo ou ainda Era da Razão época da qual é um dos maio res representantes e que tinha por objetivo principal reformar a sociedade contra a intolerância da Igreja e do Estado Kant não nega a importância da religião que tem segundo ele sua razão de ser uma vez que existe todo um mundo que escapa às capacidades da razão Porém quer mostrar que o fun damento do conhecimento e da moral pode ser encontrado fora da religião que até então dominara Segundo Kant não podemos pretender conhecer realida des transcendentes às quais não temos acesso Devemos nos li mitar a buscar conhecer a realidade que é objeto de experiência para nós E para tanto fazse necessário esclarecer qual seria a estrutura de nossas capacidades cognitivas aquelas que não de 160 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt correm de experiências individuais e particulares mas que dizem respeito a toda a humanidade como tal A conclusão a que chega é que as duas fontes do conheci mento sensibilidade e entendimento estão no sujeito e não no mundo leia o tópico kant e o iluminismo desta mesma unidade Kant e a moral As quatro principais obras de Kant em que a moral é trata da mais longamente são Fundamentação da metafísica dos costumes 1785 Crítica da razão prática 1788 Crítica da faculdade de julgar 1790 A paz perpétua um projeto filosófico 1795 a teoria da boa vontade Kant começa afirmando que a única coisa que merece a denominação de bem e de bom é o que chamou de boa vontade a boa vontade é no dizer de kant o que é possí vel conceber no ou fora do mundo como bom sem restrição Os diversos talentos do espírito como inteligência capacidade de julgar coragem decisão perseverança e temperança serão coisas boas ou ruins dependendo das disposições próprias ou do caráter da vontade que os esteja usando Poderíamos dizer o mesmo de dons como poder riqueza felicidade Tais talentos ou dons trazem segundo o filósofo uma confiança em si que frequentemente na ausência de uma boa vontade se conver tem em presunção NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo ou mesmo fora do mundo que sem restrição possa ser considerada boa a 161 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt não ser uma só uma BOA VONTADE A inteligência o dom de apreender as semelhanças das coisas a faculdade de julgar e os demais talentos do espírito seja qual for o nome que se lhes dê ou a coragem a decisão a perseverança nos propósitos como qualidades do temperamento são sem dúvida sob múl tiplos respeitos coisas boas e apetecíveis podem entretanto estes dons da natureza tornarse extremamente maus e preju diciais se não for boa vontade que deles deve servirse e cuja especial disposição se denomina caráter O mesmo se diga dos dons da fortuna O poder a riqueza a honra a própria saúde e o completo bemestar e satisfação do próprio estado em resu mo o que se chama felicidade geram uma confiança em si mes mo que muitas vezes se converte em presunção quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para fins universais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o princípio da ação Isto sem contar que um especta dor razoável e imparcial nunca lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os desejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz KANT 1994 p 4 A boa vontade é boa em si mesma não está condicionada a circunstâncias O homem é regido por ele mesmo é criador de valores morais Essa consciência moral não é nem instintiva nem emotiva É a própria razão Kant e Hume Para Kant a razão não tem apenas um papel instrumental como para Hume Toda moralidade funda sua autoridade apenas na razão Só a razão determina se uma ação é boa ou má inde pendentemente de nossos desejos Enquanto seres sensíveis estamos submissos ao mecanis mo natural porém como seres dotados de inteligência somos 162 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt capazes de pensar conhecer a nós mesmos e emitir juízos mo rais o que nos torna capazes de escapar ao determinismo da natureza Apenas em alguns casos nossas ações podem ser produ zidas por desejos e crenças Isso acontece quando agimos por inclinação Quando nossas ações são guiadas por considerações morais a razão determina não apenas os meios mas também os fins de nossas ações A questão que se coloca é então a se guinte que razão é essa que por si mesma ordena o que deve acontecer independentemente de todo e qualquer fenômeno e portanto universalmente a todo ser humano Propõe Kant a si então a tarefa de circunscrever os limites de possibilidade tanto da razão responsável pelo conhecimento a especulativa quanto da razão responsável pela moral A razão responsável pela moral é a razão prática Ao tentar fundamentar a moral Kant é levado à proposi ção de uma razão distinta da razão especulativa É a razão que denominou de prática a consciência moral é a razão prática segundo Kant Como observa García Morente em Fundamentos da filosofia 1980 Kant vai buscar em Aristóteles essa denomi nação em cuja também a moral significa razão prática razão prática quer dizer que na consciência moral atua algo que se assemelha à razão mas não é a razão especulativa A consciência moral ou razão prática contém princípios racionais em virtude dos quais nós seres humanos regemos nossa vida É a razão aplicada à ação Essa razão prática contém qualificativos como bom mal moral imoral etc Não tendo a ra zão prática como tem a razão especulativa que rege o conheci 163 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt mento por meta determinar a essência das coisas seus qualifi cativos não se aplicam a coisas as coisas não são boas ou más morais ou imorais mas só se aplicam ao homem Os qualificati vos morais se aplicam ao que o homem quer fazer ou seja ao exercício da vontade Assim por exemplo se alguém comete um erro involuntariamente não podemos qualificálo nem de bom nem de mau nem de moral nem de imoral porque o ato não foi cometido no exercício de sua vontade As três grandes dimensões da consciência moral ou razão prática Trabalharemos a noção de razão prática ou consciência moral em Kant a partir de três grandes dimensões a ela con feridas pelo filósofo São elas a dimensão da universalidade a dimensão da autonomia e a dimensão da liberdade A dimensão da universalidade a razão pura prática ou consciência moral determina a vontade a partir de imperativos O critério fundamental racional para qualificar uma ação como ação moral isto é como ação universalmente válida se ria segundo Kant a existência dessa razão pura prática capaz de estabelecer uma universalidade no que se refere à moral assim como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni versalidade no que diz respeito ao conhecimento Temos então uma razão pura universal que se diferencia em razão pura espe culativa e razão pura prática A razão pura especulativa possuiria a capacidade de determinar a priori o conhecimento do sujeito cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa mesma capaci dade de determinar a priori a vontade do sujeito agente 164 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A razão pura prática daria à vontade de cada um vontade subjetiva particular ordenamentos objetivos Esses ordenamen tos seriam imperativos diz kant A representação de um princípio objectivo enquanto obrigante para uma vontade chamase um mandamento da razão e a fór mula do mandamento chamase imperativo KANT 1960 p 48 Em outras palavras todo ato voluntário se apresenta à ra zão na forma de um imperativo ou seja todo ato ao se realizar aparece à consciência à maneira de um mandamento faça isto não aja assim Os imperativos diz Kant podem ser hipotéticos ou cate góricos Os imperativos hipotéticos sujeitam o mandamento em questão a uma condição se queres obter x faça y Nos impe rativos categóricos ao contrário o mandamento não está sob nenhuma condição impera de maneira absoluta Vejamos a res peito um texto de Kant Ora todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categori camente Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer ou que é possível que se queira O impera tivo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma sem relação com qualquer outra finalidade KANT 1960 p 4851 O imperativo da moralidade é um imperativo categórico Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamen te necessária e boa em si mesma portanto o imperativo da moralidade é um imperativo categórico Há por fim um imperativo que sem se basear como condição em qualquer outra intenção a atingir por um certo comporta mento ordena imediatamente este comportamento Este im 165 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt perativo é categórico Não se relaciona com a matéria da acção e com o que dela deve resultar mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva e o essencialmente bom na acção reside na disposição Gesinnung seja qual for o resultado Este imperativo podese chamar o imperativo da moralidade KANT 1960 p 52 grifo nosso A lei moral enquanto imperativo categórico é universal O imperativo categórico é universal porque contém ao mesmo tempo a lei e o princípio da necessidade de se confor mar com essa lei Como não há condição que limite a lei todo imperativo categórico é universal Vejamos o texto de Kant a esse respeito Quando penso um imperativo hipotético em geral não sei de an temão o que ele poderá conter Só o saberei quando a condição me seja dada Mas se pensar um imperativo categórico então sei imediatamente o que é que ele contém Porque não contendo o imperativo além da lei senão a necessidade da máxima que manda conformarse com esta lei e não contendo a lei nenhuma condição que a limite nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da acção deve ser conforme conformidade essa que só o imperativo nos representa propria mente como necessária KANT 1960 p 5859 Consequentemente a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de imperativos Querer o bem ou a busca do bem não poderia portanto segundo Kant fazer parte da moralidade pois o princípio moral é por sua própria natureza independente de crenças culturas e tradições Fundamentase em algo universal a lei Assim uma vontade perfeitamente boa como seriam a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de imperativos não se apresen tam como obrigadas a leis Diz Kant que 166 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Uma vontade perfeitamente boa estaria portanto igualmente submetida a leis objectivas do bem mas não se poderia repre sentar como obrigada a acções conformes à lei pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pela representação do bem Por isso os imperativos não valem para a vontade divina nem em geral para uma vontade santa o de ver Sollen não está aqui no seu lugar porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei KANT 1960 p 4851 A dimensão da autonomia toda ação moral é uma ação autônoma As leis morais seriam segundo Kant destituídas de todo valor moral se seu princípio determinante tivesse outra origem que não fosse a lei que traz nela mesma essa certeza apodítica certeza evidente Assim ao contrário da ação heterônoma que é instintiva e não decorre da vontade do agente como seria o caso da moral aristocrática que depende de ideais transcendentes e da mo ral utilitarista que depende de ideais que emanam de coisas a ação moral segundo Kant é uma ação autônoma Esse princípio de autonomia da ação moral consiste no fato de as regras ou máximas serem compreendidas como leis univer sais que não advêm da experiência que são absolutamente in dependentes e necessárias que comandam apoditicamente de maneira necessariamente verdadeira opondose ao empírico o que vem da experiência que é contingente e generalizável O indivíduo deve estar livre para agir ou seja não obede cer a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente se dá enquanto possuidor de uma vontade e não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura Por essa razão o princípio que rege a ação de uma vontade li 167 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt vre legisladora universal que é a ação moral é como vimos um imperativo categórico que por ser universal não se funda em nenhuma condição em nenhuma hipótese Assim o princípio segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legisladora universal por meio de todas as suas má ximas se fosse seguramente estabelecido conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que exactamente por cau sa da idéia da legislação universal ele se não funda em nenhum interesse e portanto de entre todos os imperativos possíveis é o único que pode ser incondicional ou melhor ainda invertendo a proposição se há um imperativo categórico isto é uma lei para a vontade de todo o ser racional ele só pode ordenar que tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultanea mente se possa ter a si mesma por objecto como legisladora universal pois só então é que o princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais porque não têm interesse algum sobre que se fundem KANT 1960 p 74 Tratase de uma Ética deontológica a Ética de kant é portanto deontológica ou seja defen de que o valor moral de uma ação reside na própria ação e não em suas consequências É o que veremos mais claramente a seguir a partir da noção kantiana de dever Deontologia é um termo criado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham 17481832 e se refere à ética como tendo por objeto de estudo os fundamentos do dever e das normas enquanto de correntes de uma ação considerada em si mesma Compreende por exemplo o conjunto de princípios e regras de conduta ou deveres decorrentes de uma determinada ação profissional O primeiro Código de Deontologia foi da área da medicina e foi fei to nos Estados Unidos da América do Norte A palavra é formada por deon dever obrigação em grego e logos ciência 168 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O Dever Este agir sem qualquer motivação livre de interesses subordi nando a vontade a uma legislação universal eis o dever diz kant Pois o dever deve ser a necessidade práticaincondicionada da ac ção tem de valer portanto para todos os seres racionais os únicos aos quais se pode aplicar sempre um imperativo e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana KANT 1960 p 64 na moralidade o dever não é porém a mera conformidade com o que prescreve a lei Na moralidade o dever é essencialmente impulso para o dever o dever pelo dever inexiste qualquer outro motivo O va lor moral de um ato fundase na pureza de intenção na medida em que ela independe de qualquer outro motivo que não seja o cumprimento do dever pelo dever Vejamos o que diz Kant É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador inexperiente e quando o movimento do negócio é grande o comerciante esperto também não faz se melhante coisa mas mantém um preço fixo geral para toda a gente de forma que uma criança pode comprar na sua mer cearia tão bem como qualquer outra pessoa Ése pois servido honradamente mas isso ainda não é bastante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princí pios de honradez o seu interesse assim o exigia mas não é de aceitar que ele além disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses de maneira a não fazer por amor deles preço mais vantajoso a um do que a outro A acção não foi por tanto praticada nem por dever nem por inclinação imediata mas somente com intenção egoísta KANT 1960 p 27 169 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt e isto porque uma ação só é moral quando realizada por dever e não conforme ao dever Diz Kant Pelo contrário conservar cada qual a sua vida é um dever e é além disso uma coisa para que toda a gente tem inclinação ime diata Mas por isso mesmo é que o cuidado por vezes ansioso que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral Os homens conservam a sua vida conforme ao dever sem dúvida mas não por dever Em contraposição quando as con trariedades e o desgosto sem esperança roubaram totalmente o gosto de viver quando o infeliz com fortaleza de alma deseja a morte e conserva contudo a vida sem a amar não por inclina ção ou medo mas por dever então a sua máxima tem conteúdo moral KANT 1960 p 27 Fazer a caridade não por inclinação mas por dever O filósofo alemão afirma Ser caritativo quando se pode sêlo é um dever e há além disso muitas almas de disposição tão compassiva que mesmo sem ne nhum outro motivo de vaidade ou interesse acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar com o conten tamento dos outros enquanto este é obra sua Eu afirmo porém que neste caso uma tal acção por conforme ao dever por amável que ela seja não tem contudo nenhum verdadeiro valor moral mas vai emparelhar com outras inclinações por exemplo o amor das honras que quando por feliz acaso topa aquilo que efectiva mente é de interesse geral e conforme ao dever é consequente mente honroso e merece louvor e estímulo mas não estima pois à sua máxima falta o conteúdo moral que manda que tais acções se pratiquem não por inclinação mas por dever Admitindo pois que o ânimo desse filantropo estivesse velado pelo desgosto pes soal que apaga toda a compaixão pela sorte alheia e que ele continuasse a ter a possibilidade de fazer bem aos desgraçados 170 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt mas que a desgraça alheia o não tocava porque estava bastante ocupado com a sua própria se agora que nenhuma inclinação o estimula já ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e prati casse a acção sem qualquer inclinação simplesmente por dever só então é que ela teria o seu autêntico valor moral Mais ainda Se a natureza tivesse posto no coração deste ou daquele homem pou ca simpatia se ele homem honrado de resto fosse por tempera mento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e por isso pressupor e exigir as mesmas quali dades dos outros se a natureza não tivesse feito de um tal homem que em boa verdade não seria o seu pior produto propriamente um filantropo não poderia ele encontrar ainda dentro de si um manancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum temperamento bondoso Sem dúvida É exactamen te aí é que começa o valor do carácter que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto e que consiste em fazer o bem não por inclinação mas por dever KANT 1960 p 28 Portanto a essência do cumprimento por dever estaria na capacidade da vontade de contrariar as tendências naturais não se deixando causar por fatores externos mas atender a im perativos como agir como se o princípio de nossa ação pudesse ser erigido em lei universal da natureza Essa autonomia da razão prática ou consciência moral é o fun damento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional tornandoas um fim e não um meio Diz Kant Ora digo eu O homem e duma maneira geral todo o ser racio nal existe como fim em si mesmo não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade Pelo contrário em todas as suas acções tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais ele tem sempre de ser con siderado simultaneamente como fim KANT 1960 p 68 171 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O imperativo é aja de tal maneira que a humanidade seja tratada tão bem na nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro e sempre como um fim e nunca como meio A terceira dimensão da ação moral a da liberdade A possibilidade da moral segundo Kant não depende nem da ciência nem da religião nem da metafísica ela está fundada na ideia de uma vontade livre a vontade segundo kant é um poder agir ou um poder causar ou ainda um poder querer livres porque possui justa mente esta propriedade de ser a sua própria lei uma vez que não é determinada por causas estranhas como influências e interes ses sensíveis do contrário não se trataria de um ato de vontade A liberdade portanto embora não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais na natureza nos seres irracio nais impera e domina a necessidade é propriedade da vontade nos seres racionais sobre a vontade enquanto poder causador próprio aos seres racionais e a liberdade como propriedade desse mesmo poder causador independentemente de causas estranhas diz Kant é uma espécie de causalidade dos seres vivos enquanto ra cionais e liberdade seria a propriedade desta causalidade pela qual ela pode ser eficiente independentemente de causas estra nhas que a determinem assim como a necessidade é a proprie dade dos seres irracionais de serem determinados à atividade pela influência de causas estranhas KANT 1960 p 9394 grifo nosso 172 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Mas a liberdade enquanto propriedade da vontade não seria desprovida de lei A liberdade não seria desprovida de lei pois é a proprieda de de um poder causador vontade ou seja de uma relação de causa e efeito e como tal é baseada em leis imutáveis Diz Kant Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis se gundo as quais por meio de uma coisa a que chamamos causa tem de ser posta outra coisa que se chama efeito assim a liberdade se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais não é por isso desprovida de lei mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis ainda que de uma espécie particular pois de outro modo uma vontade livre seria absurdo KANT 1960 p 9394 Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis imutáveis independentes de circunstâncias particulares Tratase portanto de uma liberdade transcendental se gundo a expressão de kant em que o poder querer ou a von tade antecede a experiência e independe dela A moral kantiana é uma moral não eudaimônica ou seja não tem por meta a felicidade Eudaimonia palara de origem grega eu bem daimon es pírito significando felicidade não no sentido de uma emoção ou de uma visão utilitarista mas no sentido em que foi empre gada no pensamento grego antigo bemviver prosperidade Embora Kant considere que o fim do homem seja a procura da felicidade como Platão e Aristóteles distingue felicidade de moralidade A razão prática não nos pode ensinar e nem defi 173 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt nir o que é a felicidade apesar desta ser a finalidade dos seres racionais observa que embora estar bem não se oponha a fa zer bem o fato de se estar bem não significa fazer bem a moral nos ensina ou nos leva a ser merecedores da felicidade porém não nos torna felizes O caminho para a felicidade segundo Kant é o dever O cumprimento do dever embora consista em obediência incondi cional não significa renunciar à felicidade porém também não significa subordinação à procura da felicidade Na obra Crítica da Razão Prática Kant observa que a feli cidade não seria o objetivo e fundamento da moralidade pois é um conceito empírico consistindo em um sentimento do agen te Para Kant a felicidade provém da satisfação dos nossos dese jos e por essa razão ela não depende de nós uma vez que esse satisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas à nossa vontade O homem é um ser que pertence à natureza sua felicidade escapa à sua vontade E se escapa à vontade do agente como poderia ser um objetivo da moralidade Relacionada à alegria e aos prazeres a felicidade não dis tingue entre prazeres superiores e inferiores Em outras palavras não é possível definir racionalmente a felicidade independente mente da experiência A felicidade de cada um depende de sua sensibilidade aos diferentes prazeres da vida Assim podese ser feliz com a riqueza beleza inteligência etc Não há conexão necessária no homem entre a moralidade e a felicidade uma vez que a felicidade é dependente de bens contingentes O cumprimento das exigências da lei moral não 174 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt nos concederá por si só nenhuma felicidade a não ser em uma situação absolutamente contingente Diz Kant A felicidade é o estado no mundo de um ser racional para o qual na totalidade da sua existência tudo corre segundo o seu desejo e a sua vontade e fundase pois na harmonia da natureza com o fim integral desse ser e igualmente com o principio determi nante essencial da sua vontade Ora a lei moral enquanto lei da liberdade ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente independentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar como móbeis mas o ser racional agente no mundo não é contudo simultaneamente causa do mundo e da própria natureza Portanto não existe na lei moral a menor conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela proporcionada de um ser que fazendo parte do mundo e por tanto dele dependendo não pode por isso mesmo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazêla por suas próprias forças coadunarse inteiramente KANT 1994 p 143 A razão é contrária à felicidade Segundo Kant podemos mesmo dizer que a razão é con trária à felicidade quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade tanto mais o homem se afasta do verda deiro contentamento e daí provém que em muitas pessoas e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão se elas quiserem ter a sinceridade de o confessar surja um cer to grau de misologia quer dizer de ódio à razão E isto porque uma vez feito o balanço de todas as vantagens que elas tiram não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar mas ainda das ciências que a elas lhes parecem no fim e ao cabo serem também um luxo do entendimento descobrem contu do que mais se sobrecarregaram de fadigas do que ganharam em felicidade e que por isso finalmente invejam mais do que desprezam os homens de condição inferior que estão mais pró ximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande 175 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt influência sobre o que fazem ou deixam de fazer KANT 1960 p 2426 Enfim o supremo destino da razão prática é a fundação de uma vontade e não da felicidade Kant afirma Portanto se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no que respeita aos seus objectos e à satisfação de todas as nossas necessidades que ela mesma a razão em parte multiplica visto que um instinto natural inato levaria com muito maior certeza a este fim e se no entanto a razão nos foi dada como faculdade prática isto é como facul dade que deve exercer influência sobre a vontade então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade não só boa quiçá como meio para outra intenção mas uma vontade boa em si mesma para o que a razão era absolutamente neces sária uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais mesmo de toda a aspiração de felicidade E neste caso é fácil de conci liar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos que a cultura da razão que é necessária para a primeira e incondicio nal intenção de muitas maneiras restringe pelo menos nesta vida a consecução da segunda que é sempre condicionada quer dizer da felicidade e pode mesmo reduzila a menos de nada sem que com isto a natureza falte à sua finalidade por que a razão que reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade ao alcançar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole isto é a que pode achar ao atingir um fim que só ela a razão determina ainda que isto possa estar ligado a muito dano causado aos fins da inclinação KANT 1960 p 2426 176 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Kant e o Iluminismo Em seu texto sobre o Iluminismo respondendo em 1784 à pergunta de uma revista alemã de Berlim Kant expõe seu ideal de apelo ao exercício autônomo da razão aqui descrito Reflete sobre o momento social e político de sua época visando à elevação do homem à sua condição singular e única de ser livre cada um é responsável por essa liberação da me noridade somente cada um com liberdade pode dela se livrar Essa liberação só é possível com o esclarecimento do próprio pensar esclarecimento que deve ser contínuo de maneira a po der ver o mundo com outros olhos livres de conceitos e normas estabelecidos A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido per mite por sua vez a discussão e o intercâmbio de ideias o qual fundamentará a realização da ação transformadora Ético é pois para Kant conquistar deliberadamente a pró pria liberdade incondicionada servindose de sua capacidade ra cional Este seria o caráter singular e único de toda ação humana Observação a palavra alemã Aufklärung é traduzida por escla recimento ilustração Iluminismo Diz Kant 2015 p 12 lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem Tal menorida de é por culpa própria se a sua causa não residir na carência de entendimento mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo sem a guia de outrem Sapere aude Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento Eis a palavra de ordem do Iluminismo 177 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte após a natureza os ter há muito libertado do con trole alheio naturaliter maiorennes 482 continuarem toda via de bom grado menores durante toda a vida e também de a outros se tornar tão fácil assumirse como seus tutores É tão cómodo ser menor Se eu tiver um livro que tem entendimento por mim um director espiritual que em vez de mim tem cons ciência moral um médico que por mim decide da dieta etc então não preciso de eu próprio me esforçar Não me é forçoso pensar quando posso simplesmente pagar outros empreende rão por mim essa tarefa aborrecida Porque a imensa maioria dos homens inclusive todo o belo sexo considera a passagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado tomaram a seu cargo a superintendência deles Depois de terem primeiro embrutecido os seus animais do mésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas pací ficas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram mostramlhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas Ora este perigo não é assim tão grande pois acabariam por aprender muito bem a andar Só que um tal exemplo intimida e em geral gera pavor perante todas as tentativas ulteriores É pois difícil a cada homem desprenderse da menoridade que para ele se tomou 483 quase uma natureza Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de se servir do seu pró prio entendimento porque nunca se lhe permitiu fazer seme lhante tentativa regras e fórmulas são laços de uma menoridade eterna Preceitos e fórmulas instrumentos mecânicos do uso racional ou antes do mau uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua Mesmo quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso por que não está habituado ao movimento livre São pois muito poucos apenas os que conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancarse à menoridade e encetar então um andamento seguro KANT 2015 p 2 178 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt com liberdade é possível sair do estado de menoridade Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça Mais ainda é quase inevitável se para tal lhe for con cedida a liberdade Sempre haverá de facto alguns que pen sam por si mesmo entre os tutores estabelecidos da grande massa que após terem arrojado de si o jugo da menoridade espalharão à sua volta o espírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem para pensar por si mesmo Importante aqui é que o público antes por eles sujeito a este jugo os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tutores pessoalmente incapazes de qual quer ilustração é a isso 484 incitado Semear preconceitos é muito danoso porque acabam por se vingar dos que pessoal mente ou os seus predecessores foram os seus autores Por conseguinte um público só muito lentamente consegue chegar à ilustração Por meio de uma revolução talvez se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou dominadora mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar Novos preconceitos justamente como os antigos servirão de rédeas à grande massa destituída de pensamento KANT 2015 p 2 A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz uso público da própria razão em todos os campos Mas para esta ilustração leiase esclarecimento nada mais se exige do que a liberdade e claro está a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade a saber a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos Agora po rém de todos os lados ouço gritar não raciocines Diz o oficial não raciocines mas faz exercícios Diz o funcionário de Finan ças não raciocines paga E o clérigo não raciocines acredita Apenas um único senhor no mundo diz raciocinai tanto quan to quiserdes e sobre o que quiserdes mas obedecei Por toda a parte se depara com a restrição da liberdade Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo Qual a restrição que o não impede antes o fomenta 179 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Respondo o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode entre os homens levar a cabo a ilustração 485 mas o uso privado da razão pode muitas vezes coarctarse restringirse fortemente sem que no entanto se entrave as sim notavelmente o progresso da ilustração KANT 2015 p 3 Kant 2015 p 34 distingue o uso público do uso privado da razão Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um enquanto erudito dela faz perante o grande público do mundo letrado Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele con fiado Ora em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade é necessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de mediante uma unanimidade artificial serem orientados pelo governo para fins públicos ou de pelo menos serem impedidos de destruir tais fins Neste caso não é decerto permitido raciocinar mas tem de se obedecer Na medida porém em que esta parte da máquina se considera também como elemento de uma co munidade total e até da sociedade civil mundial portanto na qualidade de um erudito que se dirige por escrito a um público em entendimento genuíno pode certamente raciocinar sem que assim sofram qualquer dano os negócios a que em parte como membro passivo se encontra sujeito Seria pois muito pernicioso se um oficial a quem o seu superior ordenou algo quisesse em serviço sofismar em voz alta 486 acerca da incon veniência ou utilidade dessa ordem tem de obedecer mas não se lhe pode impedir de um modo justo enquanto perito fazer observações sobre os erros do serviço militar e expôlas ao seu público para que as julgue O cidadão não pode recusarse a pagar os impostos que lhe são exigidos e uma censura imperti nente de tais obrigações se por ele devem ser cumpridas pode mesmo punirse como um escândalo que poderia causar uma insubordinação geral Mas apesar disso não age contra o de ver de um cidadão se como erudito ele expuser as suas idéias 180 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt contra a inconveniência ou também a injustiça de tais prescri ções Do mesmo modo um clérigo está obrigado a ensinar os instruídos de catecismo e a sua comunidade em conformidade com o símbolo da Igreja a cujo serviço se encontra pois ele foi admitido com esta condição Mas como erudito tem plena liberdade e até a missão de participar ao público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bemintenciona dos sobre o que de erróneo há naquele símbolo e as propostas para uma melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja Nada aqui existe que possa constituir um peso na consciência Com efeito o que ele ensina em virtude da sua função como ministro da Igreja expõeno como algo em relação 487 ao qual não tem o livre poder de ensinar segun do a sua opinião própria mas está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de outrem Dirá a nossa Igreja ensina isto ou aquilo são estes os argumentos comprovativos de que ela se serve Em seguida ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de preceitos que ele próprio não subscre veria com plena convicção mas a cuja exposição se pode no entanto comprometer porque não é de todo impossível que neles resida alguma verdade oculta De qualquer modo porém não deve neles haver coisa alguma que se oponha à religião interior pois se julgasse encontrar aí semelhante contradição então não poderia em consciência desempenhar o seu ministé rio teria de renunciar Por conseguinte o uso que um professor contratado faz da sua razão perante a sua comunidade é apenas um uso privado porque ela por maior que seja é sempre ape nas uma assembleia doméstica e no tocante a tal uso ele como sacerdote não é livre e também o não pode ser porque exerce uma incumbência alheia Em contrapartida como erudito que mediante escritos fala a um público genuíno a saber ao mun do por conseguinte o clérigo no uso público da sua razão goza de uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de falar em seu nome próprio 181 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt O avanço progressivo no esclarecimento é uma deter minação original da natureza humana e um sagrado direito da humanidade A pedra de toque 489 de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo reside na pergunta poderia um povo impor a si próprio essa lei Seria decerto possível na expectativa por assim dizer de uma lei melhor por um determinado e curto prazo para introduzir uma certa ordem Ao mesmo tempo facultarseia a cada cidadão em especial ao clérigo na qua lidade de erudito fazer publicamente isto é por escritos as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteriores entretanto a ordem introduzida continuaria em vi gência até que o discernimento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publicamente que os cidadãos unindo as suas vozes embora não todas poderiam apresentar a sua proposta diante do trono a fim de protegerem as comunidades que de acordo com o seu conceito do melhor discernimento se teriam coadunado numa organização religio sa modificada sem todavia impedir os que quisessem aterse à antiga Mas é de todo interdito coadunarse numa constituição religiosa pertinaz por ninguém posta publicamente em dúvi da mesmo só durante o tempo de vida de um homem e deste modo aniquilar por assim dizer um período de tempo no pro gresso da humanidade para o melhor e tornálo infecundo e prejudicial para a posteridade Um homem para a sua pessoa 490 e mesmo então só por algum tempo pode no que lhe incumbe saber adiar a ilustração mas renunciar a ela quer seja para si quer ainda mais para a descendência significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito da humanidade O que não é lícito a um povo decidir em relação a si mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo pois a sua autorida de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade unificar a vontade conjunta do povo Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida coincide com a ordem ci vil pode então permitir que em tudo o mais os seus súbditos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a sal vação da sua alma Não é isso que lhe importa mas compete 182 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt lhe obstar a que alguém impeça à força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fomento da mesma KANT 2015 p 5 Considerações finais Vimos que Kant ao se ocupar do fundamento da moral é levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe culativa própria do conhecimento científico razão que chamou de razão prática a moralidade não decorreria das regras de um código de conduta não se limitaria em agir de acordo com normas Para Kant regras morais se identificam facilmente com causas exteriores à razão São do domínio das leis enquanto con venções sociais e do Direito positivo Variam segundo as culturas e épocas Não são os hábitos de conduta e de comportamento que nos levam a optar pelo cumprimento do dever ou decisões con duzidas pela boa vontade Em outras palavras não são a trans missão e o respeito a um código de conduta que nos levarão a um comportamento moral Propõe assim uma moralidade autônoma fundada na teoria dos imperativos categóricos essencialmente universais daí o nome de universalismo ético dado à posição kantiana Uma moralidade dependente inteiramente de uma razão práti ca ou seja independente de condicionamentos externos sejam eles históricos étnicos sociais etc A razão prática é a razão que guia a ação É uma forma pura que pode ser aplicada a qualquer situação Tem a validade universal das leis que regem a natureza Assumida como algo ab soluto não pode ser exercida sob condições Sua inteligibilidade pode ser alcançada porém não pela razão teórica 183 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt A razão prática não depende de nada a não ser de si mes ma é absolutamente livre e nisso é o contrário da natureza esta atua segundo leis a razão prática que é a vontade racional hu mana atua segundo a ideia de lei ultrapassando tudo o que seja sensível para ser ela mesma Causa incondicionada de si mesma é a manifestação da razão como tal em toda a sua força e superioridade Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien tíficas porque como estas são igualmente universais e im pessoais não se referem a pessoas lugares ou épocas Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade mediata ou seja é construído mediante uma generalização de conteúdos advindos da experiência empírica a máxima em que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de generalização não contém conteúdo empírico mas é de nature za imediata Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar por meio do pensamento de diferentes filósofos a presença de uma dimensão ética propriamente dita não passível de ser trabalha da à luz da razão especulativa generalizante Um saber daquela morada interior singular e única e nem por isso menos uni versal provida de uma inteligibilidade pura isenta de conteúdos sensíveis saber que nos põe em contato com uma dimensão hu mana não cognoscitiva mas de natureza valorizadora 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 184 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt 1 Com base no trecho de Hume a seguir presente em sua célebre obra in titulada Tratado da natureza humana redija um comentário procuran do sinalizar em que medida está presente na reflexão humeana o ético morada interior e o moral morada exterior na forma como estamos tentando encontrar essa distinção na História da Filosofia 2 É evidente que quando elogiamos uma determinada ação consideramos apenas os motivos que a produziram e tomamos a ação como signo ou indicador de certos princípios da mente e do caráter A realização externa não tem nenhum mérito Te mos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a quali dade moral Ora como não podemos fazêlo diretamente fixa mos nossa atenção na ação como signo externo Mas a ação é considerada apenas um signo o objeto último de nosso elogio e aprovação é o motivo que a produziu 3 Do mesmo modo sempre que exigimos que uma pessoa re alize uma ação ou a censuramos por não realizála estamos supondo que alguém nessa situação deveria ser influenciado pelo motivo próprio dessa ação e consideramos vicioso que o tenha desconsiderado Se após investigarmos melhor a situa ção descobrimos que o motivo virtuoso estava presente em seu coração embora sua operação tenha sido impedida por alguma circunstância que nos era desconsiderada retiramos nossa censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse de fato realizado a ação que dela exi gíamos HUME 2009 Livro III Parte 2 Seção 1 2 De que forma Kant une a vontade livre a uma causalidade da vontade a Para Kant a causalidade é uma propriedade apenas da natureza em que um objeto determina o outro necessariamente Nesse sentido a causalidade da vontade determinaria um outro objeto a agir de uma determinada forma nisso consistindo a liberdade b A liberdade da vontade é uma propriedade dos seres humanos racio nais A vontade é livre para se autodeterminar ou seja sua autodetermi nação é uma causalidade interna própria dos seres racionais Mas essa autodeterminação segue necessariamente leis causais que embora não sejam naturais são imutáveis pois o conceito de causalidade já traz consigo o de lei Sendo assim uma vontade livre que não pudesse se autodeterminar segundo suas próprias leis universais seria um absurdo 185 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt c Não pode haver causalidade na vontade livre pois para Kant a liber dade não pode ser autodeterminada por meio de leis universais Nesse sentido seria absurdo propor uma causalidade para a liberdade sen do esta isenta de toda a lei d Todas as respostas anteriores estão corretas Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 Nesta questão você deve levar em consideração o signo exterior da ação como sendo constitutivo da morada exterior e o motivo virtuoso interno como o objeto de investigação da morada interior 2 b 8 CONSIDERAÇÕES Vimos que Kant ao se ocupar do fundamento da moral é levado a postular outra razão distinta da razão teórica ou espe culativa própria do conhecimento científico razão que chamou de razão prática Embora considere as leis morais semelhantes às leis cien tíficas porque como estas são igualmente universais e im pessoais não se referem a pessoas lugares ou épocas Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos de leis enquanto o conceito científico se funda em uma universalidade mediata ou seja é construído mediante uma generalização de conteúdos advindos da experiência empírica a máxima em que se baseia a lei moral não decorre de nenhum processo de generalização não contém conteúdo empírico mas é de nature za imediata 186 Ética ii UNIDADE 3 ÉtIcA MoDErNA HUME E KANt Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar por meio do pensamento de diferentes filósofos a presença de uma dimen são ética propriamente dita não passível de ser trabalhada à luz da razão especulativa generalizante Um saber daquela morada inte rior singular e única e nem por isso menos universal provida de uma inteligibilidade pura isenta de conteúdos sensíveis saber que nos põe em contato com outra dimensão humana uma dimensão não cognoscitiva mas de natureza estimativa e valorizadora 9 ereFerÊncias CONTE J A natureza da moral de Hume 2004 Tese Doutorado em Filosofia Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São Paulo 2004 Disponível em httpwwwtedeufscbrtesesUSP1019Tpdf Acesso em 31 ago 2015 GARCÍA MORENTE M Fundamentos de filosofia lições preliminares Trad Guilhermo de la Cruz Coronado 8 ed São Paulo Mestre Jou 1980 Disponível em http copyfightmeAcervolivrosMORENTE20Manuel20Garcia20Fundamentos20 de20Filosofiapdf Acesso em 26 ago 2015 KANT I Resposta à pergunta o que é o iluminismo Tradução de athur Mourão Disponível em httpwwwlusosofianettextoskantoiluminismo1784pdf Acesso em 28 ago 2015 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS HUME D Tratado da natureza humana uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais Trad Débora Danowski 2 ed São Paulo Unesp 2009 Traité de la nature humaine Paris GarnierFlammarion 1991 KANT I Fundamentação da metafísica dos costumes Trad Paulo Quintela Lisboa Edições 70 1960 Textos Filosóficos Crítica da razão prática Trad Artur Morão Lisboa Edições 70 1994 Textos Filosóficos ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 187 pRiMóRdiOS da póSMOdeRnidade ScHOpenHaUeR e nietzScHe 1 OBJETIVO Verificar a acentuação da preocupação ética em detri mento da moral no pensamento de Schopenhauer e Nietzsche 2 CONTEÚDOS A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer O problema da valoração moral em Nietzsche 3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir 1 A fim de se ambientar com o pensamento de Arthur Schopenhauer indicamos o vídeo dividido em par tes do Prof Dr José Thomaz Brum Observações sobre Schopenhauer BRUM J T Observações sobre Schopenhauer Par te 1 Disponível em httpwwwyoutubecom watchvP4Px9zajVXE Acesso em 31 ago 2015 Unidade 4 188 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observações sobre Schopenhauer Parte 2 Disponível em httpwwwyoutubecomwa tchvufkcJ0MrnBsfeatureendscreenNR1 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 3 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1v8kvUCPtgUiw Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 4 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1vUCjQcIBU9Ak Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 5 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chfeatureendscreenNR1vTvd59opNEjU Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 6 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chNR1featureendscreenvLa5qBut9Mw0 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 7 Disponível em httpwwwyoutubecomwa tchNR1featureendscreenvds7JfLGtGk Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Parte 8 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chvUD6iAUXBdycfeatureendscreenNR1 Acesso em 31 ago 2015 189 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observações sobre Schopenhauer Parte 9 Disponível em httpwwwyoutubecomwat chvak3rp3sp4e4featureendscreen Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Par te 10 Disponível em httpwwwyoutubecom watchvDiJA0gpwt8 Acesso em 31 ago 2015 Observações sobre Schopenhauer Fi nal Disponível em httpwwwyoutubecom watchv6VJxgpSFrdM Acesso em 31 ago 2015 2 Sobre a Filosofia de Nietzsche sugerimos que você assista ao episódio do Café Filosófico da TV Cultura com palestra da Profª Viviane Mosé Disponível em httpwwwyoutubecomwatchvwszgKT2zSc Acesso em 31 ago 2015 3 No decorrer de seus estudos talvez você sinta a neces sidade de conhecer mais a respeito de determinado assunto Por isso seria interessante que você adqui risse o hábito de consultar dicionários específicos da filosofia Sugerimos a seguir dois dos dicionários mais utilizados por aqueles que se interessam por Filosofia talvez você os encontre em versões mais atualizadas ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed Trad Ivone Castilho Benedetti São Paulo Martins Fon tes 2007 LALANDE A Vocabulário técnico e crítico da Filoso fia 3 ed São Paulo Martins Fontes 1999 190 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE 4 INTRODUÇÃO A modernidade preparou uma espécie de otimismo em re lação ao desenvolvimento da ciência e atrelado a ele a crença de que a ciência seria responsável por uma constante melhoria da situação existencial da vida humana De Descartes a Kant te mos uma valorização da razão que se pretende como a única ca paz de levar a cabo o projeto de uma humanidade esclarecida Tal projeto encarnase como movimento histórico do chamado século das luzes com o iluminismo no entanto sorrateiramen te a mesma modernidade vai fazendo brotar uma compreensão pessimista com relação a esse mesmo projeto futurístico uma desconfiança de que os rumos traçados pela razão não levarão ao fim desejado Os valores iluministas a crença na razão acabam levan do a um esgotamento de suas possibilidades A metafísica ra cional chega ao seu ápice com o pensamento de Hegel para o qual todo o real é racional e ao mesmo tempo esgota suas possibilidades Schopenhauer e Nietzsche mais do que filósofos que integram em suas filosofias a questão do irracional da von tade do pessimismo etc são os filósofos que deixam emergir os problemas que apareciam como questões de segunda ordem na modernidade e vislumbram novas possibilidades de filosofar mesmo disparando duros golpes à razão a questão ética o ca ráter começa a aparecer no primeiro plano das preocupações desses filósofos enquanto o problema moral vai perdendo es paço Assim convidamos você a acompanhar os pensamentos desses dois grandes expoentes da Filosofia Vamos lá 191 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE 5 arthur schoPenhauer 17881860 Schopenhauer pertencia a uma família de ricos comercian tes e estava destinado a se dedicar ao comércio Das inúmeras viagens na companhia de seu pai ficalhe a certeza do caráter trágico da vida humana Decide então mergulhar no estudo das obras de Kant Inscrevese na Universidade alemã de Göttingen para es tudar Medicina e Ciências Exatas porém seu interesse pela Filo sofia é maior Assiste em Berlim aos cursos de Fichte discípulo de Kant cujo entendimento do criticismo kantiano consiste em um idealismo imanentista ou seja movimento de pensamento para o qual as coisas não existem em si todo conhecimento é representação Retirase para Rudolstadt cidade alemã fundada em 776 onde medita e escreve durante cinco anos Sua obra O mundo como vontade e como representação é publicada em Leipzig em 1818 Após tentar e não conseguir se dedicar ao ensino na Uni versidade de Berlim instalase em 1831 na cidade de Frankfurt Com a publicação em 1851 da obra Parerga e paralipome na que significa trabalhos menores e que consiste em uma série de pensamentos ordenados sobre diversos assuntos inclusive os famosos Aforismos para a sabedoria e vida tornase conhecido Uma Ética da compaixão o fundamento da moral em schopenhauer é a compai xão do latim compassione que significa uma compreensão do estado emocional de outrem colocandose no seu lugar bus cando minorar o seu sofrimento O princípio ético fundamental 192 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE para Schopenhauer é não faças mal a ninguém mas ajudes a todos que puderes Dentro do contexto do pensamento de Schopenhauer a compaixão implicaria a negação do querer viver nichtwollen Vejamos o porquê no próximo tópico Vontade e representação Para Schopenhauer tudo no mundo é vontade e representação Vontade Toda existência seria a manifestação de um querer es sencial O conceito de vontade tem no pensamento do filósofo uma extensão muito mais ampla do que aquela em que é comu mente entendido pois a vontade é para Schopenhauer o que funda toda a realidade Conhecida de imediato nada é mais bem compreendido por nós do que a vontade diz o filósofo Na segunda parte de sua obra O mundo como vontade e como representação Schopenhauer diz que a solução do enigma do mundo deve ser buscada no homem uma vez que é a expe riência interior que nos levará à essência do mundo Na reflexão sobre si mesmo o sujeito surge como querer e não como en tendimento A vontade não é como o conhecimento comandada pelo cérebro é uma força original que cria e mantém o corpo com suas funções conscientes e inconscientes A vontade é o que está na origem de todas as forças inor gânicas da natureza substância íntima e original é idêntica quanto à matéria em todas as mudanças e movimentos dos cor 193 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pos em todas as suas variações nos minerais nos vegetais nos animais e nos humanos Faz germinar e crescer a planta dá a forma regular ao cristal manifestase na matéria mais bruta sob a forma de peso Embora todas essas coisas se deem a nós dis tintas umas das outras na realidade são individuações de uma mesma vontade O mundo em si desde o inorgânico ao ser hu mano seria um querer viver um fluxo perpétuo e eterno de afirmação da vida sua origem e seu fim Continuando o filósofo diz que o conhecimento preciso e imediato nos é fornecido pelos movimentos de nosso próprio corpo e a isso chamamos vontade A força que age e move a na tureza e se manifesta nos fenômenos de maneira cada vez mais perfeita elevase bastante alto para que o conhecimento a escla reça por meio de uma luz direta Em outras palavras essa força que age e move a natureza apresentase de maneira cada vez mais perfeita até se tornar passível de conhecimento Chegada essa força ao estado de consciência de si revelase propriamen te como vontade noção da qual temos conhecimento preciso e que por isso mesmo longe de ser explicada por qualquer ou tro elemento estranho explicase a si mesma a vontade é pois o que se expressa das mais variadas maneiras em tudo o que existe no mundo é a essência do mun do e a substância de todos os fenômenos Representação Por sua vez o mundo existe apenas como representação ou seja na relação com um ser que percebe A realidade seja ela o que for não seria separável das formas de apreensão de um sujeito formas como 194 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE a do tempo responsável pela finitude do mundo a do espaço responsável pela multiplicidade a da causalidade responsável pela necessidade A vontade diferentemente do mundo dos fenômenos ou do mundo como representação não seria determinada pe las três formas a priori citadas pois a vontade não depende do tempo porque é eterna nem do espaço porque é una nem da causalidade porque é livre Enfim a base ou fundamento cons titutivo de toda realidade se inscreve na falta de determinação temporal espacial e causal Segundo o filósofo o mundo fenomênico ou da represen tação é o espelho da vontade de vida A Vontade que considerada puramente em si destituída de conhecimento é apenas um ímpeto cego e irresistível como a vemos entrar em cena na natureza inorgânica e na natureza vegetal assim como na parte vegetativa da nossa própria vida atinge pela entrada em cena do mundo como representação desenvolvida para o seu serviço o conhecimento de sua volição e daquilo que ela quer a saber nada senão este mundo a vida justamente como esta existe Por isso denominamos o mundo fenomênico seu espelho sua objetidade e como o que a Vontade sempre quer é a vida precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer para a representação é in diferente e tão somente um pleonasmo se em vez de simples mente dizermos a vontade dizemos a vontade de vida Onde existe Vontade existirá vida mundo Portanto à Vontade de vida a vida é certa e pelo tempo em que estivermos preen chidos de Vontade de vida não precisamos temer por nossa exis tência nem pela visão da morte SCHOPENHAUER 2005 p 358 O fundo de todas as formas vivas é assim constituído desse esforço incessante o qual ao alcançar o ponto alto de suas mani festações objetivas seu princípio verdadeiro e mais geral revela 195 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE se a si mesmo como vontade encarnada em um corpo que lhe impõe suas leis tornado este corpo a própria vontade de viver o querer é a condição do surgimento do eu Os atos de nosso corpo ocorrem no tempo e no espaço ligados pela lei da causalidade Ao surgir nossa condição de sujei tos cognoscentes devido ao princípio de individuação como dis tintos uns dos outros passamos a nos perceber imediatamente como sujeitos volitivos O sujeito cognoscente ilumina o sujei to volitivo e o primeiro sinal de consciência de nossa existência surge como o querer pois no momento em que queremos temos consciência de que o ser que conhece é o mesmo ser que quer Portanto o querer é a condição do surgimento do eu o querer não é substância autônoma individual mas é o próprio corpo e suas ações A condição humana todo querer tem por princípio uma neces sidade uma carência e portanto uma dor Schopenhauer descreve a existência humana como trágica e dolorosa como um pêndulo que oscila sem cessar entre o so frimento e o tédio Seu horizonte é a morte Já na matéria bruta encontramos um esforço contínuo sem fim e sem repouso os animais e os homens apresentam uma sede insaciável de que rer Somos todos prisioneiros da dor pela própria natureza pois todo querer tem por princípio uma necessidade uma carência portanto uma dor Se a vontade não é satisfeita ou o desejo não é atendido os homens caem no tédio e suas existências tornam se intoleráveis 196 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Sendo o homem a mais perfeita das formas objetivas da vontade é também de todos os seres o mais atormentado pelas necessidades de se manter vivo ele é inteiramente vontade colocado na Terra incerto de tudo salvo de sua escravidão às necessidades necessidades estas difíceis de satisfazer e a cada vez renovadas Há ainda outra necessidade trazida pela exigência de con servação da vida e que é a perpetuação da espécie Para a gran de maioria dos homens a vida é um combate perpétuo pela so brevivência De acordo com o filósofo o que faz o ser humano lutar não é propriamente o amor à vida mas a angústia e o medo da morte sempre à espreita em qualquer lugar e em qualquer tempo Se a nossa existência não tem por fim imediato a dor pode dizerse que não tem razão alguma de ser no mundo Porque é absurdo admitir que a dor sem fim que nasce da miséria ine rente à vida e enche o mundo seja apenas um puro acidente e não o próprio fim Cada desgraça particular parece é certo uma exceção mas a desgraça geral é a regra Assim como um regato corre sem ímpetos enquanto não encon tra obstáculos do mesmo modo na natureza humana como na natureza animal a vida corre inconsciente e cuidadosa quando coisa alguma se lhe opõe à vontade Se a atenção desperta é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque Tudo o que se ergue em frente da nossa vontade tudo o que a contra ria ou a resiste isto é tudo o que há desagradável e de doloroso sentimolo ato contínuo e muito nitidamente Não atentamos na saúde geral do nosso corpo mas notamos o ponto ligeiro onde o sapato nos molesta não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios e só pensamos numa ninharia insignificante que nos desgosta O bemestar e a felicidade são portanto negativos só a dor é positiva SCHOPENHAUER sd p 2122 197 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A experiência do desejo a morte e a vontade de viver Em sua obra O mundo como vontade e como representa ção Schopenhauer diz que a experiência do desejo é a ausência de algo que falta e a vida consiste em tentar preencher essa fal ta Correse de objeto em objeto em uma perseguição insaciável indo da privação sofrimento para a experiência do tédio após a posse ou realização do desejo Enfim aos seres vivos pesam suas naturezas e suas existências de maneira intolerável As angústias do medo da morte os sofrimentos e as mágoas chegam a tal grau que a morte se torna desejável Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as formas visíveis revestidas de vontade chegando ao ponto mais alto de suas manifestações objetivas encontra seu princípio ver dadeiro e mais geral A vontade então se revela a ela mesma em um corpo vivo que lhe impõe uma lei de ferro o de se alimentar e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada Quais motivos nos levam a transformar um querer em ação O egoísmo é segundo Schopenhauer a potência mais determinante do agir humano Caracterizase por privilegiar a realização do querer individual É a potência moral intrínseca à vontade de viver Faz parte da natureza da vontade dominar se apropriar buscar o próprio prazer e isso significa provocar dor no outro O bemestar de alguns diz o filósofo significa o malestar de ou tros o lucro desmedido de patrões custa suor e lágrimas de ou tros em benefício de alguns impõese trabalho duro a crianças e há ainda a escravidão do ser humano pelo próprio ser humano 198 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE acrescentase a isso o fato da alimentação da espécie humana custar a morte de outros animais e assim por diante outro motivo que nos leva a transformar um querer em ação é a crueldade Enquanto no egoísmo agimos com vistas ao nosso próprio bem na crueldade agimos visando ao mal do outro seja um ser humano ou outros seres como o animal por exemplo A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia porque estreitamente aparentada à cruel dade se distingue propriamente desta apenas como a teoria da prática e localizandose precisamente onde deveria ser o lugar da compaixão que como seu oposto constitui a verda deira fonte de toda genuína justiça e amor pela humanidade SCHOPENHAUER 1974 p 104 A compaixão Mitleid seria um terceiro motivo para agir nesse caso agir pelo bem do outro No ser humano o egoísmo e a crueldade superam em muito a compaixão Na compaixão negamos essa pulsão da vontade esse nosso querer viver agindo pelo bem de outrem diminuímos a distância entre nós mesmos e o outro nos identificando com ele Esse é segundo Schopenhauer o nosso único ato de liber dade expresso no mundo da representação pois compreenden do que o outro sou eu eliminamos as ilusões do mundo da re presentação a infinitude e a liberdade Liberdade e compaixão consistem pois para Schopenhauer em negar esta pulsão da vontade Liberdade e negação do livrearbítrio A posição de Schopenhauer sobre a liberdade é essencial mente original Segundo ele as ações humanas são regidas por 199 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE rigoroso determinismo determinismo esse que se deve à ação vimos dos motivos do egoísmo da crueldade sobre o caráter Tendo em vista esse determinismo o uso prático da razão não é decisivo na moralidade Em outras palavras o fundamen to de toda moral é a vontade um suprassensível inatingível por uma razão prática A autêntica bondade de disposição a virtude desinteressada e a pureza não se originam do conhecimento abstrato embora sem dúvida se originem do conhecimento a saber de um co nhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínio Ora precisamente por não ser abstra to não pode ser comunicado mas tem de brotar em cada um de nós SCHOPENHAUER 2005 p 470471 A justiça e a caridade As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações do ato de negar a pulsão da vontade pois são movimentos que contrariam o sentido fundamental do querer viver que como vimos é essencialmente um voltarse para si mesmo para o pró prio bemestar quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o justo e o injusto mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha quem conseqüentemente jamais na afirmação da própria vontade vai até a negação da vontade que se expõe em outro indivíduo é JUSTO Portanto não infli girá sofrimento a outrem para aumentar o próprio bemestar vale dizer não cometerá crimes respeitará o direito e a proprie dade alheios Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de visão através do principii individuationis enquan to o injusto ao contrário permanece completamente envolto neste princípio Um tal olharatravésde se dá não apenas no grau exigido pela justiça mas também em graus mais elevados 200 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE os quais impulsionam à benevolência à beneficência positiva à caridade e isso é algo que pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade que aparece em um semelhante indivíduo SCHOPENHAUER 2005 p 471473 Todos os seres vivos somos a expressão de uma única vontade de viver Todo indivíduo sentindo a vontade de viver intensamente tende a se considerar como o centro do mundo e assim há tan tos centros do mundo quanto há indivíduos centros esses que se afrontam mutuamente É a luta de todos contra todos No entanto tal luta é uma agressão a si mesmo uma vez que todos é a expressão de uma única e mesma vontade de viver Quando o véu de Maya o que representa no pensamento hindu a aparência ilusória que esconde a realidade propriamen te dita é levantado diante dos olhos de um ser humano este não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro É então capaz de tomar as dores do outro como suas e sacrificar sua pessoa pelo outro Reconhece a si mesmo em cada ser considera as infinitas dores de todo ser vivo como sendo suas próprias dores toman do para si a miséria do mundo Para tal homem não existe mais essa alternância de bem e de mal na qual consiste a visão da grande maioria dos homens ainda escravos do egoísmo Tal ho mem passa a conhecer a essência de todas as coisas e perceber que elas consistem em um fluxo perpétuo em um esforço esté ril em uma contradição íntima e em um sofrimento contínuo Schopenhauer então pergunta como conhecendo assim o mundo pode tal homem por meio de incessantes atos de von tade afirmar a vida ligandose a ela cada vez mais estreitamen 201 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE te aliviando o seu peso O filósofo responde que quando isso acontece a vontade se desliga da vida e tal homem alcança o estado de abnegação voluntária resignandose e vivenciando a verdadeira calma e o término do querer Se como exceção rara encontramos um homem dotado de uma considerável fortuna mas que usufruiu muito pouco dela doando todo o resto aos necessitados enquanto ele mesmo re nuncia a muitos gozos ao conforto se a partir disso tentamos elucidar para nós mesmos o seus atos notaremos que tirante no todo os dogmas pelos quais ele mesmo quer tornar conce bível seus atos à sua razão em verdade a expressão simples e geral e o caráter essencial de sua conduta é que ele ESTABELE CE MENOS DIFERêNÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA ENTRE SI MESMO E OS OUTROS Se esta diferença mesma aos olhos de muitos é tão grande que o sofrimento alheio se tor na para o malvado uma alegria imediata e para o injusto um meio bemvindo ao próprio bemestar e ainda se o homem justo se furta a provocar semelhante sofrimento por fim se em geral a maioria dos homens sabe e conhece em sua proxi midade inumeráveis sofrimentos de outros seres sem entretan to se decidirem a aliviálos visto que assim sofreriam alguma privação se portanto em todos esses casos parece instituirse em diferença poderosa entre o eu pessoal e o eu alheio ao contrário naquele homem nobre que temos em mente tal dife rença é insignificante O principii individuationis a forma do fe nômeno não mais o enreda tão firmemente mas o sofrimento visto em outros o afeta quase tanto como se fosse seu procura então restabelecer o equilíbrio renuncia aos gozos aceita pro vações para aliviar o sofrimento alheio O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem que para o mau é um grande abismo pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório reconhece imediatamente sem cálculos que o Emsi do seu fe nômeno é também o Emsi do fenômeno alheio a saber aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa que vive em tudo sim que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza logo ele também não causará tormento a animal algum SCHOPENHAUER 2005 p 473474 202 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A completa inversão da negação da vontade o suicídio O suicídio é para Schopenhauer a inversão completa des sa negação da vontade descrita anteriormente 69 Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta suficientemente nos limites do nosso modo de con sideração e que constitui o único ato de liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno do que a afetiva supressão de seu fenômeno individual na efetividade pelo SUICÍDIO O suicida quer a vida porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive Quando destrói o fenômeno individual ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida mas tãosomente à vida Ele ainda quer a vida quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo porém como a combinação das circunstân cias não o permite o resultado é um grande sofrimento O suicí dio em realidade é a obraprima de Maia na forma do mais gri tante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma O sofrimento se aproxima e enquanto tal abrelhe a possi bilidade de negação da Vontade porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade o corpo de tal forma que a Vontade permanece inquebrantável SCHOPENHAUER 2005 p 504 O único caminho de salvação é conhecer a própria essência da vontade para suprimila A salvação só se daria com a supressão da vontade pois esta é a razão do sofrimento e da dor E para suprimila é neces sário que a vontade apareça livremente como tal Livremente e não por violência Isso só acontece quando a vontade alcança o conhecimento de si mesma libertandose do mundo dos fenô menos e de toda motivação verificandose assim o que os cris tãos chamam de recebimento da Graça e renascimento esse estado em que o desejo se detém e se cala schopenhauer chama de bem absoluto e seria o único que nos liberta 203 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECI MENTO Por isso o único caminho de salvação é este que a Von tade apareça livremente a fim de neste fenômeno CONHECER a sua essência Só em conseqüência deste conhecimento pode suprimir a si mesma e assim também pôr fim ao sofrimento in separável de seu fenômeno Isso entretanto não é possível por violência como a destruição do embrião a morte do recémnas cido o suicídio A natureza conduz a Vontade à luz porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção Eis por que se deve fomentar de todas as formas os fins da natureza desde que a Vontade de vida o seu íntimo tenha decidido SCHOPENHAUER 2005 p 506 70 Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam EFEITO DA GRAÇA e RENASCIMENTO é para nós a única e ime diata exteriorização da LIBERDADE DA VONTADE Esta só entra em cena quando a Vontade após alcançar o conhecimento de sua essência em si obter dele um QUIETIVO quando então é removido o efeito dos MOTIVOS os quais residem em outro do mínio de conhecimento cujos objetos são apenas fenômenos SCHOPENHAUER 2005 p 515516 Só o conhecimento da essência do mundo como vontade permite a resignação o desprendimento e a serenidade O ódio e a maldade partem do egoísmo e este advém da sujeição da inteligência ao princípio da individuação O critério de uma ação verdadeiramente boa dotada de valor moral seria a ausência de toda motivação egoísta Em um grau superior de desenvolvimento a justiça a do çura e a generosidade no que elas têm de mais elevado se ori ginam na inteligência que compreende o princípio de que su primindo toda diferença entre nós como indivíduos e os outros tornase possível a intenção perfeitamente boa 204 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Na medida em que se dá a compreensão desse princípio diz Schopenhauer nossa influência sobre a vontade cresce O desvelamento do princípio de individuação libera o homem da distinção egoísta entre ele e o outro Esse homem que reconhece em cada ser o que há de mais íntimo e verdadeiro em si mesmo é capaz de tomar para si a miséria do mundo inteiro A partir de então nenhum sofrimento lhe é alheio e desconhecido Todas as dores dos outros todos os sofrimentos que ele vê e que rara mente pode sanar todos os sofrimentos que ele sabe possíveis pesam sobre seu coração como se fossem seus Tudo o toca de perto Passa a perceber a essência das coisas como sendo o per pétuo desenrolar do sofrimento contínuo de uma humanidade miserável e de um universo que desaparece se transformando a vontade então se desliga da vida o homem chega ao es tado de abnegação voluntária de resignação de verdadeira cal ma e de parada total e absoluta do querer schoPenhaUer 1956 p 203204 a negação e a supressão do querer abririam uma passagem para o nada a supressão do querer levaria ao nada entendendo por nada como observa Schopenhauer não uma negação absoluta mas uma negação relativa ao mundo como representação mun do este que é o espelho da vontade e que é nós mesmos e tudo o que existe Não mirando mais a vontade nesse seu espelho que é o mundo a vontade se perde no nada Após a nossa consideração finalmente ter chegado ao ponto em que a negação e supressão do querer apresentamse diante de nossos olhos de um mundo cuja existência inteira se apresenta como sofrimento daí se abriria uma passagem para o NADA vazio Mas sobre isso tenho antes de observar que o con 205 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ceito de NADA é essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado que ele nega Porém numa considera ção mais acurada não existe o nada absoluto não existe o nihil negativum propriamente dito nem sequer ele é pensável mas de qualquer nada deste gênero considerado de um ponto de vista superior ou subsumido em um conceito mais amplo é sempre apenas o nihil privativum Qualquer nada o é apenas quando pensado em relação a outro Até mesmo uma contradi ção lógica é um nada relativo embora não seja um pensamento da razão nem por isso é um nada absoluto Tratase ali de uma combinação de palavras de um exemplo do não pensável ne cessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensamento O universalmente tomado como positivo o qual denominamos SER e cuja negação é expressa pelo concei to NADA na sua significação mais geral é exatamente o mundo como representação que demonstrei como a objetividade o espelho da Vontade Esta Vontade e este mundo são justamente nós mesmos e ele pertence a representação em geral como um de seus lados A forma desta representação é espaço e tempo e assim deste ponto de vista tudo o que existe tem de estar em algum lugar num dado tempo Negação supressão viragem da Vontade é também supressão e desaparecimento do mundo seu espelho Se não miramos mais a Vontade neste espelho então perguntamos debalde para que direção ela se virou e em seguida já não há mais onde e quando lamentamos que ela se perdeu no nada SCHOPENHAEUR 2005 p 515517 O recurso à arte e à contemplação estética Schopenhauer vê na contemplação estética a oportuni dade de um desapego das coisas do mundo do egoísmo e do desejo uma vez que o conhecimento do belo é uma representa ção que não está submissa ao princípio da razão Tratase de um saber intuitivo não empírico desvinculado de qualquer conhe cimento interessado 206 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Em sua obra já citada O mundo como vontade e como re presentação e na obra Metafísica do belo Schopenhauer expõe sua filosofia da arte Vimos que para o filósofo os objetos do mundo são re presentações e como tais estão sujeitas às formas do princípio da razão suficiente ou seja o tempo o espaço e a causalidade representações que são elaboradas pelo sujeito O próprio corpo é um objeto e os órgãos dotados de sensibilidade são os objetos imediatos Vimos também que a Vontade é a coisaemsi cuja exis tência não depende do sujeito e que todos os objetos são mani festações da vontade O acesso à natureza da coisaemsi é feito pelo sujeito e não pelos objetos O primeiro estágio de objetivação da vontade em que ela se manifesta como fenômeno é segundo Schopenhauer consti tuído do que Platão denominou ideias ou seja os arquétipos eternos de tudo o que existe no mundo A arte seria a repre sentação dessas ideias Assim a arquitetura representa as leis físicas a pintura as formas dos objetos Em alguns homens o conhecimento pode libertarse da escravidão da vontade permanecendo ele mesmo independen temente de todo alvo voluntário como puro e claro espelho do mundo Esses são os homens capazes de produzir arte A genia lidade do artista consiste em reproduzir a ideia por trás de um objeto do mundo assim um retrato representa a ideia única e eterna do caráter da pessoa A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam essas ideias eternas mesmo não tendo a genialidade do artista O saber do artista procede da vontade e pertence à essência dos 207 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE graus mais elevados de seu processo de objetivação Compara a existência da maior parte dos homens a uma espera tola ple na de sofrimentos inúteis uma marcha titubeante pelas quatro idades de vida funcionam sem saber por que a arte possui ria o poder de suprimir ainda que por um tempo limitado essa submissão do conhecimento à vontade Na experiência estética absorvido em contemplação profunda o sujeito antes domina do pelo querer tornase sujeito puro do conhecer isento de vontade O princípio de individuação tornase então inoperante esquecemonos de nossa individualidade de nossa vontade e subsistimos como puro sujeito como claro espelho do objeto como se só o objeto existisse sem ninguém que o percebesse sujeito e intuição confundindose no mesmo ser O sujeito na obra de arte forma com os objetos represen tados uma unidade da essência comum de que compartilham a vontade A vontade passa a ser uma só no indivíduo e no objeto contemplado Ao elevarse a tal contemplação dáse a consciên cia de si mesmo como puro sujeito tornandose a vontade que se conhece a si mesma O conhecimento originariamente servidor da vontade passa a ser desinteressado pois com a supressão da individuali dade a vontade renuncia a seus fins o belo é para schopenhauer tudo o que na arte e na na tureza é capaz de causar um estado contemplativo que escape à ditadura do querer Todo objeto pode se tornar belo caso um gênio veja nele suas ideias fixandoas em sua obra tornandoas acessíveis aos demais O grande gênio da arte é um professor de resignação um mestre a guiar a humanidade no caminho do conhecimento e da renúncia à vontade tirânica 208 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O gênio da arte é um contemplador das ideias eternas li bertando o conhecimento originariamente submisso à vontade A essência do gênio é essa aptidão para a contemplação absorvi da no objeto exigindo esquecimento completo da personalidade e de suas relações aptidão que permite manterse na intuição pura aí se perdendo libertando o conhecimento originariamen te submisso à vontade O objeto é belo quando consegue despertar no observa dor um estado contemplativo de intuição pura durante o qual se calam temores esperanças ânsias e preocupações Dentre as artes a música é para Schopenhauer a que melhor pode preen cher essa função é a linguagem universal que penetra a intimi dade do indivíduo Observação existem excelentes trabalhos acessíveis na internet sobre essa relação da Ética e da estética em Schopenhauer Dentre outros citamos o de João Coviello intitulado O vínculo entre Ética e estética no pensamento de Schopenhauer com um olhar especial sobre a arte contemporânea Disponível em httpwwwbibliotecapucprbrtedetdebuscaarquivo phpcodArquivo477 Acesso em 1 set 2015 Schopenhauer hinduísmo e budismo Três são as principais influências recebidas por Schopenhauer e por ele reconhecidas na elaboração de seu pensamento os Upanishads uma das partes do Vedanta Platão e Kant A filosofia de KANT portanto é a única cuja familiaridade ínti ma é requerida para o que aqui será exposto Se no entanto o leitor já freqüentou a escola do divino PLATÃO estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir Mas se além disso iniciouse no pensamento dos Veda cujo acesso permitido pela Upanixad aos meus olhos é a grande vantagem que este século 209 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ainda jovem tem a mostrar aos anteriores pois penso que a in fluência da literatura sânscrita não será menos impactante que o renascimento da literatura grega no século XV e se recebeu e assimilou o espírito da milenar sabedoria indiana então estará preparado da melhor maneira possível para ouvir o que tenho a dizer Não lhe soará como a muitos estranho ou mesmo hostil Gostaria até de afirmar caso não soe muito orgulhoso que cada aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixad pode ser deduzido como conseqüência do pensamento comunicado por mim embora este inversamente não esteja lá de modo algum contido SCHOPENHAUER 2005 p 23 O pensamento de Schopenhauer se estrutura dentro da quele contexto do pensamento oriental hindu fundamentado na meta do encontro de uma sabedoria que se define essencial mente como um mergulhar em si mesmo em busca do princí pio mesmo de nossos desejos sofrimentos prazeres karma e virtudes Dharma Uma sabedoria que transforma Uma sabe doria que não pode ser atingida pelo esforço intelectual Schopenhauer tomou contato com os Upanishads por meio da leitura da obra em latim Oupnekhat Podese dizer que Schopenhauer é o único grande filósofo ocidental a assimilar ideias do pensamento oriental em seu sistema filosófico Diz Schopenhauer Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento da moral repousa em última instância sobre aquela verdade que está expressa no Veda e Vedanta pela fórmula mística tat twam asi isto és tu que é afirmada com referência a todo ser vivo seja homem ou animal denominandose então o Mahavakya o grande verbo SCHOPENHAUER 1974 p 107 vedas é uma palavra sânscrita o sânscrito é uma das línguas oficiais da Índia usada por várias religiões que significa conhecimento os vedas são constituídos dos livros sagrados 210 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE do Hinduísmo Vedanta por sua vez significa o último dos Vedas e é a essência do que entendemos hoje por Hinduísmo Sobre a frase tat twam asi isto és tu alguns dos maio res especialistas no pensamento da Índia como zimmer assim interpreta o seu significado tat significaria a essência eterna ilimitada e imutável do universo twam ou tvam significa tu é o indivíduo ser limi tado temporal e mutável asi és verbo Tratase da afirmação da unidade do universo A essência do pensamento dos Vedas seria segundo zimmer a busca dessa unidade na multiplicidade Zimmer 1991 p 18 diz que A principal motivação da filosofia védica desde o período dos mais remotos hinos filosóficos preservados nas partes mais re centes do RigVeda tem sido sem alteração a busca de uma uni dade básica que fundamente a multiplicidade Essa teimosa persistência em buscar uma unidade na mul tiplicidade dos seres do universo vem de uma consciência mís tica de que tudo e todos pertencem em essência a algo Uno gerador de toda multiplicidade Um sentirse parte do Cosmo uma experiência de si mesmo como presença e não simplesmen te como presente ou seja a sensibilidade ao fato de apesar das diferenças dos seres entre si estarmos todos presentes ao mes mo tempo em comunhão existencial No indivíduo limitado temporal e mutável encontrase o Ãtman o Eu não o ego fundado na eterna imutabilidade que comanda o universo O texto a seguir ilustra essa ideia da unida de na multiplicidade no pensamento védico 211 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Diz o velho sábio brâmane Aruni a seu filho Trazeme um figo de lá Aqui está senhor Divideo Está dividido Que vês aí Estas sementes muito pequenas Divide uma delas por favor Está dividida Que vês aí Absolutamente nada senhor Então disselhe o pai Em verdade meu querido esta suti líssima essência que tu não percebes em verdade meu queri do dessa sutilíssima essência é que surge esta grande figueira sagrada Acreditame meu querido disse ele isso que é a essência mais sutil este mundo inteiro tem isso como seu Eu Isso é a Realidade Isso é ãtman Aquilo és tu Poderias senhor poderias instruirme ainda mais Assim seja meu querido disse ele Coloca este sal na água Pela manhã vem ter comigo Assim o fez Então disselhe o pai O sal que puseste na água ontem à noite tragame aqui por favor Então ele quis pegálo mas não o encontrou porque estava completamente dissolvido Por favor sorve a água deste lado disselhe o pai Como está Salgada 212 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Sorve deste lado disselhe Como está Salgada Deixea de lado Logo vem ter comigo Ele assim o fez dizendo Ela é sempre a mesma Então disselhe o pai Em verdade na realidade meu queri do tu não podes perceber o Ser aqui Em verdade na realida de meu querido Ele está aqui Aquilo que é a essência sutilíssima este mundo inteiro tem Aquilo como seu Eu Aquilo é a Realidade Aquilo é ãtman Tu Svetaketu és Aquilo zIMMER 1991 p 239240 Schopenhauer dá a essa máxima da unidade imutável e única uma dimensão ética e moral Para ele ela expressa a ideia de compaixão já vista por nós porque compreendendo que a essência do universo é única o homem passa a amar seu próxi mo pois ambos são um só Conceitos do hinduísmo e do budismo surgem em toda a obra do filósofo No segundo parágrafo de sua obra Parerga e paralipomena diz Eis Sansara e tudo em seu interior o anuncia mais do que tudo porém o mundo dos homens em que moralmente do minam a maldade e a infâmia intelectualmente a incapacidade e a estupidez em medidas assustadoras Contudo nela se apre sentam embora esporadicamente mas sempre de novo a nos surpreender manifestações da franqueza da bondade e mes mo da generosidade e também do entendimento abrangente do espírito pensante e mesmo do gênio Estas nunca se extin guem completamente brilham ao nosso encontro quais pontos luminosos isolados da grande massa obscura Devemos tomá las como garantia de que existe um princípio bom e redentor neste Sansara que pode atingir o rompimento e preencher e libertar o todo SCHOPENHAUER 1974 p 106107 213 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE sansara significa em sânscrito perambulação ou o flu xo de renascimentos através dos mundos materiais No Vedan ta é a transmigração do Ãtman alma individual ou verdadei ro eu o mais elevado princípio humano a essência divina na matéria O ego ignorante e iludido considerandose distinto de tudo e de todos peregrina por várias existências até compreen der que na verdade ele e a essência divina são Um só Ao falar da Vontade de vida diz Schopenhauer A Vontade de vida aparece tanto na morte autoimposta Shiva quanto no prazer da conservação pessoal Vishinu e na volúpia da procriação Brahma Essa é a significação íntima da UNIDADE DO TRIMURTI que cada homem é por inteiro em bora no tempo seja destacada ora uma ora outra de suas três cabeças SCHOPENHAUER 2005 p 504 o Trimurti é a Trindade hindu É constituída de Brahma primeira divindade do Trimurti É o deus ener gia de todos os seres tem o poder de criar por emana ção É a origem a causa a essência de todo o universo Vishinu segunda divindade do Trimurti É o deus energia redentor preservador e mantenedor do universo Shiva terceira divindade do Trimurti É a energia des truidora e ao mesmo tempo construtora pois a des truição aqui é uma exigência da própria criação A dança de Shiva bastante conhecida representa as cinco ativi dades divinas a criação a conservação a destruição a encarnação e a liberação das almas Outra influência do hinduísmo no pensamento de Schopenhauer é certamente a noção de Maya Deusa da ilusão nos textos indianos mais antigos Maya significa arte sabedoria 214 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE poder extraordinário nos textos indianos mais recentes adquiriu os significados de ilusão irrealidade magia imagem ilusória e se torna o maior obstáculo para o desapego das seduções do mundo sensorial Maya é a base do mundo objetivo criado pelo Absoluto Brachman mas dele se distingue Vimos que Schopenhauer concebe o mundo fenomênico da representação como ilusório Para o filósofo o mundo re presentado pode criar a ilusão de que a causa última dos fenô menos ou a essência do mundo representado esteja na própria representação e que consequentemente nada mais existe além da representação Criase assim uma realidade ilusória Porém como o caráter ilusório da representação dela não advém mas sim da vontade que governa tudo o que existe da vontade vi mos advém toda objetividade aparência o mundo como repre sentação o homem poderá romper com essa ilusão e refletir sobre a Vontade Portanto é Maya acreditar que se possa ces sar o desejo que atormenta e traz dor consumandoo ou seja objetivandoo 68 Se aquele Véu de Maia o principii individuationis é de tal ma neira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais di ferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais elevado grau mas está até mesmo pronto a sacrificar o próprio indivíduo tão logo muitos outros precisem ser salvos então daí seguese automaticamente que esse homem reco nhece em todos esses seres o próprio íntimo o seu verdadeiro simesmo e desse modo tem de considerar também os sofri mentos infinitos de todos os seres viventes como se fossem seus assim toma para si mesmo as dores de todo o mundo nenhum sofrimento lhe é estranho 215 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE o homem que vê através do principii individuationis e reconhece a essência em si das coisas portanto o todo não é mais suscetível a um semelhante consolo Vê a si em todos os lugares ao mesmo tem po e se retira Sua Vontade se vira ela não mais afirma a própria essência espelhada no fenômeno mas a nega O acontecimento pelo qual isso se anuncia é a transição da virtude à ASCESE não mais adianta amar os outros como a si mesmo por eles fazer tanto como se fosse por si mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão vale dizer uma repulsa pela Vontade de vida núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias SCHOPENHAUER 2005 p 481482 Schopenhauer e Kant São vários os temas e posições que Schopenhauer herda de Kant sobre a temática da moral Começa por elogiar Kant por ter purificado a ética de todo eudemonismo eudemonismo ou eudaimonismo do grego eudaimonia significa felicidade os filósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e cri tério supremo da Ética Diz Schopenhauer O grande mérito de Kant na ética foi têla purificado de todo Eu demonismo A ética dos antigos era eudemonista e a dos moder nos na maioria das vezes uma doutrina da salvação Os antigos queriam demonstrar virtude e felicidade como idênticas estas porém eram como duas figuras que não se recobrem não impor ta o modo como as coloquemos Os modernos querem colocálas numa ligação não de acordo com o princípio de identidade mas com o de razão suficiente fazendo portanto da felicidade a conse qüência da virtude No que entretanto tiveram de recorrer quer a um outro mundo que não conhecido de modo possível quer a sofismas Apenas Platão faz exceção entre os antigos sua ética não é eudemonista por isso contudo tornase mística Em contrapar tida até mesmo a ética dos cínicos e dos estóicos é tãosomente um eudemonismo de tipo especial SCHOPENHAUER 1995 p 17 216 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE No que diz respeito à questão da Ética e da moral Schopenhauer à semelhança de Kant sentiu a necessidade de manter uma instância transcendental a instância de um princípio a priori segundo kant o determinismo da ciência é incompatível com a responsabilidade moral esta só poderia ser pensada via um saber transcendental Para Kant sabemos só podemos conhecer a coisa em nós não a coisaemsi esta é independente do conhecimento que temos dela desligada de qualquer subjetividade distingue o fe nômeno a coisa em nós a interpretação o mundo da represen tação e a coisaemsi Schopenhauer assimila a noção kantiana de coisa em si A instância da coisa em si seria em ambos a instância transcendental Buscaram dessa maneira salvaguardar a in dependência da dimensão ética e moral de toda ingerência da Teologia e do conhecimento especulativo pensando a realida de do mundo e a idealidade conhecimento especulativo como distintas entre si uma vez que com o conceito de coisaemsi mantémse a existência de um real distinto da instância da ideia e consequentemente de todo conhecimento especulativo Por sua vez o conceito de coisaemsi possibilitaria limitar o co nhecimento ao fenômeno abrindo espaço para a moralidade isto é para a possibilidade de postular a liberdade Kant ou de negála Schopenhauer Reencontramos pois em Schopenhauer o que já vimos em Kant a presença de uma dimensão ética propriamente dita uma dimensão transcendental não passível de ser trabalhada à luz de uma razão abstrata generalizante o que viria a corroborar mais uma vez a linha mestra desta obra que é mostrar a existên cia de uma distinção essencial entre o ethos com e longo que 217 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE define a instância de uma morada interior da realidade de ní vel transcendental do ethos com e breve referente à morada exterior dos fenômenos e fatos Porém Schopenhauer irá discordar de Kant em pontos fun damentais Assim por exemplo vimos que Kant procurou mos trar que existe no campo transcendental uma ordem superior capaz de responder pela dimensão ética e moral do ser humano e que essa ordem é a de uma razão prática Tal razão é autônoma e independente de qualquer capacidade cognitiva não necessi tando igualmente dos dados da sensibilidade Sendo o princípio da moral puro a priori não se apoiando em nada empírico ou em algo objetivo do mundo exterior ou mesmo subjetivo senti mento impulso ou inclinação Kant fundamenta a lei moral na sua própria forma que é a da legalidade universal para todos Embora Schopenhauer concorde com a distinção kantia na entre fenômeno e coisaemsi essa concepção kantiana da dimensão transcendental como sendo a de uma razão prática porém significará para Schopenhauer uma recaída no dogmatis mo Segundo ele o imperativo categórico base da razão prática ou moral em Kant não contemplaria o sentido moral da ação humana uma vez que a razão não é fator decisivo na moralida de ou seja ser dotado de razão e utilizála adequadamente não é ser necessariamente moral Muitos indivíduos observa usam corretamente a razão e no entanto cometem ações não morais Para Schopenhauer a razão pelo contrário aprimora os recursos imorais por meio dos quais os homens abusam e exploram uns aos outros Ainda em sua crítica à Kant Schopenhauer observa que cabe à reflexão filosófica sobre o ético buscar o esclarecimento 218 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE do dado isto é daquilo que o comportamento ou a ação éticos são e não de como deveriam ser como o faz Kant o próton pseudós primeiro passo em falso de kant está no seu conceito da própria ética que encontramos exposto de modo mais claro p 62 numa filosofia prática não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece mas leis daquilo que deve acontecer mesmo que nunca aconteça isto já é uma petitio principii petição de princípio decisiva Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem submeterse Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece O que vos dá o direito de antecipálo e logo impor uma ética na forma legislativoimperati va como a única para nós possível Digo contrapondome a Kant que em geral tanto o ético quanto o filosófico têm de contentarse com o esclarecimento do dado portanto com o que é com o que acontece realmente para chegarem ao seu entendimento e que eles aí têm muito o que fazer muito mais do que foi feito desde há séculos até hoje de acordo com a acima citada petitio princi pii kantiana admitese no Prefácio referente ao tema antes de qualquer investigação que existem leis morais puras depois tal suposição continua firme e é a mais profunda fundamentação de todo o sistema No entanto queremos antes investigar o concei to de uma lei O seu significado próprio e originário limitase à lei civil lex nomos uma instituição humana que repousa sobre o arbítrio humano O conceito de lei tem um significado segundo tropológico figurativo e metafórico quando aplicado à nature za cujos modos de proceder conhecidos em parte a priori em parte dela apreendidos a posteriori que se mantêm sempre constantes nós os chamamos metaforicamente leis da natureza É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que se dá a ver a priori e é isto que constitui o que kant isolou de modo perspicaz e excelente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza Para a vontade humana existe também por certo uma lei desde que o homem pertence à natureza e mesmo uma lei estritamente demonstrável inviolável sem exceções irrevo gável que não traz consigo nenhuma necessidade vel quase de uma certa maneira como o imperativo categórico mas uma necessidade efetiva SCHOPENHAUER 1995 4 p 23 219 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE É essencial à Ética como filosofia manter uma atitude con templativa e não prática inquirindo e não prescrevendo regras ou buscando moldar o caráter 53 Na minha opinião contudo toda a filosofia é sempre teórica já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa e sempre inquirir em vez de prescrever re gras Tornarse prática conduzir a ação moldar o caráter eis aí pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandonálas Pois aqui quando se trata do valor ou da ausência de valor da existência da salvação ou da perdi ção os mortos não decidem e sim a essência mais íntima do homem seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu como diz Platão em vez de ser escolhido seu caráter inteligí vel como Kant se expressa A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio sim para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento Por conseguinte seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas ar tistas plásticos e músicos SCHOPENHAUER 2005 p 354 Considerações Schopenhauer foi um dos mais influentes pensadores so bretudo até a segunda metade do século 20 Portavoz do irra cionalismo corrente filosófica que sustenta que quanto mais supera os limites do racional mais o homem é capaz de apreen der a realidade combateu o racionalismo absoluto do idealismo de Hegel 17701831 segundo o qual a contradição entre racio nal e irracional não é senão aparente pois a razão se realiza no e pelo seu contrário o irracional 220 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE alguns se referem a schopenhauer como o filósofo sem público de fato o reconhecimento de sua obra demorou bas tante a chegar Talvez essa demora se deva ao fato de que sua obra como muitos observam não se enquadra em nenhuma das filosofias vigentes Porém sua influência foi grande Freud 18561939 médico neurologista judeuaustría co reconheceu que a análise da repressão processo de fuga e condenação de impulsos do instinto no conscien te fora feita antes dele por Schopenhauer nas artes particularmente na música o famoso Richard Wagner 18131883 compositor alemão declarou ter escrito a ópera Tristão e Isolda como reação à leitura de Schopenhauer na literatura influenciou Léon Tolstoi 18281910 escri tor russo Anton Tcheckov 18601904 escritor russo Émile zola 18401902 escritor francês e outros inclu sive o nosso Machado de Assis no que concerne sobre tudo ao sentimento de uma inexorabilidade do destino como observa Eugênio Gomes 18971972 crítico lite rário brasileiro E Nietzsche o filósofo que estudaremos a seguir na segun da parte desta Unidade 4 disse tornarse filósofo devido à leitu ra de schopenhauer a quem chamava de cavaleiro solitário 6 WilhelM Friedrich nietZsche 18441900 Nietzsche nasceu de uma família de clérigos sendo seu pai ministro protestante ficou órfão de pai ainda bem jovem e foi educado por sua mãe e por sua irmã mais velha 221 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Aos 25 anos após estudos brilhantes de Filologia e Teo logia é nomeado professor na Universidade de Basiléia Suíça na fronteira com a Alemanha e França onde lecionou de 1869 a 1879 Dois acontecimentos influenciaram grandemente Nietzsche em sua maneira de pensar a leitura quando estudante da obra O mundo como vontade e como representação de Schopenhauer e sua amizade com o grande compositor Richard Wagner Segundo estudiosos Schopenhauer influenciou Nietzsche de diversas maneiras por exemplo no sentido de buscar uma nova maneira de ver o mundo diferente dos valores morais escravos de uma visão metafísica pensar sob o modelo da vida subordinar o intelecto à vontade considerar a vontade como cega e arbitrária e em con sequência o mundo como caótico e despojado de todo e qualquer caráter divino considerar a arte como sendo em sua essência uma li beração ou afastamento de todo processo racional Alguns autores observam ainda que o fato de Schopenhauer como os gregos antigos estabelecer uma relação entre o gênio e a loucura levará Nietzsche a uma atitude particular com relação à sua própria condição de doente com distúrbios mentais Possuía uma visão de toda doença como sendo apenas um exagero dos fenômenos normais da vida Não haveria dessa maneira diferença de essência entre o normal e o patológico a diferença seria apenas de grau Chega a conceber como consequência de sua vivência de distúrbios mentais sua visão da vida como vontade de potência 222 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Para Schopenhauer vimos a capacidade de captar o es sencial e tornálo objeto da arte é uma característica do gênio Associa essa capacidade ao fato do intelecto sair do âmbito das coisas particulares e apreender o universal no que existe O mun do como vontade e como representação Tomos I e II Essa carac terística do gênio seria contrária à própria natureza humana na qual segundo Schopenhauer a razão ou intelecto está a serviço da vontade e por essa razão o gênio seria muito mais susceptí vel a um desequilíbrio diante dos afetos e paixões Nietzsche e a questão da moral Em sua obra La généalogie de la morale 1971 p 56 tra dução nossa Nietzsche expressa o quanto considera importante e central a questão da moral para os filósofos e cientistas Observação Aproveito a ocasião que me dá esta dissertação para formular publicamente e expressar um desejo que não ex pus até o momento presente senão eventualmente em meus diálogos com os cientistas que uma faculdade de Filosofia ad quire mérito ao encorajar por meio de concursos acadêmicos os estudos de história da moral quem sabe este livro possa dar um rigoroso impulso nesse sentido Em vista de tal eventua lidade proponho a questão seguinte merecedora da atenção não apenas dos filósofos propriamente ditos mas também dos filólogos e historiadores Quais indicações a linguística e sobretudo a etimologia nos fornecem para a história da avaliação dos conceitos morais Por outro lado não é certamente menos interessante obter a participação de fisiologistas e de médicos no estudo desses pro blemas concernentes ao valor das avaliações que se deram até o momento presente De fato todo o repertório de valo res todos os tu deves que a história ou a etnologia conhecem teriam necessidade antes de mais nada de ser esclarecidos e interpretados pela fisiologia mais ainda do que pela psicolo 223 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE gia todos reclamam também a crítica das ciências médicas A questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores esta ou aquela moral demanda que sejam colocadas sob as perspecti vas as mais diversas principalmente não se analisará com su ficiente escrúpulo a questão bom por quê o bemestar da maioria e o bemestar da minoria são critérios de avaliação opostos acreditar que o primeiro possui em si um valor supe rior é o que deixaremos à ingenuidade dos biologistas ingleses Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do filósofo entendendo por esta tarefa o seguinte ao filósofo cabe resolver o problema do valor cabe determinar a hierarquia dos valores O espírito histórico escaparia aos historiadores e aos filósofos Nietzsche acusa a filosofia de até então considerar a reali dade desprovida da dimensão histórica do vir a ser descon siderando a dimensão histórica tornam a realidade uma sub specie aeterni uma subespécie do eterno Toda mudança é por eles refutada diz o filósofo o que é não vem a ser o que vem a ser não é Tomando como exemplo o conceito de bom nietzsche procura mostrar que a origem do conceito moral de bom apre sentada por historiadores e filósofos contém sinais de reações pessoais ou características dos psicólogos ingleses os quais atri buem à utilidade ao esquecimento ao hábito e ao erro a condição de base de um valor no caso o valor moral bom Na origem decretam eles as ações desinteressadas foram louvadas e denominadas boas por aqueles em favor dos quais elas tinham sido realizadas consequentemente para aqueles aos quais tinham sido úteis mais tarde esquecendo que ti nham provindo do elogio simplesmente sentiuse como boas as ações não egoístas porque tinham sido por hábito sempre 224 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE louvadas como tais como se elas fossem algo de bom em si NIETzSCHE 1971 p 21 tradução nossa Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a verdadeira morada do conceito de bom geneticamente falando o julgamento de bom não vem daquilo com relação ao qual manifestase a bondade são os próprios bons isto é os nobres os poderosos os homens de condição superior e de alma elevada que se sentiram eles mesmos bons e considera ram seus atos bons ou seja de primeira ordem em oposição a tudo que é baixo mesquinho comum e vulgar NIETzSCHE 1971 p 21 tradução nossa A formação universitária básica de Nietzsche foi a Filologia ciência que estuda uma língua literatura cultura ou civilização sob uma visão histórica Para ele o verdadeiro método para encontrar o surgimento dos conceitos de bom e mau é o da etimologia Referindose às expressões de bom e mau em diversas línguas diz encontrei que todas remetem à mesma transformação dos conceitos em todas elas distinto nobre no sentido de clas se social é o conceito fundamental de onde nascem e se desen volvem necessariamente as ideias de bom significando alma distinta e nobre no sentido de alma superior de alma privilegiada essa evolução se faz paralelamente àquela que acaba por transformar as ideias de comum popular vil na de mau nieTZsche 1971 p 24 tradução nossa Diante de tais fatos que mostram a origem de julgamentos de valor destinados a estabelecer hierarquias falar de utilidade conclui Nietzsche seria apresentar a sensibilidade pobre de uma inteligência calculadora Como acabo de dizer o pathos da nobreza e da distância senti mento geral tão fundamental tão preponderante tão vivaz em uma espécie superior e dominante em suas relações com uma espécie inferior com algo embaixo eis a origem da oposição entre bom e mau nieTZsche 1971 p 22 tradução nossa 225 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Observação pathos é uma palavra grega que significa paixão assujeitamento Esse conceito foi cunhado por Descartes para designar algo que acontece ou o que é passivo de um aconteci mento Nietzsche quer significar com essa palavra a distância e o domínio que acontece entre a classe nobre e a classe baixa e inferior dos seres humanos na origem da oposição bom e mau portanto não haveria a priori ligação necessária entre a palavra bom e as ações não egoístas como querem os genealogistas da moral É apenas quan do os julgamentos de valor aristocráticos declinam que se impõe pouco a pouco a famosa oposição egoístanão egoísta Não há fatos morais todo julgamento moral é falso De sua análise etimológica de valores como a origem do bom e do mau nietzsche conclui que não existem fatos mo rais porém todo julgamento moral é um sintoma sintoma aqui não no sentido médico da palavra mas no sentido de um significante o que significa sem nenhum significado fixo Cabe ao filósofo situarse além do bem e do mal colocarse acima da ilusão do julgamento moral O julgamento moral e o religioso têm em comum o fato de crerem em realidades que não existem Sabese o que exijo do filósofo colocarse além do bem e do mal colocar abaixo a ilusão do julgamento moral Essa exigên cia é o resultado de um exame que realizei pela primeira vez cheguei à conclusão de que não há fatos morais o juízo mo ral tem em comum com o juízo religioso crer em realidades que não existem A moral não é senão a interpretação de certos fe nômenos mas uma falsa interpretação O juízo moral pertence como o juízo religioso a um grau de ignorância em que a noção de realidade a distinção entre o geral e o imaginário nem mes mo existem de maneira que em um tal grau a verdade de 226 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE signa coisas que chamamos hoje de imaginação eis porque o juízo moral não deve nunca ser tomado ao pé da letra literal mente ele seria sempre um contrassenso Mas como lingua gem permanece inestimável revela pelo menos para aquele que sabe as realidades mais preciosas sobre culturas e talentos de gênio que não sabiam o bastante para compreender a eles mesmos A moral não é senão a linguagem dos sinais uma sintomatologia é preciso saber do que se trata para poder se beneficiar NIETzSCHE 1952a 17 p 126 tradução nossa Não há consciência moral toda consciência nada mais é do que um acidente segundo descartes a consciência é o centro do eu seu núcleo substancial e o eu subjetivo é o eu pensante a cons ciência para Nietzsche é um acidente não é o essencial da sub jetividade De acordo com Nietzsche nós nos deixamos enganar quando achamos que é o nosso eu que pensa e mais que o sujeito da frase eu penso seja uma substância ou algo em si Em seu livro Além do bem e do mal observa que um pensamen to não vem senão quando quer e não porque é o eu quem quer alguma coisa pensa mas acreditar que esta coisa seja o eu é pura suposição além disso observa que o caráter geral do conceito não é capaz de expressar a singularidade da subjetividade e esta por sua vez jamais coincide com ela mesma quando digo eu ex presso o que tenho em comum com todos os outros eu De fato o projeto genealógico de Nietzsche destrói a noção do eu como sujeito autoconsciente e uno ver no tópico Erefe rências o texto A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche de Ângela zamora 227 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE Investigando a história da humanidade Nietzsche procura mostrar que o surgimento da autoconsciência do pensamento e da linguagem é de natureza histórica Para sobreviver o ser humano teve que se reunir a outros seres humanos formando agrupamentos Surgiu então a necessidade de se comunicar com o outro e para tanto fazse necessário saber quem se é o que se quer É dessa relação do humano com o humano que decorreriam a consciência o pensamento e a linguagem Consequentemente a consciência faz parte da existência em comunidade da existência à maneira de rebanho e a subje tividade não mais se identifica com uma natureza humana imu tável pelo contrário o processo de conscientização no homem está em constante mobilidade sendo que essa conscientização é cada vez maior o critério para a busca de valores é a vida e a vida é vontade de poder Os valores reais para Nietzsche não decorrem de algo são inventados há que buscálos em seu emergir em sua pro veniência através da história e o critério é a vida e a vida é vontade de poder Uma vontade de poder que é orgânica e própria a todo ser vivo uma busca constante por mais vida por apropriarse dominar Uma vontade de poder que se estrutura em uma relação de mandar e obedecer A vida é apropriação e sujeição daquele que é o mais fraco É opressão dureza exploração Todo com portamento humano é motivado pela busca do poder e tal poder se manifesta como independência criatividade e originalidade no alémdohomem superhomem conforme expressão cria da pelo filósofo 228 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A vida é um jogo de forças é vontade de poder desejo perma nente de intensificação de ultrapassagem em direção a mais poder seja na oposição entre duas forças seja no interior de uma mesma força Essa vontade de crescimento não se reduz ao instinto de conservação pois a afirmação de sua força pode levar um ser vivo a colocar em causa sua própria conservação o que Nietzsche interpreta como uma limitação da vontade de viver Dentre essas forças umas são ativas capazes de se afirmar sem se opor a outras forças outras são reativas só se opõem mutilando as demais O ideal de Nietzsche consiste em afirmar seus valores sem a preocupação de justificação Sócra tes ao contrário é o protótipo do homem reativo pois que ao erro opõe o verdadeiro ao mal o bem etc ROUXLANIER 1995 p 473 tradução nossa Nenhum juízo pró ou contra a vida pode ser verdadeiro Juízos apreciações pró ou contra a vida não podem em últi ma instância ser verdadeiros não têm outro valor senão o de ser sintomas não contam senão como sintomas em si tais juízos são estupidez É preciso alcançar esta sutileza de com preender que o valor da vida não pode ser apreciado nem por aquele dotado de vida porque ele é parte é mesmo objeto de litígio e não de julgamento nem por um morto por outra razão da parte de um filósofo ver um problema no valor da vida consiste em uma contradição em um ponto de interroga ção com relação ao seu saber uma falta de sabedoria Como E todos estes grandes sábios teriam eles sido não somente de cadentes mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios NIETzSCHE 1952a p 9698 tradução nossa Contra toda dialética Em sua obra Crepúsculo dos ídolos Nietzsche ataca a for ma de pensamento que predominou no pensamento ocidental e que se inicia com Sócrates Sócrates para Nietzsche é o inventor do homem teórico ou dialético que se contrapõe ao aristocrata 229 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE grego cuja nobreza se impunha de si mesma sem justificativa O homem dialético reclama sempre a prova de tudo que se afirma Toda deliberação argumentada é condenada pelo filósofo porque nela se daria o desaparecimento da solidariedade tra dicional instintiva nos antigos helenos gregos responsável por sua força e saúde A origem dessa decadência que leva ao mundo moderno estaria na vitória da dialética socrática sobre o sentido do trágico dos antigos gregos Vitória de Sócrates que Nietzsche atribui ao triunfo das forças reativas sobre as forças ativas É portanto um sintoma da decadência Antes de Sócra tes observa a sociedade grega considerava falta de boas manei ras buscar justificar argumentando dialeticamente pois o que precisa ser demonstrado não têm valor Aquele que em vez de comandar usa da dialética para demonstrar suas razões seria segundo nietzsche um polichinelo isto é alguém que não é levado a sério sócrates foi o polichinelo que se tomou a sério Com Sócrates a tendência do pensamento grego se altera em favor da dialética o que é que se passa exatamente Antes de mais nada tratase de uma vitória sobre uma tendência nobre com a dialética o povo alcança a posição mais alta Antes de Só crates discursos dialéticos eram eliminados da boa sociedade eram considerados como capazes de corromper a juventude Desconfiavam também de todos aqueles que argumentassem de tal maneira O que precisa ser demonstrado não vale grande coisa Em todo lugar onde a autoridade ainda está de acordo com as normas sociais em todo lugar onde não se dis cute mas se comanda aquele que exerce a dialética é uma espécie de polichinelo é motivo de riso não é tomado a sério sócrates foi o polichinelo que conseguiu ser tomado a sério NIETzSCHE 1952a p 9698 tradução nossa 230 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A moral vigente corresponde ao instinto de rebanho no indivíduo Os valores tradicionais representam para Nietzsche uma moralidade escrava uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que por interesse estimularam comportamentos bondosos Nietzsche distingue duas classes de seres humanos a dos senhores e a dos escravos A classe dos senhores compreende a dos guerreiros aristocrática e a sacerdotal A classe sacerdotal deriva da classe guerreira ou aristocrática caracterizandose po rém pela impotência em vez de praticar as virtudes do corpo como a classe aristocrática inventa virtudes Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de mo ral a dos senhores e a dos escravos A classe dos guerreiros é dominante a sacerdotal é débil e enferma A classe sacerdotal reage invertendo os valores aristocráticos criando uma moral escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assumi da pelo cristianismo É a moral surgida do ressentimento segundo a qual a força que o forte sendo livre exterioriza é algo ruim pois destrói os mais fracos nesse processo de transvalorização transformam impotência em bondade baixeza em humildade covardia em paciência miséria em prova bemaventurada dos eleitos e cria se a noção de justiça a invenção da moral foi uma defesa contra os poderosos Os valores tradicionais representam assim para Nietzsche uma moralidade escrava uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que por interesse estimularam comporta mentos bondosos 231 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O mundo chamado pela filosofia de verdadeiro não passa de uma ilusão de ordem moral Estamos habituados diz Nietzsche a considerar como ver dadeiro só o estável o que permanece uno idêntico a si mesmo Dá como exemplo Platão que situa a verdadeira realidade no do mínio inteligível o mundo das Ideias em oposição à diversidade sensível sempre mutante considerando esta como aparência Essa determinação da essência da verdade que se apre senta como evidente não o é diz Nietzsche supõe uma sepa ração e uma avaliação julgamento moral que implica uma re jeição do sensível e do múltiplo ou seja da vida em toda a sua riqueza O problema da ciência é um problema moral Em sua obra A Gaia Ciência Nietzsche diz que no domínio da ciência as convicções não têm lugar Só quando assumem a forma de hipótese experimental conseguem acessar o domínio do conhecimento Isso significaria dizer que a convicção só ad quire o direito de pertencer à ciência quando deixa de ser uma convicção Acontece observa o filósofo que a ciência ou discipli na do espírito começa sempre a partir de convicções Podemos concluir que a própria ciência se baseia em uma crença a da necessidade de postular e a necessidade de se fazer ciência se funda em outro postulado nada é mais necessário do que a verdade Mas o que é esta vontade absoluta de verdade Querer a verdade observa Nietzsche pode ser secretamente querer a morte quem quer intensamente a verdade afirmando sua fé na ciência afirma por isso mesmo a existência de outro mundo que 232 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE não é o da vida o da natureza e o da história o que significaria necessariamente negálos O problema da ciência seria então um problema moral É dito com justa razão que no domínio da ciência as convicções não têm direito de ser consideradas somente quando submeti das às formas provisórias da hipótese do ponto de vista expe rimental da ficção reguladora podemos concederlhes acesso ao domínio do conhecimento e reconhecer nelas um certo va lor com a condição de que permaneçam porém sob vigilân cia policial sob o controle da suspeita Mas isso não significa no fundo dizer que é unicamente quando a convicção cessa de ser convicção que ela pode adquirir direito de cidadania na ciência A disciplina do espírito científico não começaria so mente com a recusa de toda convicção É provável res ta saber se a existência de uma convicção não é indispensável para que essa disciplina possa ela mesma começar e se a exis tência de uma convicção não seja tão imperiosa tão absoluta que obrigue todas as outras a se sacrificar a ela Vêse por isso que a própria ciência se baseia em uma crença não há ciência sem postulado a ciência é necessária É preciso para que ela pudesse vir a existir que essa questão fosse antes respondi da não apenas afirmativamente mas afirmativa a tal ponto que ela expressasse este princípio esta fé esta convicção nada é mais necessário do que o verdadeiro nada em seu valor tem importância senão secundária o que é esta vontade absoluta de verdade Querer o verdadeiro poderia ser secretamente querer a mor te Sem nenhuma dúvida quem vê o verdadeiro no sentido intrépido e supremo que supõe a fé na ciência afirma por esta mesma vontade outro mundo que não o da vida da natureza da história e na medida em que afirma este outro mundo não nega necessariamente por este fato mesmo o seu antípoda este mundo o nosso NIETzSCHE 1950 344 p 286289 tra dução nossa 233 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE A crítica ao cristianismo e à democracia Ao criticar toda argumentação Nietzsche se opõe igual mente à democracia Segundo ele esse regime político seria a última etapa da decadência histórica que se iniciou com Sócrates e conduzida pelo judaísmo e pelo cristianismo chega às ideias presentes na Revolução Francesa Na obra Crepúsculo dos ídolos o filósofo elabora uma crítica do cristianismo como origem da democracia A ideia de imortalidade pessoal destrói toda razão e toda natureza do ins tinto ou seja tudo que é vital O cristianismo deve sua vitória a essa lamentável adulação da vaidade pessoal a salvação da alma isto é o mundo gira ao redor de mim a doutrina cristã da igualdade de direitos de que a salvação é para todos consis te para Nietzsche no maior e mais malvado atentado contra a humanidade nobre ninguém mais tem coragem de reivindicar privilégios e o poder de dominação Transmitida ao longo das gerações a partir de Sócrates e via cristianismo os direitos dos homens o liberalismo e o socia lismo essa preocupação de igualdade é uma vontade reativa que mutila a vida negando as diferenças Quando o centro de gravidade da vida é colocado não nela mesma mas no além no nada então se retirou da vida o seu centro de gravidade A grande mentira da imortalidade pessoal destrói toda razão todo instinto natural tudo que há nos instintos que seja benéfico vivificante que assegure o futuro agora é causa de desconfiança Viver de modo que a vida não tenha sentido agora esse é o sentido da vida Para que o espírito público Para que se orgulhar pela origem e antepassados Para que cooperar confiar preocuparse com o bemestar geral e servir a ele outras tantas tentações outros tantos desvios do bom caminho somente uma coi sa é necessária Que todo homem por possuir uma alma 234 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE imortal tenha tanto valor quanto qualquer outro homem que na totalidade dos seres a salvação de todo indivíduo possa reivindicar uma importância eterna que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor não há como ex pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum até a insolência E contudo o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá vel bajulação de vaidade pessoal foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados os insatisfeitos os vencidos todo o refugo e vômito da humanidade a salvação da alma em outras palavras o mundo gira ao meu redor a venenosa doutrina dos direitos iguais para todos foi propagada como um princípio cristão a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho mens ou seja contra o primeiro prérequisito de toda evolu ção de todo desenvolvimento da civilização do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós contra tudo que é nobre alegre magnânimo sobre a terra contra nossa felicidade na Terra conceder a imortalidade a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política Atualmente nin guém mais possui coragem para os privilégios para o direito de dominar para os sentimentos de veneração por si e seus iguais para o pathos da distância Nossa política está debilitada por essa falta de coragem Os sentimentos aristocráticos fo ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade das almas e se a crença nos privilégios da maioria faz e con tinuará a fazer revoluções é o cristianismo não duvidemos disso são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime NIETzSCHE 1989 LXIII É necessário entretanto observar que Nietzsche em mui tos momentos de sua obra distingue com clareza a mensagem 235 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE de Jesus de Nazaré do cristianismo Vejamos a respeito alguns extratos da obra O anticristo toda a história do cristianismo da morte na cruz em diante é a história de uma incompreensão progressivamente grosseira de um simbolismo original Com toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas até mesmo incapazes de compreender os princípios dos quais nasceu surgiu a necessida de de tornálo mais vulgar e bárbaro absorveu os ensinamentos e rituais de todos cultos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo tipo de raciocínio doentio NIETzSCHE 1989 XXXVII Mais adiante naquela mesma obra diz Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica histó ria do cristianismo a própria palavra cristianismo é um mal entendido no fundo só existiu um cristão e ele morreu na cruz o evangelho morreu na cruz o que desse momento em diante chamouse evangelho era exatamente o oposto do que ele viveu más novas um Dysangelium NIETzSCHE 1989 XXXIX Dysangelium um dos muitos neologismos de Nietzsche Ele compõe esse vocábulo de angelium cuja origem vem do grego e que significa nova notícia fazendo oposição com os pre fixos dys mau infeliz notícia má e eu bom feliz boa nova boa notícia E mais adiante e a partir desse momento surgiu um problema absurdo como pôde deus permitilo Para o qual a perturbada lógica da pe quena comunidade formulou uma resposta assustadoramente absurda Deus deu seu filho em sacrifício para a remissão dos pecados De uma vez acabaram com o Evangelho O sacrifício pelos pecados e em sua forma mais obnóxia e bárbara o sa crifício do inocente pelo pecado dos culpados Que paganismo apavorante O próprio Jesus havia suprimido o conceito de 236 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE culpa negava a existência de um abismo entre deus e o ho mem ele viveu essa unidade entre Deus e o homem que era precisamente a sua boa nova nieTZsche 1989 Xli A crença é sinal de vontade fraca De acordo com Nietzsche em A Gaia Ciência a fé surge quando falta vontade pois a vontade sendo a energia do co mando é o sinal da dominação e da força Quanto menos sabe mos comandar mais aspiramos por um ser seja um deus um príncipe uma classe um dogma etc O budismo e o cristianismo teriam nascido de uma extraor dinária anemia da vontade levaram os homens ao fanatismo dandolhes uma nova possibilidade de querer O fanatismo é a força de vontade própria dos fracos hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual das pessoas com um único ponto de vista que no caso dos cristãos é a fé Quando alguém se convence de que deve ser comandado ele se torna um crente Um espírito livre ao contrário experimenta o prazer de se governar de rejei tar segundo sua vontade toda necessidade de certeza É sempre lá onde mais falta vontade que a fé é mais desejada mais necessária pois a vontade sendo a energia do comando é o sinal diferenciador do domínio e da força Quanto menos se sabe comandar mais se aspira ao ser e ao ser rigorosamente seja ele um deus um príncipe uma classe um médico um con fessor um dogma uma consciência de partido O que autorizaria a concluir que as duas grandes religiões do mundo o budismo e o cristianismo poderiam ter nascido de uma extraordinária ane mia da vontade que explicaria ainda melhor a rapidez de sua propagação E de fato assim é essas duas religiões encontraram uma necessidade imperativa exaltada até a loucura o desespero pela anemia da vontade todas as duas ensinaram o fanatismo em uma época de apatia e propuseram a uma multidão incal culável um ponto de apoio uma nova possibilidade de querer 237 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE um prazer a ser realizado o fanatismo é de fato a única força de vontade a qual é possível atribuir aos fracos e indecisos pois ele hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual em benefício da assimilação abundante de um só ponto de vista de um senti mento único o cristão o chama sua fé o qual a partir de en tão hipertrofiado domina Quando um homem se convence de que deve ser comandado ele é crente ao contrário podese imaginar certo prazer de se governar certo poder no exercício do predomínio individual certa liberdade de querer que permitam a um espírito rejeitar de acordo com sua vontade toda fé toda necessidade de certeza podese imaginálo viver mantido pelas correntes as mais leves pelas possibilidades as mais diminutas a dançar até às bordas dos abismos este seria o espírito livre por excelência NIETzSCHE 1950 347 p 294295 tradução nossa O ideal do ascetismo Em sua obra já citada A genealogia da moral Nietzsche pergunta Por que sofrer o homem não rejeita o sofrimento em si ele até busca o sofrimento desde que lhe seja mostrado a razão deste a ausência de sentido da dor é a maldição que tem pesado sobre a humanidade o ideal ascético lhe dá um sentido Graças a ele o sofrimento é explicado o vazio imen so parece preenchido Porém a interpretação que se dá à vida nesse caso traria um novo sofrimento mais profundo mais ín timo mais envenenado mais mortal o sofrimento do castigo por causa do pecado Por que sofrer o homem o mais valente o mais apto ao sofrimento de todos os animais não rejeita o sofrimento em si ele o procura mesmo desde que lhe seja mostrada a razão de ser deste o porquê deste sofrimento a ausência de sentido da dor e não a própria dor é a maldição que até hoje pesou so bre a humanidade ora o ideal ascético lhe deu um sentido Era até então o único sentido que lhe foi dado não importa qual seja o sentido este vale mais do que nenhum sentido o ideal 238 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ascético não era sob todo ponto de vista senão a ausência de um sentido melhor e por excelência a sua única peculiari dade Graças a ele o sofrimento foi explicado o vazio imenso parecia preenchido a porta se fechava diante de toda espécie de niilismo de todo o desejo de acabamento A interpretação que se dava à vida levava inconfundivelmente a um novo so frimento mais profundo mais íntimo mais envenenado mais mortal fez ver todo sofrimento como o castigo de um pecado Mas apesar de tudo trazia ao homem a salvação o ho mem tinha um sentido não era mais a folha arrastada pelo vento o jogo sem razão da ausência de sentido ele poderia a partir de então querer algo não importando o que quisesse a própria vontade estava pelo menos salva nieTZsche 1968 p 244246 tradução nossa O mundo é um caos visão perspectivista O mundo é um caos eterno sobre ele podemos ter múl tiplas perspectivas ou seja ele é passível de uma infinidade de interpretações a partir da morte de deus a ideia de mundo segundo nietzsche desaparece ou como diz o filósofo o mun do tornase novamente infinito Deus está morto Deus permanece morto E quem o matou fomos nós Como haveremos de nos consolar nós os algozes dos algozes O que o mundo possuiu até agora de mais sa grado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nos sas lâminas Quem nos limpará desse sangue Qual a água que nos lavará Que solenidades de desagravo que jogos sagrados haveremos de inventar A grandiosidade desse ato não será demasiada para nós Não teremos de nos tornar nós próprios deuses para parecermos apenas dignos dele Nunca existiu ato mais grandioso e quem quer que nasça depois de nós passará a fazer parte mercê desse ato de uma história superior a toda a história até hoje NIETzSCHE 1950 125 tradução nossa 239 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE O que Nietzsche quer significar com a famosa frase Deus está morto Deus está morto é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda a filosofia Entendêla literalmente como se Deus pudesse estar fisicamente morto ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo na cruz ou ainda como uma simples declaração de ateísmo são ideias oriundas de uma análise descontextualizada da frase que se acha profundamente enraizada na obra nietzscheana O dito anuncia o fim dos fundamentos transcendentais da existência de Deus como justificativa e fonte de valoração para o mundo tanto na civilização quanto na vida das pessoas segundo o filósofo mesmo que estas não o queiram admitir Nietzsche não se coloca como o assassino de Deus como o tom provocador pode dar a entender o filósofo enfatiza um acontecimento cultural e diz fomos nós que o matamos A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação mas uma constatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto filosófico de superar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que julgam o nosso mundo na opinião do filósofo o único existente a partir de um outro mundo superior e além deste A morte de Deus metaforiza o facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e por fim à descrença em quaisquer valores Isso conduziria ao niilismo que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao facto de ainda mantermos uma sombra um tro no vazio um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído que não podemos voltar a ocupar Para isso ele procurou com o seu projecto da transmutação dos valores reformular os fundamentos dos valores humanos em bases segundo ele mais profundas do que as crenças do cristianismo WIKIPEDIA 2012 A ideia metafísica de mundo desaparece dando lugar a uma infinidade de perspectivas Nietzsche pergunta ainda em sua obra A Gaia Ciência até onde vai o caráter perspectivo da existência há uma existência sem razão Toda existência não é essencialmente explicativa Não há análise do intelecto por mais cuidadosa que seja que possa decidir isso porque o espírito hu mano não pode deixar de ver à luz de sua própria perspectiva uma existência sem explicação sem razão não se torna uma loucura Por outro lado toda existência não é essencial 240 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE mente passível de explicação É o que não conseguem deci dir as análises mais cuidadas do intelecto as mais pacientes e minuciosas introspecções pois o espírito do homem em suas análises não pode se impedir de se ver segundo sua própria perspectiva e não pode se ver senão e de acordo com ela Não podemos ver a não ser com nossos olhos é uma curio sidade sem esperança de sucesso buscar saber quais outras espécies de intelectos e de perspectivas podem existir se por exemplo existem seres que sentem passar o tempo em outro sentido ou sucessivamente em direção para frente e para trás o que mudaria a direção da vida e inverteria a concepção da causa e do efeito Espero entretanto que estejamos hoje lon ge da ridícula pretensão de decretar que nosso pequeno ângulo de visão seja o único do qual se tem o direito de ter uma pers pectiva Ao contrário o mundo para nós voltou a ser infinito no sentido de que não podemos lhe recusar a possibilidade de ser disponível a uma infinidade de interpretações NIETzSCHE in ROUXLANIER 1995 p 477 tradução nossa A solução segundo Nietzsche não é recuar para o estado de prémodernidade mas ir além da modernidade o eterno retorno Tudo o que acontece segundo Nietzsche já aconteceu em um número infinito de vezes e acontecerá novamente infinitas vezes É o seu célebre conceito do eterno retorno o aforismo 341 de sua obra A Gaia Ciência é frequentemente citado E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse esta vida assim como tu a vi ves agora e como a viveste terás de vivêla ainda uma vez e ainda inúmeras vezes e não haverá nela nada de novo cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivel mente pequeno e de grande em tua vida há de retornar e tudo na mesma ordem e sequência e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores e do mesmo modo este instante e eu próprio A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez e tu com ela poeirinha da poeira não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te 241 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE falasse assim Ou viveste alguma vez um instante descomunal em que responderias Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino se esse pensamento adquirisse poder sobre ti assim como tu és ele te transformaria e talvez te triturasse a pergunta diante de tudo e de cada coisa Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir Ou então como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida para não desejar nada mais do que essa última eter na confirmação e chancela NIETzSCHE apud WIKIPEDIA 2015 É preciso esclarecer que a noção de eterno retorno não corresponde a uma concepção cíclica do tempo pois o conceito de história do filósofo não é o de um tempo cíclico o eterno retorno diz respeito observam vários estudiosos ao fato de es tarmos sempre vivenciando um número determinado de aconte cimentos que se repetiram no passado se repetem no presente e se repetirão no futuro como guerras crises econômicas epi demias etc Isso porque o mundo é uma realidade múltipla mas única que não tem meta ou finalidade Com o Eterno Retorno Nietzsche questiona a ordem das coisas Indica um mundo não feito de pólos opostos e inconciliáveis mas de faces complementares de uma mesma múltipla mas única realidade Logo bem e mal angústia e prazer são instân cias complementares da realidade instâncias que se alternam eternamente Como a realidade não tem objetivo ou finalidade pois se tivesse já a teria alcançado a alternância nunca finda Ou seja considerandose o tempo infinito e as combinações de forças em conflito que formam cada instante finitas em algum momento futuro tudo se repetirá infinitas vezes Assim vemos sempre os mesmos fatos retornarem indefinidamente WIKIPE DIA 2015 nessa doutrina do eterno retorno o mundo não resulta ria de uma intenção e nem perseguiria um fim Negase o sujeito humano como origem dos acontecimentos Toda ideia de corri 242 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE gir um período passado no caso o pensamento moderno não poderia ser entendida como um retorno ao passado mas seria a própria evolução da modernidade e de suas conquistas que trariam as condições de um retorno ao universo tradicional o caminho do grande estilo Esse retorno ao universo tradicional não consiste segundo nietzsche em voltar à aristocracia natural dos habitantes da Grécia Antiga denominada Hélade os chamados grandes hele nos mas para além do caminho ascético inaugurado por Sócra tes e continuado pelo cristianismo o qual consiste em submeter as forças instintivas à tirania da razão e da verdade mutilando a vida abrese uma outra possibilidade Ela não consiste em negar os instintos mas em hierarqui zar o conjunto dessas forças vitais inclusive as forças da razão e da lógica desenvolvidas por Sócrates e seus discípulos Esse caminho representado pelos antigos helenos enriquecido com aquisições da modernidade é o que nietzsche chama de gran de estilo essa hierarquização e apenas ela nos permitirá esca par do ascetismo de maneira não reativa Apenas negar a razão nos deixaria ainda prisioneiros da atitude reativa inaugurada por Sócrates A hierarquização harmoniosa de todas as forças vitais inclusive da razão nos permitiria uma intensificação da vida O Retorno eterno integra no decorrer de seu ciclo as forças que a vida desenvolveu progressivamente Os grandes helenos eram no fundo inconscientes de sua nobreza moral Como diz nietzsche eles eram espontaneamente virtuosos sem se per guntar por quê representavam um tipo de humanidade frágil destinada a sucumbir sob as interrogações de Sócrates ROUX LANIER 1995 p 475 tradução nossa 243 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE o grande estilo portanto é o estilo clássico que expressa um imenso fluir e refluir de paixão sublime sobrehumana que liberta os instintos capitais e a vontade de potência e nos capacita a dominar o caos que nós somos Sugestão de leitura NASSER E O romantismo em Nietzsche enquanto um problema temporal estético e ético Revista Trá gica estudos sobre Nietzsche v 2 n 2 p 3146 2009 Dispo nível em httptragicaorgartigos0403eduardopdf Acesso em 4 set 2015 A filosofia como estética Muito mais verdadeira do que a ciência e a filosofia para Nietzsche seria a arte Isso porque se adéqua à multiplicidade da vida e ao seu processo constante de diferenciação O artista é o único que não possui a pretensão de expressar uma verdade absoluta mas sua obra se limita a uma perspectiva Por essa razão Nietzsche acreditava que o filósofo e a filosofia deveriam se transformar em estética O professor Miguel Angel de Barrenechea observa em seu artigo Nietzsche e o discurso filosófico uma linguagem pessoal 2011 que o Nietzsche jovem buscava em sua obra O nascimento da tragédia uma metafísica de artista Tratase de uma explicação estética do universo assim como do próprio devir da cultura Orientase pelas imagens da tradição helênica valorizando particularmente a tragédia e a música que conside rava como expressões da própria essência da realidade Sob a inspiração de Schopenhauer e do compositor Richard Wagner desenvolve naquela obra uma visão da realidade onde ainda se mantém ligado aos dualismos da tradição filosófica tais como 244 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE fenômeno e coisaemsi aparência e essência vontade e repre sentação É assim que naquela obra Nietzsche vê nas figuras de Apolo divindade da mitologia grecoromana identificado como o sol e como a luz da verdade e de Dionísio em Nietzsche sim bolizando a vontade de viver representantes respectivamente do aspecto fenomenal da realidade e das forças provindas de um fundo primordial da essência do mundo Posteriormente ao es crever Assim falava Zaratrusta Nietzsche vai à busca de uma lin guagem essencialmente não conceitual mas artística e literária por meio de imagens e metáforas Considerações O professor Jelson Oliveira da PUC do Rio de Janeiro em seu artigo intitulado A grande Ética de Nietzsche propõe que se possa falar de uma grande Ética em nietzsche diz ele Trataremos de avaliar a possibilidade de pensar o problema da ética em Nietzsche a partir da compreensão do uso instrumen tal do adjetivo grosse grande Consideraremos a título de exemplo o uso feito pelo filósofo do adjetivo grosse em expres sões como grande saúde grande política grande razão e grande homem pelo qual se pode descobrir pistas que remetem às noções de autosupressão diferença conflito e hierarquia Essas noções se ligam à idéia de uma grande ética cuja referência passa a ser o pathos e não mais simplesmente o ethos OLIVEIRA 2011a p 1 observa que o terreno dessa grande Ética seria o pathos ao contrário do terreno da moral vigente a do ethos fundado na conduta guiada pela universalidade dos imperativos ligado ao duradouro via a racionalidade Pathos é entendido por Nietzsche como aquilo que diz respeito à conduta do nobre ou seja a de um distanciamento gerador da diferença do conflito e da hierar 245 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE quia terreno de uma ética que não se fundamenta em princípios universais à luz de uma vontade de sistema como características dessa grande Ética desse ir além de toda moralidade vigente nietzsche fala de uma ética aris tocrática e de uma ética da amizade Uma ética aristocráti ca uma vez que segundo Nietzsche só o nobre seria capaz de vivenciar esse ir além essa transvalorização esse recriar e reinventar valores por meio de um jogo de perspectivas sem definhar Uma ética da amizade significa no caso uma revalori zação dos afetos No prefácio ao livro Para uma ética da amizade em Nietzsche do professor Jelson Oliveira Oswaldo Giacóia Junior diz citando Nietzsche É certo que Nietzsche mesmo em cerrada oposição ao seu mes tre Arthur Schopenhauer não se propõe a depor completamente uma ética da compaixão substituindoa por um ethos da felici dade compartilhada pura e simplesmente em termos de uma oposição absoluta mas não é menos certo que tal como cons tatamos na citação abaixo transcrita ele contrapõe Mitfreude alegrarse com a Mitleiden compaixão E esse sentimento po sitivo de alegrarse com só é plenamente possível entre amigos aqueles que podem sentir alegria conosco são mais elevados e próximos do que aqueles que sofrem conosco Alegria com partilhada faz o amigo aquele que se alegracom compaixão faz o companheiro de sofrimento Uma ética da compaixão carece de um complemento por meio de uma ética da amiza de ainda mais elevada nieTZsche F Fragmento póstumo nu merado como 19 9 In Nachgelassene Fragmente In Kritische Studienausgabe ksa Ed G Colli e M Montinari Berlin New York München de Gruyter dtv 1980 vol 8 p 333 Nietzsche faz aqui um jogo de palavras irresgatável em português entre Freude alegria e Freunde amigo transitando entre alegria e amizade ele opõe amigoalegria por meio dos verbos freuen alegrarse e do neologismo cunhado por ele mesmo freuenden 246 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE alegrarse amistosamente a uma ética da compaixão Mitleid sofrer com A ética da amizade seria ao mesmo tempo uma complementação Ergänzung e um patamar ético mais elevado que a ética da compaixão GIACÓIA JR in OLIVEIRA 2011b Quanto à Ética conforme a estamos considerando nesta obra ou seja como saber do singular distinguindose da moral na medida em que esta se funda em um saber abstrato genera lizante podemos dizer que ela literalmente se manifesta de ma neira explosiva no pensamento de nietzsche Isso porque como vimos ao tratar a moral vigente no pen samento ocidental como algo falso e ilusório por ter por fun damento uma razão abstraída da vida coloca a nu um domínio de saber que é o de uma universalidade não do geral não do igual mas do singular da diferença E nesse sentido várias são as questões de ordem filosófica polêmicas no que concerne ao pensamento do filósofo alemão com implicações no tema da Ética Assim por exemplo para não citar senão algumas a questão da existência no pensamento de Nietzsche de um transcendental não transcendente a de um saber da singularidade a da distinção entre singularidade e individualidade a da subjetividade Relembremos que os sentidos de transcendental de trans cendente e de imanente assumem nuances diversas no pen samento de alguns filósofos Aqui estamos entendendo como transcendental a concepção de um princípio da realidade que pode ser visto como transcendente no caso de significar a exis tência de uma ordem especial de realidades que não se encon tram no nível dos sentidos é o caso de uma posição metafísica ou pode ser concebido como imanente no caso de significar a 247 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE existência de uma causa do mundo real fechada no próprio uni verso não regulada por um princípio superior distinto e exterior São questões debatidas atualmente dentro de visões mui tas vezes paradigmaticamente diferentes e que compõem o qua dro de reflexões contemporâneas sobre o tema da ética ques tões que se situam além dos limites estritos da presente obra Sugerimos que você procure responder discutir e comen tar as questões a seguir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade ou seja o emergir de uma desconfiança nos po deres da razão especulativa para o tratamento das questões éti cas da busca por um novo recurso de conhecimento do recurso à arte e à intuição como fontes de conhecimento da realidade 7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira a seguir as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade 1 Qual seria o fundamento do agir ético para Schopenhauer a A justiça b A razão prática c A amizade d A compaixão e O respeito 2 Schopenhauer identifica uma incapacidade de formar santos ou artistas por meio de educação teórica sobre a arte ou sobre a Ética Nesse sentido ele afirma 53 Na minha opinião contudo toda a filosofia é sempre teórica já que lhe é sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa e sempre inquirir em vez de prescrever re gras Tornarse prática conduzir a ação moldar o caráter eis aí 248 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por fim a filosofia abandonálas Pois aqui quando se trata do valor ou da ausência de valor da existência da salvação ou da perdi ção os mortos não decidem e sim a essência mais íntima do homem seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu como diz Platão em vez de ser escolhido seu caráter inteligí vel como Kant se expressa A virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio sim para ela o conceito é tão infrutífero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instrumento Por conseguinte seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos criassem caracteres virtuosos nobres e santos quanto que nossas estéticas produzissem poetas ar tistas plásticos e músicos SCHOPENHAUER 2005 p 354 Dessa forma de compreender o ético podemos afirmar que a Schopenhauer identifica Ética e estética em seu pensamento impon do limites à razão enquanto pretensão de impor regras racionais ao comportamento humano assim como de impor regras à produção do gênio b No pensamento de Schopenhauer não há uma ética propriamente dita visto que não apresenta valores racionais que possam nortear o comportamento humano c A filosofia deve moldar as regras de conduta assim como também deve preparar a produção artística sendo tanto santos quanto gênios devedores da especulação filosófica d Schopenhauer propõe uma ética fundada em valores aceitos pela so ciedade e empreende uma defesa dos valores iluministas 3 Segundo Nietzsche faltou aos filósofos buscar uma genealogia para os conceitos de bom e mau Na sua gênese segundo o filósofo qual era o significado desses conceitos Como eles trocaram de papel O que passa ram a significar 4 Podemos constatar o esforço intelectual de Nietzsche para o desenvolvi mento de um saber da singularidade e da diferença Isso se pode notar em várias passagens dentre as quais achamos relevante retomar uma já citada Quando o centro de gravidade da vida é colocado não nela mesma mas no além no nada então se retirou da vida o seu centro de gravidade A grande mentira da imortalidade 249 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE pessoal destrói toda razão todo instinto natural tudo que há nos instintos que seja benéfico vivificante que assegure o futuro agora é causa de desconfiança Viver de modo que a vida não tenha sentido agora esse é o sentido da vida Para que o espírito público Para que se orgulhar pela origem e antepassados Para que cooperar confiar preocuparse com o bemestar geral e servir a ele outras tantas tentações outros tantos desvios do bom caminho somente uma coi sa é necessária Que todo homem por possuir uma alma imortal tenha tanto valor quanto qualquer outro homem que na totalidade dos seres a salvação de todo indivíduo possa reivindicar uma importância eterna que beatos insignificantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constantemente transgredidas em seu favor não há como ex pressar desprezo suficiente por tamanha intensificação de toda espécie de egoísmos ad infinitum até a insolência E contudo o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorá vel bajulação de vaidade pessoal foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogrados os insatisfeitos os vencidos todo o refugo e vômito da humanidade a salvação da alma em outras palavras o mundo gira ao meu redor a venenosa doutrina dos direitos iguais para todos foi propagada como um princípio cristão a partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma guerra de morte con tra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho mens ou seja contra o primeiro prérequisito de toda evolu ção de todo desenvolvimento da civilização do ressentimento das massas forjou sua principal arma contra nós contra tudo que é nobre alegre magnânimo sobre a terra contra nossa felicidade na Terra conceder a imortalidade a qualquer Pedro e Paulo foi a maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada E não subestimemos a funesta influência que o cristianismo exerceu mesmo na política Atualmente nin guém mais possui coragem para os privilégios para o direito de dominar para os sentimentos de veneração por si e seus iguais para o pathos da distância Nossa política está debilitada por essa falta de coragem Os sentimentos aristocráticos fo ram subterraneamente carcomidos pela mentira da igualdade 250 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE das almas e se a crença nos privilégios da maioria faz e con tinuará a fazer revoluções é o cristianismo não duvidemos disso são as valorações cristãs que convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime NIETzSCHE 1989 LXIII A partir dessa passagem podemos dizer a Nietzsche coloca em questão a homogeneização das condutas huma nas pretendidas pelos dogmas religiosos e propõe uma Ética que ad mita as singularidades não como exceção à regra mas como a própria regra da vida b Nietzsche critica qualquer ideia de salvação que não nos encaminhe para um alémmundo c Nietzsche retoma uma posição aristotélica em relação aos valores tra dicionais propondo uma Ética que não só nos encaminhe para uma igualdade mas que aceita um meio termo em relação às atitudes de senhores e escravos para que estes convivam em paz d Nenhuma das alternativas anteriores está correta 5 Segundo os conteúdos aqui tratados porque podemos dizer que tanto para Nietzsche como para Schopenhauer a razão teórica não deve se tor nar prática E por que podemos dizer que no pensamento desses filó sofos a questão moral começa a perder força e a questão ética se impõe com mais força do que nos pensadores anteriores Gabarito Confira a seguir as respostas corretas para as questões au toavaliativas propostas 1 d 2 a 3 Bom era o conceito que designava os grandes homens as suas ações Es ses homens seriam os nobres capazes de guerrear e conquistar Homens capazes de aumento de força e poder Tais ações de homens nobres eram as ações boas e justas e não careciam de justificações Más seriam as ações dos fracos os que se deixam escravizar e dominar A casta sacerdo tal também pertencia aos nobres mas não tinham a força para guerrear e 251 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE conquistar Então por um exercício de retórica e justificação poderíamos dizer que fizeram valer uma nova visão sobre as ações virtuosas colocan doas a seu favor A partir de então sua condição foi aceita como a atitude correta digna de respeito e admiração que conduz ao céu Então a impo tência dos sacerdotes assim como a dos que se deixam dominar passou a significar as atitudes verdadeiramente boas e justas 4 a 5 Em Schopenhauer e Nietzsche as pretensões iluministas de se formar uma sociedade esclarecida pela razão ou dialeticamente como o próprio Nietzsche se refere está fadada ao fracasso pois se trata sempre de refor mular o que já se deve crer de antemão ou seja que a razão ou verda de racional é a única capaz de compreender a realidade Pelo descrédito desses filósofos no tocante ao alcance da razão abrese caminho para novas abordagens sobre a realidade A intuição a arte e a compreensão passam a figurar entre as possibilidades de se alcançar novas formas de pensamento Com isso a moral desenvolvida dialeticamente e historica mente acompanhada e entrelaçada ao próprio desenvolvimento da razão perde força Assim a Ética o conhecimento do singular do caráter apare ce no horizonte desses filósofos com muito mais força e podemos arriscar a pensar que isso se deve de fato à mudança que estes operam no campo epistêmico sendo algo decisivo para a construção do pensamento de am bos os filósofos guardadas as divergências entre eles 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos em Ética II que quando buscamos entender a ação ou comportamento éticos propriamente ditos defrontamonos com um saber que tem por objeto a capacidade humana de transcendência que nos leva além de nós mesmos de nossos hábitos costumes e interesses pessoais mergulhandonos no caráter ou na singularidade de uma situação de um comporta mento de uma ação Assim dentro dessa visão aqui apresentada podemos dizer que o ético não depende do moral embora o moral 252 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE ou a moralidade também se deva a uma capacidade de trans cendência diríamos que o moral decorre daquela capacidade humana de transcendendo o individual estabelecer regras gerais de ação dentro de contextos específicos tais como os de uma época civilização cultura um grupo profissional por exem plo Nesse sentido consideramos inadequada a designação de código de ética profissional no nosso entender tratase de uma moralidade estabelecida por um determinado grupo profissional A diferenciação básica entre essas duas capacidades de transcendência se daria a nosso ver no fato de a moral diferen temente da Ética consistir em um transcender o individual em busca de regras gerais e por isso por se realizar à luz do indi vidual e do universal geral frequentemente o moral entra em conflito com o ético uma vez que este último como já foi dito trabalha no nível da singularidade e individualidade e singularidade são essencialmente diferentes É assim que exemplificando diante dos valores culturais moral da civilização islâ mica com relação às mulheres nos sentimos enquanto seres éticos indignados temos enormes dificuldades em aceitar os valores a moral de grupos neonazistas da KluKluxKlan da Má fia etc revoltamonos diante de costumes culturais como o do infanticídio entre os índios No decorrer deste nosso estudo tivemos a oportunidade de encontrar ao estudarmos as obras de alguns dos filósofos mais representativos questões relativas a essas duas trans cendências com predominância da questão da moral uma 253 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE vez que como assinalamos na introdução a esta obra o período analisado do Renascimento ao chamado pensamento moder no consiste essencialmente no desenvolvimento de uma razão teóricoespeculativa ou seja geral e abstrata que é a base da moralidade Ao nos depararmos no século 19 com os pensamentos de Schopenhauer e Nietzsche vemos surgir com maior clareza a distinção entre o ético e o moral com predominância da preocu pação com o ético propriamente dito É o que vamos ver acon tecer no pensamento contemporâneo chamado pósmoderno com inúmeros e diversos posicionamentos a respeito da Ética Não constituindo a filosofia contemporânea matéria da presente obra damos aqui por encerrado esse nosso estudo na esperança de ter contribuído até certo ponto para uma reflexão sobre a Ética e a moral por meio de um histórico do que consi deramos um lento emergir de suas diferenças 9 ereFerÊncia Barrenechea M a nietzsche e o discurso filosófico uma linguagem pessoal Cadernos Nietzsche São Paulo n 28 2011 Disponível em http wwwcadernosnietzscheunifespbrhomeitem161nietzscheeodiscurso filosC3B3ficoumaE2809Clinguagempessoal Acesso em 4 set 2015 OLIVEIRA J A grande ética de Nietzsche Revista Índice revista eletrônica de filosofia v 3 n 1 2011a Disponível em httpwwwrevistaindicecombr Acesso em 8 mar 2012 WIKIPEDIA Deus está morto Disponível em httpsptwikipediaorgwikiDeus EstC3A1Morto Acesso em 8 mar 2012 Eterno retorno Disponível em httpsptwikipediaorgwikiEterno retorno Acesso em 9 set 2015 254 Ética ii UNIDADE 4 PrImórDIos DA PósmoDErNIDADE schoPENhAUEr E NIEtzschE zAMORA A A noção da dissolução do sujeito em Nietzsche Disponível em http revistapandorabrasilcomrevistapandoranietzschenocaohtm Acesso em 3 set 2015 10 REFERêNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO N Dicionário de Filosofia 5 ed Trad Ivone Castilho Benedetti São Paulo Martins Fontes 2007 LALANDE A Vocabulário técnico e crítico da Filosofia 3 ed São Paulo Martins Fontes 1999 NIETzSCHE F W Anticristo anatema sobre o cristianismo Lisboa Edições 70 1989 Textos Filosóficos La généalogie de la morale Paris Gallimard 1971 La généalogie de la morale Paris Gallimard 1968 Coll Idées Le crépuscule des idoles Paris Mércure de France 1952a Le problème de Sócrate Paris Mércure de France 1952b Le Gai Savoir Paris Gallimard 1950 OLIVEIRA J Para uma Ética da amizade em Friedrich Nietzsche Rio de Janeiro 7letras 2011b ROUXLANIER C Org Le temps des philosophes Paris Hatier 1995 SCHOPENHAUER A O mundo como vontade e como representação In A arte de viver e a sabedoria Textos escolhidos Paris PUF 1956 O mundo como vontade e como representação Trad Jair Barboza São Paulo Unesp 2005 Parerga e paralipomena In CIVITA V Os pensadores Schopenhauer e Kierkgaard São Paulo Abril Cultural 1974 v 31 Sobre o fundamento da moral São Paulo Martins Fontes 1995 Dores do mundo o amor a morte a arte moral a religião a política o homem e a sociedade Rio de Janeiro Edições Ediouro sd Universidade de Bolso zIMMER Filosofia da Índia São Paulo Palas Athena 1991