• Home
  • Chat IA
  • Guru IA
  • Tutores
  • Central de ajuda
Home
Chat IA
Guru IA
Tutores

·

Direito ·

Introdução ao Estudo do Direito

Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora

Recomendado para você

Slide Roteiro

443

Slide Roteiro

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Guia Completo para Fichamento Academico IED2 - UnB

2

Guia Completo para Fichamento Academico IED2 - UnB

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Estudos sobre Justiça Comunitária na América Latina - Análise e Reflexões

230

Estudos sobre Justiça Comunitária na América Latina - Análise e Reflexões

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Direito e Moral- Sistemas Normativos e sua Relação- Aula 3

113

Direito e Moral- Sistemas Normativos e sua Relação- Aula 3

Introdução ao Estudo do Direito

UNIPE

Resenha Critica - Quarto de Despejo e Os Advogados Contra a Ditadura

10

Resenha Critica - Quarto de Despejo e Os Advogados Contra a Ditadura

Introdução ao Estudo do Direito

ESDHC

Recuperacao Extrajudicial - Conceito, Requisitos e Aplicacao

5

Recuperacao Extrajudicial - Conceito, Requisitos e Aplicacao

Introdução ao Estudo do Direito

UNIHORIZONTES

Seminário

1

Seminário

Introdução ao Estudo do Direito

UESC

Tópicos das Aulas de Direito: Unidades 1 a 4

30

Tópicos das Aulas de Direito: Unidades 1 a 4

Introdução ao Estudo do Direito

UNIVALI

O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito

119

O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito

Introdução ao Estudo do Direito

FACIC

Povos Antigos - Sociedade, Direito e Caracteristicas Essenciais para Estudo

3

Povos Antigos - Sociedade, Direito e Caracteristicas Essenciais para Estudo

Introdução ao Estudo do Direito

UMG

Texto de pré-visualização

Notas sobre a História JurídicoSocial de Pasárgada Boaventura de Sousa Santos I Introdução Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas jurídicas intemas de uma favela do Rio de Janeiro a que dou o nome fictício de Pasárgada1 Este estudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de pluralismo jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações entre Estado e direito nas sociedades capitalistas Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram oficialmente ou não mais de uma ordem jurídica Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica rácica profissional ou outra pode corresponder a um período de ruptura social como por exemplo um período de transformação revolucionária ou pode ainda resultar como no caso de Pasárgada da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social neste caso a habitação 1 Este estudo cuja pesquisa de campo foi realizada no verão de 1970 constituiu uma tese de doutoramento apresentada na Universidade de Yale U S A em 1973 e intitulada Law Against Law Legal Reasoning in Pasargada Law Foi publicado pelo Centro Inter cultural de Documentacion de Cuernavaca México em 1974 Uma versão bastante reduzida e revista foi publicada sob o título The Law o the Oppressed The Construction and Reproduction o Legality in Pasargada na Law and Society Review vol 12 1974 pp 5 126 Encontrase em preparação a versão portuguesa integral NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 2 A favela é um espaço territorial cuja relativa autonomia decorre entre outros fatores da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídicopolítico do Estado brasileiro No caso específico de Pasárgada pode detectarse a vigência nãooficial e precária de um direito interno e informal gerido entre outros pela associação de moradores e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrentes da luta pela habitação Este direito nãooficial o direito de Pasárgada como lhe poderei chamar vigora em paralelo ou em conflito com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de Pasárgada Entre os dois direitos estabelece se uma relação de pluralismo jurídico extremamente complexa que só uma análise muito minuciosa pode revelar Muito em geral pode dizerse que não se trata de uma relação igualitária já que o direito de Pasárgada é sempre e de múltiplas formas um direito dependente em relação ao direito oficial brasileiro Recorrendo a uma categoria da economia política pode dizerse que se trata de uma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz a nível sóciojurídico as relações de desigualdade entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscrevese no que interessa para este estudo aos recursos internos que são mobilizados para prevenir e resolver conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre construções casas e barracos que nesta se implantam2 É através da análise dos 2 Em qualquer sociedade moderna ou em vias de modernização a terra tende a ser considerada como um recurso de muito valor tanto em áreas urbanas como em áreas rurais Desta maneira o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias através das quais a segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas Como diz W S Holdsworth as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuída usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado A estabilidade do Estado e o bemestar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem consideravelmente do direito de propriedade sobre as terras An Historical Introduction to the Land Law Oxford 1927 p 3 Não admira pois que em Pasárgada se tenham desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o mínimo de segurança e de estabilidade das relações sociais NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 3 tipos de conflitos e dos seus modos de resolução que melhor se surpreende o direito de Pasárgada em ação isto é enquanto prática social Esta análise feita num certo momento do desenvolvimento de Pasárgada requer para ser completa a inclusão de uma dimensão histórica Mais concretamente tratase de saber como se constituíram e desenvolveram a partir da formação da favela as normas e as formas jurídicas e os órgãos de decisão jurídica que hoje se centram à volta da associação de moradores e de outros pólos de organização comunitária autônoma que continuam a subsistir ainda que de modo cada vez mais precário anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitário no início da década de 60 O texto que se segue circunscrevese à análise da primeira parte desta evolução e mesmo assim de modo muito lacunoso As dificuldades da investigação histórica no domínio sóciojurídico são inúmeras sobretudo quando o objetivo é captar a gênese das formas e estruturas jurídicas As dificuldades são ainda maiores quando como no caso presente é quase total a carência de documentação escrita Para as obviar recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sobretudo com aqueles que ali viveram desde o início da comunidade É sabido que este método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento através dele obtido é sempre muito problemático E isto é tanto mais assim quando se trata de pesquisar questões jurídicas porque consoante a perspectiva analítica usada pelo entrevistador tais questões ou se referem a fatos que não ultrapassam os umbrais de um quotidiano por vezes longÍnqüo ou envolvem mitos e tabus à volta dos quais o conhecimento e o desconhecimento social se organizam estratégica e caprichosamente Em qualquer dos casos as respostas dos entrevistados tendem a padecer de vícios tais como lacunas e distorções de percepção e memória prejuízos éticos ou outros sobrevalorização do presente em relação ao passado e viceversa indução das respostas ou seja adequação destas ao estereótipo do entrevistador centradas na terra e na habitação uma vez que pelas razões apresentadas no texto tal estabilidade e segurança não podiam ser garantidas pelo direito oficial brasileiro NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 4 e das suas preferências Em condições como estas a tentação é grande para compensar as deficiências de informação com sobreinterpretação II Os Maus Velhos Tempos Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da década de 30 existia muita terra disponível Cada morador demarcava o seu pedaço de terra e construía o seu barraco deixando em geral espaços abertos para o cultivo de verduras plantio de árvores ou para criação de animais domésticos Segundo os mais antigos moradores de Pasárgada naquela época quase não existiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre aterra e ashabitações Não havia necessidade de brigas dizem eles Os barracos eram de construção muito primitiva pouco valor tendo Podiam ser construídos ou demolidos em questão de horas Por outro lado uma vez que existia muita terra desocupada qualquer conflito relacionado com a posse da terra limites preferências e servidões poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das partes do conflito para outro lugar no morro Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções melhorou consideravelmente de tal modo que na segunda metade da década de 40 eram já freqüentes os conflitos envolvendo a propriedade e aposse da terra Quando se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época tais conflitos eram resolvidos eles respondem invariavelmente Violência a ei do mais forte Quando a fim de evitar em alguma medida distorções de percepção e de memória se procura obter informações com base num paralelo entre o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora é freqüente obterse uma resposta deste teor Oh Agora é diferente Agora as questões são tratadas em paz e tentase decidir de acordo com a justiça Naquela época eram resolvidas com facas e revólveres Este tipo de resposta envolve NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 5 ainda uma certa distorção porque não é verdade que hoje em dia todos os conflitos sejam pacificamente resolvidos muito embora não seja menos verdade em Pasárgada do que o é na sociedade brasileira em geral A luz de informações obtidas e tendo em conta a possibilidade de distorção é talvez seguro concluir que a probabilidade de relações sociais pacíficas envolvendo a propriedade e a posse da terra e o tratamento também pacífico dos conflitos decorrentes de tais relações é hoje muito mais elevada do que há 20 ou 30 anos O aumento da violência numa primeira fase da história de Pasárgada resulta obviamente de uma pluralidade de fatores Entre eles apenas se referem dois que têm mais pertinência para os objetivos do presente estudo por um lado a indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenação e controle social próprios do sistema jurídico brasileiro e por outro lado a inexistência de mecanismos alternativos de origem comunitária capazes de exercer ainda que de modo diferente e apenas nos limites da comunidade funções semelhantes às dos mecanismos oficiais No que respeita ao primeiro fator a indisponibilidade dizse estrutural sempre que as suas razões transcendem o domínio motivacional e portanto o nível dos eventos da interação social independentemente do grau de universalização desta Entre os mecanismos oficiais de ordenação e controle social serão referidos dois a polícia e os tribunais A polícia não tinha delegacias em Pasárgada e mesmo se as tivesse é improvável que fossem solicitadas pela população para intervir em casos de conflito e as delegacias policiais nas áreas urbanizadas próximas também não eram chamadas a agir Quando se pergunta aos moradores mais antigos as razões por que eles não usavam os serviços da polícia eles primeiro riem pela surpresa que lhes causa tal pergunta tão óbvio é a resposta Depois fazem um esforço para expressar o óbvio Desde os primórdios da ocupação do morro a comunidade entendeu que estava numa contínua luta com a polícia Antes de os terrenos de Pasárgada passarem para o domínio público várias foram as tentativas empreendidas pela polícia para expulsar em massa os moradores E mesmo depois disso a sobrevivência da comunidade nunca esteve garantida uma vez que se conheciam casos de remoção de favelas construídas NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 6 em terrenos do Estado Chamar a polícia aumentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoção Outros fatores contribuíam ainda para que a polícia fosse vista como um inimigo pelos moradores de Pasárgada Criminosos suspeitos vagabundos e em geral maus elementos eram considerados pela polícia como formando uma considerável proporção da população de Pasárgada Por conseguinte pelo que contam as testemunhas desse tempo que não é neste aspecto muito diferente do tempo presente a polícia fazia incursões repressivas isto é dava batidas na comunidade com muita freqüência Estas batidas eram tão ineficientes do ponto de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores que delas eram vítimas Aqueles que de fato eram maus elementos quase nunca eram apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com freqüência para prisões de onde não eram libertadas a não ser através de suborno Neste contexto e mesmo colocando de lado perigos envolvidos não existia qualquer propósito útil em chamar a polícia em caso de conflito Se a vítima ou em geral a pessoa prejudicada chamasse a polícia sabia que esta provavelmente não se disporia a vir a menos que por outros motivos tivesse nisso interesse e se viesse o culpado e todas as relevantes testemunhas já teriam então desaparecido ou se não quando interrogadas fariam o possível para não fornecer quaisquer informações úteis Por outro lado o morador que chamasse a polícia seria considerado traidor ou informante cagüete pelos outros moradores e isso poderia fazer perigar a sua permanência na comunidade Não existe razão para duvidar da exatidão deste relato tanto mais que ele se refere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir em grande parte o quotidiano das relações entre os moradores de Pasárgada e a polícia Apesar de ter agora delegacia em Pasárgada a polícia continua a desempenhar um papel mínimo na prevenção e na resolução de conflitos Não obstante os seus esforços no sentido de uma aceitação mais positiva por parte da comunidade continua a ser vista por esta como uma força hostil investida de funções estritamente repressivas NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 7 Para além da polícia ou em complemento da ação desta os tribunais constituem o outro mecanismo oficial de ordenação e controle social a que os habitantes de Pasárgada poderiam em teoria recorrer para prevenir ou resolver conflitos internos de natureza jurídica Tal recurso estava no entanto igualmente vedado e várias são as razões apontadas pelos moradores mais velhos para tal fato Em primeiro lugar juízes e advogados eram vistos como demasiado distanciados das classes baixas para poder entender as necessidades e as aspirações dos pobres Em segundo lugar os serviços profissionais dos advogados eram muito caros Segundo a descrição de um dos moradores nós estávamos brigando por barracos e pedaços de terra que do ponto de vista dos advogados não valiam nada Além disso quando você contrata um advogado você é duma classe mais baixa do que a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advogados e com o juiz que podem prejudicar os seus interesses Então ele vem a você com aquele jeito de falar de advogado e tenta convencer que foi o melhor que ele podia fazer por você e que afinal de contas o acordo não é tão mau assim E você não pode fazer nada Esta observação embora referida a atitudes para com os advogados na época inicial de Pasárgada baseiase provavelmente em experiência e percepções adquiridas muito tempo depois Em qualquer caso pressupõe um conhecimento bastante íntimo da ação dos advogados que duvido fosse comum em Pasárgada há 20 ou 30 anos atrás Comum era e continua a ser a idéia de que os serviços dos advogados são muito caros e por isso longe do alcance das posses escassas das classes baixas uma idéia aliás profundamente enraizada na consciência jurídica popular e portanto correspondente a uma experiência histórica longa3 Uma terceira razão invocada pelos moradores de Pasárgada para não recorrerem aos tribunais reside no fato de saberem desde o início que a comunidade era ilegal à luz do direito oficial quer 3 Sobre as razões econômicas e extraeconômicas do uso diferenciado das instituições jurídicas segundo as classes sociais razões essas que conferem o caráter de justiça de classe à justiça produzida pelo aparelho jurídico do Estado nas sociedades capitalistas vide J Carlin e J Howard Legal Representation and Class Justice in V Aubert Sociology of Law Lon dres 1969 1975 pp 33250 NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 8 quanto à ocupação da terra quer quanto aos barracos que nela se iam construindo Na expressão perspicaz de um deles nós éramos e somos ilegais Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil como perigoso Era inútil porque os tribunais têm que seguir o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito Era perigoso porque trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia leválos a nos jogar na cadeia Esta série de observações requer uma análise detalhada porque esclarece alguns aspectos básicos da gênese e estrutura da ordem jurídica interna de Pasárgada A expressão nós éramos e somos ilegais que no seu contexto semântico liga o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada pode ser interpretada como indicação de que nas atitudes destes para com o sistema jurídico nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais mesmo sobre aquelas que nada têm a ver com a terra ou com a habitação Tal seria o caso se por exemplo um conflito jurídico de índole estritamente pessoal não fosse levado à atenção dos operadores do sistema jurídico nacional pela suspeita das partes de que a ilegalidade do seu status residencial afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processado pelos tribunais Não tenho provas cabais do funcionamento deste mecanismo de feedback e julgo que seria muito difícil senão impossível obtêlas Na verdade apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aos conflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiares à luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedade e de posse é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral em relação aos problemas jurídicos das classes baixas residindo ou não em favelas e constitui por isso uma das manifestações mais evidentes da natureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista4 4 A prova plena da existência do mecanismo de feedback exigiria em obediência aos métodos de verificação sociológicos estabelecidos que se tomassem dois grupos representativos das classes baixas brasileiras homogêneos na totalidade das características consideradas importantes e apenas diferindo quanto ao status residencial tendo um status residencial legal e o outro ilegal Seria então registrado ao longo de uma seqiiência temporal consi derada razoável e por modo NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 9 No entanto em muitas entrevistas com os moradores de Pasárgada obtive declarações nas quais a idéia do mecanismo de feedback é subentendida Eis uma declaração típica parece que somente porque a terra não é nossa o Estado não tem obrigação de nos fornecer água e luz elétrica e a polícia pode invadir nossas casas quando bem entende Existem mesmo patrões que recusam candidatos a emprego quando estes dão endereço numa favela O significado implícito deste extrato de entrevista é que de acordo com os princípios de justiça a ilegalidade da posse da terra nas favelas não se deveria repercutir sobre a provisão de serviços públicos pelo Estado ou sobre o comportamento da polícia e dos patrões No contexto em que esta declaração foi feita5 significa também que o mecanismo de feedback embora existindo de fato não é sequer legal face ao sistema jurídico oficial Na realidade o feedback é legal no que respeita à provisão de serviços públicos referidos De acordo com as leis gerais e com as disposições do código urbano o fornecimento por parte do Estado de serviços públicos tais como água esgotos luz elétrica pavimentação é limitado a áreas cuja utilização tenha sido aprovada nos termos da legislação em vigor6 No que respeita ao comportamento da polícia7 foi possível depois de algumas entrevistas com quantificado o recurso aos tribunais em caso de conflitos devidamente tipificados Verseia então se se verificavam diferenças significativas que pudessem ser atribuíveis à variável independente adotada a qualidade jurídica oficial do status residencial Mas mesmo recorrendo a todo este arsenal metodológico seria sempre impossível controlar completamente todas as restantes categorias potenciais variáveis independentes Haveria assim sempre o risco de estas intervirem no processo causal ou simplesmente correlacional oferecendo hipóteses alternativas de explicação 5 Nós estávamos a discutir situações em que o direito constante dos códigos e demais legislações a Iaw in books da filosofia anglosaxônia de propensão sociológica não se coaduna com o direito efetivamente aplicado e praticado a Iaw in action 6 Isso não significa que o Estado tenha suprido todas as áreas urbanizadas com os serviços públicos referidos Nem tão pouco significa que tais serviços tenham sido recusados em absoluto às favelas Por exemplo ao tempo em que foi realizada a pesquisa de campo verão de 1970 o então Estado da Guanabara iniciava a instalação da rede de água em Pasárgada Em verdade os moradores da favela estão habituados a ver iniciado o forneci mento de serviços públicos em períodos préeleitorais como era o caso em Pasárgada para ser interrompido ou abandonado logo após as eleições 7 Em face das tensões entre a comunidade e a polícia nunca contactei os policiais com base operacional em Pasárgada Qualquer contato com a polícia colocaria em perigo a continuidade da minha pesquisa Assim e na medida em que a polícia faz parte das vias judiciais Iawways de NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 10 policiais trabalhando noutras favelas confirmar a disparidade entre o direito nos livros e o direito na prática Indiferente ao disposto na lei a polícia tende a agir segundo o princípio de que uma vez que os favelados estão ilegalmente domiciliados não têm razões para reclamar quando a polícia invade suas casas no cumprimento do dever A análise da expressão nós éramos e somos ilegais parece indicar que a idéia de uma capitis diminutio geral de uma ilegalidade quase existencial e a prática social em que ela se espelhou e reforçou agiram como fatores bloqueantes do acesso aos tribunais O estatuto e portanto os limites desta declaração de ilegalidade encontrase precisado na expressão também já mencionada de que os tribunais têm que observar o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito Juntamente com a anterior esta citação ilustra bem a ambigüidade profunda da consciência popular do direito nas sociedades caracterizadas por grandes diferenças de classes Por um lado a apreciação realista de que o direito do Estado é o que está nos códigos e de que nem estes nem os juízes que têm por obrigação aplicálo se preocupam com as exigências de justiça social Por outro lado o reconhecimento implícito da existência de um outro direito para além dos códigos e muito mais justo que estes à luz do qual são devidamente avaliadas as condições duríssimas em que as classes baixas são obrigadas a lutar pelo direito à habitação Da discussão precedente concluise que para além das razões diretamente econômicas o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamento ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação de indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social Esta situação poderia ter sido de algum modo neutralizada se entretanto se tivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos informais e não oficiais capazes de articular e exercer uma legalidade e uma jurisdição alternativas para vigorar dentro da comunidade Sucede no entanto que na fase Pasárgada a limitação óbvia da minha pesquisa consiste em apresentar o ponto de vista da comunidade em relação à polícia sem o comparar com o ponto de vista da polícia em relação à comunidade Essa limitação foi contudo conscientemente assumida e aceita com base na ponderação relativa das limitações decorrentes das estratégias alternativas de pesquisa NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 11 da história de Pasárgada que estamos a analisar tais mecanismos não surgiram e nem surpreende que assim tenha sido A existência de tais mecanismos pressupõe um índice bastante elevado de organização comunitária que obviamente não existia ao tempo Mesmo hoje numa altura em que Pasárgada é já uma velha e estável comunidade a sua organização é ainda baseada numa pluralidade de redes de ação social frouxamente estruturadas É de suspeitar que quando a comunidade era muito mais jovem e ainda em processo de formação a sua organização social fosse ainda mais precária e totalmente desprovida de qualquer pólo centralizador A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social e a ausência de mecanismos nãooficiais comunitários criaram uma situação que designarei por privatização possessiva do direito É uma situação susceptível de ocorrer por exemplo em sociedades muito jovens constituídas à margem de estatutos organizativos definidos como é o caso da sociedade de fronteira ou em sociedades em fase de ruptura devido a revolução guerra etc e de desestruturação e reestruturação profundas Esta situação caracterizase pela apropriação individual da criação e aplicação das normas que regem potencialmente a conduta social Cada unidade social constituise em centro de produção de juridicidade com uma vocação universalizante circunscrita à esfera dos interesses econômicos ou outros dessa mesma unidade Na medida em que a realização social de tais interesses se processa harmoniosamente isto é sem ocorrência de conflitos entre os vários centros individuais de juridicidade a relação entre estes é de extrema autonomia e tolerância recíprocas No momento porém em que os conflitos surgem o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou normas jurídicas isoladas é antes entre duas ordens jurídicas duas pretensões globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias mutuamente exclusivas de universalização jurídica Nestas condições o conflito atinge rapidamente uma intensidade extrema pois que tende a generalizarse a todas as relações sociais entre as partes conflitantes inclusivamente àquelas não envolvidas inicialmente no conflito O conflito é entre dois poderes soberanos entre os quais nenhum poder mediador pode interceder É um conflito global e insolúvel NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 12 Criase assim uma situação de suspensão jurídica ou melhor de ajuridicidade cuja superação tende a ser determinada pela violência A privatização possessiva do direito constituise por uma dialética entre a tolerância extrema e a violência próxima É esta dialética que se detecta em Pasárgada na fase da sua história que estivemos a analisar Texto preparado pelo Autor com base em sua tese de doutoramento apresentada à Universidade de Yale em 1973 sob o título Law Against Law Legal Reasoning in Pasar gada Law

Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora

Recomendado para você

Slide Roteiro

443

Slide Roteiro

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Guia Completo para Fichamento Academico IED2 - UnB

2

Guia Completo para Fichamento Academico IED2 - UnB

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Estudos sobre Justiça Comunitária na América Latina - Análise e Reflexões

230

Estudos sobre Justiça Comunitária na América Latina - Análise e Reflexões

Introdução ao Estudo do Direito

UNB

Direito e Moral- Sistemas Normativos e sua Relação- Aula 3

113

Direito e Moral- Sistemas Normativos e sua Relação- Aula 3

Introdução ao Estudo do Direito

UNIPE

Resenha Critica - Quarto de Despejo e Os Advogados Contra a Ditadura

10

Resenha Critica - Quarto de Despejo e Os Advogados Contra a Ditadura

Introdução ao Estudo do Direito

ESDHC

Recuperacao Extrajudicial - Conceito, Requisitos e Aplicacao

5

Recuperacao Extrajudicial - Conceito, Requisitos e Aplicacao

Introdução ao Estudo do Direito

UNIHORIZONTES

Seminário

1

Seminário

Introdução ao Estudo do Direito

UESC

Tópicos das Aulas de Direito: Unidades 1 a 4

30

Tópicos das Aulas de Direito: Unidades 1 a 4

Introdução ao Estudo do Direito

UNIVALI

O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito

119

O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito

Introdução ao Estudo do Direito

FACIC

Povos Antigos - Sociedade, Direito e Caracteristicas Essenciais para Estudo

3

Povos Antigos - Sociedade, Direito e Caracteristicas Essenciais para Estudo

Introdução ao Estudo do Direito

UMG

Texto de pré-visualização

Notas sobre a História JurídicoSocial de Pasárgada Boaventura de Sousa Santos I Introdução Este texto faz parte de um estudo sociológico sobre as estruturas jurídicas intemas de uma favela do Rio de Janeiro a que dou o nome fictício de Pasárgada1 Este estudo tem por objetivo analisar em profundidade uma situação de pluralismo jurídico com vista à elaboração de uma teoria sobre as relações entre Estado e direito nas sociedades capitalistas Existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram oficialmente ou não mais de uma ordem jurídica Esta pluralidade normativa pode ter uma fundamentação econômica rácica profissional ou outra pode corresponder a um período de ruptura social como por exemplo um período de transformação revolucionária ou pode ainda resultar como no caso de Pasárgada da conformação específica do conflito de classes numa área determinada da reprodução social neste caso a habitação 1 Este estudo cuja pesquisa de campo foi realizada no verão de 1970 constituiu uma tese de doutoramento apresentada na Universidade de Yale U S A em 1973 e intitulada Law Against Law Legal Reasoning in Pasargada Law Foi publicado pelo Centro Inter cultural de Documentacion de Cuernavaca México em 1974 Uma versão bastante reduzida e revista foi publicada sob o título The Law o the Oppressed The Construction and Reproduction o Legality in Pasargada na Law and Society Review vol 12 1974 pp 5 126 Encontrase em preparação a versão portuguesa integral NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 2 A favela é um espaço territorial cuja relativa autonomia decorre entre outros fatores da ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquanto tal com o aparelho jurídicopolítico do Estado brasileiro No caso específico de Pasárgada pode detectarse a vigência nãooficial e precária de um direito interno e informal gerido entre outros pela associação de moradores e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrentes da luta pela habitação Este direito nãooficial o direito de Pasárgada como lhe poderei chamar vigora em paralelo ou em conflito com o direito oficial brasileiro e é desta duplicidade jurídica que se alimenta estruturalmente a ordem jurídica de Pasárgada Entre os dois direitos estabelece se uma relação de pluralismo jurídico extremamente complexa que só uma análise muito minuciosa pode revelar Muito em geral pode dizerse que não se trata de uma relação igualitária já que o direito de Pasárgada é sempre e de múltiplas formas um direito dependente em relação ao direito oficial brasileiro Recorrendo a uma categoria da economia política pode dizerse que se trata de uma troca desigual de juridicidade que reflete e reproduz a nível sóciojurídico as relações de desigualdade entre as classes cujos interesses se espelham num e noutro direito A análise da ordem jurídica de Pasárgada circunscrevese no que interessa para este estudo aos recursos internos que são mobilizados para prevenir e resolver conflitos decorrentes da propriedade ou posse da terra e dos direitos sobre construções casas e barracos que nesta se implantam2 É através da análise dos 2 Em qualquer sociedade moderna ou em vias de modernização a terra tende a ser considerada como um recurso de muito valor tanto em áreas urbanas como em áreas rurais Desta maneira o sistema jurídico tende a desenvolver medidas e estratégias através das quais a segurança e a estabilidade das relações sociais que envolvem a terra estejam garantidas Como diz W S Holdsworth as regras que regem a maneira pela qual a terra pode ser possuída usada ou alienada devem ser sempre de muita importância para o Estado A estabilidade do Estado e o bemestar dos seus cidadãos em todas as épocas dependem consideravelmente do direito de propriedade sobre as terras An Historical Introduction to the Land Law Oxford 1927 p 3 Não admira pois que em Pasárgada se tenham desenvolvido mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a garantir o mínimo de segurança e de estabilidade das relações sociais NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 3 tipos de conflitos e dos seus modos de resolução que melhor se surpreende o direito de Pasárgada em ação isto é enquanto prática social Esta análise feita num certo momento do desenvolvimento de Pasárgada requer para ser completa a inclusão de uma dimensão histórica Mais concretamente tratase de saber como se constituíram e desenvolveram a partir da formação da favela as normas e as formas jurídicas e os órgãos de decisão jurídica que hoje se centram à volta da associação de moradores e de outros pólos de organização comunitária autônoma que continuam a subsistir ainda que de modo cada vez mais precário anos depois do apogeu do desenvolvimento comunitário no início da década de 60 O texto que se segue circunscrevese à análise da primeira parte desta evolução e mesmo assim de modo muito lacunoso As dificuldades da investigação histórica no domínio sóciojurídico são inúmeras sobretudo quando o objetivo é captar a gênese das formas e estruturas jurídicas As dificuldades são ainda maiores quando como no caso presente é quase total a carência de documentação escrita Para as obviar recorri a entrevistas com os moradores mais antigos de Pasárgada e sobretudo com aqueles que ali viveram desde o início da comunidade É sabido que este método sociológico tem muitas limitações e que o rigor do conhecimento através dele obtido é sempre muito problemático E isto é tanto mais assim quando se trata de pesquisar questões jurídicas porque consoante a perspectiva analítica usada pelo entrevistador tais questões ou se referem a fatos que não ultrapassam os umbrais de um quotidiano por vezes longÍnqüo ou envolvem mitos e tabus à volta dos quais o conhecimento e o desconhecimento social se organizam estratégica e caprichosamente Em qualquer dos casos as respostas dos entrevistados tendem a padecer de vícios tais como lacunas e distorções de percepção e memória prejuízos éticos ou outros sobrevalorização do presente em relação ao passado e viceversa indução das respostas ou seja adequação destas ao estereótipo do entrevistador centradas na terra e na habitação uma vez que pelas razões apresentadas no texto tal estabilidade e segurança não podiam ser garantidas pelo direito oficial brasileiro NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 4 e das suas preferências Em condições como estas a tentação é grande para compensar as deficiências de informação com sobreinterpretação II Os Maus Velhos Tempos Quando os primeiros habitantes se fixaram em Pasárgada em meados da década de 30 existia muita terra disponível Cada morador demarcava o seu pedaço de terra e construía o seu barraco deixando em geral espaços abertos para o cultivo de verduras plantio de árvores ou para criação de animais domésticos Segundo os mais antigos moradores de Pasárgada naquela época quase não existiam conflitos entre os habitantes envolvendo direitos sobre aterra e ashabitações Não havia necessidade de brigas dizem eles Os barracos eram de construção muito primitiva pouco valor tendo Podiam ser construídos ou demolidos em questão de horas Por outro lado uma vez que existia muita terra desocupada qualquer conflito relacionado com a posse da terra limites preferências e servidões poderia ser evitado facilmente com a simples mudança de uma das partes do conflito para outro lugar no morro Mas o povoado cresceu muito rapidamente e a qualidade das construções melhorou consideravelmente de tal modo que na segunda metade da década de 40 eram já freqüentes os conflitos envolvendo a propriedade e aposse da terra Quando se pergunta aos moradores mais antigos a maneira como naquela época tais conflitos eram resolvidos eles respondem invariavelmente Violência a ei do mais forte Quando a fim de evitar em alguma medida distorções de percepção e de memória se procura obter informações com base num paralelo entre o modo como os conflitos eram tratados naquele tempo e como são tratados agora é freqüente obterse uma resposta deste teor Oh Agora é diferente Agora as questões são tratadas em paz e tentase decidir de acordo com a justiça Naquela época eram resolvidas com facas e revólveres Este tipo de resposta envolve NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 5 ainda uma certa distorção porque não é verdade que hoje em dia todos os conflitos sejam pacificamente resolvidos muito embora não seja menos verdade em Pasárgada do que o é na sociedade brasileira em geral A luz de informações obtidas e tendo em conta a possibilidade de distorção é talvez seguro concluir que a probabilidade de relações sociais pacíficas envolvendo a propriedade e a posse da terra e o tratamento também pacífico dos conflitos decorrentes de tais relações é hoje muito mais elevada do que há 20 ou 30 anos O aumento da violência numa primeira fase da história de Pasárgada resulta obviamente de uma pluralidade de fatores Entre eles apenas se referem dois que têm mais pertinência para os objetivos do presente estudo por um lado a indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos de ordenação e controle social próprios do sistema jurídico brasileiro e por outro lado a inexistência de mecanismos alternativos de origem comunitária capazes de exercer ainda que de modo diferente e apenas nos limites da comunidade funções semelhantes às dos mecanismos oficiais No que respeita ao primeiro fator a indisponibilidade dizse estrutural sempre que as suas razões transcendem o domínio motivacional e portanto o nível dos eventos da interação social independentemente do grau de universalização desta Entre os mecanismos oficiais de ordenação e controle social serão referidos dois a polícia e os tribunais A polícia não tinha delegacias em Pasárgada e mesmo se as tivesse é improvável que fossem solicitadas pela população para intervir em casos de conflito e as delegacias policiais nas áreas urbanizadas próximas também não eram chamadas a agir Quando se pergunta aos moradores mais antigos as razões por que eles não usavam os serviços da polícia eles primeiro riem pela surpresa que lhes causa tal pergunta tão óbvio é a resposta Depois fazem um esforço para expressar o óbvio Desde os primórdios da ocupação do morro a comunidade entendeu que estava numa contínua luta com a polícia Antes de os terrenos de Pasárgada passarem para o domínio público várias foram as tentativas empreendidas pela polícia para expulsar em massa os moradores E mesmo depois disso a sobrevivência da comunidade nunca esteve garantida uma vez que se conheciam casos de remoção de favelas construídas NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 6 em terrenos do Estado Chamar a polícia aumentaria a visibilidade de Pasárgada como comunidade ilegal e poderia eventualmente criar pretextos para remoção Outros fatores contribuíam ainda para que a polícia fosse vista como um inimigo pelos moradores de Pasárgada Criminosos suspeitos vagabundos e em geral maus elementos eram considerados pela polícia como formando uma considerável proporção da população de Pasárgada Por conseguinte pelo que contam as testemunhas desse tempo que não é neste aspecto muito diferente do tempo presente a polícia fazia incursões repressivas isto é dava batidas na comunidade com muita freqüência Estas batidas eram tão ineficientes do ponto de vista de objetivos policiais quanto eram repugnantes para os moradores que delas eram vítimas Aqueles que de fato eram maus elementos quase nunca eram apanhados e as pessoas inocentes eram levadas com freqüência para prisões de onde não eram libertadas a não ser através de suborno Neste contexto e mesmo colocando de lado perigos envolvidos não existia qualquer propósito útil em chamar a polícia em caso de conflito Se a vítima ou em geral a pessoa prejudicada chamasse a polícia sabia que esta provavelmente não se disporia a vir a menos que por outros motivos tivesse nisso interesse e se viesse o culpado e todas as relevantes testemunhas já teriam então desaparecido ou se não quando interrogadas fariam o possível para não fornecer quaisquer informações úteis Por outro lado o morador que chamasse a polícia seria considerado traidor ou informante cagüete pelos outros moradores e isso poderia fazer perigar a sua permanência na comunidade Não existe razão para duvidar da exatidão deste relato tanto mais que ele se refere a comportamentos e atitudes que continuam ainda hoje a constituir em grande parte o quotidiano das relações entre os moradores de Pasárgada e a polícia Apesar de ter agora delegacia em Pasárgada a polícia continua a desempenhar um papel mínimo na prevenção e na resolução de conflitos Não obstante os seus esforços no sentido de uma aceitação mais positiva por parte da comunidade continua a ser vista por esta como uma força hostil investida de funções estritamente repressivas NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 7 Para além da polícia ou em complemento da ação desta os tribunais constituem o outro mecanismo oficial de ordenação e controle social a que os habitantes de Pasárgada poderiam em teoria recorrer para prevenir ou resolver conflitos internos de natureza jurídica Tal recurso estava no entanto igualmente vedado e várias são as razões apontadas pelos moradores mais velhos para tal fato Em primeiro lugar juízes e advogados eram vistos como demasiado distanciados das classes baixas para poder entender as necessidades e as aspirações dos pobres Em segundo lugar os serviços profissionais dos advogados eram muito caros Segundo a descrição de um dos moradores nós estávamos brigando por barracos e pedaços de terra que do ponto de vista dos advogados não valiam nada Além disso quando você contrata um advogado você é duma classe mais baixa do que a dele e ele fica muito a fim de fazer acordos com outros advogados e com o juiz que podem prejudicar os seus interesses Então ele vem a você com aquele jeito de falar de advogado e tenta convencer que foi o melhor que ele podia fazer por você e que afinal de contas o acordo não é tão mau assim E você não pode fazer nada Esta observação embora referida a atitudes para com os advogados na época inicial de Pasárgada baseiase provavelmente em experiência e percepções adquiridas muito tempo depois Em qualquer caso pressupõe um conhecimento bastante íntimo da ação dos advogados que duvido fosse comum em Pasárgada há 20 ou 30 anos atrás Comum era e continua a ser a idéia de que os serviços dos advogados são muito caros e por isso longe do alcance das posses escassas das classes baixas uma idéia aliás profundamente enraizada na consciência jurídica popular e portanto correspondente a uma experiência histórica longa3 Uma terceira razão invocada pelos moradores de Pasárgada para não recorrerem aos tribunais reside no fato de saberem desde o início que a comunidade era ilegal à luz do direito oficial quer 3 Sobre as razões econômicas e extraeconômicas do uso diferenciado das instituições jurídicas segundo as classes sociais razões essas que conferem o caráter de justiça de classe à justiça produzida pelo aparelho jurídico do Estado nas sociedades capitalistas vide J Carlin e J Howard Legal Representation and Class Justice in V Aubert Sociology of Law Lon dres 1969 1975 pp 33250 NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 8 quanto à ocupação da terra quer quanto aos barracos que nela se iam construindo Na expressão perspicaz de um deles nós éramos e somos ilegais Recorrer aos tribunais para resolver conflitos sobre terras e habitações não só era inútil como perigoso Era inútil porque os tribunais têm que seguir o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito Era perigoso porque trazer a situação ilegal da comunidade à atenção dos serviços do Estado poderia leválos a nos jogar na cadeia Esta série de observações requer uma análise detalhada porque esclarece alguns aspectos básicos da gênese e estrutura da ordem jurídica interna de Pasárgada A expressão nós éramos e somos ilegais que no seu contexto semântico liga o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada pode ser interpretada como indicação de que nas atitudes destes para com o sistema jurídico nacional tudo se passa como se a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações sociais mesmo sobre aquelas que nada têm a ver com a terra ou com a habitação Tal seria o caso se por exemplo um conflito jurídico de índole estritamente pessoal não fosse levado à atenção dos operadores do sistema jurídico nacional pela suspeita das partes de que a ilegalidade do seu status residencial afetasse desfavoravelmente o modo como o conflito seria processado pelos tribunais Não tenho provas cabais do funcionamento deste mecanismo de feedback e julgo que seria muito difícil senão impossível obtêlas Na verdade apesar de a inacessibilidade dos tribunais em relação aos conflitos envolvendo terras ocupadas por favelas assumir aspectos peculiares à luz da inexistência ou nulidade legal dos respectivos títulos de propriedade e de posse é necessário reconhecer que tal inacessibilidade é geral em relação aos problemas jurídicos das classes baixas residindo ou não em favelas e constitui por isso uma das manifestações mais evidentes da natureza classista do aparelho jurídico do Estado numa sociedade capitalista4 4 A prova plena da existência do mecanismo de feedback exigiria em obediência aos métodos de verificação sociológicos estabelecidos que se tomassem dois grupos representativos das classes baixas brasileiras homogêneos na totalidade das características consideradas importantes e apenas diferindo quanto ao status residencial tendo um status residencial legal e o outro ilegal Seria então registrado ao longo de uma seqiiência temporal consi derada razoável e por modo NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 9 No entanto em muitas entrevistas com os moradores de Pasárgada obtive declarações nas quais a idéia do mecanismo de feedback é subentendida Eis uma declaração típica parece que somente porque a terra não é nossa o Estado não tem obrigação de nos fornecer água e luz elétrica e a polícia pode invadir nossas casas quando bem entende Existem mesmo patrões que recusam candidatos a emprego quando estes dão endereço numa favela O significado implícito deste extrato de entrevista é que de acordo com os princípios de justiça a ilegalidade da posse da terra nas favelas não se deveria repercutir sobre a provisão de serviços públicos pelo Estado ou sobre o comportamento da polícia e dos patrões No contexto em que esta declaração foi feita5 significa também que o mecanismo de feedback embora existindo de fato não é sequer legal face ao sistema jurídico oficial Na realidade o feedback é legal no que respeita à provisão de serviços públicos referidos De acordo com as leis gerais e com as disposições do código urbano o fornecimento por parte do Estado de serviços públicos tais como água esgotos luz elétrica pavimentação é limitado a áreas cuja utilização tenha sido aprovada nos termos da legislação em vigor6 No que respeita ao comportamento da polícia7 foi possível depois de algumas entrevistas com quantificado o recurso aos tribunais em caso de conflitos devidamente tipificados Verseia então se se verificavam diferenças significativas que pudessem ser atribuíveis à variável independente adotada a qualidade jurídica oficial do status residencial Mas mesmo recorrendo a todo este arsenal metodológico seria sempre impossível controlar completamente todas as restantes categorias potenciais variáveis independentes Haveria assim sempre o risco de estas intervirem no processo causal ou simplesmente correlacional oferecendo hipóteses alternativas de explicação 5 Nós estávamos a discutir situações em que o direito constante dos códigos e demais legislações a Iaw in books da filosofia anglosaxônia de propensão sociológica não se coaduna com o direito efetivamente aplicado e praticado a Iaw in action 6 Isso não significa que o Estado tenha suprido todas as áreas urbanizadas com os serviços públicos referidos Nem tão pouco significa que tais serviços tenham sido recusados em absoluto às favelas Por exemplo ao tempo em que foi realizada a pesquisa de campo verão de 1970 o então Estado da Guanabara iniciava a instalação da rede de água em Pasárgada Em verdade os moradores da favela estão habituados a ver iniciado o forneci mento de serviços públicos em períodos préeleitorais como era o caso em Pasárgada para ser interrompido ou abandonado logo após as eleições 7 Em face das tensões entre a comunidade e a polícia nunca contactei os policiais com base operacional em Pasárgada Qualquer contato com a polícia colocaria em perigo a continuidade da minha pesquisa Assim e na medida em que a polícia faz parte das vias judiciais Iawways de NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 10 policiais trabalhando noutras favelas confirmar a disparidade entre o direito nos livros e o direito na prática Indiferente ao disposto na lei a polícia tende a agir segundo o princípio de que uma vez que os favelados estão ilegalmente domiciliados não têm razões para reclamar quando a polícia invade suas casas no cumprimento do dever A análise da expressão nós éramos e somos ilegais parece indicar que a idéia de uma capitis diminutio geral de uma ilegalidade quase existencial e a prática social em que ela se espelhou e reforçou agiram como fatores bloqueantes do acesso aos tribunais O estatuto e portanto os limites desta declaração de ilegalidade encontrase precisado na expressão também já mencionada de que os tribunais têm que observar o código e pelo código nós não tínhamos nenhum direito Juntamente com a anterior esta citação ilustra bem a ambigüidade profunda da consciência popular do direito nas sociedades caracterizadas por grandes diferenças de classes Por um lado a apreciação realista de que o direito do Estado é o que está nos códigos e de que nem estes nem os juízes que têm por obrigação aplicálo se preocupam com as exigências de justiça social Por outro lado o reconhecimento implícito da existência de um outro direito para além dos códigos e muito mais justo que estes à luz do qual são devidamente avaliadas as condições duríssimas em que as classes baixas são obrigadas a lutar pelo direito à habitação Da discussão precedente concluise que para além das razões diretamente econômicas o estatuto de ilegalidade da comunidade favelada e o bloqueamento ideológico que lhe foi concomitante criaram uma situação de indisponibilidade ou inacessibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social Esta situação poderia ter sido de algum modo neutralizada se entretanto se tivessem desenvolvido na comunidade mecanismos internos informais e não oficiais capazes de articular e exercer uma legalidade e uma jurisdição alternativas para vigorar dentro da comunidade Sucede no entanto que na fase Pasárgada a limitação óbvia da minha pesquisa consiste em apresentar o ponto de vista da comunidade em relação à polícia sem o comparar com o ponto de vista da polícia em relação à comunidade Essa limitação foi contudo conscientemente assumida e aceita com base na ponderação relativa das limitações decorrentes das estratégias alternativas de pesquisa NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 11 da história de Pasárgada que estamos a analisar tais mecanismos não surgiram e nem surpreende que assim tenha sido A existência de tais mecanismos pressupõe um índice bastante elevado de organização comunitária que obviamente não existia ao tempo Mesmo hoje numa altura em que Pasárgada é já uma velha e estável comunidade a sua organização é ainda baseada numa pluralidade de redes de ação social frouxamente estruturadas É de suspeitar que quando a comunidade era muito mais jovem e ainda em processo de formação a sua organização social fosse ainda mais precária e totalmente desprovida de qualquer pólo centralizador A indisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenação e controle social e a ausência de mecanismos nãooficiais comunitários criaram uma situação que designarei por privatização possessiva do direito É uma situação susceptível de ocorrer por exemplo em sociedades muito jovens constituídas à margem de estatutos organizativos definidos como é o caso da sociedade de fronteira ou em sociedades em fase de ruptura devido a revolução guerra etc e de desestruturação e reestruturação profundas Esta situação caracterizase pela apropriação individual da criação e aplicação das normas que regem potencialmente a conduta social Cada unidade social constituise em centro de produção de juridicidade com uma vocação universalizante circunscrita à esfera dos interesses econômicos ou outros dessa mesma unidade Na medida em que a realização social de tais interesses se processa harmoniosamente isto é sem ocorrência de conflitos entre os vários centros individuais de juridicidade a relação entre estes é de extrema autonomia e tolerância recíprocas No momento porém em que os conflitos surgem o choque não é meramente entre reivindicações fáticas ou normas jurídicas isoladas é antes entre duas ordens jurídicas duas pretensões globais de juridicidade ou ainda entre duas vocações contraditórias mutuamente exclusivas de universalização jurídica Nestas condições o conflito atinge rapidamente uma intensidade extrema pois que tende a generalizarse a todas as relações sociais entre as partes conflitantes inclusivamente àquelas não envolvidas inicialmente no conflito O conflito é entre dois poderes soberanos entre os quais nenhum poder mediador pode interceder É um conflito global e insolúvel NOTAS SOBRE A HISTÓRIA JURIDICOSOCIAL DE PASÁRGADA 12 Criase assim uma situação de suspensão jurídica ou melhor de ajuridicidade cuja superação tende a ser determinada pela violência A privatização possessiva do direito constituise por uma dialética entre a tolerância extrema e a violência próxima É esta dialética que se detecta em Pasárgada na fase da sua história que estivemos a analisar Texto preparado pelo Autor com base em sua tese de doutoramento apresentada à Universidade de Yale em 1973 sob o título Law Against Law Legal Reasoning in Pasar gada Law

Sua Nova Sala de Aula

Sua Nova Sala de Aula

Empresa

Central de ajuda Contato Blog

Legal

Termos de uso Política de privacidade Política de cookies Código de honra

Baixe o app

4,8
(35.000 avaliações)
© 2025 Meu Guru®