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Esta edição em línguaportuguesa de Direito e Justiça vem preencher uma grande lacuna em nosso País na linha da interpretação realista do direito em sua vertente de caráter empirista No prefácio à edição inglesa de Direito e Justiça Ross afirma que a idéia principal do livro é desenvolver os princípios empiristas no campo jurídico Desta idéia surge a exigência metodológica de se seguir no estudo do direito aos tradicionais padrões de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empírica Alaôr Caffé Alves Direito e justiça ISBN 8572832629 00000044840 Alf Ross Direito e Justiça Direito e Justiça Belinda Alf Ross PHD Uppsala JURD Copenhague JURD Oslo Professor de Direito na Universidade de Copenhague Tradução e notas de Edson Bini Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP Prefácio do Prof A laô r C a ffé A lves Professor Associado da Faculdade de Direito da USP Revisão Técnica do Prof Alysson Leandro M ascaro Faculdade de Direito da USP Direito e ED1PR0 2000 Direito e Justiça Artktosl la Edição 3000 Lot Vieira Coordenador EdiôrjtVinicius Lot Vieira Editor Alexandre Rudyard Benevides Projeto Gráfico e Capa Maria do Carmo Fortuna Tradução e Notas Edson Bini Revisão Técnica Prof Alysson Leandro Mascaro Revisão Edson Bini e Ricardo Virando N de Catálogo 1268 D a d o s d e C a t a lo g a ç ã o n a F o n te C IP I n te rn a c io n a l C â m a ra B ra s ile ira d o L iv ro S P B ra s il Ross Alf Direito e Justiça 1 Alf Ross tradução Edson Bini revisão técnica Alysson Leandro Mascaro Bauru SP EDIPRO 2000 Título original On law and justice Bibliografia ISBN 8572832629 1 Direito Filosofia 2 Justiça I Título 994402 CDU34011 ín d ic e s p a ra c a t á lo g o s is te m á tic o 1 Direito e justiça Filosofia 34011 EDIPRO E d iç õ e s P ro f is s io n a is L td a Rua Conde de São Joaquim 332 Liberdade CEP 01320010 São Paulo SP Fone 011 31074788 FAX 011 31070061 Email ediprouolcombr Atendemos pelo Reembolso Postal Apresentação à Edição Brasileira 9 Nota do Tradutor 15 Nota à Tradução em Língua Portuguesa 17 Prefácio à Edição Inglesa19 Prefácio á Edição Espanhola 21 Capítulo I Problemas da Filosofia do Direito 1 Terminologia e Tradição 23 11 0 Problema do Conceito ou Natureza do Direito 24 12 0 Problema do Propósito ou Idéia do Direito 25 130 Problema da Interação do Direito e a Sociedade 26 2 A Natureza do Direito 28 3 Análise Preliminar do Conceito de Direito Vigente 34 4 Os Ramos do Estudo do Direito 42 41 Ciência do Direito 45 42 Sociologia do Direito 46 5 Em lugar de Filosofia do Direito Problemas Jusfilosóficos 48 6 Discussão 51 Capítulo II 0 Conceito de Direito Vigente 7 0 Conteúdo do Ordenamento Jurídico 53 8 A Vigência do Ordenamento Jurídico 59 9 Verificação de Proposições Jurídicas Concernentes a Normas de Conduta 63 10 Verificação de Proposições Jurídicas Concernentes a Normas de Competência 76 11 Direito Força Validade 77 12 Direito Moral e outros Fenômenos Normativos 84 13 Discussão Idealismo e Realismo na Teoria Jurídica 91 14 Discussão Realismo Psicológico Realismo Comportamentista e sua Síntese 97 6 Alf Ross Capítulo III As Fontes do Direito 15 Doutrina e Teoria das Fontes do Direito 101 16 Legislação 104 17 Precedentes Jurisprudência 111 18 Costume 118 19 A Tradição de Cultura Razão 124 20 A Relação das Diversas Fontes com o Direito Vigente 128 21 A Doutrina das Fontes do Direito 130 22 Discussão 132 Capítulo IV O Método Jurídico Interpretação 23 Doutrina e Teoria do Método 135 24 O Fundamento Semântico 139 25 Problemas de Interpretação Sintáticos 151 26 Problemas de Interpretação Lógicos 157 261 Inconsistência 158 262 Redundância 162 263 Pressuposições 162 27 Problemas de Interpretação Semânticos 164 28 Interpretação e Administração da Justiça 165 29 Os Fatores Pragmáticos na Interpretação 174 30 Os Fatores Pragmáticos e a Técnica de Argumentação 181 31 Discussão185 Capítulo V As Modalidades Jurídicas 32 Terminologia da Linguagem Jurídica 189 33 Uma Terminologia Melhorada 192 331 Dever e Faculdade 193 332 Liberdade e NãoFaculdade 195 333 Sujeição e Potestade 198 334 Imunidade e Impotência 200 34 Discussão 200 Capítulo VI O Conceito de Direito Subjetivo 35 O Conceito de Direito Subjetivo como uma Ferramenta Técnica de Apresen tação 203 36 Aplicação do Conceito de Direito Subjetivo a Situações Típicas 209 37 Aplicação do Conceito de Direito Subjetivo a Situações Atípicas 212 38 A Estrutura de um Direito Subjetivo 217 39 Discussão 221 Direito e Justiça 7 Capítulo VII Direitosln Rem e Direitos In Personam 40 Doutrina e Problemas 225 41 Direito de Disposição e Direito de Pretensão ou Faculdade 229 42 Proteção In Rem e Proteção In Personam 233 43 A Conexão entre Conteúdo e Proteção 234 Capítulo VIII As Divisões Fundamentais do Direito 44 Direito Público e Direito Privado 239 45 O Direito Substantivo e o Direito Adjetivo 245 46 Discussão 249 Capítulo IX Os Fatos Operativos 47 Terminologia e Distinções 253 48 A Disposição Privada 256 49 Promessa Encargo e Autorização 262 Capítulo X Algumas Características da História do Direito Natural 50 Crenças Populares Gregas Homero e Hesíodo 267 51 Os Sofistas 273 52 Aristóteles 278 53 Os Estóicos e o Direito Romano 281 54 O Direito Natural dos Escolásticos Tomás de Aquino 283 55 Racionalismo 286 56 Direito Natural D i s f a rç a d o 291 57 O Renascimento do Direito Natural 296 Capítulo XI Análise e Crítica da Filosofia do Direito Natural 58 Pontos de Vista Epistem ológicos301 59 Pontos de Vista Psicológicos 306 60 Pontos de Vista Políticos 307 61 Pontos de Vista da Teoria Jurídica 309 Capítulo XII A Idéia de Justiça i 62 A Justiça e o Direito Natural 313 63 Análise da Idéia de Justiça 314 64 Alguns Exemplos 321 65 A Idéia de Justiça e o Direito Positivo 326 66 A Exigência de Igualdade no Direito Vigente 331 8 Alf Ross Capítulo XIII O UtiUtarismo e a Quimera do BemEstar Social 67 A Relação entre o Utilítarismo e o Direito Natural 335 68 O Princípio da Maximização e suas Discordâncias com nossa Escolha Efetiva 338 69 A Quimera do BemEstar Social 341 Capítuio XIV Ciência e Política 70 Conhecimento e Ação 343 71 A Interação Mútua entre Crença e Atitude 347 72 Desacordos Práticos Argumento e Persuasão 352 73 Ciência e Produção Política 362 74 Discussão 373 Capítulo XV O Domínio e a Tarefa da Política Jurídica 75 Delimitação entre a Política Jurídica e as outras Políticas 375 76 Política Jurídica de Lege Ferenda e de Sententia Ferenda 380 77 O Fundamento Teórico da Política Jurídica 380 78 A Tarefa da Política Jurídica Enunciação das Premissas 382 79 A Tarefa da Política Jurídica Formulação de Conclusões 385 Capitulo XVI Possibilidade da Política Jurídica Entre o Destino e a Utopia 80 Os Profetas do Destino Negam a Possibilidade da Política Jurídica 389 81 A Escola Histórica 394 82 O Historicismo Econômico de Marx 397 83 Limitações da Política Jurídica e Estudo das Tendências 402 Capítulo XVII O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica 84 Atitudes Baseadas em Necessidades Interesses 409 841 Interesses Individuais e Coletivos 411 842 Interesses Privados e Públicos 415 85 Atitudes Morais 416 86 O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica Três Postulados Fun damentais 421 87 O Papel da Consciência Jurídica quando Faltam Considerações Práticas 426 Bibliografia 431 Apresentação à Edição Brasileira Aí tem o leitor em mãos uma obra que já granjeou grande prestígio no campo da jusfilosofia mundial Finalmente foi suprida uma carência sentida por todos nós da comunidade da língua portuguesa com a tradução desta principal obra do dinamar quês Alf Ross 18991979 para o nosso vernáculo Junto com os mais destacados trabalhos dos juspositivistas Kelsen Hart e Bobbio já traduzidos para o português esta obra de Alf Ross completa o rol dos grandes nomes do positivismo jurídico que merecem ser estudados e analisados pela nossa comunidade científica do direito Entre os grandes jusfilósofos escandinavos Alf Ross da chamada escola de Copen hague foi um dos mais expressivos representantes do realismo escandinavo den tre os quais avultam Hãgerstrõm Lundstedt Olivecrona escola de Uppsala Jorgensen Naess Ofstad Brusiin etc Esse realismo é muito variado quanto às linhas de conteúdo mas podese divisar uma identidade básica no que respeita às preocupações antimetafísicas de seus próceres Alf Ross recebe significativa influ ência do sueco Axel Hãgerstrõm 18681939 quem lhe fez ver o vazio das especu lações metafísicas no campo do direito e da moral bem como de Hans Kelsen 1881 1973 a quem agradece por têlo iniciado na filosofia do direito De Hãgerstrõm fundador da escola de Uppsala Ross herdou um conceito mate rialista da realidade e as tendências de crítica filosófica da linguagem na esteira do movimento neoempirista que antes da segunda Grande Guerra grassava na Europa por influência do Círculo de Viena e da escola de Cambridge No âmbito da filosofia prática em paralelo com as colocações sugeridas por Carnap Ayer e Stevenson e na mesma senda aberta por Hãgerstrõm o nosso autor sustentará que os valores são subjetivos expressões de sentimentos e desejos e não vinculados a proprieda des reais dos objetos Por isso não cabe predicarlhes a verdade ou a falsidade Ainda por influência do fundador da escola de Uppsala Ross critica a noção kelseniana de validez jurídica e defenderá uma reconstrução realista desse e de outros conceitos do direito objetivando um conhecimento empírico dos mesmos 10 Alf Ross De Kelsen Ross apesar das críticas à teoria pura do direito assimila importantes elementos de sua teoria como por exemplo a distinção entre normas e proposições jurídicas da ciência jurídica a coerção física como nota de identificação do direito a negação de conhecimento objetivo sobre as questões morais a importância das nor mas para caracterizar o direito e os juizes como destinatários das normas jurídicas Da corrente do neopositivismo ou neoempirismo lógico Ross aceita os critérios de abordagem empírica do conhecimento e propugna explicitamente pela adoção do princípio de verificação como base medular de sua construção científica do direito Segundo essa posição o nosso autor defende que a verdade e a falsidade de uma proposição jurídicocientífica dependem de sua verificação e contrastação na expe riência sensível Dessa corrente também acolhe a concepção da filosofia como mé todo de análise lógicolinguística da ciência negando à jusfilosofia pretensões ontologizantes e afirmando o emotivismo ético com forte rejeição às correntes de inspiração metafísica 0 professor dinamarquês segue igualmente as orientações analíticas do segundo Wittgenstein das Investigações Filosóficas florescentes em Oxford a partir dos anos 50 É facilmente notada esta influência em outra obra de Ross Lógica das Normas Directives and Norms de 1968 especialmente do pro fessor de filosofia moral daquela Universidade Richard Mervyn Hare Vêse pelo exposto que Ross é animado por convicções epistemológicas de clara filiação neoempirista consignandoque o verdadeiro caminho científico para a análise e conhecimento do direito deve ser percorrido pela firme compreensão a respeito das classes de proposições válidas cientificamente Com efeito na opinião de Ross as proposições são distinguíveis em empíricas e apriorísticas As proposi ções apriorísticas são verdadeiras tão só em virtude de sua forma e por isso são tautológicas ou analíticas pois nada dizem a respeito do mundo São as proposições das Matemáticas e da Lógica Em razão da forma estas proposições serão falsas se forem contraditórias Isto se obtém sem o apelo à experiência apenas com a força do pensamento por si mesmo segundo sua estrutura lógica De modo diverso ainda seguindo os cânones do neoempirismo lógico as proposições empíricas só possuem valor enquanto possam refletir a realidade dos fatos devendo portanto ser verificadas por meio da experiência Fora dessas duas classes de proposições de âmbito cientí fico restam enunciados carentes de sentido uma vez que não podem ser submeti dos aos princípios da lógica e da verificação empírica Neste último caso temos as proposições metafísicas que seguindo o conselho de Hume merecem ser jogadas na fogueira pois só podem conter enganos e sofismas 0 professor Ross ao perfazer o caminho científico do direito seguirá esse esque ma proposicional de forma incondicional pois somente assim a ciência do direito que mereça ser desse modo considerada isto é como uma verdadeira ciência pode estabelecer com segurança qual é o direito de um determinado país com relação a certos problemas de modo objetivo com base em fatos observáveis e segundo o método de verificação empírica Direito e Justiça 11 Esta primeira edição em língua portuguesa de Direito e Justiça vem preencher uma grande lacuna em nosso País na linha da interpretação realista do direito em sua vertente de caráter empirista No prefácio à edição inglesa de Direito e Justiça Ross afirma que a idéia principal do livro é desenvolver os princípios empiristas no campo jurídico Desta idéia surge a exigência metodológica de se seguir no estudo do direito aos tradicionais padrões de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empírica Esta orientação já estava solerte no pensamento de Ross por ocasião da publicação em 1946 de sua conhecida obra Para uma Ciência Realis ta do Direito Crítica do Dualismo no Direito na qual parte de uma profunda dicotomia entre concepções jurídicas realistas e idealistas Os idealistas segundo Ross propugnam pela concepção de que o direito pertence principalmente ao mundo das idéias onde a idéia de validez é captada imediatamente pela razão desprezando o mundo dos fenômenos sensíveis no tempo e no espaço como algo básico na formação essencial do direito Tais idealistas no pensamento do professor dinamarquês dividemse em duas correntes A dos idealistas axiológicos que entendem a idéia de justiça como elemento constituinte substancial do direito outorgandolhe força obrigatória ou validez bem como um ideal para apreciar e justifi car o direito positivo e a dos idealistas formais cujo paradigma é Kelsen que afasta na compreensão científica do direito toda questão ética ou política poder do direito po sitivo para considerálo vigente no mundo dos fatos Porém a descrição básica do direito não aponta para a ordem dos fenômenos materiais relações sociais poder político ou para a dimensão axiológica valores éticos e sim para algo ideal compreen dido como validez que resulta do encadeamento regressivo de dever ser até a norma fundamental Assim para esta corrente idealista a existência de uma norma jurídica eqüivale à captação imediata de sua validez pela razão conforme uma categoria for mal de pensamento jurídico sem nenhuma exigência de conteúdo Em face dessas posições Ross procura superar a dicotomia entre validade e realidade ao descartar a idéia de uma validez específica e racionalmente subsistente seja como idéia material axiológica justiça seja como categoria formal de dever ser validade Eliminando qualquer apriorismo racionalista ou axiológico o autor consi dera o direito na interpretação de Enrico Pattaro como um conjunto de fatos sociais reduzido a um único mundo o da realidade empírica Segundo Pattaro o direito e sua validez em Ross são estudados e compreendidos em termos de efetividade social No âmbito do realismo o professor italiano distingue um realismo antinormativista e outro normativista localizando neste último o pensamento de Ross Conforme a metodologia de Ross na ciência jurídica devese sustentar que o direito é um fato social cuja existência e descrição somente podem ser equacionadas em termos pu ramente fáticos sensíveis e empíricos sem necessidade de se recorrer a princípios apriorísticos morais racionais ou ideológicos Ao tentar circunscrever o direito Ross faz um grande esforço para subtrairse de qualquer fórmula que possa induzilo ao pensamento ontológico de índole metafísica 12 Alf Ross Descartando o pensamento metafísico o professor dinamarquês combate os inten tos para se descobrir no mundo da realidade uma essência ou natureza específica do direito 0 direito é uma palavra que não designa uma natureza ontológica um direito em si mas é utilizada como instrumento semântico para descrever sistemas ou ordens normativas nacionais desenvolvidas que se apresentam empiricamente à nossa investigação científica Rejeitando as definições ontológicometafísicas e as definições persuasivas ou emotivas Ross considera que a experiência jurídica é indicada por definições que apenas servem para assinalar certos ordenamentos normativos nacionais Como bom empirista não procura realidades essenciais ou substanciais no mundo dos fatos jurídicos busca apenas referências que possam submeterse ao tratamento empíricocientífico do direito Nessa linha o nosso autor diz que as regras de direito têm que se referir a ações definidas e realizadas por pessoas definidas Porém que ações e que pessoas são estas A resposta rossiniana é os juizes são os destinatários das normas e o objeto delas é o exercício da força Nesta ordem verificase aqui uma forte influência da teoria pura de Kelsen 0 direito é uma ordem normativa que estabelece as condições do exercício da força e determina quem deve exercêla Nas palavras de Ross um ordenamento jurídico nacional é o conjunto de regras para o estabelecimento e fun cionamento do aparato de força do Estado Neste sentido são demarcadas as ca racterísticas que distinguem o fenômeno jurídico como ocorrência normativa espe cífica dos demais fenômenos normativos moralidade religião trato social conven ções usos regras políticas etc A ordem jurídica estabelece através da legisla ção não só as normas de conduta pelas quais se prescrevem as condições para aplicação da força física sanções jurídicas como também as normas de competên cia dirigidas a instituir um aparato de autoridades públicas tribunais e órgãos execu tivos com a função de aplicar as normas de conduta objetivando o exercício legiti mado da força Vêse assim que o elemento coercitivo e o elemento institucional perfazem as notas específicas de uma ordem jurídica nacional De grande significação para a teoria jurídica de Ross é também a questão da vigência jurídica Afirmar a vigência de uma norma de direito implica dois elementos um referente à efetividade real da norma estabelecida pela observação externa e o outro referente ao modo como a norma é vivida internamente enquanto motivadora da conduta sentida como socialmente obrigatória Nesse sentido vigência significa que dentro de uma comunidade determinada as normas recebem adesão efetiva porque os julgadores se sentem socialmente obrigados pelas diretivas nelas conti das e atuam segundo as mesmas decidindo por conseqüência As normas jurídicas enquanto vigentes são conteúdos de caráter diretivo ideais e abstratos que funcio nam como esquemas racionais de interpretação ao permitirem compreender os com portamentos jurídicos e dentro de certos limites predizer o curso das decisões dos tribunais Há uma correspondência mútua entre fenômenos jurídicos direito em ação e normas jurídicas esquemas de interpretação 0 direito vigente significa que suas Direito e Justiça 13 normas são efetivamente obedecidas singularmente no âmbito dos tribunais preci samente porque elas são vividas como socialmente obrigatórias pelos destinatários juizes 0 direito em ação fenômenos jurídicos consiste justamente na aplicação das normas pelos tribunais cujo comportamento é entendido como um todo coeren te de significado e motivação na utilização daqueles esquemas de interpretação A vigência das normas jurídicas depende de que seus destinatários juizes ajustem suas condutas àquelas normas e que as experimentem como socialmente obrigató rias Em resumo a vigência jurídica exige um duplo requisito a realidade social refe rente à conduta dos juizes elemento social exercendo legitimamente a força física objeto das normas jurídicas e a convicção dos juizes elemento psicológico de que aquelas normas são socialmente obrigatórias Por essa razão Ross descarta o idealismo jurídico que se funda na distinção do mundo dos fatos da conduta das relações sociais e o mundo da validez racional do direito propondo uma teoria jurídica de caráter realista na medida em que vê no direito um fenômeno social determinado pela aplicação feita pelos tribunais A vigên cia de uma norma jurídica significa que seu conteúdo ideal é ativo na vida jurídica da comunidade como direito em ação Enquanto na teoria pura de Kelsen perguntase pela validade da norma cuja resposta se obtém por remissão à norma superior no pensamento de Ross a pergunta é pela vigência que se obtém por remissão ao comportamento de seus destinatários com o sentimento de sua obrigatoriedade social Nas palavras de Ross ao fazer da validade uma relação internormativa a validade de uma norma deriva da validade de outra Kelsen se impediu desde o começo de lidar com o cerne do problema da vigência do direito a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade social Ao defender uma noção psicosociológica empíricofática da vigência jurídica Ross atende ao seu propósito empirista de buscar o direito na realidade dos fatos possibilitandolhe o conhecimento científico Entretanto a sua posição é intermediá ria entre duas classes de realismo A sua opção é uma tentativa de superar a alterna tiva entre o realismo psicológico da escola de Uppsala Hãgerstrõm Lundstedt Olivecrona e o realismo comportamentista americano Holmes Uewellyn etc 0 realismo psicológico considera que a regra jurídica é assim qualificada porque é acei ta pela consciência jurídica popular que determina também por conseqüência as reações dos juizes sendo portanto derivada e secundária a sua aplicação pelos tribu nais 0 direito nesta hipótese é aplicado porque é vigente segundo critérios psico lógicos Ross objeta que a consciência jurídica neste caso é um conceito perten cente à psicologia individual ficando o direito reduzido ao âmbito individual das opini ões subjetivas emparelhado com o plano moral bloqueando por esse modo o en tendimento do direito como uma ordem nacional enquanto fenômeno intersubjetivo 0 realismo comportamentista sociológico por outro lado converte a realidade do direito em fatos sociais compreendidos nas ações comportamentos dos tribu nais Nas palavras de Holmes o direito são as profecias do que os tribunais farão de 14 Alt Ross fato Segundo essa corrente do realismo sociológico uma norma jurídica está vi gente se existem fundamentos suficientes para supor que será aceita pelos tribunais como base de suas decisões Nesse sentido a questão de se as regras de direito são ou não compatíveis com a consciência jurídica dominante é considerada como algo derivado ou secundário 0 direito nesta hipótese comportamentista é vigente porque é aplicado A principal objeção ao comportamentismo jurídico sustentada por Ross é a de que não é possível fazer uma interpretação puramente comportamental do conceito de vigência porque é impossível predizer a conduta do juiz por meio de uma observação puramente externa do costume O direito não é simplesmente uma ordem familiar ou habitual Essas duas vertentes teóricas do realismo jurídico são sintetizadas no pensa mento de Ross perfazendo o realismo psicosociológico Segundo o professor dina marquês a sua opinião é comportamentista na medida em que visa a descobrir consistência e previsibilidade no comportamento verbal externamente observado do juiz e é psicológica na medida em que a aludida consistência constitui um todo coerente de significado e motivação somente possível com base na hipótese de que em sua vida espiritual o juiz é governado e motivado por uma ideologia normativa cujo conteúdo nós conhecemos Por isso a vigência jurídica no pensamento de Ross é o resultado do encontro do fator comportamental integrante da conduta dos tribunais ao exercerem a força contida nas regras de direito e do fator psicológico integrante do sentimento de obrigatoriedade social que acompanha o referido com portamento judicial Aí estão pois as linhas básicas do pensamento de Alf Ross cuja obra Direito e Justiça agora tivemos o prazer de prefaciar nesta primeira edição em português Felicitamos a Edipro por esta iniciativa editorial que será no limiar deste século XXI certamente de grande utilidade e valia para os estudiosos do direito em todos os níveis da vida acadêmica e profissional de nosso País São Paulo janeiro de 2000 Alaôr Caffé Alves Professor Associado da Faculdade de Direito da USP Nota do Tradutor A edição mais conhecida de Direito e Justiça não é a original a dinamarquesa de 1953 Om Ret og RetfoerdighedJ mas sim a tradução inglesa de Margaret Dutton fOn Law and Justicej publicada em 1958 por Stevens Sons Limited Londres logo publicada no ano seguinte pela University of Califórnia Press Berkeley A presente tradução para o português é baseada na tradução inglesa mas tivemos o cuidado de pesquisar expressões e os principais conceitos emitidos por Ross com o original Alguns exemplos filosofia do direito retsfilosofij inglês jurisprudence ciência do direito tretsvidenskab inglês doctrinal study of the law Independentemente destas naturais diferenças idiomáticas houve casos em que discordamos conceitualmente da tradução digase de passagem excelente de Dutton do que é exemplo marcante o conceito gaeldende ret que aparece nume rosas vezes no texto traduzido por valid law e que preferimos traduzir na literalidade por direito vigente A despeito de nossas reservas fomos fiéis a certas adjetivações de Ross na terminologia filosófica como metafísicoreligioso filosofia metafísica necessidade fatal e outras impropriedades perpetradas por seu zelo de adepto do empirismo No mais solicitamos de hábito a complacência do leitor para nossas falhas e sua manifestação crítica para que possamos melhorar sempre Somos gratos mais um vez ao Departamento de Produção da Edipro e ao editor Alexandre Rudyard Benevides pela técnica e competência Finalmente agradecemos ao Prof Alaôr Caffé Alves pela preciosa apresentação que faz a esta obra a Vinicius Lot Vieira pela oportuna sugestão editorial e a Dan Dixon da University of Califórnia Press que com simpatia e profissionalismo ímpar nos recepcionou e remeteu uma cópia da tradução inglesa de seu arquivo particular já que praticamente não há mais exemplares riisnnníveis O n la w a n H Instina Traços Biográficos do Autor AlfNiels Christian Ross nasceu em 1899 em Copenhague Dinamarca Formouse em direito e sua tese de doutorado Virkelighed og gyldighed i Retslaeren en kritik af den teoretiske retsvidenskabs grundbegreber Uma crítica aos fundamentos teóricos da ciência do direito é de 1934 Começou a lecionarem 1935 Foi PHD em Uppsala JURD em Oslo e JURD em Copenhague aposentando se nesta última Universidade como professor de direito em 1974 Faleceu em 17 de agosto de 1979 Em 11 e 12 de junho de 1999 comemorouse na Dinamarca o centenário do nascimento de Alf Ross na Conferência Internacional sobre Filosofia do Direito 16 Alf Ross 0 tradutor Bauru janeiro de 2000 Nota à Tradução em Língua Portuguesa A empreitada da publicação pela primeira vez em língua portuguesa da obra de Alf Ross Direito e Justiça é sem dúvida louvável e ao mesmo tempo complexa Originalmente escrita em dinamarquês mas sendo a sua principal versão a de língua inglesa a tradução desta obra enfrenta os problemas lingüísticos próprios de um mundo jurídico e filosófico diferente do nosso notadamente por seus sistemas de common law e suas características empiristas de tal modo que é impossível obter se na comparação de três línguas a dinamarquesa a inglesa e a portuguesa uma paridade perfeita de idéias que as línguas não podem oferecer Esta obra de Alf Ross muito estudada nos meios acadêmicos e jurídicos brasilei ros já de algum modo foi incorporada às nossas idéias principalmente naquele ramo denominado de teoria geral do direito ou então da sempre discutida ciência do direito A tradução mais próxima de nossa língua é a castelhana feita pelo conhecido mestre argentino Genaro Carrió Por conta disso podese dizer alguns termos de Alf Ross já se encontram sem tradução arraigados em nosso meio intelectual jurídico brasileiro e creio também português como a palavra validez que sem tradução mesmo do espanhol os nossos alunos incorporaram ao seu vocabulário com tanta facilidade quanto a palavra validade sua correlata de língua portuguesa Os problemas técnicos fundamentais da tradução da obra do jurista dinamarquês a uma língua latina em grande parte foram resolvidos por Carrió quando parece que acertadamente trata do valid inglês como vigente em espanhol o que pode e deve ser acompanhado na língua portuguesa como a melhor tradução do termo Claro está que é impossível uma tradução perfeita mesmo por diferenças de base entre os sistemas de direito e os significados dos termos para cada qual deles A excelente tradução em língua portuguesa de Edson Bini em muitos aspectos demonstra maior fidelidade e acerto em relação aos originais que a própria tradução castelhana 0 professor Tércio Sampaio Ferraz Jr na sua conhecida e referencial obra Intro dução ao Estudo do Direito apresentou pioneiramente e bem trabalhou no Brasil vários conceitos de Alf Ross Sua tradução de alguns termos específicos da obra do jurista dinamarquês faculdade nãofaculdade potestade e impotência por exem plo que não seguem uma absoluta paridade com outras traduções nos parece no entanto muito mais feliz que a tradução literal dos termos E além disso o fato de já estarem tais palavras muito usadas e consagradas por meio da obra do Prof Tércio nos recomenda assim a sua utilização no presente livro 0 público de língua portuguesa de tal modo tem na presente obra desconta das as pequenas imprecisões intransponíveis das línguas uma feliz tradução que parece bem representar tecnicamente as idéias expressas por esse livro de Ross Acrescida da qualidade da apresentação do estimado Prof Alaôr Café Alves vem esta obra completar na língua portuguesa o quadro das grandes obras do positivismo jurídico do século XX 18 Alf Ross São Paulo janeiro de 2000 Alysson Leandro Mascaro Da Faculdade de Direito da USP Prefácio à Edição Inglesa Este estudo de autor escandinavo é apresentado ao público anglo norteamericano na esperança de que venha a contribuir para o fortaleci mento dos vínculos entre a cultura nórdica e as grandes tradições do mundo anglosaxão A iniciativa e o generoso patrocínio dos norteamericanos es pecialmente a partir da Segunda Guerra Mundial têm possibilitado um ativo intercâmbio de pessoas e idéias entre o Novo e o Velho Mundo Sinto que nós deste lado do oceano temos uma obrigação permanente de contribuir em tudo que pudermos para essa comunicação Particularmente no campo da ciência do direito surgem oportunidades para uma fértil cooperação e o mútuo estímulo A partir da obra de John Austin e Oliver Wendell Holmes o pensamento jurídico anglo norteamericano tem sido dirigido a uma interpretação realista do direito ou seja uma interpretação de acordo com os princípios de uma filosofia empirista Um empirismo semelhante tem dominado a teoria jurídica escandinava desde o tempo de Anders Sandõe Õrsted 17781860 e Axel Hàgerstrõm 18681939 É graças a essa tendência comum que as tradi ções dessas duas partes do mundo têm se dissociado das doutrinas jusnaturalistas e outras ramificações da filosofia do direito idealista predo minantes na Europa continental A principal idéia deste trabalho é levar no campo do direito os princípios do empirismo às suas conclusões últimas Desta idéia emerge a exigência metodológica do estudo do direito seguir os padrões tradicionais de obser vação e verificação que animam toda a moderna ciência empirista e a exigência analítica das noções jurídicas fundamentais serem interpretadas obrigatoriamente como concepções da realidade social do comportamen to do homem em sociedade e nada mais Por esta razão é que rejeito a idéia de uma validade a priori específica que coloca o direito acima do mundo dos fatos e reinterpreto a validade em termos de fatos sociais rejeito a idéia de um princípio a priori de justiça como guia para a legisla ção política jurídica e ventilo os problemas da política jurídica dentro de 20 Alf Ross um espírito relativista quer dizer em relação a valores hipotéticos aceitos por grupos influentes na sociedade e finalmente rejeito a idéia segundo a qual o conhecimento jurídico constitui um conhecimento normativo específico ex presso em proposições de dever ser e interpreto o pensamento jurídico for malmente em termos da mesma lógica que dá fundamento a outras ciências empíricas proposições de sei Não há a meu ver princípios definidos que determinem o domínio da ciência do direito nenhum critério interno que determine onde termina a ciência do direito como estudo doutrinai do direito e começa a filosofia do direito Numa grande medida essa questão será decidida pela tradição e inclinações pessoais Da minha parte tenho como importante tratar não somente de problemas de um elevado nível de abstração como também de noções e questões com as quais o estudante de direito está familiarizado em função de seu trabalho em classe nos tribunais ou na legislatura Deste modo espero demonstrar que a ciência do direito não é apenas uma atraen te atividade mental per se mas também um instrumento capaz de beneficiar qualquer advogado que queira entender melhor o que faz e porque o faz Durante os mais de trinta anos em que me ocupei dos estudos jusfilosóficos tenho é claro recebidoorientação e inspiração procedentes de muitos lugares Sem elas teria sido impossível escrever este livro Tais débitos são esquecidos facilmente o que me torna incapaz de apresentar uma lista completa Mas devo mencionar dois mestres que tiveram para mim uma maior significação do que quaisquer outros Hans Kelsen que me iniciou na filosofia do direito e me ensinou acima de tudo a importância da coerência e Axel Hàgerstrõm que me abriu os olhos para o vazio das espe culações metafísicas no campo do direito e da moral A edição dinamarquesa deste livro foi publicada em 1953 O caminho que conduziu à esta tradução e publicação foi longo e acossado por muitos obstáculos Não poderia ter sido trilhado sem o infatigável concurso da tradutora Margaret Dutton de Londres e do editor Max Knight da University of Califórnia Press Sempre me lembrarei com gratidão do interesse com o qual ambos se dedicaram a minha obra e a diligência e os escrúpulos com os quais realizaram seu trabalho Por fim desejo expressar minha gratidão às duas Fundações dinamar quesas que tornaram financeiramente possível esta tradução RaskÓrsted Fondet e Statens aimindelige Videnskabsfond Copenhague setembro de 1958 Alf Ross Prefácio à Edição Espanhola Quando há alguns anos fui honrado com o convite para proferir conferên cias na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Buenos Aires muito me impressionou o papel ali desempenhado pela filosofia do direito no ensino do direito Depareime entre colegas nesse campo com um conhecimento um interesse e uma compreensão muito maiores do que aqueles encontra dos geralmente em meu país Causoume particular impressão o fato de tal interesse pela filosofia do direito não se restringir a um estreito círculo de especialistas nesse domínio mas poder ser percebido igualmente em espe cialistas de outras áreas do direito entre os estudantes e os advogados e até entre pessoas cultas estranhas ao estudo e à prática do direito A que se deve esse interesse Acredito que o estudo da filosofia deve encontrar em si mesmo sua recompensa na medida em que satisfaz um inveterado anseio de clareza e nos permite saborear os puros prazeres do espírito Se além disto esse estudo nos proporciona um entendimento mais completo do mecanismo e da lógica do direito e aumenta nossa capacidade para o cumprimento da tarefa teórica e prática a que nos devotamos tanto melhor Entrego este livro aos leitores de língua espanhola imbuído de um espí rito de gratidão e de humildade Sintome grato porque foime dada a oportunidade de propagar os frutos de estudos aos quais dediquei minha vida inteira de difundir idéias que estou convicto constituem o funda mento de uma análise realista do direito positivo e de uma discussão inte ligente acerca de sua reforma Entrego o livro com humildade porque per cebo plenamente a limitação e a frivolidade de meus esforços É animado deste espírito que posso subscrever minha obra como aquele velho pintor holandês com as palavras De acordo com minhas possibilidades Estou em débito com muitos amigos da Argentina Sem que isto signifi que o esquecimento dos demais desejo expressar meu reconhecimento a dois deles ao Prof Dr Ambrosio L Gioja a quem mais do que a nenhum 22 Alf Ross outro se devem os meus contatos com a Universidade de Buenos Aires e ao Prof Dr Genaro R Carrió que se encarregou da tradução deste livro Minha falta de domínio do idioma espanhol me impede de opinar a respeito da qualidade da tradução mas a despeito disto minha corres pondência com Dr Carrió versando sobre diversos aspectos lingüísticos associados à tradução convenceume de que não poderia ter encontra do ninguém melhor capacitado para realizar essa delicada tarefa que tanta perícia requer do que ele Agradeço cordialmente a ambos pela amabilidade e compreensão Copenhague novembro de 1962 Alf Ross Capítulo I Problemas da Filosofia do Direito 1 TERMINOLOGIA E TRADIÇÃO Nos países de língua inglesa jurisprudence é um ramo do co nhecimento jurídico que se distingue de outros ramos por seus problemas objetivos propósitos e métodos Esse termo jurisprudence é empregado vagamente para designar vários es tudos gerais do direito distintos da matéria principal de ensino das faculdades de direito nas quais são ministrados estudos doutriná rios ordinários que visam a apresentar as regras jurídicas vigentes numa certa sociedade numa época determinada Esses vários estudos gerais designados como jurisprudence não detêm em comum elementos suficientes para que se possa organizálos como pequenas ramificações do mesmo grande ramo do saber abordam assuntos muito diferentes e refletem perspec tivas filosóficas largamente distintas O termo jurisprudence não é em geral usado na Europa conti nental sendo substituído por expressões como philosophy of law filosofia do direito general Science of law ciência geral do direi to legal encydopedia enciclopédia jurídica e general theory of law teoria geral do direito No âmbito dos estudos heterogêneos reunidos sob a designa ção jurisprudence podese discernir três áreas de investigação e correspondentemente três escolas de investigação a saber 24 Alf Ross 110 Problema do Conceito ou Natureza do Direito Esta área inclui outros conceitos fundamentais considerados com preendidos essencialmente no conceito do direito como por exem plo a fonte do direito a matéria do direito o dever legai a norma jurídica a sanção legal é possível que sejam incluídos também con ceitos não necessariamente essenciais como propriedade direitos in personam e direitos in rem pena intenção culpa etc A escola de filosofia do direito expressão que usaremos por ora para designar genericamente os trabalhos que discutimos que concerne majoritariamente a esse grupo de problemas é conhecida como analítica visto que procura analisar e definir conceitos tais como os mencionados acima A escola analítica foi fundada pelo in glês John Austin que proferiu uma série de conferências no University College Londres entre 1828 e 1832 Posteriormente foram publicadas com o título The Province of Jurisprudence Determined1 Austin não foi muito famoso durante sua vida Devido a razões de ordem financeira foi forçado a abandonar sua atividade como confe rencista e por ocasião de sua morte era quase desconhecido Logo depois as coisas mudaram incisivamente Entre 1861 e 1863 sua viúva publicou uma edição nova e completa das conferências a qual foi mais tarde objeto de sucessivas reimpressões O método analítico de Austin deixou sua marca num número tão grande de estudiosos ingleses e norteamericanos até a atualidade por exemplo W Markby2 S Amos3 I E Holland4 E C Clark5 E E Hearn6 J Salmond7 J C Gray8 e G W Paton9 que se pode falar de uma Escola Analítica 1 Para um estudo de Austin sua doutrina e influência ver Alf Ross Theorie der Rechtsqueilen 1929 cap IV incluindo Apêndice A em particular pp 8387 2 Elements of lêw W 3 Science of Jurisprudence 1872 4 Jurisprudence 1880 5 Practical Jurisprudence 11883 6 Theory of LegaiDuties and Rights 11883 7 Jurisprudence 1902 8 Nature and Sources of law M3Q9 9 Jurisprudence 1946 Direito e Justiça 25 Somente no século XX que Austin exerceu influência sobre es tudiosos do direito da Europa continental de modo destacado o húngaro Felix Somlo10 e o suíço Ernest Roguin11 A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen12 a mais importante contribuição à filosofia do direito do século pertence também à escola analítica Historicamente entretanto não há conexão algu ma entre a Teoria Pura do Direito e a escola de Austin Tomada como um todo a escola analítica leva o selo de um formalismo metódico O direito é considerado um sistema de normas positivas isto é efetivamente vigorantes A ciência do direito busca apenas estabelecer a existência dessas normas no direito efetivo in dependentemente de valores éticos e considerações políticas Tampouco formula a escola analítica qualquer questão relativa às cir cunstâncias sociais penetradas pelo direito os fatores sociais que determinam a criação do direito e seu desenvolvimento e os efeitos sociais que se produzem ou se pretende produzir mediante normas jurídicas Este formalismo encontrou destacada expressão nas obras de Kelsen A pureza que ele exige da ciência do direito tem objetivo duplo por um lado livrar a ciência do direito de qualquer ideologia moral ou política de outro livrála de todo vestígio de sociologia isto é considerações referentes ao curso efetivo dos eventos De acordo com Kelsen a ciência do direito não é nem filosofia moral nem teoria social mas sim teoria dogmática específica em termos normativos 120 Problema do Propósito ou Idéia do Direito Esta área de investigação diz respeito ao princípio racional que concede ao direito sua validade ou força obrigatória e que cons titui o critério para a retidão de uma norma jurídica Geralmente se considera que a justiça é a idéia do direito dè onde surgem questões fundamentais acerca do teor e argumento do princípio de justiça acerca da relação entre a justiça e o direito positivo acerca do papel desempenhado pelo princípio de justiça na legislação na administração do direito e assemelhados 10 Juristische Grundlehre 1917 11 La Science Juridique Pue 19251 12 A última exposição completa de Kelsen é sua Teori Geraldo Direito e do Estado 1946 Podese encontrar uma versão concisa e de fácil leitura dos princípios fundamentais do sistema kekeniano na sua Teoria P m do Direito 1953 26 Alf Ross O ramo da filosofia do direito que considera mormente problemas dessa espécie é conhecido como jusfilosofia axiológica ou filosofia do direito natural Modernamente a expressão filosofia do direito é com freqüência reservada exclusivamente a esse ramo particular Essa escola de pensamento que está estreitamente ligada à abor dagem religiosa ou metafísicofilosófica possui uma longa história A filosofia do direito natural se estende da época dos primeiros filósofos gregos até os nossos dias Esta filosofia atingiu seu apogeu clássico com os grandes sistemas racionalistas dos séculos XVII e XVIII Após a reação histórica e positivista do século XIX a filosofia do direito natural voltou a conquistar espaço no século XX Falase num renascimento do direito natural Seu fundamento filosófico repousa primeira e principal mente na escolástica católica que é perpetuada no direito natural do tomismo e em vários desenvolvimentos dos sistemas de Kant e Hegel que encontraram adeptos particularmente na Alemanha e na Itália As teorias do direito natural também encontraram fundamento em outras escolas filosóficas a saber no utilitarismo filosofia da solidariedade intuicionismo de Bergson fenomenologismo de Husserl e outras mais A história do direito natural é tratada no capítulo X 13 O Problema da Interação do Direito e a Sociedade Esta área de investigação inclui questões relativas à origem histó rica e o desenvolvimento do direito aos fatores sociais que em nos sos dias determinam o teor variável do direito à sua dependência da economia e da consciência jurídica popular e sua influência sobre estas aos efeitos sociais de certas regras ou instituições jurídicas ao poder do legislador em dirigir o desenvolvimento social à relação entre o direito vivo isto é o direito tal como se desenvolve real mente na vida da comunidade e o direito teórico ou dos livros e às forças que de fato motivam a aplicação do direito em contraposição aos fundamentos racionalizados presentes nas decisões judiciais Esta escola de filosofia do direito é conhecida como históricosocio lógica Podese subdividila em dois ramos um predominantemente histórico e o outro predominantemente sociológico e psicológico Semelhantemente à escola analítica é de data relativamente recente Sucedendo a alguns precursores do século XVIII Vico Montesquieu a abordagem histórica do direito surgiu com a escola romântica alemã Savigny e Puchta tratadas na seqüência nos parágrafos 56 e 81 Direito e Justiça 27 Na Inglaterra H Maine13 fundou uma escola de filosofia do direito histórica que se dedicou ao estudo da correlação entre lei e sociedade na antiguidade Foi sucedido por J Bryce14 D Vinogradoff15 C K Allen16 e outros O enfoque sociológico representado por estudiosos como Émile Durkheim17 Léon Duguit18 Roscoe Pound19 N S Timasheff20 e Karl Llewellyn21 tem predominado na França e nos Estados Unidos Interpretações psicológicas estão presentes nas obras de Jerome Frank22 Edward Robinson23 e outros Há uma grande quantidade de estudos especiais de sociologia do direito de considerável interesse particularmente no campo da criminologia Relatórios realizados por comissões e estudos práticos semelhantes constituem amiúde valiosas contribuições para a melhor compreensão dos fatos da vida jurídica e suas correlações Trabalhos de caráter geral que respondem pelo nome de sociologia do direito24 por vezes tendem a não ir além do enunciar de programas gerais ou a se revelarem eles mesmos filosofias do direito natural disfarçadas Esta última tendência resulta do fato da sociologia ser em sua origem uma filosofia política disfarçada parágrafo 56 Georges Gurvitch25 constitui um exemplo típico sua sociologia do direito tem pouco a ver com a ciência empírica detendo mais a natureza de uma interpreta ção metafísicoespiritualista dos conceitos do direito e justiça radicados no intuicionismo de Bergson e na fenomenologia de Husserl 13 Ancienl Law 11861 e Early History of Institutions 11875 14 Studies in History and Jurisprudence 11901 15 Histórica Jurisprudence 1923 G Law in the Making 921 17 De Ia Division du Travail Social 1893 18 Les Transformations Générales du Droit Privé 1912 Les Transformations du Droit Public 1913 19 Para uma síntese das doutrinas de Pound a respeito das linhas sociais de desenvolvimento no moderno direito inglês e norteamericano com referências bibliográficas completas ver sua obra OutUnes of Lectures on Jurisprudence 5 ed 1943 4349 Ver também Pound Social Control through Law 1942 Interpretations of Legal History 1923 Scope and Purpose of Sociological Jurisprudence Harv L fíev 24 1911 591 20 Introduction to the Sociology of Law 1939 21 K N Llewellyn e E A Hoebel The Cheyenne Way 1942 22 Law and the Modem Mind 1930 23 Law and the Lawyers 1935 24 Um dos mais conhecidos é Grundlegung der Soiiologie des Rechts de E Ehrlich 1913 Adicionalmente podese mencionar os seguintes Introduction to the Sociology of Law de N S Timasheff 1939 RechtssozMogie de B Horváth 1934 Sociology of the Law de G Gurvitch 1942 e Theory of Legal Science de H Caims 1941 25 Ver a nota anterior e meu exame crítico de Gurvitch em Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap II 8 28 Alf Ross Este sumário dos temas e tendências da literatura existente sobre filosofia do direito jurisprudence nos conduz à questão de como deve ser definido racionalmente esse ramo do estudo do direito Parece que essa questão só pode ser respondida com base num exame geral das diversas abordagens através das quais um estudo dos fenômenos ju rídicos poderia ser tentado selecionandose um entre eles que possa em nossa opinião ser racionalmente descrito como jusfilosófico A esta altura entretanto assoma uma dificuldade Por um lado não é possível formar uma opinião bem fundada das várias ramifica ções do estudo da lei em sua totalidade enquanto não se tenha deci dido qual é a natureza dos fenômenos jurídicos por outro lado o problema do conceito ou natureza do direito é indubitavelmente um dos principais problemas da filosofia do direito Não há desacordo neste ponto Tanto aqueles que centram sua atenção principalmente na validade ideal do direito quanto aqueles que se preocupam com a existência do direito na comunidade têm que necessariamente ba sear suas teorias num conceito sobre a natureza geral do direito Pareceria por conseguinte que não é possível indicar o objeto pró prio da filosofia do direito enquanto não for descoberta uma solução para um de seus principais problemas Essa dificuldade pode ser superada pela apresentação a princípio de tãosomente uma tentativa de orientação sobre a natureza dos fenômenos jurídicos num capítulo posterior apresentarseá uma in vestigação mais completa 2 A NATUREZA DO DIREITO A questão da natureza do direito constitui um dos principais pro blemas permanentes de qualquer filosofia do direito Chega a ser es tranho que ninguém é o que parece jamais tenha considerado digna de atenção a colocação de tal questão ou tenha ponderado sobre sua razão e sua importância E todavia quando nos pomos a pensar nisso a questão se mostra um tanto peculiar Quem pensaria em destinar o problema da natureza de fenômenos psíquicos a um tratamento in dependente numa outra ciência que fosse distinta da psicologia Ou o problema da natureza da natureza a qualquer ciência que não fosse as ciências naturais O que mais poderia ser dito a respeito da nature za dos fenômenos psíquicos além do que emerge das descrições e Direito e Justiça 29 explicações fornecidas sobre eles pela psicologia Ou acerca dos fenômenos da natureza além daquilo que emerge das diversas ciên cias naturais Por que é a posição tão diferente com respeito ao direito Por que é o problema da natureza do direito um problema que se encontra fora do âmbito da ciência jurídica estritamente falando O que há para ser dito sobre a natureza dos fenômenos jurídicos além do que emerge do estudo doutrinai do direito ciência do direito que tem esses próprios fenômenos como seu objeto Para responder estas perguntas será conveniente realizar uma breve digressão lingüística Entendo por expressão lingüística uma organização consciente da linguagem na utilização real oral ou escrita Distinto da expressão mesma como um fenômeno lingüístico é o seu significado É imperioso que se faça essa distinção visto que expres sões diferentes podem ter o mesmo significado bem como uma mes ma expressão pode de acordo com as circunstâncias deter significa dos variados O significado pode ser de dois tipos a saber expressivo ou sinto mático e representativo ou semântico Toda expressão lingüística possui um significado expressivo que é a manifestação ou sintoma de algo Isto quer dizer que como um elo num todo psicofísico a expressão se refere àquela experiência que lhe deu origem Não importa o que eu diga minha expressão tem que ter sido causada por circunstâncias emotivovolitivas que me im peliram a me expressar um impulso para comunicar idéias aos outros ou uma emoção que espontaneamente requer expressão Certas expressões lingüísticas possuem adicionalmente um sig nificado representativo quer dizer a expressão indica simboliza ou representa um estado de coisas Não se trata de uma relação causai mas lógica Se digo por exemplo meu pai está morto esta expres são indica um certo estado de coisas Na seqüência destas considerações preliminares é possível agora estabelecer as seguintes distinções e concepções a Expressões que têm tanto significado expressivo quanto repre sentativo como por exemplo meu pai está morto Seu significado 30 Alf Ross expressivo será normalmente um impulso para comunicar o fato a uma outra pessoa Em outras palavras formular a expressão é nor malmente a manifestação desse impulso Dáse o nome de asserção ao seu significado representativo a asserção de que o estado de coisas é esse a saber que meu pai está morto Essa asserção pode ser considerada abstraída da expressão e do contexto da experiência associados a ela Sua verdade ou falsidade pode ser verificada b Expressões que têm apenas significado expressivo Se por exem plo grito Ai porque me queimei ou digo a alguém Feche a porta essas expressões não asseveram que dói ou que me acho num esta do em que desejo que a pessoa feche a porta Essas expressões nada simbolizam não têm significado representativo mas são portadores diretos de uma carga emocional ou intencional Expressam uma experiência porém nada representam Seu significado expressivo não pode ser separado da experiência Às vezes como por exemplo quando grito Ai a expressão não é feita intencionalmente e não visa a influenciar os outros mas tem o caráter de um reflexo automático Essas expressões são cha madas de exclamações Por outro lado quando digo a alguém Fe che a porta a expressão é produzida com a intenção que ela expressa de influenciar diretamente a outra pessoa de um modo definido induzila a fechar a porta O traço característico dela é ser a influência direta quer dizer é exercida pela força sugestiva ou pressão encerrada no próprio expressar e não transmitida pela co municação de uma asserção Está claro que é também possível es timular impulsos para a ação mediante esse último método por exemplo dizendo a uma pessoa que sua casa está em fogo Não há um termo geral para as expressões emotivovolitivas portadoras de intenção A esta categoria pertencem fenômenos tão heterogêneos como ordenar dirigir sugerir desejar exortar rogar solicitar Visto que é mais prático trabalhar com um termo geral proponho para essa finalidade o termo diretiva Em conformidade com isso é possível distinguir entre três tipos de expressões lingüísticas26 26 Não julgo necessário investigar se é possível sustentar que a classificação é exaustiva se por exemplo expressões interrogativas podem ser reduzidas a uma combinação de 1 e 2 ou 1 e 3 Direito e Justiça 31 1 Expressões de asserção ou sumariamente asserções com o que esta palavra entretanto se torna ambígua já que significa tanto o expressar quanto o seu significado representativo isto é expres sões com significado representativo 2 Exclamações isto é expressões sem significado representativo e sem intenção de exercer influência e 3 Diretivas isto é expressões sem significado representativo mas com intenção de exercer influência Numa certa medida essas categorias correspondem à classifica ção gramatical orações indicativas interjeições e orações imperati vas Devese notar contudo que uma expressão lingüística que apa rece como uma oração no indicativo pode muito bem ser uma diretiva e não uma asserção A oração Você levará esta carta ao posto do correio amanhã poderia ser uma asserção uma predição do que vai acontecer Poderia entretanto a despeito de sua forma gramatical mente indicativa também ser entendida como uma diretiva ordem Agora considerando tais antecedentes formulamos a pergunta à qual dessas categorias pertencem as orações encontradas nas regras jurídicas Parece óbvio que devam ser diretivas27 e não exclamações nem asserções As leis não são promulgadas a fim de comunicar verda des teóricas mas sim a fim de dirigir as pessoas tanto juizes quanto cidadãos particulares no sentido de agirem de uma certa maneira desejada Um parlamento não é um escritório de informações mas sim um órgão central de direção social Rca particularmente claro que as regras jurídicas por seu teor lógico são diretivas quando notamos que há regras jurídicas que contêm expressões comumente usadas em diretivas É o caso por exemplo de normas penais que expressam que qualquer pessoa sob certas condições deverão ser punidas de um 27 A análise precedente supõe a condição simples de que a expressão procede de um autor individual Não há tal indivíduo único por trás do direito Isto contudo não faz nenhuma diferença 0 que importa á que o direito funciona da mesma maneira que diretivas que procedem de um autor individual e que a legislação carrega uma intenção social que pode ser encarada como análoga à intenção individual Karl Olivecrona expressou essa idéia chamando as regras do direito deimperativos independentes ver Lawasfact 1939 págs 42esegs Preferi o termo mais geral e neutro diretiva visto que o vocábulo ordem1 imperativo está associado a idéias dificilmente apropriadas ao direito particularmente em sua relação aos juizes e outras autoridades legais administrativas que indubitavelmente consideram o direito como uma diretiva e não uma ordem Nenhum dos termos específicos correntes empregados para designar expressões sem significado representativo mas com intenção de influenciar parece a mim inteiramen te adequado na qualidade de termo descritivo do conteúdo do direito A terminologia aqui usada evita essas dificul dades ao criar um termo geral para expressões desse tipo No fundo não discordo de Olivecrona 32 Alf Ross certo modo e no direito civil regras que expressam que uma pessoa tem que ou pode fazer ou não fazer algo O mesmo vale entre tanto no caso em que uma regra jurídica se apresenta gramatical mente no modo indicativo e aparentemente contém uma descrição asserção É o caso por exemplo quando se estabelece que uma obrigação um dever ou uma responsabilidade surge sob tais e tais condições Embora um tal enunciado aparentemente possua a mes ma estrutura de à guisa de exemplo a proposição da química de que sob dadas condições se gera hidrogênio não pode haver dúvida de que o seu significado lógico não consiste em informar sobre fatos mas sim prescrever um comportamento A regra jurídica não é nem verdadeira nem falsa é uma diretiva A seguir surge a questão de se as frases que lemos num livro de direito ou em qualquer outra parte na qual se expressa o direito vigente são logicamente diretivas Aparentemente elas são porque parece não haver quaisquer diferenças entre as orações empregadas pelos escrito res de direito e as que figuram nas normas jurídicas A linguagem por exemplo de John Honnold em Cases and Materials on the Law of Sales and Sales Ftnandngè exatamente a mesma do Uniterm Sales Act e de outras leis A despeito da similaridade deve haver entretanto uma dife rença no significado lógico das mesmas orações nos dois contextos Não resta dúvida de que as proposições num livro pelo menos num certo grau pretendem descrever não prescrever28 Na medida em que a lite ratura jurídica pretende ser conhecimento do que é efetivamente o direi to vigente tem que consistir em asserções não em diretivas Toda pro posição de um livro precisa ser entendida sob a condição geral de que o autor está expondo o direito vigorante dentro de um sistema legal espe cífico o direito de Illinois o direito da Califórnia a common law etc A proposição de um livro que prima fade apresenta o caráter de uma diretiva D tem portanto de modo a ser entendida como uma proposição não do direito mas sobre o direito que ser reformulada assim D é direito vigente de Illinois da Califórnia etc29 28 Ver parágrafos 9 e 79 29 A radical diversidade entre as normas jurídicas ou seja as regras jurídicas contidas nas leis ou extraídas de precedentes ou outras fontes do direito e as proposições doutrinárias dos livros é claramente estabelecida aqui As primeiras sáo diretivas alògicasl as segundas sio asserções lógicas que expressam que certas diretivas sào direito vigente Se nèo se tiver em mente essa diversidade com clareza e se as normas jurídicas forem colocadas no mesmo plano das propo sições doutrinárias que a elas se referem disto resultará necessariamente uma visào distorcida de umas e de outras Direito e Justiça 33 r E importante enfatizálo aos estudantes ingleses e norteamericanos Na língua inglesa inexiste uma distinção clara entre a o próprio direito enquanto regras jurídicas e b o conhecimento acerca do di reito enquanto proposições acerca de regras jurídicas Não há nenhu ma expressão correspondente à expressão Science of law ciência do direito science du droit Rechtswissenschaft etc usada na Europa continental A expressão legaldocthne doutrina jurídica referese mais a um corpo de regras do que ao conhecimento a respeito das regras Como é importante para os propósitos da filosofia do direito operar com um termo que distinga claramente o conhecimento do direito do próprio direito eu proponho a expressão doctrinastudy of law ciência do direito para o primeiro Al Por um lado haverá uma tendência a imaginai que as proposições doutrinárias também consistem em diretivas ou normas Isto se desenvolve na concepção que vê no estudo doutrinai do direito ciência do direito um conhecimento normativo Essa designação sugere várias coisas Ou 1 que a ciência do direito constitui um conhecimento que colima estabelecer normas ou 2 que constitui um conhecimento que se expressa mediante normas embora sem estabelecâlas visto que as normas apresentadas são aquelas tidas como positivamente dadas ou finalmente que o conhecimento do direito é um conhecimento concernente a normas Somente este último significado é sustentável Mas o termo normativo neste sentido compreendido é lingüisticamente impróprio já que naturalmente insinua o significado indicado em 1 ou 2 0 primeiro destes expressa o postulado jusnaturalista de um conhecimento que é a um tempo discernimento e exigência parágrafo 70 0 último corresponde ao ponto de vista de Kelsen ao menos como exposto em seus primeiros trabalhos Nestes ver especialmente Reine Rechtsiehre 1933 21 e segs Rechtsnorm norma jurídica e Rechtssati proposição doutrinária são coisas idênticas Das Soiien o dever ser é a forma categórica tanto para o próprio direito quanto para as proposições doutrinárias concernentes ao direito e o conhecimento do direito é concebido como expressivo de normas não descritivo de normas coma a expressão direta de normas e a imanente reivindicação destas à validade Numa obra posterior General Theory of Law and State 11945 45 cf 167 Kelsen claramente visa a uma distinção entre a norma jurídica como prescritiva e a proposição doutrinária que ele chamou de regra jurídica como descritiva Mas a distinção não á elaborada com clareza De um ponto de vista puramente lingüístico parece enganoso designar uma proposição descritiva uma asserção mediante o nome regra Kelsen prossegue supondo ser a proposi ção doutrinária um pronunciamento de o que deve ser das Sollen e não um pronunciamento de o que é tdas Sein e continua empregando o nome norma com o acréscimo no sentido descritivo da palavra Ver a p 43 e confrontar com a p 163 na qual se nega que as proposições doutrinárias são normas E confuso Desconheço o que se entende por uma norma no sentido descritivo Semelhantemente a todas as outras proposições descritivas as da ciência do direito estudo doutrinário do direito têm que ser expressões do que é e não do que deve ser têm que ser asserções não diretivas normas Quando o estudo doutrinário do direito ciência do direito descreve certas normas como direito vigente descreve certas realidades sociais um certo conteúdo de idéias normativas como realmente experimentadas e realmente eficazes Mas se isto for admitido a distinção radical de Kelsen entre a ciência do que é Seinswissenschaffi e a ciência do que deve ser Sollenswissenschaft cairá por terra Para uma exposição mais elaborada dessa crítica ver minha resenha de Hans Kelsen What is Justicei na Califórnia law Review 45 1957 564 e segs 8 Por outro lado a fusão de normas jurídicas e proposições doutrinárias do direito pode ter como resultado que se conside rem as primeiras como da mesma natureza das últimas quer dizer como sendo asserções expressões de um discernimento ou cognição não de uma intenção Assim Carlos Cossio fundador da chamada teoria egológica do direito afirma Egoiogische Theorie und Reine Rechtsiehre Õsterr Z f õft R ns V 1952 15 e segs em particular 4661 Jurisprudence and the Sociology of Law Cot L R 52 1952 356 e segs particularmente p 499 que um código de leis não menos do que uma exposição científica do direito é conhecimento ciência não no sentido da legislação se basear no conhecimento científico de um certo tipo a regra do direito á em si mesma um discernimento um conheci mento a legislação em si mesma constitui um ato científico A regra jurídica é o conhecimento jurídico que a comuni dade tem de si mesma 34 Alf Ross Atingimos agora o ponto que encerra a explicação do porque cons titui um problema a natureza do direito e o que é o significado desse problema Percebemos que toda proposição que se apresenta no estu do doutrinário do direito ciência do direito contém como uma parte integrante o conceito direito vigente de Illinois da Califórnia etc Por essa razão não é possível declarar de maneira precisa e completa o significado representativo de quaisquer dessas proposições enquanto não se torne patente o significado do conceito direito vigente Muito do aparente desacordo entre os autores de direito pode ser atribuído ao fato de que suas obras estão tacitamente baseadas em distintas conjeturas em relação ao significado desse conceito Tratase de problema peculiar ao estudo do direito Não tem parale lo por exemplo na psicologia ou nas ciências naturais Explica porque a natureza do direito constitui o principal problema da filosofia do direito Despido de sua formulação metafísica o problema da nature za do direito é o problema de como interpretar o conceito de direito vigente de Illinois da Califórnia da common law como uma parte constitutiva integrante de toda proposição do estudo doutrinário do direito ciência do direito Qual significado representativo deve ser atribuído a esse conceito Este problema se encontra além da esfera do advogado profissional pelo que é destinado à filosofia do direito 3 ANÁLISE PRELIMINAR DO CONCEITO DE DIREITO VIGENTE Imaginemos que duas pessoas estão jogando xadrez enquanto uma terceira observa Se o observador nada conhecer de xadrez não compreenderá o que está se passando Com base em seu conhecimento de outros jogos provavelmente concluirá que se trata de algum tipo de jogo Porém não será capaz de compreender os movimentos individuais ou perceber qualquer conexão entre eles Terá menos ainda qual quer noção dos problemas envolvidos por qualquer disposição parti cular das peças sobre o tabuleiro Se o observador conhecer as regras do xadrez mas além disso não conhecer muito a respeito da teoria do jogo sua experiência sobre o jogo dos outros mudará de caráter Compreenderá que o Direito e Justiça 35 movimento irregular do cavalo é o prescrito para essa peça Estará em posição de reconhecer os movimentos das peças em turno como movimentos prescritos pelas regras Dentro de certos limites será capaz até de predizer o que acontecerá pois sabe que os jogadores se revezam para executar um movimento e que cada movimento tem que cair dentro do total de possibilidades permitidas pelas regras em qualquer dada disposição das peças Mas além disso especial mente se os jogadores forem algo mais do que meros principiantes muito do que ocorre lhe parecerá enigmático Ele não entende a es tratégia dos jogadores e não enxerga os problemas táticos da situa ção Por que por exemplo o jogador não toma com suas peças bran cas o bispo Para um completo entendimento do jogo é essencial um conhecimento não apenas das regras do xadrez como também um certo conhecimento da teoria do jogo A probabilidade de ser capaz de predizer o próximo movimento aumenta se se leva em conta não somente as regras do jogo mas também a teoria do jogo e a compre ensão que cada jogador possui dessa teoria Finalmente também será necessário levar em conta o propósito alimentado por cada joga dor no jogo Supõese normalmente que um jogador joga para ga nhar Porém há igualmente outras possibilidades por exemplo dei xar que seu oponente ganhe ou experimentar e pôr à prova o valor de um determinado movimento Essas considerações do jogo de xadrez encerram uma lição inte ressante e peculiar Temos aqui diante de nós uma série de ações humanas os movimentos das mãos para alterar a posição de certos objetos no espaço e nos é facultado supor que esses movimentos somados a outros processos corpóreos respiração processos psicofísicos etc constituem um curso de eventos que segue certas leis biológicas e fisiológicas Todavia é óbvio que ultrapassa o limite de toda possibilidade razoável considerar esse curso de eventos de tal maneira que os movimentos individuais do xadrez possam ser explicados e preditos com uma base biológica e fisiológica O problema apresenta um aspecto inteiramente distinto se nos transportamos a um outro nível de observação e interpretamos o curso dos eventos à luz das regras e da teoria do xadrez Certos elementos da totalidade da série dos eventos nomeadamente o movimento das peças se destacam então como sendo ações rele vantes ou significativas para o xadrez O movimento das peças não é 36 Alf Ross considerado como uma mera mudança de posição dos objetos no espaço mas sim como movimentos do jogo e este se transforma num todo coerente pleno de significação porque os movimentos se motivam reciprocamente e são interpretados como ataque e defesa de acordo com os princípios teóricos do jogo Se observarmos os jogadores entenderemos cada movimento executado por cada joga dor do ponto de vista da consciência que eles têm das regras do xadrez associada ao conhecimento que supomos terem eles da teoria do jogo e a da meta a que se propuseram no jogo Ademais é tam bém possível ignorar as pessoas dos jogadores e entender o jogo por si só na sua significação abstrata um jogo num livro de xadrez Cumpre notar que o entendimento no qual estamos aqui pen sando é de um tipo distinto do causai Não operamos aqui com leis de causalidade Os movimentos não entretêm qualquer relação mutua mente causai A conexão entre eles é instaurada por meio das regras e da teoria do xadrez A conexão é de significado Podese afirmar ademais que a coparticipação fellowshlp cons titui fator essencial num jogo de xadrez Quero dizer com isso que os objetivos e interesses perseguidos e as ações por estes condiciona das só podem ser concebidos como um elo num todo maior que inclui as ações de uma outra pessoa Quando dois homens cavam uma vala juntos não estão fazendo nada que cada um deles não pudesse igual mente fazer por sua própria conta No xadrez ocorre algo absoluta mente contrário Não é possível para uma pessoa por sua conta pro porse a meta de ganhar no xadrez As ações que constituem o jogar xadrez somente podem ser efetuadas jogandose em revezamento com uma segunda pessoa Cada jogador tem seu papel a ser desem penhado mas cada papel apenas logra significação quando o segun do jogador cumpre seu papel30 A coparticipação é também revelada no caráter intersubjetivo das regras do xadrez É essencial que recebam a mesma interpretação ao menos da parte dos dois jogadores numa dada partida Caso con trário não haveria jogo e os movimentos individuais permaneceriam isolados sem significação coerente 30 Em sua Schachnovelle Stephan Zweig apresenta uma interessante descrição de uma pessoa capaz de jogar xadrez consigo mesma Explicase indicando que ela desenvolveu esquizofrenia de modo a ser capaz de atuar como duas pessoas distintas Direito e Justiça 37 Ora tudo isso demonstra que o jogo de xadrez pode ser tomado como um simples modelo daquilo que chamamos de fenômeno social A vida social humana numa comunidade não é um caos de ações individuais mutuamente isoladas Adquire o caráter de vida comuni tária do próprio fato de que um grande número de ações individuais não todas são relevantes e têm significação relativamente a um conjunto de regras comuns Tais ações constituem um todo significa tivo guardando a mesma relação entre si como movimento e contra movimento Aqui também há interação mútua motivada pelas regras comuns do jogo social que lhe conferem seu significado E é a consciência dessas regras que possibilita o entendimento e numa certa medida a predição do curso dos eventos Passarei agora a examinar mais de perto o que é realmente uma regra do xadrez e de que forma é possível estabelecer quais são as regras que regem o jogo de xadrez Refirome aqui às regras primárias do xadrez as que determinam a disposição das peças os movimentos a tomada etc e não às regras da teoria do xadrez No tocante a estas últimas algumas observações bastarão Como outras regras técnicas são obviamente enunciados hipotéticoteóri cos Pressupõem a existência das regras primárias do xadrez e indi cam as conseqüências que as diferentes aberturas e gambitos produ zirão no jogo na apreciação do ponto de vista da possibilidade de ganhar Semelhantemente a outras regras técnicas sua força diretiva está condicionada por um interesse neste caso o interesse de ganhar a partida Se não existe este interesse por parte de um jogador então a teoria do jogo carece de importância para ele As regras primárias do xadrez por outro lado são diretivas Embo ra sejam formuladas como asserções a respeito da capacidade ou poder das peças em se moverem e tomar fica claro que visam a indicar como deve ser jogado o jogo Visam diretamente isto é não qualificadas por nenhum objetivo subjacente a motivar o jogador é como se lhe dissessem jogase assim Essas diretivas são sentidas por cada jogador como socialmente obrigatórias quer dizer o jogador não só se sente espontaneamente motivado ligado a um certo procedimento como também está ao mesmo tempo seguro de que uma transgressão às regras provocará 38 Alf Ross uma reação protesto de seu adversário E deste modo as regras primárias distinguemse claramente das regras técnicas que formam a teoria do jogo Um movimento estúpido pode suscitar espanto po rém não um protesto Por outro lado as regras do xadrez não têm o matiz da moralidade o que resulta do fato de que normalmente ninguém efetivamente de seja violálas parágrafo 85 O desejo de trapacear num jogo se deve ao fato do jogador visar a um objetivo que difere do mero propósito de ganhar de acordo com as regras do jogo por exemplo ele poder dese jar ser alvo de admiração ou ganhar dinheiro Este último objetivo está freqüentemente presente num jogo de cartas e é notório que a exigên cia de respeitar as regras assume aqui um valor moral Como é possível então estabelecer quais regras diretivas re gem o jogo de xadrez Poderíamos talvez pensar em abordar o problema sob o ângulo comportamental limitandonos ao que pode ser estabelecido pela observação externa das ações descobrindo daí determinadas regula ridades Porém desta maneira jamais conseguiríamos atinar com as regras do jogo Jamais seria possível distinguir as práticas vigentes nem sequer as regularidades condicionadas pela teoria do jogo das regras do xadrez em sentido próprio Mesmo após observar mil parti das ainda seria possível crer que contraria as regras abrir o jogo com um peão de torre O mais simples talvez seria deixarse orientar por certos regula mentos dotados de autoridade por exemplo regulamentos aprovados em congressos de xadrez ou pelas informações presentes em livros sobre xadrez que gozam de reconhecimento Contudo até mesmo isso poderia não ser o suficiente porquanto não é certo que tais declara ções recebam adesão na prática Por vezes as partidas de fato são jogadas de muitas maneiras diversas Mesmo num jogo clássico como o xadrez variações desse gênero podem ocorrer por exemplo a regra referente a tomada en passantnem sempre recebe adesão Conse qüentemente esse problema de saber quais regras regem o xadrez tem que ser entendido falandose em termos estritos na sua referên cia às regras que regem uma partida concreta entre duas pessoas específicas São suas ações e suas ações exclusivamente aquelas que estão aglutinadas num todo significativo e regidas pelas regras Direito e Justiça 39 Assim só nos resta adotar um método introspectivo O problema é descobrir quais regras sentem efetivamente os jogadores ser social mente obrigatórias no sentido indicado acima O primeiro critério é que sejam realmente efetivas no jogo e que sejam externamente visíveis como tais Mas para que se decida se as regras que são acatadas são mais do que meros usos ditados pelo costume ou motivadas por razões de caráter técnico é mister indagar aos jogadores por quais regras se sentem obrigados Em consonância com isso podemos dizer uma regra de xadrez é vigente significando que dentro de uma dada coparticipação que compreende fundamentalmente os dois jogadores de uma partida con creta essa regra recebe efetiva adesão porque os jogadores sentem a si mesmos socialmente obrigados pela diretiva contida na regra O conceito de vigência no xadrez envolve dois elementos Um deles se refere à efetividade real da regra que pode ser estabelecida pela obser vação externa O outro se refere à maneira na qual a regra é sentida como motivadora ou seja socialmente obrigatória Há uma certa ambigüidade no conceito regra de xadrez As regras do xadrez carecem de realidade e não existem independentemente da experiência dos jogadores isto é de suas idéias sobre certos padrões de comportamento e a elas associada a experiência emocional de se acharem compelidos a obedecer É possível abstrair o significado de uma asserção puramente como um conteúdo de pensamento 2 2 são 4 da apreensão da mesma por uma dada pessoa num dado tempo e precisamente de modo idêntico é também possível abstrair o significado de uma diretiva o rei tem o poder de moverse uma casa em qualquer direção a partir da experiência concreta diretiva O con ceito regra de xadrez em qualquer análise acurada precisa portanto ser dividido em duas partes I aas idéias experimentadas em torno de certos padrões de comportamento acompanhadas das emoções que lhes são concomitantes e 2a o conteúdo abstrato dessas idéias as normas do xadrez As normas do xadrez são pois o conteúdo ideal abstrato de natu reza diretiva que permite na qualidade de um esquema interpretativo a compreensão dos fenômenos do xadrez as ações dos movimentos e os padrões de ação experimentados como um todo coerente de signi ficado e motivação uma partida de xadrez e conjuntamente com ou tros fatores e dentro de certos limites o predizer do curso da partida 40 Alf Ross Os fenômenos do xadrez e as normas do xadrez não são mutua mente independentes como se uns e outras detivessem sua própria realidade são aspectos diferentes de uma mesma coisa Nenhuma ação biológicofísica considerada em si mesma é um movimento do xadrez Só adquire tal qualidadeao ser interpretada em relação às normas do xadrez E inversamente nenhum conteúdo ideal de natu reza diretiva tem por si mesmo o caráter de uma norma válida de xadrez Só adquire essa qualidade pelo fato de que juntamente com outros conteúdos pode ser efetivamente aplicado como um esquema interpretativo aos fenômenos do xadrez Os fenômenos do xadrez se tornam fenômenos do xadrez exclusivamente quando colocados em relação com as normas do xadrez e viceversa O propósito dessa discussão sobre o xadrez neste ponto fica indubitavelmente claro Aponta para a afirmação de que o conceito norma vigente do xadrez pode atuar como paradigma para o con ceito direito vigente o que constitui o verdadeiro objeto de nossas considerações preliminares Podese também considerar o direito como consistindo parcialmente em fenômenos jurídicos e parcialmente em normas jurídicas em mú tua correlação Se observarmos o direito como funciona na sociedade descobrire mos que um grande número de ações humanas são interpretadas como um todo coerente de significação e motivação por meio de normas jurídicas que configuram um esquema interpretativo A com pra uma casa de B Ocorre que a casa está cheia de cupins A pede a B uma redução do preço de compra mas B não concorda A move uma ação contra B e o juiz de acordo com o direito presente no contrato ordena que pague a A uma certa quantia num determina do prazo B não o faz A consegue que o juiz do condado confisque os bens móveis de B os quais são então vendidos num leilão público Essa seqüência de eventos compreende toda uma série de ações humanas do estabelecimento do direito contido no contrato ao lei lão A consideração biológicofísica dessas ações não pode revelar qualquer conexão causai entre elas Tais conexões ocorrem unica mente na esfera de cada indivíduo Mas nós as interpretamos medi ante o auxílio do esquema referencial do direito vigente como fenô menos jurídicos constituintes de um todo coerente de significado e motivação Somente quando assim é feito cada uma dessas ações Direito e Justiça 41 adquire seu caráter jurídico A compra da casa por parte de A aconte ce por meio da expressão falada ou da escrita porém estas apenas se tornam uma compra quando consideradas na sua relação com normas jurídicas As várias ações se motivam reciprocamente tal como os movimentos do xadrez O juiz por exemplo é motivado pelos pa péis que A e B desempenham no negócio e pelas circunstâncias adicionais a ele associadas por exemplo o estado da casa bem como pelos precedentes vigentes na área do direito contratual Todo o processo tem o caráter de um jogo regido por normas muito mais complicadas do que as do xadrez Com base no que foi dito formulo a seguinte hipótese o conceito direito vigente de Illinois da Califórnia da common iavtf pode ser em princípio explicado e definido da mesma maneira que o conceito norma vigente do xadrez para dois jogadores quaisquer Quer dizer direito vigente significa o conjunto abstrato de idéias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias31 Podese talvez ter essa conclusão na conta de um lugar comum e pode parecer que um excessivo aparato de raciocínio foi empregado visando a esse fim Isto poderia revelarse verdadeiro se os problemas fossem abordados por uma pessoa que não alimentasse noções precon cebidas Porém não seria verdadeiro no caso de uma abordagem histó rica A grande maioria da totalidade dos autores de filosofia do direito até a atualidade tem sustentado que não é possível explicar o conceito di reito vigente sem a referência à metafísica O direito de acordo com este ponto de vista não se limita a ser um fenômeno empírico Quando dizemos que uma regra do direito é vigente ou válida nos referimos não somente a algo fatual a algo observável mas também a uma vali dade de cunho metafísico Supõese que essa validade seja um puro conceito da razão de origem divina ou existente a priori independente da experiência na natureza racional do ser humano E eminentes auto res da filosofia do direito que rejeitam tal metafísica espiritual têm con siderado todavia que a validade do direito só pode ser explicada por meio de postulados específicos 31 Ou seja pelo juiz e outras autoridades da justiça que aplicam o direito parágrafo 8 42 Alf Ross Vista sob essa luz nossa conclusão preliminar estou confiante não será classificada de lugar comum Essa análise de um modelo simples é deliberadamente direcionada no sentido de suscitar dúvi das no que tange à necessidade de explicações metafísicas com res peito ao conceito do direito A quem ocorreria buscar a validade das normas do xadrez numa validade a priori numa idéia pura do xadrez concedida ao ser humano por Deus ou deduzida pela razão humana eterna Tal pensamento é ridículo porque não tomamos o xadrez tão a sério como o direito e assim é porque há emoções mais fortes vinculadas aos conceitos jurídicos Mas isto não constitui razão para crer que a análise lógica deva adotar uma postura fundamentalmente diferente em um e outro caso Está claro que para lograr uma análise satisfatória do conceito de direito vigente é preciso ainda resolver muitos problemas Mas não há necessidade de aprofundar esta matéria neste ponto Esse estudo preliminar é suficiente a título de base para um exame dos vários ramos do estudo do direito e para determinar o lugar apropriado da filosofia do direito 4 OS RAMOS DO ESTUDO DO DIREITO A distinção levada a cabo no parágrafo anterior entre os fenôme nos jurídicos ou melhor o direito em ação e as normas jurídicas forma a base para uma distinção correspondente entre os dois princi pais ramos do estudo do direito Chamase de sociologia do direitc2 o ramo que se ocupa do direito em ação enquanto chamase de ciên cia do direito o ramo que se ocupa das normas jurídicas O direito em ação e as normas do direito não são duas esferas de existência independentes mas aspectos diferentes de uma mesma realidade Conseqüentemente podese falar de dois pontos de vista cada um deles pressupondo o outro A ciência do direito dirige sua atenção ao conteúdo ideal abstrato das diretivas ignorando as realidades do direito em ação A ciência do direito visa a à descoberta do conteúdo ideal que poderíamos tam bém chamar de ideologia que funciona como o esquema interpretativo para o direito em ação e b à exposição dessa ideologia como um 32 Esta expressão é aqui empregada visando a abarcar também os estudos psicológicos e históricos do direito em ação Direito e Justiça 43 sistema integrado Visto que a ciência do direito se ocupa de normas se pode denominála normativa Mas é mister que este termo não dê margem à confusão Como foi delineado no parágrafo 2 as proposi ções cognoscitivas não podem naturalmente consistir em normas diretivas É necessário que consistam em asserções asserções refe rentes a normas o que por sua vez significa asserções que enunciam que certas normas detêm a natureza de direito vigente O caráter normativo da ciência do direito significa portanto que se trata de uma doutrina que diz respeito a normas e não uma doutrina composta de normas Não objetiva postular ou expressar normas mas sim esta belecer o caráter de direito vigente dessas normas A ciência do direi to é normativa no sentido de que é descritiva de normas e não no sentido de expressiva de normas parágrafo 2 nota 29 E contudo a ciência do direito jamais poderá ser separada da sociologia do direito Embora a ciência do direito esteja interessada na ideologia é sempre uma abstração da realidade social Mesmo que o jurista não esteja interessado no nexo que liga a doutrina à vida real esse nexo existe Reside no conceito de direito vigente que como foi mostrado constitui parte essencial de todas as propo sições doutrinárias pois esse conceito em consonância com nossa análise provisional se refere à efetividade das normas enquanto cons tituintes de um fato social Ademais uma ciência do direito que ignora a função social do direito tem que resultar insatisfatória quando julgada segundo o cri tério do interesse em predizer as decisões jurídicas Como vimos o conhecimento das normas primárias do xadrez só possibilitará a pre dição do curso de uma partida dentro de um quadro muito amplo É o que ocorre porque os jogadores não são exclusivamente motivados pelas normas do xadrez a saber também são motivados por seu propósito ao jogar e as proposições teóricas do xadrez no tocante às conseqüências dos movimentos de acordo com as regras do jogo O mesmo ocorre no direito O juiz não é motivado exclusivamente pelas normas jurídicas também o é pelos fins sociais e pelo discernimento teórico das conexões sociais relevantes ao atingir daqueles fins Por esta razão temse exigido da ciência do direito em especial modernamente que dirija sua atenção para as realidades da vida social Isto demonstra ademais que a fronteira entre a ciência do direito e a sociologia do direito não é nítida residindo sim numa rela tiva diferença de abordagem e interesse 44 Atf Ross A sociologia do direito por sua vez dirige sua atenção para o direito concreto em ação para o comportamento jurídico e as idéias jurídicas que operam nesse comportamento e não pode ser separa da da ciência do direito tanto quanto esta não pode ser separada dela a sociologia do direito Os fenômenos sociais que constituem o objeto da sociologia do direito não adquirem seu caráter jurídico específico enquanto não são postos em relação com as normas do direito vigente A sociologia do direito como ramo científico é todavia tão nova e pouco desenvolvida que é difícil assinalar quais os problemas que lhe concernem Falando em termos gerais procura ela descobrir correlações invariáveis no direito em ação enfocando o problema sob o ângulo da psicologia da história e da sociologia geral As normas jurídicas só podem indicar uma estrutura na qual se desen volve o direito em ação influenciado também pelos costumes fato res econômicos e ideológicos fins sociais e percepções extraídas da teoria social Quando se trata do direito em ação na vida real é possível que um conjunto de normas jurídicas por exemplo o que contém nor mas que regulam o divórcio seja desenvolvido das maneiras mais variadas talvez fosse mais adequado dizer que poderseia jogar com essas normas de maneiras diferentes Quem conheça somen te as normas pouco conhece da realidade social correspondente Na prática quais bases para o divórcio são invocadas nos diversos seto res da sociedade Que possibilidades existem de escapar às leis mediante o forjar de provas e que costumes têm sido desenvolvidos em conexão com isso Com que favorecimento ou desfavorecimento os tribunais consideram as várias bases para o divórcio particular mente quando apreciam a prova Questões desta natureza tocan tes à viva e concreta realidade jurídica social são consideradas e tratadas na sociologia do direito Um campo de investigação que tem particular interesse para o estudo da sociologia do direito é a interação entre direito e socieda de O que produz o respeito pelo direito o qual permite ao legisla dor guiar a vida da comunidade Que outros fatores entram em jogo e estabelecem um limite para o poder do legislador Quais reações é possível presumir que serão provocadas pela aprovação Direito e Justiça 45 de uma determinada lei E inversamente quais forças sociais de terminam o conteúdo e o desenvolvimento de um ordenamento ju rídico Que papel desempenham aqui as circunstâncias econômicas e as posturas éticojurídicas dominantes É o desenvolvimento do direito o produto de forças cegas ou desempenham o planejamento e o discernimento racional um papel nesse desenvolvimento Os dois ramos principais do estudo do djreito a ciência do direito e a sociologia do direito podem ser subdivididos a primeira em ciência do direito no sentido mais estrito história do direito e direito comparada a segunda em sociologia fundamental do direito e socio logia do direito aplicada 41 Ciência do Direito A A ciência do direito no sentido mais estrito ocupase de um sistema de direito definido numa sociedade definida por exemplo o direito de Illinois vigente na atualidade Tradicionalmente é por sua vez subdividida em muitos ramos de estudo como será mostrado no capítulo VIII B A história do direito descreve um direito vigente no passado e trata de seu desenvolvimento histórico Difere da ciência do direito presente por dois modos adicionais I o O momento presente é mais do que um mero ponto temporal disposto ao lado de todos os outros pontos no tempo Distinguese de todos os outros pelo fato de ser o ponto no tempo no qual o curso da realidade chegou e está na iminência de adentrar o futuro O direito é apreendido nesta progressão Qualquer exposição do direito vigente confinada a uma determinada data é um instantâneo snapshot que captou um corte transversal dessa corrente Mas um corte transver sal do agora é caracterizado pelas questões que estão abertas ao futuro A questão de determinar qual é o direito de hoje o que vere mos logo na seqüência no parágrafo 9 envolve sempre a questão de saber o que ocorrerá amanhã Um fator codeterminante para este cálculo de predição é o que ocorreu ontem O direito vigente jamais é um fato histórico mas sim um cálculo com o olhar no futuro Isto confere às proposições do estudo do direito de hoje um elemento fundamental de incerteza e resulta na medida em que a certeza do 46 Alf Ross cálculo diminui numa fusão peculiar dos problemas do direito vigente com os problemas políticojurídicos33 relativamente à criação do direi to novo parágrafo 9 A história do direito não apresenta caracterís ticas semelhantes Aqueles problemas que vistos com os olhos do passado estavam abertos se acham hoje fechados A história do di reito portanto se ocupa exclusivamente com os fatos 2o Se por um lado a história do direito carece de contato com a política jurídica por outro mantém contato mais estreito com a socio logia do direito34 Não só objetiva apresentar o direito num determi nado momento como também descrever e explicar seu desenvolvi mento Estuda o desenvolvimento do direito em relação ao desenvol vimento de outros fenômenos sociais C O direito comparado como a história do direito tem também um raio de ação mais amplo não se limitando a apresentar o direito vigente em diferentes países Pode ter seja caráter contemporâneo seja caráter histórico Pertence à primeira categoria quando investiga os efeitos sociais de diversos ordenamentos jurídicos sendo neste caso um instrumento de política jurídica Pertence à segunda catego ria quando investiga as circunstâncias sociais capazes de explicar porque o direito se desenvolveu segundo diferentes linhas em dife rentes sociedades Ambos os tipos de direito comparado apresentam marcantes elementos sociológicos visto incorporarem no estudo a relação entre o direito e a sociedade É evidente que a sociologia desempenha um papel tão importante tanto na história do direito quanto na ciência comparada do direito a ponto de tornar quase uma questão de preferência pessoal classificar essas duas subdivisões como parte da ciência do direito ou da socio logia do direito 42 Sociologia do Direito A A sociologia fundamental do direito admite várias divisões uma parte geral e muitos ramos especializados 33 0 significado desta expressão é explicado na seqüência 34 A aparente falta de clareza que parece resultar do fato de se sustentar como se sustenta mais adiante que a política jurídica é sociologia do direito aplicada desvanece quando se acrescenta que a sociologia que interessa ao político jurídico e assim ao professor de direito se ocupa dos problemas dos efeitos sociais do direito enquanto a sociologia que interessa ao historiador do direito se ocupa dos fatores sociais que exercem influência sobre a evolução do direito Direito e Justiça 47 I o A parte geral se ocupa das características gerais do direito em ação sua estrutura e dinâmica sem referência a qualquer ramo parti cular do direito A investigação pode ser dirigida seja a um certo tipo de comunidade por exemplo a moderna comunidade democrática com vista ao estudo dos traços típicos da estrutura e função do direito em ação nesse meio em particular a mecânica da motivação jurídica e a interação entre o direito e outras forças sociais sociologia estática do direito seja ao desenvolvimento histórico com vista à descoberta dos princípios gerais que regem as relações entre o direito e o desenvolvi mento da comunidade sociologia dinâmica do direito 2o Os vários ramos especializados correspondem às esferas espe ciais do direito A criminologia a qual estuda o comportamento crimi noso associado aos fatores individuais e sociais que o condicionam corresponde ao direito penal a ciência política a qual estuda a vida política particularmente as ideologias e instituições políticas corresponde ao direito constitucional as relações internacionais correspondem ao direito internacional e a ciência da administração ao direito administra tivo Até os dias de hoje nenhum outro ramo especial da sociologia do direito apareceu mas se afiguraria inteiramente possível imaginar ou tros correspondentes ao direito que regulamenta a propriedade35 o direito das pessoas o direito da família etc B A sociologia do direito aplicada como as ciências naturais apli cadas cobre um campo de estudo selecionado e organizado em con formidade com os problemas práticos A ciência da agricultura por exemplo se ocupa das circunstâncias e problemas práticos que são relevantes à exploração do campo Identicamente a sociologia do direito aplicada se ocupa de fatos e relações que têm importância em referência aos problemas práticos da legislação Ao se preparar uma certa reforma legislativa a sociologia do direito aplicada descreve as condições predominantes na sociedade e analisa as mudanças que a nova legislação pode produzir O resultado de tais estudos constitui valiosa orientação para o legislador ou para a pessoa que lida com os problemas do ponto de vista do legislador Os estudos de sociologia do direito não ocorrem muito amiúde de maneira independente mas como parte do trabalho oficial de reforma legislativa relatórios de comissões e documentos análogos 35 Ver por exemplo Karl Renner The Institutions of Private Law and their Social Functions 1949 48 Alf Ross Mesmo quando o conhecimento sociológico jurídico dos efeitos das medidas legislativas sobre a sociedade é valioso para o legislador o informando acerca das conseqüências da escolha entre várias alter nativas sua decisão depende também de seus objetivos imediatos e de sua filosofia social como um todo ou seja das metas e valores últimos que o legislador reconhece como padrões para a vida social e a atividade criadora de direito dele O mesmo é verdadeiro também em relação ao juiz na medida em que direito novo é criado através da prática dos tribunais A expressão política jurídica é introduzida para designar a atividade criadora de direito do legislador ou do juiz e a discussão racio nal dessa atividade Seria supérfluo salientar que a política jurídica nada tem a ver com a política no sentido ordinário desta palavra A questão que se apresenta agora é saber até onde e de que maneira os problemas de política jurídica podem ser discutidos e so lucionados racionalmente Há uma ciência da política jurídica uma ciência do direito de tege ferenda et de sententia ferenda capaz de postular uma verdadeira filosofia dos valores que devem presidir a legislação A aspiração da filosofia do direito natural é com efeito estabelecer tal ciência do direito como deve ser A segunda metade deste livro capítulos X a XVIII responde essa pergunta na forma negativa Não há nenhuma ciência específica da política jurídica ou do direito natural Na medida em que a política jurídica é determina da por um conhecimento racional é ela sociologia do direito aplicada De resto é baseada em valorações que se encontram fora do âmbito do conhecimento racional parágrafos 73 e 79 5 EM LUGAR DE FILOSOFIA DO DIREITO PROBLEMAS JUSFILOSÓFICOS No parágrafo 1 descrevemos os três enfoques tradicionais da filo sofia do direito analítico ético e históricosociológico mas deixa mos em aberto o problema de como deve ser definido esse ramo do estudo do direito Dissemos que esse problema só pode ser solucio nado com base num exame geral das diversas abordagens mediante as quais poderia tentarse um estudo do direito Esse exame acabou de ser realizado no parágrafo precedente O resultado entretanto parece ser negativo na medida em que nenhum dos ramos do estudo do direito ali mencionados parece possuir aquele caráter filosófico Direito e Justiça 49 que o autorizaria a receber o nome de filosofia do direito no senti do mais amplo ou jurisprudence nos países de língua inglesa É verdade que o que se denomina jurisprudence históricosocio lógica se enquadra na sociologia do direito tal como definida no pa rágrafo 4 Mas esse ramo a sociologia do direito quando desenvol vido como uma ciência empírica carrega tão claramente a marca de uma ciência especializada entre outras que seria injustificável elevá lo sob o nome de jurisprudence ao nível de um estudo filosófico A denominada filosofia do direito natural ou filosofia jusnaturalista não consta no exame do parágrafo 4 o que se deve ao fato de que o que será ventilado nos capítulos XI a XIII o que atende por essa designação não passa de especulação metafísica sem justificação científica Dos ramos tradicionais da filosofia do direito portanto resta apenas o ramo analítico Este ramo do estudo do direito parece realmente possuir um caráter verdadeiramente filosófico e merecer o nome de filosofia do direito ou jurisprudence Mas este tampouco figura entre as diferentes abordagens esboçadas no parágrafo 4 Como explicálo Para suprir essa explicação é necessário formular algumas consi derações gerais acerca da relação entre a filosofia e as ciências A moderna filosofia baseada numa perspectiva empírica a que subs crevo adota o ponto de vista geral segundo o qual a filosofia carece de objeto específico seja coordenado àquele das várias ciências seja distinto dele Filosofia não é dedução a partir de princípios de razão por meio de que se nos revela uma realidade superior àquela dos sentidos Tampouco é a filosofia uma extensão das ciências destinada a descobrir os componentes extremos da realidade Não é de modo algum teoria mas sim método e este método é análise lógica A filosofia é a lógica da ciência e seu objeto é a linguagem da ciência Disso se infere que a filosofia do direito não possui objeto especí fico coordenado ao objeto da ciência do direito o estudo do direito ou distinto desse objeto nas suas várias ramificações A relação da filosofia do direito com a ciência do direito é reflexa a filosofia do direito volta sua atenção para o aparato lógico da ciência do direito em particular para o aparato dos conceitos visando a tornálo obje to de uma análise lógica mais minuciosa do que aquela que lhe é dedicada pelos vários estudos jurídicos especializados O filósofo do 50 Alf Ross direito investiga problemas que com freqüência constituem premis sas tidas como pacíficas pelo jurista Seu objeto é predominante mente os conceitos fundamentais de alcance geral tais como por exemplo o conceito de direito vigente que por essa razão não é designado como tarefa particular a quaisquer dos muitos especialis tas dentro do amplo domínio do direito O objeto da filosofia do direito não é o direito nem qualquer parte ou aspecto deste mas sim a ciência do direito A filosofia do direito se acha por assim dizer um andar acima da ciência do direito e a olha de cima36 Os limites entre a ciência do direito e a filosofia do direito não são rígidos A análise lógica realmente ocorre também latamente no âmbi to do estudo tradicional do direito Inexistem critérios internos que determinem onde finda a ciência do direito e começa a filosofia do direito Podese apresentar uma delimitação do domínio desta última considerandose o que a primeira obteve Esta circunstância explica de que forma a corrente filosofia do direito Jurisprudence inglesa abran ge uma série de conceitos e problemas tais como por exemplo dolus dous eventuafís culpa intenção o propósito da punição e as teorias penal da propriedade da posse do contrato da prova do ônus da prova etc conceitos e problemas que na tradição norteamericana e na da Europa continental formam ordinariamente parte das diversas disciplinas jurídicas Encontrase a explicação no escasso desenvolvi mento na doutrina inglesa de qualquer análise e elaboração de concei tos jurídicos Por conseguinte na Inglaterra a filosofia do direito lá chamada de jurisprudence chegou a ser o sítio onde quase todas as investigações fundamentais se reúnem Em outros sistemas não seria razoável atribuir um domínio tão amplo à filosofia do direito pois isto conduziria a repetições Portanto só incluirei em minha exposição so bre a filosofia do direito os problemas que não são examinados na literatura jurídica corrente ou que o são de forma insatisfatória Este fator relativo explica também porque não é conveniente falar de filosofia do direito já que esta expressão sugere um domínio de inves tigação sistematicamente restrito Daí minha preferência pela expressão 36 As proposições contidas nesta parte do texto concernentes à filosofia do direito situamse num nível ainda mais alto A proposição contida na primeira frase desta nota referente às proposições que concernem à filosofia do direito situase por sua vez num nível mais alto ainda de sorte que poderíamos seguir ad infinitum k idéia por vezes sustentada de que a série pode ser concluída por uma proposição que se refere a si mesma é insustentável Direito e Justiça 51 problemas jusfilosóficos Os interesses de cada estudioso em parte e em parte o desenvolvimento dos estudos jurídicos num dado tempo determinarão quais problemas serão submetidos à análise filosófica A análise jusfilosófica pode dirigir sua atenção a ambos os ramos do estudo do direito a ciência do direito e a sociologia do direito Como contudo o aparato lógico da sociologia do direito é principal mente idêntico ao empregado em outras sociologias e na história pareceria razoável circunscrever os problemas especificamente jusfilosóficos à consideração da ciência do direito Esta conclusão inclusive é apoiada por fundamentos pedagógicos já que uma aná lise filosófica da sociologia do direito careceria de valor como parte da educação jurídica tradicional Dentro da sociologia do direito todavia a sociologia do direito aplicada detém uma posição especial devido à sua estreita ligação com a política jurídica parágrafo 4 in fine A discussão dos problemas de política jurídica desempenha um papel importante e crescente nos trabalhos dos autores da área e no ensino das faculdades de direito Por esta razão a análise lógica será tam bém dirigida ao pensamento políticojurídico e à sociologia aplicada como parte dele Em consonância com isso a exposição que se segue se enquadra rá em duas seções principais problemas jusfilosóficos na sua relação com a ciência do direito capítulos II a IX e problemas jusfilosóficos na sua relação com a política jurídica capítulos X a XVIII 6 DISCUSSÃO Penso que a relação entre minha interpretação da natureza e tare fa da filosofia do direito por um lado e os pontos de vista tradicionais por outro ficou suficientemente clara mediante o exposto nos pará grafos anteriores Diante disto limitarmeei aqui a traçar algumas observações suplementares Se descartei a filosofia do direito natural como falta de justificação científica não faço decerto objeções aos estudos históricosociológi cos desde que efetuados de acordo com princípios empíricos e não sejam especulação metafísica disfarçada A interpretação histórico sociológica da filosofia do direito foi rejeitada com o fundamento sistemático de que os estudos desse tipo possuem todos os traços 52 Alf Ross característicos de uma ciência especializada e portanto não devem ser mesclados ao enfoque analítico e considerados pertinentes à filo sofia do direito Isto entretanto não significa negar a importância das investigações sociológicas para a filosofia do direito concebida como análise de conceitos jurídicos Estas são importantes e é impe rioso que sejam se se presume como eu o faço que todas as propo sições acerca do direito se referem em última análise a uma realida de social O fundamento da filosofia do direito tem que ser uma pers pectiva sociológica Julius Stone oferece uma definição eclética da tarefa da filosofia do direito a qual inclui problemas lógicoanalíticos problemas éticos e problemas sociológicos37 Seu princípio norteador é que a filosofia do direito estuda o direito à luz da lógica da ética e da sociologia O princípio em si não é claro e se traduz num agregado de materiais heterogêneos sem coesão orgânica Stone escreveu um livro colossal despendendo tremenda laboriosidade e prodigiosa erudição porém não produziu nenhuma teoria coerente 37 The Province and Functions of Law 1946 cap I parágrafos 11 a 13 Definições ecléticas semelhantes podem ser encontradas nas obras de muitos autores ingleses e norteamericanos tais como Vinogradoff Pound Keeton Kocourek Hohfeld Wigmore Timasheff às vezes como em Stone camufladas por um esquema de classificação pretensamente racional Ver Stone op cit cap I parágrafos 8 e 9 Josef L Kunz Zur Problematik der Rechtsphilosophie um die Mitte des zwanzigsten Jahrhunderts Õster Z f õftfí n s IV 1951 1 etseq afirma que todas as três tendências são ramos de igual status da mesma ciência filosofia do direito ou jurisprudence Capítulo II O conceito de Direito Vigente 7 0 CONTEÚDO DO ORDENAMENTO JURÍDICO No capítulo anterior tomando como base uma análise do jogo de xadrez e suas regras formulei uma hipótese de trabalho segundo a qual tem que ser possível definir e explicar o conceito de direito vigente em princípio da mesma forma que o conceito de norma vigente do xadrez A tarefa a ser empreendida agora é tentar de senvolver essa hipótese transformandoa numa teoria da significação da expressão direito vigente A hipótese de trabalho infere que as normas jurídicas como as normas do xadrez servem como um esquema interpretativo para um conjunto correspondente de atos sociais o direito em ação de tal modo que se torna possível compreender essas ações como um todo coerente de significado e motivação e predizêlas dentro de certos limites Esta capacidade do sistema se funda no fato de que as normas são efetivamente acatadas porque sentidas como social mente obrigatórias A elaboração dessa hipótese requer a resposta a duas questões I a Como o corpo individual de normas identificado como um ordenamento jurídico nacional se distingue do ponto de vista de seu conteúdo de outros corpos individuais de normas tais como as nor mas do xadrez do bridge ou da cortesia 54 Alf Ross 2a Se a validade de um sistema de normas lato sensu significa que o sistema devido à sua efetividade pode servir como um esque ma interpretativo como aplicar esse critério ao direito A primeira questão será discutida neste parágrafo a segunda nos parágrafos 8 a 10 Consideremos mais uma vez por um momento o jogo de xadrez Não faz sentido obviamente querer definir as regras do xadrez distin guindoas por exemplo das regras do tênis do futebol ou do bridge As regras do xadrez é a designação de um conjunto individual de normas que constituem um todo coerente e significativo Do mesmo modo que John Smith é o nome de um indivíduo que não pode ser definido mas pode ser destacado regras do xadrez é o nome de um conjunto indivi dual de normas que não são definidas mas são destacadas estas são as regras do xadrez Na prática não há dificuldade em manter as regras do xadrez distintas das regras do tênis do futebol do bridge ou quaisquer outras normas sociais O problema da definição só surgirá se tivéssemos que classificar as regras do xadrez juntamente com as regras do futebol e as regras do bridge sob o título único de regras de jogos Teríamos então que indagar que característica em qualquer sistema individual de normas é decisiva para determinar se o incluímos ou não sob esse título Esse problema de definição não surgirá se quisermos apenas expor as regras do xadrez Para fazermos isto não é necessário conhecer coisa alguma acerca do que há de comum entre as regras do xadrez e outros sistemas individuais de regras que poderiam ser classificados conjunta mente sob o título regras de jogos Ocorre precisamente o mesmo no direito Direito dinamarquês é o nome de um conjunto individual de normas que constituem um todo coerente significativo e que portanto não comportam definição mas podem ser destacadas Direito dinamarquês direito norueguês di reito sueco etc correspondem aos vários conjuntos individuais de regras dos jogos O problema da definição só surgirá se tivéssemos que classificar esses vários sistemas individuais associativamente sob o título direito ou ordenamento jurídico Mas também é verdade aqui que esse problema da definição não surgirá se desejarmos somente expor o direito dinamarquês vigente Para isso não é necessário conhe cer coisa alguma do que esse sistema de normas tem em comum com outros sistemas de normas passíveis de ser classificados associativamente sob o título direito ou ordenamento jurídico Direito e Justiça 55 Visto que pretendemos restringir a filosofia do direito ao estudo de conceitos que estão pressupostos na ciência dogmática do direito o problema de uma definição de direito ordenamento jurídico é es tranho à filosofia do direito Jamais compreendeuse isso Acreditouse que para definir a esfera de trabalho do jurista era necessário produzir uma definição do direito que o distinguisse de outros tipos de normas sociais Esse erro foi cometido porque não se entendeu que direito nacional vigente constitui um todo individual O que nele está incluído depende da coerência de significado nele presente O vocábulo direi to não é comum a uma classe de regras de direito mas sim a uma classe de ordenamentos jurídicos individuais A experiência também o confirma pois na prática não é geralmente1 difícil para um jurista de terminar se uma regra do direito faz parte do direito nacional ou se pertence a um sistema distinto de normas por exemplo a outro ordenamento nacional às regras do xadrez ou à moralidade Porém mesmo a questão da definição do direito ordenamento jurídico saindo assim do âmbito da filosofia do direito como foi es boçado aqui a existência de uma tradição a respeito e o desejo de oferecer um quadro geral justificam algumas considerações sobre o assunto No parágrafo 12 retornarei a este ponto novamente Por ora quero apenas antecipar o parecer que é fundamental de que nenhum interesse particular exceto a conveniência se prende à for ma como se define o conceito As intermináveis discussões filosóficas tocantes à natureza do direito se fundam na suposição de que o direito extrai sua validade específica de uma idéia a priori e que a definição do direito é portanto decisiva para determinar se uma dada ordem normativa pode apresentar a reivindicação ao título honorífico do direito Se abandonarmos essas pressuposições metafísicas e as posturas emocionais nelas envolvidas o problema da definição per derá o interesse A função da ciência do direito é expor um certo sistema individual e nacional de normas Existem vários outros siste mas individuais que em maior ou menor grau se lhe assemelham por exemplo outros sistemas nacionais o direito internacional a ordem social de uma comunidade primitiva que não possui organização al guma que a estabeleça ou a preserve a ordem de um bando de criminosos a ordem mantida pelo poder ocupante num país ocupa do etc Todas estas ordens ou sistemas são fatos quer nos agradem Ocasionalmente podem surgir dúvidas Ver parágrafo 10 56 Alf Ross ou não De qualquer modo necessitamos de um termo para descrever esses fatos e tratase puramente de questão terminológica destituída de quaisquer implicações morais se para esse propósito elegemos o termo direito ou qualquer outro termo Não seria conveniente afastar mos o uso do termo direito relativamente aos sistemas que não nos agradam Que a ordem que prevalece numa quadrilha por exemplo seja denominada ordenamento jurídico direito da quadrilha é um problema que considerado cientificamente quer dizer a palavra direi to sendo liberada de sua carga emotivomoral não passa de uma ques tão arbitrária de definição Asseverouse que o sistema de violência de Hitler não era um ordenamento jurídico e o positivismo jurídico foi acusado de traição moral por sua admissão não crítica de que tal ordem era direito2 Contudo uma terminologia descritiva nada tem a ver com aprovação ou condenação moral Embora eu possa classificar uma certa ordem como ordenamento jurídico é possível para mim ao mesmo tempo ter como meu dever moral mais elevado derrubar essa ordem Esta mistura de pontos de vista descritivos e atitudes morais de aprova ção que caracteriza a discussão do conceito de direito é um exemplo daquilo que Stevenson chama de definição persuasiva3 É o bastante para o inútil problema da definição do conceito de direito ou ordenamento jurídico Posso voltar agora à questão de como um ordenamento jurídico individual nacional se distingue em conteúdo de outros corpos individuais de normas Um ordenamento jurídico nacional como as normas do xadrez cons titui um sistema individual determinado por uma coerência interna de significado e nossa tarefa é indicar no que consiste isso Enquanto se trata das regras do xadrez o caso é simples A coerência de significado é dada pelo fato de que todas elas direta ou indiretamente se referem aos movimentos executados pelas pessoas jogando a partida de xadrez Se as regras jurídicas terão analogamente de constituir um sistema terão analogamente que guardar referência com ações definidas realiza das por pessoas definidas Mas que ações são estas e quem são estas pessoas Esta pergunta só pode ser respondida estabelecendose medi ante uma análise das regras comumente tidas como um ordenamento jurídico nacional a quem são dirigidas e qual é o seu significado 2 Gesetzliches Unrecht und iibergesetzliches Recht Anhang 4 in Gustav Radbruch Rechtsphilosophie 4 ed 1950 347 e segs 3 Charles L Stevenson Ethics andLanguage 1944 206 e segs Direito e Justiça 57 As normas jurídicas podem ser divididas de acordo com seu con teúdo imediato em dois grupos normas de conduta e normas de competência Ao primeiro grupo pertencem as normas que prescre vem uma certa linha de ação por exemplo a regra da Lei Uniforme de Instrumentos Negociáveis Uniterm Negotiabie Instruments Act seção 62 que prescreve que aquele que aceita um instrumento ne gociável se obriga a pagar de acordo com o teor de sua aceitação O segundo grupo contém as normas que criam uma competência po der autoridade são diretivas que dispõem que as normas que são criadas em conformidade com um modo estabelecido de procedimen to serão consideradas como normas de conduta Uma norma de com petência é deste modo uma norma de conduta expressa indireta mente As normas da Constituição concernentes à legislatura por exemplo são normas de conduta expressas indiretamente que pres crevem comportamento de acordo com as normas ulteriores de con duta que sejam criadas por via legislativa A quem são dirigidas as normas de conduta O Uniterm Negotiabie InstrumentsAct seção 62 por exemplo prescreve aparentemente como uma pessoa que aceitou uma letra de câmbio deverá se comportar Porém este enunciado não esgota o significado normativo de tal nor ma na verdade não chega sequer a se aproximar do que é realmente relevante A seção 62 é ao mesmo tempo uma diretiva aos tribunais quanto a como num caso que se enquadre nessa regra deverão exer cer sua autoridade É óbvio que é somente isto que interessa ao juris ta Uma medida legislativa que não encerre diretivas para os tribunais só pode ser considerada como um pronunciamento ideológicomoral sem relevância jurídica Inversamente se a medida contiver uma diretiva para os tribunais não haverá necessidade de dar aos indivíduos parti culares instruções adicionais relativas à sua conduta São dois aspectos do mesmo problema A instrução diretiva ao particular está implícita no fato de que ele sabe que reações pode esperar da parte dos tribu nais em dadas condições Se desejar evitar essas reações tal saber o levará a se conduzir da forma que está de acordo As normas do direito penal são redigidas dessa maneira Nada dizem a respeito da proibição aos cidadãos de cometerem homicí dio limitandose a indicar ao juiz qual será a sentença em tal caso Nada impede em princípio que as regras do Negotiabie Instruments Act ou quaisquer outras normas de conduta sejam formuladas do 58 Alf Ross mesmo modo Isto mostra que o conteúdo real de uma norma de conduta é uma diretiva para o juiz enquanto a instrução diretiva ao particular é uma norma jurídica derivada ou norma em sentido figura do deduzida daquela4 As normas de competência são redutíveis a norma de conduta tendo portanto que ser também interpretadas como diretivas aos tribunais A sentença é a base da execução Seja qual for a forma que a sentença possa assumir ela constitui potencialmente o exercício de força física contra uma pessoa que não quer agir de acordo com o teor da sentença Um juiz é uma pessoa qualificada de acordo com as regras que regem a organização dos tribunais e a designação ou eleição dos juizes Deste modo as regras do direito privado dirigidas aos juizes estão integradas às regras do direito público O direito em sua tota lidade determina não só nas regras de conduta em que condições o exercício da força será ordenado como também determina as autoridades públicas os tribunais estabelecidos para ordenar o exercício da força5 O corolário natural disso e que confere ao exercício público da força seu efeito e significado especial é que o direito ao exercício da força física é em todos os aspectos essenciais o monopólio das autoridades públicas Naqueles casos nos quais existe um aparato para o monopólio do exercício da força dizemos que há um Estado Em síntese um ordenamento jurídico nacional é um corpo inte grado de regras que determina as condições sob as quais a força física será exercida contra uma pessoa o ordenamento jurídico nacional estabelece um aparato de autoridades públicas os tribu nais e os órgãos executivos cuja função consiste em ordenar e levar a cabo o exercício da força em casos específicos ou ainda mais sinteticamente um ordenamento jurídico nacional é o con junto de regras para o estabelecimento e funcionamento do apa rato de força do Estado 4 Esta questão volta a ser discutida no parágrafo 11 onde é explicado que as normas jurídicas em sentido figurado também cumprem uma função ideologicamente motivadora independente do receio das sanções 5 Os fatos se revelam um tanto mais complicados porque em alguns casos relativamente raros a força pode ser ordena da diretamente por órgãos administrativos sem a intervenção dos tribunais A VIGÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO O ponto de que partimos é a hipótese de que um sistema de normas será vigente se for capaz de servir como um esquema interpretativo de um conjunto correspondente de ações sociais de tal maneira que se torne possível para nós compreender esse conjun to de ações como um todo coerente de significado e motivação e dentro de certos limites predizêlas Esta capacidade do sistema se baseia no fato das normas serem efetivamente acatadas porque são sentidas como socialmente obrigatórias Ora quais são esses fatos sociais que como fenômenos jurídicos cons tituem a contrapartida das normas jurídicas Têm que ser as ações hu manas regulamentadas pelas normas jurídicas Estas como vimos são em última análise normas que determinam as condições sob as quais a força será exercida por meio do aparato do Estado ou concisamente normas que regulamentam o exercício da força ordenado pelos tribu nais Concluise disso que os fenômenos jurídicos que constituem a contrapartida das normas têm que ser as decisões dos tribunais É aqui que temos que procurar a efetividade que constitui a vigência do direito Em conformidade com isso um ordenamento jurídico nacional considerado como um sistema vigente de normas pode ser definido como o conjunto de normas que efetivamente operam na mente do juiz porque ele as sente como socialmente obrigatórias e por isso as acata O teste da vigência é que nesta hipótese ou seja aceitando o sistema de normas como um esquema interpretativo podemos com preender as ações do juiz as decisões dos tribunais como respostas plenas de sentido a dadas condições e dentro de certos limites po demos predizer essas decisões do mesmo modo que as normas do xadrez nos capacitam a compreender os movimentos dos jogadores como respostas plenas de sentido e predizêlos A ação do juiz é uma resposta a muitas condições determinadas pelas normas jurídicas digamos que se tenha celebrado um contrato de venda que o vendedor não tenha entregado a coisa vendida que o comprador a tenha reclamado oportunamente etc Ademais todos esses fatos condicionantes ganham seu significado específico como atos jurídicos através de uma interpretação feita à luz da ideologia das normas Por esta razão poderiam ser abrangidos pela expressão fenômenos jurídicos no seu sentido mais lato ou direito em ação Direito e Justiça 59 60 Alf Ross Todavia somente os fenômenos jurídicos no sentido mais restrito a aplicação do direito pelos tribunais são decisivos para determinar a vigência das normas jurídicas Contrastando com as idéias geral mente aceitas é mister enfatizar que o direito supre as normas para a conduta dos tribunais e não para aquela dos indivíduos particula res A efetividade que condiciona a vigência das normas só pode portanto ser buscada na aplicação judicial do direito não o podendo no direito em ação entre indivíduos particulares Se por exemplo proíbese o aborto criminoso o verdadeiro teor do direito consistirá numa diretiva ao juiz segundo a qual ele deverá sob certas condi ções impor uma pena por aborto criminoso O fator decisivo que determina que a proibição é direito vigente é tãosomente o fato de ser efetivamente aplicada pelos tribunais nos casos em que trans gressões à lei são descobertas e julgadas6 Não faz diferença se as pessoas acatam a proibição ou com freqüência a ignoram Esta indi ferença se traduz no aparente paradoxo segundo o qual quanto mais é uma regra acatada na vida jurídica extrajudicial mais difícil é veri ficar se essa regra detém vigência já que os tribunais têm uma opor tunidade muito menor de manifestar sua reação7 No que precede as expressões o juiz e os tribunais foram usadas indiscriminadamente Quando nos referimos a um ordenamento jurídico presumese que estamos lidando com um con junto de normas que são supraindividuais no sentido de que são normas particulares da nação variáveis de nação para nação e não de um juiz individual para outro razão pela qual é indiferente refe rirse ao juiz ou aos tribunais Na medida em que o juiz individual é motivado por idéias particulares pessoais estas não podem ser atribuídas ao direito da nação ainda que constituam um fator a ser obrigatoriamente considerado por quem esteja interessado em pre ver uma decisão jurídica concreta 6 0 termo tribunais deve ser aqui entendido como um termo de sentido amplo para designar as autoridades encarrega das da prevenção e punição dos crimes polícia Ministério Público e tribunais Se a policia regularmente se omitir quanto à investigação de certas trangressões ou se os agentes do Ministério Público regularmente se omitirem quanto a formular uma denúncia ou acusação o direito penal perderá seu caráter de direito vigente não obstante sua aplicação ocorra muito intermitentemente nos tribunais 7 Para a aplicação deste ponto de vista ao direito internacional ver Alf Ross Textbook of International Law 19471 parágrafos 24 e 28 IV Direito e Justiça 61 Quando o fundamento da vigência do direito é buscado nas deci sões dos tribunais pode parecer que o encadeamento do raciocinar esteja atuando de forma circular visto que é possível alegar que a qualificação do juiz não é meramente uma qualidade fatual já que deriva necessariamente do direito vigente em particular das regras do direito público que regem a organização dos tribunais e a designa ção dos juizes Antes de poder verificar se uma certa regra do direito privado é direito vigente portanto precisarei estabelecer o que é direito vigente nesses outros aspectos E qual o critério para isso A resposta é que o ordenamento jurídico forma um todo integran do as regras do direito privado às regras do direito público Funda mentalmente a vigência é uma qualidade atribuída ao ordenamento como um todo O teste da vigência está no sistema na sua integrida de utilizado como um esquema interpretativo fazernos compreen der não só a maneira de agir dos juizes mas também que estão agindo na qualidade de juizes Não há ponto de apoio de Arquimedes para a verificação nenhuma parte do direito que seja verificada antes de qualquer outra parte8 O fato de que fundamentalmente o ordenamento jurídico inteiro sofre verificação não exclui a possibilidade de investigar se uma regra individual definida é direito vigente Simplesmente quer dizer que o problema não pode ser solucionado sem referência ao direito vigen te como um todo Estes problemas de verificação mais particulares são discutidos nos parágrafos 9 e 10 O conceito de vigência do direito repousa de acordo com a expli cação apresentada nesta seção em hipóteses que concernem à vida espiritual do juiz Não é possível determinar o que é direito vigente por meio de recursos puramente comportamentais ou seja pela ob servação externa da regularidade nas reações costumes dos juizes Ao longo de um extenso período o juiz pode ter manifestado uma certa reação típica por exemplo pode ter imposto penas por aborto criminoso De súbito essa reação muda porque uma nova lei foi 8 Nada há de peculiar no fato do ordenamento como um todo entrar em jogo para a verificação 0 mesmo princípio é aplicado também no domínio das ciências naturais A verificação de uma lei natural particular tem lugar na pressu posição de que muitas outras são verdadeiras 0 problema consiste em saber se a lei particular é compatível com o sistema até então aceito Mas nada é estabelecido ao abrigo de dúvidas Nada há que impeça que experiências novas nos obriguem a revisar todos os pontos de partida até então aceitos É sempre o todo sistemático em sua plenitude que permanece o critério final na decisão do que deverá ser tido como verdadeiro 62 Alf Ross promulgada A vigência não pode ser determinada recorrendose a um costume mais geral externamente observável nomeadamente o de obedecer o legislador pois não é possível a partir da observa ção externa identificar o legislador que está sendo obedecido A observação puramente externa poderia levar à conclusão de que se obedece às pessoas mencionadas nominalmente que no momento da observação eram membros da legislatura Mas um dia também a composição desta sofrerá mudança Podese prosseguir dessa ma neira ascendendo até a Constituição mas nada há que impeça que um dia a Constituição seja também mudada Nada se obtém pois mediante uma interpretação comportamental O comportamento de mudança do juiz somente pode ser compreen dido e predito mediante interpretação ideológica isto é por meio da hipótese de uma certa ideologia que anima o juiz e motiva suas ações Uma outra forma de expressar o mesmo é dizer que o direito pres supõe não só regularidade com respeito ao comportamento do juiz como também sua experiência de estar submetido às regras O concei to de vigência envolve dois pontos em parte o acatamento regular e externamente observável de um padrão de ação e em parte a experi ência desse padrão de ação como sendo uma norma socialmente obri gatória Nem todo costume externamente observável no jogo de xa drez constitui expressão de uma norma vigente de xadrez Não o é por exemplo o costume de não abrir com um peão ou torre igualmente nem toda regularidade externa e observável nas reações do juiz é a expressão de uma norma vigente do direito Pode ser por exemplo que entre os juizes tenha se desenvolvido o costume de punir unica mente com multas certas transgressões à lei embora o encarceramento também esteja autorizado Cumpre nesta oportunidade acrescentar que os costumes dos juizes exibem um pronunciado pendor para se transformarem em normas obrigatórias e que neste caso um costu me seria interpretado como expressão do direito vigente Mas isso não ocorre enquanto o costume não for mais que um hábito de fato Este aspecto dúplice do conceito de direito vigente explica o dualismo que sempre caracterizou esse conceito na corrente teoria metafísica do direito Segundo esta teoria direito vigente significa tanto um ordenamento efetivo quanto um ordenamento que possui força obrigatória derivada de princípios a priori o direito é ao Direito e Justiça 63 mesmo tempo algo real no mundo dos fatos e algo válido no mundo das idéias parágrafo 13 Não é difícil perceber que esse dualismo no ponto de vista pode acarretar tanto complicações lógicas quanto epistemológicas que encontram expressão em muitas antinomias na teoria do direito9 Tal dualismo conduz coerentemente à afirmação metafísica de que a existência mesma é válida em seu ser íntimo Hegel10 Como a maioria das construções metafísicas a construção relativa à validade imanente do direito positivo repousa sobre uma interpretação incorreta de certas experiências neste caso a experiên cia de que o direito não é meramente um ordenamento fatual um puro hábito mas sim um ordenamento que é experimentado como sendo socialmente obrigatório A concepção tradicional portanto se dela removermos a metafísica pode vir em apoio de meu ponto de vista na medida em que se opõe a uma interpretação puramente comportamental da vigência do direito 9 VERIFICAÇÃO DE PROPOSIÇÕES JURÍDICAS CONCERNENTES A NORMAS DE CONDUTA No parágrafo 2 foi indicada a diferença entre o conteúdo de signi ficado das normas jurídicas elas mesmas e aquele das proposições doutrinárias referentes às normas jurídicas As normas jurídicas são diretivas as proposições doutrinárias são asserções cuja relação com essas diretivas podem ser indicadas como se segue A asserção D é direito vigente no qual por exemplo D a Uniform Negotiabíe Instruments Act seção 62 No parágrafo 7 foi mostrado que um ordenamento jurídico nacio nal constitui um sistema individual de normas cuja unidade pode ser buscada no fato de que direta ou indiretamente todas elas são diretivas concernentes ao exercício da força pela autoridade pública No parágrafo 7 nos ocupamos portanto do D da fórmula acima No parágrafo 8 voltamos nossa atenção à parte da fórmula em que D é caracterizado como direito vigente e mostramos que esta caracterização se referia a uma correspondência entre o sistema de 9 A demonstração destas antinomias é o tema principal de meu livro Towards a Realistic Jurisprudence 11946 10 Ibid p 42 e Alf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 64 Alf Ross normas ao qual pertence D e uma realidade social a saber a aplicação do direito pelos tribunais A correspondência é tal que aplicando o sis tema de normas como um esquéma interpretativo nos capacitamos a compreender as ações dos tribunais como respostas plenas de sentido a dadas condições e dentro de certos limites a predizer essas ações Neste parágrafo e no seguinte investigaremos com maior rigor o método para comprovar se uma norma dada é direito vigente o que é idêntico a comprovar a verdade da asserção doutrinária correspon dente A situação irá variar de algum modo segundo nos ocupemos de normas diretas de conduta ou normas de competência e a inves tigação será dividida conseqüentemente em duas partes Neste pa rágrafo examinaremos as normas diretas de conduta e no próximo as normas de competência Constitui um princípio da moderna ciência empírica que uma pro posição acerca da realidade contrastando com uma proposição ana lítica lógicomatemática necessariamente implica que seguindo um certo procedimento sob certas condições certas experiências diretas resultarão Por exemplo a proposição isto é giz implica que se ob servarmos o objeto sob um microscópio certas qualidades estrutu rais se farão visíveis se eu verter ácido sobre ele o resultado será certas reações químicas se o friccionarmos contra um quadro negro surgirá uma linha e assim por diante Esse procedimento é chamado de procedimento de verificação e dizse que a soma das implicações verificáveis constitui o conteúdo real da proposição Se uma asserção qualquer por exemplo a asserção de que o mundo é governado por urg demônio invisível não envolver qualquer implicação verificável dizse tratarse de uma proposição destituída de significado lógico é desterrada do domínio da ciência como asserção metafísica11 A interpretação da ciência do direito exposta neste livro repousa no postulado de que o princípio da verificação deve se aplicar tam bém a este campo do conhecimento ou seja que a ciência do direito tem que ser reconhecida como uma ciência social empírica Isto sig nifica que não devemos interpretar as proposições acerca do direito 11 Ver por exemplo Victor Kraft Einführungin die Philosophie 1950 68 e segs que apresenta uma boa introdução às idéias fundamentais da moderna filosofia científica No texto acima por uma questão de conveniência utilizei o termo verificação Visto que uma confirmação definitiva da verdadede uma proposição científica não é possível seria mais preciso falar em comprovação testing Direito e Justiça 65 vigente como proposições que aludem a uma validade inobservável ou força obrigatória derivada de princípios ou postulados a priori mas sim como proposições que se referem a fatos sociais É mister evidenciar quais são os procedimentos que permitem verificálas ou quais são as implicações verificáveis delas Nossa interpretação baseada na análise precedente é que o con teúdo real das proposições da ciência do direito se refere às ações dos tribunais sob certas condições O conteúdo real por exemplo da proposição que afirma que a seção 62 do Uniform Negotiabie Instruments Acté direito vigente de Illinois é a asserção de que sob certas condições os tribunais de tal Estado atuarão de acordo com o teor dessa seção Esse teor é uma diretiva ao juiz para que ordene ao sacado pagar a letra que aceitou mas que deixou de pagar no dia do vencimento parágrafo 7 Em conformidade com isso dizse amiúde que uma regra é direito vigente quando é aplicada na prática dos tribunais Mas este é um enunciado grosseiro e vago que requer uma análise mais precisa em diversos aspectos I o Primeiramente não está claro o que quer dizer o uso do tem po presente é aplicada Referese isto a decisões jurídicas passa das a decisões presentes ou a decisões futuras Se alguém indaga qual é o direito vigente hoje em relação a uma determinada matéria o que indubitavelmente deseja saber é como se rão decididos os conflitos presentes se submetidos aos tribunais Neste caso obviamente não interessa saber quais regras até agora os tribunais têm seguido ao elaborar suas decisões a menos que haja razão para crer que continuarão atuando do mesmo modo Inversamente uma re gra pode ser considerada direito vigente a despeito de não ter sido até agora aplicada pelos tribunais por exemplo caso se trate de uma lei recentemente promulgada É considerada vigente se sob algum funda mento além da prática prévia dos tribunais houver razão para supor que a regra será aplicada em qualquer decisão jurídica futura Por conseguinte um enunciado sobre o dirèito vigente da atuali dade não se refere ao passado Por outro lado tampouco parece se referir ao que ainda está por vir Afirmar o que é direito vigente na atualidade não pode implicar na intenção de prever a maneira na qual os tribunais reagirão em vinte anos caso uma ação sobre o ponto de 66 Alf Ross nosso interesse não seja instaurada antes desse tempo O estado do direito poderá ter mudado nesse ínterim E em princípio o mesmo se mostra verdadeiro ainda que a decisão esteja mais próxima Além disso não sabemos se uma futura decisão jurídica sobre o ponto de nosso interesse será tomada algum dia Tais reflexões nos conduzem forçosamente à conclusão de que os enunciados que concernem ao direito vigente da atualidade têm que ser entendidos como enunciados alusivos a decisões futuras hipotéti cas submetidas a certas condições se se instaurar uma ação em relação à qual a regra jurídica particular apresenta relevância e se nesse ínterim não houve nenhuma modificação no estado do direito quer dizer nas circunstâncias que condicionam nossa asserção de que a regra é direito vigente tal regra será aplicada pelos tribunais As condições indicadas determinam ao mesmo tempo o método de verificação Para verificar uma proposição acerca do direito vigen te é preciso satisfazer as condições prescritas e observar a decisão O fato de que eu próprio possivelmente não esteja numa posição para pôr em marcha esse processo carece de relevância O significado de uma asserção está satisfatoriamente definido se ela puder em princí pio ser verificada isto é independentemente de dificuldades técni cas ou obstáculos Por exemplo a proposição de que a face oculta da lua é coberta de florestas detém portanto um significado certo embora não tenhamos sido capazes até agora de observar essa face da lua Acresçase a isto que dispomos de todas as razões para con siderar falsa a proposição visto não ser compatível com muitas hipó teses bem verificadas relativas às condições reinantes na lua É pos sível elaborar uma argumento paralelo com respeito à asserção de que uma medida legislativa que foi derrogada logo após sua aprova ção sem ter sido aplicada foi direito vigente durante o período inter mediário Embora não tenhamos podido verificar a asserção por meio de observação direta com base em muitas outras pressuposições bem verificadas relativas à mentalidade dos juizes dispomos de boas razões para considerar a asserção verdadeira 2o Em segundo lugar requerse uma definição mais exata do que significa a regra ser aplicada pelos tribunais Se tomarmos a seção 62 mencionada anteriormente seu ser aplicada não pode se referir a uma sentença de um determinado teor por exemplo que se ordene ao Direito e Justiça 67 sacado pagar a letra já que é possível que em conformidade com outras regras jurídicas possa ele opor uma contestação sustentável Poderia ocorrer por exemplo que se tratasse de um menor ou que o detentor do documento tivesse cometido algum ato que tenha prejudi cado seus direitos12 A seção 62 obviamente pertence a um todo coe rente de significado associado a várias outras regras jurídicas Conse qüentemente sua aplicação na prática jurídica só pode significar que nas decisões nas quais se supõe existirem os fatos condicionantes de tal regra esta forma parte essencial do raciocinar que funda a senten ça e que portanto a regra em questão constitui um dos fatores decisi vos que determinam a conclusão a que chega o tribunal É possível combinar as definições mais precisas expostas em 1 e 2 na fórmula seguinte o conteúdo real da asserção A seção 62 do Uniform Negotiabie Instruments Act constitui direi to vigente na atualidade num certo Estado é uma predição no sentido de que se ante os tribunais desse Estado se instaura uma ação na qual se afirma a existência dos fatos condicionantes de tal seção 62 e se no ínterim não houve modificações nas circunstâncias que constituem o fundamento de A a diretiva ao juiz contida naquela regra será parte essencial do raciocinar em que se funda a sentença A é considerada como verdadeira se dispomos de boas razões para supor que essa predição será cumprida Mesmo após terem sido ditadas uma ou mais decisões que veri ficam A A continuará sendo em princípio uma predição incerta relativamente a decisões jurídicas do futuro A questão da verdade de A não está ainda resolvida de forma definitiva Suponhamos que At representa a asserção A formulada no tempo t Uma decisão jurídica subseqüente ditada no tempo t certamente verifica A mas não A tl A decisão simplesmente supre apoio adicional à hipótese de que A ainda é isto é agora no tempo tl direito vigente Apesar de tudo que ocorreu e que ocorre o enunciado que alude ao direito do presente sempre mantém referência com o futuro 12 Não são levadas em conta aqui as regras de procedimento que estabelecem a exclusão provisional de certas contes tações num caso tocante a letras de câmbio 68 Alf Ross A verdade de A não pressupõe que estejamos em posição de pre dizer com razoável certeza o resultado de uma futura ação jurídica concreta mesmo se estivermos de posse dos fatos relevantes Em primeiro lugar o resultado dependerá da prova produzida e da avalia ção de que será objeto Como por exemplo as testemunhas se com portarão no tribunal e que impressão terá o juiz de sua confiabilidade A avaliação da prova é em tão grande medida condicionada subjeti vamente que esta razão por si só elimina toda possibilidade de calcu lar antecipadamente com certeza o resultado de casos nos quais há fatos controvertidos13 E ademais a interpretação das regras jurídi cas oferece pontos vitais de incerteza os quais serão examinados no capítulo IV Finalmente as idéias do juiz acerca do que é o direito vigente não constituem o único fator que o motivam Este último ponto é particularmente interessante já que o grau em que o juiz é motivado por outros fatores além dos fatores ideoló gicojurídicos é decisivo para o valor prático da ciência do direito a qual se ocupa da ideologia normativa pela qual o juiz é animado Um conhecimento desta ideologia e sua interpretação nos capacita portanto a calcular antecipadamente com considerável certeza o fun damento jurídico de certas decisões futuras fundamento que apare cerá nos argumentos Mas que relação existe entre os argumentos e a sentença parte dispositiva a qual naturalmente é o que realmen te desejamos predizer No que respeita a essa questão há grande diversidade de opiniões O ponto de vista tradicional não questiona que a sentença parte dispositiva seja o resultado do raciocínio realizado nos argumentos A decisão de acordo com essa opinião é um silogismo Os argumen tos contêm as premissas a sentença parte dispositiva a conclusão Em oposição a este parecer alguns estudiosos de época mais recente 13 Este ponto de vista foi enfaticamente defendido por Jerome Frank ver por exemplo Courts on Trial 11949 que destaca os fatores de inconfiabilidade inerentes às observações e depoimentos da testemunha e resultantes ainda das inclinações pessoais do juiz ao valorar o testemunho A afirmação que se segue é característica desse modo de ver de Frank É provável que as simpatias e antipatias do juiz se revelem ativas relativamente às testemunhas Seu próprio passado pode ter criado nele uma reação favorável ou desfavorável em relação às mulheres ou mulheres louras ou homens com barba ou sulistas ou italianos ou ingleses ou encanadores ou sacerdotes ou bacharéis ou democratas Um certa contração do rosto tosse ou gesto pode suscitar lembranças agradáveis ou desagradáveis Essas lembranças do juiz ao ouvir uma testemunha acometida por tal contração facial tosse ou gesticulação podem afetar a escuta inicial do juiz ou sua recordação posterior do que foi dito pela testemunha ou a importância e credibilidade que o juiz atribuirá ao depoimento da testemunha op cit 1511 Direito e Justiça 69 têm sustentado que o raciocínio feito nos argumentos não passa de uma racionalização da sentença parte dispositiva Com efeito di zem o juiz toma sua decisão em parte guiado por uma intuição emocional e em parte com base em considerações e propósitos práti cos Uma vez estabelecida a conclusão o juiz encontra uma adequa da argumentação ideológica jurídica que justifique sua decisão Usu almente isto não será difícil para ele A variedade das regras a incer teza de sua interpretação e a possibilidade de elaborar construções diversas sobre as matérias em debate geralmente permitirão que o juiz encontre uma roupagem jurídica plausível com que revestir sua decisão A argumentação jurídica encerrada nos considerandos do silogismo não passa de uma fachada que visa a dar suporte à crença na objetividade da decisão14 Não procurarei aqui aquilatar os méritos dessas teorias conflitantes mas simplesmente salientar a relevância por elas detida no tocante à questão do valor prático da ciência do direito Fica claro que se o ponto de vista tradicional é admissível o conhecimento acadêmico do direito vigente e de sua interpretação proporciona o melhor funda mento possível com a exceção das questões da prova para predi zer o resultado das futuras decisões jurídicas Se é possível predizer as premissas jurídicas também é possível predizer a conclusão Se gundo a teoria antagônica o conhecimento da ideologia jurídica é de pouca valia porque não motiva os juizes Aliás duvidase se é de algum modo possível atingir uma autêntica compreensão do que su cede quando um juiz toma uma decisão e granjear conhecimento de como predizer o resultado de disputas legais De uma maneira ou outra esses problemas são propriamente os objetos de estudo de disciplinas que são distintas da ciência do direito 14 Tais pontos de vista têm sido sustentados mormente pelo grupo de juristas norteamericanos conhecidos como realistas do direito e especialmente pelo subgrupo chamado por Frank op cit 73 de céticos da regra em sua contraposição com os céticos dos fatos A título de exemplos que ilustrem esses pontos de vista consul tar os primeiros trabalhos do próprio Frank particularmente Law and the Modem Mindi 19301 100 e segs e What Courts do in Fact III L R 2 6 11932 645 e segs Ver também Felix S Cohen Transcendental Nonsense and the Functional Approach Col L R 35 1935 809 e segs Karl N Llewellyn A Realistic Jurisprudence the Next Step Cot L R 30 19301431 e segs John Dickinson Legal Rules Their Function in the Process of Decision University of Pennsyivania L R 79 1931 833 e segs B N Cardozo em vários escritos expôs uma critica equilibrada dos exageros do realismo ressaltando em particular a diferença entre casos correntes e casos excepcionais Ver Seiected Writings 1947 7 esegs 20160177 212 Na mesma linha ver também o valioso tratado de Lon L Fuller American Legal Realism Proceedings of the American Philosophicai Society 76 1936 191 e segs 70 Alf Ross Se a asserção doutrinária de que uma certa regra é direito dina marquês vigente é de acordo com seu conteúdo uma predição de que a regra será aplicada em decisões jurídicas futuras seguese daí que as asserções dessa natureza jamais poderão pleitear certeza ab soluta podendo apenas ser mantidas com um maior ou menor grau de probabilidade dependente da força dos pontos sobre os quais se apóiam os cálculos a respeito do futuro Essa probabilidade pode ter um valor que varia entre a certeza virtual e a ligeira probabilidade Esta incerteza introduz nas proposições jurídicas um elemento de relatividade que é essencial manter em vista mas que a filosofia do direito tradicional passa por alto ou nega De acordo com o ponto de vista tradicional afirmar que o direito vige ou vale é atribuirlhe uma qualidade irredutível derivada de prin cípios a priori ou postulada como um prérequisito do conhecimento jurídico A validade de uma norma particular é derivada da norma superior de acordo com a qual foi criada em última instância do direito natural ou de uma hipótese inicial pressuposta ou norma bási ca parágrafo 13 Com tais premissas obviamente o conceito de validade tem que ser absoluto uma regra jurídica vale ou não vale Pareceria que os escritos jurídicos continuam predominantemente baseados em tais pressuposições Em verdade a asserção de que uma regra é direito vigente é altamente relativa Podese também dizer que uma regra pode ser direito vigente num maior ou menor grau o qual varia com o grau de probabilidade mediante o qual pode mos predizer que será aplicada Este grau de probabilidade depende do material de experiência sobre o qual é edificada a predição fontes do direito A probabilidade é elevada e a regra detém um correspon dente elevado grau de vigência se a predição se baseia numa doutri na bem estabelecida apoiada numa série ininterrupta de precedentes incontroversos ou se se baseia numa injunção legislativa cuja inter pretação foi estabelecida numa prática extensa e coerente Por outro lado a probabilidade é baixa e a regra detém um correspondente baixo grau de vigência se a predição de baseia num precedente único e dúbio ou mesmo em princípios ou razão Entre estes dois extre mos se estende uma escala de variações intermediárias Conseqüente mente é enganoso tratar as várias fontes do direito como se possuís sem o mesmo status Qualquer exame honesto do problema exige uma classificação gradativa que distinga as áreas nas quais podemos Direito e Justiça 71 com grande probabilidade expressar uma opinião acerca do que é direito vigente daquelas nas quais nossos pontos de vista não vão além da mera conjectura A análise precedente teve por meta a interpretação do conteúdo real das proposições detentoras do caráter de asserções de que uma certa regra é direito vigente Um outro problema é determinar em que medida a ciência do direito tal como se apresenta nas exposições correntes dos ordenamentos jurídicos nacionais consiste realmente em asserções desse tipo É o problema de determinar em que medida a ciência do direito é conhecimento do direito vigente no sentido definido na análise precedente Não resta dúvida que a intenção dos autores de direito é enunciar o direito tal como ele é como um fato Mas apenas uns poucos autores se restringem a isso Em casos nos quais o estado do direito não é determinado com um alto grau de certeza estando ainda aberto a novos desdobramentos no futuro a maioria dos juristas não se contentará em calcular quais resultados se afiguram como os mais prováveis tratando sim de exercer influência nos resultados influenciando o juiz Apelando para a consciência jurídica e conside rações práticas os autores tentam estabelecer uma certa interpre tação do direito na esperança de que seus pronunciamentos influ enciarão as decisões jurídicas futuras Nesta medida conseqüente mente suas expressões não são asserções mas diretivas parágra fo 2 que assumem a forma de conselhos solicitações recomenda ções ao juiz quanto a como deve ele decidir o caso em pauta São diretivas de sententia ferenda Assim o conteúdo típico dos trabalhos doutrinários pode ser ca talogado como se segue I o asserções cognoscitivas referentes ao direito vigente dota das de um maior ou menor grau de probabilidade 2o diretivas nãocognoscitivas 3o asserções cognoscitivas referentes a fatos históricos econô micos e sociais e a circunstâncias que atuam como argumentos para 1 ou para 2 72 Alf Ross O papel relativo de 1 3 e 2 3 respectivamente isto é do conteúdo cognoscitivojurídico e políticojurídico da doutrina variará de acordo com o propósito prático da exposição e de acordo com a personalidade do autor Minha impressão é que ao menos nos países escandinavos a maioria dos juristas consideram o aspecto político da doutrina as diretivas de sententia ferenda que não devem ser con fundidas com diretivas de iege ferenda como a parte mais essencial de seus trabalhos Seu interesse principal tem cunho prático não teórico Consideramse mais políticos no sentido mais lato do que teóricos embora seja naturalmente verdadeiro que sua política se funda em observações científicas representadas na categoria 3 do catalogado acima Nos parágrafos 73 e 79 tratarei do debate programático sobre se a doutrina deve absterse de emitir diretivas ou se de todas as manei ras deve dar conta de suas valorações práticas e dos pressupostos que lhes subjazem Aqui contudo tratarei da dificuldade de traçar uma linha fronteiriça nítida entre pronunciamentos que pertencem à esfera da teoria jurídica e à esfera da política jurídica Essa dificulda de é oriunda de uma peculiaridade que caracteriza todas as ciências sociais na sua diferença das ciências naturais Se um astrônomo prevê um eclipse do sol esta previsão não exer ce qualquer influência nos eventos astronômicos aos quais a previsão se refere Não há conexão causai entre os fenômenos mentais que constituem a previsão e a crença em sua verdade e os movimentos do sol e da lua A previsão é verdadeira ou falsa na dependência do eclipse ocorrer ou não Em 1950 foi previsto que os comunistas marchariam contra Berlim ocidental em junho É possível que essa previsão fosse verdadeira no sentido de que uma marcha desse tipo fora decidida Poderseia supor razoavelmente que a marcha teria ocorrido não tivesse sua própria previsão provocado contramedidas por parte das potências ocidentais cujo resultado foi que a previsão que era efetivamen te verdadeira se tornasse a si mesma falsa Ao contrário é possível imaginar que um economista preveja um aumento nos preços em circunstâncias que não garantam essa pressuposição e que a previ são portanto tenha que ser classificada como falsa Mas a mera proclamação de uma previsão desse gênero poderia produzir o Direito e Justiça 73 aumento dos preços visto que os consumidores tratariam de se pre caver contra uma tal contingência transformando assim a previsão falsa em previsão verdadeira15 É evidente que essas circunstâncias peculiares se originam do fato de que a previsão sua proclamação e o crédito a ela atribuído por outras pessoas constituem em si mesmos uma parte da entidade social à qual a previsão se refere A vida da comunidade não pode ser estudada com a mesma objetividade com a qual se estuda os movi mentos dos planetas ou uma paisagem sob vista aérea Isso significa que a história o curso da vida social é em princí pio indeterminada No máximo é apenas possível prever tendências prováveis Mas toda previsão de uma tendência é ao mesmo tempo um fator que se presta ele mesmo ou a fomentar essa tendência ou a oporse a ela sendo assim um fator político o que significa por sua vez que nas ciências sociais é fundamentalmente impossível estabe lecer uma nítida distinção entre a teoria e a intervenção política16 Portanto não é possível traçar uma nítida linha divisória entre os enunciados cognoscitivos concernentes ao direito vigente e a ativida de políticojurídica Em primeiro lugar fica claro que é difícil traçar essa linha divisória inclusive no tocante à intenção de quem formula o enunciado Nos problemas jurídicos onde é possível dispondo apenas de um baixo grau de probabilidade prever a reação dos tribunais o autor de direi to pode adotar uma ou outra das posturas a seguir Ou se identifica com os tribunais na tentativa de conjeturar as valorações que pos sam ser orientativas dos tribunais e calcular a solução mais provável ou segue suas próprias valorações a fim de descobrir a solução a que ele próprio chegaria se estivesse na posição do juiz No primeiro caso sua atitude é cognoscitiva e seu enunciado teórico ainda que o valor 15 Após escrever isto conheci a obra de R K Merton Social Theory and Social Structure 2 ed 1951 na qual pp 179 e segs são cunhadas as expressões autoconfimadoras selffulfilling e autodestruidoras self destroying se referindo a previsões Ver também Ernst Topitsch Sozialtheorie und Gesellschaftsgestaltung Archiv fiirRechts und Sozialphilosophie XUI 1956 171 e segs 187 16 Sabese sobejamente que na física nuclear não é possível separar com nitidez a observação física da intervenção no observado Mas esta circunstância e suas conseqüências são fundamentalmente distintas das que ocorrem nas ciências sociais Na física nuclear a própria observação influencia seu objeto nas ciências sociais o conhecimento adquirido mediante a observação e a proclamação desse conhecimento produzem o efeito 74 Alf Ross de probabilidade do mesmo seja baixo No segundo caso sua postura é política e seu enunciado é uma diretiva calculada para influenciar o juiz quanto ao que deve ser direito vigente Na prática contudo essa dife rença de postura freqüentemente não será consciente porque o jurista com acerto ou erroneamente identifica suas próprias valorações com as do tribunal Não raro o jurista não tem ciência sequer do caráter condicional e problemático dessas pressuposições não as atribui a si mesmo ou aos tribunais operando com elas como algo a ser tido como pacífico uma atmosfera cultural que circunda igualmente o próprio ju rista e os juizes dos tribunais Nestas circunstâncias o resultado prático será idêntico seja a atitude teórica ou política A interpretação que o jurista aceitará caso se veja forçado a decidir será determinada por seu temperamento Alguns juristas darão prioridade à avaliação política se sentirão intérpretes ou portavozes de uma ideologia e reconhecerão portanto que sua atividade não é cognoscitiva exceto no que tange à investigação dos fatos e circunstâncias que constituem as premissas para sua avaliação No que toca a outros o fator teórico será dominante verão em suas interpretações valorativas o extremo mais questionável do cálculo de o que é direito vigente Na falta de certos indícios eles supõem que sua interpretação valorativa representa a conjetura mais provável quanto à maneira como efetivamente reagirão os tribunais Em segundo lugar e este é o ponto crucial o paradoxo próprio de todas as ciências sociais é imperioso também que consideremos que a despeito de ser a intenção puramente teórica limitandose a prever qual regra mais provavelmente será a aceita pelos tribunais a interpretação todavia tal qual qualquer outra previsão científica so cial é em si mesma um fator políticojurídico Os argumentos que dão respaldo à interpretação hipoteticamente aquela que o tribunal aplicará são passíveis ainda que a hipótese fosse originalmente fal sa de exercer uma influência sobre os tribunais e desse modo transformar a hipótese em verdadeira Conclusão asserções referentes ao direito vigente são de acordo com seu real conteúdo uma previsão de futuros eventos sociais Estes estão fundamentalmente indeterminados e não é possível formular a seu res peito previsões isentas de ambigüidade Toda previsão é ao mesmo tem po um fator real passível de influenciar o curso dos acontecimentos e nessa medida um ato político Conseqüentemente em termos funda mentais a ciência do direito não pode ser separada da política jurídica Direito e Justiça 75 Seria entretanto equivocado interpretar esse enunciado como es cusa metodológica que justificasse toda mescla de cognição e políti ca O ponto decisivo para o bom método jurídico não é tanto ser a interpretação oferecida como parecer subjetivo ou asserção objetiva o que importa é o jurista oferecer suas interpretações com o entendi mento de que não podem ser enunciadas como direito vigente com a mesma certeza de quando estão envolvidas regras firmemente estabelecidas e de que o grau de certeza em muitos casos é tão pequeno que seria mais natural não se falar em direito vigente mas simplesmente em pareceres e sugestões aos juizes O jurista não deve procurar enganar a si mesmo ou aos outros passando por alto que há diferentes graus de certeza Podese objetar que a interpretação precedente do direito vigente subordina a teoria à prática exclui a possibilidade de criticar uma deci são jurídica como equívoca e que portanto contraria as idéias corren tes Em virtude disso essa interpretação não pode se arvorar em ser uma adequada elaboração do conceito de direito vigente com o signi ficado que com efeito lhe é atribuído no pensamento jurídico Essa objeção se funda numa incompreensão As idéias aqui de senvolvidas não impedem que se qualifique uma decisão como equí voca Uma decisão é equívoca isto é está em desacordo com o direi to vigente se depois de tudo considerado inclusive a própria decisão e as críticas que ela pode suscitar se afigurar o mais provável que no futuro os tribunais não acatem essa decisão Em alguns casos é pos sível prever isso com um alto grau de certeza por exemplo se for óbvio ter o tribunal aplicado por erro uma lei derrogada A origem dessa incompreensão está evidentemente no erro criti cado anteriormente neste mesmo parágrafo de considerar que a questão da vigência de uma regra fica resolvida quando foi ditada uma decisão que verifica essa regra O problema do que é o direito vigente jamais se refere à história passada mas sempre ao futuro Em princípio a situação permanece inalterável mesmo quando a decisão equívoca é acompanhada por uma ou mais decisões em idên tico sentido Mas é lógico que quanto mais decisões houver particu larmente se emanam do supremo tribunal do país menos fundamen to haverá para uma asserção segundo a qual é improvável que os tribunais acatem essa linha no futuro 76 Alf Ross Diante de uma prática estabelecida dos tribunais é forçoso que a teoria capitule como é forçoso que capitule no caso de uma nova legislação do direito Os autores que insistem em chamar uma regra de direito vigente não obstante admitam que na prática se obedece equivocamente a uma regra distinta se limitam a proferir palavras vazias17 10 VERIFICAÇÃO DE PROPOSIÇÕES JURÍDICAS CONCERNENTES A NORMAS DE COMPETÊNCIA Normas de competência são normas de conduta indiretamente formuladas Conseqüentemente sua verificação em princípio pode ser explicada nas mesmas linhas que indicamos para as normas de conduta no parágrafo anterior Assim à guisa de exemplo o conteú do real do enunciado que afirma que as regras constitucionais refe rentes ao poder legislativo são direito vigente é uma previsão de que as normas de conduta criadas pela legislação em conformidade com a Constituição serão aplicadas pelos tribunais Esta interpretação contudo só é possível sob certas condições É possível se as normas de competência tiverem como efeito a anulabilidade Isto significa que os tribunais devem aplicar somente as regras de conduta criadas de acordo com as condições estabelecidas nas normas de competência Se essas condições não forem satisfeitas os tribunais colocarão essas normas de lado como nulas Este não é o lugar para discutirmos em que medida as normas de competência pro duzem esse efeito Bastará deixarmos registrado que isso é o que comumente ocorre com as normas que regulam a competência dos indivíduos particulares e da administração enquanto vários ordenamentos jurídicos resolvem a questão diferentemente quando se trata das normas que regulam a competência do poder legislativo Em alguns países os tribunais têm o poder de revisar a validade das leis 17 No tocante a este ponto ver Alf Ross Theorie derRechtsquellen 1929 cap III 3 e4 a respeito da escola exegética francesa de meados do século XIX Em 1934 escreve Ancel Journal of the Society of Comparative legislation feverei ro de 19341 Os autores têm o hábito de dar suas próprias interpretações do direito que por vezes contrariam as soluções dos tribunais mas que eles consideram todavia como a única expressão real do direito francês Em muitos pontos importantes háuma doutrina dos tribunais e uma doutrina dos autores Assim é possível encontrar na França um direito que á impresso nos livros e ensinado nas universidades e que não obstante muito difere e chega até a contrariar o direito que é aplicado pelos tribunais Atualmente os autores não se limitam a enunciar suas opiniões expondo também o parecer da jurisprudência embora ainda assim apresentem prioritariamente as soluções deles como as únicas soluções jurídicas citado de C K Allen Law in the Making 4a ed 1946167168 Direito e Justiça 77 A interpretação também é possível mesmo na ausência de qualquer efeito de anulabilidade se as normas de competência têm como efeito a responsabilidade Isto significa que os tribunais talvez um tribunal especial devem ordenar sanções contra o responsável pelo excesso de competência É o caso que ocorre quando um procedimento espe cial de impeachmentê instituído visando a conferir efetividade à res ponsabilidade de um ministro por violação de regras constitucionais Se entretanto uma norma de competência não tem um ou outro desses efeitos sua interpretação como norma de conduta indireta mente formulada dirigida aos tribunais não é possível Tal pode ser o caso de umas poucas regras constitucionais por exemplo a regra da Constituição dinamarquesa a qual exige que toda lei seja lida três vezes no Parlamento Isto acarreta a conseqüência de que tais regras não podem ser consideradas como direito vigente no sentido que definimos aqui porque de modo algum podem elas ser interpretadas como detentoras de diretivas aos tribunais para o exercício da força Se contudo tais regras imperfeitas são comumente consideradas como integrantes do ordenamento jurídico é porque possuem a mes ma força moralideológica da regras do direito vigente parágrafo 11 A questão é puramente terminológica e de pouca monta 11 DIREITO FORÇA VALIDADE O precedente se baseia no entendimento de que um ordenamento jurídico nacional é um corpo de regras concernentes ao exercício da força física Segundo um ponto de vista largamente difundido a relação entre o direito e a força é definida de outra maneira o direito nesse ponto de vista é constituído por regras que são respaldadas pela força Essa posição está fundada na consideração daquelas normas que no parágrafo 7 são chamadas de normas de conduta derivadas e em sentido figurado tais como por exemplo a seção 62 do Negotiabíe Instruments Act entendido segundo seu conteúdo direto como uma diretiva ao aceitante de uma letra de câmbio Com referência a elas podese razoavelmente dizer que são respaldadas pela força se o aceitante não pagar no dia do vencimento da letra incorrerá no risco de juízo sentença e execução E no entanto essa interpretação das normas do direito é inadmis sível já que se apóia em pressuposições falsas e conduz a conclusões inaceitáveis 78 Alf Ross Apóiase na pressuposição de que a diretiva da seção 62 dirigida ao aceitante da letra de câmbio é uma coisa e a diretiva ao juiz para que respalde essa regra pela força é uma segunda coisa independente En tretanto o que temos aqui não são duas normas distintas mas sim dois aspectos da mesma norma É dirigida ao juiz e condiciona a aplicação da compulsoriedade à conduta do aceitante o que dá origem a um efèito reflexo cria um motivo para que o aceitante da letra evite uma conduta que desencadeará o uso da força Em outras palavras cria um motivo para que o aceitante pague A interpretação segundo a qual o direito é constituído por regras respaldadas pela força é inadmissível por outra razão resultaria na ex clusão do domínio do direito de partes essenciais que estão indissoluvelmente conectadas às normas de conduta em sentido figura do as quais têm o respaldo da força Em primeiro lugar tal interpretação excluiria todas as normas de com petência visto não serem estas respaldadas pela força Com base no ponto de vista que estamos criticando sempre constituiu um problema saber como ser capaz de reconhecer como direito grandes áreas do direi to constitucional e administrativo que são compostas de normas dessa espécie Razões de coerência lógica nos obrigam a negar que tais áreas do direito possuam caráter jurídico o que é disparatado não tanto por que contradiz concepções correntes mas porque tais normas na quali dade de normas de conduta indiretamente formuladas se acham numa coesão inseparável de significado com as normas de conduta diretas Em segundo lugar essa interpretação alijaria as próprias normas que respaldam a aplicação do direito nomeadamente as normas secundárias que garantem as normas primárias de conduta Não é possível evitar esta conclusão frisando que essas normas secundárias são elas mesmas respaldadas pela força mediante um conjunto de normas terciárias Na maior parte dos casos não haverá uma realidade social que corresponda a essa interpretação ademais ela meramente posterga o problema já que não podemos seguir adinfínitum dispondo norma atrás de norma É forçoso portanto que insistamos que a relação das normas jurídi cas com a força consiste no fato de que se referem à aplicação da força e não que são respaldadas pela força18 18 No que tange a este ponto de vista estou em débito com Hans Kelsen Ver por exemplo seu Allgemeine Staatslehre 11925117 Ponto de vista idêntico também é sustentado por Karl Olivecrona em The Law as Fact 1939 134 e segs Direito e Justiça 79 Intimamente ligada a esse problema está a questão sociológico jurídica dos motivos que levam os seres humanos a agir de uma maneira lícita Este problema escapa ao propósito deste livro porém o abordaremos sumariamente aqui Como será sugerido de modo mais minucioso na seqüência parágra fos 84 e 85 os motivos humanos podem ser divididos em dois grupos principais 1 impulsos fundados em necessidades nascidos a partir de um certo mecanismo biológico e experimentados como interesses e 2 impulsos inculcados no indivíduo pelo meio social e experimentados como um imperativo categórico que o obriga sem referência aos seus inte resses ou mesmo em conflito direto com estes Os motivos do segundo grupo são por isso facilmente interpretados em termos metafísicos como uma revelação na consciência de uma validade superior que como dever se contrapõe à natureza sensual humana e aos interesses que surgem a partir desta Ora que papel desempenham essas experiências de motivos na vida jurídica da comunidade No que diz respeito às normas jurídicas em sentido próprio isto é as normas dirigidas ao juiz e que funcionam como padrões para sua decisão é mister que definitivamente se tenha como pacífico que o juiz é motivado primeira e principalmente por impulsos desinteressados pelo puro sentimento do dever e não pelo temor das sanções legais ou por quaisquer outros interesses As sanções legais que atingem a um juiz em funçãò da forma como executa suas tarefas somente são pos síveis em casos de desvios judiciais extremos suborno e similares e dificilmente têm um papel efetivo na prática O motivo que leva os juizes a respeitar as normas não se encontra portanto na justiça retributiva No que toca aos juizes dos tribunais superiores o interesse em granjear ou preservar certa reputação profissional e fazer carreira pode desempenhar um papel mas raramente o decisivo Se os tribu nais forem considerados coletivamente encabeçados pela Corte Su prema não haverá apelação possível contra as decisões que de fato adotem A meu ver é mister ter como ponto pacífico acima de qualquer dúvida embora eu admita que é difícil suprir uma prova meticulosa disto que jamais seria possível edificar um ordenamento jurídico eficaz se não existisse no seio da magistratura um sentimento vivo e desinte ressado de respeito e obediência pela ideologia jurídica em vigor É mister supor que as normas jurídicas em sentido próprio são observa das tão voluntariamente como as normas do xadrez 80 Alf Ross A questão é mais complicada se voltarmos nossa atenção para as normas de conduta em sentido figurado ou seja aquelas que podem ser derivadas das normas de conduta propriamente ditas por exem plo a seção 62 do Uniform Negotiabte Instruments Actsegundo seu conteúdo direto A consciência de que o comportamento contrário a essas normas de conduta traz consigo o risco de juízo sentença e execução indiscutivelmente gera um forte motivo para agir de uma maneira lícita Isto é claramente confirmado pelo aumento dds cri mes em circunstâncias excepcionais quando a polícia e os tribunais não funcionam normalmente19 Mas esta não é a razão única A maio ria das pessoas obedecem ao direito não só por receio da polícia e das sanções sociais extrajurídicas perda da reputação da confiança etc mas também por acato desinteressado ao direito O cidadão comum também é animado num maior ou menor grau por uma atitude de acato ao direito à luz do qual os governantes aparecem como poderes legitimos ou autoridades as exigências do direito como credoras de acato e a força que é exercida em nome do direito não é considerada como mera violência mas sim justificada na qua lidade do que respalda o direito Quando as regras do direito estão bem estabelecidas essa atitude se torna automática de sorte que nenhum impulso surge no sentido de contrariar o direito É presumível que apenas algumas poucas pessoas tiveram alguma vez que repri mir o desejo de cometer um assassinato20 Esse componente de motivação desinteressada de cunho ideológi co é com freqüência descrito como consciência moral produzida pela tradicional observância do ordenamento jurídico A ambigüidade do termo moral parágrafo 12 pode gerar malentendidos É verdade que a atitude que consideramos pode ser genuinamente reprovadora do ato ilícito porém isso não é essencial Comumente essa atitude encerra mais caráter formal é dirigida às instituições e importa o reco nhecimento de sua validade como tais independentemente do fato das exigências nas quais se manifestam poderem ser aprovadas como moralmente certas ou justas O direito é o direito e tem que ser observado dizem as pessoas e aplicam esta máxima mesmo aos casos nos quais as exigências do direito estão em conflito com idéias de justiça aceitas Para distinguir esta atitude da genuína atitude 19 Assim aconteceu na Dinamarca durante os sete meses da ocupação alemã 20 Para uma discussão minuciosa da função motivadora ideológica do direito ver Olivecrona op cit 150 e segs Direito e Justiça 81 moral a expressão consciência jurídica formalou institucional será aqui empregada para as primeiras enquanto as últimas serão chama das de consciência jurídica material ou moral Naturalmente há um limite para o hiato possível entre as duas atitudes de consciência juridica Quando este limite é alcançado o respeito dirigido ao governo e ao direito é substituído por uma cons ciência revolucionária Um cálculo estratégico das possibilidades de êxito determinará que essa consciência rebelde force a coisa e atinja o conflito franco Se o tempo para a revolução não estiver contudo ainda maduro a tarefa tática será solapar a ordem social existente mediante obstrução e propaganda Aqueles que estão submetidos a um regime efetivo de força nem sempre o experimentam como válido Nos casos em que um regime efetivo existente não recebe aprovação ideológica na consciência jurídica formal dos governados submetidos sendo sim obedecido unicamente por temor estes não o experimentam como um ordenamento jurídico mas sim como um ditado de força ou vio lência O governante não é então autoridade ou poder legíti mo e sim um perpetrador de violência um tirano um ditador Isto se aplica por exemplo à população de um país ocupado e à sua atitude ante o regime de força que é sustentado unicamente pelo poderio militar ou às minorias permanentes nacionais religiosas raciais hostis à maioria governante21 Essas reações emocionais são as experiências que dão à palavra lawe ainda mais ao alemão Rechte ao francês droit o matiz emocio nal que faz da mesma um título de honra parágrafo 7 e elas são a fonte da noção metafísica de validade como uma qualidade mo ralespiritual atribuída a um ordenamento jurídico em contraposição a um regime de violência De um ponto de vista cognoscitivodes critivo e este tem que ser o ponto de vista da filosofia do direito como uma atividade teórica é impossível todavia distinguir entre um ordenamento jurídico e um regime de violência porque a qua lidade de validade que se prestaria para caracterizar o direito não é uma qualidade objetiva do ordenamento ele mesmo mas apenas uma expressão da maneira na qual o ordenamento é experimentado 21 A respeito das minorias permanentes ver Alf Ross Why Oemocracy 11952 pp 191 192 82 Alf Ross por um indivíduo O mesmo ordenamento portanto pode ser para uma pessoa um ordenamento jurídico e para outra um regime de violência Seria possível por certo limitar o conceito de direito por meio de uma caracterização psicológica social objetiva de tal modo que só chamaríamos um ordenamento de jurídico se recebesse aprovação ideológica da maioria das pessoas submetidas a ele En tretanto não vejo nenhuma vantagem nisto sendo na verdade uma desvantagem ligar o conceito a um critério difícil de ser mançjado na prática Ademais recebendo ou não aprovação o ordenamento é um fato que requer descrição e que pode ser descrito exatamente da mesma maneira que é descrito um ordenamento jurídico isto é como normas concernentes ao exercício da força Como assinalamos no parágrafo 7 uma tal terminologia descritiva é destituída de quais quer conseqüências morais Temor e respeito os dois motivos que caracterizam a experiência do direito estão reciprocamente relacionados22 A força exercida pela polícia e as autoridades executivas não se baseia exclusivamente em fatores físicos tais como de homens à sua disposição seu treino e armamento mas também em fatores ideo lógicos Conspirassem em conjunto todo os cidadãos particulares e seriam indubitavelmente mais fortes do que a polícia Mas isto não acontece O cidadão acatador da lei respeita a polícia O poder da polícia ba seiase majoritariamente nesse respeito em conjunção com o senti mento que a própria polícia tem de que está exercendo a sua autori dade em nome da lei Para generalizar podese dizer que os meios físicos de compulsão têm sempre que ser operados por seres huma nos O controle dos meios de compulsão depende portanto do po der ou domínio de que são detentores os seres humanos que operam esses meios Este domínio por sua vez pode estar parcialmente mas nunca inteiramente baseado na força Em última instância devem existir normas para o exercício da força que não são elas mesmas respaldadas pela força mas que são acatadas em virtude de um respeito isento de temor Um homem forte mediante a força física por si só pode lograr o domínio sobre uns poucos outros seres humanos Em sociedades de qualquer tamanho que pressuponha um aparato organizado do poder operado por outros seres humanos isso 22 Esta idéia é desenvolvida mais minuciosamente em meu livro Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap IV 3 Direito e Justiça 83 não é possível Nenhum Hitler pode aterrorizar uma população sem que ao menos no âmbito do grupo que maneja o aparato da força haja uma obediência em alguma medida voluntária Em última análi se todo poder tem uma base ideológica23 O poder compulsivo do direito é deste modo uma função de sua validade Inversamente esta última é também uma função da força efetivamente exercida Posto que a obediência é fortalecida pelo cos tume toda ordem mantida de fato incluso aquela que se apóia prin cipalmente na mera força tende a se transformar numa ordem ideo logicamente aprovada Este é o fenômeno que foi descrito pelo filóso fo do direito alemão Georg Jellinek como a força normativa do real mente existente Todo poder soberano de jure tem como antecessor um poder soberano de facto O tempo que a tudo dá remédio como diz o brocardo popular também cumpre sua obra nesta esfera O temor e o respeito por um lado a força e a validade por outro se condicionam reciprocamente e isto vale tanto para uma análise éstática da vida jurídica num determinado momento quanto para uma descrição histórica evolucionista Nenhum dos dois fatores precede ao outro Estas observações pretendem arrojar nova luz ao velho problema da relação entre o direito e o poder que tem dado lugar a muitíssimas especulações metafísicas Segundo o ponto de vista metafísico tradi cional o direito e o poder estão diametralmente em oposição O direi to é o idealmente válido um sistema de normas obrigatórias e a soberania é a capacidade de criar direito e obrigar aos outros O poder é um fato social o domínio sobre seres humanos a capacidade para motiválos a agirem de acordo com a vontade daquele que exer ce o poder Nesta base é possível fiar uma dialética interminável acer ca da relação entre o direito e o poder Para sua realização o direito necessita o poder por trás de si Porém como pode isto ocorrer sem que o direito capitule ante o poder Como é possível que o poder crie direito Rendese este à espada 23 No mesmo sentido R M Maclver em The Web of Government 1947 16 A força não pode por si só manter um grupo unido Um grupo pode dominar pela força o resto da comunidade mas o grupo inicial já submetido ao governo antes que este pudesse dominar não está aglutinado pela força Os conquistadores podem impor sua vontade por meio da força sobre os conquistados mas os conquistadores foram eles próprios primeiramente unidos por algo distinto da força Em todo governo constituído algum tipo de autoridade se acha por trás da força 84 Alf Ross Um ponto de vista realista não vê o direito e o poder como opostos Se por poder social entendemos a possibilidade de dirigir as ações de outros seres humanos então o direito é um instrumento de poder e a relação entre os que decidem o que há de ser o direito e os que estão submetidos a esse direito é uma relação de poder O poder não é alguma coisa que se posta por trás do direito mas sim alguma coisa que funciona por meio do direito O problema que em termos metafísicos é formulado como uma questão sobre as relações externas entre o direito e o poder é na realidade uma questão tocante à relação entre o temor e o respeito como motivos que integram as relações de poder políticojurídicas em suma a questão que acabou de ser discutida De acordo com os recursos e a técnica empregados no exercício do poder é possível distinguir diversas formas típicas do poder a títu lo de exemplos o poder da violência o poder econômico o poder espiritual e o poder da personalidade24 O poder político ou poder do Estado é o poder exercido mediante a técnica do direito ou em ou tras palavras mediante o aparato do Estado que é um aparato para o exercício da força Mas a função desse aparato está como vimos condicionada por fatores ideológicos a consciência jurídica formal O poder daqueles que controlam o aparato do Estado está subordinado ao fato de que eles ocupam as posições chaves que de acordo com a Constituição outorgam a competência jurídica para exercer esse po der Todo poder político é competência jurídica Não existe um poder nu independente do direito e de sua base Não é necessário decerto que o fundamento ideológico de um regime político compreenda a totalidade da população de governa dos Na nossa geração a experiência demonstrou tragicamente que é possível para um grupo relativamente pequeno animado por uma consciência revolucionária apoderarse do aparato existente do Esta do mudar o seu pessoal e exercer um domínio que a maior parte da população tem como um regime de violência e terror 12 DIREITO MORAL E OUTROS FENÔMENOS NORMATIVOS No parágrafo 7 asseveramos que se o problema é considerado cientificamente quer dizer se a palavra direito é libertada de sua 24 Ver Bertrand Russell oivw1938 Direito e Justiça 85 carga emocional carece então de interesse particular a forma como se define o conceito de direito ou ordenamento jurídico Em si mesmo não tem importância se a designação ordenamento jurídico é aplica da a certos sistemas individuais de normas Os sistemas nem ganham nem perdem por serem designados como jurídicos O único ponto importante é estar ciente das similaridades e diferenças existentes Com essas idéias em mente prefiro reservar a expressão ordenamento jurídico aos sistemas normativos que tenham as mes mas características essenciais de um ordenamento jurídico nacional moderno bem desenvolvido sem atribuir contudo nenhum critério ideológico à expressão ou seja sem conferir relevância ao fato de que tal ordenamento é experimentado como um ordenamento váli do ou um regime de violência O conceito de direito ou ordenamento jurídico pode em con sonânciacom isso ser caracterizado por dois pontos Em primeiro lugar o direito consiste em regras que concernem ao exercício da força Vista em relação às normas jurídicas derivadas ou normas jurídicas em sentido figurado a força aparece como uma sanção isto é como uma pressão para produzir o comportamento desejado Logo quando na seqüência dissermos que as normas do direito são sancionadas pela força e outras normas por outros meios isto deverá ser entendido como uma maneira conveniente de falar mesmo não sendo inteiramente correta Em segundo lugar o direito consiste não só em normas de conduta mas também em normas de competência as quais estabelecem um conjunto de autoridades públicas para aprovar normas de conduta e exercer a força em conformidade com elas Devido a isto o direito tem o que podemos denominar caráter institucional Funciona através de uma maquinaria jurídica que visa à legislação o juízo e a execução e se afigura portanto ante os olhos do indivíduo como algo objetivo e externo E a expressão de uma comunidade supraindividual uma or dem social enraizada numa consciência jurídica formal Os outros fenômenos normativos podem ser classificados segun do suas características correspondentes relativas a esses dois pontos Diferem em parte segundo o caráter da sanção e em parte segundo tenham ou não caráter institucional 86 Alf Ross A Há fenômenos normativos que exibem uma estrutura institucional semelhante à do direito mas que são baseados em san ções distintas da força física 1 As associações e organizações privadas de vários tipos se ba seiam amiúde num sistema de regras que possuem um caráter institucional semelhante àquele do direito e que freqüentemente re cebem a designação de constituição ou lei da associação estatutos regulamentos internos A associação pode conter órgãos legislativos bem como executivos e judiciários Diferem do direito conforme de finimos este termo uma designação sinônima de ordem normativa do Estado moderno pelo fato da sanção não consistir em força físi ca O monopólio desta está nas mãos do Estado Uma associação pode muito bem impor aos seus membros sanções disciplinares de vários tipos mas jamais poderá pôlas em execução mediante o em prego da força A sanção mais grave é a expulsão e as outras sanções derivam da expulsão Pode suceder ser possível executar uma pena de multa da maneira ordinária segundo a sentença de um tribunal Porém nesta hipótese a execução tem lugar porque o direito do país reconheceu ou incorporou o direito da associação As regras de jogos de vários tipos guardam estreita semelhança com as regras das associações Um jogo pode ser considerado como uma associação temporária de duas ou mais pessoas com o propó sito de entretêlas jogandose segundo certas regras Tem lugar uma legislação rudimentar na medida em que os jogadores estão de acordo ou chegam a um acordo quanto às regras a serem segui das Freqüentemente há também um juiz umpirerefereé que pode impor penas Aqui também a sanção mais grave é a expulsão da associação isto é o juiz interrompe o jogo e expulsa aquele que violou a regra 2 Também o direito internacional possui um caráter institucional Há métodos institucionais procedimentais tanto para o estabeleci mento de normas gerais quanto para a decisão jurídica de controvér sias Por outro lado o direito internacional como o direito das associa ções carece de regras institucionais para a aplicação de sanções mediante a força física Na comunidade dos Estados inexiste por certo o monopólio da força Se a parte perdedora não acata uma decisão no campo do direito internacional a sanção se limita a uma reprovação pública por sua atitude Direito e Justiça 87 B Em toda comunidade há uma tradição cultural viva que en contra expressão em idéias mais ou menos uniformes sobre a con duta que cumpre assumir numa dada situação Como será demons trado na seqüência com maiores detalhes parágrafo 85 essas idéias são inculcadas no indivíduo durante seu período de crescimento atra vés da pressão do seu ambiente social Desde a tenra infância ou seja desde que é um bebê a criança é exposta a um bombardeio de impressões que moldam sua postura Aprende a comer e beber a falar a assearse a dizer como vai a apertar as mãos das pessoas a não dizer mentiras ou praguejar a ser trabalhador e cumprir a palavra empenhada E assim a criança cresce por assim dizer dentro de um vasto conjunto de regras de vida que ela absor ve gradualmente e que se manifestam como atitudes automáticas que em dadas situações levam o selo da validade Estas regras são sensivelmente vividas como regras morais quando entram em con flito com os desejos do indivíduo Se não houver conflito são expe rimentadas como convenção por exemplo as regras de polidez da urbanidade do vestir etc Embora essas regras tenham uma origem social sendo portanto mais ou menos uniformes entre povos que vivem no mesmo meio social constituem não obstante fenômenos individuais Não se acham ligadas a normas de competência que instituem autoridades comuns capacita das a determinar e estabelecer normas gerais e autorizar sanções por conta da comunidade No domínio da moral e dos usos convencionais não há legislador e igualmente não há juiz Cada indivíduo decide por si o que julga moral ou apropriado Do mesmo modo a reprovação a qual é a sanção para as violações da moral e dos usos convencionais25 procede de cada indivíduo e não de uma autoridade comum Por con seguinte não há moral ou convenção com vigência nacional mas unicamente atitudes individuais mais ou menos paralelas dentre as quais algumas podem ser caracterizadas como predominantes ou típicas num determinado meio social Quando a palavra moral é usada como uma designação para as normas de conduta que são apro vadas pelo indivíduo em sua consciência não é possível falar da mo ral como fenômeno objetivo da mesma maneira que é possível falar do direito Quando no uso corrente da linguagem se fala da moral como se fosse um sistema objetivo de normas análogo ao direito está se pagando tributo a uma interpretação metafísica da consciência como revelação de princípios a priori autoevidentes da razão 88 Alf Ross No direito o temor da sanção e o sentimento de se achar obrigado pelo que é válido operam conjuntamente como motivos integrantes da mesma ação na moral e na convenção ao contrário os motivos correspondentes se integram cada um de acordo com sua maneira e independentemente um do outro O motivo que interessa o temor da sanção motivam uma pessoa a agir de um tal modo que não a faça merecer a reprovação das outras O motivo desinteressado o senti mento de um impulso interior rumo ao que é torreto a motiva a agir de uma tal maneira que ela própria aprove suá ação Essa motivação dupla se evidencia de forma particularmente clara na moral onde pode facilmente ocorrer que o juízo moral de uma pessoa seja diferente daquele de outras e que a sua consciência portanto a induza a agir de uma maneira que sabe ser reprovada pelo ponto de vista que prevalece no seu meio É menos evidenciada quando se trata de convenção visto que as divergências individuais são neste caso menos importantes Todavia a situação tem que ser fundamentalmente a mesma A reação a uma transgressão a um uso convencional procede de cada indivíduo isolado e devemos presumir portanto que cada indivíduo tem uma postura imediata pessoal acer ca do que é apropriado Os fenômenos normativos mencionados podem ser mostrados sob forma de tabela26 como se segue Sanção força física expulsão reprovação Fenômeno institucional direito lei da associação direito internacional Fenômeno individual Ex regras da vingança privada não existem no Estado moderno que monopoliza a força moral usos convencionais 25 A exclusão dos círculos sociais refinados o ridículo e reações similares são também expressões qualificadas de reprovação e não destinadas a ser instrumentos de pressão 26 Esta tabela não pretende ser exaustiva Direito e Justiça 89 A palavra moral é não raro tomada num sentido mais lato do que o indicado aqui Tendese a chamar de morais todos os impulsos desinteressados que são experimentados com o timbre de validade ou sentimento de acharse obrigado Tomada a palavra moral neste sentido a consciência jurídica formal tem caráter moral e os fenôme nos morais são parte essencial dos fenômenos jurídicos27 A realidade é um tanto mais complicada do que se afigura na tabela A força reação jurídica tem ao mesmo tempo normalmente o caráter de reprovação pública pois constitui um sinal de que a conduta que origina a reação é socialmente indesejável Tal conduta é qualificada assim como violação e a contrária como dever No entanto a reação nem sempre tem esse caráter É imperioso traçar uma distinção entre sanções repreendedoras e sanções nãorepreendedoras À falta des ta distinção que se baseia na função ideológicomoral da sanção não seria possível entender a diferença entre responsabilidade por culpa em lato sentido e responsabilidade objetiva ou a diferença entre as sanções penais por um lado e as normas para a segurança comunitária e as normas fiscais por outro lado28 O problema da relação entre direito e moral não pode ser formula do sob forma de uma comparação entre dois sistemas análogos de normas Pelo contrário é preciso mostrar como está relacionado o sistema institucional do direito com as atitudes morais individuais que predominam na comunidade jurídica É óbvio que é necessário haver um grau considerável de harmonia entre um e outras já que um e outras estão radicados em valorações fundamentais comuns na tra dição cultural da comunidade O ordenamento jurídico e as atitudes morais se acham também em relação de cooperação recíproca As instituições do direito constituem um dos fatores do meio ambiente que moldam as atitudes morais individuais Estas últimas por sua vez constituem parte dos fatores práticos que através da consciên cia jurídica morai contribuem para moldar a evolução do direito Por outro lado certas diferenças típicas se manifestam resultando numa difícil comparação real entre o direito e a moral As regras jurídicas tendem a ficar cristalizadas em conceitos que visam a lograr certeza e objetividade na administração da justiça Este é um aspecto 27 Este uso da linguagem ocorre quando o direito internacional é descrito por alguns autores como uma mera ordem moral Isto não pode significar que o direito internacional seja caracterizado como uma pura questão pessoal de consciência 28 Cf parágrafos 32 e 33 e Ross Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap VII seção 6 90 Alf Ross da idéia de justiça parágrafo 65 Porém as atitudes morais são o resultado da reação do indivíduo em situações concretas Ainda que mediante esse processo se desenvolvam certas máximas que são aceitas como norteamentos morais elas não são sentidas como re gras obrigatórias mas apenas como generalizações empíricas sujei tas à mudança quando necessário se uma situação for considerada em toda sua plenitude de concreção Este é o verdadeiro significado do adágio princípios são feitos somente para serem transgredidos Se meditarmos sobre uma máxima moral corrente por exemplo a exigência de veracidade descobriremos de imediato que não pode ser aceita como absoluta como crê ingenuamente o Rearmamento Moral A máxima precisa ser adaptada à luz de múltiplas circunstâncias as quais o sentimento moral não pode nem deseja racionalizar em regras fixas classificadas de acordo com conceitos A experiência moral sempre assume suas manifestações mais vivas na decisão concreta ajustada a uma situação particular e a esta situação exclusivamente É por isso que a tendência do direito para uma racionalização sob a forma de conceitos só é obtenível às expensas do desejo moral de alcançar soluções adequadas aoscasós concretos Nesta medida por tanto o direito e a moral se encontram em perpétuo e indissolúvel conflito Costumase dizer que a suprema justiça pode constituir uma injustiça suprema Quando o direito cede diante das pressões do de sejo moral de soluções adequadas aos casos concretos e diminui sua objetividade conformandose às circunstâncias particulares falamos de moralização do direito ou de eqüidade em oposição ao direito es trito strictum jus Com freqüência o ajuste ou adequação ocorre simplesmente porque as regras do direito prescrevem que o juiz se oriente pelos padrões morais correntes O direito e a moral diferem consideravelmente quanto aos seus efeitos na vida social Visto que o direito é um fenômeno social uma ordem integrada comum que busca o monopólio da força é sempre uma ordem para a criação de uma comunidade que colima a manuten ção da paz Em certo sentido podese afirmar que o propósito do direito é a paz na medida em que todo ordenamento jurídico qualquer que seja seu conteúdo é produtor de paz embora não passe de paz da prisão A moral por outro lado é um fenômeno individual podendo com a mesma facilidade arrastar os seres humanos ao conflito ou uni los Idéias morais conflitantes por certo podem constituir uma fonte de discórdia do tipo mais profundo mais perigoso e menos controlável 13 DISCUSSÃO IDEALISMO E REALISMO NA TEORIA JURÍDICA A interpretação do conceito direito vigente oferecida nos capítulos precedentes difere incisivamente do ponto de vista tradicional predomi nante na teoria jurídica da Europa continental pode ser caracterizada como teoria jurídica realista em contraposição à teoria jurídica idealista Esta última se apóia na suposição de que existem dois mundos distintos aos quais correspondem dois métodos diferentes de conhe cimento De um lado o mundo da realidade que abarca todos os fenômenos físicos e psíquicos no tempo e no espaço que apreende mos por meio da experiência dos sentidos de outro o mundo das idéias ou validade que abarca vários conjuntos de idéias normativas absolutamente válidas a verdade o bem e a beleza que apreende mos imediatamente por meio de nossa razão Este último conheci mento é assim independente da experiência dos sentidos e portan to denominado a priori A teoria jurídica idealista também supõe que o direito pertence a ambos os mundos O conhecimento do direito por conseguinte está simultaneamente fundado tanto na experiência externa quanto no ra ciocínio a priori O direito é um fenômeno de realidade na medida em que seu conteúdo constitui um fato histórico que varia de acordo com o tempo e o lugar que foi criado por seres humanos e que depende de fatores externos de poder Entretanto que esse conteúdo tenha valida de como direito é algo que não pode ser observado na experiência Não cabem descrições ao que se deve entender por validade Este é um conceito a priori dado numa intuição direta e irredutível da razão Mas a validade não é meramente uma qualidade percebida por intui ção é também uma exigência ou pretensão que obriga de forma ab soluta à ação humana e à vontade humana Somente aquele que acata a exigência válida age corretamente Esta correção tal como a própria validade tampouco admite explicação ou prova tratase simplesmen te de outro aspecto do conceito de validade A diferença entre o direito e a moral pode segundo o ponto de vista idealista ser expressa da seguinte maneira enquanto a nor ma moral se origina na pura razão inclusive no seu conteúdo a validade do direito se vincula a um conteúdo terreno e temporal o direito positivo com seu conteúdo historicamente determinado Direito e Justiça 91 92 Alf Ross A moral é pura validade o direito é simultaneamente fenômeno e validade uma intersecção entre a realidade e a idéia ou a revelação de uma validade da razão no mundo da realidade29 Há duas variedades principais de idealismo que podem ser deno minadas a material e a formal A variedade material poderseia dizer toma o idealismo a sério A idéia específica que se manifesta no direito é a idéia de justiça Não só outorga um ideal para apreciação do direito positivo como tam bém constitui o direito isto é é o princípio inerente a este que lhe confere sua força obrigatória ou validade como tal Em virtude disso limita o que pode ser reconhecido como direito Uma ordem eficaz sustentada no mundo dos fatos que não satisfaz essas exigências mínimas derivadas da idéia de justiça ou que não é sequer uma tentativa de realizar a justiça não é reconhecida como detentora do caráter do direito sendo qualificada como mero regime de violência Pontos de vista deste jaez têm sido hegemônicos na teoria do direito natural desde os tempos mais remotos até a atualidade capítulo X A variedade formal que encontrou sua expressão mais completa no sistema de Hans Kelsen dissociase terminantemente da censura ética que o direito natural exerce sobre o direito positivo Aceita sem reservas como direito qualquer ordem vigente no mundo dos fatos Todavia sustenta que de acordo com o significado que lhe é inerente o conhecimento do direito não visa à descrição de algo fatual mas sim à apreensão do que é válido A apreensão da existência de uma norma é a mesma coisa que a apreensão da validade dela Contudo a validade de uma norma jamais pode derivarse de um fato natural mas apenas de outra norma superior Um decreto real à guisa de exemplo é válido não por ser promulgado pelo rei mas por ser pro mulgado de acordo com uma lei que estabelece que tais regras deve rão ser tidas como válidas Assim a fim de encontrar a validade dos atos jurídicos é mister que recorramos a uma hierarquia de normas A validade da lei está fundada na validade da Constituição Para expli car a validade da Constituição é necessário postular uma norma ain da superior que diz Kelsen é pressuposta Tratase da norma básica Grundnorm ou hipótese inicial cuja única função é outorgar valida de à Constituição O conhecimento do direito portanto através de 29 Ver Ross Towards a Realistic Jurisprudence 19461 cap II Direito e Justiça 93 todas as etapas consiste em enunciados normativos acerca do que deve ser válido e não em enunciados acerca do que efetivamente ocorre O pensamento jurídico de acordo com Kelsen é pensamento em termos de o que deve ser sollen e não de o que é sein a ciência do direito é uma doutrina normativa e não uma teoria social Nessa variante do idealismo a validade é reduzida a uma catego ria formal do pensamento isenta de qualquer exigência relativamente ao conteúdo material que é apreendido sob essa forma de categoria A norma básica é destituída de qualquer matiz ético Ajustase à or dem que está de fato em vigor e não é mais do que um postulado no sentido de que essa ordem possui validade30 A Reine Rechtsiehre Teoria Pura do Direito é uma conquis ta singular na moderna filosofia do direito Distinguese por sua notável agudeza dialética brilhante e lógica inexorável A doutri na de Kelsen mais do que qualquer outra realização individual criou uma escola de pensamento e exerceu uma profunda in fluência na teoria jurídica recentemente São poucos os filóso fos do direito de nosso tempo que direta ou indiretamente consciente ou inconscientemente não estão em débito com Kelsen O poder de inspiração de sua obra não se deve a quais quer idéias revolucionárias mas à coerência por meio da qual ele desenvolve as premissas do positivismo jurídico Estas po dem ser formuladas em duas proposições básicas I ao direito é um conteúdo ideal normativo estabelecido mediante atos his tóricos humanos mas que em si difere destes 2a o direito possui validade por direito próprio isto é independentemente de sua concordância com postulados éticos Sobre estas bases Kelsen desenvolveu sua teoria pura do direito ou seja uma teoria independente da sociologia e também da ética e da polí tica A ciência do direito é uma doutrina normativa específica e não é nem conhecimento da realidade nem direito natural 30 Nos meus livros Theoríe derRechtsquellen 1929 cap I e IX e Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap II seç 6 está presente um exame mais amplo das idéias de Kelsen ao qual remeto o leitor Ver também supra parágrafo 2 nota 29 onde se alude à obscura distinção kelseniana entre normas jurídicas e proposições sobre normas jurídi cas e infra parágrafo 79 onde nos referimos à teoria kelseniana da interpretação Em minha crítica ao livro de Kelsen What is Justice publicada na Califórnia Law Review t 4511957 564 e segs formulei um exame crítico de sua noção de validade 94 Alf Ross As principais obras de Kelsen são Hauptprobleme der Staatsrechtslehre 1911 AHgemelne Staatslehre 1925 e Ge neral Theory of Law and State 1945 Este último trabalho con tém inclusive uma bibliografia detalhada de seus numerosos outros escritos e de outros trabalhos concernentes à ciência pura do direito Em sua Théorie pure du droit 1953 ele próprio fez uma exposição sintética dos principais pontos do sistema O pensamento que se encontra na base do realismo jusftlosófico está vinculado ao desejo de entender o conhecimento do direito de acordo com as idéias sobre a natureza problemas e método da ciên cia tais como elaborados pela moderna filosofia empirista Várias ten dências filosóficas o empirismo lógico a escola de Uppsala a escola de Cambridge e outras têm fundamento comum na rejeição da metafísica no conhecimento especulativo baseado numa apreensão a priori pela razão Há somente um mundo e um conhecimento Toda a ciência está em última instância interessada no mesmo corpo de fatos e todos os enunciados científicos sobre a realidade isto é aqueles que não têm cunho puramente lógicomatemático estão sujeitos à prova da experiência Do ponto de vista de tais pressupostos é inadmissível uma valida de específica seja em termos de uma idéia material a priori de justi ça seja como uma categoria formal As idéias de validade são cons truções metafísicas erigidas com base numa falsa interpretação da força obrigatória experimentada na consciência moral Como todas as outras ciências sociais a ciência do direito tem que ser em última análise um estudo dos fenômenos sociais a vida de uma comunida de humana e a tarefa da filosofia do direito deve consistir na inter pretação da vigência do direito em termos de efetividade social isto é de uma certa correspondência entre um conteúdo normativo ideal e os fenômenos sociais Neste capítulo tento demonstrar como essa tarefa pode ser realizada Na teoria norteamericana do direito o termo realismo é empregado primordialmente num sentido distinto do aqui indi cado a saber para designar uma postura cética ante conceitos jurídicos e regras jurídicas e o papel que desempenham na administração da justiça parágrafo 9 nota 14 Ao mesmo tem po todavia a escola norteamericana do pensamento também é realista no sentido no qual empregamos o termo na medida Direito e Justiça 95 em que vê no direito um fenômeno social determinado pela aplicação do direito pelos tribunais Na vanguarda do realismo norteamericano esteve Oliver Wendell Holmes The Path of the Law Harv L R 10 1897 457 e segs reimpresso em CollectedPapers 1920 e John Chipman Gray The Nature and Sources of Law 1909 Entre os mais conhecidos represen tantes dessa escola estão Jerome Frank Law and the Modern Mind1930 Courts on Trial 1950 K N Llewellyn CSome Realism about Realism Harv L R 44 1931 1222 com E A Hoebel The Cheyenne Ma1942 e Underhill Moore Rational Basis of Legal Institutions Co L R 23 1923 609 An Institutional Approach to the Law of Commercial Banking Yale L R 38 1929 703 Uma bibliografia será encontrada em E N Carlan Legai Realism and Justice 1941 Quanto a um estu do introdutório ver por exemplo W Friedmann Legal Theory 2a ed 1949 189 e segs Para um estudo crítico ver por exemplo Cardozo Selected Writings 1947 7 e segs Lon L Fuller American Legal Realism Proceedings of the American Philosophical Society vol 76 1936 191 e segs e A Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 59 e segs A ten dência na teoria do direito que qualifica a si mesma como socio logia do direito consiste majoritariamente em idealismo disfar çado parágrafo 1 notas 24 e 25 Esta é a posição relativa das duas principais tendências na filosofia do direito ou seja o idealismo metafísico e o realismo científico A batalha final entre elas não pode ser travada no domínio da própria filosofia do direito tendo sim que ser travada no campo da filosofia geral A controvérsia entre o idealismo e o realismo na filosofia do direito se dissolve necessariamente em problemas fundamentais de epistemologia No que a estes tange tudo que o filósofo do direito pode fazer é indicar as linhas principais do fundamento filosófico que dá sustentação à sua teoria Estou convencido além disso de que a metafísica desaparecerá gradualmente do campo do direito assim como quase desapareceu do domínio das ciências naturais não tanto devido aos argumentos lógicos contra ela formulados porém mais porque o interesse nas construções metafísicas desvanece paulatinamente na medida em que se desenvolve uma ciência regular que demonstra seu próprio valor Quem hoje em dia pensaria em refutara crença na pedra filosofal Deixemos que os mortos enterrem os seus mortos 96 Alf Ross Por outro lado compete à filosofia do direito executar uma crítica do idealismo em sua aplicação aos problemas teóricos do direito Uma daá grandes dificuldades do idealismo jurídico tem sido explicar como é posí sível que o ato de legislação no seu caráter de fenômeno social pod produzir algo que não sejam efeitos sociais a saber obrigações válidas de uma natureza a priori Se o idealismo for tomado a sério quer dizer se com relação a certas regras ou ordenamentos se lhes nega caráteri jurídico porque não se harmonizam com um ideal pressuposto de justij ça isso conduzirá a uma limitação inconveniente do conceito de direito Constitui princípio elementar de ciência a necessária definição de unrtj objeto de acordo com qualidades objetivas e não de acordo com quais quer avaliações É irrelevante por exemplo que as leis de Hitler contraí os judeus ou certas leis estrangeiras que autorizam a poligamia sejam consideradas incompatíveis com a idéia do direito resta ainda o cumprij mento inescapável da tarefa prática de expor essas regras realmente efetivas em conexão com o sistema no qual ocorrem Pareceme absur do exprimir reprovação moral pela exclusão desses temas do domínio daí ciência do direito A idéia do direito se é que a admitimos pode portan to no máximo ser uma idéia reguladora jurídicopolítica porém não um elemento constitutivo do conceito do direito Caso se intente debilitar a pretensão do idealismo dizendo que em todo o caso o direito positivo tem que consistir numa tentativa de realizar a justiça isso introduzirá entre os fetos objetivos do direito um fator subjetivo de intenção de difícil explicação As tentativas podem lograr êxito ou falhar É a tentativa ma lograda também direito A interpretação se afiguraria tão arbitrária quanto se alguém pretendesse sustentar que um cão constitui uma tentativaj malograda de criar um gato I Finalmente caso se rejeite radicalmente toda censura ética como faz Kelsen e se aceite simplesmente como direito a ordem que tem efetividade a validade específica como categoria formal se transforma em algo supérfluo Kelsen faz uma tentativa de determinar a natureza do direito positivo prescindindo da realidade psicológica e social A im possibilidade disto se patenteia ao chegarmos na hipótese inicial nor ma básica ou Grundnorm Enquanto permanecermos nos degraus in feriores do ordenamento jurídico será possível retardar o problema da validade da norma nos remetendo a uma norma superior Entretanto este procedimento não pode ser empregado ao chegarmos à hipótese inicial A esta altura a questão da relação da norma com a realidadç se torna inevitavelmente urgente Se se pretende que o sistema faça Direito e Justiça 97 5entido está claro que a hipótese inicial não poderá ser selecionada arbitrariamente O próprio Kelsen afirma que esta tem que ser escolhi da de tal modo que abranja o sistema que se acha efetivamente em vigor Mas então fica claro que na realidade a efetividade é o critério do direito positivo e que a hipótese inicial uma vez que sabemos que é direito positivo apenas cumpre a função de outorgarlhe validade que é exigida pela interpretação metafísica da consciência jurídica embora ninguém saiba no que consiste tal validade A hipótese inicial é a fonte última de que emana a validade que se estende através de todo o sistema Poderseia passar tudo isso por alto como uma cons trução supérflua mas inócua se dela não resultasse o fechamento dos olhos a uma rigorosa análise do critério de efetividade Ao fazer da validade uma relação internormativa a validade de uma norma deriva da validade de outra Kelsen se impediu desde o começo de lidar com o cerne do problema da vigência do direito a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade sociaí31 14 DISCUSSÃO REALISMO PSICOLÓGICO REAUSMO COMPORTAMENTISTA E SUA SÍNTESE Todas as teorias realistas concordam em interpretar a vigência do direito como em termos de efetividade social das normas jurídicas Um norma vigente difere de um mero projeto de lei ou de uma peti ção de reforma legislativa porque o conteúdo ideal normativo da nor ma vigente é ativo na vida jurídica da comunidade há um direito em ação que corresponde ao direito nas normas Resta definir com maior precisão essa ser ativo Neste ponto as teorias divergem Há duas abordagens que poderiam ser denominadas como o ramo psicológico e o ramo comportamentista do realismo jurídico O realismo psicológico descobre a realidade do direito nos fatos psicológicos Uma norma é vigente se é aceita pela consciência jurídi ca popular O fato desta regra ser também aplicada pelos tribunais é de acordo com esse ponto de vista derivado e secundário uma con seqüência normal da consciência jurídica popular que é inclusive determinante das reações do juiz O critério efetivo não é a aplicação como tal mas sim o fator determinante por trás dela 31 Ver Ross Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap II seç 6 e a crítica ao livro de Hans Kelsen What is Justice publicada na Califórnia LawReview t 45 1957564 e segs 98 Alf Ross Segundo esse ponto de vista portanto para comprovar se uma dada regra é direito vigente devemos proceder a certas investigações sóciopsicológicas Teremos que nos indagar se a regra é aceita pela consciência jurídica popular Somos informados que essa investigação pode ser fácil se a regra for encontrada numa lei adotada de forma constitucional isto porque a consciência jurídica popular sustenta acima de tudo como seu conteúdo indireto e formalizado a crença de que o direito é direito e que tem que ser obedecido O público geralmente aceita que qualquer coisa estabelecida em conformidade com a Cons tituição se arvora objeto titular a ser respeitado como direito32 Contudo a consciência jurídica popular não está atada à lei Pode acontecer que uma lei não seja aceita pela consciência jurídica popu lar e assim não se transforma em direito vigente Do mesmo modo quando um precedente pela primeira vez estabelece uma regra a decisão não passa de uma tentativa de criar direito O que é decisivo é a aceitação da regra por parte da consciência jurídica A única pe dra de toque ou critério possível para a existência de uma regra jurídi ca é o seu confronto com a consciência jurídica popular Knud Illum Admitese que a consciência jurídica do homem da rua é demasiada mente precária para valer como critério e que por conseguinte é preciso levar em conta a consciência jurídica dos juristas profissionais do país mormente a dos autores de direito Estes são os guardiães da herança da tradição jurídica nacional e é mister que seja a opinião deles que em caso de dúvida decida o que é direito vigente Pontos de vista semelhantes a estes animaram em tempos mais longínquos a escola históricoromântica Savigny Puchta parágra fo 81 e recentemente foram defendidos pelo autor dinamarquês Knud Illum Idéias similares a despeito de menos elaboradas po dem também ser encontradas nas obras do filósofo do direito sue co Karl Olivecrona O objeção principal ao realismo psicológico é que consciência jurí dica é um conceito que pertence à psicologia do indivíduo Ao vincular o conceito de direito vigente à consciência jurídica individual esse 32 Para outros detalhes ver Karl Olivecrona LawasFact 1939 51 e segs Numa certa medida o realismo ideológico se assemelha ao idealismo formal de Kelsen segundo o qual a validade do direito é derivada dedutivamente da Constituição e da hipótese inicial A diferença pareceria ser simplesmente que enquanto Kelsen considera a ideo logia constitucional como uma hipótese normativa autônoma em abstrato e dissociada da realidade social Olivecrona frisa que é o conteúdo de concepções psicológicas reais que existem nas mentes dos seres humanos Direito e Justiça 99 ramo do realismo converte o direito num fenômeno individual que se acha num plano idêntico ao da moral Basta que pensemos em pro blemas como aborto traição aplicação de impostos a cooperativas ou liberdade comercial para constatarmos quão diversificada pode ser a consciência jurídica inclusive entre os juristas O próprio Illum não recua diante da conclusão lógica de que fundamentalmente há tantas variedades de direito quanto homens familiarizados com a tra dição jurídica Sobre esta base não seria possível falar de um ordenamento jurídico nacional tal como não é possível falar de uma moral nacional terseia que dizer que há simplesmente uma opinião jurídica predominante Uma tal definição é inaceitável É preciso pressupor que ao menos dentro de certos limites é possível definir um ordenamento jurídico nacional como um fenômeno externo intersubjetivo e não como uma mera opinião subjetiva que pode ser medida por meio de uma pesquisa de opinião Gallup entre os professores de direito Se há razões plausíveis para supor que uma dada regra será ado tada pelos tribunais do país como fundamento para suas decisões então essa regra é direito nacional vigente tal como entendem os juristas geralmente essa expressão e são irrelevantes as opiniões que possam existir na consciência jurídica do professor Illum ou na de qualquer pessoa O realismo comportamentista encontra a realidade do direito nas ações dos tribunais Uma norma é vigente se houver fundamentos suficientes para se supor que será aceita pelos tribunais como base de suas decisões O fato de tais normas se compatibilizarem com a consciência jurídica predominante é segundo esse ponto de vista derivado e secundário tratase de um pressuposto normal porém não essencial da aceitação por parte dos tribunais A oposição en tre este ponto de vista e a teoria psicológica pode ser assim expres sa enquanto esta última define a vigência do direito de tal sorte que somos forçados a dizer que o direito é aplicado porque é vigen te a teoria comportamentista define o conceito de tal modo que somos obrigados a dizer o direito é vigente porque é aplicado2 33 As duas frases em itálico não exprimem qualquer divergência no tocante a fatos mas indicam que a frase ser vigente é definida de maneiras distintas em cada uma das duas frases 100 Alf Ross Pontos de vista semelhantes têm desempenhado um importante papel no realismo norteamericano o qual remonta a Oliver WendeH Holmes que já em 1897 enunciou a tão citada frase O que entenda por direito e sem nenhuma outra ambição são as profecias do que os tribunais farão de fato34 E todavia não é possível fazer uma interpretação puramente comportamental do conceito de vigência porque é impossível predi zer a conduta do juiz por meio de uma observação puramente extern na do costume O direito não é simplesmente uma ordem familiar oy habitual parágrafo 8 Só é possível atingir uma interpretação sustentável da vigência do direito por meio de uma síntese do realismo psicológico e do realismo comportamental que foi o que tentei explicitar no presente capítulo Minha opinião é comportamentista na medida em que visa a desco brir consistência e previsibilidade no comportamento verbal externa mente observado do juiz é psicológica na medida em que a aludida consistência constitui um todo coerente de significado e motivação somente possível com base na hipótese de que em sua vida espiritual o juiz é governado e motivado por uma ideologia normativa cujo con teúdo nós conhecemos 34 34 The Path of the Law Harvard Law Review t 10 1897 457 e segs publicado em CollectedPapers 19201 Essa linha de pensamento foi seguida por John Chipman Gray I The fJature and Sources of Law 1909 que definiu o direito como as regras que os tribunais formulam para a determinação dos direitos e deveres e fez a notável afirmativa de que o direito de uma grande nação é constituído pelas opiniões de meia dúzia de velhos senhores alguns deles podese concebêlo de inteligência bastante limitada porquanto se meia dúzia de senhores consti tuem a mais alta corte de um país nenhuma regra ou princípio que eles se recusem a seguir será direito nesse país Op cit 84 e 125 A partir deste ponto a idéia foi conduzida às suas conclusões lógicas extremas por Jerome Frank Law and Modem Mind 1930 a saber à conclusão de que o direito não consiste em absoluto em regras mas tão só na soma total das decisões individuais Podemos agora arriscar uma definição rudimentar e provisória do direito do ponto de vista do homem médio para qualquer pessoa particular leiga o direito relativamente a qualquer conjun to particular de fatos constitui uma decisão de um tribunal no tocante a esses fatos na medida em que essa decisão afeta essa pessoa Enquanto um tribunal não tiver se pronunciado sobre esses fatos não existirá direito sobre o ponto Antes de tal decisão o único direito disponível é a opinião dos advogados acerca do direito aplicável a essa pessoa e a esses fatos Essa opinião referencial não é realmente direito mas meramente uma conjetura do que decidirá o tribunal 0 direito portanto acerca de uma dada situação é a direito efetivo isto é uma decisão específica passada referente a dita situação ou b direito provável isto é uma conjetura quanto a uma decisão específica futura Op cit 46 Benjamin Cardozo não aprova os excessos do realismo mas aceita a idéia funda mental Eu contemplo um vasto e pouco preciso conglomerado de princípios regras costumes usos e padrões morais prontos para ser incorporados numa decisão conforme certo processo de seleção a ser praticado por um juiz Se estiverem estabelecidos de sorte a justificar com razoável certeza a previsão de que encontrarão o respaldo do tribunal no caso de sua autoridade ser questionada então direi que são direito Seected Writings 1947 18 Para um exame e crítica mais minuciosos de Gray e Frank ver Alf Ross Towards a flealistic Jurisprudence 1946 59 e segs Capítulo III As Fontes do Direito 15 DOUTRINA E TEORIA DAS FONTES DO DIREITO No capítulo anterior chegamos à conclusão de que o conteúdo real da asserção A D é direito vigente é uma previsão de que D sob certas condições será adotada como base para decisões em disputas jurídicas futuras A experiência mostra que tal previsão é realmente possível dentro de certos limites embora o grau de probabilidade com o qual pode ser feita possa variar consideravelmente Ora se como nas regras do xadrez um ordenamento jurídico nacional consistisse num pequeno número de normas simples conci sas e invariáveis poderseia supor simplesmente que a previsibilidade dependeria do fato de essas normas estarem num momento deter minado presentes de modo ativo na mente do juiz Mas este não é o caso Um ordenamento jurídico nacional não é apenas uma vasta multiplicidade de normas estando ao mesmo tem Po sujeito a um contínuo processo de evolução Em cada caso por conseguinte o juiz tem que abrir caminho através das normas de conduta que necessita como fundamento para sua decisão Se a despeito de tudo a previsão for possível terá que sêlo porque o Processo mental pelo qual o juiz decide fundar sua decisão em uma 102Alf Ross regra de preferência a outra não é uma questão de capricho e arbí trio variável de um juiz para outro mas sim um processo determina do por posturas e conceitos por uma ideologia normativa comum presente e ativa nas mentes dos juizes quando atuam como tais E verdade que não podemos observar diretamente o que ocorre na mente do juiz porém é possível construir hipóteses no tocante a isso e o valor delas pode ser comprovado observandose simplesmente se as previsões nelas baseadas foram acertadas Essa ideologia é o objeto da doutrina das fontes do direito Constitui o fundamento do ordenamento jurídico e consiste em diretivas que não concernem diretamente ao modo como deverá ser resolvida uma disputa legal mas que indicam a maneira pela qual um juiz deverá proceder a fim de descobrir a diretiva ou diretivas decisivas para a questão em pauta Está claro que essa ideologia só pode ser observada na conduta efetiva dos juizes É a base para as previsões da ciência do direito no que respeita à maneira pela qual os juizes reagirão no futuro A ideo logia das fontes do direito é a ideologia que de fato anima os tribu nais e a doutrina das fontes do direito é a doutrina que concerne à maneira na qual os juizes efetivamente se comportam Partindo de certas pressuposições seria possível desenvolver diretivas quanto a como deveriam proceder na eleição das normas de conduta nas quais baseiam suas decisões Porém é evidente que a menos que sejam idênticas às que são de fato seguidas pelos tribunais tais diretivas são destituídas de valor como fundamentos para previsões relativas à conduta futura dos juizes e por isso mesmo não servem para deter minar o que é direito vigente Qualquer doutrina normativa das fontes do direito que não se adeqüe aos fatos carece de sentido se pretender ser algo mais que um projeto de um direito novo e melhor A doutrina das fontes como qualquer outra doutrina acerca do direito vigente é descritiva de normas e não expressiva de normas é uma doutrina que se refere a normas não uma doutrina que consiste em normas A expressão metafórica tradicional fontes do direito se deve à idéia de que a ideologia que examinamos consiste em diretivas ao juiz que lhe ordenam a aplicar regras criadas de acordo com certos modos específicos de procedimento Daqui basta um passo à frente para este modo de procedimento ser concebido como fonte O direito brota de certos procedimentos específicos do mesmo modo que a água brota de uma fonte Esta concepção se coaduna às regras do Direito e Justiça 103 direito legislado visto que estas são definidas decerto como regras criadas pelo procedimento de legislação sendo natural designar a legislação como a fonte de todo direito que existe sob a forma de regras legisladas A metáfora se revela menos apropriada ao prece dente ao costume e à razão como fontes adicionais do direito já que estas palavras não indicam três procedimentos adicionais para a cria ção do direito que concedam ao juiz um produto elaborado tal como faz a legislação Metaforicamente falando podemos talvez dizer que a legislação concede um produto acabado pronto para ser utilizado enquanto o precedente e o costume proporcionam somente semi manufaturados que requerem acabamento pelo próprio juiz e a ra zão apenas produz certas matériasprimas a partir das quais o pró prio juiz tem que elaborar as regras de que necessita Nestas circunstâncias é somente com dificuldade e receio que se poderia formular antecipadamente um conceito de fontes do direito que incluísse elementos tão diversos como a legislação o costume o precedente e a razão Em todo caso terseia que enfatizar que a desig nação fonte do direito não pretende significar um procedimento para a produção de normas jurídicas Esta característica pertence exclusiva mente à legislação Se quisermos contudo formular um conceito de fontes do direito que não seja em si mesmo necessário para dar conta da ideologia a que estamos aludindo teremos que definilo de uma maneira mais imprecisa Por fontes do direito por conseguinte enten derseá o conjunto de fatores ou elementos que exercem influência na formulação do juiz da regra na qual ele funda sua decisão acresçase que esta influência pode variar desde aquelas fontes que conferem ao juiz uma norma jurídica já elaborada que simplesmente tem que aceitar até aquelas outras que lhe oferecem nada mais do que idéias e inspira ção para ele mesmo o juiz formular a regra que necessita Considerandose que a ideologia das fontes do direito varia de um sistema jurídico para outro descrevêla é tarefa da ciência do direito a doutrina das fontes do direito Esta tarefa como vimos somente pode ser realizada por meio do estudo minucioso da maneira como procedem de fato os tribunais de um país visando a descobrir as normas em que baseiam suas decisões E a tarefa da filosofia do direito só pode consistir neste caso em estabelecer e identificar os tipos gerais de fontes do direito que em conformidade com a experiência aparecem em todos os sistemas jurídicos maduros a Teoria das Fontes do Direito 104Alf Ross Diversas abordagens se apresentam como o fundamento de umê classificação generalizadora desse tipo Seria possível por exemplo caracterizar os vários tipos de fontes segundo o papel dominante que desempenharam na evolução histórica do direito Deste ponto de vis ta o precedente e a razão são caracterizáveis como as fontes que sempre desempenharam um papel considerável que corresponde às idéias de justiça formal e material o costume e a legislação como as fontes cujo papel tem variado grandemente sendo o costume a fonte predominante no direito primitivo e a legislação no direito moderno Neste livro entretanto o fundamento será outro a saber o grau de objetivação dos diversos tipos de fontes Por isto entendo eu o grau no qual elas apresentam ao juiz uma regra formulada pronta para sua aplicação ou inversamente o grau no qual lhe apresentam um material que será transformado numa regra somente após uma ativa contribuição de labor por parte do juiz Consoante a isso o esquema de classificação será o seguinte I o o tipo de fonte completamente objetivada as formulações revestidas de autoridade legislação no sentido mais amplo 2oo tipo de fonte parcialmente objetivada costume e precedente 3o o tipo de fonte não objetivada livre a razão 16 LEGISLAÇÃO A fonte mais importante no direito da Europa continental atual mente é constituída sem dúvida pelas normas sancionadas pelas autoridades públicas Com efeito os juizes se sentem obrigados em alto grau ante as declarações da legislatura e a doutrina ideoló gica oficial assevera que o direito legislado em lato sentido possui força obrigatória absoluta Na prática entretanto os tribunais aberta ou subrepticiamente por vezes desconsideram as regras legislativas discordantes da consciência jurídica material predominante1 Na mente dos juizes como na dos outros cidadãos há um limite para o possível hiato entre a consciência jurídica institucional e a consciên cia jurídica material parágrafo 11 De modo particular as regras 1 Ver à guisa de exemplo Jean Crutz La Vie du Droit et 1lmpuissance des Lois908 Direito e Justiça 105 jurídicas antigas podem perder vigência porque já não se acham em harmonia com as novas condições e idéias Dizse então que a lei foi abolida por desuetudo Historicamente o crescimento de uma legislatura constitui um fe nômeno estranho parágrafo 18 e muito tempo levou para que as autoridades do direito legislado lograssem reconhecimento geral Afir ma Allen2 que ainda no século XIV não era incomum na Inglaterra os juizes se recusarem franca e prontamente a aplicar o direito legislado Houve luta pela supremacia na criação do direito entre a common law e o Parlamento3 conflito que era ideologicamente sustentado pela doutrina do direito natural No caso Bonham4 em 1610 Coke C J defendeu o direito dos juizes da common awdeclarar nula uma lei do Parlamento mas após a revolução de 1688 a supremacia absoluta do Parlamento foi reconhecida5 Blackstone em 1765 pôde não obstante pagar um tributo verbal à doutrina do direito natural ao sustentar que nenhuma lei é válida se oporse à natureza e à razão mas na prática reconheceu a competência absoluta e irrestrita do Parlamento6 O direito legislado é direito sancionado ou seja foi criado por uma resolução de certos seres humanos e por isso pressupõe normas de competência que indicam as condições nas quais isso pode ocorrer Cabe à doutrina das fontes do direito expor e explicar essas normas de competência A teoria das fontes do direito deve se restringir à elucidação de certos traços característicos do direito legislado Toda sanção em exercício de uma competência é conhecida sob a designação comum de legislação Tomada TienJtiílaodo a pala vra legislação compreende não apenas a Constituição se escrita e as leis do Parlamento mas também todo tipo de normas sancionadas subordinadas e autônomas não importa com que nome se as desig ne ordens do Conselho regras e ordens estatutárias regulamentos de autoridades locais de corporações autônomas de igrejas etc 2 Law in the Making 4 ed 1946 365 e segs 3 Ver também W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 50 e segs 4 T ransparece nos nossos livros que em muitos casos a common law se acha acima das leis do Paríamento e às vezes as declara absolutamente nulas pois quando uma lei do Parlamento se opõe à razão ou è justiça comum ou seu cumprimento é repugnante ou impossível a common law a colocará sob seu controle e a declarará nula 16108 Co CP 114a 5 Ver porém Goschen contra Stonington 1822 4 Conn 209 225 quando o juiz Hosmer põe ainda em dúvida a onipotência do Parlamento ver também Julius Stone The Province and Function of Law 1950 2268 6 Commentaries 1765 II 4143 106Alf Ross Uma norma do direito legislado recebe sua autoridade das nor mas de competência que definem as condições sob as quais a san ção terá força legal Estas condições podem ser divididas em dois grupos As condições formais de competência definem o procedimento para a sanção da norma o que inclui a identificação das pessoas qualificadas para adotar as diversas etapas do procedimento O pro cedimento legislativo exemplificando exige que as diversas etapas na Câmara de Representantes e no Senado sejam cumpridas por pessoas que segundo as leis eleitorais e o resultado das eleições estejam qualificadas como membros de uma casa e de outra As condições materiais definem o objeto ou conteúdo da norma que pode ser sancionada mediante o procedimento indicado i Combinando ambos os conjuntos de condições nos é possível di zer que uma norma sancionada detém força legal se tiver sido ditada por uma autoridade que acatou o procedimento regular e que tenha operado nos limites de sua competência material A competência para sancionar normas não está geralmente limi tada a uma única autoridade Parte do direito que é criado mediante leis consiste em novas normas de competência que constituem no vas autoridades as quais por sua vez podem ser competentes para estabelecer outras autoridades Deste modo surge um complicado sistema de autoridades em vários níveis Uma autoridade cuja com petência é determinada por normas criadas por outra autoridade situase num nível inferior a esta última Duas autoridades cujas com petências respectivas foram criadas pela mesma autoridade superior situamse no mesmo nível e gozam de status idêntico Chamemos a autoridade que estamos considerando de At foi constituída segundo um conjunto de regras de competência formais e materiais Se chamarmos estas regras de Cx Ct terão que ter sido sancionadas por uma autoridade superior A2 ou não Se foram sancio nadas por A2 A2 terá que ter sido constituída por C2 que por sua vez têm que ter sido sancionadas por A3 ou não Visto que a série de autoridades não pode ser infinita é forçoso concluir que em última instância as normas mais altas de competência não podem ser san cionadas tendo que ser pressupostas A linha de pensamento pode ser ilustrada do seguinte modo Direito e Justiça 107 A3 constituída por C3 não sancionadas por uma autoridade A2 constituída por C2 sancionadas por A3 A constituída por Ct sancionadas por A2 A3 é a autoridade suprema e conseqüentemente tem que ser ne cessariamente constituída por normas de competência que não foram sancionadas por nenhuma autoridade sendo porém pressupostas As normas que constituem uma autoridade A e sua competência são ao mesmo tempo normas que determinam como pode ser reformado 0 direito criado por A As normas constituintes determinam as condições para a validade das normas subordinadas e conseqüentemente regem tanto sua sanção como sua reforma Inversamente as normas formula das para a reforma do direito criado por A são ao mesmo tempo nor mas que constituem A As normas que regulam a maneira de legislar por exemplo são simultaneamente normas que indicam de que forma pode ser reformada uma lei nomeadamente por uma nova lei E inversa mente as normas da Constituição que regem o procedimento especial para a reforma da Constituição são ao mesmo tempo normas que esta belecem uma autoridade constituinte distinta da legislativa A pequena tabela apresentada supra mostrou que uma certa auto ridade era suprema e que as normas que constituem essa autoridade não podiam portanto ter sido sancionadas por nenhuma outra auto ridade tendo sim que existir como uma ideologia pressuposta Isto significa que não existe norma superior que determine as condições para sua sanção e reforma válidas De um ponto de vista jurídico portanto é impossível emitir qualquer juízo no tocante ao modo como pode ser alterada a ideologia constituinte superior pressuposta E no entanto esta muda seja mediante revolução seja mediante evolução Mas em ambos os casos 0 fenômeno da mudança é um fato sócio psicológico puro que se acha fora do âmbito do procedimento jurídico Nos Estados Unidos a autoridade suprema é 0 poder constituinte instituído pelas regras estabelecidas no art V da Constituição Estas regras encarnam 0 mais elevado pressuposto ideológico do ordenamento jurídico norteamericano porém não podem ser consideradas como san cionadas por nenhuma autoridade e não podem ser reformadas por nenhuma autoridade Qualquer reforma do art V da Constituição que na prática se leve a cabo é um fato ajurídico e não criação do direito Por meio de um procedimento que tenha sido instituído 108 Alf Ross Estou decerto ciente de que se objetará que todos os políticos que ocupam posições de autoridade atuam de fato na suposição de que o art V da Constituição pode ser juridicamente reformado e que só pode o ser por meio de um certo procedimento a saber o indicado no próprio art V Certamente aceito este modo de ver como um fato sóciopsicológico que exercerá uma grande influência no curso efeti vo da vida política entretanto tal circunstância não é uma razão para modificar a análise lógica precedente Só há um meio possível de objetar o raciocínio expresso na tabela acima Poderseia sustentar que certa autoridade por exemplo A3 pode ser estabelecida em normas sancionadas por ela mesma o que eqüivale a dizer que é possível que uma norma determine as condi ções para sua própria sanção incluindo a maneira pela qual pode ser modificada Uma refíexividade desse tipo contudo constitui uma impossibilidade lógica sendo de ordinário assim reconhecida pelos lógicos7 Uma proposição não pode referirse a si mesma Seria pos sível oferecer uma prova completa disso mas este não é o lugar adequado para tal Penso que se admitirá não ser possível imaginar a legislatura constituída por lei e a lei não poder estabelecer as condi ções para sua própria reforma As regras para isto precisam necessa riamente estar num nível que seja superior em um degrau ao nível da lei Entretanto se admitirse isto para a lei terseá que admitir algo análogo para a Constituição A Constituição tal como a lei não pode expressar as condições para sua própria reforma O art V da Consti tuição portanto não é logicamente parte da Constituição mas com preende normas pressupostas de um plano mais elevado as quais por sua vez não podem estabelecer as condições para sua própria reforma Se tais condições existissem estariam estabelecidas num plano ainda mais elevado Mas não existem de fato O art V da Constituição não é direito legislado mas sim pressuposto Que se adicione a isso que se o art V da Constituição é reformado na prática por um procedimento que se conforma com suas próprias regras não é possível considerar o novo art V como derivado do anterior ou como válido porque é dele derivado Uma tal derivação pressupõe a validade da norma superior e daí a existência continuada da mesma e por meio de derivação não se pode estabelecer uma 7 Ver por exemplo Jírgen Jírgensen Some Reflections on Reflexivity M indlM 19531289 e segs Direito e Justiça 109 nova norma que contrarie a que lhe serviu de fonte Isto será mais fácil de ser entendido se examinarmos um caso menos complicado do que as regras do art V da Constituição Se um monarca absoluto outorga uma Constituição livre o signi ficado jurídico deste ato pode ser interpretado de duas maneiras dis tintas É possível considerar que a nova Constituição possui validade em virtude do poder absoluto do monarca que a outorgou o qual prossegue assim como autoridade suprema A norma básica anterior portanto continua sendo válida e a nova ordem pode ser revogada a qualquer momento pelo mesmo poder absoluto que a outorgou Ne nhuma alteração ocorreu no pressuposto essencial do sistema em sua ideologia fundamental Contudo a nova Constituição também pode ser outorgada pelo monarca com a intenção de que não seja revogável Neste caso não podemos considerar que deriva de seu poder absoluto Não é possível que na conclusão de uma inferência dedutiva válida surja algo que se ache em conflito com as premissas A idéia de que o rei entrega seu poder soberano ao povo como alguém que entregasse um objeto tangível se funda em idéias de soberania puramente mágicas Resulta que ou a nova Constituição deriva da antiga e neste caso não há realmente uma nova Constituição pois o poder absoluto do rei continua invariável ou a nova Constituição substituiu a ante rior mas neste caso não pode ser derivada dela A determinação de qual destas duas interpretações é apropriada em dadas circunstâncias históricas não se respalda em considerações de lógica jurídica mas exclusivamente na ideologia política que se aplica de fato A situação é semelhante no caso das regras mais complicadas do art V da Constituição Segundo esse artigo uma emenda constitucional exige a ratificação de três quartos dos Estados Se por meio desta maioria se decide que no futuro será exigida uma ratificação de quatro quintos dos Estados a nova regra relativa a emendas não pode ser considerada como derivada da anterior do contrário seria possível emendar a nova norma básica por meio do mesmo procedimento utili zado para criála isto é por uma maioria de três quartos e a regra atual de emendas continuaria sendo a norma mais elevada do sistema Tudo isso como dito não nega o fato sóciopsicológico de que um novo art V será mais facilmente aprovado se for adotado o procedi mento estabelecido nas regras do art V da Constituição 110Alf Ross Em suma todo sistema de direito legislado no lato sentido ba seiase necessariamente numa hipótese inicial que constitui a autori dade suprema mas que não foi criada por nenhuma autoridade Existe apenas como uma ideologia política que forma o pressuposto do sis tema Qualquer emenda via procedimento jurídico estabelecido só é possível dentro do sistema cuja identidade é determinada pela hipó tese inicial Toda mudança nesta última isto é toda transição de um sistema para outro é um fenômeno extrasistemático uma mudança fática sóciopsicológica na ideologia política dominante e não pode ser descrito como criação jurídica mediante um procedimento Ao mesmo tempo é difícil imaginar que o art V da Constituição seja alterado salvo num processo que se assemelhe ao procedimento ju rídico determinado pelo próprio art V As forças políticas são domina das de fato por idéias que não podem ser expressas racionalmente mas tãosó em termos mágicos o procedimento estabelecido no art V é o ato mágico que com exclusividade pode soltar o laço criado pelo próprio artigo com apenas uma possível reserva Se na prática se revelasse impossível a reforma do art V em conformidade com suas próprias regras seria possível talvez recorrer com êxito a uma ideologia ainda mais fundamental em apoio à mudança o direito do povo norteamericano de darse a qualquer tempo uma Constituição Em The Age of Jackson 1946 p 410 Arthur M Schleslnger recorda uma tentativa interessante embora infrutífera de recor rerão poder constituinte fundamental do povo Por volta de 1840 no Estado federativo de Rhode Island possuidor de uma Consti tuição que era se comparada com a dos outros Estados muito conservadora surgiu um movimento popular sob a liderança de Thomas Wilson Dorr que exigia a extensão do direito de voto e outras reformas liberais da Constituição O governo conservador permaneceu firme nos seus direitos exclusivos diante do que Dorr recorreu ao poder soberano do povo como fundamento de todo governo Em conseqüência dessa estratégia houve em 1841 duas assembléias constituintes rivais uma convocada apressadamente pelo governo para abrandar os ânimos do povo e uma segunda que não foi o resultado de um procedimento legítimo tendo bus cado sua legitimação diretamente no poder constituinte do povo Neste contexto o passo seguinte foi a aprovação de duas Consti tuições A Constituição popular obteve apoio esmagador num ple biscito e Dorr formou um governo fazendose nomear como go vernador Nenhum dos dois governos se mostrou disposto a ceder Direito e Justiça 111 Em 1842 ocorreu um conflito armado e Dorr foi vencido Fugiu do Estado e centenas de seus adeptos foram presos No ano seguinte tentou retornar secretamente mas foi imediatamente preso e pro cessado Foi condenado à prisão perpétua em regime de trabalhos forçados A despeito do malogro de seu plano este fortaleceu o movimento liberal Em 1845 Dorr foi posto em liberdade e em 1854 sua sentença foi anulada 17 PRECEDENTES JURISPRUDÊNCIA Com certeza podese ter como pacífico que os precedentes isto é as decisões jurídicas anteriores desempenharam sempre um papei importante na decisão relativa a uma disputa legal perante um tribu nal O fato de que num caso anterior de caráter similar se tenha escolhido uma certa regra como fundamento da decisão constitui um forte motivo para que o juiz baseie a decisão presente na mesma regra Além de tal procedimento poupar tempo dificuldades e res ponsabilidades ao juiz esse motivo está estreitamente relacionado à idéia de justiça formal a qual em todos os tempos parece ter sido um elemento essencial da administração de justiça a exigência de que os casos análogos recebam tratamento similar ou de que cada deci são concreta seja baseada numa regra geral parágrafo 63 Por outro lado razões de peso podem ser dadas para a ruptura com práticas anteriores particularmente sob condições sociais em mudança e em relação a áreas do direito nas quais a legislação con tudo não tem interferido para atualizar as normas Em tais circuns tâncias atribuir demasiado valor aoprecedente será considerado formalismo como uma ênfase excessiva nas exigências de justiça formal às expensas da eqüidade material Tal como se afirmou no parágrafo 15 a doutrina das fontes do direito se ocupa daqueles fatores que de fato influem no comporta mento do juiz visto que somente eles podem nos auxiliar na previsão de suas reações futuras Conseqüentemente a única coisa importan te para a doutrina das fontes do direito é o papel motivador que o precedente efetivamente desempenha e não a doutrina oficial que nos diz se o juiz pode levar em consideração os precedentes e caso Possa nos informa se está ou não obrigado por eles Esta doutrina tem estado submetida a uma grande gama de variações nas diferen tes épocas e diferentes sociedades 112 Alf Ross Associativamente às grandes codificações o legislador na vã es perança de preservar sua obra tem proibido amiúde a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito Já Justiniano proibiu decisões de acordo com precedentes non exemplis sed leglbus judícandum esfa No Código Prussiano Allgemeines Landrecht de 1794 encontramos preceitos similares Na Dinamarca depois da aprovação do Código Dinamarquês em 1683 proibiuse que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema A medida foi rescindida em 1771 Essas proibições drásti cas se provaram ineficazes tornando preponderante na Europa con tinental o ponto do vista de que no interesse da certeza das decisões prévias dos tribunais superiores em particular as da Corte Suprema deviam ser respeitadas embora não dispusessem de força obrigató ria formal como acontecia com o direito legislado A doutrina anglosaxônica é totalmente distinta9 Já no século XIII tornouse usual citar precedentes e no seu famoso NoteBook Bracton colecionou dois mil casos quase certamente para finalidade prática Originalmente não se entendia que o juiz estivesse obrigado por eles A doutrina anglosaxônica desenvolveuse muito gradualmente e assu miu uma forma mais definida nos séculos XVII e XVIII Porém a au sência de uma organização hierárquica homogênea dos tribunais e o estado das coleções jurídicas impediram que a doutrina alcançasse seu pleno desenvolvimento Estas deficiências foram remediadas recente mente no século XIX A doutrina atualmente objeto de reconhecimento geral denominada stare decisis pode ser sintetizada como segue 1 Um tribunal é obrigado pelas decisões dos tribunais superiores e na Inglaterra a Câmara dos Lords e a Corte de Apelações estão obrigadas por suas próprias decisões 2 Toda decisão relevante pronunciada por qualquer tribunal cons titui forte argumento passível de pleitear respeitosa consideração 3 Uma decisão somente é obrigatória com respeito a sua ratio decidendi 4 Um precedente não perde vigência embora os precedentes muito antigos não sejam em princípio aplicáveis às circunstâncias modernas 8 Código 7 45 13 9 Ver por exemplo C K Allen Law in the Making 4 ed 11946 151 e segs Direito e Justiça 113 Não é fácil decidir em que medida os juizes ingleses e norteamericanos em harmonia com a doutrina da força obrigató ria atribuem na realidade maior importância ao precedente em suas decisões do que seus colegas da Europa continental o que não pode ser tomado por pressuposto Por um lado é fato que os juizes anglosaxões sem se sentirem obstados pela doutrina de stare decisis freqüentemente desconsideram os precedentes que não se coadunam mais com as novas condições A maior prova disso reside no fato de que a common law que se desenvolveu através da prática dos tribunais não é atualmente a mesma de cem anos atrás Houve mudanças e continuam havendo Não se trata de algo incompatível com a doutrina de stare decisis O decisivo ao considerar essa doutrina não é o problema ideológico de determinar se os precedentes possuem na realidade força obrigató ria ou não mas sim saber se a doutrina fornece a este respeito crité rios objetivos tais que ao apreciar a força motivadora das decisões anteriores seja possível falar de uma limitação genuína à liberdade do juiz o que tem que ser negado em particular por duas razões a Em primeiro lugar como já indicamos um precedente só é con siderado obrigatório na medida em que concerne a ratio decidendi subjacente à decisão10 Por isso se entende o princípio geral de direito que tem que ser introduzido como premissa para dar suporte à deci são Contudo ao determinar o princípio básico de um caso o juiz não se encontra obrigado pelas declarações feitas pelo juiz que o decidiu considerase que o segundo juiz tem direito de interpretar a decisão à luz de sua própria razão11 Mas é óbvio que uma decisão poderia ser encarada como derivada de uma grande variedade de regras gerais tudo conforme os fatos do caso que julgamos relevantes 10 Ver Allen ibid 227 e segs G W Paton Jurisprudence 1946 159161 11 Quando se trata de lei criada por caso de precedência e inexiste norma legislada o juiz não se acha submetido à enunciação da regra jurídica feita pelo juiz anterior nem sequer na suposição de que a regra tenha sido enunciada no controlling case Tal enunciado constitui simples dictum o que quer dizer que o juiz do caso presente pode julgar irrelevante a existência ou a ausência de outros fatos que os juizes anteriores consideraram importantes Não é o que foi proposto pelo juiz anterior que tem importância pelo contrário é o que o juiz do caso presente tentando ver o direito como um todo dotado de razoável grau de consistência pensa que deve ser a classificação determinante Edward H Levi An Introduction to Legal Reasoning 1949 2 Qualquer caso constitui precedente detentor de autoridade somente para um juiz que como resultado de sua própria reflexão decide a favor dessa autoridade Jerome Frank Courts on 7a 1949 279 114 Alf Ross Um autor norteamericano12 cita o seguinte exemplo O pai de A a induz para que não se case com B com quem A prometeu se casar O juiz decide que o pai não é responsável perante B por sua atitude Esta decisão pode fundarse numa série de propo sições de amplitude crescente Eis a seguir algumas I aO pai tem o direito de induzir suas filhas a violar promessas de casamento v 2a Os pais quer dizer o pai e a mãe têm tal direito 3a Os pais quer dizer o pai e a mãe têm tal direito tanto no tocante às filhas quanto aos filhos 4a Todas as pessoas têm o direito de induzir às demais a violar promessas de casamento 5a Os pais pais e mães têm tal direito relativamente a qualquer promessa feita por seus filhos filhos e filhas 6 aTodas as pessoas têm tal direito relativamente a qualquer pro messa feita por qualquer pessoa Ainda quando muitas dessas interpretações possíveis achamse além do que pensamos poderia um juiz sustentar é inegável que o juiz detém considerável liberdade para interpretar a ratlo decidendi de tal sorte que um precedente invocado não constitua necessaria mente um obstáculo à decisão que por outros motivos deseja ele ditar Neste ensejo a citação a seguir é oportuna Em qualquer tentativa de descobrir quais são os fatos rele vantes surgem muitas dificuldades Assim em Donoghue contra Stevenson7 decidiuse que um fabricante de cerveja de gengi bre tinha o dever perante o consumidor de impedir que restos decompostos de caracóis causassem transtornos gástricos no con sumidor Teria sido absurdo restringir a ratio à cerveja de gengi bre Mas restringiase a regra a gêneros alimentícios Ou a coi sas capazes de causar dano à vida à saúde ou à integridade física Tinha relevância o fato de não ter havido possibilidade de uma inspeção intermediária por parte do varejista Ou era sufici ente que a res tivesse chegado ao consumidor sujeita ao mesmo 12 H Oliphant A Return to Stare Decisis Amer BarAss Jo 1 141928 71 esegs 159 e segs 13 1932 A C 562 Direito e Justiça 115 defeito não existindo probabilidade comercial de uma inspeção intermediária Muitas decisões foram necessárias para a elabo ração do significado real da doutrina O Prof Goodhart sugere que um fato é relevante a menos que seja considerado explícita ou implicitamente irrelevante porém a dificuldade consiste em descobrir o que é o implícito Em verdade não podemos freqüentemente descobrir o ponto relativamente ao qual um caso tem força obrigatória a não ser que o consideremos na sua rela ção com casos anteriores ou posteriores Um caso por assim dizer indica um ponto no gráfico mas para traçar a curva do direito necessitamos de uma série de pontos14 b Em segundo lugar mesmo quando o juiz não deseje discutir a ratio decidendiúe um precedente ihe é possível distinguir o caso pre sente do anterior As circunstâncias efetivas nunca são idênticas O próprio juiz aquilata quais entre elas são relevantes e pode eludir um precedente citado se sustentar que num aspecto ou outro o caso em pauta difere do anterior de modo a não ser obrigado pelo precedente15 Por conseguinte a doutrina de stare decisisnão passa na realida de de uma ilusão Tratase de uma ideologia mantida por certas razões com o intuito de ocultar aos seus propugnadores e aos demais a livre função criadora de direito detida pelos juizes e transmitir a impressão falaciosa de que estes apenas aplicam o direito existente o qual pode ser determinado em virtude de um conjunto de regras objetivas como indica a doutrina de stare decisis Por outro lado é também um fato que mesmo supondose que o precedente não possua força obrigatória os juizes da Europa continen tal são influenciados em grande medida por decisões anteriores e apenas esporádica e relutantemente se afastam da prática aceita Po rém também neste caso é difícil descobrir o que realmente acontece 4 Citação de G W Paton Jurisprudence 1946 160 15 Este resultado pode ser obtido limitando um caso aos seus fatos particulares E quando constatamos que isso é afirmado acerca de um caso passado sabemos que de fato o caso foi superado overruledl Só um convencionalismo um convencionalismo de algum modo absurdo impede que em tais casos se recorra a uma pura e simples superação overmíng 16 A despeito de Allen ser adepto da doutrina tradicional segundo a qual o juiz é obrigado pelos precedentes admite que cabe ao próprio juiz decidir se nas circunstâncias que se apresentam existe tal obrigação Dizemos que é obrigado pelas decisões de tribunais superiores e sem dúvida é Entretanto o tribunal superior não acorrenta o juiz ê ele que acorrenta a si mesmo 0 juiz tem que decidir se o caso a ele citado se ajusta às circunstâncias em pauta e se encarna precisamente o princípio por ele buscado 0 mais modesto dos oficiais do judiciário tem que decidir por si mesmo se é ou não obrigado nas circunstâncias particulares do caso por qualquer decisão determinada da Câmara dos Lords C K Allen Law in theMaking 4 ed 1946 247248 116 Alf Ross em parte porque amiúde os considerandos não mencionam o preceden te e em parte porque com freqüência as novas linhas jurisprudenciais não aparecem como um abandono da prática anterior abertamente admitido Não houve no continente europeu um predomínio de uma ideologia correspondente à angloamericana presumivelmente em vir tude do papel muito mais substancial que desempenha aqui a legisla ção como fonte do direito O desejo de ver o juiz obrigado por um direito objetivamente determinado estabelecido de antemão é satisfeito aqui pela doutrina da força obrigatória absoluta da lei Diante dessas circunstâncias é forçoso reconhecer que não exis tem pontos para comparação direta entre os dois sistemas no tocante ao papel que de fato o precedente desempenha como fator de mo tivação na prática judicial A única coisa que podemos afirmar com alguma certeza é a proclamada ideologia porém isto não indica como são efetivamente as coisas E contudo é possível apontar várias circunstâncias de fato que em escala muito maior que a ideologia podem explicar a diferença entre os dois sistemas e mostrar porque o precedente e a legislação desempenham um papel diferente em cada um deles Primeiramente contemplamos o papel tradicionalmente protagonizado na evolução do direito pelo jurista acadêmico e a legis lação sistemática Cumpre buscar a diferença fundamental entreos dois sistemas nesse ponto Na tradição da Europa continental o direi to é em ampla medida um produto acadêmico ostentando por isso num grau correspondente o timbre do pensamento acadêmico e sua tendência à análise sistemática e à racionalidade Com firme funda mento na tradição do direito e por meio do pensamento racional bus case chegar a princípios gerais que sirvam de diretrizes e sistematizar as normas jurídicas em conformidade com esses princípios Ausentes a tradição acadêmica e os estudiosos do direito os quais têm desempe nhado o seu papel desde o tempo dos glosadores até a atualidade as codificações da Europa ocidental seriam inconcebíveis Na Inglaterra por outro lado foi o jurista prático o juiz quem exerceu a influência preponderante no desenvolvimento do direito o qual assim evoluiu nas linhas de um método experimental Por meio de um processo gra dual de tentativa e erro de um caso para outro buscouse formular uma doutrina para expressar o direito que rege uma certa esfera da vida Só nos tempos modernos surgiu uma tendência para sistematizar Direito e Justiça 117 e generalizar o material jurídico desenvolvido daquela forma Sob a pres são do número esmagador de precedentes que ameaçam detonar as bibliotecas os norteamericanos têm produzido uma série de restatements ou seja codificações no padrão europeu porém desprovidas de autori dade oficial Esses restatements são o produto de extensos trabalhos coletivos realizados por estudiosos do direito Na Inglaterra igualmente os trabalhos doutrinários de sistematização desempenham um papel cres cente A próxima etapa no desenvolvimento será talvez uma codificação detentora de autoridade via legislação Então desaparecerá a diferença real entre o direito da Europa continental e o angloamericano embora a doutrina de stare decisis permaneça inalterada É compreensível que a concepção do precedente como uma fonte do direito provida de autoridade tenha se originado num sistema no qual o direito se desenvolveu através da prática dos tribunais e no qual a legislação desempenhou um papel secundário Contudo como fiz notar não se pode ter por certo que a doutrina de stare decisis reflete uma situação efetiva no sentido de que os juizes angloamericanos se sentem obrigados pela jurisprudência preceden tes num maior grau que seus colegas da Europa continental Pelo contrário seria possível supor que os juizes do continente europeu não se sentem responsáveis pela evolução do direito em medida idên tica aos seus colegas angloamericanos estando sim inclinados a deixar nas mãos do legislador qualquer tentativa de reforma ao menos na quelas esferas jurídicas que tradicional e regularmente estão submeti das à legislação Se assim fosse resultaria que contrariamente ao que proclama a ideologia oficial o juiz estaria de fato menos disposto a afastarse dos precedentes Juntese a isso que a maneira tradicional de redigir as decisões exerce uma importante influência no peso que na prática se atribui ao precedente Os pareceres dos juizes ingleses destacamse devido a sua ampla discussão dos pontos de vista jurídicos que fundamentam a decisão Embora segundo a doutrina oficial tais raciocínios não sejam obrigatórios para interpretar a ratio decidendiúa decisão é óbvio que de fato assumem grande importância Oferecem ao novo juiz um copioso acervo de material para lhe servir de orientação A prática da Europa continental segue linhas distintas Na Dinamarca por exemplo existe a tendência de expressar o raciocínio dos pareceres nos termos mais concretos e menos comprometedores possíveis O resultado natural é que as decisões perdem valor como precedentes orientativos 118 Alf Ross Outro fator é a quantidade e acessibilidade da jurisprudência prece dentes O hábito de recorrer à jurisprudência nos escritos e petições dos advogados requer coletâneas de registros analíticos contendo excertos de decisões numa escala que é desconhecida nos países da Europa continental 18 COSTUME É fato sociológico notório que a vida de um povo primitivo é regida nos seus mais ínfimos detalhes pelo costume Há normas consuetudi nárias sobre a maneira de caçar de pescar e de fazer a guerra no que toca à divisão do saque às relações sexuais o relacionamento socialas boas maneiras o cumprimento das cerimônias religiosas e mágicas etc O costume é um modo de conduta que é geralmente seguido e que é experimentado como obrigatório qualquer trans gressão suscitando reações de reprovação por parte da tribo Tais reações partem originalmente do grupo como um todo podendo as sumir uma grande variedade de formas desde a pena de morte o castigo corporal e a expulsão da tribo até a manifestação do desprezo público e a exposição ao ridículo17 Tal como observou Abraham Tucker é um argumento constante entre as pessoas comuns que uma coisa tem que ser feita e deve ser feita porque sempre foi feita As crianças mostram respeito ao consuetudinário o mesmo ocorrendo com os selvagens Se alguém indaga a um cafre porque faz isto ou aquilo ele responderá Como posso explicálo Nossos antepassados sempre procederam assim A única razão que os esquimós podem apresentar como explicação para alguns de seus costumes aos quais acatam por receio de má fama entre os seus é os antigos assim faziam e conseqüentemente é preciso assim fazer No comportamento do aleutiano que se enver gonha se for surpreendido fazendo algo que não se costuma fazer em sua comunidade e no terror do europeu médio de parecer singular reconhecemos a influência da mesma força do hábito18 Mesmo entre os povos muito primitivos podese por vezes en contrar um chefe um grupo de anciões um conselho de sacerdotes 17 Ver Edward Westermarck The Orígin and Oevelopment of the Mora Ideás 111924 170 e segs 18 Ibid p 159 Direito e Justiça 119 ou um tribunal de algum tipo que em caso de dúvidas decide que sanções devem ser aplicadas19 Isto poderia ser considerado como o primeiro gérmen de uma autoridade pública A partir daí desenvolve se paulatinamente um poder judicial organizado e estabelecido e posteriormente grupos especiais cuja função é legislar e executar as decisões compulsoriamente Deste modo criase gradativa mente um mecanismo jurídico e um sistema de autoridades públicas que reivin dicam o monopólio do exercício da força Assim de forma gradual o direito e o costume se diferenciam por um lado as normas que são respaldadas pelo exercício organizado da força e por outro as nor mas que só encontram respaldo nas reações espontâneas não violen tas desprezo exposição ao ridículo etc É evidente que o poder judicial sempre precede o legislativo O juiz formava originariamente seu juízo de acordo com as regras tradicionais do costume Paulatinamente à medida que surgiam situações novas o juiz foi descobrindo o que era correto ou adequado isto é as regras tradicionais foram adaptadas e desenvolvidas segundo o espírito tradicio nal para atender às novas necessidades Através da prática dos tribu nais no decorrer do tempo uma torrente herdada de idéias jurídicas vivas que brotavam na consciência do povo ou ao menos na dos espe cialistas em questões de direito assumiu expressão e se consolidou No que tange ao direito primitivo portanto não nos cabe per guntar se o costume é uma fonte do direito e o sendo por que é O costume é o ponto de partida natural da evolução jurídica Sob a perspectiva da evolução histórica o grande problema é mais exata mente o da gênese de um poder legislativo ou seja como aconteceu de nascer e perdurar a ideologia de que certas pessoas possuem autoridade para proclamar novas normas que serão aceitas como váidas pelos juizes e pelos súditos20 Este problema aponta para a origem de uma ideologia política e constitui um tema de sociologia jurídica e não de filosofia do direito Aceitamos o desenvolvimento de um poder legislativo como um fato É de se supor que o grosso da legislação consistiu num primeiro momento em codificar o direito que já era vigente Foi somente de Ibid p 173 20 Os índios norteamericanos às vezes dizem Outrora não havia lutas por territórios de caça ou de pesca Não havia então lei de modo que todos faziam o que era correto A expressão deixa claro que outrora eles não se considera vam submetidos a um controle social imposto do exterior Ruth Benedict Pattern of Culture Mentorbook ed 1946 233 120 Alf Ross modo lento e gradual que a legislação passou a ser um instrumento social e político colimando o regramento consciente e deliberado daj vida da comunidade Enquanto o costume determinou originariamen te o direito com o transcorrer do tempo o direito determinou dei maneira cada vez mais crescente o costume Mas é fácil perceber que o poder do legislador de moldar o desenvolvimento do direito foi limij tado Nos casos em que a divergência entre o direito e as idéiasi jurídicas herdadas mostrouse muito acentuada o direito foi incapaz de modificar a consciência jurídica e se converteu em letra morta f À medida que o direito foi se tornando progressivamente mais fixo através da legislação e da prática dos tribunais o costume como fonte do direito foi perdendo terreno Presentemente o costume salvo nos usos comerciais tem importância secundária O costume como fonte do direito suscita um problema que ocupou e continua a ocupar um lugar na história da filosofia do direito que é desproporcional ao lugar que ocupa o costume nas comunidades ju rídicas modernas Parece óbvio que nem todo costume pode ser con siderado fonte do direito Dizse que somente o costume jurídico o é e este é caracterizado por um elemento especial em termos de expe riência psicológica chamado opinio necessitatis sive obligationis um sentimento de estar obrigado ou uma convicção de que o comporta mento exigido pelo costume é também um dever legal Essa explicação todavia pode não ser correta Todo costume in clusive aquele que me leva a apresentarme com uma roupa apropria1 da é sentido como obrigatório e o comportamento que se opõe a ele i como algo merecedor de reprovação Este sentimento e esta reaçãoi definem o costume como algo distinto da mera convenção e da prática comum O costume jurídico tampouco pode ser caracterizado pelas convicção de que a conduta exigida por ele seja um dever legal con vicção que necessariamente eqüivale à expectativa de que o costume terá que ser aceito pelos tribunais como um padrão que sirva para fundar decisões Tal convicção não pode surgir arbitrariamente tendo sim que ser motivada e justificada por alguma qualidade inerente ao costume que é considerado obrigatório e que o distingue de outros costumes A convicção do caráter jurídico do costume tem necessaria mente que derivar de um critério objetivo e o costume não pode ser definido por essa convicção tal como o ferro não pode ser definido dizendose que é a substância que geralmente é considerada ferro Direito e Justiça 121 É mister que busquemos a explicação do costume como fonte do direito de acordo com nosso esquema da história da evolução do direito Originalmente todas as relações da vida comum no grupo social se achavam igualmente submetidas ao regramento não organizado do costume mas a diferenciação de um ordenamento jurídico fundado na aplicação da força física dividiu essas relações Extensas esferas da vida da comunidade se tornaram objeto de regramento jurídico Outras esfe ras nas quais se considerou desnecessária a aplicação de medidas de força ficaram regradas pelos usos convencionais com sanções que se restringiam à pressão não violenta Um costume jurídico é simplesmen te um costume regulador numa esfera da vida que está ou que chega a estar 21 sujeita ao regramento jurídico Essa teoria esclarece que ra zões tem o juiz para levar esses costumes em consideração e esclarece também porque a reação do juiz pode ser antecipada por aqueles que praticam o costume A opinio aecesstefscaracterizadora de todo cos tume está vinculada à expectativa de uma reação social de reprovação de uma forma ou outra contra aquele que viola o costume Numa esfe ra de vida que se acha submetida ao regramento jurídico tal expectati va assume esta forma sanções legais são previstas se a questão é levada aos tribunais Assim neste campo o sentimento geral de achar se obrigado opinio necessitatis combinase com uma expectativa que certamente pode ser qualificada como atitude éticojurídica Uma decisão norueguesa referese ao caso do proprietário de um sítio em Trysil que apresentou uma demanda sustentando que se gundo o costume daquela região os pequenos proprietários tinham o direito de se apropriarem da madeira caída que se encontrava em terra alheia A existência desse costume não foi aceita porém se o fosse teria constituído um caso conspícuo de costume jurídico já que as questões relativas à propriedade são reguladas pelo direito É costume jurídico um uso vigente no comércio de madeira segun do o qual temse como pagamento à vista o pagamento feito dentro dos trinta dias da data da fatura e o é porque a questão referente ao ensejo do pagamento está sujeita ao regramento jurídico Inversamente o costume que requer o uso da beca na cerimônia de formatura na Universidade não é um costume jurídico já que nos 21 Penso aqui que uma esfeta de vida até esse momento fora do campo do direito é submetida ao regramento deste por meio da prática dos tribunais 122 Alf Ross limites da decência as questões de vestimenta não são normalmentai regidas pelo direito todavia uma oplnlo necessltatls slve obllgatlonls bastante definida está certamente ligada a esse costume Porémj quando em casos excepcionais a maneira de vestir é regida pelo dN reito como ocorre no caso dos uniformes é possível que surçam cos tumes jurídicos dentro de tais esferas particulares j Num sistema jurídico evoluído no qual a diferença entre direito el usos convencionais pode ser considerada completa normalmente nãctj resta dúvidas portanto quanto a quais costumes são tidos como fonte do direito Pode haver incerteza contudo em particular relatiJ vãmente aos costumes comerciais com respeito à existência de urr determinado costume isto é se existe como ordem ante a qual as pessoas se sentem obrigadas e cuja violação merece reprovação geral ou se pelo contrário o padrão de comportamento não passa de um hábito ou uso convencional sem nenhuma qualidade normativa a qual existe por exemplo por razões de conveniência técnica A maio ria de nós por exemplo acendemos a luz quando escurece e nosj agasalhamos quando faz frio mas o fazemos sem nos sentirmos obrb gados pelo costume além de não haver reprovação geral se alguém agir diferentemente A distinção entre costume e prática comum usoJ convencional contudo nem sempre é fácil Pode ser difícil decidirj por exemplo se a concessão de um preço regular de um serviço oul de um benefício similar é simplesmente uma conveniência quer dij zer um método geral de competição ou um costume Nos sistemas jurídicos primitivos por outro lado não é possível traçar uma linha divisória nítida entre os costumes jurídicos e os qud não o são porque a diferenciação entre as esferas de vida regrada pelo direito e as liberadas aos usos convencionais não foi consumada As condições se acham entretanto num estado evolutivo sendo ta refa própria do juiz e do legislador decidir quais costumes serão transformados em direito e quais não serão E o que ocorre numa grande medida com o direito internacional É difícil decidir se urríí costume internacional será aceito como direito ou simplesmente conJ siderado como parte da comitas gentium Muitos costumes relaciona dos à atividade diplomática e às demonstrações honoríficas entrei Estados têm esse caráter e o problema de determinar quais costu mes devem ser aceitos como direito só pode ser solucionado pofj decisões futuras ou pela codificação j Direito e Justiça 123 Por conseguinte no Estado moderno um costume jurídico indica que em certas situações determinadas regras jurídicas que são nor malmente aplicáveis não são observadas por setores mais ou menos grandes da população os quais acatam em contrapartida a regra consuetudinária As leis gerais reguladoras da propriedade podem ce der por exemplo diante um costume local que autorize a apropria ção da madeira caída em terra alheia Ora não é difícil um tal efetivo estado de coisas poder levar um juiz a apoiarse no costume para construir uma decisão Um parecer formado sobre esse fundamento se ajustará melhor às idéias e expectativas das partes e conseqüente mente será considerado justo e apropriado Robustecerá a confiança nos tribunais e o sentimento de certeza como o leigo entende esta expressão isto é como concordância entre a decisão e as expectativas da consciência jurídica popular22 Por outro lado também é concebível que o juiz considere que o costume é tão contrário aos princípios jurí dicos fundamentais tão irrazoável que se negue a aceitálo A razão básica em virtude da qual o juiz leva em consideração o costume é o elemento psicológico o sentimento de obrigação e va lidade com o qual a conduta consuetudinária é experimentada A conduta exterior por outro lado é apenas significativa como indica ção externa e visível e prova de que esse sentimento existe com tal seriedade e força que é capaz de prevalecer sob forma efetiva dentro de um determinado grupo Encaradas as coisas deste modo o juiz não tem porque exigir que o costume tenha sido observado durante um certo lapso de tempo quando as circunstâncias oferecerem fundamento sufi ciente para se crer que chegou a predominar uma atitude éticojurídica dotada de um certo grau de estabilidade Quando a exigência da condu ta exterior e do fator tempo se debilitam o costume como fonte do direito conduz imperceptivelmente a situações nas quais o juiz é motiva do por uma nova concepção jurídica da comunidade mesmo quando tal concepção não tenha encontrado expressão em nenhum costume Há um domínio particular no qual a doutrina tradicional de que o costume tem que haver sido observado por um longo tempo para ser reconhecido como jurídico é evidentemente inadequada Os costumes relativos ao comércio especialmente os costumes ou usos comerciais de uma forma de comércio em particular não são de ordinário muito A certeza jurídica no sentido que lhe atribui o profissional significa o grau de probabilidade com o qual o jurista versado pode calcular de antemão as reações do tribunal 124 Alf Ross antigos A despeito disso é obrigatório além de constituir uma prática jurídica geral leválos em consideração ao interpretar os contratos A doutrina tradicional do direito consuetudinário como a doutrina inglesa do precedente empenhase em estabelecer sob quais condições objetivas o juiz está obrigado por um costume Desde a época do desen volvimento dessa doutrina na teoria romanocanônica dos séculos XII a XVI período dos glosadores até o presente os pormenores da formulai ção daquelas condições certamente sofreram variação a idéia subjacente contudo tem permanecido idêntica a saber que é possível enunciai critérios objetivos para determinar quando um costume é obrigatóriá Para o direito inglês Allen formulou as condições que se seguem23 O costume tem que 1 ser imemorial isto é ter existido pelo menos desde o anq 1189 Quando o costume foi vigente por um longo tempo presume se que tenha existido desde aquela data 2 ter sido acatado continuamente 3 ter sido exercido pacificamente e nec dam nec precário 4 ter sido sustentado pela opinio necessitatis 1 j 5 ser certo e 6 ser razoável implicando entre outras coisas que não tenha que ser incompatível com os princípios fundamentais da common iau e do direito legislado Se houver provas de que tais condições são satisfeitas diz Allen o juiz terá o dever de declarar que o costume é direito válido Está doutrina como a doutrina do precedente é uma ideologia cuja função consiste em ocultar a liberdade e a atividade jurídica criadora do juiz É óbvio que as condições estabelecidas particularmente eni 4 e 6 facultam ao juiz ampla liberdade para o seu parecer 19 A TRADIÇÃO DE CULTURA RAZÃO j No parágrafo anterior procurei mostrar como o direito se desenj volveu originariamente a partir de costumes da tribo até que fosses 23 Allen oo cit 127 e seps Direito e Justiça 125 gradualmente estabelecido por meio da prática dos tribunais e a le gislação O direito criado dessa maneira é chamado de direito positi vo Esta expressão sugere a existência do direito sob a forma de normas objetivamente fixas Essa positividade é mais manifesta no direito legislado isto é o direito que encontrou formulação verbal revestida de autoridade Porém o direito criado por casos de prece dência especialmente se houver uma prática há muito existente tam bém possui um elevado grau de positividade mesmo quando careça de formulação verbal revestida de autoridade O direito legislado não é está claro um fíatarbitrário emitido pelo legislador O poder deste é um poder sobre as mentes dos seres huma nos e se apóia na consciência jurídica institucional parágrafo 11 Mas há um limite para a possível discordância entre o respeito leal ao direito legislado de um lado e do outro os costumes tradicionais da comuni dade e a tradição cultural em que se sustentam Os costumes popula res não são nem absolutos nem fundamentais mas sim manifestações de uma fonte ainda mais profunda No seio de todo povo há uma tradição comum viva de cultura que anima todas as formas manifestas da vida do povo seus costumes e suas instituições jurídicas religiosas e sociais É difícil descobrir a natureza e essência dessa tradição Pode se falar de um conjunto de valorações mas esta expressão é enganosa porque é capaz de sugerir princípios de conduta e padrões formulados de maneira sistemática Seria melhor dizer que sob a forma de mito religião poesia filosofia e arte vive um espírito que expressa uma filosofia de vida que é uma íntima combinação de valorações atitu des parágrafo 70 e uma cosmogonia teórica incluindo uma teoria social mais ou menos primitiva Entretanto seria errôneo pensar com base nesta distinção abstrata que a tradição comum de cultura é algo composto em parte por posturas valorativas e em parte por uma concepção teórica da realidade O mito é um credo sobre a criação e a natureza do mundo o poder dos deuses e suas vidas as origens de um Povo sua história destino e missão a luta entre o mal e o bem a origem da vida e seu significado o lugar da humanidade em relação aos deuses e à natureza A religião a poesia a filosofia e a arte ocu Pamse de distintas maneiras dos mesmos objetos E todos eles são em idêntica medida a expressão de ideais de modos de vida e de crenças teóricas O conceito de credoé caracterizado precisamente por essa dualidade Um credo é uma crença teórica cuja função principal é Apressar uma filosofia de vida 126 Alf Ross A tentativa de distinguir entre uma apreensão não valorativa uma atitude valorativa o princípio norteador da ciência é um fenc meno muito posterior que ocorre dentro de uma esfera particular d cultura o qual é cultivado por um pequeno círculo de especialistaí amiúde com escasso êxito i A tradição cultural não é imutável O fator de mudança em seü desenvolvimento pareceria ser um certo discernimento de tipo matí ou menos científico que lentamente surge da experiência Desta prd vém por um lado uma mudança de técnica em todas as fases da vida métodos de produção métodos bélicos métodos políticoadml nistrativos etc e por outro lado uma revisão crítica dos mitos furi damentais Ambas atuam de modo reflexo sobre a tradição cultural Limitome aqui a assinalar esses fatos elementares cuja descrição adequada pode ser encontrada em trabalhos de sociologia da cultura2 a fim de deixar claro quão pouco realista é esse tipo de positivisma jurídico que restringe o direito às normas estabelecidas pelas autoridan des e crê consistir a atividade do juiz apenas numa aplicação mecânica de tais normas Podemos comparar essas normas positivas a cristais que se depositaram numa solução saturada que se conservam graças a essa solução mas que se destruiriam se fossem colocados num líquidâ diferente ou podemos comparálas a plantas que morrem quando sã arrancadas do solo nutriente no qual cresceram As normas jurídicas tal como toda outra manifestação objetiva da cultura são incompreen síveis se as isolarmos do meio cultural que lhes deu origem O direitd está unido à linguagem como veículo de transmissão de significado e d significado atribuído aos termos jurídicos é condicionado de mil manei ras por tácitas pressuposições sob forma de credos e preconceitos aspirações padrões e valòrações que existem na tradição cultural qu circunda igualmente o legislador e o juiz j No cumprimento de sua missão o juiz se acha sob a influência dá tradição cultural porque é um ser humano de carne e osso e não um autômato ou melhor porque o juiz não é um mero fenômeno biológico mas também um fenômeno cultural Vê em sua atividade uma tarefa enrt serviço da comunidade Deseja descobrir uma decisão que não seja d resultado fortuito da manipulação mecânica de fatos e parágrafos maá 24 Ver por exemplo Ruth Benedict Patterns ofCulture 1934 Quanto à palavra mito ver R M Maclver The Web Government 1948 3 e segs e 447 e segs Direito e Justiça 127 sim algo que detenha um propósito e um sentido algo que seja válido A tradição cultural adquire primordialmente significado porque o juiz lê e interpreta o direito no espírito deste ver próximo capítulo Mas a tradição cultural pode também atuar como uma fonte do direito direta isto é pode ser o elemento fundamental que inspira o juiz quando este formula a regra na qual baseia sua decisão É possível surgir uma situação na qual o juiz seja incapaz de en contrar entre as fontes positivas alguma regra passível de ser tomada como fundamento para sua decisão Ele sempre pode proferir sua sentença a favor do demandado com base em que não há norma detentora de autoridade que sustente a reivindicação do demandante Tal seria provavelmente o resultado se por exemplo A instaurasse um processo contra seu vizinho B visando a obter uma ordem judicial para que ele removesse uma estátua instalada no jardim de B cuja baixa qualidade artística a torna intolerável para A que pode vêla através de sua janela Entretanto o resultado não seria necessaria mente o mesmo se A pretendesse que se proibisse a B utilizar a história da vida dele A como tema de um filme Talvez neste caso um parecer a favor do demandado se afigurasse insatisfatório aos olhos do juiz visto que tal resultado quem sabe não se harmonizas se com as posturas e pontos de vista inerentes à tradição jurídica e cultural que determina a reação emocional do juiz Nesta conjetura o juiz poderia sentirse pouco inclinado a rechaçar a demanda porque não há norma detentora de autoridade que lhe dê apoio A ausên cia de toda norma detentora de autoridade é sentida como uma falta um defeito ou lacuna no direito que o juiz deve preencher Ele o fará decidindo a questão concreta colocada na forma que aquilate como justa e ao mesmo tempo se empenhará em justificar sua decisão destacando os pontos do caso que lhe parecem relevantes E assim inspirado pelas idéias fundamentais da tradição jurídica e cultural o juiz formará como se fosse experimentalmente uma regra jurídica geral Mediante uma série de decisões referentes a circunstâncias análogas os perfis dessa regra irão adquirindo fixidez gradualmente e fará sua aparição um direito de precedentes criado pelo juiz Ao preparar assim o caminho para um novo direito o juiz pode se deixar orientar diretamente por seu senso de justiça ou pode tentar racionalizar sua reação por meio de uma análise das considerações Praticas com base num cálculo jurídicosociológico dos efeitos 128 Alf Ross presumíveis de uma regra geral ou outra Mas também neste últim caso a decisão surgirá de uma valoração fundada nos pressupostc da tradição jurídica e cultural O que denominamos razão ou com derações práticas é uma fusão de uma concepção da realidade e d uma atitude valorativa parágrafo 78 A premência do tempo contudo impedirá na maioria dos casc todo estudo teórico mais profundo das condições sociais implicada na questão jurídica que o juiz tem que decidir Entregue às suas prt prias forças o juiz terá que confiar principalmente no que sente int mamente Porém em relação a issó a doutrina pode contribuir par a prática com uma valiosa ajuda pois é precisamente tarefa da doutr na em considerações feitas de sententia ferenda reunir e sistemat zar aqueles conhecimentos e valorações de fatos sociais e circunstâr cias correlatas que podem constituir uma contribuição valiosa ao pre gresso do direito através da prática dos tribunais É imperioso portanto que se rejeite o positivismo porque faltalh compreensão no tocante à influência da atmosfera cultural na aplia ção do direito Por outro lado com a mesma firmeza precisamos reje tar a postura antipositivista corrente que interpreta o fundament não positivista das normas positivas em termos metafísicos quer a zer como um direito natural baseado num discernimento racional priori Bastará a esta altura consultar o parágrafo 13 e o capítulo X A palavra positivismo é ambígua Pode significar tanto o apoiado n experiência quanto o que está formalmente estabelecido A reaçã contra o positivismo que parece ser uma característica predominant da moderna filosofia do direito se justifica em relação ao último desse significados mas não em relação ao primeiro Uma doutrina realista da fontes do direito apóiase na experiência porém reconhece que nef todo direito é direito positivo no sentido de formalmente estabelecida 20 A RELAÇÃO DAS DIVERSAS FONTES COM O DIREITO VIGENTE Geralmente admitese como ponto pacífico que uma lei que foi dev damente sancionada e promulgada é por si mesma direito vigentx isto é independentemente de sua ulterior aplicação nos tribunais Ir versamente é provável que raramente se pensa que o que pode st derivado da razão tenha tãosó por isso caráter de direito vigentí Direito e Justiça 129 somente o reconhecimento na prática dos tribunais confere tal caráter ao produto da razão No que concerne ao costume há aguda divergên cia de opiniões A doutrina mecanicista tradicional do direito consuetu dinário pressupõe que o costume se preencher as exigências para seu reconhecimento como costume jurídico é direito por si mesmo da mesma maneira que o é uma lei Outros sustentam que o costume não se converte em direito enquanto não for formulado com autoridade e reconhecido pelos tribunais25 Graças a este reconhecimento o costu me recebe um novo status deixa de ser algo simplesmente fatual para transformarse em direito vigente No direito da Europa continental não se coloca o problema relativo aos precedentes já que ali estes não são reconhecidos como uma fonte genuína de direito no sentido metafísico No direito angloamericano admitese geralmente que os precedentes a jurisprudência são por si mesmos direito vigente Essas questões são ordinariamente abordadas da seguinte manei ra em que medida o direito existe já criado na própria fonte na legislação no costume no precedente na razão e em que medida é o juiz que o cria À luz de nossa análise do conceito de direito vigente parágrafos 8 a 10 não será difícil acredito compreender que o que examinamos aqui como se fosse da elaboração de um produto material se refere na realidade ao grau de probabilidade com o qual é possível prever a influência motivadora de uma fonte sobre o juiz Considerar que a lei é direito por si mesma significa que geral mente e num grau de probabilidade muito próximo da certeza pode mos predizer que será aceita pelo juiz Inversamente as regras deri vadas da razão não são consideradas diretamente como direito por si mesmas porque aqui só podemos fazer conjeturas a respeito da rea ção dos tribunais A controvérsia concernente à metamorfose do cos tume em direito reflete o fato de que embora haja pontos objetivos que dão apoio a um prognóstico ao mesmo tempo o juiz goza de ampla liberdade para aceitar ou rejeitar o costume Tratase de uma diferença de grau Mesmo uma lei pode consoante as circunstâncias ser desconsiderada pelo juiz Isto fez Gray negar que 25 Esta é a linha que seguindo Austin adotou a doutrina inglesa Ponto de vista idêntico é sustentado por Lambert na França e por uma modesta minoria de autores na Alemanha Cf bibliografia de obras sobre direito consuetudinário incluída em Alf Ross Theorie derfíechtsquellen 19291435 e segs 130 Alf Ross as leis como tais são direito Segundo Gray não passam de um fator dí motivação uma tentativa de criar direito e não podemos conhecer á resultado da tentativa até constatarmos se os tribunais aceitam a lei como a interpretam Por isso afirma esse autor que o direito consisti unicamente naquelas regras que são aplicadas pelos tribunais e queç todo o direito portanto é criação do juiz26 Entretanto este ponto dç vista é ilógico Quais regras são aplicadas na prática é observado nj comportamento dos tribunais até o presente o que implica por consé guinte que Gray faz referência aos precedentes como a fonte que por si mesma cria direito Contudo não entendo porque Gray não adota rela tivamente aos precedentes óurisprudência como fonte a mesma posi ção que adota frente à lei Também aqueles não passam de fatores motivadores e não sabemos com certeza nenhuma que influência terãq sobre as decisões jurídicas futuras O problema se reduz ao seguinte sé uma regra tiver somente que ser reconhecida como direito vigente se pudermos dizer com certeza que será aplicada pelos tribunais no futuro então nenhuma regra poderá ser reconhecida como direito vigente Tal foi a conclusão a que chegaram Jerome Frank e outros realistaií norteamericanos ao afirmarem que o direito não consiste em regras mas sim exclusivamente no conjunto das decisões jurídicas específicas27 21 A DOUTRINA DAS FONTES DO DIREITO A caracterização dos diversos tipos de fontes feita no parágrafo anterior é tema próprio de uma teoria geral das fontes do direito Cabe à doutrina das fontes do direito como parte da ciência do direito parágrafo 15 fornecer uma descrição minuciosa de cada uma das fontes e de sua irrv portância relativa no âmbito de um ordenamento jurídico específico Tal descrição é particularmente significativa no que toca à legisla ção no sentido mais lato como fonte Todos os ordenamentos jurídii cos modernos contêm uma copiosa série de normas referentes aos diversos procedimentos para formular regras de direito a relação rei cíproca entre os diversos níveis do direito legislado desde a Consti tuição até os contratos particulares a promulgação e colocação em vigor das leis a delegação do poder legislativo a anulabilidade d 26 John Chipman Gray The Nature andSources of Law 1909184125 e alhures Cf supra parágrafo 14 nota 3 e Atf Ross Towards a Reaiistic Jurisprudence 1946 59 e segs j 27 Jerome Frank Law and the Modem Mind 1930 46132 Cf supra parágrafo 14 nota 3 e Alf Ross 68 e segs Direito e Justiça 131 controle judicial etc Todos estes são elementos da doutrina das fon tes do direito mesmo quando não são agrupados sob esse título mas sejam incluídos sob títulos designativos variados direito consti tucional direito administrativo direito dos contratos Por outro lado é praticamente impossível desenvolver de maneira análoga uma doutrina das fontes do direito não legislado porque como resulta do que dissemos não é possível indicar as condições objetivas para que ocorra a influência motivadora dos costumes do precedente e da razão As tentativas de enunciar tais condições não passam na realidade de racionalizações ideológicas para preservar a ficção de que o juiz unicamente aplica direito objetivamente existen te Neste campo a doutrina das fontes do direito tem que limitarse a indicar em termos imprecisos o papel desempenhado pelas diversas fontes num ordenamento jurídico específico A esse respeito pode haver grandes variações Enquanto a legislação desempenha um papel preponderante no direito europeu continental o direito angloamericano continua baseado no precedente jurisprudên cia embora haja uma tendência crescente em sistematizar e inclusive talvez em codificar o direito baseado em casos precedentes No direito primitivo o costume é a fonte primária como ainda é no direito interna cional ainda que atualmente acompanhado por uma tendência à estabi lização que se acentua e que se manifesta tanto no desenvolvimento de um direito criado por caso de precedência quanto por codificação A razão aquela criação de direito que sem qualquer objetivação de maneira direta se respalda em atitudes culturais fundamentais valorações e padrões aparece especialmente no período que sucede a uma revolu ção Até que os vencedores revisem o direito legislado e o reformulem de acordo com o espírito da revolução exigese do juiz que ele se inspire diretamente na mitologia e filosofia sociais do novo regime Depois da revolução bolchevique a filosofia de Marx e a consciência revoiucionáría da ciasse trabalhadora viera m a desempenhar o papel de fonte suprema do direito tal como o fizeram a ideologia do Führer e Mein Kampfóe Hitler na Alemanha posterior à revolução nazista28 À medida que as condições gradualmente se estabilizam e voltam à normalidade essa tendência cede espaço para um maior respeito pelo direito legislado 28 No que concerne aos decretos soviéticos de 27 de novembro de 1917 e de 18 de março de 1918 ambos remetendo o juiz à consciência revolucionária ver John N Hazard no British Journal of Sociology IV 1953112 132Alf Ross 22 DISCUSSÃO Como enfatizado no parágrafo 15 uma doutrina realista das foi tes do direito tem que se ocupar da ideologia que efetivamente ai ma os tribunais que os motiva na busca das normas que irão adol como fundamento de suas decisões Tal ideologia só pode ser desc berta estudandose a conduta efetiva dos tribunais Segundo o ponto de vista corrente entretanto a doutrina dá fontes do direito é normativa não descritiva mais exatamente ei pressiva de normas e não descritiva de normas Visa a prescrevi como está o juiz obrigado a comportarse e não a descrever como el realmente se comporta Entretanto a que tipo de dever se refer essa doutrina E de qual norma obrigatória esse dever deriva Parece óbvio que o dever aludido não pode ser concebido comi um mero dever moral pois de maneira diversa a doutrina das fonto do direito pertenceria à filosofia moral e seu conteúdo seria uma qu tão de consciência Está claro não ser esta a intenção de tal doutrim Contudo parece igualmente impossível considerar o dever um obrigação jurídica do juiz no mesmo sentido por exemplo em qu um devedor se encontra no dever de pagar sua dívida pois um deve jurídico como este por sua vez teria que se fundar numa regra d direito derivada de uma fonte jurídica Para determinar portanto que é uma fonte do direito teríamos que pressupor um conhecimenÉ das fontes do direito o que é um círculo vicioso Este defeito se fa patente quando a doutrina das fontes do direito é desenvolvida coí base na interpretação de normas positivas tais como por exemplo Código Civil suíço art Io ou o art 38 do Estatuto da Corte Intern cional de Justiça29 Nestes exemplos é pressuposto que o direito I gislado e os tratados respectivamente são obrigatórios para os trt bunais o que precisamente forma parte dessa doutrina das fontes dt direito que se supõe deve ser deduzida daquelas normas O mesmo podese dizer em princípio quando como por vezes ocori ao desenvolver a doutrina das fontes do direito se tenha afirmado q 29 Por exemplo Max Gmür Die Anwendung des Rechts nach Art 1 des schweizerischen Zmlgesetzhuches 11908 Erich Danz Einführung in die Rechtssprechung 1912 Géza Kiss Gesetzesauslegung und ungeschriebenes Recht lherings Jahrbücher LVIII 1911 e Theorie der Rechtsquellen in der angloamerikanischen Literatur Arch f büfi Recht XXXIX 1913 265 e segs Cf também Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 321322 conjuntarr te com a nota 14 0 método do direito positivo é comum nos estudos das fontes do direito internacional Direito e Justiça 133 sua autoridade não emana do direito escrito mas sim da chamada ra zão quer dizer quando a doutrina se desenvolve valorando qual atitude é recomendável como a mais conveniente em vista de considerações diversas30 Por mais interessantes e bem fundadas que sejam tais reco mendações são irrelevantes para uma descrição do direito vigente se os tribunais realmente não atuarem segundo aqueles pontos de vista Freqüentemente entretanto a doutrina normativa das fontes do direito não se refere a um dever imposto pelo direito positivo nem a um dever baseado na razão A idéia de acordo com os pressupostos da filosofia do direito idealista é que o direito em si possui uma validade inerente e supraempírica ou força obrigatória e que a fonte do direito é precisamente o fator do qual essa validade flui E portanto a mesma coisa algo ser uma fonte do direito e o juiz estar obrigado a aplicálo Não há aqui pois pressuposição de nenhuma norma distinta da própria fonte do direito que obrigue o juiz a acatar a fonte O dever do juiz é somente uma outra expressão da idéia de que o direito por si mesmo isto é independentemente de toda sanção física possui força obrigatória ou validade supraempírica Adotada essa linha de pensamento não pode haver vária fontes independentes de direito A unidade do conceito de direito ficaria destruída se tivesse que assumir por um lado que uma lei é válida porque foi sancionada por uma autoridade com poder de comando e por outro lado que o costume é obrigatório porque foi produzido pela consciência jurídica dos súditos Segundo o aludido conceito de validade do direito tem que haver uma fonte e somente uma de força obrigatória e todas as outras fontes têm que ser consideradas em relação a ela A doutrina tradicional das fontes do direito consiste principalmente em especulações tais como estas de onde extraem as diferentes fontes do direito sua força obrigatóriaqual é em última instância a fonte suprema de toda a validade do direito e que conclusões pode mos extrair portanto com respeito à força relativa dessas fontes en tre si por exemplo se um costume pode abolir uma lei se a livre criação do direito pode ocorrer não só praeter legem como também 30 Philip Heck Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz 1914 representa essa tendência Ver ademais Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 cap XIII 2 onde numerosos exemplos são citados 1 3 4 Alf Ross contra legem etc Tudo isto é tão ocioso quanto especulativo Podi se mencionar aqui com brevidade umas poucas teorias em voga 1 a No continente europeu seguramente por influência do sisterrl político da monarquia absoluta a doutrina positivista tem sido predl minante Segundo ela em toda comunidade existe uma vontade s l berana que é a fonte suprema de toda validade jurídica A expressa dessa vontade o direito legislado é conseqüentemente a fonte su prema do direito Ao seu lado só se admite o costume e a razão pòi sua força obrigatória é buscada num reconhecimento expresso J tácito especial ou geral da parte do legislador31 1 b Segundo a teoria jusnaturalista a fonte de validade do direitl é a idéia de direito ou a idéia de justiça como princípio racional j priori O direito legislado por conseguinte somente possui forg obrigatória absoluta na medida em que é uma realização ou umj tentativa de realização da idéia do direito Visto que se pressupq que o direito natural embora com algumas reservas exige obediêil cia às autoridades estabelecidas da comunidade as conseqüência práticas da teoria se adequam aos fatos Mas insistese firmemend na inadequação do direito escrito e as deduções científicas a part da idéia do direito constituem uma fonte importante e independe te ao lado do direito legislado32 c A escola romântica ou histórica do direito parágrafos 56 e 8Í acreditou encontrar a fonte fundamental da força obrigatória do direi to não em uma vontade soberana nem em princípios racionais abs tratos mas sim na consciência jurídica popular revelada na história na vida de uma nação O costume como espelho do espírito populá é conseqüentemente a fonte suprema do direito A legislação possível não como um ato arbitrário da vontade soberana mas unicáí mente como uma tentativa de conceitualizar a consciência jurídica díj espírito popular 31 Com respeito è chamada Gestattungstheorie ver Ross ibid pp 430 e segs 32 A título de exemplo típico podese citar a teoria de Gény das fontes do direito ver em Alf Ross ibid cap III 67 Capítulo IV O Método Jurídico Interpretação 23 DOUTRINA E TEORIA DO MÉTODO No capítulo II foi explicado como as proposições doutrinárias to cantes ao direito vigente segundo a fórmula A D é direito vigente podem ser interpretadas como previsões no sentido de que sob deter minadas condições os tribunais tomarão D como base para suas sen tenças No capítulo III buscouse explicar o papel que desempenha a ideologia das fontes do direito na sua relação com essas previsões A doutrina não se restringe entretanto a proposições que respon dem àquela fórmula Encerra por exemplo proposições referentes à interpretação de D isto é daquelas normas que são consideradas direito vigente Tais enunciados interpretativos podemos dizêlo em caráter provisório pretendem determinar o significado da diretiva indicando mais especificamente sob quais circunstâncias terá que ser aPÜcada e em tal caso como o juiz deverá se comportar O art 67 da Constituição dinamarquesa por exemplo garante a liberdade religio sa aos cidadãos Sustentase que a palavra cidadãos deve aqui ser interpretada no sentido inclusivo tanto dos nacionais da Dinamarca quanto aqueles que não o são o que significa que ao aplicar o art 67 0 juiz não deve atribuir importância alguma à nacionalidade da pes sa que recorre ao direito de professar seu culto 136Alf Ross Devemos agora examinar se esses enunciados referentes à inl terpretação podem ser considerados como asserções sobre o que interpretação vigente análogas às asserções acerca do que é direk to vigente Se este for o caso então também esses enunciados da acordo com seu conteúdo real serão entendidos como previsc quer dizer previsões no sentido de que tal interpretação terá a a são dos tribunais quando a regra em questão for adotada cc base para a decisão de um caso jurídico específico Uma previsão desse tipo pode apoiarse em precedentes Ne caso o pronunciamento referente à interpretação pode ser equi rado aos pronunciamentos acerca do direito vigente Quando os precedentes não proporcionam um critério provido autoridade é preciso indagar se mediante o estudo da prática tribunais podem ser descobertos certos princípios uma certa ideolc que de fato guiam os tribunais na sua aplicação de regras gera casos específicos Se isto for possível então também o será conside as proposições doutrinárias a respeito da interpretação como asserç acerca da interpretação vigente isto é previsões que nos dizem cc será aplicada a regra pelos tribunais Na medida contudo em qu interpretação não pretende se basear em princípios de interpreta vigentes ela é política jurídica e não ciência do direito Temos que analisar portanto a prática dos tribunais e nos errN penharmos em descobrir os princípios ou regras que realmente os norteiam no trânsito da regra geral à decisão particular Denominai se esta atividade método jurídico ou no caso da aplicação do diren to formulado direito legislado em lato sentido interpretação Poderíamos adiantar que não é possível enunciar uma ideologia do método com a mesma precisão de uma ideologia das fontes dqj direito especialmente no que diz respeito à interpretação do direitoj legislado Regras fixas não podem ser formuladas O máximo que se pode atingir é digamos um estilo de método ou estilo de interpreta ção Diante disso o grau de certeza das asserções concernentes àj interpretação vigente é muito baixo Assim sendo como foi assinalai do no parágrafo 9 os pronunciamentos teóricos referentes ao direit vigente confundemse com diretivas de política jurídica Portanto compreensível que muitos juristas não atribuam à sua interpretaçãoj o caráter de enunciados teóricos quanto a como aplicar o juiz o direitoí Direito e Justiça 137 mas sim o de conselhos e instruções ao juiz a respeito da forma como deve fazêlo E indubitável contudo que inclusive um jurista cuja inten ção é poltticojurídica se deixa guiar consciente ou inconscientemente pelo estilo ou espírito do método que realmente é vigente nos tribunais Se não o fizer suas interpretações não terão possibilidade de ser atendi das pelos tribunais Por outro lado quanto mais sua interpretação políti ca for inspirada pelo mesmo espírito e estilo que animam o método dos tribunais maior será a probabilidade dos tribunais se deixarem ser influ enciados por esse aconselhamento A interpretação do jurista se tornará verdadeira e não obstante sua intenção em contrário também poderá ser considerada como uma previsão acerca da forma na qual os tribunais aplicarão efetivamente o direito Na interpretação do direito vigente de monstrase com máxima clareza que a ciência do direito e a política jurídica não podem em última análise ser separadas Tal como a doutrina das fontes do direito uma doutrina do método que se proponha a servir como norteamento da interpretação tem que se referir à maneira como se comportam de fato os tribunais na aplica ção do direito vigente a situações específicas A doutrina do método deve ser descritiva não normativa descritiva de normas não expres siva de normas Está claro que nada impede que partindo de alguns axiomas pressupostos sejam estabelecidas diretivas acerca de como os tribunais devem proceder na aplicação prática do direito Entretan to tal doutrina normativa do método seria o esboço de um estado diferente do direito sem valor como norteamento para a interpretação doutrinária ou para os cálculos do jurista prático acerca da maneira como será resolvida uma determinada disputa legal pelos tribunais O estudo do método identicamente ao das fontes do direito preci sa ser dividido numa parte doutrinária e uma teoria gerai A primeira investiga o método seguido pelos tribunais num ordenamento jurídico específico e constitui uma porção da ciência do direito Tal como não uma ideologia universal das fontes do direito também não há um método universal A tarefa da teoria geral do método só pode consistir em 1 explicar certas pressuposições fatuais dos problemas dos méto dos e 2 subsumir e caracterizar dentro de uma tipologia geral vários estilos de método e interpretação que realmente ocorrem As ideologias das fontes do direito e do método estão intimamen te ligadas e por esta razão fica claro que o estudo doutrinário do método tem que assumir um caráter diferente nos diversos sistemas 1 38 Alf Ross I 1 Os problemas do método têm que assumir uma forma diferente p exemplo num sistema como o inglês no qual os precedentes jurii prudência constituem a fonte predominante do direito comparati mente a um sistema em que a legislação é a fonte principal No primeiro sistema o juiz não se encontra diante de uma fòrmij lação revestida da autoridade de uma regra geral de direito O probki ma do método portanto consiste em como extrair uma regra geri dos precedentes existentes e aplicála ao caso a ser decidido A situi ção se complica pelo fato da regra geral com freqüência se alterar n curso desse desenvolvimento de um caso para outro Haver continu dade ou alteração dependerá do juiz ao examinar as semelhanças as diferenças entre o caso presente e o precedente entender que d fatos relevantes podem ser classificados segundo os mesmos conce tos pressupostos no precedente ou em outras palavras decidir que mister introduzir uma distinção com o auxílio de outros conceitos Neste último caso a regra geral adquiriu um conteúdo distinto N começo de uma linha de precedentes a regra geral pressuposta terá de ordinário um conteúdo muito pouco definido Uma doutrina nâl foi ainda cristalizada Por isso a tarefa que tem diante de si o juiz na consiste tanto em aplicar uma regra geral a um caso específico mal em decidir se o caso difere do precedente de tal maneira que existanj fundamentos para chegar a uma decisão distinta O raciocínio jurídia método jurídico num sistema como esse é raciocínio por via de exetú plos e a técnica de argumentação exigida por esse método visa j mostrar as semelhanças e diferenças exibidas pelos casos e assevera que as diferenças são ou não são relevantes1 No segundo sistema no qual a legislação é a fonte predominanti do direito o método possui o caráter de interpretação de um textlf provido de autoridade A atenção se concentra aqui na relação exi tente entre uma dada formulação lingüística e um complexo específf co de fatos A técnica de argumentação exigida por esse método visl a descobrir o significado da lei e a sustentar que os fatos dados sã abarcados por ele ou não i Esta última é a forma típica que os problemas do método assúi mem nos sistemas jurídicos da Europa continental A contribuiçãí para uma teoria geral do método presente neste capítulo limitase i interpretação do direito legislado em lato sentido 1 Ver o excelente estudo realizado por Edward H Levi An Introduction to LegaReasoning 19491 24 O FUNDAMENTO SEMÂNTICO2 Toda interpretação do direito legislado principia com um texto isto é uma fórmula lingüística escrita Se as linhas e pontos pretos que consti tuem o aspecto físico do texto da lei são capazes de influenciar o juiz assim é porque possuem um significado que nada tem a ver com a substância física real Esse significado é conferido ao impresso pela pes soa que por meio da faculdade da visão experimenta esses caracteres A função destes é a de certos símbolos ou seja eles designam querem dizer ou apontam para algo que é distinto deles mesmos Há muitas coisas que têm uma função simbólica no seio de pessoas de um grupo determinado Certos distintivos usados por um oficial indicam sua posição ou patente um emblema na lapela demonstra que aquele que o usa pertence a uma certa associação a foice e o martelo são o símbolo de uma convicção política os químicos convencionaram que o H significa hidrogênio o O oxigênio e assim por diante Os carteiros os militares os policiais os escoteiros os sacerdotes os reis e muitas outras pessoas envergam vestes ou con decorações que simbolizam sua ocupação dignidade ou posto Em todas as partes tanto nas comunidades primitivas quanto nas mais civilizadas nos defrontamos com símbolos dos tipos mais diversos É possível fazer uma distinção entre signose símbolos A umidade da terra é um signo sinal de que choveu recentemente o trovão um signo do raio o pranto de uma criança um sinal de que aconteceu algo desagradável a ela A diferença entre signo e símbolo consiste no fato de que o signo sinal é naturaienquanto o símbolo é artificiai um produto elaborado por seres humanos Mais exatamente a significa ção do signo está contida simplesmente em meu conhecimento do curso da natureza e da interação das coisas Sabendo por meio da experiência que A e B ocorrem ordinariamente juntos tomo A a umidade da terra o trovão o pranto da criança como signo de B a Recentemente temos assistido ao desenvolvimento da semântica geral a qual se ocupa da linguagem como meio de expressão e comunicação sua importância no que se refere à ação e compreensão a função das palavras como símbolos e seu valor emocional além de outros problemas correlatos Uma ampla literatura se formou em torno do tema Uma introdução popular recomendável é Language in Thought and Action de S I Hayakawa 1949 Entre as obras mais conhecidas podese também mencionar C K Ogden e I A Richards The Meaning ofMeaning 8 ed 1946 C Morris Signs Language andBehavior 1946 A Korzybski Science andSanity 2 ed 1941 M Black Language and Philosophy 1949 C L Stevenson Ethics and Language 1945 Arne Naess Interpretation and Preciseness lV 19471951 Stephen Ullman Wordsandtheir Use S51l Direito e Justiça 139 140 Alf Ross chuva o raio a experiência desagradável Uma luz vermelha que s alterna com uma verde e uma amarela num cruzamento viário é par uma pessoa que tem o conhecimento necessário o signo de uma insi talação elétrica e de um mecanismo que acende e apaga as luzes numa certa ordem regular Todavia o fato da luz vermelha ser tambérçl símbolo de um restrição policial relativamente ao cruzamento depenckj de uma convenção que poderia perfeitamente ter conferido ao ver melho um significado diferente Todos os símbolos são convencionais isto é a conexão entre o símbolo e o que ele simboliza é produzida pdf seres humanos através de acordo ou uso costume3 De todos os sistemas de símbolos a linguagem é o mais plena mente desenvolvido o mais eficaz e o mais complicado A linguagerrj pode manifestarse como uma série de formas auditivas ou visuai fala e escrita O significado atribuído a estas formas é clarament convencional Nada impediria que a palavra gato fosse empregad para designar o animal doméstico de quatro patas que faz uau uaiA e cão para designar o que faz miau O significado atribuído aojl símbolos lingüísticos é determinado pelos costumes da comunidade referentes às circunstâncias nas quais se considera adequado emitií certos sons Acmeles que cresceram junto aos costumes de uma coi munidade de língua portuguesa estão tão habituados a eles que juN gam adequado dizer Olhe é um gato ao se aproximar o anima doméstico que mia embora julgue a mesma expressão inteiramente deslocada se usada para se referir ao animal que ladra j 3 Muitos enganos e problemasilusórios da filosofia metafísica se originam da crença de que as palavras representai objetivamente determinados conceitos ou idéias cujo significado deve ser descoberto e descrito pela filosofi Partindo dessa concepção que remonta ao idealismo de Platão e à teoria da definição de Aristóteles parágrafo 52y o filósofo se pergunta o que são realmente a verdade a beleza a bondade etc e crê ser possível estabetoi cer definições verdadeiras A filosofia tradicional do direito seguindo esse modelo tem considerado que sua princljj pal tarefa é fornecer uma definição do conceito de direito Após a morte de Alf Ross 1979 a filologia a filosofia da linguagem a semiologia e a lingüística assumiram definiti vamente posição marcante Os trabalhos teses ou teorias de Ferdinand de Saussure Herbert Marcuse Jacque Derrida Michel Foucault filósofos existencialistas como Martin Heidegger e outros revelaram uma complexidadl da linguagem ainda muito maior do que aquilo que Ross indica nesta obra A afirmação de cunho generalizador pal exemplo de que o significado das formas da linguagem é claramente convencional é discutível pois só se pod afirmálo categoricamente com relação às línguas conceituais por assim dizer Refirome à quase totalidade itd línguas modernas cujos alfabetos e formação abstrata das palavras permitiram a criação de conceitos puros n que se aplica precisamente o exemplo dos conceitos de gato e cio É o que ocorre nas línguas matrizes arianas con o sânscrito o grego e o latim nas semíticas hebraico aramaico árabe etc e nos idiomas modernos em geral no quais as milhares de palavras encerrando conceitos são formadas pela combinação múltipla e diferenciada de aprirç ximadamente 23 letras do alfabeto Entretanto se pensarmos em certas línguas primitivas eg escrita cuneiformel e mais particularmente nas línguas ideográficas como o egípcio hieroglífico o chinês e várias línguas asiáticas questão lingüistica assume outra dimensão São línguas não alfabéticas nas quais não existem conceitos puros 0 Direito e Justiça 141 OS costumes ou normas lingüísticas que estabelecem a função simbólica da linguagem só podem ser descobertos por meio de um estudo do modo pelo qual as pessoas se expressam Por expressão entendo a unidade lingüística mínima que é portadora de significado por direito próprio Olhe é um gato é uma expressão É em sua integridade a portadora de um significado A comunicação lingüística entre os seres humanos ocorre por meio de tais unidades e conse qüentemente devem constituir o ponto de partida para o estudo da função simbólica da linguagem É importante frisálo pois de outra maneira podese facilmente cair no erro de pensar que o significado de uma expressão é o resul tado da adição total dos significados das palavras individuais que a formam As palavras individuais carecem de significado independen te possuindo apenas um significado abstraído das expressões nas quais aparecem Se alguém diz gato isoladamente isto nada signifi ca Não é uma expressão a menos que a palavra de acordo com as circunstâncias por exemplo se farejo o ar e olho inquisitivamente ao redor possa ser interpretada como uma forma abreviada de um juízo como deve haver um gato aqui perto Que significa a palavra mesa A resposta só pode ser dada estu dando um grande número de expressões nas quais apareçam essa palavra Tal é o procedimento adotado na elaboração de um dicioná rio Coletase uma imensa quantidade de material que consiste em expressões que constituem exemplos de usos da palavra O contexto mostrará a referência com a qual a palavra tem sido usada em cada caso individual Anotandose assim cada referência individual surgirá uma campo de referência correspondente à palavra ideogramas do kandji são milhares de representações cada uma para uma coisa e presumivelmente se originaram da observação da natureza inicialmente a representação gráfica de uma coisa que chamamos conceitualmente em português de montanha era um desenho tosco que imitava uma montanha com o transcorrer do tempo esse dese nho rudimentar ideograma que copiava a natureza uma concreção e não uma abstração foi sendo graficamente aprimorado a ponto de se distanciar nos seus contornos do original da natureza Num sentido ou outro notase que o ideograma é essencialmente uma imitação uma representação exclusiva de uma coisa natural mesmo sofrendo um processo de abstração posterior e não um símbolo com significado convencional facultativo e préestabelecido uma abstração pura artificial Isto vale para a linguagem escrita considerandose que a fonética tem papel secun dário nas línguas ideográficas 0 fato de nós ocidentais darmos nomes nossa manifestação cultural é profusa e profundamente verbal e conceituai aos ideogramas por ekemplo yama ao ideograma que representa montanha não nivela a língua ideográfica com a conceituai Na verdade a discussão sobre a natureza da linguagem é antiga sendo um tema já ventilado por Platão no CrátUo N T 142Alf Ross que pode ser comparado com um alvo Em torno do centro haverá uma densidade de pontos cada um dos quais marcando um impactq na referência Rumo à periferia a densidade decrescerá gradualmerH te A referência semântica da palavra tem por assim dizer uma zona central sólida em que sua aplicação é predominante e certa e urtl nebuloso círculo exterior de incerteza no qual sua aplicação é menos usual e no qual se toma mais duvidoso saber se a palavra pode sei aplicada ou não Não duvido por um só instante que posso chamar dá mesao móvel junto ao qual estou sentado e sobre o qual escrevo Dc mesmo modo usarei a palavra para outros objetos semelhantes poíj rém de tamanho inferior a mesa do quarto das crianças a mesa dm casa de bonecas Entretanto não há um limite quanto à pequenez do objeto Em outros casos parece que é a função e não a forma o quâj determina o uso lingüístico Colocamos a mesa pergunto ao meti companheiro de viagem no compartimento de trem referindomejj aqui a uma prancha suspensa Normalmente não descreveríamos umgjj caixa de madeira como uma mesa Porém se por falta de algo me3 lhor pus uma toalha sobre ela e aí depositei a comida poderei certaJ mente dizer que a mesa está pronta Podemos chamar de mesal uma mesa de operações ou só se pode usar a expressão composta Não vem ao caso portanto indagar o queé realmente uma mesa4 Se em certos casòs duvido se algo é ou não uma mesa esta dúvida nãqj revela falta de conhecimento acerca da natureza do objeto nasce simJ plesmente do fato de que não estou seguro se estará em conformidade com o uso aplicar a palavra mesa para designar o objeto particular Estai hesitação por sua vez resulta do fato de ser possível empregar a palaj vra dessa maneira em certas expressões e certas circunstâncias poréml não em outras expressões e em outras circunstâncias Vimos por exenvf pio que em certas circunstâncias posso descrever uma caixa de madeira como uma mesa enquanto está claro geralmente não o faça Essas observações sobre a palavra mesa valem para todas as pa i lavras no uso ordinário cotidiano É válido para elas seu significado ser vago ou seu campo de referência ser indefinido consistindo numaj zona central de aplicações acumuladas que se transforma gradual mente num círculo de incerteza que abarca possíveis usos da palavra s sob condições especiais não típicas 4 Ver a nota 2 deste capitulo Direito e Justiça 143 A maioria das palavras não têm um campo de referência único mas sim dois ou mais cada um deles construído sob forma de uma zona central à qual se acrescenta um círculo de incerteza Tais pala vras são chamada de ambíguas Em inglês isto vale por exemplo para a palavra nail Em síntese os seguintes axiomas se aplicam às palavras no uso cotidiano I o O significado possível de toda palavra é vago seu campo de referência possível é indefinido 2o A maioria das palavras são ambíguas 3o O significado de uma palavra é determinado de modo mais preciso quando é considerada como parte integrante de uma expres são definida 4o O significado de uma expressão e com isso o significado das palavras contidas na mesma é determinado de modo mais preciso quando a expressão é considerada na conexão em que é formulada Esta conexão pode ser lingüística o contexto ou não lingüística a situação Com base em 3 e 4 é possível formular a seguinte gene ralização o significado de uma palavra é uma função da conexão expressão contexto situação na qual a palavra aparece Visando a analisar com maior rigor o papel que desempenha a conexão veja mos alguns exemplos A palava inglesa nail pode referirse a uma parte do corpo humano e a um artigo de uso geral Na expressão my nail hurtsÇmmha unha dói ou meu prego produz dor pareceria claro que a palavra é usada no primeiro sentido visto que só nesse sentido a expressão parece ter um significado razoável Partimos da hipótese portanto da razoabilidade do significado da expressão Com base nessa hipó tese a interpretação espontânea é a mais óbvia porém não a única Que significa tanto unha quanto prego Neste caso a ambigüidade ocorre com as palavras homógrafas isto é de grafia igual mas significado diferente Este fenômeno lingüístico manga designa uma fruta e uma parte da vestimenta se manifesta praticamente em todas as línguas mas de maneira bastante variável Em linguas de vocabulário ordinário pouco rico como o inglês nas quais as palavras suportam grande carga semântica basta atentar para o enorme leque e gama de significações da notória palavra get para percebêlo o fenômeno é muito mais comum a significa ção correta sendo via de regra definida pela posição e função da palavra na oração ou seja pela sintaxe o contexto em que a palavra aparece na oração Nas línguas declinadas como o latim e o alemão a incidência é bem menor e portanto os casos de ambigüidade relativamente escassos W T 144 Alf Ross E possível imaginar circunstâncias nas quais uma interpretação diver sa seja a indicada por exemplo se a expressão é formulada quandc duas pessoas estão tentando verificar se dói se picarem com tipo diferentes de pregos O mesmo é aplicável à maneira na qual o significado de uma ex pressão é especificado pelo contexto ou pela situação Se tomarmd a frase the nail is too long a unha está longa demais ou o prego 1 longo demais isoladamente será impossível descobrir com qual sig nificado é empregada a palavra nail Entretanto se pelo contexto otj a situação ficar claro que a expressão é formulada como preliminaij de um pedido de alguém para que lhe cortem as unhas então nãíj caberá dúvida alguma De tudo isso podemos deduzir que o papel desempenhado pela conexões na determinação do significado consiste em elas proporcio narem um fundamento para se decidir com base em certas hipóte ses qual das diversas interpretações cada uma delas possível se s se leva em conta o uso lingüístico é a mais provável A interpretaçã por conexão não se apóia no uso lingüístico e não utiliza como ferrai mentas as palavras empregadas mas sim outros dados Trabalhf com todos os fatos hipóteses e experiências que podem lançar lujj sobre o queim a pessoa buscou comunicar A interpretação por conj xão é um estúdo de prova circunstancial que lembra o trabalho de un detetive que investiga um crime Em função de tudo isso é imperioso decidir o que pode ser aceitoy conforme as circunstâncias como contexto e situação O contexto sg estende até onde se possa supor que uma expressão foi formulad tendo outra em mente e que o autor desejou que ambas se aplicasj sem de forma conjunta Freqüentemente se tem por certo não senr otimismo que isso é o que ocorre com todas as expressões que aparé cem numa mesma obra científica Contudo se as primeiras obras de um autor são tomadas como dados de interpretação é preciso que sé leve em conta que suas opiniões juntamente com sua terminologia Cj seu estilo podem ter se alterado com o decorrer do tempo No campo jurídico é usual considerar que as expressões que aparecem numíf mesma lei decreto contrato etc formam parte do mesmo contexto Se são levadas em consideração disposições legais antigas associadaS a outras mais recentes as mesmas reservas devem ser feitas A situai ção abrange todos os fatos e circunstâncias que podem indicar qual era Direito e Justiça 145 a intenção do autor incluindo assim sua orientação política suas idéias filosóficas as características das pessoas a quem eram dirigidas suas declarações a razão provável que o moveu a proferilas os gestos as expressões faciais e ênfase etc além de toda a situação fatual física e social de vida que condicionou a expressão A atividade que colima expor o significado de uma expressão se denomina interpretação Esta palavra é utilizada também para desig nar o resultado de tal atividade A interpretação pode assumir duas formas Pode ser executada de sorte que o significado de uma expres são seja definido mais claramente por meio de uma descrição formula da em palavras ou expressões diferentes cujo significado seja menos vago ou de uma tal maneira que ante um conjunto de fatos concretos experimentados sob forma definida seja possível decidir com um sim um não ou um talvez se o conjunto de fatos constitui ou não uma referência que corresponde à expressão Tomemos por exemplo a expressão quando se combina ácido clorídrico e zinco liberase hidro gênio Uma interpretação do primeiro tipo visará a explicar mediante palavras de modo mais completo o que é que deve ser entendido por cada uma das expressões usadas Poderia por exemplo mostrar que se combiná significa que o zinco é posto em contato com o ácido mas não por exemplo que um pedaço de zinco e um frasco de ácido clorídrico são embrulhados um ao lado do outro num pedaço de papel Uma interpretação do segundo tipo pretenderá decidir se um certo curso de fatos satisfaz o significado da expressão de modo que se possa afirmar que nos achamos na presença de fatos que a expressão designa A interpretação do primeiro tipo chamase interpretação por significado e a do outro tipo interpretação por referência O princípio condutor para toda interpretação é o princípio da função primária determinativa de significado da expressão como uma entida de e as conexões nas quais ela aparece O ponto de partida de toda compreensão é a expressão como entidade tal como é experimentada pela pessoa que a recebe numa situação concreta definida A partir deste ponto a interpretação pode prosseguir em parte para uma aná lise dos elementos que constituem a expressão as palavras individuais e sua conexão sintática e em parte para uma análise do contexto no qual aparece a expressão e da situação em que foi formulada Na primeira análise isto é aquela que se dirige ao significado das Palavras é importante entender que o significado de uma expressão 146 Alf Ross não é construído como um mosaico com o significado das individuais que a compõem pelo contrário o significado que o dudth se é capaz de atribuir aos elementos individuais é sempre uma funj ção do todo no qual aparecem Com freqüência nos defrontamos coil a opinião de que a interpretação da lei pode ou tem que tomar comij ponto de partida o significado ordinário das palavras tal como resultí de seu uso Este parecer é enganoso Não existe tal significado Sd mente o contexto e o desejo de descobrir um significado bom o razoável em relação a uma dada situação determinam o significada das palavras individuais Mas freqüentemente não nos apercebemos da função do contexto Se em uma das entradas de uma exposiçãjj de gado houver um aviso que diz Entrada somente para criadorejf com animais ninguém imaginará que o aviso autoriza o ingresso cki criadores que carreguem consigo seus canários É fácil passar por altá o fato de que a palavra animal recebe aqui uma interpretação condicioi nada pela situação e o propósito a qual é muito mais restrita do qué uma definição do significado da palavra segundo o uso É evidente quci em outras situações a palavra poderia incluir os canários Na segunda análise referente ao contexto e à situação em que expressão é formulada as coisas são um tanto diferentes A conexãcj externa da expressão não é dada de modo imediato associada a esta O contexto não é apreendido simultânea mas sucessivamente Quandj leio um livro não é verdade que não confiro nenhum significado èj primeira frase enquanto não ler a obra inteira Entretanto de todqi modo o contexto é codeterminativo Acontece com freqüência mi nha compreensão das primeiras páginas do livro terem mudado quandéj eu o termino e recomeço sua leitura Ocorre uma curiosa vibraçãl interpretativa Minha compreensão das primeiras frases codetermH na a compreensão das seguintes Mas minha apreensão do livro ná sua totalidade que surge como resultado pode ter um efeito retroa tivo modificador que influencia minha compreensão das frases indiviJ duais e isto por sua vez oferece a possibilidade de minha concepção do todo poder acabar alterada e assim sucessivamente Algo seme lhante pode ocorrer no que diz respeito ao papel da situação na qual a expressão foi formulada Na linguagem cotidiana o contexto e a situação constituem os fato1 res mais importantes na determinação do significado Entretanto não são os únicos O significado das palavras é relativo ou dependente num Direito e Justiça 147 plano totalmente distinto que poderíamos chamar de sinonímico ou sistemático Isto quer dizer que o significado de uma palavra é deter minado com maior precisão se a compararmos a outras palavras que possam ocupar o mesmo lugar numa frase e que ofereçam um cam po de significado mais amplo Por exemplo a escala de adjetivos ardente quente cálido tépido fresco frio gelado Ao comparar uma determinada palavra com outras que lhe são próximas ou com pala vras opostas poderemos determinar sua posição relativa num campo de significado O significado por exemplo da palavra propósito mma dada expressão é definido de maneira mais precisa imaginando quais outras palavras podem ser inseridas no mesmo lugar na expressão e então determinando a posição relativa ocupada por propósito no cam po de significado deslindado dessa maneira acidente negligência grave negligência propósito intenção premeditação deliberada e assim su cessivamente No tocante à linguagem cotidiana todavia o método sinonímico jamais pode substituir o contexto e a situação como funda mento da interpretação A linguagem científica por outro lado é carac terizada por uma tendência a cultivar a formação pura de conceitos sistemáticos tornandose assim independente do contexto e da situa ção Contudo foi só na linguagem mais elevada da linguagem científi ca na linguagem simbólica das matemáticas puras que esse esforço obteve pleno êxito Visto que as diretivas jurídicas estão predominan temente cunhadas na terminologia da linguagem cotidiana o contexto e a situação são os auxiliares fundamentais para a interpretação judicial O método sinonímicosistemático somente desempenha o papel mais modesto que lhe cabe em outros usos lingüísticos não científicos Uma interpretação de um tipo ou outro geralmente não nos con duzirá a um resultado preciso e isento de ambigüidade Considere mos os exemplos seguintes transcritos do filósofo norueguês Arne Naess5 Alguns estudantes acreditavam que mais de 25 dos candi datos que num certo ano haviam tentado ser aprovados num exame de filosofia tinham fracassado Neste enunciado a frase mais de 25 dos candidatos tinham fracassado pode ser interpretada ao menos das seguintes maneiras distintas 1 Mais de 25 dos candidatos que se inscreveram para o exame não obtiveram nota suficiente para serem aprovados 5 Arne Naess ínterpretation and Preciseness I 1947 51 148 Alf Ross 2 Mais de 25 dos candidatos que efetivamente se apresentaá ram pana o exame não foram aprovados Alguns candidatos não com pareceram por motivo de doença etc 3 Mais de 25 dos candidatos que se apresentaram para fazer q exame e não deixaram a sala após ter Iido as questões não foram apro vados Alguns candidatos pretendiam tentar mas desistiram imediatai mente diante das questões que lhes pareceram demasiado difíceis 4 Mais de 25 dos candidatos que tentaram resolver as ques tões não foram aprovados 5 Mais de 25 dos candidatos que entregaram as questões nãò foram aprovados A opinião dos estudantes se referia à qual desses significados possH veis Há duas razões para esta pergunta provavelmente não poder ser respondida Em primeiro lugar é possível que ocorra que uma interpreí tação baseada no contexto e na situação não conduza a resultado algum tal como é possível ocorrer que um detetive não seja capaz de descobrir provas concludentes que permitam identificar o autor de um assassinato Em segundo lugar pode ocorrer que o resultado negativo se deva ao fato dos próprios estudantes não estarem perfeitamente cientes do que exatamente queriam dizer Isto pode transparecer se os interrogarmos a respeito porque poderão reconhecer que não lhesi haviam ocorrido as várias possibilidades e portanto que não haviam se decidido por nenhuma delas Numa situação como esta não é posí sível que o detetive solucione o assassinato pela simples razão de não ter sido cometido assassinato algum Diante desses casos Naess diria que o tema a ser interpretado possui menos precisão de intenção ou profundidade de intenção do que as interpretações possíveis Uma imprecisão de intenção não é necessariamente uma falha do autor Provavelmente um certo grau de imprecisão é sempre inevitá vel porquanto é possível imaginar em todos os casos determinações cada vez mais sutis O propósito prático de uma expressão determina o grau de precisão de intenção apropriado É perfeitamente sensato dizer a um motorista que a distância entre New York e Boston é 184 milhas É verdade que a intenção pode ser aprofundada por meio de precisão interpretativa de que ponto de New York até que ponto de Boston e assim sucessivamente de sorte que podemos exprimir a distância em polegadas Entretanto na prática isto não viria ao caso Direito e Justiça 149 Se por uma razão ou outra quer dizer seja porque é impossível localizar provas concludentes ou a intenção carece de suficiente pro fundidade não é possível prosseguir com a interpretação além de um ponto que deixa em aberto muitas possibilidades o intérprete deverá desistir Se ele contudo optar por uma possibilidade particu lar não dará o próximo passo no âmbito de uma interpretação mas sim tomará uma decisão motivada por considerações alheias ao de sejo de apreender o significado de uma expressão A interpretação de diretiva em especial requer decisões dessa espécie Se há uma regra por exemplo no sentido de que quando mais de 25 dos candidatos são reprovados nos exames de filosofia o chefe do depar tamento deve tomar certas medidas então este pode verse forçado a eleger uma ou outra das possíveis interpretações especificadas Neste caso o chefe do departamento toma uma decisão que nada tem a ver com a interpretação da diretiva É freqüente se fazer uma distinção entre as chamadas interpreta ção subjetiva e interpretação objetiva no sentido de que a primeira visa a descobrir o significado que se buscou expressar isto é a idéia que inspirou o autor e que este quis comunicar enquanto a segunda visa a estabelecer o significado comunicado isto é o significado con tido na comunicação como tal considerada como um fato objetivo Um trabalho literário ou científico por exemplo pode ser interpreta do buscandose atinar com o que o autor realmente pensou e dese jou expressar ou pode ser considerado uma manifestação intelectual objetiva divorciada de seu autor caso em que a interpretação busca descobrir o significado que a obra pode transmitir a uma pessoa que a lê De modo idêntico uma promessa pode ser interpretada tendo em vista o que o promitente realmente tencionou expressar mesmo quando tenha se expressado mal ou tendo em vista o significado que suas palavras podem ter transmitido ao destinatário Encarada assim como um contraste absoluto entre intenção e co municação entre o que se quer dizer e o que se diz a distinção é insustentável Por um lado a intenção sendo um fenômeno de cons ciência interno do autor é fundamentalmente inacessível O que en tendemos por interpretação subjetiva é na realidade a interpretação que atingimos quando tomamos em consideração não apenas a ex pressão lingüística como também todos os outros dados relevantes o contexto e a situação que incluem as opiniões políticas e filosóficas 150 Alf Ross do autor o propósito declarado e o propósito presumido que o guioy na formulação da expressão etc Podemos inclusive interrogálo e sua resposta proporcionará dados interpretativos adicionais Por ouj tro lado a comunicação como tal não tem um significado objetivo preciso a compreensão que suscita aos demais variando com os da dos de interpretação que o destinatário considera A diferença entre interpretação subjetiva e objetiva portanto não deverá ser buscada no contraste entre os propósitos da interpretação o significado tencionado em oposição ao significado comunicado Toda interpretação parte da comunicação e busca atingir a intenção A diferença depende dos dados tomados em consideração ao inter pretar A interpretação subjetiva se vale de todas as circunstância que podem lançar luz sobre o significado particularmente todas así circunstâncias pessoais e de fato ligadas à composição da expressão e a sua declaração A interpretação objetiva restringe os dados aos discerníveis pelo destinatário na situação em que ele se acha ao apre ender a expressão A diferença é mais significativa quando a situação na qual a expressão é apreendida difere da situação na qual foi for mulada Se por exemplo o objeto da interpretação é uma obra lite rária do passado uma interpretação subjetiva investigará as opiniões culjturais básicas do período e a vida do autor com a esperança dei eptontrar aí indícios para a compreensão da obra uma interpretação objetiva em contrapartida prescindirá de tudo isso e procurará comi preender a obra a partir de seu conteúdo ideal imanente o que não quer dizer entretanto que a interpretação objetiva é puramente lin güística Tal como salientaremos nos parágrafos seguintes a crença numa interpretação literalé uma ilusão A interpretação se apóia sem pre em outros fatores em particular em conjeturas acerca da idéia o propósito ou a intenção associados à obra A própria consciência do fato de que alguém está se ocupando de um poema de uma obra científica de uma lei etc é em si importante A interpretação objeti va simplesmente se recusa a investigar a intenção estudando a ma neira pela qual a obra foi produzida Deste modo a interpretação objetiva contrastando obviamente com o que a terminologia autori zaria a crer adquire um tom de maior imprecisão e arbitrariedade que a interpretação subjetiva A interpretação objetiva de obras poé ticas como o Fausto de Goethe ou o Hamlet de Shakespeare tende a transformarse em subjetiva no sentido de que chega a ser a ex pressão do que épocas diferentes têm visto nessas obras Direito e Justiça 151 A interpretação objetiva pode chegar a ser uma construção ideal em conflito direto com a intenção do autor As diversas interpretações de Kant por exemplo não colimam verificar o que Kant realmente quis dizer inclusive a resposta deste se fosse possível interrogálo não seria decisiva para determinar qual das interpretações é a correta Es tas interpretações por assim dizer atravessam a obra do autor e possuem uma profundidade intencional maior que a da própria obra Apóiamse num ideal de consistência lógica interna ao sistema que não diz respeito aos fatos e apontam para um significado hipotéticoideal mais do que para o significado de Kant como fato históricopsicológico Entretanto esse atravessar com o pensamento pode se realizar de mais de uma maneira segundo o que é considerado de maior impor tância no sistema As interpretações desse tipo são pois valorativas e criadoras e ultrapassam os limites de uma interpretação genuína no sentido em que esta palavra foi aqui entendida 25 PROBLEMAS PE INTERPRETAÇÃO SINTÁTICOS O princípio orientativo para toda interpretação tal como vimos no parágrafo 24 é o princípio da função primária determinativa de signi ficado das expressões como entidade e das conexões em que elas aparecem princípio de entidade Isto deve ser considerado ao se distinguir os diferentes grupos de problemas de interpretação pro blemas sintáticos lógicos e semânticos em sentido estrito É mister lembrarmos que estamos falando de abstrações analíticas e que os problemas de interpretação aqui abordados de maneira isolada na realidade são sempre apreendidos como partes orgânicas dentro da conexão de significado captada de forma simultânea ou sucessiva O significado de uma expressão depende da ordem das palavras e da maneira em que se acham conectadas Os problemas que concernem à conexão das palavras na estrutura da frase chamamse problemas sintáticos de interpretação O princípio de entidade se aplica também à interpretação sintáti ca Assim como as palavras não têm em si mesmas uma referência exata tampouco as conexões sintáticas têm uma inequívoca função determinativa de significado Também aqui o sentido naturalé condi cionado por fatores não lingüísticos o desejo de descobrir um signifi cado bom ou razoável que se harmonize com aquele que o contexto e a situação indicam como tais 152 Alf Ross Os problemas sintáticos de interpretação que eu saiba não fòrare objeto de uma exposição e análise sistemáticos O presente estudí não tem esta pretensão Meu propósito é simplesmente estimular compreensão de problemas desse tipo oferecendo alguns exemplo Decerto os estudos sistemáticos seriam importantes para a interprei tação das leis e em particular para a redação destas I a Frases adjetivais orações adjetivas la Foi uma tentativa de encontrar uma solução que satisfizesse 1 todos It was an attempt at finding a soution that woud satisq everyone 1 1b Foi uma tentativa de encontrar uma solução que todaviaj não teve êxito It was an attempt at finding a soution that was rtch successfui however i 2a Ninguém pode ter um tutor 7oeseja mais jovem do que eles Nobody can have a guardian who is younger than himsef jjj 2b Ninguém que não tenha ao menos 21 anos de idade pode sej nomeado tutor Nobody can be appointed a guardian who is notak ieast twentyone years od J Esses exemplos mostram que não há regras sintáticas que especf fiquem o aíntecedente de uma oração relativa Contudo os exemplo não deixam margem à duvida porque só há uma interpretação capai de produzir um significado razoável Porém em outros casos o signl ficado pode provocar dúvidas Se dissermos por exemplo I si 3 Instigação ao crime que foi cometido num país estrangeiro nãc é incluída Incitement to crime which hasbeen committedin a foreigt country is not induded não saberemos com certeza se é a insti gação ou o crime que terão sido cometidos num país estrangeiro 0 autor está se referindo a um problema de sintaxe de uma oração adjetiva relativa instaurada pelo conectivo prononM relativo que numa correta construção gramatical préestabelecida Ross esbarra aqui numa dificuldade filológic o que não é de se surpreender porque ele não conhecia bem as línguas romãnicas ou latinas nas quais o portugué por exemplo a mera substituição do pronome que por a qual ou o qual e a variação verbal eliminariam o problema dl interpretação É necessário portanto entender sua análise num âmbito idiomático circunscrito ao inglês e extensi vo às línguas anglosaxônicas em geral como o dinamarquês e o norueguês no qual a oração subordinada adjethrí é exclusivamente introduzida por that who ou which que são pronomes neutros sem gênero e número Por outK lado se removêssemos o pronome relativo no português teríamos uma segunda solução ainda devido à variação 4l gênero e número a instigação a um crime cometido cometida num pais estrangeiro Em inglês o problema perm nece porque os verbos no caso committed também são invariáveis quanto a gênero e número Jll T Direito e Justiça 153 A interpretação neste caso tem que se apoiar em dados não lingüísticos principalmente em informações sobre o propósito da regra Se o intér prete permitir que suas preferências pessoais decidam a questão ex cederá os limites de uma interpretação autêntica parágrafo 24 b O problema de se os adjetivos e frases adjetivais orações adjetivas qualificam duas ou mais palavras 4a Livros e jornais que contêm figuras indecentes não devem ser importados Books and newspapers which contaín indecentpictures must not be imported 4b Oficiais e soldados rasos que tenham sido alistados há mais de seis meses têm direito a um soldo extra Officers and prívates who have been conscripted more than six months are entitied to extra allowances 5a Homens e mulheres jovens que tenham sido aprovados no exame podem ser designados fYoung men and women who have passed the quaüfying examination can be appointed 5b Homens e mulheres jovens que tenham prestado serviços nas organizações auxiliares femininas podem ser designados Young men and women who have served in the WACS can be appointed 6a0 Rei pode fazer projetos dee e outras medidas serem intro duzidos no Parlamento The King may cause proposals for statutes and other measures to be introduced in the pariiament 6b O Conselho se ocupa de projetos de leis e outras matérias importantes The Counciideais with proposaisfor statutes and other matters of importance Estes exemplosdemonstram que não há regras fixas que defi nam quando um adjetivo um pronome relativo ou uma preposição se referem somente a uma palavra e quando se referem a mais de uma Nesses exemplos o significado é satisfatoriamente claro à luz da exigência de um significado razoável Ao interpretarse 4a en tretanto o propósito presumível do legislador ou a própria atitude do intérprete terão que desempenhar um papel e em 4b será deci sivo para a interpretação verificar se de acordo com o contexto é Possível que os oficiais sejam alistados Em outros casos podem SlJrgir sérias dúvidas 154 Alf Ross Sí 7 No contexto agências e instituições de caridade charitablel institutions and agencies a expressão de caridade charitable sei refere de acordo com o uso ordinário da língua tanto às agêndaà quanto às instituições Porém dúvidas poderão surgir se além dòl conectivo houver uma palavra que qualifique o primeiro membro como ocorre na frase instituições de caridade ou organizações comi pessoa jurídica charitable institutions or incorporated organizations Assim no caso escocês Symmers Trustees contra Symmers 1918 S C 337 em que os fideicomissários receberam instruções para dividir o remanescente entre tais instituições de caridade ou agências me recedoras de sua escolha such charitable institutions or deserving agencies as they may select decidiuse que o legado era nulo por falta de certeza pois a descrição instituições merecedoras deserving institutions tinha que ser entendida independentemente deinstitui ções de caridade charitable institutions e assim o legado não era exclusivamente de caridade6 Ternos um outro exemplo nas seguintes palavras do British Roac TrafficActúe 1930 parágrafo 11 1 Se uma pessoa conduzir um veículo motorizado por uma estradai de maneira descuidada ou a uma velocidade ou de uma maneirai perigosa ao público tendo em conta todas as circunstâncias do caso incíusive a natureza estado e uso da estrada e a densidade do trát go que ocorre realmente na ocasião ou que razoavelmente poderse ia esperar na estrada será responsável etc Parece ter sido aceito sem problemas que as palavras em itálic se referem tanto à condução descuidada quanto à velocidade e maneira de conduzir ver por exemplo Elwes contra Hopkins 1906 2 K Bl JusticesManual1950 vol II p 2056 Entretanto relatif vãmente a uma lei australiana de redação similar decidiuse no casc Kane contra Dureau 1911 VDR 293 que essas palavras qualificar somente as frases a uma velocidade e de uma maneira7 6 Citação de E L Piesse e J Gilchrist Smith The Elemeats ofDrafting 1950114 7 Op cit 1617 Neste caso e nos próximos que se seguem não registramos o inglês visto a pertinência não se restringir às língw inglesa e dinamarquesa atingindo também o português W T Direito e Justiça 155 c Pronomes demonstrativos e relativos 9a0 Rei citará anualmente um parlamento ordinário e decidirá quando termina a sessão Isto todavia não pode ocorrer até que de acordo com o parágrafo 48 se tenha autorizado legalmente a co brança dos impostos e o pagamento das despesas do governo Cons tituição Dinamarquesa 1920 parágrafo 19 9b O presidente convocará uma reunião e anexará uma cópia de seu relatório Isto todavia não pode ocorrer enquanto o tesoureiro não expor suas contas 10aSe uma das Câmaras for dissolvida por ocasião de sessão do Parlamento as reuniões da outra Câmara serão suspensas até que o Parlamento todo se reúna novamente Isto tem que ocorrer dentro de dois meses após a dissolução Constituição Dinamarque sa 1920 parágrafo 22 10bSe a competência do presidente for questionada este adiará a reunião até que o Conselho tenha chegado a uma decisão stotem que ser realizado mesmo que o presidente declare sua disposição para renunciar 11a Os Ministros serão responsáveis perante o Rei e o Parla mento pelo exercício de suas funções Constituição Dinamarquesa 1920 parágrafo 14 llb Os professores deram a João e Pedro um presente em seu aniversário Fica claro pelo contexto que são gêmeos Nas citações da Constituição parece completamente claro a que se referem as palavras em itálico As passagens concebidas como contrapartida demonstram entretanto que de um ponto de vista puramente sintático é possível que sejam entendidas de maneiras diversas e que a leitura natural portanto é na realidade determina da não apenas pelo que pode ser lido como também por um juízo sobre o significado que se pode razoavelmente presumir Entretanto esse juízo nem sempre produz certeza Problemas difíceis de inter pretação têm surgido por exemplo com relação à frase a mesma obrigação do Estatuto da Corte Internacional Permanente de Justi Ça art 36 5 seção 28 8 Ver Hans Kelsen The Law of the United Nations 1950 526 3i d Frases de modificação exceção e condição j Do ponto de vista da sintaxe é com freqüência duvidoso com q u i membro primário uma frase de modificação exceção e condição esq conectada Nestes casos a pontuação pode ser importante J 12 No exercício de suas funções os juizes são limitados pel direito Os juizes não serão destituídos de seus cargos a não séf mediante juízo nem serão transferidos contra sua vontade excera nos casos em que ocorra uma reorganização dos tribunais Const tuição Dinamarquesa 1920 parágrafo 71 A estrutura da sentença nesse enunciado não deixa claro se a exoe ção relativa à organização dos tribunais se aplica somente à regra dd juizes não poderem ser transferidos contra sua vontade ou também regra de não poderem ser destituídos de seus cargos sem juízo O fatc decisivo é a vírgula após a palavra vontade Isto demonstra que interpolação nem serão transferidos contra sua vontade se acha er oposição à ou paralela à primeira parte da sentença e que a exceçã se relaciona igualmente com ambas as alternativas Se suprimirse vírgula seria natural a interpretação contrária A importância da pontuação se faz patente no protocolo de Berlirj de 6 de outubro de 1945 cujo único intuito foi substituir um ponto vírgula por uma vírgula Os crimes contra a humanidade foram da finidos da seguinte maneira no art 69 da Carta do Tribunal MilitJ Internacional contida no Acordo de Londres de 8 de agosto de 1943 13 Os crimes contra a humanidade a saber homicídio extermíniq escravidão deportação e outros atos desumanos cometidos contra qual quer população civil antes ou depois da guerra ou perseguições pd razões políticas raciais ou religiosas em execução ou em conexão con qualquer crime compreendido dentro da jurisdição do Tribunal sejam c não transgressões das leis internas do país onde perpetrados No mencionado protocolo o ponto e vírgula situado depois d palavra guerra foi substituído por uma vírgula A jurisdição do tribiíj nal ficou assim substancialmente circunscrita porque a condiçã do ato ser cometido em conexão com um dos crimes compreendíjj dos na esfera de jurisdição do tribunal se fez aplicável a todos casos de crimes contra a humanidade e não somente aquele gru po perseguições mencionado depois do ponto e vírgula originaiá 156 Alf Ross Direito e Justiça 157 A correção entretanto não foi inspirada por uma mudança de inten ção Simplesmente ocorreu que a função sintática do ponto e vírgula não fora percebida antes Os diversos grupos de exemplos dados logo acima bastam pro vavelmente para confirmar que as formas sintáticas conectivas não exercem uma função inequívoca e que os problemas sintáticos não podem ser resolvidos com base em dados de interpretação pura mente lingüísticos Nisto assemelhamse aos problemas semânticos em sentido restrito Por outro lado diferem destes num aspecto mesmo quando a imprecisão de significado das palavras é irremediá vel os problemas sintáticos por meio de uma prolixa e talvez tedio sa composição lingüística poderiam limitarse àqueles cuja solução se faz patente sem dúvida alguma pelo simples sentido comum Por exemplo que a palavra suas em lla se refere a os Ministros e não ao Rei ou ao Parlamento Os casos realmente duvidosos de problemas sintáticos de interpretação tais como os presentes na British Road TrafficActúe 1930 s 111 e no art 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça poderiam ser evitados graças a uma redação mais cuidadosa Se nos habituamos a dizer que um texto é claro ou isento de ambigüidade é possível que isso manifestando se com propriedade se refira somente a essa interpretação sintáti ca Do ponto de vista da semântica no sentido restrito um texto é sempre afetado pela inevitável imprecisão de significado das pala vras e nessa medida jamais é claro ou isento de ambigüidade o que significa que constantemente podem surgir situações atípicas diante das quais fica dúbio se o texto é aplicável ou não Por outro lado isso não exclui que em outras situações de caráter típico não se dê margem a dúvidas Entretanto a certeza da aplicação em algumas situações não justifica a afirmação geral de que o texto não é ambíguo 26 PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO LÓGICOS Os problemas lógicos da interpretação são os que se referem às ilações de uma expressão com outras expressões dentro de um contexto Entre estes problemas destacamse a inconsistência a re dundância e as pressuposições 158 Alf Ross 261 Inconsistência Existe inconsistência entre duas normas quando são imputad efeitos jurídicos incompatíveis às mesmas condições fatuais Pode haver inconsistência entre duas normas de três maneir distintas I a Inconsistência totaitotal isto é quando nenhuma das norm pode ser aplicada sob circunstância alguma sem entrar em conflí com a outra Se os fatos condicionantes de cada norma são simbi zados por um círculo há uma inconsistência desse tipo quando am os círculos coincidem 2a Inconsistência totaiparciai isto é quando uma das duas nc mas não pode ser aplicada sob nenhuma circunstância sem entr em conflito com a outra enquanto esta tem um campo adicional aplicação no qual não entra em conflito com a primeira Tal inconsf tência ocorre quando um círculo se acha dentro do outro 3a Inconsistência parcialparciai isto é quando cada uma duas normas possui um campo de aplicação no qual entra em confll com a outra porém também possui um campo adicional de aplicaçi no qual não são produzidos conflitos Tal inconsistência existe qua do os dois círculos são secantes Para simplificar nossa linguagem podemos empregar também seguinte terminologia I a Inconsistência totai ou incompatibilidade absoluta 2a Inconsistência totalparcial ou inconsistência entre a rei geral e a particular As expressões regra geral e regra particular s correlativas Uma regra é particular em relação à outra se seu fia condicionante é um caso particular do fato condicionante da out regra Se o fato condicionante desta última é F a b c isto é ií fato definido pelas indícios a b c então o fato condicionante regra particular é F a b c m n Se por exemplo houver uma re que dispõe que os estrangeiros não gozam do direito de pescar águas territoriais de um país marítimo e houver outra que estabel que os estrangeiros com mais de dois anos de domicílio no país zam desse direito então a primeira regra será geral em relaçã segunda e a segunda será particular em relação à primeira Direito e Justiça 159 3a Inconsistência parciai ou sobreposição de regras No julgamento das inconsistências constitui fator importante a rela ção existente entre as leis a que pertencem as normas conflitantes Deve ser realizada uma distinção entre a inconsistências na esfera da mesma lei e b inconsistências entre uma lei anterior e outra posterior No último grupo é necessário fazer a distinção considerando se as duas leis estão no mesmo nível ou em níveis diferentes parágrafo 16 I As inconsistências totais dentro de uma mesma lei são raras Todavia a Constituição Dinamarquesa de 1920 estabelece na primei ra parte do parágrafo 36 que o número dos membros da Primeira Câmara não pode exceder setenta e oito enquanto na segunda parte são estabelecidas normas minuciosas para sua eleição e distribuição das quais se conclui que o número de membros a ser eleito é setenta e nove Não há regras gerais que indiquem como resolver uma in compatibilidade absoluta como essa entre duas normas A decisão segundo as circunstâncias terá que se basear seja numa interpreta ção fundada em dados alheios ao texto seja no critério A relação entre uma regra geral e uma regra particular no âmbito de uma mesma lei raramente dá origem a dúvidas Com freqüência como ocorre na linguagem falada normal a regra particular está liga da à regra geral por meio de um nexo sintático todavia a menos que com a exceção de etc que indica que a regra geral só deverá ser aplicada com a limitação imposta pela particular Não há verdadei ra inconsistência aqui mas uma forma de expressão lingüística que pode ser parafraseada numa regra Ademais ao redigir uma lei aceitase uma convenção geral quase fixa segundo a qual os nexos conectivos sintáticos podem ser omiti dos se alterarse com isso o significado A regra particular se mante rá limitando a geral É freqüente a regra geral estar cçntida numa seção e as exceções em uma ou mais seções distintas É incontestá vel a regra particular limitar a geral É de pouquíssima monta deter minar se isso será considerado como uma simples interpretação lin Qüística que introduz uma conjunção sintática implícita ou como um caso de uma regra positiva de interpretação que pode ser chamada de lex speciais dentro de uma mesma lei Por outro lado a sobreposição de normas dentro de uma mesma ei gera freqüentes problemas de interpretação Não há regras gerais 160 Alf Ross para sua solução e a decisão deve apoiarse em dados alheios ao text ou no critério Por exemplo de acordo com o art 53 da Carta d Nações Unidas não se tomará nenhuma medida de força dentro d tratados regionais ou pelos organismos regionais sem a autorizaçj do Conselho de Segurança Segundo o art 51 entretanto nada i que é estabelecido na Carta restringe o direito à autodefesa individu ou coletiva em caso de ataque armado e as medidas de defesa n estão sujeitas a autorização Estas duas regras se sobrepõem parcii mente o problema consistindo por conseguinte em saber qual deli deve ceder se de acordo com um tratado regional se desejar pôr é prática uma medida de força que consiste numa autodefesa coletlv contra um ataque armado Este problema se destacou na discussão i Tratado do Atlântico e é insolucionável por meio de interpretação líí güística ou construção lógica A resposta a ele dependerá da informj ção relativa às circunstâncias que cercaram a criação da Carta e í uma valoração das vantagens políticas de uma ou outra interpretaçã I I Pensase freqüentemente que quando se trata da relaç entre leis diferentes as inconsistências podem ser resolvidas mec ante duas simples regras convencionais de interpretação conhecidí como lex posterior e iex superior Lex posterior significa que de duas leis do mesmo nível a segunt prevalece sobre a anterior É indubitável que se trata de um princíp jurídico fundamental embora não esteja expresso como norma poí tiva que o legislador pode derrogar uma lei anterior e que pode faz Io criando uma regra nova incompatível com a anterior que ocuf seu lugar Todavia não é correto guindar este princípio à categoria i axioma absoluto A experiência mostra que não há adesão incondiciá nal a ele sendo permissível colocálo de lado quando em conflito co outras considerações O princípio da lex posterior portanto só poá ser caracterizado como um importante princípio de interpretação en tre outros Além disso a força do princípio variará segundo os difi rentes casos de inconsistência I 1 No caso de incompatibilidade absoluta é muito difícil concebi considerações de suficiente peso que justifiquem deixar de lado 1 princípio de lex posterior J ZôO mesmo ocorre naqueles casos de inconsistência totalpardi nos quais a última regra é a particular Neste caso a lex postem opera em conjunção com a lex specialis Direito e Justiça 161 2b Nos casos de inconsistência entre regras particulares anterio res e regras gerais posteriores a lex speclalis pode segundo as cir cunstâncias prevalecer sobre a lex posterior Imaginemos por exem plo uma lei anterior que contenha uma regra geral à qual em leis posteriores foram introduzidas várias exceções para situações parti culares Subseqüentemente a regra geral anterior é substituída por outra que não menciona as exceções Em tal situação para determi nar se as exceções anteriores podem não obstante ser consideradas válidas terá que se recorrer a outros dados e considerações valorativas 3 Nos casos em que as regras se sobrepõem parcialmente a lex posterior certamente dá suporte à presunção de que a regra mais recente terá preferência sobre a mais antiga anterior porém isto não se aplica incondicionalmente A lex posterior só se aplica na me dida em que em termos subjetivos o legislador teve a intenção de substituir a lei mais antiga anterior Entretanto pode também ter tido a intenção de que a nova regra se incorporasse harmoniosamen te ao direito existente como um suplemento dele A decisão acerca de qual das duas possibilidades é aplicada num caso concreto depen derá como de costume de uma prova alheia ao texto ou do critério Lex superior quer dizer que num conflito entre previsões legislativas de nível diferente a lei de nível mais elevado qualquer que seja a ordem cronológica se achará numa situação de preferência relativa mente a de nível mais baixo a Constituição prevalece sobre uma lei uma lei sobre um decreto e assim sucessivamente Contudo na experiência jurídica tampouco esse princípio é incon dicionalmente válido Em primeiro lugar a prioridade da Constituição depende dos tribunais terem competência para revisar a constitucionalidade material das leis E mesmo quando os tribunais tenham tal competência com freqüência se recusarão de fato a registrar o conflito e a declarar a invalidade Nestes casos segura mente acatarão formalmente a lex superior porém se negarão a admitir a existência de um conflito que em outras circunstâncias teriam reconhecido Em segundo lugar a instância legislativa superior Pode ser competente para autorizar a inferior a ditar regras que te nham força derrogatória com relação a normas de um nível imedia tamente superior Assim por exemplo uma lei pode autorizar o Po der Executivo a ditar decretos que possam derrogar leis vigentes ou delas se desviar ou autorizar os cidadãos particulares a celebrar 162 Alf Ross transações contrárias a normas legislativas aquelas que não são apljj cáveis se as partes pactuam outra coisa Não é excluível a possibill dade dos tribunais ainda que sem autoridade para tanto se desviei da lex superior kl 262 Redundância Há redundância quando uma norma estabelece um efeito jurídio que nas mesmas circunstâncias fatuais está estabelecido por outrí norma Uma das duas normas na medida em que isso ocorre redundante É freqüente na conversação diária enfeitarmos nossa expressões com redundâncias Não diga mentiras contenos corri realmente foi Na redação das leis onde se requer maior cuidadd procurase evitar dizer mais do que o necessário Temse por pressií posto que uma lei não contém redundâncias e uma coincidência apá rente de duas normas portanto induz a interpretar uma delas maneira tal que a aparente redundância desapareça Entretanto nM é possível sustentar que existe um princípio incondicional de interpre tação segundo o qual não possa haver redundâncias É mister leva m conta a possibilidade de que aquele que teve como incumbêncii redigir a lei não tenha se apercebido da coincidência em especial 9 é o caso de uma redundância que assoma ao comparar a lei com umi norma anterior ou a possibilidade de por razões históricas dese jouse salientar um ponto de vista particular ou que para oferece um quadro geral em benefício mormente do leitor inexperiente julgouse necessário incluir num só texto material que de outro modo teria que ser procurado alhures enunciados ex tuto Na realidade a teoria da redundância poderia ser desenvolvidl semelhantemente à teoria da inconsistência porém tal desenvoM mento apresentaria pouco interesse O ponto essencial é que para redundância tampouco há solução mecânica É mister que a decisãij se baseie em considerações diversas inclusive a pressuposição gera de que não há redundâncias i 263 Pressuposições 1 Se digo a uma criança que tem uma maçã na mão Dême a maçl que você furtou e a criança não furtou a maçã a diretiva não pode s Direito e Justiça 163 cumprir Decidase o pequeno a entregar a maçã ou retêla consigo sua decisão estará fundada em motivos e idéias que nada têm a ver com o acatamento à diretiva Algo similar ocorre quando uma regra produz pressuposições incorretas ou falhas Os problemas que surgem neste caso não podem ser resolvidos por interpretação lingüística sen do necessário o recurso a outros dados de interpretação ou ao critério Há falsas pressuposições fatuais quando por exemplo uma lei qualifica uma substância inócua de venenosa ou proíbe a pesca numa área que atualmente é desértica ou regulamenta a navegação num rio que já não é mais navegável ou dispõe que a administração deve consultar um organismo que não existe mais Há falsas pressuposi ções jurídicas quando uma norma faz pressuposições incorretas ou falhas sobre o conteúdo do direito vigente ou a respeito de situações jurídicas específicas Por exemplo que na Califórnia a maioridade é adquirida aos 30 anos ou que as mulheres não têm direito ao sufrá gio ou que uma certa zona se encontra sob uma autoridade munici pal diferente daquela que na realidade lhe corresponde Está claro que é improvável que tais erros grosseiros ocorram Por outro lado não é difícil incorrerse em erros menos graves especialmente quan do uma lei faz referência a leis anteriores que posteriormente são derrogadas por outras e se esquece que as referências devem ser modificadas de maneira concordante Das falsas pressuposições fatuais ou jurídicas surgem problemas de interpretação que não podem ser resolvidos por regras mecânicas Também aqui lograse a harmonia com a ajuda do senso comum e do critério A regra pode ser aplicada a despeito da pressuposição incor reta ou falha ou a regra pode ser modificada ou considerada nula No caso de um erro jurídico surge a questão da pressuposição poder ser considerada como garantia para a criação de direito em conformida de com seu conteúdo Recapitulando o que dissemos a respeito do conflito de normas fica claro não haver na realidade princípios fixos para a solução me cânica desses problemas Todos os problemas lógicos da interpreta ção são lógicos no sentido de que podem ser determinados mediante ürna análise lógica da lei Contudo não são de modo algum lógicos no sentido de que possam ser resolvidos com o auxílio da lógica ou de Princípios de interpretação que operam de forma mecânica Lex sPeciaiis lex posterior e superior não são axiomas mas princípios de 164 Alf Ross peso relativo que gravitam em torno da interpretação ao lado de outra considerações em particular uma valoração acerca da melhor maneir de fazer com que a lei esteja de acordo com o senso comum com consciência jurídica popular ou com os objetivos sociais supostos 27 PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO SEMÂNTICOS Os problemas semânticos da interpretação em sentido estritc são aqueles que se referem ao significado das palavras individuais ot das frases Aplicamse a este tópico principalmente os comentários feitos r parágrafo 24 Devese recordar em especial que a maioria das palá vras são ambíguas e que todas as palavras são vagas isto é que sa campo de referência é indefinido pois consistem num núcleo ou zon central e um nebuloso círculo exterior de incerteza e que o significa do preciso de uma palavra numa situação específica é sempre en função da unidade total ou entidade a expressão como tal o conte toe a situação É por conseguinte errôneo crer que a interpretação semântic começa por estabelecer o significado das palavras individuais atinge o da expressão pela soma dos significados parciais O pontí de partida é a expressão como um todo com seu contexto e i problema do significado das palavras individuais está sempre uròj do a esse conceito A palavra casa pode designar uma grande vâ riedade de objetos Falase da casa habitação da casa que ufl caracol leva às costas das casas bancárias das casas de deter ção das casas de famílias reais das casas de um tabuleiro da casas decimais e muitas outras Em certas circunstâncias comN toda criança sabe um sapato velho pode ser uma casa Entrei tanto numa lei habitacional a maior parte de tais possibilidade são afastadas pois seriam absurdas É errôneo também portanto crer que um texto pode ser tãí claro a ponto de ser impossível que suscite dúvidas quanto a sui Por questões filológicas somos obrigados a diversificar certos exemplos já que no inglês existem numerosas exprí sões compostas analíticas que correspondem a expressões simples sintéticas no português Exemplificamos I house não corresponde a casa de galinhas mas a galinheiro NT Direito e Justiça 165 interpretação9 Tal como vimos no parágrafo 25 in fine tal clareza só é atingível sempre que haja um certo mínimo de senso comum no tocante à interpretação sintática e não no tocante à interpretação semântica em sentido estrito Logo que fazemos a transição do mun do das palavras ao mundo das coisas nos defrontamos com uma incerteza fundamentalmente insuperável10 ainda que em situações típicas a aplicação do texto não ofereça nenhuma dúvida Por isso tampouco a interpretação semântica é um processo mecâ nico Salvo nos casos de referência clara e óbvia o juiz tem que tomar uma decisão que não é motivada pelo mero respeito à letra da lei 28 INTERPRETAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA Nos parágrafos anteriores fornecemos exemplos dos problemas de interpretação que enfrentam os juizes e as outras autoridades na administração do direito Dirigimos agora nossa atenção ao problema de como são resolvi dos esses problemas na administração da justiça Não queremos com isso dizer como devem ser resolvidos Tal como verseá mais detidamente no parágrafo 31 as teorias correntes so bre a interpretação têm um conteúdo normativo isto é se propõem a proporcionar diretivas que prescrevem como deve ser interpretado o direito na administração da justiça Na medida em que são deduzidas de idéias preconcebidas referentes à natureza do direito o conceito do direito o propósito da administração do direito e coisas semelhan tes eqüivalem a postulados dogmáticos Na medida èm que são ba seadas em considerações de vantagens e desvantagens sociais apre ciadas em relação a certos valores pressupostos eqüivalem a suges tões de política jurídica dirigidas ao juiz Em ambos os casos exceto 9 Este ponto de vista errôneo está entretanto difundido 0 projeto do Code Civil do ano VII continha esta cláusula Quand une loi est daire il ne faut pas en éluder le texte sous pretexte den respecter 1esprit Em relação a isto Henri LévyBruhl na obra coletiva Introduction à 1étude du droit 1951 283 Se a norma é clara é inútil e até perigoso interpretála A Corte Internacional a Corte Permanente de Justiça Internacional tem declarado reiteradamente que os trabalhos preparatórios não podem ser invocados para interpretar um texto que é em si suficientemente claro Ver por exemplo Interpretation of the Statute of the IMemel Territory PCI J série AB n 47 p 249 e Emptoyment of Women during the Night PCIJ série AB n 50 p 378 0 Talvez tenhamos que excetuar as designações individuais Inomes e os números 166Alf Ross quando mais ou menos fortuitamente refletem o método seguid prática pelos tribunais tais diretivas carecem de valor para com ender o direito positivo e para prever decisões jurídicas futuras Nosso problema é de natureza analíticodescritiva isto é proc mos descrever como ocorre na prática a interpretação Uma an mais radical se enquadra no estudo doutrinário de um sistema jur específico Uma teoria geral do método só pode mostrar os fat gerais que operam em toda administração da justiça e esboçar tipologia geral a fim de caracterizar as variedades de estilo de mé e interpretação existentes Ademais essa descrição e tipologia sã quisito prévio essencial de um exame políticojurídico racional do rr do Sem a compreensão do que realmente ocorre na administraçã justiça falta a base necessária para estabelecer objetivos de po jurídica bem fundados a respeito de como deve ocorrer tal tarefa Em primeiro lugar é essencial ter uma clara idéia da atividad juiz quando se defronta com a tarefa de interpretar e aplicar a um caso específico Nosso ponto de partida é que a tarefa do juiz é um probl prático O juiz tem que decidir se utilizará ou não força contra c mandado ou o acusado Decerto o conhecimento de diversas c os fatos do caso o conteúdo das normas jurídicas etc desempe um papel nessa decisão e nessa medida a administração da ju se funda em processos cognitivos Entretanto isto não modifi fato de que a administração da justiça mesmo quando seu cam é preparado por processos cognitivos é por sua própria natui indubitavelmente uma decisão um ato de vontade Como toda decisão deliberada ver mais detalhadamente no p grafo 70 ela surge de um substrato da consciência constituído dois componentes I oum motivo que concede à atividade sua ção na busca de uma meta e 2o certas concepções operativas é elementos cognitivos que dirigem a atividade rumo a tal meta ilustrar este ponto minha decisão de sair com guardachuva part desejo de não me molhar como motivo em conexão com a con ção operativa de que provavelmente choverá e de que o guc A antiga teoria positivistamecanicista da função da administr da justiça oferecia um quadro muito simples desses componei chuva é um instrumento de proteção Direito e Justiça 167 Supunhase que o motivo era ou devia ser a obediência à lei isto é uma postura de acatamento e respeito em relação ao direito vigente concebido como vontade do legislador Supunhase que as concep ções operativas consistiam em um conhecimento do verdadeiro signi ficado da lei e dos fatos comprovados O significado de uma lei de certo não é sempre claro não raro tem que ser descoberto mediante interpretação mas a interpretação segundo esse ponto de vista é fundamentalmente uma tarefa teóricoempírica Pode ocorrer que não se possa estabelecer com certeza o significado e que em razão disso o juiz disponha da liberdade para estimar o que é que nas circunstân cias deve ser presumido como o mais provável Porém uma incerteza desse calibre caracteriza muitos outros problemas cognitivos e não afeta o caráter teórico da interpretação Segundo esse quadro da administração da justiça o juiz não valora nem determina sua postura ante a possibilidade de interpretações diferentes O juiz é um autômato Temse como pacífico que é neces sário que se ajuste à lei e sua função se limita a um ato puramente racional compreender o significado da lei e comparar a descrição desta dos fatos jurídicos aos fatos do caso que ele tem diante de si Esse quadro não se assemelha em nada com a realidade É equívoco e para percebêlo basta assinalar que a interpretação no sentido de determinação do significado como fato empírico amiúde não conduz a qualquer resultado certo ver parágrafo 24 A inevitável imprecisão das palavras e a inevitável limitação da profun didade intencional fazem com que freqüentemente seja impossível estabelecer se o caso é abarcado ou não pelo significado da lei O caso não é óbvio É plausivelmente possível definir o significado das palavras de tal modo que os fatos acabem abarcados pela lei Porém também é possível de forma igualmente plausível definir o significa do das palavras de tal modo que o caso saia do campo de referência da lei A interpretação em sentido próprio ou seja como atividade cognitiva que só busca determinar o significado como fato empírico tem que fracassar Entretanto o juiz não pode deixar de cumprir sua tarefa Tem que escolher e esta escolha terá sua origem qualquer que seja seu conteúdo numa valoração Sua interpretação da lei num sentido mais amplo é nessa medida um ato de natureza construti va não um ato de puro conhecimento Seus motivos não se reduzem ao desejo de acatar uma determinada diretiva 168 Alf Ross Mas esse quadro é falso ainda num outro aspecto já que se baseia numa apreciação da atividade do juiz que é psicologicamente insustenJ tável O juiz é um ser humano Por trás da decisão tomada encontrase toda sua personalidade Mesmo quando a obediência ao direito a consj ciência jurídica formal esteja profundamente enraizada na mente do juiz como postura moral e profissional ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção O juiz não é um autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural Seul respeito pela lei não é absoluto A obediência a esta não constitui o único motivo Aos seus olhos a lei não é uma fórmula mágica mas uma mani festação dos ideais posturas padrões ou valorações que denominamos tradição cultural parágrafo 19 Sob o nome de consciência jurídica material essa tradição vive no espírito do juiz e cria um motivo passível de entrar em conflito com a consciência jurídica formal e sua exigência de obediência ao direito A crítica do juiz pode dirigirse assim contra aaj decisão no caso específico que ele sente como injusta não obstante aprove a regra ou pode dirigirse contra a própria regra A crítica poctej surgir na consciência do juiz como uma reação emocional espontânea ou resultar de uma análise consciente dos efeitos da decisão realizada em relação a padrões pressupostos Em todos os casos essas atitudes atuam participativamente na mente do juiz como um fator que motiva sua decisão Na medida do possível o juiz compreende e interpreta a leig à luz de sua consciência jurídica material a fim de que sua decisão possa ser aceita não só como correta mas também como justa ou socialmente desejável Se a divergência entre a consciência jurídica formal e a mate rial exceder certo limite pode até ser que o juiz prescinda de restrições obviamente impostas pelas palavras ou pela intenção do legislador Suai interpretação construtiva neste caso não se reduz a buscar uma maiorj precisão mas retifica os resultados alcançados por uma interpretação da lei que simplesmente averiguasse o que esta significa j Podese assim dizer que a administração da justiça é o resultante de um paralelogramo de forças no qual os vetores dominantes são al consciência jurídica formal e a consciência jurídica material A decisãoj obtida é determinada pelo efeito combinado da interpretaçãoj cognoscitiva da lei e da atitude valorativa da consciência jurídica11 i 11 Isto não significa que os dois vetores apareçam na mente do juiz como motivos independentes a serem subsa qiientemente contrabalançados entre si Isto poderia ocorrer porém é mais provável que se fundissem na ativi dade subconsciente do juiz Direito e Justiça 169 Seria errôneo limitar a atividade valorativa àquelas ocasiões relativa mente raras nas quais ela se manifesta como desvio do resultado a que conduziria uma interpretação meramente cognoscitiva da lei A consciência jurídica material está presente em todas as decisões Se na maioria dos casos o juiz decide dentro do campo da interpretação cognoscitiva é indício de que sua consciência jurídica julgou possível aprovar a decisão ou em todo o caso não a considerou incompatível com o justo ou o socialmente desejável num tal grau que tornasse necessário recorrer a algum expediente para livrarse das amarras da lei Se os postulados políticojurídicomorais de sua consciência jurídi ca tivessem levado o juiz a considerar que a decisão era inaceitável este teria podido também mediante uma argumentação adequada descobrir a via para uma melhor solução A despeito de ser a tarefa de administrar justiça muito mais ampla do que a de interpretar a lei no autêntico sentido desta expressão é não obstante comum usar a palavra interpretação para designar a atividade integral do juiz que o conduz à decisão inclusive sua ativi dade crítica inspirada por sua concepção dos valores jurídicos que emerge a partir de atitudes que transcendem o mero respeito pelo texto da lei Este uso lingüístico responde ao desejo de ocultar a função criadora do juiz preservando a aparência de que ele não pas sa de um portavoz da lei O juiz não admite abertamente portanto que deixa o texto da lei de lado Graças a uma técnica de argumenta ção que foi desenvolvida como ingrediente tradicional da administra ção da justiça o juiz aparenta que por meio de várias conclusões sua decisão pode ser deduzida da verdadeira interpretação da lei para detalhes adicionais ver parágrafo 30 Podemos de maneira definitiva dizer que a administração do di reito não se reduz a uma mera atividade intelectual Está enraizada na personalidade total do juiz tanto em sua consciência jurídica for mal e material quanto em suas opiniões e pontos de vista racionais Tratase de uma interpretação construtiva a qual é simultaneamen te conhecimento e valoração passividade e atividade Para atingir uma verdadeira compreensão da função do juiz é im portante ressaltar essa dupla natureza Contudo ao mesmo tempo é preciso reconhecer que a distinção entre a função cognoscitiva e a valorativa é artificial na medida em que ambas se fundem na prática o que impossibilita afirmar com precisão onde uma termina e começa i1 a outra Assim é porque é impossível para o próprio juiz bem como para os demais distinguir entre as valorações em que se manifestair as preferências pessoais do juiz e as valorações atribuídas ao legisla dor as quais são portanto dados para uma interpretação puramentd cognoscitiva Tal como salientamos no parágrafo 24 a funçãoj determinativa de significado do contexto consiste no próprio fato de proporcionar um fundamento para presumir o que é que o autor pode razoavelmente ter querido dizer na situação dada Do mesmo modo toda interpretação jurídica em sentido próprio inclui presunções quéj tangem aos critérios e valores sociais que motivaram o legislador Se aj juiz errônea ou acertadamente identifica suas próprias valorações com as do legislador os dois tipos de interpretação se flindem em seu espí rito A situação encontra paralelo naquilo de que falamos na parte fina do parágrafo 9 ao nos ocuparmos do limite impreciso entre a intenção teóricojurídica e a intenção políticojurídica contidas na doutrina Disto se conclui que existe um limite fluido entre aaqueles casos em relaçãOj aos quais o juiz crê que há na própria lei ou em sua história legislativa certos elementos que provam que sua interpretação concorda com a intenção do legislador b aquelescasos em relação aos quais acerta da ou erroneamente e sem ter clara consciência disto o juiz identifica suas próprias atitudes pragmáticas com as do legislador e finalmente c aqueles casos em relação aos quais o juiz se dá conta de que está interpretando a lei à luz de idéias que não podem ser atribuídas adj legislador e que inclusive possivelmente se acham em oposição dire4 ta às intenções do legislador í Nas páginas anteriores enunciamos os fatores gerais que estão prei sentes em toda administração da justiça por um lado uma atividadd puramente cognoscitiva que colima expressar certos dados por outroi uma atividade emotivovolitiva fundada em valorações sociais e em observações sociológicojurídicas Entretanto é possível distinguir ntl âmbito dessa estrutura diversos tipos de estilos de interpretação que variam com a força relativa de cada um desses fatores e com os dados que convencionalmente são levados em consideração no caso da interi pretação da lei em sentido próprio o fator cognoscitivo a De acordo com o grau de liberdade que o juiz se atribui nat interpretação da diretiva da lei à luz das reclamações da consciência jurídica material e das exigências sociais podese distinguir entre un estilo de interpretação relativamente livre e um estilo relativamente 170 Alf Ross Direito e Justiça 171 limitado Todavia é difícil decidir se a diferença de estilo é tão grande como pode parecêlo à primeira vista É possível que a diferença não esteja tanto no grau de liberdade de que goza o juiz quanto na fran queza com que essa liberdade é reconhecida Em torno de meados do século passado se desenvolveu na França e na Alemanha um estilo de interpretação claramente limitado Em harmonia com uma doutrina das fontes do direito estritamente positivista quisse criar a aparência de que em todos os casos era possível derivar uma decisão da lei com a ajuda da interpretação lingüística e dos métodos lógicos de inferência ou construíla por dedução a partir de conceitos jurídicos pressupostos Jurisprudência de concepções ou jurisprudência mecânica12 Próximo ao fim do sé culo passado e no início do presente século uma forte oposição sur giu nesses dois países Na França ficou conhecida como ie combat pour ia méthode e na Alemanha como die Freirechtsbewegung13 O método tradicional foi qualificado de reverência aos textose de cons trução de conceitos formaiistas 14 E seus opositores exigiam que o juiz tivesse uma maior liberdade para inspirarse na vida nas neces sidades e nos interesses práticos Esta exigência estava combinada a idéias de um direito naturai desenvolvido pela ciência segundo fun damentos filosóficos ou sociológicos visando a complementar o direi to positivo ia libre recherche scientifique das freie Recht Não é fácil decidir em que medida esse movimento constituiu expressão de uma exigência genuinamente políticojurídica em prol de um novo espírito na administração do direito e em que medida foi meramente uma transação na esfera da teoria jurídica com as ficções formaiistas da interpretação então corrente15 Ou seja século XIX M T 12 Ver também Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 caps II 3eVI 6 Ou seja séculos XIX e XX W T I 13 Ver também ibid caps III 49 e VII com bibliografia detalhada 14 Um exemplo típico é a seguinte caricatura da concepção positivista do juiz Este douto alto funcionário está sentado em sua cela armado somente com uma calculadora embora certamente da melhor qualidade 0 único móvel da sala é uma mesa verde sobre a qual se encontra diante dele o código Podemos colocar diante de seus olhos qualquer caso real ou fictício e ele poderá pois tal é seu dever estabelecer com exatidão absoluta a decisão predeterminada pelo legislador utilizando tãosó operações lógicas e uma técnica secreta que apenas ele entende Gnaeus Flavius Der Kampf um die Rechtswissenschaft 1906 7 15 Como produto extremado das idéias do direito livre costumase citar o juiz francês Magnaud que na última década do século passado foi presidente do tribunal de ChâteauThierry Por suas decisões caracterizadas por grande humanidade e escasso respeito è letra da lei granjeou o apelido de ie bon juge Cf H Leyret Les Jugements du président Magnaud 1900 172Alf Ross bj Outra diferença de estilo de interpretação é a amplitude em que se tomam em consideração elementos de juízo alheios às palavras da lei No parágrafo 24 foi examinada a diferença entre a chamada interpreta ção subjetiva e a objetivar de acordo com isto podese formular uma distinção entre o estilo subjetivo e o objetivo de interpretação da lei É inconcebível um estilo de interpretação completamente objetivo no sen tido de que se funde exclusivamente nas palavras da lei A atitude do juiz em relação à lei será sempre influenciada por uma série de fatores produtos da situação e pela conexão entre a lei e o resto do direito Jamais será possível evitar levar em consideração que o texto que tem diante de seus olhos não é uma peça de ficção nem um artigo científico mas precisamente uma lei isto é um instrumento de direção política que nasce do seio de interesses e idéias conflitantes e que aponta para certos objetivos sociais A compreensão da lei por parte do juiz depende rá sempre de sua compreensão dos motivos e propósitos da lei O que distingue um estilo subjetivo de um estilo objetivo de interpretação é realmente apenas que de acordo com o primeiro e não de acordo com o segundo a história legislativa é admitida como evidência para expor o propósito da lei e projetar luz sobre as minúcias de seu significado Essa distinção entre interpretação subjetiva e objetiva não coinci de com a distinção entre interpretação livre e limitada A primeira se refere ao modo em que a interpretação ocorre em sentido próprio a segunda ao grau de liberdade com o qual o juiz reage ante os resul tados dessa interpretação Há contudo uma conexão entre ambas Exatamente porque a interpretação objetiva rejeita certos dados de interpretação os antecedentes da lei e se atém exclusivamente ao próprio texto conduzirá freqüentemente a resultados menos preci sos que a interpretação subjetiva deixando assim maior raio de a cance para a liberdade do juiz Num certo sentido conseqüentemen te a interpretação objetiva é mais subjetiva do que a subjetiva De que modo os antecedentes da lei podem proporcionar informa ção sobre as intenções do iegisiadofí Se o legislador fosse um indiví duo particular que elaborasse suas próprias leis por si não haveria problemas Porém na realidade não há esse legislador unipessoal e as leis bem como o material explicativo delas são em grande medi da o produto do trabalho de pessoas que não integram a legislatura O único item decisivo para a aprovação de uma lei é o que o texto em sua versão final obtenha o número exigido de votos no Parlamento Direito e Justiça 173 A real vontade do legislador se encontra em última instância nos membros da Câmara que votaram o projeto de lei Entretanto como é possível que a história do projeto forneça informação acerca das atitudes dessas pessoas que talvez nem sequer o conheçam mas que como coisa rotineira se limitaram a votar a seu favor A resposta se acha talvez numa convenção Uma vez admitida a importância dos antecedentes legislativos tal convenção servirá de base para a conclusão razoável de que a passividade dos membros que votaram pode ser considerada como expressão da aprovação das opi niões explicativas da lei formuladas no curso do processo de sanção da lei Isto porque de acordo precisamente com essa convenção os mem bros da legislatura têm um motivo para se familiarizarem com o que ocorre durante esse processo e se não se opõem ao expresso no curso do processo tal atitude será interpretada como aprovação Podese também dizer que o que se submete à votação não é unicamente o texto mas o texto à luz das notas explicativas que o acompanham e de outras partes dos antecedentes da lei Em conformidade com esses pontos de vista diversas circunstân cias influem no peso que se concede às diversas partes dos antece dentes legislativos A importância das notas do projeto depende da medida em que este foi modificado durante sua passagem pelo Parla mento As notas não são reescritas em caso de modificação do proje to Quanto mais meticulosamente tenha sido preparado o projeto particularmente se preparado por uma comissão de especialistas maior é o peso atribuído às notas que o acompanham Dada a impor tância do trabalho da comissão para a redação de um projeto de lei se confere em geral maior peso às manifestações contidas num re latório da comissão do que aos pronunciamentos da Câmara Não se pode negar que a interpretação subjetiva se traduz em incerteza Dificulta aos cidadãos saber como devem se comportar Esta circunstância e a tradicional aversão dos ingleses ao direito le gislado que é considerado uma intrusão no território da common iaW explicam porque a teoria jurídica inglesa somente admite um uso bastante limitado da história da lei para a interpretação desta Os relatórios diários das sessões do Parlamento não são reconhecidos como evidência do propósito de uma lei e o relatório de uma Comis são Real só pode ser utilizado para mostrar em que estado de encon trava o direito antes da aprovação da lei Os juizes ingleses portanto 174 Alf Ross têm que formar opinião a respeito dos propósitos da lei unicamente com base na própria lei16 Na Europa continental e nos Estados Unidos é usual reconhecer os antecedentes da lei como dados de interpretação Está claro que isto não significa que a história da lei seja obrigatória para o juiz constitui apenas na interpretação em sentido próprio um elemento entre outros que pode ser contrabalançado por valorações e considerações em sentido contrário Quanto mais livre for a interpreta ção mais facilmente poderá suceder que o juiz chegue a desconsiderar as claras manifestações que aparecem nos antecedentes legislativos Estes são primariamente importantes para a escolha entre alternati vas quando o juiz não tem uma preferência particular Os antecedentes legislativos tornamse menos importantes à me dida que a lei envelhece A interpretação subjetiva da lei assume então o caráter de interpretação histórica da lei Apesar de certas idéias dogmáticas referentes à vontade do legislador é praticamente inevitável que o juiz resista ao poder dos mortos se as condições da vida presente favorecerem uma interpretação animada por um novo espírito17 Isto tem maior relevância para a interpretação das leis constitucionais que amiúde permanecem estáticas enquanto as con dições da vida política permanecem evoluindo Em tais circunstâncias pode ocorrer uma ampla Verfassungswandunçf8 ou metamorfose da Constituição sem que se opere nenhuma mudança do seu texto í 29 OS FATORES PRAGMÁTICOS NA INTERPRETAÇÃO Nos parágrafos 24 e 27 salientouse que toda interpretação tem seu ponto de partida na expressão como um todo em combinação com o contexto e a situação nos quais aquela ocorre É pois errôneo crer 16 Ver por exemplo G W Paton Jurisprudence 1946 191 W Friedmann Legal Theory 12 ed 1949 282 C K Allen Law in the Making 4 ed 1946 404 e segs 17 BallotBeaupré presidente da Courde Cassation por ocasião do centenário do Code Civil em 1905 expressou veementemente esse ponto de vista nas seguintes palavras tantas vezes citadas 10 juiz não deve se deixar levar por uma busca obstinada do que era há cem anos a idéia dos autores do Código deve perguntarse qual seria essa idéia se eles tivessem que redigir atualmente o mesmo artigo deve compreender que levando em conta todas a l mudanças ocorridas durante um século na moral nas instituições e nas condições econômicas e sociais da França a justiça e a razão exigem uma adaptação liberal do texto às realidades e ès necessidades da vida moderna 18 Georg Jellinek Verfassungsànderung und Verfassungswandlung 1906 Direito e Justiça 175 que o ponto de partida são as palavras individuais consideradas em seu significado lingüístico natural Este significado lingüístico é ampla mente aplicável porém tão logo uma palavra ocorre num contexto seu campo de referência fica restrito Por exemplo a palavra casa de um ponto de vista puramente lingüístico o que não pode abarcar Entretanto se aparecer numa lei da habitação a maioria dessas possi bilidades ficarão automaticamente excluídas parágrafo 27 Sugeriuse também que a função determinativa de significado do contexto consiste no fato de que o contexto oferece uma base para conclusões acerca do que o autor razoavelmente pode ter querido dizer Especificamente ao interpretar as leis razoável significa o que é na prática razoável A interpretação se baseia aqui na suposição de que o legislador quis sancionar disposições que em seus efeitos práticos se harmonizassem com as exigências valorações ou atitu des que presumivelmente gravitavam em torno dele Os fatores pragmáticos na administração da justiça são considera ções baseadas numa valoração da razoabilidade prática do resultado apreciado em relação a certas valorações fundamentais pressupostas Os fatores pragmáticos são colocados aqui em contraste com os fatores puramente lingüísticos Sua influência se faz sentir num grau muito superior ao que geralmente se admite Como regra o zero na escala de medida da interpretação pragmática se coloca no nível do sentido lingüístico natural em consonância com o significado usual das pala ssTodavia como afirmamos há pouco parágrafos 24 e 25 esse próprio padrão está na realidade colorido ainda que de forma mais ou menos inconsciente pela razoabilidade prática do resultado Por exem plo se uma regra constitucional estabelece que cada Câmara designará quinze membros para formar uma comissão fica claro que isso significa quinze membros da Câmara pertinente e não por exemplo quinze membros de um clube desportivo Isto é tão óbvio que temos que fazer um esforço para perceber que seria possível tomar a regra num sentido distinto desse sentido óbvio Entretanto é verdadeiro que neste e em inúmeros casos similares a interpretação se acha codeterminada por considerações pragmáticas sob forma de senso comum Conseqüentemente é imperioso que afirmemos claramente que a interpretação não tem ponto de partida lingüístico independente mas que desde o início é determinada por considerações pragmáticas sob a forma do senso comum 176 Alf Ross Na seqüência contudo deixaremos de lado os fatores pragmáti cos implícitos no simples senso comum e nos ocuparemos unicamen te dos fatores pragmáticos superiores que assomam como delibera ções a respeito das conseqüências que uma certa interpretação acar retará estimadas e mutuamente ponderadas à luz de valores funda mentais Este tipo de raciocínio é o que estamos habituados a chamar de argumentos baseados em considerações práticas razão No que toca a isto não há diferença fundamental entre a argumentação po líticojurídica de iege ferenda e de sententia ferenda A diferença con siste exclusivamente nos limites estabelecidos pelas palavras da lei à liberdade de ação na administração de justiça Seria impraticável enumerar ou classificar as possíveis valorações na interpretação pragmática A interpretação pragmática pode consi derar não só os efeitos sociais previsíveis como também a acuidade técnica da interpretação e sua concordância com o sistema jurídico e as idéias culturais que servem de base a esse sistema Destacamos neste ensejo unicamente o ponto de vista negativo a saber que a interpretação pragmática não pode ser identificada com a interpreta ção do ponto de vista do propósito ou linha de orientação de uma lei e que a expressão corrente interpretação teleológica é portanto de masiado restrita Primeira ainda que o propósito de uma atividade possa ser esta belecido de forma inequívoca não proporciona a única orientação para essa atividade visto jamais ocorrer que uma pessoa persiga um só propósito com exclusão de todas as considerações restantes Por exemplo se o propósito ao construir uma ponte é criar melhores meios de comunicação entre duas regiões de um país este propósito requer que a ponte seja o mais útil possível Porém esta exigência tem que ser contrabalançada por considerações tais como custo pos sível interferência com a navegação razões estéticas exigências mi litares e políticas interesses locais e muitas outras O propósito indica o efeito diretamente almejado É contudo também necessário levar em conta os diversos efeitos incidentais em outras direções Coisa idêntica ocorre com a atividade que consiste em legislar e executar a lei Aqui tampouco é possível conservar o olhar rigorosamente fixo na ratio isolada da lei individual sendo mister adotar abordagens valorativas mais amplas Direito e Justiça 177 Segunda é impossível com freqüência estabelecer sem ambi güidade o propósito de uma lei Sobre uma base subjetiva talvez seja possível obter informações a respeito daquilo que o legislador se propôs realizar19 Todavia se a história legislativa se mantém silente a esse respeito ou se princípios objetivos de interpretação são seguidos como poderseia obter semelhante informação Quais dos efeitos calculáveis serão eleitos como o propósito da lei Em tais condições o propósito da iei é em maior ou menor medida uma construção arbitrária Finalmente é freqüente ser impossível atribuir algum propósito a uma lei Há um propósito evidente sem dúvida naquelas medidas mediante as quais o legislador de nossos dias intervém de forma técnica e administrativa na vida da comunidade leis econômicas leis reguladoras do comércio e da indústria medidas de justiça social leis relativas à construção civil à saúde etc Por outro lado parece im possível perceber algum propósito nas normas concernentes a nos sas instituições legais centrais as quais estão profundamente arrai gadas na tradição cultural Por exemplo qual o propósito de nossas leis relativas ao casamento divórcio propriedade e herança Qualquer coi sa que se possa dizer a respeito disso é trivial ou padece de obviedade Por exemplo que o propósito das regras do divórcio é habilitar as pes soas a ter um razoável acesso ao divórcio O fato é que as instituições legais fundamentalmente existem como postulados culturais a título próprio e não porque servem a algum propósito social Em resumo a interpretação pragmática é a integração de uma multiplicidade de valorações e o propósito da lei indica somente uma consideração única dentro dessa multiplicidade Se apesar disso se prefere usar a expressão interpretação teleológica em lugar de inter pretação pragmática é mister enfatizar que tetos não designa o pro pósito isolado da lei individual mas parspro toto se refere a todas as considerações admissíveis De acordo com o resultado da interpretação comparado com os significados lingüísticos naturais úo texto a interpretação pragmática pode ser especificadora restritiva ou extensiva 19 Às vezes o próprio texto legal contém tal informação Alf Ross está escrevendo estas linhas no início da década de 50 do séc XX W T 178Alf Ross a A interpretação especificadora tem lugar quando as considera ções pragmáticas são decisivas para a eleição entre várias interpreta ções todas elas possíveis e razoáveis dentro do significado lingüístico naturai do texto A eleição pode referirse a dúvidas interpretativas de natureza sintática lógica ou semântica as últimas podem consis tir em ambigüidade ou em imprecisão O escritor norueguês Per Augdahl cita um curioso exemplo de uma ousada interpretação pragmática especificadora Durante a guerra entre a Noruega e a Inglaterra uma ordem de 1807 declarou que entre outras coisas as sease t0mmereram contrabando de guerra coisas que podem ser apreendidas como presas T0mmer é uma palavra ambígua Pode significar madeira ou rédeas Um navio neutro transportando uma carga de vigas mastros botalós etc que nave gava rumo a Inglaterra foi capturado por um corsário norueguês levado a Kristiansand e submetido ao tribunal de presas local Era essa carga uma presa De acordo com o contexto da ordem ficava inegavelmente claro que o sentido que se quis exprimir era o de rédea e o tribunal de presas em conformidade com isto liberou o navio Entretanto a Suprema Corte do Almirantado ao conhecer da apelação declarou que o navio era uma presa Tratavase de uma guerra naval e a Noruega nada tinha a temer da cavalaria inglesa Mas mastros e botalós eram indispensáveis à frota britânica Levan do em conta estes antecedentes não seria possível supor que a pala vra t0mmerse referisse a rédeas b Falase de interpretação restritiva quando as considerações prag máticas excluem a aplicação de uma regra que segundo o sentido lingüístico natural seria aplicável Podese aqui distinguir duas cate gorias subordinadas I ak interpretação restritiva de propósito ocorre quando a aplica ção da regra é supérflua para a consecução do propósito da lei Por exemplo de acordo com a Constituição dinamarquesa toda pessoa que é presa deve ser levada à presença do juiz dentro de vinte e quatro horas Quando se supõe que o propósito dessa disposição é proporcionar aos cidadãos segurança contra restrições à liberdade que excedam a um período bastante curto será desnecessário apre sentar o prisioneiro aos tribunais quando a polícia estiver disposta a pôlo em liberdade antes de terem transcorrido vinte e quatro horas A disposição é pois interpretada restritivamente Direito e Justiça 179 2 a A interpretação restritiva de exceção é motivada por conside rações contrárias apesar do fato de que o caso em si mesmo esteja compreendido pelo propósito da disposição Se as considerações con trárias encontraram expressão em outras regras de direito sobrepos tas essa interpretação se confundirá com a que ocorre nos casos de sobreposição de regras parágrafo 26 É difícil dar exemplos claros desse tipo de interpretação pois nor malmente os tribunais não se mostram dispostos a admitir aberta mente que estão restringindo a esfera de atuação da lei Preferem dizer ao contrário que não é possível supor que o propósito da eou a intenção do legislador é que ela se aplique a um caso como o que têm de decidir Tal como observamos há pouco essas expressões teleológicas são utilizadas para encobrir considerações pragmáticas do tipo mais reservado O juiz atribui cortesmente à vontade real ou hipotética do legislador tudo aquilo que ele julga correto c Falase de interpretação extensiva interpretação por analogia quando as considerações pragmáticas se traduzem na aplicação da regra a situações que contempladas à luz do sentido lingüístico natu ral se encontram claramente fora de seu campo de referência À primeira vista poderíamos nos achar inclinados a supor que a interpretação extensiva é análoga à interpretação restritiva Porém um exame mais detido nos demonstra que as coisas não são assim Considerandose o propósito amiúde afigurase bastante claro que em certos casos para realizálo não é necessária determinada reação jurídica e que portanto uma interpretação restritiva é a indicada Por outro lado raramente será necessária uma interpretação extensiva para fazer com que uma regra de direito atinja seu propósito pressuposto Nesta situação é preciso contemplar a possibilidade de que a restrição tenha sido motivada intencionalmente por considerações contrárias Sustentar que essas considerações contrárias não prevalecem e que portanto a regra deve ser extensiva requer uma investigação mais minuciosa e denota uma valoração muito mais radical da regra jurídica Também a interpretação restritiva de exceção freqüentemente aparece como algo óbvio o que não ocorre na interpretação extensiva O problema subjacente à interpretação extensiva interpretação por analogia pode ser descrito da maneira que se segue Se segundo seu sentido lingüístico natural uma regra se aplica à esfera A sua extensão à esfera B pressupõe 180 Alf Ross 1 Que atua uma valoração jurídica em favor da aplicação da regra à esfera B Essa valoração pode fundarse em particular na concep ção de que a regra é uma formulação parcial uma revelação incom pleta e esporádica de um ponto de vista mais geral 2 Que não há diferenças entre A e B que possam justificar o tratamento distinto dos dois casos Se por exemplo uma lei antiga utiliza palavras tais como ele e homem podese sustentar que no direito atual já não subsiste a diferenciação jurídica entre homens e mulheres e que a lei portanto deve estenderse por analogia às mulheres Dizse habitualmente que só é possível extrair uma analogia de A para B se B não estiver já compreendido por uma lei Todavia esse critério não é acatado na prática e não parece estar justificado É preciso pressupor que a relação entre a regra analógica e uma regra legislativa existente que se refere ao mesmo caso será decidida como outros casos de conflito de normas Nada impedirá por exem plo a extensão por analogia de uma regra de exceção mesmo o caso estando compreendido pela regra geral anterior d Não há outras variantes possíveis além das mencionadas em a b e c Uma interpretação comparada ao sentido natural é especificadora restritiva ou extensiva O tipo de interpretação conhe cido como conclusão a contrario não é uma nova variedade de inter pretação pragmática superior mas simplesmente uma parte do senti do natural ou uma rejeição da extensão por analogia Podese falar em conclusão a contrario espúria quando um signifi cado conforme o uso lingüístico costumeiro é expresso indiretamen te mas sem ambigüidade Se dizemos dez candidatos comparece ram para o exame e um deles foi aprovado isto claramente significa que os outros nove foram reprovados Seria fantasioso afirmar que o enunciado só exprime que um foi aprovado e que portanto não ex clui a possibilidade de que talvez outros também tenha obtido apro vação Na linguagem jurídica encontramos com freqüência uma for ma similar de expressão Quando por exemplo dispõese que uma pessoa adquire a maioridade ao cumprir dezoito anos isto significa sem dar margem a dúvidas que até então era menor de idade Neste caso e em casos similares a conclusão ao contrário é simplesmente parte da interpretação lingüística geral Direito e Justiça 181 Contudo uma conclusão a contrario real isto é que transcende uma interpretação lingüística geral não é uma conclusão em sentido autêntico Significa apenas que o conteúdo de uma regra jurídica é aplicável unicamente com certa limitação excluindo de tal modo a interpretação extensiva por analogia relativamente a essa limitação Uns poucos exemplos deixarão isto mais claro Suponhamos que uma lei diz que uma promessa ilegitimamente obtida por meio de força não é obrigatória para a pessoa que foi coagida a formulála se o próprio beneficiário da promessa exerceu a violência ou sabia ou deve ter sabido que foi arrancada por um terceiro naquelas circunstâncias Cos tumase dizer que disso se pode inferir a contrario que a promessa é obrigatória se o beneficiário atuou de boa fé Ora posto que a referida lei se apresenta como uma exceção à regra geral principal concernente à força obrigatória das promessas a inferência simplesmente significa que entendemos a exceção com a limitação dada de que o beneficiário tenha atuado de má fé com o que rejeitamos a possibilidade de esten der a regra por analogia a casos de boa fé Do mesmo modo se uma lei regulamenta os casos em que o matrimônio pode ser dissolvido presumivelmente se concluirá a contrario que um casamento não pode ser dissolvido em outros casos Entretanto isto apenas significa a rejei ção da extensão por analogia dos casos de dissolução Em conexão com o critério geral de que o casamento não pode ser dissolvido salvo quando a lei o autorize essa rejeição conduz a tal resultado Nos documentos legislativos sistemáticos a conclusão a contrario se baseia na suposição de que a lei foi concebida com tanto escrúpulo que suas normas relativas a exceções condições e assim por diante podem ser consideradas exaustivas Há contudo casos nos quais a mesma lei ou suas notas explicativas indicam o contrário Podese dizer que podemos optar diante do texto de uma lei entre deduzir uma conclusão por analogia ou realizar uma conclusão a con trario Do que foi dito ficará claro que na realidade optamos entre fazer ou não fazer uma interpretação extensiva por analogia 30 OS FATORES PRAGMÁTICOS E A TÉCNICA DE ARGUMENTAÇÃO O papel criador desempenhado pelo juiz na administração da justiça ao definir com mais precisão ou retificar a diretiva da lei manifestase 182 Alf Ross raramente Comumente o juiz não admite que sua interpretação te nha esse caráter construtivo mas por meio de uma técnica de argu mentação procura fazer ver que chegou a sua decisão objetivamente e que esta é abarcada pelo significado da iei ou pela intenção do legislador Cuida de preservar ante seus próprios olhos ou pelo me nos ante os olhos dos demais a imagem examinada no parágrafo 28 ou seja que a administração da justiça é somente determinada pelo motivo da obediência ao direito em combinação com uma percepção racional do significado da lei ou da vontade do legislador Uma vez os fatores de motivação combinados as palavras da lei as considerações pragmáticas a avaliação dos fatos tenham produ zido seu efeito na mente do juiz e o influenciado a favor de uma determinada decisão uma fachada de justificação é construída amiú de discordante daquilo que na realidade o fez se decidir da maneira que decidiu20 Se o juiz se limitar a aplicar a lei aos claros casos referenciais se manterá preso às palavras literais da lei atitude que possivelmente se liga à rejeição de uma concebível restrição dela para o que aplica por analogia outras normas jurídicas Por outro lado se o juiz desejar tomar uma decisão que se situa na zona duvidosa da regra interpre tação especificadora ou que inclusive é contrária ao signifícadú lingüístico natural interpretação restritiva ou por extensão buscará apoio para o resultado desejado onde quer que possa encontrálo Se o relatório da comissão dos redatores da lei puder lhe oferecer tal apoio ele o citará se não puder oferecêlo ele o ignorará Quando há sobreposição de regras o juiz goza de grande liberdade pois lhe é oferecida uma larga possibilidade para justificar o resultado deseja do Acresçase a isso que a interpretação restritiva pode ser obtida recorrendose ao propósito provável da lei As interpretações extensi vas apóiamse no argumento de que as condições para o uso da 20 As observações seguintes feitas pelo juiz Bernard Botein TrialJudge 1952 52 ilustram a função do juiz embora ainda preso à ficção de que o juiz apenas molda o direito 0 juiz começa por investigar os fatos em seguida investiga o direito e por último sonda sua própria alma Se todas as três investigações apontarem na mesma direção sua tarefa será fácil mas se divergirem ele não poderá ir muito longe As leis não são feitas para serem violadas pelos juizes mas em mãos sensíveis apresentam uma certa tolerância elástica que lhes permite ceder para dar conta de uma situação especial A lei ricocheteará quando demasiadamente pressionada por um juiz insensível que a manuseie com violência Pode ser deformada por um juiz impulsivo 0 juiz experiente moldará a lei no âmbito da tolerância desta de modo a ajustála aos contornos do caso particular 0 juiz preciso e meticuloso não verá esses contornos devido à inflexível severidade de seu prumo Direito e Justiça 183 analogia estão reunidas Se nenhuma outra possibilidade ocorrer ao juiz este poderá recorrer a meros postulados relativos à suposta in tenção do legislador presumindo simplesmente que é forçoso ter ele desejado o que é desejável para o próprio juiz O segredo dessa técnica de argumentação consiste em não haver critério que indique qual regra de interpretação deverá ser emprega da Quando são decisivas as manifestações feitas durante o processo de sanção da lei Quando não há considerações de suficiente peso para desconsiderálas Quando usar a analogia quando a conclusão a contrario Numa certa medida a escolha pode ser motivada pelos dados da interpretação Tal como se afirmou anteriormente o caráter sistemático de uma lei pode ser uma forte razão em muitos casos incontroversa para rejeitar a extensão por analogia Independente mente disto não há critério externo que indique quando devemos recorrer à inferência por analogia e quando à inferência a contrario É comum ter como pacífico que a proibição de levar cães em bondes tem que ser interpretada por analogia no sentido de que inclui tam bém os macacos ou ursos ou outros animais que provocam os mes mos inconvenientes Entretanto segundo as circunstâncias seria igual mente possível tirar uma conclusão a contrario por exemplo se a proibição fosse motivada pelo perigo de certas doenças caninas se difundirem Suponhamos que haja uma regra que proíbe andar em traje de banho e que nos perguntemos com base nessa regra se é lícito ou não andar nu Devemos tirar uma conclusão a contrario ou por analogia A decisão dependerá sem dúvida da proibição ter sido implantada num acampamento de nudismo ou num recatado hotel Essas técnicas de argumentação são recursos integrantes do equi pamento de todo jurista experimentado Ele tem que saber como justificar tecnicamente mediante argumentos interpretativos a so lução jurídica que considera justa ou desejável Seria porém um erro aceitar os argumentos técnicos como se fossem as razões verda deiras Estas devem ser buscadas na consciência jurídica do juiz ou nos interesses defendidos pelo advogado A função dos métodos de interpretação é estabelecer limites à liberdade do juiz na administra ção da justiça os quais determinam a área de soluções justificáveis As máximas de interpretação variam de um país para outro Em todo lugar contudo exibem características idênticas fundamental mente são conjuntos não sistemáticos de frases atraentes via de 184Alf Ross regra cunhadas sob forma de brocardos e de significado impreciso passíveis de ser manejadas de tal maneira que conduzam a resulta dos contraditórios Como não existem critérios objetivos que indi quem quando se deve aplicar esta ou aquela máxima elas proporcio nam um largo espectro no qual o juiz possa atingir um resultado julgado por ele desejável Não é para surpreender portanto que Allen ao escrever sobre o direito inglês conclua que é certo que toda nossa doutrina da interpretação da lei mostra inconsis tências que sugerem haverem algum lado uma debilidade radical A maior inconsistência é aquela que existe entre a interpretação am piae a restrita A antítese é de definição impossível tudo que se pode dizer é que às vezes um tribunal conduzirá a interpretação aos seus limites mais extremos para efetivar a políticade uma lei e que outras vezes se prosternará perante à letra da lei quando segundo a opinião corrente pareceria muito fácii e razoável deixarse guiar pelo espírito21 Não me parece contudo que essas contradições sugiram uma debilidade Indicam a verdade fundamental de que as máximas de interpretação não são regras efetivas mas implementos de uma técr nica que dentro de certos limites habilita o juiz a atingir a conclu são que julga desejável nas circunstâncias e ao mesmo tempo pref serva a ficção de que só está obedecendo a lei e os princípios objeti vos de interpretação 0 escritor norteamericano Max Radin expressa o mesmo pensamento com muita clareza Diznos que as máximas não são realmente regras no sentido de nos obrigarem a atingir um resultado e não outros na aplicação de uma lei mas constituem um vocabulário e um método de apresentação para casos nos quais por razões totalmente distintas dessas regras e de suas exceções se alcança um resultado de certo tipo no esforço de saber se um ato é proibido ou permitido segundo a lei22 É possível que seja um problema interessante de psicologia social determinar o porque se deseja ocultar o que realmente ocorre na administração da justiça Aqui devemos nos contentar em asseverar 21 C K Allen Law in the Making 4 ed 1946 428 e 433 22 Califórnia Law Review t 33 219 Direito e Justiça 185 que parece um fenômeno universal simular que a administração da justiça constitui uma simples dedução lógica de regras jurídicas sem nenhuma valoração por parte do juiz Provavelmente não há razão para nos preocuparmos com relação a esse Accionalismo na administração da justiça quer o próprio juiz creia ou não que a fachada de argumentação expressa o que real mente motivou sua decisão E sem uma profunda investigação de psicologia social não ousaríamos sequer negar que é provável que essa ficção tenha inclusive efeitos socialmente benéficos 31 DISCUSSÃO Tal qual a doutrina tradicional das fontes do direito a teoria tradi cional do método não está construída como uma teoria analíticodes critiva que explica como o direito é administrado particularmente interpretado mas como uma doutrina dogmáticonormativa que ex pressa como deve ser administrado interpretado Esses postulados dogmáticos se desenvolvem de forma dedutiva a partir de idéias pre concebidas sobre o conceito do direito a natureza do direito e o papel da administração da justiça e são formulados como afirmações sobre o objetivo ou o propósito da interpretação Desses postulados é deduzida por sua vez uma série de princípios gerais de interpreta ção ou regras de interpretação mais concretas Em geral essas cons truções carecem de valor para a compreensão do direito vigente ou para predizer decisões jurídicas futuras a menos que reflitam de forma mais ou menos casual o método que na prática empregam os tribunais seu relativo valor de verdade é limitado porque tentam unir artificialmente num propósito único as diversas considerações que influem na interpretação Há naturalmente uma relação estreita entre a doutrina das fon tes do direito e a teoria do método A doutrina positivista das fontes do direito que deseja derivar a validade de todo o direito de uma vontade soberana suprema poderosa parágrafo 22 encontra seu Paralelo numa teoria do método que considera que a teoria da inter pretação consiste em estabelecer exclusivamente por métodos lógi cos e sem fazer referência a propósitos e valorações alheios ao texto legal a verdadeira vontade do legislador imanente em suas sanções 186Alf Ross Desenvolvese um bom número de métodos lógicos de inferência com cuja ajuda se acredita possível deduzir o significado da legislação além do que está expresso de forma direta Esses métodos de inferência costumam ser desenvolvidos mediante a chamada cons trução de conceitos Pensase que os efeitos jurídicos possíveis são determinados por um número limitado de dados conceitos pressu postos pelo ordenamento jurídico A decisão de um caso jurídico é obtida por meio de sua classificação em um dos conceitos reconheci dos e a solução é logo deduzida de acordo com os efeitos jurídicos contidos por aquele conceito A doutrina alemã e francesa do século XIX em particular constituíram exemplos representativos de uma jurisprudência conceituai desse tipo Contrastando com isso há as teorias do método da escola do direito livre correspondentes às teorias jurídicas idealistas segundo as quais a validade do direito é oriunda de uma idéia princípio ou propósito inerentes ao direito a idéia de justiça as atitudes éticojurídicas pre dominantes do povo o princípio de solidariedade o princípio de justiça social etc A lei de acordo com isso é considerada como uma tentati va mais ou menos frutífera de realizar essa idéia e a tarefa da interpre tação legislativa se define como um pensar plenamente a lei em har monia com o princípio imanente ao direito As teorias interpretativas dó movimento do direito livre segundo os pressupostos que sejam adotados relativamente à natureza do direito podem ostentar a marca jusnaturalista ou apresentar um caráter sociológicohistóricopsicológi co Nos tempos modernos é corrente o referirse particularmente a considerações de propósito social e à ponderação dos interesses como diretrizes para a interpretação livre23 As teorias do movimento do direito livre se acham mais próximas da verdade do que as teorias positivistas Por trás da aparência dogmáticonormativa há uma compreensão correta do fato de que ai administração da justiça não se reduz a uma derivação lógica a partir de normas positivas As teorias positivistas ocultam a atividade políti cojurídica do juiz Da mesma maneira que o jogador de xadrez é motivado não só pelas normas do xadrez como também pelo propósi to do jogo e pelo conhecimento de sua teoria também o juiz motivado por exigências sociais e por considerações sociológico 23 Ver adicionalmente Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 caps III 49 e VII com bibliografia detalhada Direito e Justiça 187 jurídicas O papel desempenhado pelas considerações livres pode variar com o estilo de interpretação porém jamais pode ser excluído por completo A lógica imanente que as teorias positivistas frisam é uma ilusão A razão jurídica imanente ou a própria regra de direito não pode ser separada do propósito prático que se situa fora dela nem as conseqüências formais podem ser separadas de um ajuste valorativo das regras em relação com os valores pressupostos No âmbito da doutrina da interpretação em sentido estrito fazse tradicionalmente uma distinção entre as teorias chamadas subjetiva e objetiva De acordo com a primeira o propósito da interpretação é descobrir a vontade do legislador De acordo com a segunda a lei é considerada como uma manifestação objetiva da mente que uma vez engendrada vive uma vida própria e deve ser compreendida unica mente com base naquilo que dela emerja A comunicação externa as palavras e não a vontade que está por trás dela constitui o juridica mente obrigatório e por conseguinte o objeto de toda interpretação Tal como vimos no parágrafo 24 essa distinção é falsa Referese na realidade aos elementos de interpretação que são levados em con ta A teoria subjetiva e a teoria objetiva distinguemse pela importância atribuída à história da sanção da lei Esse problema não pode ser resol vido com base em idéias metafísicas concernentes a se a força obriga tória do direito emana da vontade ou da palavra Seria possível anali sar as vantagens e as desvantagens de um e outro ordenamento con tudo no que diz respeito a um sistema jurídico vigente é questão fatual saber se os tribunais seguem tradicionalmente um estilo de in terpretação subjetiva ou objetiva parágrafo 29 Wake Up Capítulo V As Modalidades Jurídicas 32 TERMINOLOGIA DA LINGUAGEM JURÍDICA No parágrafo 7 é explicado que as normas jurídicas têm que ser interpretadas como diretivas aos juizes Todavia é raro uma lei estar lingüisticamente estruturada como os códigos penais dessa manei ra De ordinário a lei se dirige a todos os cidadãos fornecendolhes instruções relativamente a sua conduta mútua de tal modo que a diretiva ao juiz emerge da lei de forma indireta As diretivas aos cidadãos tampouco têm comumente a forma de instruções claras e diretas acerca de seu comportamento Uma lei típica não é expressa em frases diretivas correntes coloquiais isto é em palavras que expressam de modo direto uma chamada à ação uma ordem um desejo um pedido mas sim descreve um meca nismo segundo o qual diversos acontecimentos fatos ou ações pro duzem efeitos invisíveis denominados dever faculdade daim po tência validade etc As normas leis falam com freqüência como se por trás do mundo do tempo e do espaço existisse uma outra realidade um mundo de reiações jurídicas determinadas por forças desencadeadas por fatos criadores retificadores e dissovedores Falam por exemplo de certos fatos que obrigam uma pessoa de outros que têm o efeito de iiberaçãa podem dizer que certos fatos criam um direito a favor de uma pessoa direito que pode ser alterado ou extinto por outros fatos e que pode prevalecer sobre o direito de outras pessoas ou ceder ante ele Por exemplo as normas falam de 190Alf Ross uma compra e venda como se o acordo produzisse uma relação jurí dica entre as partes consistente num conjunto de faculdadese deve res para cada uma delas Estes efeitos contudo se desenvolvem dinamicamente em virtude de outros fatos Por exemplo se o vende dor não faz a entrega oportunamente o comprador se torna capaz de cancelar o contrato e reivindicar danos isto é certas ações suas produzem agora o efeito de que seu dever de pagar fica extinto enquanto o dever de entregar do vendedor se transforma num dever de pagar uma certa soma de dinheiro De modo similar muitos outros eventos posteriores impossibilidade de pagar cumprimento falência e outros podem sobrevir e criar efeitos em virtude dos quais a rela ção jurídica entre as partes se altera Se a relação jurídica já não atingiu o seu fim poderá em última instância ser removida mediani te sentença e execução e assim desaparecer do mundo O direito legislado parece estar constituído pois de enunciados teó ricos referentes a um mundo invisível de qualidades peculiares rela ções jurídicas que são criadas e se desenvolvem como efeitos de uma força criadora jurídica particular que certos fatos possuem E contudo não podemos claro está levar tal descrição a sério É absurdo dizerf que quando faço uma compra surgem alguns efeitos invisíveis Qual quer que tenha sido a razão pela qual essa terminologia foi posta enr uso fica claro que o significado e função real que correspondem acÈ direito legislado não são de cunho teórico mas prático Os enunciado aparentemente teóricos da lei foram na realidade formulados com a propósito de servir como diretivas para influir na conduta dos seresl humanos dos cidadãos e juizes igualmente parágrafo 2 I Por outro lado o modo peculiar de expressão que acabamos dá examinar é um fato e nos obriga a investigar as palavras e frase empregadas pelo direito com a função de diretivas De maneira espejj cífica teremos que desemaranhar as relações mútuas entre as diver sas frases e verificar se foi desenvolvida uma terminologia em algu ma medida constante e livre de ambigüidades Na edição original dinamarquesa deste livro investiguei a termino logia jurídica dinamarquesa e mostrei que as diversas expressões diretivas correntes eram ambíguas sem exceção Não me sinto capa de executar um empreendimento análogo no campo da terminologia jurídica inglesa mas creio que bastará um superficial olhar às lei para justificar a afirmação de que o mesmo ocorre com expressõef Direito e Justiça 191 diretivas correntes tais como itisthedutyofé o dever de musttem que is bound to está obrigado a is iiabie to é responsável por shall deverá may pode has a right to tem direito a is entitíed to está habilitado a is authorised to está autorizado a etc Outro defeito fundamental da terminologia é sua carga ideológica o que fica conspícuo na maneira como se aplica o conceito de dever Quando uma lei estabelece que A tem um certo dever isto normalmen te quer dizer que A pode ser condenado a uma pena ou a realizar um certo ato ou a pagar indenização por danos e prejuízos Entretanto não é possível dizer ao contrário que as reações jurídicas desse tipo pressupõem a transgressão de um dever A responsabilidade por danos e prejuízos não provém necessariamente do fato de A ter cometido o que a lei descreve como transgressão a um dever Por exemplo se A faz uma promessa de cumprimento impossível será condenado se gundo as circunstâncias a pagar indenização por danos e prejuízos embora a sua ignorância da impossibilidade seja escusável mas nin guém afirmaria que tinha o dever de cumprir o prometido Algo seme lhante ocorre no caso de responsabilidade estrita ou objetiva por con duta perigosa A despeito de haver responsabilidade por danos não há transgressão a um dever a conduta perigosa é considerada lícita A relação entre o dever e a reação jurídica é o resultado da função ideológica do conceito de dever Este conceito só se aplica quando a reação condicionada é experimentada com reprovação social A rea ção não é experimentada assim nos casos mencionados e por isso não se pressupõe uma transgressão ao dever como fato condicionante dela Essa função ideológica tem indubitavelmente seu valor na vida jurídica da comunidade A idéia de dever atua como um motivo para o comportamento lícito não por temor das sanções mas em virtude de uma atitude desinteressada de respeito ao direito Essa função ideológica geradora de motivos concede ao direito sua sacraiidade ou validade e sem isso não é possível criar uma ordem social pará grafo 11 Tal dependência ideológica por outro lado faz com que o conceito de dever não seja muito adequado como instrumento da ciência do direito Diferentemente da legislação a doutrina não se Propõe a exercer uma influência ideológica sobre os cidadãos mas simplesmente descrever as reações jurídicas que são esperadas em dadas circunstâncias e o conceito de dever não se ajusta ao cumpri mento dessa tarefa Por um lado a afirmação de que A tem o dever 192 Alf Ross de se comportar de certa maneira não indica sem ambigüidade quai reações jurídicas podem ser esperadas se A transgredir ao seu dever por outro pode ocorrer uma reação de tipo similar àquela tipicamen te vinculada à violação de um dever sem que se dê tal violação Devemos concluir que seria desejável que as exposições doutriná rias do direito vigente eliminassem o conceito de dever Em lugar d operar com este termo inadequado seria mais conveniente se ater simplesmente à conexão jurídicofuncional entre os fatoj condiciona ntes e as reações condicionadas Seria porém muito difícil levar a efeito essa idéia O mundo dos conceitos tradicionais e a dificuldade de romper com pontos de vista ideológicos se opõem a ela 33 UMA TERMINOLOGIA MELHORADA Visto que a linguagem do direito não pode prescindir de uma teHj minologia de deveres faculdades etc e visto que tal terminologia não pode ser totalmente suprimida da ciência do direito cabeno perguntar se não seria possível melhorar seu uso Talvez o importan te não seja a terminologia em si mesma mas a consciência das diver sas relações reveladas por ela 1 Em conformidade com as linhas gerais do sistema elaborado pe jurista norteamericano Hohfeld1 sugiro aqui uma terminologia cuj conexão interna pode ser simbolizada da maneira seguinte Normas de Conduta 1 dever A BC faculdade BAC X X 2 liberdade ABC nãofaculdade BAC 3 faculdade A B C dever B AC X X 4 nãofaculdade A B C liberdade B A C 1 W N Hohfeld FundamentaLegaConcepts 19231 Direito e Justiça 193 Normas de Competência 5 sujeição A BC potestade BAC X X 6 imunidade A BC impotência BAC 7 potestade A BC sujeição BAC X X 8 impotência A BC imunidade BAC Neste diagrama o sinal indica que as noções que liga são correlativas leiase corresponde a ou é equivalente a A seta de duas pontas indica que as noções que liga são opostas contraditórias um termo é a negação do outro A fórmula dever A B C lêse A tem um dever em relação a B para realizar C A fórmula sujeição A B C lêse A está sujeito às disposições de Adentro da esfera de conduta C Há portanto oito modalidades dever liberdade faculdade não faculdade sujeição imunidade potestade e impotência destaque se o fato de que a expressão ambígua ter direito desapareceu As quatro primeiras e as quatro últimas são logicamente redutíveis entre si Ademais visto que a sujeição de A a B significa que a posição jurídica de A expressa em termos de dever faculdade etc é definida de acordo com as disposições de B as quatro últimas podem ser reduzidas às quatro primeiras Seguese disto conseqüentemente que as oito podem ser reduzidas a termos de dever Se definirmos esta palavra todas as demais estarão definidas O que se diz na seqüência pode concorrer para a explicação dos termos e suas relações mútuas com mais clareza 331 Dever e Faculdade O valor do sistema de modalidades depende de uma definição razoa velmente isenta de ambigüidade do termo dever O mais conveniente seria aplicar o termo dever a situações nas quais uma pessoa pode ser objeto de uma pena ou condenada a realizar certo ato ou ao paga mento de indenização por danos e prejuízos Uma definição desse tipo contudo não seria compatível com a função ideológica tradicional do termo Conseqüentemente se alimentarmos a esperança de influir sobre 194 Alf Ross o uso lingüístico teremos que restringir o emprego do termo àqueles casos em que a reação é experimentada como uma reprovação social e a sentença portanto como um estímulo para o cumprimento do dever É assim que não falaremos de dever por exemplo nos casos de escusável impossibilidade de cumprimento ou responsabilidade objetiva A palavra dever pode ser substituída por prescrição ou por proibi ção segundo as regras que se seguem Afirmar que um ato está prescrito quer dizer que há o dever de realizálo afirmar que um ato está proibido quer dizer que há o dever de não realizálo Assim dever C prescrição C dever não C proibição C do que se segue que prescrição C proibição não C proibição C prescrição não C Ao dever de A corresponde a faculdade de B B possuir uma facul dade relativamente a A quer dizer que pode acionar a maquinaria jurídica para obter uma sentença contra A ou que o fato de B mover um processo é condição necessária para a possibilidade de condena ção de A Se tivermos descrito plenamente a posição jurídica de A a condição que aponta a necessidade de um processo já estará implíci ta e conseqüentemente o enunciado correlativo referente à faculda de de B não acresce nada de novo Normalmente a pessoa que tem poder para instaurar processos será também a pessoa diretamente interessada em que A aja eim conformidade com seu dever Se A prometeu a B 500 B é a parte diretamente interessada e também a pessoa detentora do poder dej instaurar o processo Mas pode suceder que ambas as qualidades não atuem na mesma pessoa A pode por exemplo prometer a Bj que pagará 500 a C Se supormos que B e somente B pode instau rar o processo se adequará melhor ao uso corrente dizer que somen te B tem uma faculdade relativamente a A A definição formulada mais acima foi feita sobre essa base B o titular da faculdade é denominado sujeito do processo C a parte diretamente interessaj da2 sujeito do interesse 2 Podese supor que B também tem interesse que A pague porém seu interesse é indireto isto é é um interesse interesse de C que se o pague Cf Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap VII seç 2 Direito e Justiça 195 Ao dizer pois que B tem uma faculdade contra A meramente exprimimos o fato da demanda de B ser uma condição necessária para a sentença contra A Esta relação também pode ser expressa dizendo que B tem o poder de instaurar um processo contra A o que indica que por meio de um certo ato B é capaz de produzir efeitos jurídicos que deseja produzir Outro problema é se é optativo ou obrigatório para B exercer seu poder de instaurar processos Geralmente B é livre para instaurar processos ou não Sua faculdade está assim combinada com a liberdade de utilizála ou não porque o propósito do direito law derecho ao outorgar a B uma faculdade clalm facuítad é proporcionarlhe um instrumento para a tutela de seus interesses Se B não dispor desta liberdade será duvidoso que se possa falar de faculdade clalm facuítad Cabe perguntar portanto se a liberdade para instaurar processos não deve ser in cluída na definição de faculdade daim Esta questão é importante quando os processos são instaurados pelo Estado sob forma de um ato oficial como é praxe normal nos processos criminais O promotor público não é livre para atuar segundo sua vonta de estando juridicamente obrigado a exercer o poder de acordo com as diretivas estabelecidas pelo direito taW A acusação pública difere tão fundamentalmente da ação privada que prefiro reservar a palavra facul dade daim ao poder de instaurar processos combinado com a liberda de de exercer esse poder em interesse próprio Disto se conclui que aqueles deveres cuja transgressão só dá mar gem à acusação pública que busca a aplicação de uma pena são absolutos isto é não há nenhuma faculdade correspondente aos mesmos não tem faculdade a parte cujo interesse foi lesado nem tampouco o Estado 332 Liberdade e NãoFaculdade Uma conduta não proibida é chamada de permitida permissão C nãoproibição C nãodever não C Uma conduta que não é nem proibida nem prescrita é chamada de livre liberdade C nãoproibição C nãoprescrição C não dever não C nãodever C 196Alf Ross A conduta permitida e a conduta livre têm pois em comum o fato de não estarem proibidas A diferença consiste em o ato permitido poder estar prescrito éme permitido cumprir meu dever enquanto o ato livre não poder estar prescrito Se Cê livre então não Ctambém é livre Ambas as fórmulas enunciam o mesmo a saber que não há dever relativamente a Cou a não C Dizer que um ato é livre é o mesmo que dizer que se acha fora da esfera das normas jurídicas É juridicamente indiferente Nem sua realização nem sua não realização enseja reações jurídicas3 Minha liberdade de ir ao bosque de caminhar pelas ruas de fu mar um cigarro de usar uma gravata vermelha significa portanto que não sou obrigado a fazer essas coisas ou não fazêlas ou que os outros B ou aqueles diante dos quais posso invocar a liberdade não têm nenhum direito sobre mim É impossível enumerar as liberdades de que goza uma pessoa A esfera da liberdade está definida negativamente como tudo aquilo que não é objeto de regramento jurídico Certas liberdades entretanto são freqüentemente designadas com um nome porque se apresentam como exceções ou porque a 3 Das definições dadas concluise que a negação do dever AB C é rigorosamente falando a permissão AB não Cl e não como foi indicado no diagrama das modalidades liberdade A B IC já que temos dever AB C prescrição A B C cuja negação é nãoprescrição AB C nãoproibição A B Inão Cl permissão AB não C Exemplo A tem o dever de pagar 50 a B A negação disto é É permitido a A recusarse a pagar a B 50 Isto é mais restrito que dizer A é livre para pagar a B 50 Pois o último inclui o sentido É permitido a A pagar a B 50 Se apesar disso preferi dizer que a negação do dever C é a liberdade C e não a permissão Inão C isso se baseia no raciocínio de que se C não foi escolhido arbitrariamente tratandose de uma conduta que na prática pode ser conce bida como dever jurídico será necessário descartar nos fatos a possibilidade de que não C seja um dever jurídico A negação do dever AB tC significa portanto não sõ a permissão de não C a favor de A como também a permissão d jj C isto é que A tem a liberdade Cl Em conformidade com isso na prática justificase dizer que a negação do dever d A pagar 50 a B é não sõ que é permitido a A não fazêlo como também A está livre para fazêlo ou não Direito e Justiça 197 liberdade pertence apenas a um indivíduo ou porque pertence a to dos mas aparece como exceção a uma regra geral aceita O primeiro tipo pode se denominado liberdade especial ou privilégicr o outro tipo liberdade geral O dono de uma propriedade tem o privilégio de caminhar por sua terra Desfruta da liberdade de fazêlo e ao mesmo tempo tem uma faculdade de afastar os outros Segundo as normas dinamarquesas referentes à preservação dos lugares da natureza que proporcionam prazer é uma liberdade geral para as pessoas caminhar em proprie dade particular ao longo da costa Outra razão para mencionar liberdades especiais é o fato de que a Constituição garante aos cidadãos diversas liberdades como esferas protegidas diante da intervenção da legislação liberdade religiosa liberdade de imprensa etc Quando como é usual uma liberdade é comum a todos seu valor para o indivíduo pode ser problemático Minha liberdade acima de tudo significa somente que os outros não têm faculdades sobre mim isto é que não podem colocar obstáculos no meu caminho que me impeçam o fruir da liberdade Por outro lado na liberdade não está implícita nenhuma faculdade em relação aos outros de modo a me proporcionarem de fato oportunidade plena para agir como quero Gozo de liberdade para me sentar num banco do Hyde Park porém essa liberdade de nada me serve se o banco estiver ocupado Não tenho decerto a faculdade de que os outros cedam o banco a mim Se a liberdade de um é irreconciliável com a liberdade do outro have rá conflito Todavia uma certa dose de regramento desse conflito e com isso alguma proteção para aquele que ocupou pela primeira vez uma certa posição se segue como reflexo de outras faculdades que limitam os meios para deslocar outrem Se estou sentado num banco por certo não disponho da faculdade de que os outros me deixarão sentar ali entretanto tenho a faculdade de não ser atacado pelos outros o que acarreta o reflexo de que juridicamente não posso ser arrancado do banco à força No mundo dos negócios há uma ampla liberdade de atuação no mercado e de luta por clientes Ninguém goza de uma faculdade segundo a qual os outros não possam interferir com seus clientes Mas aqui também o ordenamento jurídico estabelece limites para os métodos de luta competitiva 198 Alf Ross O liberalismo é a ideologia política que requer um máximo de liber dade para o cidadão e um mínimo de regramento jurídico das questões da vida Em contraposição ao liberalismo há as ideologias totalitárias que desejam que a esfera da liberdade individual se reduza ao mínimo 333 Sujeição e Potestade A potestadeé um caso especial de poder Existe poder quando um pessoa é capaz de produzir certos efeitos jurídicos desejados Um credor tem poder para instaurar uma ação ou para impedir a prescri ção de seu crédito e os pais têm poder para permitir ou não permitir que seus filhos de certa idade contraiam matrimônio A potestade é o poder de disposição e é exercida mediante uma declaração dispositiva isto é Uma declaração que normalmente produz efeitos jurídicos que concordam com seu conteúdo parágrafos 44 e 48 Uma declaração dispositiva é uma diretiva amiúde formulada como um enunciado aparentemente teórico sobre a existência de deveres e faculdades calms facultades As leis os contratos e os testamen tos são exemplos de declarações dispositivas parágrafo 48 O limite entre a potestade e os outros casos de poder é fluido Há uma escala de transição gradual Em alguns casos a disposição con tém uma descrição detalhada das relações jurídicas criadas uma lei um contrato minucioso ou um acordo coletivo Em outros casos a disposição se limita a preencher as lacunas de uma série de efeitos jurídicos que no mais foram estabelecidos pela legislação por exem plo um contrato de venda que se limite a expressar o artigo e o preço enquanto as relações das partes são regidas quanto ao resto pelas normas padrões estabelecidas no Uniform Sales Act Em outros casos a disposição se limita a uma declaração puramente formal que não admite variações individuais e os efeitos são enunciados de for ma exaustiva pelo direito laW por exemplo quando o comprador anuncia que está cancelando o contrato É questão de preferência pessoal optar entre dizer que a notificação do cancelamento do con trato é uma declaração dispositiva que tem efeitos concordantes com seu conteúdo ou dizer que a notificação do cancelamento é um ato que enseja efeitos jurídicos determinados pelo direito law Os efei tos da notificação são padronizados e produzidos automaticamente como se pelo acionamento de um botão Direito e Justiça 199 Como regra principal os indivíduos particulares somente são com petentes detêm potestade para efetuar disposições que obrigam a si mesmos enquanto as autoridades públicas são competentes para obrigar também outras pessoas parágrafo 44 Se um particular tem poder para fazer disposições que obrigam outra pessoa esse poder estará habitualmente fundado numa disposição antecedente feita pela outra pessoa Assim uma oferta confere ao destinatário o poder de obrigar mediante sua aceitação a parte que a fez e a autorização confere ao agente o poder de obrigar o principal A potestade de uma pessoa como tal deve ser distinguida da liberdade que a pessoa tem de exercer seu poder como queira ou se está obrigada do dever de exercêlo segundo certas linhas já determinadas Um agente pode estar obrigado frente ao principal a exercer sua autoridade dentro de certos limites mesmo quando o principal não possa invocar as restrições frente a um terceiro que agiu confiando na autoridade Uma restrição à autoridade ostensiva do agente estabelecida de forma privada e desatendida por este não libera o principal de responsabilidade a menos está claro que sua existência seja conhecida pela outra parte da transação4 Con tudo o exercício do poder em violação às restrições é ilícito frente ao principal Uma regra semelhante se aplica ao poder no direito público O poder não é conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram mas para ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais pressupostos Aqui tam bém geralmente é possível distinguir entre a potestade e os deve res relativos ao exercício dessa potestade a transgressão das nor mas não acarreta invalidade mas somente responsabilidade A sujeição é o correlato da potestade Do ponto de vista lingüístico o termo é de uso inadequado porque tem uma conotação adversa mesmo supondose que compreenda também a situação correlativa de disposições favoráveis Os cidadãos estão sujeitos ao poder do legislador os herdeiros ao do testador a parte que faz uma oferta ao do destinatário o sucessor ao do antecessor tudo isso sem que seja relevante que a disposição particular obrigue a parte submetida ou crie faculdades a seu favor 4 G C Cheshire e C H S Fifoot The Law ofContract 2 ed 1949 359 200 Alf Ross 334 Imunidade e Impotência Os comentários a respeito dessas modalidades negativas são aná logos aos que expressamos a respeito de liberdade nãofaculdades Como termos negativos compreendem tudo que não está submetido ao poder jurídico em conseqüência não é possível enumerar e de signar as ímunidades específicas Toda pessoa goza de imunidade frente a qualquer outra pessoa sempre que a outra pessoa não te nha um poder em relação à primeira São reconhecidos todavia di reitos de imunidade específicos porque aparecem como exceções Por exemplo dizse que os embaixadores estrangeiros gozam de imu nidade relativamente à jurisdição dos tribunais e que os cidadãos gozam de imunidade relativamente à legislatura quando a Constitui ção limita a competência desta última 34 DISCUSSÃO Até o presente as modalidades quase não têm sido consideradas importantes como temas de estudo No geral a análise das relações jurídicasconsste simplesmente em dividilas nos conceitos correlativos de dever e direito Esta análise entretanto é insatisfatória Em primeiro lugar não foi percebido que o tema da análise é na realidade a linguagem do direito que as diferentes modalidades re presentam meros veículos lingüísticos para expressar as diretivas con tidas nas regras jurídicas Em lugar disso os deveres e direitos têm sido considerados como substâncias metafísicas criadas por certos fa tos e que por sua vez criam efeitos jurídicos Esta maneira metafísica de ver nos deveres e direitos entidades substanciais prevalece em grande medida no pensamento jurídico da Europa continental e naquele dos países de língua inglesa e tem produzido conseqüências desafortuna das no tratamento dos problemas jurídicos práticos parágrafo 37 Em segundo lugar a divisão deverdireito é demasiadamente super ficial O termo direito right derecho em sentido subjetivo abrange conceitos tão heterogêneos como faculdade facultad caim liberdade poder potestade e imunidade e não se distingue entre dever e as outras modalidades passivas Essa análise incompleta em termos de dever direito dutyright tem causado a confusão que caracteriza a linguagem jurídica tanto na legislação como no estudo doutrinário do direito Direito e Justiça 201 Finalmente é um erro introduzir um direito right como correlato de um dever O conceito de direito right em sentido subjetivo é um conceito sistemático no qual estão unidas muitas regras jurídicas ver cap VI Abarca a idéia de uma coleção de efeitos jurídicos cada um dos quais pode ser expresso nas modalidades comuns O direito de propriedade por exemplo inclui um conjunto de faculdades liber dades potestades e imunidades Um direito tal como a propriedade os diferentes jura in re aliena direito de propriedade intelectual etc não é uma modalidade jurídica por meio da qual se expressa a regra jurídica particular mas uma construção doutrinária para a exposição sistemática do direito vigente Que eu saiba o primeiro a investigar o problema das modalida des jurídicas foi o norteamericano Wesley Newcomb Hohfeld Fun damental Lega Concepts 19235 O que expusemos aqui foi em grande medida inspirado por Hohfeld em especial a idéia de que as modalidades estão ligadas pelas relações lógicas de contradição e correlação Minha postura entretanto difere da sua Hohfeld não procura interpretar as modalidades segundo sua função jurídica e parece não perceber que na realidade elas são apenas ferramen tas da linguagem do direito law 5 Esta obra foi publicada postumamente 0 tratado original apareceu no YaleL J t 23 1913 16 The End Capítulo VI O Conceito de Direito Subjetivo 35 0 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO COMO UMA FERRAMENTA TÉCNICA DE APRESENTAÇÃO No capítulo anterior foi explicado que os enunciados aparentemente teóricos sobre a criação de deveres direitos etc que aparecem nas normas jurídicas têm que ser interpretados como diretivas ao juiz Uma norma jurídica pode ser reformulada portanto da seguinte maneira D se F então C como uma diretiva para o juiz no sentido de que quando existe F sua sentença deve ser C Se a tarefa da ciência do direito se limitasse a uma simples enu meração das regras jurídicas em vigor todas as pressuposições dou trinárias poderiam ser formuladas de acordo com esse esquema Po derseia então imaginar uma exposição científica que apresentasse como normas vigentes muitas diretivas do seguinte tipo Dx se uma pessoa adquiriu legitimamente uma coisa através de com pra deverá ser prolatada sentença a seu favor ordenando a entrega da coisa contra todas outras pessoas que a retenham em seu poder D2 se uma pessoa herdou uma coisa deverá ditarse sentença de indenização por danos e prejuízos a seu favor contra todas outras pessoas que com dolo ou negligência tenham causado uma de terioração à coisa 204 Alf Ross D3 se uma pessoa adquiriu por prescrição uma coisa e obteve um empréstimo que não é restituído na ocasião oportuna deverá se dar sentença favorável ao credor para lhe permitir obter satisfação a partir da coisa D4 se uma pessoa ocupou uma resnulluse por meio de legado a transmitiu a outra será ditada sentença a favor do legatário contra o testador ordenando a entrega da coisa D5 se uma pessoa adquiriu uma coisa mediante execução como credor e posteriormente outra pessoa se apropria do objeto esta última deverá ser punida por furto E assim por diante tendo em conta é claro que em cada caso a fórmula poderia ser muito mais complicada Entretanto a tarefa da ciência do direito obviamente não pode ser limitada desse modo Uma exposição desse tipo seria tão inadequada a ponto de praticamente carecer de valor A tarefa do pensamento jurídi co consiste em conceitualizar as normas jurídicas de tal modo que sejam reduzidas a um ordenamento sistemático expondo assim o direito vi gente da forma mais simples e conveniente possível Isso pode ser con seguido mediante o concurso da técnica de apresentação que se segue Em meio a um grande número de normas jurídicas do tipo indica do é possível descobrir um certo grupo que pode ser disposto da seguinte maneira Fx Clf F2 Clf F3 C1 Fp Fi C2 F2 C2 F3 C2 Fp C2 Fj C3 F2 3 C j Fp Cj F C F C F C F C 1 n 2 n 3 n p n Leiase o fato condicionante F está ligado à conseqüência jurídica Cj etc 0 que significa que cada fato de uma certa totalidade de fatos condicionantes FjFp está ligado a cada uma das conseqüências de certo grupo de conseqüências jurídicas Cx Cn ou que cada fato F está ligado ao mesmo grupo de conseqüências jurídicas Ct C Cn ou que uma pluralidade acumulativa de conseqüências jurídicas está ligada a uma pluralidade disjuntiva de fatos condicionantes Direito e Justiça 205 Essas normas jurídicas individuais n x p podem ser apresentadas mais simplesmente e sob forma mais manejável na figura na qual P propriedade simplesmente representa a conexão siste mática de que Flt assim como F2 F3 F implicam a totalidade das conseqüências jurídicas Ci C2 C Cn Como técnica de apresenta ção isso se expressa então enunciandose em uma série de regras os fatos que geram propriedade e em outra série as conseqüências jurídicas que a propriedade acarreta Disso fica claro que a propriedade inserida entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicionadas é na realidade uma palavra sem referência semântica alguma que serve somente como ferramenta de apresentação Falamos como se propriedade fosse um nexo causai entre F e C um efeito ocasionado ou geradopor cada F que por sua vez é causa de uma totalidade de conseqüências jurídicas Dizemos por exemplo que 1 Se A comprou licitamente um objeto F2 a propriedade do objeto foi por isso gerada para ele 2 Se A é proprietário de um objeto tem entre outras coisas o direito de que a ele o entreguem CJ Está claro entretanto que 1 2 é somente uma reformulação de uma das normas pressupostas F2 Cj a saber que a compra como fato condicionante acarreta como conseqüência jurídica a pos sibilidade de obter a entrega A idéia de que entre a compra e a possibilidade de obter a entrega gerouse algo que pode ser cha mado de propriedade carece de sentido Nada se gera pelo fato de A e B trocarem umas poucas frases interpretadas juridicamente como contrato de compra e venda Tudo que ocorreu é que agora o juiz 206 Alf Ross tomará esse fato em consideração e pronunciará sentença a favor do comprador mediante uma ação para obter a entrega O que descrevemos aqui é um simples exemplo de redução pela razão a um ordenamento sistemático É por certo tarefa do pensa mento científico empreender esse processo de simplificação não obstante o labor tenha sido numa grande medida antecipado pelo pensamento précientífico Os conceitos fundamentais pertencentes à esfera dos direitos subjetivos por exemplo o conceito de propriedade não foram criados pelos autores de direito mas herdados de idéias geralmente aceitas Embora as pessoas em geral tenham somente as idéias mais confusas sobre os fatos que geram propriedade e os efei tos que são as conseqüências da propriedade fundamentalmente o conceito é construído da mesma maneira que o seria pelo pensamento profissional científico Conecta certos fatos específicos compra heran ça etc e certas experiências de faculdades e ffrdosjurídicos e éticos A função do conceito de direito subjetivo segundo esse esquema pode ser esclarecida em três contextos a saber 1 Na apresentação abstrata do direito vigente sua função é clara mente a descrita acima A expressão direito subjetivoé destituída com pletamente de referência semântica As frases em que aparece podem ser reescritas sem fazer uso da expressão indicando a conexão que nas diretivas jurídicas existe entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicionadas Por exemplo a proposição a propriedade é adquirida por prescrição de acordo com as seguintes regras pode ser reformulada assim a prescrição de acordo com as regras seguintes é um dos fatos que acarreta a totalidade de conseqüências estabelecidas na seqüência no capítulo sobre os efeitos jurídicos da propriedade 2 A função do conceito nas argumentações dos advogados ante os tribunais e nos fundamentos das decisões também pode ser explicada sem dificuldades segundo o mesmo esquema Um advogado por exem plo alegará que por meio de um contrato celebrado em tal e tal dia seu cliente adquiriu a propriedade de um automóvel e que em virtude disso o cliente pode requerer uma sentença para que o vendedor o entre gue Mesmo aqui a propriedade intermediária pode ser omitida O ad vogado na realidade só quer sustentar a que foi celebrado um con trato de compra válido b que este ato implica como conseqüência jurídica que o juiz dite sentença condenando o vendedor à entrega Direito e Justiça 207 30 conceito de direito subjetivo é empregado em enunciados que não parecem expor regras de direito mas descrever fatos puros E o que ocorre por exemplo quando se expressa que A é proprietário de um certo bem ou quando uma regulamentação descreve a pessoa que é obrigada a remover a neve denominandoa proprietária do imóvel O significado de tais enunciados é todavia mais complicado do que o que parece à primeira vista Para compreendêlo lembremos que é usual na descrição de pessoas coisas ou situações enunciar conjunta mente com qualidades puramente fatuais outras que são condiciona das pelo direito Num passaporte por exemplo além da idade do titu lar e da cor de seu cabelo são enunciados também sua nacionalidade e seu estado civil O que se quer dizer ao expressar que uma pessoa é casada O enunciado se refere ao fato da pessoa ter contraído um matrimônio que não foi dissolvido Entretanto contrair matrimônio não é algo puramente fatual Tal como não há nenhum movimento de um objeto no espaço que seja em si um movimento de xadrez não há nenhum evento fatual que constitua per se a celebração de um casa mento Ambos os fenômenos como foi tratado no parágrafo 3 so mente adquirem seu significado específico quando o evento fatual é interpretado em relação a uma ideologia vigente as normas do xadrez ou as normas jurídicas O enunciado de que uma pessoa celebrou matrimônio inclui uma afirmação sobre o direito vigente a saber que o evento aludido é gerador de matrimônio que acarreta um certo com plexo de conseqüências jurídicas Estas conseqüências geralmente não são totalmente conhecidas do leigo não jurista mas ele sabe por exemplo que entre elas existe uma que o proíbe de contrair um segundo matrimônio enquanto perdurar o primeiro O enunciado de que uma pessoa é casada referese assim a duas condições por um lado ao evento puramente fatual da celebração do matrimônio por outro a uma condição jurídica que esse evento segundo o direito vigente acarreta efeitos jurídicos específicos que as pessoas conhe cem em geral apenas de forma bastante vaga O uso em aparência puramente descritivo do conceito de direito subjetivo pode ser compreendido de maneira semelhante O enunciado de que A é proprietário de certo objeto referese não apenas à circuns tância puramente fatual de que A comprou o objeto ou o herdou ou o adquiriu por prescrição etc mas também à circunstância jurídica de que segundo o direito vigente esses eventos acarretam conseqüências jurídicas específicas e portanto se diz que geram propriedade 208 Alf Ross Podemos concluir portanto que em todos os contextos que con sideramos os enunciados referentes a direitos subjetivos cumprem a função de descrever o direito vigente ou sua aplicação a situações específicas concretas Ao mesmo tempo contudo é preciso afirmar que o conceito de direito subjetivo não tem qualquer referência se mântica não designa fenômeno algum de nenhum tipo que esteja inserido entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicio nadas é unicamente um meio que toma possível de maneira mais ou menos precisa representar o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas a saber aquelas que ligam certa pluralidade disjuntiva de fatos condicionantes a certa pluralidade cumulativa de conseqüências jurídicas Costumase empregar a mesma técnica de apresentação sem a idéia de um direito subjetivo intermediário No direito internacional por exemplo uma série de regras pode expressar qual a área que territorialmente pertence a um determinado Estado Dizer que essa área tem o caráter de território é per se sem sentido Somente há uma expressão com sentido quando esse conjunto de regras é relacio nado com outro conjunto de regras que expressam as conseqüências jurídicas que se imputam ao fato de que uma área tem o caráter de território Neste exemplo seria também possível expressar as rela ções jurídicas sem usar o conceito interpolado território embora tal enunciado fosse inegavelmente muito complicado Às vezes o nexo intermediário não é um direito subjetivo simples mas uma condição jurídica complexa de direitos e deveres Assim quando no direito de família se distingue entre as condições para celebrar matrimônio e os efeitos jurídicos do matrimônio quando no direito constitucional se distingue entre a aquisição da nacionali dade e os efeitos jurídicos da nacionalidade ou no direito adminis trativo entre a criação do status de funcionário e seus efeitos jurídi cos Nestas situações e em situações semelhantes é comum falar da criação de um status o status do casamento o da nacionalidade o da qualidade de funcionário Qualquer que seja a construção a realidade que se encontra por trás dela é em todos os casos a mesma uma técnica detentora de í grande importância se pretendemos conquistar clareza e ordem numa série complicada de normas jurídicas Direito e Justiça 209 36 APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO A SITUAÇÕES TÍPICAS O conceito de direito subjetivo é uma ferramenta na técnica de apresentação contudo isso nada nos diz acerca das situações nas quais é empregado Como vimos é possível também usar a mesma técnica dispensandose esse conceito Nossa tarefa por conseguinte deve ser esclarecer as condições nas quais se aplica o conceito de direito subjetivo Não se trata de decidir quando existe efetivamente um direito subjetivo A expressão direito subjetivo não designa ne nhum fenômeno que exista em certas condições específicas E perfei tamente possível expor o direito vigente dispensandose completa mente o uso do conceito de direito subjetivo Nossa tarefa pois só pode consistir em mostrar o que é que caracteriza aquelas situações jurídicas em que se costuma falar de direitos subjetivos Não é certa mente possível afirmar que o uso comum obedece a um critério de finido Apesar disso caso se pretenda que o conceito seja de alguma utilidade ao estudo do direito é essencial definir mais precisamente sua esfera de aplicação Neste parágrafo examinaremos a aplicação do conceito de direito subjetivo em situações típicas a O ponto de partida de qualquer análise deve ser que o conceito de direito subjetivo é usado para designar aquele aspecto de uma situa ção jurídica que é vantajoso a uma pessoa A mesma situação jurídica que é vantajosa para A pode ser desvantajosa para B ou para outros O conceito de direito subjetivo significa assim que a situação jurídica é contemplada a partir da perspectiva da pessoa a quem favorece É freqüente a palavra direito ser empregada indiscriminadamente em expressões do tipo ter um direito a no sentido de ser permitido algo a alguém para indicar que uma pessoa é livre para realizar um determinado ato Nesse emprego a palavra simplesmente quer dizer que esse ato se acha fora do direito objetivo parágrafo 33 Um tal uso lingüístico não é conveniente Como ferramenta para o estudo do direito o conceito de direito subjetivo tem que indicar um certo con teúdo jurídico As liberdades são aqui diferentes das vantagens resul tantes do regramento jurídico As liberdades portanto estão excluí das do conceito de direito subjetivo b Estando as liberdades excluídas disto se conclui que as vanta gens para uma determinada pessoa à qual concerne o conceito de 210Alf Ross direito subjetivo têm que surgir como conseqüência de um regramento jurídico E dado ter o regramento jurídico sempre um efeito restritivo o direito subjetivo será sempre o correlato de um dever 1 isto é uma res trição ao próximo Os deveres alheios podem significar uma vantagem para A de duas maneiras seja porque outra pessoa está obrigada a uma ação positiva benéfica em relação a A por exemplo pagarlhe uma soma em dinheiro ou executar algum trabalho para ele direitos inpersonam seja porque todas as pessoas exceto A estão obrigadas à abstenção de realizar certos atos por exemplo o uso e gozo de um objeto direitos in rem Neste último caso a liberdade de A se converte num privilégio É assegurada a A uma esfera de ação que lhe é reservada A propriedade é o exemplo típico A propriedade inclui um privilégio para o proprietário um domínio reservado porque se acha em liberdade de usar e usufruir do objeto enquanto ao mesmo tempo os outros estão excluídos Contudo as situações favoráveis como contrapartidas de um de ver nem sempre são consideradas como direitos subjetivos Se B por exemplo prometeu a A pagar uma quantia a C sob condições tais que somente A poderá exigirlhe o pagamento como correlato do dever de B surge uma vantagem para C E no entanto não se diria que um direito foi criado em favor de C c O conceito de direito subjetivo pressupõe portanto que o titu lar do direito dispõe também de uma faculdade relativamente à pes soa obrigada isto é que está aberta para ele a possibilidade de fazer valer seu direito instaurando um processo Pressupõese ao mesmo tempo que nenhuma outra pessoa pode mover processos O poder do proprietário de instaurar processo é tão exclusivo quanto seu uso e gozo do objeto Em outras palavras o titular de um direito tem um poder absoluto de conservar ou abandonar sua posição vantajosa de gozo passi vo Este poder está claro não consiste em nenhuma força mística conferida pelo ordenamento jurídico ao sujeito do direito significan do simplesmente que a maquinaria jurídica é acionada de acordo com a vontade do detentor do direito É como se o titular do direito ao instaurar um processo acionasse um botão que pusesse essa maquinaria em funcionamento 10 uso da palavra dever relativamente a isto é inadequado porque a reprovação social ideologicamente implicada na reação jurídica contra uma transgressão parágrafo 33 carece de importância para a descrição de um direito Se essa palavra é usada é simplesmente porque não há nenhuma outra isenta de ideologia para expressar a mesma coisa Direito e Justiça 211 d Segundo o uso lingüístico jurídico habitual o conceito de direi to subjetivo é empregado indubitavelmente numa quantidade de situações que combinam as características descritas em a c Mas os casos mais típicos tais como os bem desenvolvidos direitos do proprietário são caracterizados além disso por um poder exclusivo potestade para dispor do direito righf o que significa que só o proprietário tem o poder mediante declarações dispositivas em par ticular via declaração de transferência e testamento de provocar o efeito jurídico de que outra pessoa indicada na declaração o suce da no direito e Em resumo podemos dizer que o conceito de direito subjetivo é usado unicamente para indicar uma situação na qual o ordenamento jurídico deseja assegurar a uma pessoa liberdade de poder se com portar no âmbito de uma esfera específica como lhe agrade a fim de proteger seus próprios interesses O conceito de direito subjetivo indica a autoafirmação autônoma do indivíduo Isso é claro não significa um individualismo desenfreado e não é a antítese do caráter social de todo ordenamento jurídico Significa apenas que precisamente por considerações que produzem o bem estar da comunidade julgase desejável claro que dentro de certos limites proporcionar ao indivíduo a possibilidade de liberdade de ação Atualmente chegou a se converter num moto dizer que a pro priedade é uma função social Há algo de verdadeiro nisto porque a liberdade de ação do proprietário está no presente muito mais cir cunscrita por regras sociais do que submetida ao regime do individua lismo extremo que imperou no século XIX Entretanto a frase oculta o fato de que a propriedade mesmo com o seu conteúdo restrito serve ainda à autonomia do indivíduo A autonomia restrita prosse gue sendo autonomia e não uma função social É necessário frisálo porque o conceito de direito subjetivo não de veria incluir liberdades nem poderes para a proteção de interesses so ciais Na vida de uma comunidade é freqüente algumas pessoas serem aquinhoadas com uma liberdade de ação e poder privilegiados para a proteção dos interesses de outros ou de interesses comuns No seio da família por exemplo os pais gozam da liberdade de castigar os filhos menores e poder para conduzir seus atos Na vida pública num grau ainda superior diversas pessoas têm liberdade de ação e poder especiais para estabelecer disposições obrigatórias relativamente a outras 212 Alf Ross Porém nesses casos e em casos semelhantes as liberdades e os poderes não são concedidos a essas pessoas para a proteção autôno ma de seus próprios interesses mas como uma função social Que tais liberdades e poderes sejam concedidos como uma função social e não em interesse da autonomia do titular significa algo mais do que uma faculdade moral Significa também que essas liberdades e pode res estão juridicamente limitados e que o espírito no qual são exerci dos é controlado autoridades de vigilância regras concernentes ao abuso do poder etc Os casos deste tipo devem portanto ser ex cluídos do conceito de direito subjetivo O uso lingüístico corrente é vago mas há todavia uma definida tendência em falar nesses situa ções de autoridade ou poder autoridade dos pais autoridade públi ca e não de direito subjetivo Por uma questão de clareza devemos aderir a esta distinção terminológica2 37 APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO A SITUAÇÕES ATÍPICAS Como vimos o conceito de direito subjetivo é apenas uma ferra menta na técnica de apresentação Todavia usualmente nos expres samos como se um direito subjetivo fosse algo que se interpõe entre os fatos e as conseqüências jurídicas algo que é criado e que por sua vez produz conseqüências diversas A compra dizse gera o direito de propriedade a favor do comprador e o direito de proprieda de produz o efeito do comprador poder reclamar a entrega Enquanto formos conscientes da verdadeira natureza do conceito de direito subjetivo o uso lingüístico não causará prejuízos Caso contrário poderá ser enganoso Se o uso lingüístico nos levar a crer que o direito subjetivo ele mesmo é distinto de seus efeitos teremos então um exemplo típico daquilo que em lógica se chama hipóstase isto é uma maneira de pensar em relação à qual por trás de certas correlações funcionais inserese uma nova realidade como o suporte ou causa dessas correlações Este poder da linguagem sobre o pen samento é oriundo possivelmente das idéias mágicas primitivas3 2 A teoria jurídica francesa emprega às vezes a terminologia droits à fin égoiste e droitsfonction Ver por exemplo Jean Dabin Le droit subjectif 1952 217 3 No seu livro Der rümische OMigationsbegriff 1927 Axel Hãgerstrõm mencionou argumentos de peso em apoio d l origem mágica das concepções jurídicas romanas A pesquisa moderna no campo da sociologia e da história dt religião aponta na mesma direção Ver Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap IX 25 Direito e Justiça 213 Do modo como vejo as coisas tem havido uma forte tendência no pensamento dos leigos e dos juristas para conceber o direito subjeti vo como uma substância Dificilmente alguém entre nós pode afastar por completo a idéia de associar ao conceito de direito subjetivo no ções mais ou menos indefiníveis de força sobrenatural uma espécie de poder interno e invisível sobre o objeto do direito subjetivo ou uma qualidade da vontade que lhe concede validade e poder em relação às vontades opostas de outras pessoas Se bem que não se confunde com elas esse poder se manifesta nas medidas de compulsão sentença e execução por meio das quais se realiza o controle fatual e visível que pertence ao titular do direito Mesmo entre as crianças observase a tendência a hipostasiar A criança logo aprende que é dona de certas coisas que chama de suas e percebe que certas vantagens práticas estão associadas a essa propriedade Mas ao mesmo tempo o ser dono em si mesmo inte ressa à criança tanto quanto as vantagens práticas e esse ser dono é concebido por ela como coisa distinta destas últimas Até meus filhos atingirem a idade de dez anos eu pude para nosso beneficio comum chegar a um acordo com eles segundo o qual meus filhos tinham certas flores do jardim enquanto eu me reservava o controle comple to sobre o que poderia ser feito com elas Até mesmo quando o adulto aprende melhor a compreender a função real da propriedade e não pode igualmente ser ludibriado com uma palavra persiste entretanto uma indiscutível tendência a considerar um direito subjetivo como uma realidade independente distinta das funções que cumpre Esta tendência está difundida in clusive no pensamento profissional Idéias metafísicas ocultas se re velam em falsos problemas ficções e falácias que podem ter uma influência desastrosa no tratamento das questões jurídicas práticas A concepção metafísica do direito como uma força espiritual é ca racterizada por duas teses 5que um direito subjetivo é sempre uma entidade simples e indivisa que tem de existir num sujeito específico e b que este sujeito tem que ser um ser humano ou uma organiza ção de seres humanos Ambas as teses podem conduzir ao erro aa idéia de que o direito subjetivo é uma entidade simples e indivisa que tem que existir num sujeito específico não é prejudicial nas situa ções típicas descritas no parágrafo anterior Nestes casos as diversas 214Alf Ross funções que constituem a situação jurídica apontam todas o mesmo objeto Normalmente é a mesma pessoa 1 aquela em cujo benefí cio se acha restrita a liberdade de ação de outra pessoa 2 aquela que pode fazer valer o direito instaurando processos e 3 aquela que tem o poder de alienar o direito A mesma pessoa é sujeito do interesse sujeito dos processos e sujeito da alienação Conseqüen temente não gera problemas pensar nessas diferentes funções como efeitos do próprio direito subjetivo como entidade que encontramos nesse sujeito geral É inteiramente diferente contudo se surgem situações nas quais as várias funções não se relacionam com o mesmo sujeito4 Isto ocorre com muita freqüência A entidade como é concebida no conceito substancialista do direito subjetivo não é de fato encontrada em lugar algum nesses casos a idéia tendo que conduzir inevitavelmen te a pseudo problemas e ficções Por exemplo o menor de idade é beneficiário sujeito do interes se o fideicomissário sujeito da administração sujeito de processos e de alienação A despeito disto costumase considerar que o direito right pertence ao menor isto é ao beneficiário Por outro lado nos contratos a favor de terceiros exigíveis pela pessoa diante da qual se contraiu a obrigação esta última a qual é o sujeito da administra ção é considerada como titular do direito Uma interpretação distinta parece estar condicionada pelo poder atribuído ao sujeito da adminis tração Enquanto no caso dos contratos em favor de terceiros a pes soa diante da qual se contraiu a obrigação pode exercer seu poder de instaurar processos e de alienação como lhe agrade em seu próprio interesse no caso do menor de idade o poder do fideicomissário é uma autoridade exercida por ele sob controle no interesse do menor Em outros casos a divisão entre o interesse do beneficiário e a administração ativa é ainda mais pronunciada Os estatutos das 4 Pelo que sei foi Bekker em Zur Lehre vom Rechtssubjekt Jahrbücher fürdie Dogmatik XII 18731 1 e segs o primeiro a destacar o fato de que as diferentes funções no âmbito de um direito gozo e administração podiam ser separadas e distribuídas entre diferentes mãos Posteriormente René Oemogue em Notions Fondamentales 1911 325 e segs desenvolveu essa idéia e a exposição que incluo aqui é inspirada em particular nesse último autor 0 mesmo ponto de vista é enfatizado por Alexander Nékám em The Personality Concept of the Legal Entity 1938 21 e segs que entretanto reserva a expressão sujeito de um direito è parte interessada e chama a parte administra dora de administradora de um direito Os três autores se opõem também de forma incisiva ao dogma de qu somente os seres humanos podem ocupar a posição de sujeito de direitos Direito e Justiça 215 corporações e fundações podem estabelecer regras de como o qua dro administrativo deve ser composto e como devem ser seleciona dos os sujeitos beneficiários Em conformidade com estas regras os membros individuais de cada grupo mudarão de tempos a tempos Em tais situações a idéia do direito subjetivo como substância que inclui uma diversidade de funções e que pertence a um sujeito es pecífico se revela completamente inadequada Quem é o proprietá rio da Fundação RockefeHer das quadras de tênis do Chicago Games Club ou da Instituição para as Viúvas dos Pedreiros Mestres de Middletown Ninguém é proprietário disto no mesmo sentido que sou proprietário de uma casa A fim de preservar a concepção substancialista é mister recorrer a construções No direito da Euro pa continental costumase imaginar um sujeito simples indiviso onde não existem nenhum A chamada pessoa jurídica5 é introduzida como sujeito do direito No direito inglês empregase amiúde a noção de frzsfideicomisso em casos semelhantes6 Atribuise tanto proprie dade ao trustee fideicomissário o sujeito controlado quanto ao cestui que trust o sujeito beneficiário ao primeiro propriedade jurídica e ao segundo propriedade de acordo com as regras de par ticipação equity Esta dupla propriedade se aproxima mais da ver dade porque indica que cada parte pode num certo sentido ser considerada como sujeito do direito Entretanto em lugar de falar de propriedade dupla seria mais exato dizer que não existe proprie dade no sentido típico aquelas funções que concebemos como com binadas no proprietário típico estão nesse caso divididas entre pessoas diferentes nenhuma das quais portanto ocupando a posi ção de um proprietário típico 5 Existe farta literatura que trata do problema de se a pessoa jurídica é uma realidade isto é um organismo natural dotado de vontade própria uma entidade viva distinta dos indivíduos que participam da vida da coletividade ou se não passa de uma ficção de que se vale o legislador quando guiado por considerações práticas deseja lidar com uma coletividade como se fosse um sujeito individual de direito Mesmo quando esse problema possa ter algum significado quando abordado dentro da estrutura da sociologia é certo que implica um falso problema de metafísica sob o prisma da análise jurídica Para esta o fato decisivo á que as situações jurídicas aqui consideradas não são análogas à situação individual típica dos direitos subjetivos mas que se acham estruturadas de um modo diverso Não se pode lidar com uma coletividade como um sujeito individual de direito Em tais situações simplesmente não existe um sujeito geral e toda discussão no tocante à natureza de tal sujeito não conduz a coisa alguma Uma vez isto admitido nada impede é claro que se continue empregando a terminologia firmemente estabelecida e que se prossiga falando de pessoas jurídicas como sujeitos de direito 6 Há uma transição gradual entre os casos nos quais é utilizada a noção de trust e aqueles nos quais é utilizada a noção de pessoa jurídica Ver Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap VIII 6 a 216 Alf Ross Outras situações atípicas se apresentam quando o sujeito do direito é substituído em sua posição O exemplo típico é a transferência de propriedade Quando A transfere um objeto a B surge o problema de saber em que momento B adquire a posição jurídica de proprietário frente aos outros Esta relação frente aos outros pode ser dividida em muitas relações do sucessor com vários grupos de terceiros Não é necessário que o mesmo fato seja decisivo relativamente à posição jurídica de B nessas relações diversas Devido a razões práticas pode ser preferível que os fatos decisivos sejam vários Tanto a análise cien tíficojurídica quanto a políticojurídica têm portanto que ser análises de relações Uma vez esclarecidas as posições jurídicas nas diversas relações o problema de quando o direito de propriedade passa de A para B será apenas um problema terminológico sem conteúdo real Enquanto na doutrina escandinava o problema é tratado de acor do com tais pontos de vista funcionais e relativos em outros sistemas jurídicos o problema é predominantemente colorido pelas pressupo sições metafísicas do conceito substancialista do direito subjetivo Nesses sistemas jurídicos a transferência do direito de propriedade é considerada um fenômeno com substância própria do qual emanam diversos efeitos jurídicos Disso resulta primeiro que a transferência é considerada um fenômeno que ocorre diretamente entre as partes e do qual derivam as relações com terceiros como conseqüências e segundo que a transferência é considerada como absoluta isto é como tendo efeito contra todos os terceiros em virtude do mesmo fato Deste modo fica excluído todo exame relativista da transferên cia da propriedade b O conceito metafísico do direito subjetivo como uma força mo ral e espiritual conduz a um postulado dogmático de que somente seres humanos e pessoas jurídicas podem ser sujeitos de direito7 Na versão inglesa deste livro Margaret Dutton preferiu pender para a literalidade aliás recomendável ao se traduzir textos técnicos entre línguas de estrutura semelhante no caso o dinamarquês e o inglês Assim apesar de noss opção no português por relação frente aos outros é preciso salientar o mérito do inglês relation to the rest of the world por sua maior propriedade filosófica Enquanto analisando a questão do direito subjetivo Ross se posiciona im radical dualidade gnoseológica de sujeito e objeto na qual absolutamente tudo que não é sujeito é objeto de sortt que a relação do sujeito do direito não ê própria e unicamente com a alterídade os outros seres humanos percebidos como objeto na relação o mundo humano mas com toda a realidade todo o mundo todas as coisas WT 7 Este dogma tido pela maioria como uma verdade autoevidente procede aparentemente de uma idéia moral e metafísica do ser humano como centro do universo e fim de todas as coisas É associada com frequência à afirmativa dogmática igualmente insustentável de que todo ser humano é sujeito de direito Ver por exemplo Jean Dabin Le dnH subjectif 1952 116 Para a crítica do dogma ver os autores mencionados na nota 4 Direito e Justiça 217 E indubitável está claro que somente os seres humanos podem atuar como sujeitos de processos ou de disposição Por outro lado nada obriga a que os interesses reconhecidos pelas normas jurídicas como protegidos por um direito subjetivo sejam exclusivamente inte resses humanoS Assim freqüentemente se reconhece que podem ser deixados lega dos em benefício de animais legados que são administrados de acordo com regras idênticas às que regem os legados em benefício de seres humanos É incontestável portanto que nesse caso o animal é o beneficiário e segundo o uso lingüístico comum parágrafo 37 o titu lar do direito subjetivo Incorrese num conceitualismo irrealista e dogmático ao se interpretar o gozo do legado por parte do animal como mero reflexo de um direito do administrador embaraçado por um cargo em benefício do animal extraindose daí conclusões a respeito da situação jurídica em seus diversos aspectos por exemplo no caso de falência do administrador ou no que tange aos impostos8 O mesmo pode ser dito quando se reconhece que os legados po dem ser estabelecidos para a promoção de um propósito objetivo específico por exemplo a conservação de um monumento Uma coi sa é o poder para estabelecer esses legados como o poder para estabelecer outro tipo de legados ser outorgado ao testador para que possa proteger seus próprios interesses mas algo totalmente distinto é na situação jurídica estabelecida como resultado do legado em contraposição ao que ocorre com legados de outro tipo não se poder assinalar nenhum beneficiário Podese dizer se o preferir que nesses casos o propósito objetivo desempenha o papel de beneficiário e se pode caracterizar a propriedade como uma propriedade devota da a um propósito particular Zweckvermõgerí 38 A ESTRUTURA PE UM DIREITO SUBJETIVO O conceito de direito subjetivo é empregado na descrição de uma situação jurídica O conceito contém os seguintes elementos os quais constituem a estrutura de um direito subjetivo 8 Com relação às penas por crueldade com os animais e a freqüente má compreensão destas regras ver Alf Ross Towardsa Reafístic JtírisprudGnce cap VIII 6 b 218 Alf Ross a O sujeito do direito subjetivo Tal como vimos nos dois parágra fos anteriores é mister fazer distinções relativamente à posição do sujeito em relações diversas em particular aquela do sujeito do inte resse dos processos e da alienação Em situações típicas esses sujei tos coincidem num sujeito geral simples Em situações atípicas estão separados b O conteúdo do direito subjetivo Em sentido mais amplo o con teúdo do direito subjetivo inclui tanto a faculdade daim que o titular do direito right dispõe contra outros quanto seu poder para fazer valer essa faculdade mediante a instauração de processos e o poder para alienar o direito Visto que entretanto o poder de instaurar processos e o poder de alienar são acessórios da faculdade principal e portanto elementos constantes que aparecem nos diferentes direitos subjetivos é preferível restringir a idéia do conteúdo à facul dade específica em virtude da qual um direito se distingue do outro O conteúdo específico é pois a restrição da liberdade de ação de outra pessoa ou a correlativa faculdade do titular do direito O con teúdo do direito in personam é pois o dever de cumprimento do devedor ou a faculdade do credor a respeito do cumprimento O conteúdo do direito de propriedade é a faculdade do proprietário de que outros se abstenham de perturbar seu uso e gozo de uma deter minada coisa No campo dos direitos in rem a expressão conteúdo específico de um direito é usada também com menos precisão para designar a liberdade de ação privilegiada do titular do direito que é o resultado econômico fatual visado por sua faculdade legal Dizemos por exemplo que o conteúdo do direito de propriedade consiste na liberdade do proprietário de usar e gozar do objeto como julgar adequado dentro de certos limites c O objeto do direito subjetivo A determinação plena do conteú do de um direito in rem concreto inclui também o objeto físico em relação ao qual o titular do direito tem uma faculdade de gozo exclu sivo Este objeto físico é chamado de objeto do direito subjetivo Quan do um certo tipo de direito subjetivo como a propriedade ou um direito de servidão é considerado de forma abstrata o conteúdo do direito se define com a abstração do objeto A idéia de objeto do direito subjetivo dificilmente se aplica aof direitos in personam Direito e Justiça 219 d A proteção do direito subjetivo Visto que uma faculdade eqüi vale quanto à sua função jurídica à possibilidade de obter uma sen tença contra a pessoa obrigada a proteção processual ou estática de um direito é apenas um outro aspecto do conteúdo do mesmo Uma faculdade nada é sem a tutela do aparato jurídico Ao mesmo tempo a própria faculdade pode receber proteção através de diferen tes reações jurídicas aplicação de uma pena condenação a realizar o ato devido restituição indenização por danos e prejuízos Conse qüentemente podese fazer em abstrato uma distinção entre o con teúdo de um direito e sua proteção processual Distinta da proteção processual ou como prefiro chamála está tica de um direito é sua proteção dinâmica Esta se refere aos proble mas jurídicos que somente surgem quando o direito é transferido ou quando ocorre outra forma de sucessão ou seja se refere à dinâmica dos direitos subjetivos Entretanto é necessário esclarecer que é exa tamente o que quer dizer aqui proteção Quando A vendeu um objeto a B então numa consideração iso lada de fatos e regras jurídicas passa a existir a condição para que B suceda a A na posição deste último Mas se A vendeu também o objeto a C o se D credor de A executa o bem existem analogamente numa consideração isolada de fatos e outras regras jurídicas as condições para que C e D sucedam a A em sua posição Em tais situações falamos de colisão de direitos Esta expressão entretanto é enganosa porque é óbvio que B e C D não podem ambos ser titulares do direito subjetivo e portanto não pode haver colisão de direitos O ordenamento jurídico tem que conter regras adicionais que possam ajustar os dois pontos de vista isolados de tal modo que B ou C D seja o titular do direito ao objeto A situação portanto não apresenta na realidade uma colisão de direitos mas uma colisão de regras isoladas de sucessão De um ponto de vista mais amplo inexiste colisão B ou C D é o único titular Nessas situações portanto o problema da proteção nasce do fato de que as regras do ordenamento jurídico estão formuladas em gru pos que regulam de maneira isolada a transmissão de direitos Esses conjuntos isolados pressupõem regras suplementares e integradoras que regem a colisão entre direitos Estas regras suplementares de finem a proteção dinâmica do sucessor do direito 220 Alf Ross Ficará clara agora a existência de uma importante diferença en tre a proteção estática e a proteção dinâmica A proteção estática se refere às sanções passíveis de serem apli cadas no caso de violação do direito subjetivo Essas sanções podem ser mais ou menos efetivas de acordo com as condições sob as quais a transgressão é punida a magnitude da pena e as condições para que o titular do direito possa obter restituição ou compensação por danos e prejuízos Quanto mais efetivas as sanções maior será a proteção do direito subjetivo isto é maior a probabilidade de que o titular do mesmo obtenha realmente o gozo econômico pacífico dos bens que o ordenamento jurídico deseja proporcionarlhe É claro que esse tipo de proteção jamais pode ser absoluto A proteção dinâmica por outro lado nada tem a ver com sanções As regras da proteção dinâmica regulam a competição entre diversos sucessores em conflito cada um dos quais tem por si mesmo uma expectativa legítima de sucessão A proteção dinâmica assim não é proteção de uma posição jurídica existente mas da expectativa de um sucessor de ser colocado numa posição jurídica Esta proteção conforme as circunstâncias pode ser absoluta porque o ordenamento jurídico sob certas condições torna indiscutível a posição jurídica que resulta de uma sucessão Disso se conclui que a proteção estática se refere à relação entre o direito substantivo e os procedimentos jurídicos enquanto a prote ção dinâmica se refere a problemas internos do direito substantivo É um velho problema aquele de saber se há uma conexão natural ou necessária entre o conteúdo de um direito e sua proteção dinâmi ca Este problema será investigado no próximo capítulo eJOs elementos estruturais indicados nos itens precedentes aa d constituem o fundamento para a divisão dos direitos subjetivos em vários tipos É particularmente importante a divisão fundada no conteúdo Não podemos examinar aqui a sistematização dos direi tos no próximo capítulo nos ocuparemos unicamente de uma im portante classificação Direito e Justiça 221 39 DISCUSSÃO Nas obras do autor francês Léon Duguit9 e do autor sueco A V Lundstedt10 há discussões críticas do conceito de direito subjetivo que se relacionam com os pontos de vista expostos neste livro Es ses autores igualmente denunciam as idéias metafísicas tradicio nais presentes no conceito de direito subjetivo insistem que qual quer idéia que veja no direito subjetivo uma substância uma força espiritual criada por certos fatos carece de sentido e que a única realidade demonstrável nas chamadas situações de direito subjeti vo consiste na função da maquinaria jurídica Dadas certas condi ções uma pessoa pode com relação ao direito vigente instaurar processos e dessa maneira acionar a maquinaria jurídica com o resultado do poder público ser exercido em seu benefício Pode ob ter uma sentença e execução compulsória gerando para si uma posição vantajosa uma possibilidade de ação um benefício econô mico E isto é tudo11 Até aqui é fácil concordar com esses autores Entretanto a partir desse ponto em lugar de prosseguir indagandose o que caracteri za as situações denominadas direito subjetivo e como pode esse conceito ser analisado e utilizado como ferramenta para a descrição daquelas situações tal como procuramos fazer nas páginas que antecedem Duguit e Lundstedt conferem à sua exposição crítica um rumo peculiar afirmam que o direito subjetivo não existe O argumento de Duguit para provar a não existência de direi tos subjetivos é simples Postula primeiramente que a expressão direito subjetivo somente pode significar um poder inerente a uma vontade individual para se afirmar frente a outras vontades isto é uma inerente supremacia de uma vontade relativamente a outras Prossegue afirmando que não há nas vontades tais diferenças imanentes e portanto não há direitos subjetivos 9 Ver especialmente Traité de Droit Constitutionnel I 3a ed 1927 Cl Jean Dabin Le droit subjectif352 5 e segs 10 Ver Die UnwissenschaftUchkeit der Rechtswissenschaft 1932 135 e segs 11 Antes de Duguit e Lundstedt Bentham empreendeu um estudo crítico seguindo linhas similares Ver por exemplo Works publicação de John Bowring 1843 I 248 358 361 e II 497 e segs e em particular The Limits of Jurisprudence Defined publicado primeiramente em 1945 57 e segs 222 Alf Ross E claro que esse raciocínio se baseia na idéia ingênua de que uma palavra tem um significado imanente que não pode ser altera do A prova é produzida por Duguit postulando primeiro que a expressão direito subjetivo só pode significar algo que carece de significado e proclamando depois que esse algo que carece de significado não existe Também Lundstedt crê no significado imanente das palavras Sus tenta que os direitos não existem no sentido conceituai não obstante admitir que há certas realidades por trás do conceito e não vê razões para deixar de usar em prol da brevidade a expressão direito subjeti vo como uma mera designação dessas realidades12 Poderseia pen sar que Lundstedt tenta propor um novo conceito de direito subjetivo definido por essas realidades Contudo ainda que a expressão pu desse ser concebivelmente empregada como designação de certas qualidades estas não podem do ponto de vista lógico ser classifica das sob o conceito de direito subjetivo o que significa necessaria mente que não há direitos subjetivos Além desse ingênuo misticismo das palavras as idéias de Duguit e de Lundstedt padecem do mal de confundir os pontos de vista jurídico e sociológico A vantagem econômica a possibilidade fatual da ação a posição protegida a que se referem esses autores são obviamente a conseqüência prática de uma situação jurídica não a própria situa ção Entretanto como conceito jurídico o conceito de direito subjetivo tem que ser analisado como um instrumento para a descrição de um conteúdo jurídico Esses autores não oferecem uma análise desse pon to de vista Nenhum dos dois percebe o valor do conceito como ferra menta de apresentação nem as diversas relações jurídicas distinguíveis numa situação de direito subjetivo É paradoxal que esses ardorosos denunciadores das idéias metafísicas presentes no conceito de direito subjetivo aceitem sem um exame crítico a idéia do direito subjetivo como uma entidade simples e indivisa idéia que é a concreção mais tangível da metafísica que se declara proscrita Os pioneiros de uma análise mais profunda do conceito de direito subjetivo não foram Duguit e Lundstedt os quais negam a existência de direitos subjetivos mas sim Demogue Nékám e Bekker 13 que n Op cit 119 13 Ver parágrafo 37 nota 4 Direito e Justiça 223 perceberam que esse conceito engloba funções distintas e mutua mente independentes em particular as do gozo e da administração A discussão tradicional em torno do conceito de direito subjetivo se moveu num plano que se correto o ponto de vista aqui defendido tem que ser rejeitado por falta de realismo Considerouse que o mais importante era determinar a essência do direito subjetivo Por um lado há a teoria de Ihering segundo a qual a essência de um direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido Em oposição a ela se acha a teoria de Windscheid que sustenta que a essência do direito subjetivo é um poder ou supremacia da vontade14 A polêmica entre estas duas teorias parece ser infindável Contra a teoria do interesse se afirma que em algumas situações o interesse está separado do direito subjetivo por exemplo quando a propriedade se acha embaraçada por encargos em benefício de outros ou nos casos de contratos cele brados em favor de um terceiro mas que só podem ser exigíveis pelo promissário A teoria de Ihering dificulta a distinção entre o próprio direito subjetivo e seus efeitos reflexos em benefício de outros Contra a teoria da vontade por outro lado afirmase que as pessoas que carecem de vontade ou de vontade razoável como as pessoas não nascidas as crianças e os insanos podem todavia ser sujeitos de direito Muitos autores posteriores consideraram que a essência do direito subjetivo é uma combinação de interesse e vontade15 Essa discussão não leva a lugar algum Se é correto dizer que ao conceito de direito subjetivo não corresponde em absoluto uma reali dade que apareça entre os fatos condicionantes e as conseqüências jurídicas não tem sentido discutir se o direito subjetivo em sua es sência é interesse vontade ou alguma terceira coisa Por trás das diversas idéias de uma essência substancial ocultamse diferentes pontos na situação típica de direito subjetivo a vantagem fatual de terminada pela restrição da liberdade alheia o poder de instaurar processos e a competência potestade da alienação As dificuldades com as quais cada uma das teorias tem que pelejar nascem do fato de que as funções que estão integradas nas situações típicas sur gem fragmentadas entre sujeitos diferentes nas situações atípicas 14 A teoria de Ihering está formulada em seu Geisl des rõmischen Rechts III e IV com variações segundo as distintas edições da obra A doutrina de Windscheid é desenvolvida em seu Pandektenrecht I também com variações segun do as distintas edições da obra Ver ademais Alf Ross Towards a Reaiistic Jurisprudence 1946 cap VII 3 e Jean Dabin Le droit subjectiíK 1952 56 e segs 15 Ver Alf Ross op cit 168169 e Jean Dabin Le droit subjectif 1952 72 e segs QUIET PLEASE Were working in your Neighborhood We apologize for any inconvenience Construction Hours MondayFriday 7 am to 7 pm Saturday 9 am to 5 pm Sunday No work scheduled For your safety and the safety of our crews please use caution around construction areas and obey all posted signage Construction Update We are removing and replacing the water main and water service lines from east 5th avenue to east 6th avenue and nora street on 8th avenue Work will include removing the asphalt and curbs and pouring new concrete Updates Questions Text GWS to 468311 or call 5038234874 Whenever construction is underway for your block construction activity begins around 7 AM and continues until 7 PM Monday through Saturday On Sundays no work is scheduled unless an emergency occurs Staff wear distinctive community work uniforms and carry ID badges Affected homes and businesses receive direct communication from the contractor or city ahead of work starting and can expect followup updates as work progresses The City continues to build and move forward on our civil works projects to keep our community safe and vibrant Please bear with us as this construction season continues We appreciate your cooperation and patience To provide feedback please call the city council office at 5038234000 Capítulo VII Direitos In Rem e Direitos In Personam 40 DOUTRINA E PROBLEMAS Desde a antiguidade é usual distinguir no campo do direito patrimonial dois grupos principais de direitos subjetivos direitos in rem e direitos in personam Nos tempos modernos costumase adicio nar um terceiro grupo os chamados direitos de propriedade imaterial A doutrina em torno dessa distinção pode ser desenvolvida de diversas maneiras porém seu cerne inalterável é a conexão essencial entre o conteúdo do direito subjetivo e sua proteção1 Esta doutrina pressupõe que a divisão dos direitos patrimoniais segundo seu con teúdo seja acompanhada de uma correspondente divisão da prote ção Os direitos que segundo seu conteúdo são in rem pelo que se entende usualmente que autorizam um uso e gozo imediatos de uma coisa estão providos de proteção in rem pelo que se entende usual mente que o titular do direito pode obter a entrega ou restituição da coisa diante de quem quer que dela se tenha ilegitimamente apoderado podo retirála do patrimônio do titular anterior que tenha falido e tem prioridade sobre adquirentes posteriores Os direitos que segundo seu L Temse por certo ademais que a distinção á também importante em muitos outros aspectos e por isso é tomada como base para a divisão do direito patrimonial em dois ramos principais o Direito das Coisas Sachenrecht e o Direito das Obrigações Obligationenrecht 226 Alf Ross conteúdo são in personam pelo que se entende usualmente consis tirem eles numa faculdade daim frente a uma pessoa para que esta realize um ato estão providos de proteção in personam pelo que se entende usualmente que só podem ser aplicados contra o devedor o titular do direito não tem direito de obter a restituição da coisa não pode retirála do patrimônio do devedor falido e deve ceder diante de adquirentes posteriores de boa fé A doutrina dos direitos in rem e dos direitos in personam assume um caráter diferente dependendo da distinção quanto ao conteúdo e a diferença na proteção ser definidos de forma mais rigorosa Se por ora ignorarmos isso o conteúdo comum da doutrina dos direitos in reme in personam poderá ser resumido da maneira que se segue 1 O direito in rem é aquele que de conformidade com seu con teúdo é um direito sobre uma coisa e portanto é dotado de prote ção in rem 2 O direito in personam é aquele que de conformidade com seu conteúdo é um direito frente a uma pessoa e portanto é dotado de proteção in personam Essa terminologia todavia não é muito apropriada porque as expressões in reme in personam aludem igualmente ao conteúdo do direito e a sua proteção o que pode dar margem a confusões Será preferível por conseguinte empregar uma expressão para a diferen ça de conteúdo e outra para a diferença de proteção Se para a pri meira introduzirmos as expressões direito de disposição right of disposa2 e direito de faculdade right of daim o cerne da doutrina poderá então ser reformulado como se segue 1 Segundo o conteúdo dos direitos patrimoniais podese distin guir entre direito de disposição e direito de faculdade 2 Segundo os princípios relativos à proteção de um direito pode se distinguir entre proteção in rem e proteção in personam 3 Existe uma conexão necessária ou natural entre essas duas dis tinções de modo que um direito de disposição é normalmente dotado de proteção in rem e um direito de faculdade de proteção in personam 2 Disposição aqui significa disposição fatual e não disposição alienação jurídica o uso e gozo fatual da coisa 1X1 parágrafo 33 e com referência a disposição como competência jurídica Direito e Justiça 227 Esta terminologia será utilizada na análise crítica da seqüência na qual as seguintes questões serão levantadas 1 As distinções correntes entre direito de disposição e direito de faculdade são sustentáveis parágrafo 41 2 As distinções correntes entre proteção in rem e proteção in personam são sustentáveis parágrafo 42 3 É possível atribuir a essas distinções um significado tal que exista uma conexão necessária ou natural entre elas parágrafo 43 Comecemos pela conclusão a análise seguinte procura demons trar que as duas primeiras questões têm que ser respondidas negati vamente e a terceira afirmativamente Isto quer dizer que ainda que as duas distinções e as idéias sobre sua correlação sejam insustentá veis a doutrina tem algo importante a oferecer O delineamento escrito3 a respeito da distinção entre direitos in rem e direitos in personam é o seguinte a A doutrina predominante define a distinção fundamental entre direito de disposição e direito de faculdade expressando que o pri meiro é um direito que se tem de forma imediata sobre um coisa enquanto o segundo é um direito contra uma pessoa O direito de disposição é aquele que sem se achar fundado numa relação jurídica frente a outra pessoa autoriza de forma imediata o titular do direito a um uso e gozo diretos ou a exercer um poder direto sobre uma coisa seja em todos os aspectos propriedade seja em certos aspectos determinados jura in re aliena O direito de faculdade é aquele que se tem contra uma pessoa que nasce de uma relação jurídica entre o titular do direito e uma certa pessoa e que corresponde ao dever desta pessoa em relação ao titular do direito Desse diferença na essência dos direitos deriva uma diferença em seus efeitos jurídicos visto que o direito de disposição é direito sobre a coisa como tal e não contra outra pessoa vale frente a quem quer que seja ou em outras palavras é absoluto valendo tanto relativa mente aos sucessores quanto relativamente aos credores é como dizem os franceses dotado de droit de suite e droit de préférence 3 Ver também um estudo detalhada em Alf Ross Towarda Realistic Jurisprudence 1946 cap IX 228 Alf Ross Uma sentença proferida contra outro partido não se funda em nenhu ma obrigação deste mas simplesmente no fato negativo de que esse outro partido não tem nenhum direito que possa opor ao demandante Esse fato é em si suficientemente poderoso para convalidar a pre tensão de sentença e execução Mesmo quando por vezes se admi te que os terceiros estão obrigados a não perturbar o gozo do direito se enfatiza entretanto que essa obrigação é simplesmente um re sultado do direito de disposição não uma parte de sua essência Inversamente considerandose que o direito de faculdade é um direi to contra uma pessoa que tem a correspondente obrigação vale so mente contra ela e é portanto relativo não tem suite ou préférence Neste caso a sentença contra o devedor se apóia em sua obrigação relativamente ao credor e não simplesmente no direito deste último e na ausência de direito da outra parte b Dirigese uma difundida crítica à maneira na qual a doutrina predominante define o direito de disposição O argumento é de que todo ordenamento jurídico é em última análise um regramento dos atos humanos em relação recíproca e que portanto o direito de disposição não pode ser definido como um poder que se tem de forma imediata sobre um objeto 0 direito por exemplo que a propriedade confere ao proprietário é uma fa culdade daim relativamente a outras pessoas a faculdade de que outras pessoas não lhe perturbem seu gozo fatual do objeto A pro priedade consiste juridicamente apenas nas faculdades que o pro prietário pode fazer valer contra outras pessoas ou nos deveres cor respondentes por parte de outros Em conformidade com isto o direito de disposição é definido como uma obrigação universal e negativa de absterse O direito de disposição assim tanto como o direito de faculdade é a expressão de uma relação jurídica interpessoal A diferença con siste na estrutura e no conteúdo da relação jurídica Num caso a obrigação se aplica unicamente a uma ou mais pessoas determina das e seu conteúdo pode estar definido positiva ou negativamente No outro a obrigação se aplica a todos e seu conteúdo está definido negativamente como um dever de não perturbar o uso e o gozo Do caráter universal do direito de disposição concluise que vale contra todos Direito e Justiça 229 Essa crítica portanto não polemiza a distinção fundamental entre o direito de disposição e o direito de faculdade nem a idéia subjacente de uma conexão íntima entre o conteúdo de um direito e sua prote ção seu objetivo é simplesmente atingir uma formulação jurídico filosófica mais plausível da intenção da doutrina que prevalece 41 DIREITO DE DISPOSIÇÃO E DIREITO DE PRETENSÃO OU FACULDADE A distinção corrente entre o direito de disposição o direito de uso e gozo de uma coisa e o de faculdade o direito contra uma pessoa para que esta dê cumprimento a algo não apresenta dificuldades no caso dos cumprimentos genericamente determinados não é difícil distinguir entre a propriedade de uma vaca e uma faculdade contra B para que pague 500 Mas dificuldades podem muito bem surgir no caso de cumprimentos referentes a coisas individualmente determinadas Por um lado não há razão para que um direito de uso e gozo de uma coisa não possa pressupor cooperação da parte de outra pessoa e deste modo uma faculdade contra ela Tal é o caso por exemplo dos direitos limitados de disposição ou gravames incumbnances porque neste caso o proprietário tem um dever em relação ao titular do direito limitado É irrelevante que o direito de usufruto por exemplo seja definido como o uso e gozo efetivos e imediatos que tem que ser respeitados por todos inclusive o proprietário ou como a faculdade relativamente ao proprie tário para que este ceda o uso e gozo ao usufrutuário Por outro lado não há razão para que uma faculdade contra uma pessoa não obrigue o devedor segundo seu conteúdo a ceder ao credor o uso e gozo de uma coisa ou permitirlhe que continue nele com o que a faculdade aparece nessa medida como um direito de disposição Tra tase da mesma coisa vista da outra face O duplo aspecto acontece tipicamente na compra e venda de bens móveis até que a coisa seja efetivamente entregue É irrelevante dizermos que o direito do compra dor é um direito de disposição interpretando sua pretensão ou faculda de relativa à entrega da coisa como paralela à pretensão ou faculdade do proprietário a respeito da entrega do bem de sua propriedade pela pes soa que o possui apenas em caráter provisório até o momento da entre ga ou dizermos que o direito do comprador é um direito de pretensão ou faculdade contra o vendedor para a entrega da coisa 230 Alf Ross As dificuldades surgem porque a distinção é desfigurada isto é os dois conceitos não estão formados com base no mesmo fundamento de divisão O direito de disposição é um conceito com propensão sociológica define uma situação jurídica em relação ao efeito econômico a utiliza ção real de um benefício como efeito prático de uma posição jurídica O direito de pretensão ou faculdade por outro lado é um conceito puramente jurídico que expressa unicamente a posição jurídica a pretensão do credor o dever do devedor e desconsidera a vantagem econômica resultante da aplicação prática das normas a perspectiva do credor de obter o cumprimento Se o dever do devedor consiste em proporcionar ao credor o uso e gozo de uma coisa os dois conceitos se sobrepõem tornandose por conseguinte impraticável uma distinção entre eles Uma distinção com significado somente pode estar fundada logicamente em a o efeito real buscado ou b as faculdades e deve res jurídicos por meio dos quais esse efeito é realizado a Todo direito subjetivo patrimonial visa em sentido econômico a dar ao titular do direito o uso e gozo de objetos específicos pela simples razão de que só é possível o uso e gozo de objetos específi cos esta vaca estas sacas de milho estas cédulas Assim por exem plo uma faculdade genericamente determinada de receber cem sa cas de milho visa a dar ao credor em algum tempo o uso e gozo de cem sacas de milho específicas que devem ser entregues pelo deve dor O fato da faculdade ser genericamente determinada só quer di zer portanto que ainda não é possível individualizar as cem sacas Disso se conclui que com base num fundamento econômico nãd é possível traçar distinção alguma entre o direito de disposição e o direito de pretensão ou faculdade Do ponto de vista econômico to dos os direitos são direitos de disposição Contudo podese fazer uma distinção entre a Direitos cujos objetos de disposição podem ser imediatamente assinalados e que podem ser aj Direitos de uso e gozo efetivos de um objeto específico por exemplo propriedade usufruto ou Direito e Justiça 231 a2 Direitos a um uso e gozo futuros de um objeto já determina do por exemplo o direito do comprador a uma determinada vaca que tenha comprado p Direitos cujo objeto de disposição não pode ainda ser indicado por exemplo o direito de A quando B prometeulhe entregar no futu ro cem sacas de milho ou pagarlhe 500 Ou mais sumariamente a Direitos sobre ou a um objeto já determinado individualmente P Direitos a um cumprimento determinado por ora apenas sob forma genérica O objeto dos direitos expressos em p não pode ser individualiza do até ocorrerem certos eventos posteriores individualização obriga tória entrega princípio de execução Podemos é claro continuar denominando direito de disposição os expressos em a e direitos de pretensão ou faculdade os expressos em p desde que não esqueçamos que também estes últimos bus cam estabelecer um uso e gozo econômicos Descobriremos então que o direito de faculdade representa uma etapa preliminar do direito de disposição Cedo ou tarde todo direito de pretensão ou faculdade se transforma num direito de disposição Considerado puramente à luz de sua função jurídica todo direi to subjetivo consiste nas faculdades jurídicas que o titular do direito pode fazer valer por meio de processos Falamos da existência de uma faculdade ainda quando não este jam presentes todas as condições necessárias para instaurar um pro cesso civil e obter sentença Dizemos por exemplo que A tem uma faculdade com relação a B quando B prometeu pagar a A 500 no prazo de quatorze dias no prazo no qual por certo A não pode ainda iniciar processos judiciais É possível todavia indicar já desde o começo a conduta que produzirá o poder efetivo de instaurar proces sos a saber que B não pague a dívida dentro dos quatorze dias Devido a isso é também possível conferir um conteúdo definido à faculdade de A e ao dever de B Em outros casos isso não é possível Se dizemos por exemplo que o proprietário tem a faculdade que ou tros não perturbem seu uso e gozo é contudo indefinido quais atos futuros darão origem ao efetivo poder de A de instaurar processos 232 Alf Ross Talvez B se apodere da coisa furtandoa ou C a incendiará ou D a danificará passando por cima dela ou E a tomará emprestada e a perderá ou a coisa chegará acidentalmente às mãos de F que se recusará a restituíla etc Fica claro que a faculdade do proprietário é todavia totalmente indefinida tanto à pessoa contra quem uma ação poderia ser movida quanto ao ato do qual dependerá tal ação A faculdade expressa unicamente uma condição fundamental provisó ria para promover uma ação unicamente os eventos posteriores lhe conferirão um conteúdo definido Sobre essa base podemos traçar uma distinção entre faculdades exigíveis e não exigíveis As primeiras designam situações jurídicas nas quais o titular do direito pode instaurar um processo civil e obter sentença ou pode pelo menos indicar de forma definida a conduta que produzirá isso enquanto as segundas designam as situações jurídicas nas quais está presente uma condição fundamental para os processos judiciais porém até esse momento só é possível indicar de forma indefinida o curso de conduta que produzirá o efetivo poder de instaurar um processo Sobre essa base funcional podemos definir o direito de disposição dizendo que é um direito que consiste exclusivamente em faculdades não exigíveis não vencidas e o direito de pretensão ou faculdade dizendo que é um direito com faculdades exigíveis vencidas Essa definição dos direitos de disposição e dos direitos de preten são ou faculdade não coincide com a definição no sentido econômico dada em aA No sentido econômico por exemplo o direito do com prador de uma coisa específica é um direito de disposição No sentido funcional em contrapartida tratase de uma relação mista Na rela ção direta compradorvendedor há faculdades exigíveis vencidas e daí um direito de faculdade porém na medida em que a compra pode prover um fundamento para faculdades não exigíveis não vencidas contra outros no caso em que a situação jurídica tenha sido perturbada o comprador tem um direito de disposição A confusão que prevalece em casos como os descritos pode ser explicada simplesmente como o resultado de uma distinção distorcida que mescla critérios econômicos e critérios relativos a funções jurídicas 4 É claro que não é conveniente trabalhar com dois conjuntos diversos de definições mas ambas as concepções estão tão estreitamente vinculadas a esses termos que seria dificilmente satisfatório inventar uma nova terminologia Se na seqüência o contexto não o indicar indicaremos de maneira explícita em que sentido os termos são usados Direito e Justiça 233 O exame feito em a e b visa a demonstrar que a distinção entre direitos de disposição e direitos de pretensão ou faculdade em ambos os sentidos está intimamente ligada a algo dinâmico o desenvolvimento no tempo de uma situação jurídica Um direito de pretensão ou faculda de no sentido econômico se transforma num direito de disposição e um direito de disposição no sentido fUncional pode segundo as cir cunstâncias transformarse num direito de pretensão ou faculdade 42 PROTEÇÃO IN REME PROTEÇÃO IN PERSONAM Em geral a proteção in rem sugere I o o poder para obter que qualquer outro que esteja de posse da coisa sem direito a entregue 2o uma posição jurídica superior em relação aos diversos grupos de terceiros em particular os sucessores e credores do antecessor es pecialmente a massa de credores do antecessor falido Essa definição do conceito de proteção in rem oculta vários proble mas jurídicos cada um dos quais é mais amplo do que poderia pare cer à primeira vista De acordo com o que foi afirmado no parágrafo 38 é preciso dis tinguir entre proteção estática e proteção dinâmica A proteção estática é aquela constituída por remédios jurídicos com cujo auxílio o ordenamento jurídico busca influir na conduta dos seres humanos de tal sorte que um efeito econômico perseguido se realize O poder para lograr a entrega é apenas um dos seus remé dios As sanções penais a faculdade de obter compensação por perdas e danos a faculdade de obter compensação por enriqueci mento indevido e as injunções se acham também entre os remédios jurídicos com cujo auxílio o ordenamento jurídico procura assegurar a uma determinada pessoa uma certa posição fatual A proteção dinâmica por outro lado é a resultante das regras que determinam quem dentre dois ou mais sucessores em conflito tem melhor direito A sucessão ocorre sob três formas principais trans missão singular execução pelos credores e herança As condições para a sucessão válida em cada dessas três formas estão expressas em regras relativamente isoladas Se houver diversas sucessões do mesmo tipo ou de tipos diferentes a respeito do mesmo direito 234 Alf Ross então serão necessárias regras superiores para a solução desse con flito a fim de ser decidido qual dos competidores sucederá no direito Estas regras superiores são as regras de proteção dinâmica O problema da proteção dinâmica se refere portanto às relações recíprocas entre diversos sucessores e pode ser considerado não so mente a partir da posição de um sucessor por transmissão singular em relação com outros com credores ou com herdeiros como tam bém a partir da posição de um credor ou de um herdeiro Os problemas da proteção dinâmica surgem não somente no caso da sucessão de direitos de disposição como também naquele dos direitos de pretensão ou faculdade As questões são análogas em ambos os casos A distinção entre proteção in reme proteção in personam é muito mais complexa do que aquilo que se supõe usualmente A proteção qualificada sugerida pela expressão proteção in rerri quer dizer algo substancialmente diferente segundo se contemple a proteção estáti ca ou a dinâmica Os problemas resultantes em ambos os aspectos são mais amplos do que as idéias correntes pareceriam indicar de vendo ser examinados num contexto mais lato Mas há alguma jus tificação para fazer uma distinção E se houver qual é a conexão entre a distinção e o conteúdo do direito subjetivo 43 A CONEXÃO ENTRE CONTEÚDO E PROTEÇÃO a No que concerne à proteção estática podemos razoavelmente nos indagar se há uma conexão necessária ou natural entre o conteú do de um direito e sua proteção porque a proteção nesse sentido pertence ao direito subjetivo individual e é pois concebível que a proteção possa variar com o conteúdo Não há porém razões plausíveis para que os direitos de preten são ou faculdade não contem com proteção estática como contam os direitos de disposição Quando o ordenamento jurídico colima o efeito fatual de que A que tem uma faculdade contra B acabe por obter o cumprimento deste seria apenas metade da batalha se lhe fossem fornecidos somente remédios contra B e não contra outros que com sua conduta pudessem frustrar esse efeito Naturalmente a própria Direito e Justiça 235 faculdade só pode ser invocada contra o devedor O dever de um terceiro jamais pode ser o de exercer o cumprimento mas o de não interferir na relação contratual A necessidade prática de tal salva guarda é percebida com particular clareza naqueles casos em que o terceiro se encontra em situação de extinguir o direito do credor por exemplo transferindo um documento negociável com efeito extintivo ou alegando uma impossibilidade que extinga a obrigação do deve dor Também é percebida quando um terceiro sem extinguir o direito do credor lesa seus interesses fazendo com que a faculdade não possa ser adequadamente satisfeita por exemplo alegando impossi bilidade em circunstâncias tais que o devedor não é liberado A proteção estática é também concedida de fato ao credor em me dida variável nos modernos sistemas jurídicos A antiga doutrina ro mana segundo a qual os direitos de pretensão ou faculdade só podiam ser violados pelo devedor e em conseqüência não gozavam de prote ção contra os demais é uma construção puramente doutrinária deduzida da distinção entre direitos ln personam e direitos in rem5 Os remédios disponíveis contra terceiros podem consistir em es pecial como no caso dos direitos de disposição em penalidades faculdade de obter compensação por perdas e danos ou compensa ção por enriquecimento injusto conjuntamente com as injunções proibitivas ou compulsórias Existe uma faculdade análoga à faculda de de obter a entrega ou a restituição da coisa se o exercício dos direitos de pretensão ou faculdade dos outros conferir ao credor uma ação para recuperar seu crédito desqualificado pela má fé da pessoa que exerce o direito Não há portanto nenhuma conexão necessária e nem na práti ca conexão natural entre o conteúdo de um direito e sua proteção estática porém há boas razões para conferir aos direitos de pretensão ou faculdade proteção contra a interferência de terceiros com base em princípios substancialmente iguais aos princípios aplicáveis aos direitos de disposição b No que toca à proteção dinâmica por outro lado já fica excluída de entrada a possibiiidade de existir alguma conexão entre o conteú do e a proteção de sorte que certos direitos estejam dotados de 5 Ver Alf Ross Towards a ReaBstic Jurisprudence 1946 275276 236 Alf Ross proteção in rem e outros de proteção unicamente in personam Isto se deve ao fato de as regras que regem a proteção dinâmica se refe rirem à colisão entre várias sucessões cada uma das quais é válida quando considerada separadamente disto se conclui que as diferen ças na proteção dinâmica têm que estar condicionadas pelo tipo de colisão não pelo tipo de direito A idéia de que um direito é dotado te um tipo específico de proteção dinâmica é portanto errônea Com isso não queremos dizer que a distinção entre direito de dispo sição e direito de pretensão ou faculdade de um lado e as regras que regem a proteção dinâmica de outro não estão associadas por cone xão alguma Contudo essa conexão tem que ser necessariamente provocada pelos possíveis tipos de colisões Se as duas classes de direi tos forem simbolizadas por a e b então serão possíveis três tipos de colisões a saber a a b b e a b cabendo se perguntar se princípios diferentes são aplicados à proteção dinâmica nesses três casos De fato assim é o que não significa que haja alguma necessidade lógica por trás da correlação nem que as regras sobre proteção dinâ mica sejam as mesmas em todos os sistemas jurídicos Por outro lado podese dizer que em todos os modernos sistemas de direito encontramse certos pontos de vista principais em comum6 que de monstram que esses três tipos de colisões são tratados segundo dife rentes princípios o que é claro não exclui as diferenças dos deta lhes Entretanto a grande similitude no que respeita a essas caracte rísticas fundamentais autoriza que se pense numa conexão natural entre o tipo de colisão e os princípios que regem a proteção dinâmica Sob forma esquemática os princípios podem ser estabelecidos da seguinte maneira7 Colisão a a direito de disposição versus direito de disposição princípio de prioridade Essa colisão é solucionada sobre a base da prioridade O direito criado primeiramente tem preferência sobre o direito criado posterior mente Com base em fundamentos de técnica jurídica o princípio 6 Mencionei pontos que me permitissem mostrar que a distinção entre o cumprimento determinado individualmente e genericamente é uma idéia que aparece universalmente na história jurídica Ibid cap X 4 7 As expressões direito de disposição e direito de pretensão ou faculdade são tomadas em conexão com isso no seu sentido econômico isto é são definidas como direitos sobre ou em relação a um objeto especificado individual mente e direitos a um cumprimento determinado de forma genérica Direito e Justiça 237 sofre modificações através das regras relativas à inscrição ou regis tro à aquisição de boa fé extintiva e outras Colisão b br direito de pretensão ou faculdade versus direito de pretensão ou faculdade princípio de competição Se um devedor cria primeiro um direito de pretensão ou faculda de em benefício de A e depois outro em benefício de B o direito de B pode significar uma diminuição da possibilidade de A obter cumpri mento A presença de vários credores em relação ao mesmo devedor significa pelo menos um colisão potencial de interesses A posição portanto é análoga a da dupla venda e realmente frente a ela não há razão para que não se pudesse chegar a uma solução sobre a base do princípio de prioridade Os sistemas jurídicos modernos contudo apóiamse no princípio de competição Em conformidade com esse princípio os credores têm que com petir visando a obter cumprimento independentemente da data de suas pretensões de créditos Normalmente a competição é livre isto é um credor não tem proteção em relação a outro Cada um deles pode perseguir o devedor sem atender à existência dos ou tros ou de suas prioridades A competição só é restringida quando a colisão de interesses tornouse tão aguda a ponto de ser impos sível satisfazer todos os créditos das pretensões A esta altura as regras da falência são aplicadas isto é regras de competição res trita pelas quais se concede proteção mútua a todos os credores de modo que todos têm de se submeter a uma redução proporcio nal de seus créditos cumprimento de suas pretensões em rela ção ao patrimônio disponível Na prática o ordenamento jurídico altera esse princípio por meio de regras relativas às transações anuláveis no processo de falência dívidas privilegiadas etc Colisão a br direito de disposição versus direito de pretensão ou faculdade princípio de preferência O direito de disposição tem preferência em relação ao direito de pretensão ou faculdade sem que exerça influência a data de cria ção dos direitos Com base em razões técnicas o direito modifica esse princípio mediante as regras relativas à invalidação inscrição ou registro etc 238 Alf Ross Tentei demonstrar que não há dois tipos de proteção dinâmica in rem e in personam atribuídos a dois tipos de direitos mas três tipos de princípios de proteção atribuídos a três tipos de colisões É fácil compreender todavia como surgiu a idéia de dois tipos de proteção Na realidade os dos tipos de direitos não entram nos mesmos tipos de conflito Enquanto o direito de disposição a forma parte ôe a a e a b o direito de pretensão ou faculdade forma parte de b b e a b Um exame superficial poderia sugerir que estão protegidos segundo princípios diferentes diretamente deter minados pelo conteúdo do direito A posição real pode ser mostrada da seguinte maneira Proteção in rem proteção de acordo com o princípio de prioridade na colisão a a o princípio de preferência na colisão a b Proteção in personam proteção de acordo com o princípio de competição na colisão b b o princípio de preferência na colisão a b Nenhum dos dois termos é assim a expressão de um princípio homogêneo mas ambos são em parte a expressão do mesmo prin cípio o princípio de preferência visto de um ângulo diferente Desde que isso seja compreendido com clareza não haverá razão para o abandono da terminologia corrente Capítulo VIII As Divisões Fundamentais do Direito 44 DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO A tarefa da ciência do direito é expor o direito vigente Esta tare fa requer que a exposição possua um sistema que a ordem e a conexão nas quais o material é apresentado sejam dispostos segun do um plano definido O ordenamento sistemático é valioso primeiramente por razões práticas é essencial por questão de clareza a título de meio de en trever o caminho no complexo tema do direito tal como numa biblio teca os livros têm que estar organizados segundo um plano O siste ma também serve de fundamento para uma divisão do estudo do direito que pelo menos na atualidade é indispensável A organização sistemática é valiosa também por razões teóricas Se baseada em critérios relevantes ajuda o estudioso a analisar o material jurídico revela problemas e exibe semelhanças e diferenças ocultas Um esquema racional de sistematização é portanto tarefa óbvia da filosofia do direito O papel predominante desempenhado pelo jurista acadêmico e pela codificação na evolução do direito da Europa 240 Alf Ross continental em contraste com o direito anglonorteamericano explica porque o interesse nos problemas de classificação tem sido maior no continente europeu do que no mundo da língua inglesa O direito inglês diz Salmond não possui nenhum esquema tradicional e autêntico de estruturação ordenada Os expositores deste sistema têm evidenciado no geral muito pouca preocupação pelas divisões apro priadas e pela classificação e uma excessiva tolerância frente ao caos1 A tarefa de classificação entretanto não pode ser empreendida sem prévias concepções A tradição histórica existente constitui um fato de peso Seria inútil empenharse em criar uma classificação sistemática sem raízes na tradição A tarefa da filosofia do direito reduzse a revisar e aprimorar os conceitos tradicionais As tradições contudo são tão diferentes no direito da Europa continental e no direito anglonorteamericano que salvo umas poucas divisões funda mentais é impossível examinar os problemas de organização siste mática comuns a ambos A presente exposição se limita portanto a duas divisões funda mentais que aparecem em ambos os sistemas as distinções entre direito público e direito privado e entre direito substantivo e direito adjetivo Estas duas distinções são comuns a ambos os sistemas porque se fundam em critérios inerentes à própria natureza do di reito Em todo ordenamento jurídico bem desenvolvido é preciso existir uma organização da autoridade pública com a finalidade de estabelecer e aplicar o direito de forma compulsiva e em relação a isto é mister que existam regras para reger o procedimento a ser seguido na administração da justiça Tal organização e tal procedi mento suprem os conceitos de direito público e de direito processual Neste parágrafo examinaremos a distinção entre direito público e direito privado e no seguinte a distinção entre direito substantivo e direito adjetivo Como ordem sócioinstitucional para a aplicação da força pará grafos 7 e 11 o direito pressupõe um conjunto de autoridades públi cas fato que supre a base para uma definição racional do conceito de direito público 1 John Salmond Jurisprudence 10 ed 1947 505 Na terminologia mais adotada no Brasil o direito substantivo também é conhecido como direito material e o direito adjetivo é mais conhecido como direito processual W T Direito e Justiça 241 Autoridade significa competência como função social a competência não é conferida à pessoa competente para a proteção de seus próprios interesses mas para a proteção dos interesses de uma comunidade O propósito social se manifesta através de restrições tanto relativas ao exercício da competência quanto relativas ao seu conteúdo Relativamente ao exercida enquanto a competência privada pode ser exercida livremente conforme agrade ao indivíduo o exercício da competência social é um dever um cargo no sentido mais lato tal como há deveres mais ou menos definidos relativos à maneira na qual se exerce a competência Esses deveres são acompanhados de sanções e de medidas de controle para a correção do exercício incor reto da competência esses deveres e esse controle não devem ser confundidos com o problema da transgressão dos limites da compe tência e a conseqüente anulabilidade parágrafo 16 Relativamente ao conteúda enquanto a competência individual é au tônoma isto é limitada ao poder de obrigar o indivíduo ou outros median te o consentimento destes a autoridade é heterônoma isto é envolve o poder de obrigar outros mesmo sem o consentimento destes Essa diferença entre a competência privada discricionária e au tônoma e a competência social obrigatória e heterônoma pode ser expressa com brevidade dizendo que a primeira é atribuída ao sujeito como indivíduo e a segunda lhe é atribuída como órgão de uma comunidade Dizse que uma autoridade é pública quando serve à comunidade soberana a que denominamos Estado e suas partes subordinadas por exemplo corpos municipais dizse que é privada a autoridade dos pais no seio da família e a dos órgãos nas sociedades privadas e associações diversas O direito público por conseguinte pode ser definido como o direi to concernente à posição jurídica das autoridades públicas sua cons tituição competência e deveres O direito público portanto consiste exclusivamente em normas de competência e em normas de conduta ligadas às mesmas isto é relativas ao exercício da competência Toda norma de competência define um ato jurídico quer dizer indica as condições para o estabelecimento do direito vigente Estas 242 Alf Ross condições podem ser divididas em três grupos os quais determinam I o o órgão competente para realizar o ato jurídico competência pessoal 2o o procedimento competência formal e 3o o conteúdo possível do ato jurídico competência material De acordo com isto o tema principal do direito público é uma exposição 1 da constituição dos órgãos do Estado 2 do procedimento pelo qual se exerce seu poder e 3 dos limites materiais de seu poder Inclui também regras para a revisão judicial se a competência for excedida anulabilidade As normas de competência são acompanhadas de normas de con duta que prescrevem aos órgãos certos deveres relativos ao exercício de sua autoridade pública por exemplo um órgão administrativo pode ser obrigado a consultar certas pessoas antes de tomar uma decisão Se a violação de tal exigência não se traduzir em anulabilidade então não haverá limitação de competência mas unicamente um dever cuja transgressão toma o órgão responsável Além dessas diretivas especiais há um critério geral a saber que toda autoridade pública deve ser exercida com espírito comunitário com base em valorações públicase imparciais o princípio de igualdade a doutrina do abuso do poder Num Estado democrático o direito público deve ser dividido em três categorias principais as quais se referem aos atos legislativos administrativos e judiciais2 A parte geral do direito público poderia versar sobre o que pode ser dito em geral a respeito de pessoas públicas o Estado e os corpos municipais e a respeito dos atos pú blicos como tais O direito relativo às autoridades públicas a organização do poder do Estado constitui um campo bem definido Assim definido o conceito de direito público adquire um claro significado Por outro lado o conceito perde coerência se for estendido a fim de incluir outros domínios do direito direito penal direito administrativo especial e direito processual que tradicionalmente são designados como direito público3 2 Para ter um quadro geral da organização do Estado e das conexões mútuas entre os diversos ramos do poder é sem dúvida conveniente seguir a tradição e reunir as regras fundamentais para a organização do Estado numa disciplina comum o direito constitucional que compreende a descrição minuciosa do ato legislativo enquanto as regras minuciosas referentes ao ato administrativo e ao ato judicial são remetidas ao direito administrativo e ao direito processual 3 As observações que se seguem estão no principal de acordo com o estudo crítico feito por Hans Kelsen em Genen Theory of Law and State 1946 201 e segs Direito e Justiça 243 Principiemos pelos direito penal O direito penal geralmente estabelece normas de conduta dirigidas às pessoas particulares Protege por exemplo a propriedade a honra a vida e a liberdade Esta proteção forma parte essencial das conseqüên cias jurídicas que constituem os correspondentes direitos à propriedade à honra à vida e à liberdade Nessa medida o direito penal é análogo ao direito dos atos ilícitos civis e a ninguém ocorreu entretanto classificar este último como direito público A única circunstância que tipicamente distingue a pena da indenização de danos e prejuízos é o fato de que a acusação por delitos é tipicamente pública isto é é uma função oficial de uma autoridade pública Nas relações jurídicas sancionadas com pe nas está em jogo um interesse público tão grande que o poder para instaurar os processos não pode ficar à discrição da vítima Mas vêse com clareza que o caráter público neste sentido do direito penal é diferente do caráter público das regras que regem a organização do poder do Estado Ademais com esse critério a força do interesse públi co todas as regras de ordem pública as não derrogáveis por acordo de partes teriam que ser consideradas regras de direito público com o que o conceito ficaria despojado de toda coerência e de toda correlação com a classificação usual dos ramos do direito Em segundo lugar existe um grande corpo de direito legislado tido geralmente como direito público e classificado como direito administra tivo especial a saber as leis que regulam o bemestar social o seguro social os impostos o trabalho a agricultura a indústria naval a indús tria pesqueira a alimentação a importação e a exportação os preços o trânsito e as estradas a moradia os serviços do corpo de bombeiros a saúde a moeda a hora oficial o sistema de pesos e medidas etc Diversas considerações confluem para que o direito administrativo es pecial seja classificado como direito público A mais importante delas é a circunstância de que numa grande medida a posição jurídica das pessoas não é aqui determinada de modo imediato pela lei normas jurídicas gerais mas sim através da intervenção de um ato adminis trativo e concreto sob a forma de permissão licença dispensa e auto rização ou proibição É assim que essas questões da vida da comunida de carregam a marca de uma sanção unilateral de direito por parte do Estado concreta e revestida de autoridade em aberta oposição às regras que nascem da autonomia dos particulares A natureza pública dessas esferas jurídicas portanto é completamente distinta da que caracteriza o direito relativo à organização das autoridades públicas 244 Alf Ross Finalmente temos o processo Exceto por aquelas partes do mes mo que concernem à organização e competência do tribunais é difícil perceber como se pode justificar a classificação do direito processual como direito público Grandes setores do direito processual por exem plo as regras relativas às provas são indiferenciáveis daquilo que é considerado direito privado A classificação como direito público do grupo de regras que regem o trâmite de uma ação ante os tribunais parece estar baseada na confusa noção de que através delas se esta belece uma relação jurídica com o Estado A situação real é que o acatamento dessas regras é uma condição adicional além dos fatos jurídicos materiais para obtenção de sentença e execução Essas regras operam de forma conjunta com as regras materiais que regem a relação jurídica subjacente e não há mais razões para classificálas como direito publico tanto quanto não há para classificar assim a relação jurídica subjacente A grande incerteza e confusão que reina nas idéias correntes acer ca do direito público se explica provavelmente pelo fato de que o conceito direito público é interpretado de forma negativa como um repositório para todo o direito qué não seja direito privado O direito privado é então caracterizado implicitamente como o direito cuja observância pode ser assegurada por meio de processos civis entre particulares Entretanto se o direito público for definido daquela ma neira ampla e negativa não constituirá como vimos uma esfera ho mogênea Inversamente se limitarmos o direito público ao direito que rege a organização e exercício da autoridade pública e definir mos o direito privado negativamente em relação a ele o conceito de direito privado perderá toda coerência e significado É possível portanto definir um conceito de direito privado e tam bém um conceito de direito público de maneira tal que cada um deles tenha um significado preciso Entretanto tomados em conjunto não são exaustivos sua relação recíproca pode ser comparada com a dos conceitos canário e elefante dentro de uma classificação zoológica Os domínios do direito designados usualmente como de direito público carecem de homogeneidade e correspondem a um grupo zoo lógico que fosse formado por todos os animais que não são canários Isto é confirmado pelo fato de que não existe e provavelmente não pode ser sequer imaginada nenhuma parte geral de direito público tomado nesse amplo sentido Direito e Justiça 245 Se com o intuito de conferir coerência aos conceitos optarmos por tomar os dois termos em seus significados admissíveis isto é direito público como o direito que se refere ao status das autoridades públicas e direito privado como o direito que pode ser assegurado por processos civis entre pessoas particulares enfrentaremos então a dificuldade de que os termos privado e públco sugerem uma divisão exaustiva que inexiste Se conservamos a terminologia e é difícil não fazêlo temos que frisar que os dois termos não implicam uma divi são fundamental em duas partes da totalidade do material do direito Em consonância com isso todas as tentativas levadas a cabo até o presente para definir a distinção entre direito público e direito privado como uma divisão fundamental têm se demonstrado insustentáveis parágrafo 46 45 O DIREITO SUBSTANTIVO E O DIREITO ADJETIVO Uma norma de competência determina um processo para estabe lecer diretivas jurídicas A norma de competência não é em si mes ma de modo imediato uma diretiva não prescreve um processo como dever É um padrão de ação num sentido diferente das normas de conduta porque se limita a indicar um padrão que tem que ser seguido para criar diretivas válidas A norma de competência não diz que a pessoa competente é obrigada a exercer sua competência As normas de competência portanto não podem ser aplicadas diretamente pelos tribunais Somente as normas de conduta podem ser aplicadas diretamente As normas de competência só podem ad quirir significado de forma indireta numa ação judicial como pressu postos para decidir se existe ou não uma norma válida de conduta Essa introdução visa a enfatizar que o que se segue referese uni camente às normas de conduta4 as únicas aplicáveis de maneira imediata pelos tribunais 4 A distinção explicada nas páginas seguintes entre direito substantivo direito de sanções e direito processual se aplica portanto a normas de conduta no âmbito do direito público e do direita não público No direito público entretanto esta técnica de apresentação não é comumente empregada As regras que regem os deveres dos minis tros sua responsabilidade e as regras processuais concernentes ao julgamento político impeachmend são todas sem exceção regras consideradas como parte do direito constitucional as regras que legem os deveres dos funcionários públicos suas responsabilidades e os regulamentos processuais ligados a uns e outras como parte do direito administrativo 0 que afirmamos portanto nas páginas seguintes visa apenas ao direito não público 246 Alf Ross No parágrafo 7 salientamos que as normas de conduta são na realidade diretivas ao juiz a respeito das condições sob as quais deve ordenar o exercício da força física contra uma pessoa A norma jurídica real por exemplo a contida no parágrafo 62 do Uniform Negotiabie Instruments Act é uma diretiva ao juiz para que ordene o emprego da força contra a pessoa que aceitou uma letra de câm bio e não a paga A aparente diretiva ao aceitante que prescreve pagar a letra no dia do vencimento é apenas um reflexo da diretiva ao juiz combinada a uma exortação ideológica ao sentimento que o cidadão tem em relação ao direito e a justiça O parágrafo 62 todavia é somente um fragmento de uma nor ma de conduta A diretiva completa referente ao emprego da força pelo juiz é na realidade mais complicada do que o que aparece nessa seção Em primeiro lugar as condições para a sentença con tra o aceitante não estão expressas integralmente com a indicação de uma certa conduta por parte dele aceitação mais não pagamen to no dia do vencimento Requerse complementarmente que o beneficiário da letra mova um processo contra o aceitante no curso do qual deverá provar de maneira específica seu título e o fato de que a letra foi apresentada infrutiferamente para pagamento Em segundo lugar são requeridas outras regras que determinem o tipo de medidas de força a serem aplicadas quando as condições são satisfeitas isto é regras específicas adicionais acerca de como deve ser a sentença e como pode ser executada No caso que menciona mos esses problemas são simples Entretanto em outros casos nos quais o direito alude de forma semelhante ao dever de uma pes soa de seguir uma certa conduta são aplicadas regras diferentes no tocante ao conteúdo da sentença e sua execução Isto pode ser observado com maior clareza se alguém comparar os casos nos quais uma pessoa se acha obrigada por exemplo a pagar uma soma em dinheiro a entregar cem sacos de farinha a entregar a vaca Daisy a pintar um retrato a permanecer fiel ao seu cônjuge Segundo as circunstâncias a sentença pode condenar ao cumpri mento da obrigação ou consistir em uma injunção proibitiva ou condenar a uma pena ou ao pagamento indenizatório por danos e prejuízos as regras específicas que regem a execução da sentença variando em conformidade Direito e Justiça 247 Isso mostra com clareza que se tivéssemos que apresentar uma norma de conduta isolada na sua totalidade significaria uma tarefa enormemente complicada Contudo as condições que regem a pro moção de uma ação prova e outras medidas processuais conjun tamente com as regras referentes ao conteúdo da sentença e a sua execução são em larga medida as mesmas para as diversas nor mas de conduta dentro de certos grupos conseqüentemente a norma de conduta completa foi dividida em fragmentos e os frag mentos similares reestruturados para o seu tratamento em discipli nas independentes Isto resulta em grandes vantagens pois repre senta economia na exposição É possível descrever a divisão feita aproximadamente assim numa parte se estabelece o que alguém pode e o que não pode fazer numa segunda parte são enunciadas as sanções jurídicas resultantes se alguém age contrariamente àqueles preceitos e numa terceira parte prescrevese o procedimento a ser seguido pelos tribunais para impor as sanções Nas páginas seguintes descreveremos a divisão com maior precisão Não é realizada de modo idêntico em todos os campos do direito podendo variar segundo as características particulares de cada domínio ou segundo os acasos das tradições Em largas pinceladas eis o esquema que se segue I o Numa parte conhecida como direito substantivo ou primário descrevese uma certa conduta objetiva como condição necessária mas insuficiente para uma sanção Esta condição é enunciada comumente5 de forma indireta caracterizando certa conduta como um dever o que implica que a conduta oposta é condição necessária mas insuficiente de uma sanção Uma regra de direito substantivo é só um fragmento de uma regra de conduta Até agora desconhecemos quais outras condições são exigidas para a sentença e a natureza da sanção aplicável a uma pessoa que se comporta de modo contrário ao direito substantivo A despeito disso a exposição do direito substantivo é importante Em bora não saibamos o que ocorre em caso de transgressão sabemos que quem não transgride essas regras está seguro sua conduta não dará margem a sanções Se a sanção não é experimentada como uma reprovação por parte da sociedade a terminologia que alude a deveres 248 Alf Ross 2o Numa segunda parte que podemos chamar de direito das sanções ou direito secundário são enunciadas a as diversas san ções aplicáveis a uma pessoa que tenha violado o direito substantivo e b as condições mais precisas em acréscimo ao curso objetivo de conduta sob as quais as diversas sanções podem ser aplicadas O direito dos atos ilícitos civis por exemplo supõe principalmente re gras primárias sobre deveres e suas correspondentes transgressões determinadas entre outras coisas pelas regras que regem a distri buição da propriedade e sobre esta base estabelece as condições restantes para responsabilidade culpa capacidade mental etc e as regras complementares que determinam quais são as conseqüên cias do ato ilícito pelo que se responde etc Algo semelhante ocorre em parte no direito penal mensrea etc Essa distinção entre direito substantivo e direito das sanções é todavia flutuante Ademais nem sempre realizada Freqüentemente determinase diretamente isto é sem nenhuma norma antecedente que estabeleça um dever que certas ações acarretarão danos e prejuízos ou a aplicação de uma pena Por exemplo os artigos do Código Penal não são normas acessórias de regras substantivas enun ciadas em outro lugar À exceção das disposições do Código Penal que estabelecem uma pena para o homicídio não há nenhuma regra primária que nos diga que não devemos cometer homicídio A sanção que assume a forma de uma condenação a ser cumprida especificamente ou uma injunção que proíbe fazer algo não é trata da tradicionalmente como parte de um campo do direito onde ocor ram sanções desse tipo como campo paralelo ao domínio da respon sabilidade por atos ilícitos civis ou ao do direito penal mas sim é tratada em associação com o direito dos contratos Em resumo a distinção entre o direito substantivo e o direito das sanções não é respeitada de maneira coerente o que digase de passagem seria na realidade pouco desejável Isto elucida porque é comum não distinguirse entre o direito substantivo e o direito das sanções o direito da responsabilidade por atos ilícitos civis e o direito penal estão incluídos no direito substantivo 3o Numa terceira parte finalmente conhecida como direito proces sual ou terciário são consideradas as condições complementares à parte as circunstâncias que gravitam em torno da pessoa responsável Direito e Justiça 249 a serem satisfeitas para que se possa ditar e executar a sentença Essas condições se referem ao procedimento que precisa ser seguido para determinar a responsabilidade e tornála efetiva cabendo men cionar em especial as regras que regem a instauração de uma ação a prova e o manejo do caso ante os tribunais As regras de processo são consideradas às vezes como subsidiá rias no sentido de que seu propósito é servir de ferramenta ao direito substantivo isto é provocar o efeito latente de que os seres huma nos se comportem de forma lícita e o efeito agudo de que as sanções sejam aplicadas aos transgressores Este modo de ver não é incorre to a menos que seja associado à idéia de que o direito substantivo é primário e independente do direito processual no sentido de que por meio da legislação é possível criar um direito substantivo em harmo nia com os fins sociais desejados e sem levar em conta o direito processual Este ponto de vista não é correto porque ao criar o direito substantivo não se pode ignorar a questão de saber em que medida é tecnicamente possível pôlo em prática mediante processo legal considerações de técnica jurídica A apreciação da política jurídica deve portanto voltarse para a investigação de como mediante sua interação o direito substantivo e o processual podem melhor servir às metas sociais O pensamento políticojurídico corrente está de acor do com essa idéia 46 DISCUSSÃO A despeito da crítica de Hans Kelsen6 a qual corresponde aproxi madamente à opinião exposta no parágrafo 44 a distinção entre di reito público e direito privado é ainda o principal esteio da classifica ção sistemática jurídica mesmo havendo ampla divergência sobre a maneira de realizar a divisão e sobre sua importância As muitas e variadas teorias a respeito do tema podem ser agru padas em duas teorias principais designadas comumente como teo ria dos interesses e teoria dos sujeitos Segundo a teoria dos interesses a diferença maior entre o direito privado e o público tem sua raiz no propósito das normas jurídicas 6 Ver General Theory of Law and State 1946201 e segs 250 Alf Ross vale dizer os interesses humanos que elas visam a proteger O direito público em conformidade com isso é definido como a parte do direi to determinada com considerações de interesse público pelo interes se da comunidade enquanto o direito privado é o direito estabelecido para a proteção dos interesses privados dos indivíduos Esta teoria precisa ser rejeitada Além das dificuldades para definir com precisão o que se quer dizer com interesse privado e público os defensores da teoria retornam aqui aos termos que devem ser defini dos é impossível no direito privado ignorar aqueles interesses que em geral são considerados como públicos ou inversamente no di reito público os interesses privados O direito de propriedade individual sempre foi considerado como eminentemente privado Entretanto todos se dão conta hoje em dia que o direito de propriedade não é conferido ao indivíduo mera mente para a satisfação de seus interesses individuais mas que está submetido em grande medida a condições e restrições impostas com propósitos sociais Todas as normas de ordem pública isto é as nor mas que não podem ser derrogadas por acordo de partes são da mesma maneira a expressão do que se chama de um interesse pú blico Além disso basta pensar nos muitos casos no direito considera do privado em que uma disposição se baseia numa consideração ge ral para o bem da comunidade O conteúdo do ordenamento jurídico como um todo e sua preservação é uma questão pública da mais elevada importância Inversamente quando a legislação social que é classificada como de direito público autoriza a ajuda a certas pes soas não se pode negar que esse preceito foi sancionado primordial mente para satisfazer interesses individuais Em resumo podese dizer que não é possível dividir o direito em duas partes segundo seus propósitos o direito protegendo primordial mente interesses privados ou públicos porque estes não são propó sitos opostos coordenados do direito mas somente duas maneiras diferentes de olhar a mesma coisa Considerada como uma disposi ção geral cada parte do direito tanto as regras referentes à proprie dade como a legislação social está baseada num interesse público Contudo nos seus detalhes toda disposição geral tem que se tradu zir em direitos e deveres individuais Considerada portanto do ponto de vista das conseqüências jurídicas específicas cada parte do direito tanto a legislação social como o direito de propriedade ocupase assim de interesses individuais Direito e Justiça 251 Segundo a teoria dos sujeitos o direito público e o direito privado distinguemse pelos sujeitos das relações jurídicas O direito privado de acordo com essa teoria referese àquelas relações jurídicas nas quais ambas as partes são pessoas privadas o direito público àquelas nas quais pelo menos uma das partes é uma pessoa pública isto é o Estado e suas partes subordinadas Aqui todavia tropeçamos com a dificuldade de que o Estado como a pessoa privada pode celebrar contratos de compra e venda alu guel etc e que estas relações jurídicas são julgadas segundo as regras do direito privado Como resposta a esta objeção os representantes da teoria dos sujeitos definem o direito público como o que se refere unicamente às relações jurídicas nas quais as partes não se encontram num mes mo plano e que são julgadas portanto segundo regras que diferem em princípio das regras do direito privado A idéia entretanto de que o direito público se refere às relações jurídicas entre as autoridades públicas e os cidadãos é insustentável Em que sentido as regras que regem a legislatura referemse a uma relação jurídica com cidadãos E o direito penal em que se diferencia do direito da responsabilidade por atos ilícitos civis unicamente pela acusação pública E as regras relativas à prova e o peso desta Tentei mostrar que em várias partes do chamado direito público seu caráter como tal é na realidade sugerido por diversas características individuais A idéia de uma relação jurídica cesiguatem valor naqueles casos do chamado direito administrativo especial nos quais a posição jurídica concreta dos cidadãos pressupõe um ato administrativo intermediário À parte destes não existem fundamentos razoáveis para essa idéia Gresham Water Service Project Water Main and Water Service Replacement Progress Update Work completed this week included the start of excavation work on 5th Avenue and the replacement of the water main underneath 8th Avenue near Taft Street This work is preparing us for the start of water service line replacement next week connecting properties to the newly installed water main Work hours this week are 7 am to 7 pm At the end of the week the contractor will begin inspecting the existing water services on 8th Avenue between Taft Street and East 6th Avenue This work will require the contractor to dig near the street and sidewalk to access the water service lines Please watch for the locations marked by painted flags andor paint on the sidewalks and street The contractor will provide advance notice before starting this work CAPÍTULO IX Os Fatos Operativos 47 TERMINOLOGIA E DISTINÇÕES Tal como assinalamos no parágrafo 35 uma diretiva jurídica pode ser expressa na fórmula Se F então C nas qual F designa os fatos e C a conseqüência jurídica que indica como deve julgar o juiz Isto significa que toda aplicação do direito tem como fundamento fatos condicionantes cuja existência o juiz considera provada1 O conteúdo das normas jurídicas aplicadas de termina quais são os fatos relevantes para a decisão Os fatos relevantes para a decisão são denominados fatos operativos Em cada caso de administração de justiça há muitos fatos operativos mas alguns deles ocupam uma posição especial Num caso de homicídio não é relevante apenas o ato do homicídio Muitas outras circunstâncias acompanhantes terão que ser consideradas por exemplo possíveis fundamentos especiais para a isenção de respon sabilidade ou para a não aplicação ou redução da pena Do mesmo 1 Não pode haver conseqüências jurídicas sem um fato condicionante não há direitos conferidos diretamente pelas normas do direito objetivo Alguns direitos surgem ex lege diz G W Paton em A Textbook of Jurisprudence 11946 seção 60 no sentido de que são conferidos diretamente pelas normas do direito objetivo como quando uma lei confere ao Sunshine Trust o monopólio da venda de petróleo Isto não é correto 0 fato condicionante neste caso é a existência dessa companhia em particular na ocasião em que a lei entrou em vigência 254 Alf Ross modo quando se trata de fazer cumprir um contrato o fato de se ter celebrado o contrato não é o único importante também é preciso to mar em consideração outras circunstâncias decisivas para a validade da promessa tais como a menoridade o erro o dolo a coação etc Contudo tanto o ato do homicídio como a promessa ocupam uma posição especial São os fatos que fundamentam o efeito jurídico espe cífico em questão enquanto as circunstâncias acompanhantes se limi tam a condicionar modificar ou excluir a aplicação do efeito jurídico Esses exemplos mostram que os fatos operativos podem ser espe cificamente relevantes criadores ou meramente condicionantes Comumente um fato criador não é em si mesmo suficiente para produzir sua conseqüência jurídica e portanto um certo fato criador não pode ser definido como o fato que efetivamente produz um efeito jurídico específico Se por exemplo fôssemos definir uma promessa como uma declaração que obriga o promitente em conformidade com o conteúdo da declaração excluiríamos a possibilidade de promessas inválidas nossa definição confundiria na realidade a própria pro messa e as circunstâncias condicionantes Um fato criador específico deve ser definido como aquele que por regra geral isto é a menos que existam fundamentos especiais de exclusão produz o efeito jurí dico específico O direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias imagináveis sejam fatos operativos sempre que possam ser descri tas em termos da linguagem cotidiana Tentar uma classificação sis temática careceria de significação Mencionaremos aqui apenas algu mas distinções e pontos de vista relevantes Os fatos operativos são definidos usualmente em termos gerais isto é mediante critérios conceituais abstratos Às vezes são definidos em termos individuais isto é pelo nome nomes de pessoas ou de lugares ou mediante algum outro critério de individualização As individualizações pelo lu gar são mais freqüentes neste país em Washington As individualizações pela pessoa são raras Alguns fatos operativos são descritos como condições estado de coisas que incluem qualidades de pessoas ou de coisas enquanto outros são descritos como acontecimentos quer dizer como mudan ças numa condição existente Uma condição pode ser definida em relação a um ponto no tempo por exemplo o estado mental do Direito e Justiça 255 criminoso no momento do crime ou a um período de tempo por exemplo a residência permanente no país ou a posse de um objeto durante muitos anos As referências particulares a uma condição sempre podem ser reduzidas a referências particulares a aconteci mentos isto é ao acontecimento que estabelece a condição e ao acontecimento que lhe dá o desfecho A afirmação de que uma pes soa tem 25 anos pode ser reduzida ao fato de que nasceu há 25 anos mais o fato negativo de que não morreu Estas circunstâncias são importantes para saber se uma lei tem efeito retroativo Alguns fatos operativos são puramente fatuais por exemplo o nascimento a morte um incêndio uma colisão em alto mar outros estão juridicamente condicionados o que significa que são definidos em relação ao direito No parágrafo 35 dissemos que a caracterização de uma pessoa como casada ou como proprietária faz referência a certos fatos celebração de um casamento compra ou outra aquisi ção da propriedade que estão definidos juridicamente como produ tores dos efeitos jurídicos que constituem casamento e propriedade Tecnicamente isto significa que a regra jurídica RI não descreve seus fatos operativos de forma direta mas por referência às circunstâncias que são operativas no tocante a outras regras jurídicas R2 R3 e assim sucessivamente Uma lei tributária por exemplo cuja aplicabilidade do gravame dependesse do contribuinte ser casado poderia em lugar disso mencionar diretamente aqueles fatos que segundo as normas que regem a celebração e a dissolução do casa mento permitem decidir se há ou não casamento Esta técnica de formulação é amplamente usada Aparece em todos aqueles casos em que a linguagem jurídica se vale ao descrever os fatos operativos de termos tais como credor devedor credor hipotecário nacionalida de compra e venda transferência e expressões semelhantes O mes mo ocorre quando um termo faz referência não a uma regra jurídica formal mas a um padrão jurídico Dizer que uma pessoa agiu com negligência por exemplo não é expressar um enunciado puramente fatual mas sim aludir a um padrão pressuposto no que tange à con duta que se pode exigir de um ser humano razoável na situação dada A distinção entre fatos operativos puramente fatuais e fatos operativos jurídicos condicionados é importante para a doutrina dos precedentes e para interpretar a distinção entre fáctume jus na qual a legislação ocasionalmente se apóia 256 Alf Ross No âmbito dos fatos operativos que consistem em ocorrências é importante distinguir entre eventos e atos visto que somente os últimos suscitam os problemas relativos à capacidade mental mens rea culpa e outras circunstâncias psicológicas que condicionam a conseqüência jurídica Dentro da categoria dos atos podese distinguir ademais entre as ações fatuais e os atos jurídicos Estes também denominados disposições consistem em comunicações lingüísticas cujo efeito jurí dico está determinado pelo conteúdo da própria comunicação e que são por isso instrumentos adequados à atividade humana conscien te dirigida para a criação do novo direito Todo ato jurídico disposição emana de uma competência potestade parágrafo 33 Há contudo uma profunda diferença entre a competência potestade das autoridades públicas a qual existe para a proteção dos interesses da comunidade e é baseada na idéia de autoridade e aquela das pessoas particulares a qual existe para a proteção dos interesses privados e é baseada na idéia de autonomia parágrafo 44 De nada serve portanto dispor todos os atos jurídicos numa categoria É necessário distinguir entre o ato ju rídico público e a disposição privada Os atos jurídicos públicos se subdividem em atos legislativos administrativos e judiciais Estes atos por sua vez carecem de elementos em comum suficientes para justi ficar que os tratemos sob um rótulo único e portanto são examina dos nas respectivas partes do direito público É por tudo isso que nos parágrafos 48 e 49 nos restringiremos à disposição privada 48 A DISPOSIÇÃO PRIVADA A disposição privada é tradicionalmente definida com certas varia ções como a declaração de vontade privada que tem efeitos jurídicos em conformidade com seu conteúdo definição que é inadequada em vários aspectos I o No parágrafo anterior afirmouse que por ação das circunstân cias condicionantes nenhum ato específico de criação pode ser defi nido como produtor do efeito jurídico específico Conseqüentemente é preciso modificar a definição afirmando que a declaração produz como regra geral e a menos que existam razões especiais de invalidade o efeito jurídico específico Direito e Justiça 257 2o O efeito jurídico segundo a definição deve preservar a confor midade com o conteúdo da declaração o que pode ser correto por exemplo a respeito de um contrato que rege detalhadamente as rela ções jurídicas das partes porém o é menos com respeito a outras situações A maior parte dos acordos por exemplo os contratos usuais relativos a compras fornecem apenas o esquema ou esqueleto estri tamente necessário da relação jurídica que deve ser suplementado com a matéria contida nas regras jurídicas gerais O conteúdo da dis posição unicamente determina o efeito jurídico quanto a certas carac terísticas básicas O mesmo ocorre e ainda num maior grau com aquelas declarações mais truncadas que têm o caráter de fórmulas estereotipadas cujo efeito jurídico é inteiramente padronizado na le gislação Assim por exemplo com os préavisos ou notificações reci bos certos atos processuais etc Nestes casos o ordenamento jurídico coloca uma espécie de teclado à disposição dos particulares Uma pes soa pode escolher acionar uma tecla ou não Nisto reside a autonomia Entretanto o efeito jurídico produzido é estereotipado e determinado pelo próprio ordenamento jurídico Cabese indagar se tais declara ções truncadas não deveriam ser excluídas do conceito de disposição Todavia visto que funcionam de maneira idêntica às comunicações mais articuladas como instrumentos para a criação autônoma de rela ções jurídicas e visto que juridicamente são em geral julgadas pelas mesmas regras quanto a sua validade e outras questões parece razoá vel incluílas no conceito de disposição Porém então fazse necessá rio mudar a definição O efeito jurídico específico não deve ser definido como um efeito jurídico de conformidade com o conteúdo da declara ção mas como um efeito jurídico tipicamente autônomo isto é um efeito jurídico que o autor da disposição deseja produzir como parte integrante de sua criação autônoma de relações jurídicas 3o O fato operativo que normalmente produz o efeito jurídico específico é definido como declaração de vontade o que é uma ex pressão sumamente obscura Em primeiro lugar não é claro o que se quer dizer nesse contexto com a palavra declaração Pode ser entendida de duas maneiras como comunicação ou informação acerca de um fato neste caso a vontade da pessoa que a faz ou como expressão espontânea direta de um estado de espírito de caráter emocionalvolitivo da pessoa que a faz por exemplo uma exclamação ou uma ordem Nenhum destes dois significados entretanto parece correto em nosso caso 258 Alf Ross A primeira possibilidade claramente tem que ser rejeitada Uma pro messa não é uma comunicação que informa sobre algo A pessoa que promete à outra pagarlhe 500 em Io de janeiro não tem a intenção de informar a respeito de seu real estado de espírito e tampouco pretende fazer uma previsão do que ocorrerá na oportunidade indicada Se esta fosse a intenção seria possível caracterizar a promessa de modo idên tico a toda asserção como verdadeira ou falsa Por outro lado o ordenamento jurídico não lida com as promessas como comunicações A segunda possibilidade tampouco é satisfatória Pode existir por certo expressão direta de emoção se a pessoa que faz a promessa jura ao mesmo tempo com profundo sentimento que cumprirá o prometido Contudo isto não é típico Uma pessoa que compra cin qüenta centavos de cenouras não revela sentimento algum Que se acresça que é obscuro que vontade é essa comunicada na disposição Na promessa esta vontade pode ser razoavelmente entendi da como uma intenção com respeito à conduta futura de seu autor Mas o que dizer de um encargo2 uma disposição que obrigue ao destinatá rio Que significa que é minha vontade outra pessoa agir de uma certa maneira Minhas intenções só podem estar dirigidas à minha própria conduta e às conseqüências causadas por ela Por conseguinte somente posso querer a conduta de outra pessoa na medida em que estou em situação de provocar essa conduta mediante meus próprios atos Agora se o encargo por razões alheias ao meu controle é capaz de motivar a outra pessoa então nessa medida posso querer sua ação tal como posso querer sua morte disparandolhe um tiro com uma pistola Po rém por esta razão o encargo é tanto uma declaração de vontade como o é o disparo de pistola Constitui questão diferente em ambos os casos ser possível inferir de minha conduta que eu tenha querido um resultado específico cumprido por minha própria ação O fato nesta matéria é que nem a vontade nem a declaração de vontade desempenham papel algum numa descrição psicológica do que ocorre quando se faz uma disposição À semelhança da teoria geral de que o direito vigente é a expressão da vontade do Estado3 a teoria da disposição como declaração de vontade se funda em idéias puramente metafísicas que atribuem à vontade um poder criador 2 Ver parágrafo 49 nota 4 3 Cf Karl Olivecrona Law as Fact 19391 22 e segs Direito e Justiça 259 mágico Da mesma maneira que a palavra criou a luz assim a vonta de cria o direito isto é direitos subjetivos e deveres considerados como substâncias espirituais A terminologia em voga não é simplesmente uma relíquia terminológica de épocas passadas Gerou também postulados dogmáticos e teorias equívocas para a solução de problemas jurídicos práticos A doutrina da vontadeá perdeu valor para explicar a força obrigatória da promessa e solucionar o problema do erro Contudo no que respeita ao critério para distinguir entre as declarações obrigatórias e as meras comunicações seguimos lidando com a obstinada idéia de que o fator decisivo é se houve ou não uma expressão de vontade A vontade desempenha certamente um papel na criação das dis posições jurídicas mas o faz de maneira diferente à proposta pela doutrina da disposição como declaração de vontade Como ocorre no caso de outras ações humanas por exemplo o homicídio para decidir o caso é importante saber se o ato foi realizado ou não com vontade e intenção Normalmente uma pessoa que leva a cabo uma disposição por exemplo um acordo o faz com vontade no sentido de que é sua vontade celebrar o acordo e produzir os efeitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico Se é insana ou não compreende o conteúdo do ato são suscitados problemas referentes à validade da disposição A vontade da pessoa que realiza a disposição e suas idéias acerca dela se contam certamente entre os fatos operativos condicionantes Mas qual é então o conteúdo e o significado da disposição se não é uma declaração de vontade Tem significado representativo ou expressi vo É uma asserção uma exclamação ou uma diretiva parágrafo 2 Já vimos que a disposição não pode ser interpretada como uma asserção do estado psicológico da pessoa que a formula de sua von tade Claramente tampouco é uma profecia uma previsão do que ocorrerá no futuro E tampouco ainda é uma exclamação É uma diretiva Se estudarmos um contrato completo essa possibi lidade não parecerá excluída Porque aqui encontramos expressas nas modalidades correntes da linguagem jurídica faculdade dever poder sujeição padrões de ação que podem servir de guia quando houver necessidade tanto às partes envolvidas quanto ao juiz O significado de diretiva todavia depende da existência do ordenamento jurídico da regra do direito vigente que confere às disposições privadas sua 260 Alf Ross força obrigatória isto é que motiva o juiz a elegêlas como base para suas decisões Abstraída disto a declaração dispositiva é simples mente uma fórmula diretiva uma declaração de fantasia de natureza idêntica a um projeto de lei ou a sentença que posso escrever sobre um pedaço de papel sem pretender que se trate de uma asserção Se considerarmos por um momento as declarações dispositivas truncadasou a fórmula eu prometo a situação se tornará ainda mais clara Se se convencionou que para ter acesso a um nightcM privado é mister expressar uma palavra sem significado esta palavra em si conti nuará sem significado ainda quando por convenção funcione como uma diretiva ao porteiro A situação é exatamente idêntica ao formular uma promessa Em si mesma abstraída do ordenamento jurídico a expres são eu prometo carece de significado Teria o mesmo efeito dizer abracadabra Entretanto em virtude do efeito que o ordenamento jurídi co vincula à fórmula esta funciona como uma diretiva ao juiz e pode ser usada pelos particulares para o exercício de sua autonomia O conhecimento de que a declaração dispositiva não é em si mes ma a expressão de uma vontade é importante no tratamento dos casos limites entre as disposições obrigatórias e as declarações não obrigatórias É difícil amiúde traçar essa linha Assomam problemas com comunicações diversas sob forma de notificações propostas em particular relativamente à apresentação de uma oferta pedidos negociações que precedem um acordo definitivo rascunhos e esbo ços Em tais casos pode haver dúvidas sobre se a comunicação é uma declaração não obrigatória ou uma disposição obrigatória No tratamento desses problemas tem sido costume perguntarse se a comunicação expressa uma intenção da parte da pessoa que a faz uma vontade ou resolução de obrigarse Isso é colocar a carroça na frente dos bois Uma promessa não é em si mesma a expressão de nenhuma intenção vontade ou resolu ção É somente porque o ordenamento jurídico lhe confere força obri gatória que podemos normalmente supor que uma pessoa que usa esse instrumento o faz porque deseja o efeito jurídico atribuído a uma promessa tal como se pode supor que uma pessoa que dispara um revólver contra outra o faz com a intenção de tirarlhe a vida A situação portanto é a oposta daquela geralmente aceita se uma declaração é convencionalmente considerada obrigatória podemos normalmente supor que indica uma intenção dispositiva Direito e Justiça 261 É necessário portanto traçar a linha de uma maneira razoável se gundo as exigências da conveniência e os pontos de vista convencionais Esta abordagem vêse confirmada pela maneira em que de fato traça se a linha divisória Aceitase por exemplo que as listas de preços am plamente distribuídas só representam um convite a se fazer uma oferta enquanto a exibição numa vitrine de mercadorias com preços é uma oferta de venda de caráter obrigatório Se esta regra não for conhecida será impossível concluir por análise psicológica que uma comunicação se apóia na vontade de obrigar quem a faz e outra não Porém se a regra for adotada e divulgada se concluirá daí que uma exibição de mercadorias com preços pode ser tomada como indicação da vontade de obrigarse enquanto não pode ser assim interpretada a distribuição da lista de preços A situação é a mesma em outros casos limite O ponto de partida é em todos os casos o convencionalismo vigente Se este convencionalismo inexistir ou for variável e incerto então deverá ser adotada uma decisão como ponto de partida para que esse critério convencional seja criado e desenvolvido 4o Definir a disposição como uma declaração de vontade impli ca sustentar que se apresenta sob a forma de uma comunicação lingüística Esse expressão não deve ser tomada num sentido demasiado lite ral Por linguagem não entendemos aqui unicamente as palavras con vencionais ordinárias mas também outros símbolos compreensíveis Fica claro deste modo que um gesto de cabeça pode ser tão criador como a palavra sim Cabe perguntar se avançando mais um passo estamos prontos a incluir certos atos no conceito de disposição embora não sejam co municações lingüísticas Nada impede é claro que o ordenamento jurídico atribua a certos atos os mesmos efeitos jurídicos autônomos típicos atribuídos às declarações dispositivas Numa certa medida isso ocorre Se por exemplo uma pessoa se apropria de um livro que lhe foi enviado para exame ou de uma caixa de charutos que se encontra sobre o balcão de uma loja está obrigada a pagar o preço de venda das coisas e não somente indenização por danos e prejuí zos A apropriação é considerada como uma disposição e não como um ilícito civil extracontratual O mesmo ocorre com a passividade em certos casos especialmente o não registro de um protesto e com certas condutas positivas 262 Alf Ross Pelas mesmas razões expressas ao aludir aos casos limite entre as disposições obrigatórias e as declarações não obrigatórias não é possível determinar quais atos ou omissões devem ser tratados como disposições utilizando como critério que o ato expresse ou não uma intenção dispositiva Por exemplo é puramente convencio nal que a passividade frente à pessoa que fez uma oferta signifique aceitação em relação a ela Se é um fato estabelecido a passividade produzir os mesmos efeitos da disposição então podemos tomar a passividade como indicação de uma intenção correspondente po rém não em caso contrário No entanto como regra geral os atos desse tipo são classificados como quasecontratos semdisposições e colocados fora do concei to de disposição em sentido estrito Visto que exibem peculiaridades próprias essa classificação é a mais conveniente Se combinarmos os pontos de vista expressos de Io a 4o chegare mos à seguinte definição de disposição privada É uma manifestação que em princípio e a menos que existam razões particulares para sua invalidade produz efeitos jurídicos autônomos isto é efeitos jurídicos que o autor da disposição deseja produzir Esses efeitos são determinados de acordo com o conteúdo individual da manifestação até onde o conteúdo alcança Ultrapassado isso são determinados diretamente pelas normas gerais como efeitos padronizados complementadores do conteúdo individual Se a manifestação for uma fórmula verbal sem nenhum conteúdo dispositivo próprio o efeito jurídico será determinado inteiramente pelas normas gerais 49 PROMESSA ENCARGO4 E AUTORIZAÇÃO Colocados em relação com as duas formas principais das modali dades jurídicas o dever e o poder os subgrupos da disposição são indicados na tabela seguinte 4 0 conceito correspondente não foi elaborado na teoria jurídica anglossaxõnica e por isso não há um termo estabe cido para ele Sugerimos o emprego da palavra encargo a qual á definida na seqüência do texto Direito e Justiça 263 D isposições q u e criam para quem realiza a disposição para outros d ever p rom essa encargo p o d er autorização A promessa é a disposição que normalmente obriga a pessoa que a formula o promitente Dizer que está obrigada significa parágrafo 33 que a outra pessoa normalmente o promissário tem o poder de demandar e obter sentença que condene ao cumprimento do prometi do ou ao pagamento de indenização por danos e prejuízos por descumprimento Para falar de uma promessa obrigatória não é essen cial que exista entretanto o poder efetivo de exigir o cumprimento da promessa mediante uma demanda Uma promessa é obrigatória mes mo quando tal poder esteja condicionado por circunstâncias futuras por exemplo descumprimento dentro de um dado prazo desde que o poder não dependa da vontade do promitente A promessa é obrigató ria portanto quando se pode obter o cumprimento compulsório de forma incondicional ou quando esse cumprimento esteja sujeito a con dições independentes Concluise que a promessa não é obrigatória 1 se em razão de circunstâncias especiais ela é inválida nula ou anulá vel o que significa que a possibilidade de exigir seu cumprimento por meio da força está excluída e 2 quando é revogável o que significa que o promitente pode evitar o cumprimento compulsório Assim uma promessa válida é obrigatória a partir do momento que se torna irrevogável Se circunstâncias posteriores impedem os processos por exemplo em certas condições tornase impossível cumprir a promessa ela se torna ineficaz O cumprimento também produz o efeito de tornar a promessa ineficaz Isto pode parecer excessivo mas é simplesmente lógico É precisamente porque a pro messa produziu o efeito econômico desejado que seu efeito jurídico desaparece A promessa não chega a ser eficaz como diretiva ao juiz porque se tornou eficaz como guia para a conduta do promitente A palavra promessa não é geralmente definida tão estritamente Ordinariamente inclui todas as disposições que oneram o promitente Além das disposições pessoalmente obrigatórias já examinadas 264 Alf Ross promessa em sentido estrito o conceito compreende também as transferências isto é as disposições que transferem um direito a outra pessoa e as quitações que extinguem um direito promessas em sentido amplo Convém incluir as transferências e as quitações no conceito de promessa porque em muitos aspectos a elas são apli cadas as mesmas regras que são aplicadas às promessas em sentido estrito Por outro lado as promessas em sentido amplo diferem das promessas propriamente ditas num ponto essencial as promessas em sentido amplo não conduzem ao ato de cumprimento da parte do promitente Em função disso esses casos parecem contrários ao uso ordinário da palavra promessa Afigurase estranho por exemplo fa lar de promessa quando dou uma moeda a um mendigo ou rejeito uma oferta de compra5 Os encargos são disposições que obrigam a pessoa a quem são dirigidos ou a um terceiro ou em sentido mais amplo colocam um gravame sobre ela ao extinguir um direito que lhe fora conferido Em princípio as pessoas particulares não podem obrigar a outras pessoas por meio de encargos Fica claro que um particular não pode em princípio deter esse tipo de poder sobre outros particula res Tal poder normalmente só é conferido às autoridades públicas Um encargo portanto pressupõe um fundamento especial O fun damento do encargo imposto por A a B será amiúde B ter autoriza do a A a imposição de tal encargo A obrigação de B tem suas raízes portanto em sua própria autonomia Por exemplo a oferta do promitente coloca quem a recebe em posição de obrigar o promitente mediante a aceitação o que nessa medida é um encargo Do mes mo modo a autoridade conferida pelo principal ao seu agente é o fundamento do poder do agente de obrigar ao principal mediante disposições com terceiros O fundamento para um encargo pode ser também uma relação jurídica geral de autoridade entre A e B Assim por exemplo dentro de certos limites os pais e as autoridades escolares podem impor um encargo sobre as crianças O mesmo ocorre na relação entre empre gador e empregado 5 Pareceme que diante das razões dadas seria mais prático restringir o conceito de promessa a disposições pessoal mente obrigatõrias Direito e Justiça 265 Finalmente sem estabelecer nenhuma relação geral de autorida de o ordenamento jurídico pode conferir a uma pessoa o poder de comandar outras em certos aspectos o que é menos excepcional do que pode parecer à primeira vista Nos casos nos quais o direito quer criar um privilégio em favor de A não seria irrazoável que em lugar de conferir a A um direito exclusivo e incondicional de disposição lhe outorgasse o privilégio de excluir outras pessoas Este método é em pregado por exemplo no direito da propriedade intelectual enquanto certas reproduções não constituem uma transgressão ao direito do autor a menos que este tenha proibido de forma expressa a repro dução Do mesmo modo poderia não ser irrazoável imaginar que a passagem pela propriedade alheia só seria ilícita se o proprietário o houvesse proibido de maneira expressa Além disso os encargos se apresentam como disposições secun dárias dentro dos limites de uma relação jurídica primária Exemplos disto são o aviso de conclusão ou cancelamento e a declaração de abatimento de uma dívida As autorizações são disposições que conferem à pessoa a quem são dirigidas ou a um terceiro um poder em particular uma potestade A potestade é o poder de fazer disposições Normalmente somen te A pode autorizar a B fazer disposições que obriguem a A O exemplo mais comum é a autorização a um agente Uma trans ferência inclui normalmente a transmissão da potestade para dispor do direito Freqüentemente as disposições têm na prática um caráter com posto Assim a oferta e a transferência são ao mesmo tempo pro messa e autorização a aceitação o aviso de conclusão a declaração de abatimento de uma dívida são tanto promessas como encargos O testamento ocupa uma posição especial É bastante curioso o testamento ter sido tradicionalmente classificado como um encar go embora transfira direitos aos herdeiros e não lhes imponha obri gações exceto os encargos como condição para aquisição do direi to A opinião de que o testamento é um encargo imposto sobre as autoridades públicas ou os herdeiros universais em relação à distri buição da herança é equívoca já que o testamento transmite direta mente o direito por ocasião da morte do testador Em minha opinião o testamento é uma disposição de transferência e por isso segundo a terminologia jurídica corrente uma promessa em sentido amplo à qual se aplicam regras especiais O erro é presumivelmente motivado pelo fato de que o testamento como tal não obriga ao testador duran te sua vida Mas esta circunstância não afeta o caráter de transferên cia da disposição Simplesmente significa que com respeito a essa transferência existe uma regra especial de revogabilidade de modo que a disposição se faz obrigatória somente com a morte do disponente Neste momento obriga o seu patrimônio Em razão da posição especial que o testamento ocupa no direito é conveniente excluílo do conceito de promessa e declarálo uma dis posição sul generís 266 Alf Ross Capítulo X Algumas Características da História Do Direito Naturai1 50 CRENÇAS POPULARES GREGAS HOMERO E HESÍODO2 O nosso propósito neste capítulo não é apresentar uma história do direito natural mas simplesmente destacar algumas características principais necessárias à compreensão do direito natural de nossos dias Posta essa finalidade poderia talvez afigurarse excessivo prin cipiar pelas crenças populares gregas de em torno do ano 700 aC A justificação disto reside no fato de que a oposição entre a filosofia do direito natural e uma teoria realista do direito de fundamento socio lógico não é um contraste entre duas teorias científicas mas entre uma perspectiva em que se combinam a magia a religião e a metafísica e outra de natureza científica Para compreendêlo é necessário vol tar aos primórdios de nossa civilização e mostrar como a doutrina do direito natural através de todas as suas variações conservouse es sencialmente a mesma Sua característica principal é um modo de pensamento que em todas as suas fases mágica religiosa e filosó ficometafísica difere radicalmente do ponto de vista científico Es tendese numa linha ininterrupta desde a crença mágicoanimista do 1 Para uma história do direito natural escrita de um ponto de vista católico ortodoxo ver a obra do tomista Henri Rommen Ledroitnaturet945 Ver também W Friedmann LegalTheory 2 ed 1949 15 e segs e Julius Stone The Province andfunction of Law 194650 209 e segs 2 A exposição que fazemos neste parágrafo baseiase substancialmente no trabalho de C W Westrup Introduction to Eariy Roman Law III 1 1939 1 e segs 268 Alf Ross homem primitivo através da doutrina teológica dos grandes sistemas filosóficometafísicos3 O fator fundamental em todas as manifesta ções dessa linha de pensamento é um temor da existência e dos poderes que dominam o homem e a necessidade de buscar refúgio em algo absoluto algo que esteja acima de toda mudança e que possa oferecer paz e segurança Paz e segurança não somente diante dos poderes cósmicos da existência a incerteza da vida os infortú nios e a morte mas também como uma defesa contra as ansiedades e dúvidas da própria alma humana o temor de ser responsável pelas próprias ações O absoluto tem assim tanto natureza cósmica quanto natureza moral é simultaneamente ordem do mundo e lei moral4 Tal postura ante a vida é tipicamente infantil A história da ciência é a história da liberação do espírito humano dessas pesadas cadeias do temor Entretanto tratase de um processo ainda infindo Se por um lado a visão científica conquistou o domínio no modo de ver a natureza por outro nas questões sociais morais e jurídicas perma necemos encalhados num persistente infantilismo A filosofia do di reito natural constitui um dos seus produtos Podemos estudar melhor esse contraste seguindo o desenvolvi mento do pensamento grego desde as crenças populares primitivas que encontramos nas obras de Homero e de Hesíodo até os grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles Nesse lapso aproximado de 300 anos reside o gérmen de tudo que posteriormente irá se des dobrar de forma mais claramente diferenciada É possível seguir o desenvolvimento que vai desde uma primitiva concepção mágicomítica 3 Após a publicação original deste livro apareceu a obra de Ernst Topitsch Vom Ursprung und Ende der Metaphysik 11958 a qual fundada em amplos estudos de mitologia e filosofia sustenta muito convincentemente a opinião qus proponho aqui a saber que a filosofia do direito natural tem suas raízes numa mitologia cosmológica Desejo destacar o valor dessa notável obra 4 No tocante à filosofia como substitutivo para a religião ver Victor Kraft Einíühning in die Phüosophie 11950 16 e segs Ross como centenas de intelectuais e pensadores atuantes nos meados do século XX alimentava uma visão evolucionista linear do processo do conhecimento segundo a qual este se desenvolveu cronologicamente dentro de estágios mais ou menos precisos de teor quantitativa e qualitativamente heterogêneo ou seja os estágios mágicoreügioso miticoi filosófico metafísico e cientifico Isto foi o resultado natural embora tardio da influência quase hegemônica do positivismo e do racionalismo do século XVIII embora no século XIX figuras pouco benvindas nos círculos científi cos e acadêmicos como Carl Gustav Jung nascido em 1875 passassem a desconfiar da visão racionalista e da onipotência da ciência moderna A partir principalmente da década de 60 do século XX a visão cientificista do mito foi definitivamente abandonada por muitos estudiosos que se dedicaram a uma investigação mais profunda e menos preconceituosa da estrutura dos mitos o que pôs em xeque o simplismo da teoria evolucionista 0 Prof Ari SAIof1 desenvolve atualmente tese apresentando uma nova interpretação em torno deste tema N T Direito e Justiça 269 do direito até uma florescente atitude humanista e científica que teve sua mais notável expressão nos círculos dos sofistas durante o perío do de grandeza de Atenas no século V aC É significativo o fato desse desenvolvimento ter encontrado seu paralelo na transformação da primitiva comunidade clânica em democracia Entretanto assim como a liberdade política não pôde se conservar tampouco perdurou a li berdade de pensamento Os sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles significaram uma reação fatal Nestes dois homens todas as forças se uniram para reforçar a crença minguante no absoluto numa ordem cósmica e moral do mundo A magia primitiva e a religião foram subs tituídas pela especulação metafísica porém o espírito foi o mesmo E foi este espírito o que continuou caracterizando a posterior evolução durante um longo tempo A escolástica cristã Tomás de Aquino pôde sem dificuldade interpolar uma nova doutrina religiosa no sistema de Aristóteles Ainda hoje o timbre do tomismo caracteriza a filosofia jurídica católica Embora no mundo protestante o direito natural te nha sido descristianizado e assumido a forma de uma metafísica racionalista filosófica na sua essência permaneceu o mesmo uma crença no eterno numa validade sobrenatural absoluta A comunidade homérica século VIII aC apresentava o quadro usual de um povo agrícola primitivo em seu estágio tribal A popula ção estava dividida em muitas pequenas tribos cada uma comanda da por um chefe ou rei Contudo a autoridade do rei não abarcava tudo Sua função se limitava substancialmente a ser juiz das disputas e chefe na guerra Quanto ao mais a vida na tribo era estritamente regulada pela tradição e o costume encarnados nos tabus As idéias da tribo a respeito do direito eram mágicas e religiosas Acima dos seres humanos reinavam os deuses com Zeus no topo Mas os pró prios deuses estavam submetidos ao poder do destino Este poder cósmico que conferia a cada coisa o seu devido lote dominava igual mente a natureza e os seres humanos sendo mantido mediante cas tigos A noção de leis causais no sentido moderno da expressão não nascera ainda A necessidade que governava o universo não era cau sai mas a necessidade do destino determinada pelas noções de von tade soberana culpa e castigo Do sol se dizia que não ultrapassaria a medida de seu caminho porém se o fizesse as deusas do destino as donzelas da justiça saberiam como encontrálo5 5 Heráclito fragmento 94 em Herman Diels Die Fragmente der Vorsokratiker 5 ed 193437 270 Alf Ross Neste sistema o direito e a justiça não têm caráter moral no senti do que hoje atribuímos a essas palavras6 A decisão justa é simplesmente aquela que dá a cada um o seu devido lote em conformidade com a vontade dos deuses do destino O rei sábio e justo é aquele que recebe as revelações divinas de Zeus themistes e faz delas o fundamento de suas decisões dikê Por esta razão o rei Minos de Creta visitava secretamente Zeus a cada nove anos7 A justiça neste sentido é requisito para o bemestar e a pros peridade de um povo A insubordinação contra a ordem cósmica é objeto de castigo pelos deuses e o destino Zeus é o guardião do direi to sua filha Dlkê se senta ao lado de seu pai e o informa a respeito das transgressões dos homens e o todopoderoso Zeus os castiga Pois sobre a terra generosa que a muitos aiimenta Zeus possui três vezes dez mil vigilantes dos mortais e eles obser vam os julgamentos e as ações atrozes no seu perambular tra jados de névoa por toda a terra Através dessa hoste celestial Zeus distribui a prosperidade e a desdita aos justos e injustos Hesíodo século VII aC descreve os frutos dourados que aguar dam o povo cujo rei observa a lei dos deuses e os desastres que cairão sobre o povo se seu rei cego pela arrogância for contra a vontade dos deuses Quem em contrapartida dá julgamentos corretos aos es trangeiros e aos homens da terra e em nada se apartam do justo a estes lhes prosperam a cidade e nela florescem as pes soas reina a paz no país aquela que alimenta os jovens e Zeus que tudo vê não lhes impõe árdua guerra Nem jamais perseguirá a fome e a desgraça a homens de correta lei mas alegremente cuidarão dos campos que é tudo que lhes preocu pa Para estes produz a terra muito alimento e nas montanhas o carvalho no seu topo gera bolotas e no meio do tronco abelhas suas ovelhas lanudas caminham carregadas de to sões suas mulheres geram filhos semelhantes aos pais conti nuamente florescem em meio aos bens e em embarcações não viajam pois a terra doadora de grãos lhes produz o fruto 6 Cf Westrup Introduction to Eariy Roman Law III 1 11939 65 7 Op cit 50 77 e segs A este respeito ver Platão As Leis Livro I Clássicos Edipro 1999 W T 8 Hesíodo Os Trabalhos e os Oias versos 252 a 255 Direito e Justiça 271 Mas para aqueles que obram violência e crueldade a esses o cronida Zeus que tudo vê impõe o castigo da iei amiúde mesmo uma cidade inteira sofre com um homem mau que co mete faltas e trama atos de soberba e do céu o cronida envia grandes sofrimentos ao povo fome e peste simultaneamente de sorte que os homens perecem e suas mulheres não parem filhos e suas habitações familiares escasseiam por inteligência de Zeus olímpico Ef de novo em outra ocasião o cronida des trói o grande exército deles ou sua muralha ou faz perder seus navios no mar Essa descrição acresce apenas mais um exemplo do fato já bem conhecido na história da religião no estudo da civilização de que o poder dos chefes dos povos primitivos tem origem mágica10 É tarefa do chefe por meio de rituais mágicos em particular cantos danças e sacrifícios fazer com que chova que a terra dê frutos e que os animais se multipliquem11 Se os encantamentos não surtem efeitos e a tribo é assolada por colheitas ruins inundações e outros desastres o rei será condenado por ter perdido seu poder e executado para ser substituído por um rei novo e melhor No mundo de Homero e de Hesíodo entre tanto esses hábitos se tornaram refinados os atos mágicos através dos quais se busca o bemestar da tribo não são mais simples ritos e sacrifícios mágicos mas atos administrativos realizados pelo rei em exercício de seu poder jurisdicional Não é tanto por realizar encanta mentos dirigidos aos deuses mas sim por obedecer à vontade revela da deles por cumprir a lei cósmica que o rei traz benefícios ao seu povo Despojado de idéias metafísicas isso eqüivale simplesmente à crença de que é tarefa do rei julgar de acordo com a moralidade e costume tradicionais e que a felicidade e a prosperidade da tribo de pendem do respeito à tradição e à ordem existente Compreendese facilmente que a crença numa necessidade do des tino e no castigo pela injusta rebelião contra a ordem cósmica assu misse uma nota de ressentimento especialmente veemente e exigis se vingança contra os rebeldes numa época na qual as velhas formas 9 Hesíodo Os Trabalhos e os Dias versos 222 a 248 10 Ver Westrup op cit 31 e segs 11 Ruth Benedict Patterns of Culture Mentor Ed 1946 54 e segs e 131 e segs apresenta uma interessante descrição da magia da chuva e da agricultura entre povos primitivos da atualidade 272 Alf Ross da comunidade tribal começavam a se romper e os conflitos sociais ele vavam outras classes aos postos de direção Uma incipiente ruptura desse naipe teria ocorrido no período que vai de Homero a Hesíodo O reino homérico com seu idílio patriarcal fora substituído por uma aristo cracia de grandes senhores que lutavam entre si para alcançar a supre macia e tentavam submeter os camponeses livres O respeito pela tradi ção herdada justiça em sentido homérico minguava a violência e o perjúrio eram coisas do dia a dia Esta evolução se reflete na diferença entre Homero o trovador da corte e Hesíodo o camponês beócio Para o primeiro Zeus é o protetor e o defensor que preserva uma ordem harmoniosa enquanto para Hesíodo que está repleto de ódio e amar gura pela maldade dos tempos Zeus se tornou o grande juiz que castiga os poderosos e os injustos Enquanto Homero representa o ponto de vista das classes dominantes Hesíodo reflete a desconfiança e a animo sidade dos camponeses que só desejam viver em paz e são testemu nhas da audaz arrogância dos poderosos envolvidos em suas lutas pela supremacia em completo menoscabo pela tradicional ordem das coisas Idêntico pessimismo associado à certeza de que cedo ou tarde o castigo cairá de fato sobre os arrogantes caracteriza a Sólon por volta do ano 600 aC Com demasiada freqüência pode parecer que o homem presunçoso escapa ao seu castigo E assim Sólon enfatiza que Zeus diferentemente dos mortais não se irrita rapidamente dian te de uma ofensa contudo nenhum homem perverso pode escapar de seu olhar vigilante Um homem cumpre sua pena antes outro depois Se o culpado escapa e o destino dos deuses não cai sobre ele e não faz dele sua presa tal destino chegará com toda certeza mais tarde os inocentes são castigados por seu crime seus filhos ou os filhos de seus filhos em gerações posteriores12 Novas sublevações políticas abalaram o período que vai de Sólon a Herádito isto é por volta de 500 aC Com o crescimento das cidades e o desenvolvimento de uma nova economia se produziu o surgimento de uma classe de cidadãos que tentou arrebatar da aristocracia seus anti gos privilégios Neste período de conflito entre a aristocracia e a demo cracia aparecem os tiranos produto da necessidade de um governo forte que combatesse a nobreza proprietária da terra uma situação seme lhante ao período de poder absoluto como vínculo na evolução da aristo cracia à democracia na história política ocidental 12 Transcrito da tradução de Ivan M Linforth em Soon the Athenian 165 Direito e Justiça 273 É presumível que a experiência pessoal das mudanças políticas da época se reflita no princípio de mutação enunciado por Heráclito Até os tempos de Heráclito os filósofos haviam tentado compreender o mundo como uma coleção de coisas e descobrir seus elementos imutáveis Heráclito afirma que tudo se acha num estado de fluxo eterno o mundo é um contínuo processo de eventos não uma coleção de coisas Tudo flui não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio Ao mesmo tempo entretanto tudo a natureza e o homem está submetido a uma ordem do mundo que não foi criada pelos deuses nem pelos homens mas que sempre existiu e sempre existirá um fogo eterno avivado e arrefecido segundo um plano Foi Heráclito quem disse que o sol saberá como não ultrapassar a medida de seu caminho Essa lei cósmica é ao mesmo tempo a lei da justiça e todas as leis humanas se nutrem da única lei divina É aqui que pela primeira vez o tema do direito natural é expresso em termos filosóficos As leis humanas não são meramente arbitrárias São uma emanação de uma lei universal e são nutridas pelo mesmo poder do destino que domina tudo o que existe Tratase de uma filosofia do direito natural aristocráticoconservadora a qual num momento em que tudo que procedia do passado ameaçava desintegrar se busca segurança numa nova formulação filosófica da velha crença na conexão entre as leis humanas e as forças que regem o mundo 51 OS SOFISTAS No século V aC no período compreendido entre as guerras persas 490 a 480479 aC e a derrota de Atenas na guerra do Peloponeso 404 aC a cultura helênica atingiu seu máximo esplendor e ao mesmo tempo a democracia foi implantada com êxito na maior parte das cidadesEstados Esta realização numa época distanciada so mente por uma ou duas gerações do pensamento primitivo mágico animista que ainda predominava em Heráclito sempre causou a maior admiração nas pessoas No domínio da arte da literatura da ciência e da filosofia esse povo pouco expressivo numericamente produziu obras que se constituiriam paradigmas dos séculos vindouros Aqui nos interessa somente um aspecto dessa época culturalmente ex plosiva a abolição das crenças mágicoreligiosas o abandono da crença no absoluto e eterno em matéria de conhecimento e moral a funda mentação de um ponto de vista científico baseado na relatividade de 274 Alf Ross toda apreensão racional e a evolução de uma nova moralidade se gundo amplas linhas humanistas Tudo isto se encontra intimamente conectado entre si Os sofistas13 um grupo de professores entre os quais a figura principal foi Protágoras provocaram a transformação do pensamento vigente Eram profissionais do ensino ou seja ensinavam mediante remuneração e instruíam os cidadãos de boa posição nas habilidades oratórias e forenses importantes para todos que desejassem discur sar nas assembléias públicas ou defender um caso perante os tribu nais Poderseia quase definilos como professores particulares de retórica Logo granjearam a reputação de imorais e intelectualmente desonestos o que ainda hoje se vincula à palavra sofistica o que entretanto é um erro facilmente dissipável se atentarmos para o fato de que nosso conhecimento das doutrinas dos sofistas provém exclu sivamente das descrições dos seus adversários mais cáusticos especi almente Platão Os críticos da moral e das doutrinas absolutistas sem pre foram estigmatizados por seus opositores como imorais e perigo sos para a civilização No que diz respeito a isso os sofistas não tive ram melhor sorte que os adeptos da filosofia empirista de nossos dias os quais têm submetido nossas idéias morais a um exame crítico Protágoras ensinou skepsis skepsis no conhecimento e na moralidade resumida na fórmula o ser humano é a medida de todas as coisas14 Porém é imperioso lembrar que o conhecimento em relação ao qual Protágoras era cético era aquele que até então fora a meta dos filósofos a percepção absoluta do imutável e que a moral em relação à qual era cético era a lei absoluta a validade divina Protágoras se deu conta da inutilidade e fatuidade das ten tativas dos filósofos de conhecer a essência absoluta da existência e das coisas e ensinou que todo conhecimento reside na percepção de nossos sentidos e é por conseguinte necessariamente relativo e in dividual As coisas são tal como as vemos mas os seres humanos as 13 Para uma das melhores descrições e apreciações criticas dos sofistas ver George H Lewes History of Philosoph 3 ed 1867 105 e segs Ver particularmente os diálogos de Platão O Sofista Protágoras Gdrgias Hipias Maior Hipias Menor A República eAsleif estes dois últimos constantes nesta mesma série Clássicos Edipro Para relativa compensação dessa difundida exckisivizaçfe da visão dos sofistas convém ler a obra Lies of the Sophists de Filostrato e Eunápio ver Bibiografia IN TJ 14 Sobre a interpretação desta famosa frase veja Mario Untersteiner The Sophists 41 e segs 0 significado original de aiceiMÇ tskepsis é precisamente percepção sensorial mediante a visão o que corroborl inteiramente o parecer rossiano de que o embrião da ciência empírica se encontra junto aos sofistas N TJ Direito e Justiça 275 vêem de maneiras diferentes Mas o homem cuja mente esteja sã as vê da mesma maneira que outros que se acham na mesma condição Este é substancialmente o ponto de vista da ciência moderna a relatividade de toda ciência e sua dependência da observação através dos sentidos Protagoras é claro não conhecia o método da ciência moderna que mediante a interpretação matemática constrói um con trole intersubjetivo para elevar o conhecimento acima da experiência individual Sua doutrina portanto chegou a ser mais radicalmente cética do que o justificável Por outro lado sua filosofia contém os prolegômenos de uma fun damentação crítica da objetividade da ciência Sua alusão à concor dância entre as percepções de pessoas de mente sã pode ser enten dida como o gérmen de uma teoria da verificação A posição é a mesma no campo da moral e do direito Aqui tam bém é o ser humano a medida das coisas Não há direito universal e eterno e as leis não têm origem divina São única e exclusivamente obras do ser humano baseadas na convenção estabelecida e no po der Isto não significa que todas as leis sejam igualmente boas Aqui também é preciso que o critério seja buscado na concordância entre as pessoas de mente sã Isto conduziu Protágoras é verdade a uma postura convencional de cunho conservador em defesa da ordem existente Os sofistas mais jovens contudo souberam extrair de seu ensino o necessário para efetuar uma crítica contundente das institui ções sociais existentes Perceberam quão vazio e enganoso era atri buir divindade às leis As leis humanas são a corporificação do poder arbitrário dos governantes Todo governante produz leis que lhe são proveitosas e chama de justo aquilo que serve aos seus próprios interesses A doutrina da justiça imanente às leis não passa de uma capa astuciosa que encobre o predomínio da força15 Desta maneira os sofistas nos oferecem a primeira tentativa de formular uma teoria sociológica da relação entre o direito de um lado e o poder e o interesse do outro e do conflito entre grupos sociais16 Mas essa doutrina do caráter convencional das leis consideradas encarnações do poder não quer dizer que os sofistas identificaram em geral o direito com o poder nem quer dizer que reconheceram como 15 Tal é o cerne dos ensinamentos de Trasímaco Cálicles e Crítias Ver Untersteiner op cit 324 e segs 6 Cf K R Popper The Open Society andits Enemies 11945 149 e segs 276 Alf Ross normas para o bem unicamente aquelas que se achavam respaldadas pela força Por trás de sua crítica à ideologia da justiça encontrase uma nova concepção da vida de cunho humanista e cosmopolita unida a exigências revolucionárias extremas em prol de uma reforma da vida social e política17 Hípias ensinava que todos os homens são iguais por natureza e que somente em virtude das leis feitas pelo ser humano foram introduzidas a desigualdade e a escravidão Enquanto os gran des moralistas Platão e Aristóteles defenderam a instituição da escravi dão como fundada na natural desigualdade dos homens foram os imorais sofistas que exigiram sua abolição e ao fazêlo condenaram também a distinção tão profundamente inculcada na mentalidade grega entre gregos e bárbaros Licofronte exigiu a abolição da nobre za18 e Faléias reivindicou uma distribuição igualitária da propriedade e que as oportunidades de educação fossem colocadas à disposição de todos os cidadãos Foi inclusive expressa a idéia de que as mulheres pudessem gozar de igualdade política relativamente aos homens Todas essas reformas foram pleiteadas pelos sofistas como algo que era justo segundo a natureza physié em contraposição àquilo que é justo segundo a lei nomos Disse Antífon Pois as normas das ieis são acidentais enquanto as regras da natureza são necessárias e as normas da iei são criadas por convenção e não produzidas peia natureza as da natureza são ao contrário originárias não suscetíveis de serem convencionadas Um homem portanto que transgride regras convencionais da lei está livre de desonra e punição quando não observado por aque les que fizeram a convenção estando sujeito à desonra e à puni ção somente quando é descoberto É diferente quando se trata da transgressão às leis que são inatas na natureza Se qualquer homem violar qualquer uma dessas leis além do que seja por ela suportável as más conseqüências não serão menores se esca par inteiramente à observação ou maiores se for observado por todos os homens pois a ofensa na qual incorreu não se deve à opinião humana mas aos fatos do caso Apresento reflexões sobre estes pontos porque muito do que é certo de acordo com a lei está em conflito com a natureza e muito do que é dito 17 Op cit p 251 e segs 283 e segs 18 Op cit p 340 Direito e Justiça 277 aqui será tido como discordante com a natureza pois as partes envolvidas por isso se expõem a mais sofrimento pena do que o necessário e desfrutam de menos gozo do que poderiam ter e sofrem quando podiam evitáloP Isso introduz um tema que acompanha o curso de todo o direito natural posterior o contraste entre o direito positivo e as dadas insti tuições históricas e convenções sociais por um lado e por outro o que os filósofos do direito natural chamam de exigências da natureza que não dependem do poder arbitrário humano mas que derivam de leis cósmicas da vontade de Deus ou da natureza humana En tretanto dentro das diversas escolas de direito natural há uma clara diferença na concepção da relação mútua entre as duas esferas uma diferença que reflete a tendência política que se acha por trás da cons trução O ponto de vista predominante é o do direito natural conserva dor tal como foi representado por Heráclito o direito positivo em sua essência é uma emanação ou revelação daquilo que por natureza é eternamente válido o que lhe confere sua força obrigatória e somente isso faz da ordem institucional um ordenamento jurídico como coisa oposta ao império da força Esta escola de direito natural é chamada de conservadora porque sua função prática é suprir uma justificação para as instituições existentes por meio da santidade moral e religiosa Contrastanto com este ponto de vista encontramos a escola de direito natural que como a escola dos sofistas ou a correspondente filosofia liberal do direito natural do século XVIII é revolucionária ou evolucionista Esta escola destaca o conflito entre o direito positivo e o direito natural e é denominada revolucionária porque sua função políti ca é proporcionar uma justificação com a santidade de uma validade mais elevada para uma revolução nas condjções sociais Pode afigurarse uma inversão da postura cética de Protágoras ponto de partida dos sofistas o fato de acabarem por propor um direito natural isto é uma verdade moral E com efeito assim foi Entretanto devemos lembrar e isto por exemplo aparece na cita ção feita de Antífon que a natureza à qual os sofistas recorriam não era concebida em termos de absolutismo religioso ou metafísico Aqui também parece verdadeiro que o ser humano é a medida de to das as coisas que se referiam os sofistas às experiências fatuais 19 Antífon o sofista fragmento 4 278 Alf Ross da humanidade quanto ao prazer e à dor às necessidades fatuais e às valorações humanas Um direito natural deste tipo é essencial mente diferente do direito natural metafísico que posteriormente pre dominou e pode ser facilmente interpretado se para isto estivermos dispostos como uma primeira tentativa de realismo na política jurídica 52 ARISTÓTELES20 A filosofia dos sofistas havia feito grandes progressos para libertar o direito da tradicional concepção mágicoreligiosa Como vimos a doutrina dos sofistas continha ao menos um gérmen de uma sociologia do direito e de realismo em política jurídi ca com base no qual desenvolvimentos posteriores poderiam ter sido realizados conforme o espírito da ciência O tempo entretanto ainda não estava maduro para isso Duas das maiores mentes que a huma nidade conheceu Platão e Aristóteles se empenharam em recons truir os que os sofistas haviam derrubado a crença no absoluto e no eterno21 E foram estes dois homens mais especialmente Aristóteles no que concerne à filosofia do direito que decidiram o caráter de seu desenvolvimento posterior até nossos dias É claro que eles não podiam reviver a crença nos deuses olímpicos e nas leis cósmicas do destino A magia e a mitologia haviam tido seus dias de esplendor e agora pertenciam ao passado O lugar da magia e da religião foi ocupado agora pela metafísica filosófica que tinha essencialmente a mesma origem mas que empregava um maior refinamento Os poemas e os mitos narrativos foram substituí dos por especulações filosóficometafísicas isto é por uma atividade intelectual que em sua construção lógica e sistemática imita o co nhecimento científico rigoroso mas que na realidade é uma nova mitologia Assim é porque sua função como a da mitologia e a da religião consiste em proporcionar paz e fortaleza por meio da cren ça no absoluto E também identicamente àquelas é copiosa com 20 A exposição deste parágrafo é num esquema mais amplo o cerne da interpretação de Aristóteles que desenvolvi mais minuciosamente em Kritik der sogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VI 3 21 A invenção da própria filosofia pode ser interpretada acho como uma reação à ruptura da sociedade fechada e suas crenças mágicas É uma tentativa de substituir a fé mágica perdida por uma fé racional K R Popper The Open Society and its Enemies 1945 I 165 Sobre a filosofia como um substituto para a religião ver também Victor Kraft Einführung in die Phitosophie 1950 16 e segs Direito e Justiça 279 licença poética em asseverações acerca do ser íntimo da existência e das coisas Como isto se acha fora de qualquer controle da observa ção e da experiência todos se encontram livres para sustentar o que bem entendam citando em seu apoio um contato absoluto que se o chame discernimento intelectual intuição experiência de evidência consciência transcendental ou qualquer outra expressão inventada para designar a suposta fonte de conhecimento de verdades eternas Aristóteles fez da animação e personificação da natureza animismo e mitologia que caracterizaram o pensamento grego primitivo um sistema filosófico de idéias Foi mais tarde tratado com grande respei to porque é preciso uma certa bagagem acadêmica para ler seus trabalhos Para descobrir o caráter primitivo de seu raciocínio neces sitase algo mais do que isso Aristóteles tomou como pressuposto que cada coisa individual tem dentro de si uma espécie de alma a que chamou forma da substância que determina a essência das coisas como pertencentes a uma certa categoria Assim por exem plo é a essência úo gato Pussy o que faz dele precisamente um gato Esta essência oculta é a realidade que se encontra por trás de nossos conceitos ordinários como por exemplo o conceito gato A essência não pode ser descoberta por comparação e indução a partir de obser vações externas mas sim por uma intuição intelectual interna É ta refa da ciência determinar a essência das coisas por exemplo o que é o que faz de um gato um gato e enumerar as características da essência numa definição22 A alma ou forma das coisas é também a medida de perfeição que está encerrada nelas e para a qual tendem Esta meta última da tendência de cada coisa está e não está na coisa Enquanto a semente não se desenvolveu na planta a planta não existe como uma realidade mas existe em potência como medida orientadora ou objetivo profundamente alojado no ser da semente Visto que o bem é aquilo para o que tendemos a alma das coisas determina ao mesmo tempo o que é o bem relativamente a cada Esta frase ironicamente elogiosa denota tanta fragilidade crítica por parte de Ross contra Aristóteles que nos surpreende ter sido escrita por ele N TJ 220 oposto deste essencialismo metafísico é o nominalismo metodológico cientifico que considera os conceitos não como imagens da verdadeira natureza das coisas mas como ferramentas lingüisticas para a descrição mais conveniente dos fenômenos e suas correlações invariáveis 0 essencialismo continua se fazendo presente em co nhecidas e inúteis discussões do tipo daquela que versa sobre se o direito internacional é realmente direito Cf Ross Textbook of International Law 1947 seç 5 1 Ver também K R Popper The Open Society and its Enemies 1945 I 25 e segs 280 Alf Ross coisa individual O bom gato é o gato que realiza à perfeição seu ser como gato O mesmo ocorre com os seres humanos Mas qual é a essência de um ser humano aquilo que faz de um ser humano um ser humano E aquela parte da alma que é dotada de razão como algo oposto ao sensual que possuímos em comum com os animais Com isto Aristóteles cinde o ser humano em duas partes e introduz uma distinção que tem sido o fundamento de toda a metafísica espiritualista O ser humano pertence a dois mundos Como ser sen sual é uma parte da natureza como criatura racional pertence ao reino da moral da validade e da liberdade De acordo com isso a tarefa moral do ser humano é levar a cabo guiado pela razão aquilo para o que tende seu ser íntimo em sua natureza racional como algo contraposto à sua natureza sensual Mas o que é isto Quais normas de ação derivam daí Fica claro que essas especulações metafísicas acerca da natureza do bem são como recipi entes vazios que cada um pode encher como o deseje e isto significa realmente que podem ser enchidos com aqueles preconceitos morais dogmáticos aspirações e ideais que se alojaram no ser humano sob a influência de sua época e de seu meio Aristóteles não fez um grande esforço para deduzir sistematicamente o conteúdo da moral mas se conforma em fazer referência ao que os homens bons e sensatos pensam acerca disso Em última instância portanto a consciência moral positiva de Aristóteles e de seus contemporâneos é revestida de valida de absoluta como moral natural pelas construções metafísicas As idéias éticas de Aristóteles são importantes porque as principais foram adotadas pelo direito natural católico Aristóteles não desenvolveu uma teoria do direito com idêntica minúcia Apropriouse da distinção dos sofistas entre direito positivo e direito natural mas deu à filosofia do direito natural um novo viés conservador e metafísico A lei natural é a válida em si mesma e obrigatória para todos É apreendida pela razão E verdade que as leis humanas contêm muito de arbitrário ou que é deter minado pela conveniência prática como por exemplo que o resgate de um cativo seja de uma mina ou que o sacrifício seja de uma cabra e não de duas ovelhas porém deixando de lado taispositividades as leis são baseadas na lei natural e quando são falhas ou ambíguas serão inter pretadas em conformidade com a lei natural23 23 Aristóteles Ética a NicSmaco V x 1134 b Retórica I xv 1375 a A Ética a Nicõmaco consta nesta mesma série Clássicos Edipro N TJ D ir e it o e J u s t i ç a 2 8 1 53 OS ESTÓICOS E O DIREITO ROMANO Entre as escolas e tendências filosóficas gregas posteriores o estoicismo teve especial importância para o desenvolvimento do di reito natural Essa tendência tornouse bastante difundida no domí nio do pensamento antigo e não apenas no mundo antigo como tam bém no moderno Através de seu espírito de humildade e universali dade foi um instrumento de disseminação do cristianismo O estoicismo também vê na razão e na natureza humana a medida para o comportamento do homem sábio Entretanto as complicadas e insípidas idéias de Aristóteles são substituídas por uma interpretação religiosa mais ampla e atraente impregnada de misticismo que serviu para transformar o estoicismo em algo mais do que uma mera filosofia acadêmica transformouse numa filosofia de vida que se difundiu lar gamente entre as pessoas educadas O culto da razão foi combinado à antiga idéia do destino como lei cósmica do mundo A razão não é meramente a razão individual Esta não passa de uma centelha da razão eterna e universal ou razão divina que tudo governa no mundo A exigência de viver em harmonia com a natureza ou de conformidade com a razão o que constitui a mensagem básica do estoicismo adqui re por isso um cunho estranho e ambíguo uma fascinante ambivalência de autoafirmação e humildade independência e sujeição liberdade e dever De um lado a natureza é igual à razão universal ou à vontade divina De acordo com isto a exigência moral é uma exigência de com pleta sujeição e autodestruição ante o divino ante a onipotência que governa o mundo mediante a determinação de identificarse com o universal com Deus Por outro lado a natureza é também a natureza razoável do próprio ser humano e contemplada deste ângulo a moral significa uma exigência de completa liberdade e independência isto é uma vida determinada Unicamente por nossa natureza razoável liber tada completamente das ilusões dos sentidos Somente esta liberdade moral interna é o realmente bom Aquele que vai em busca dos praze res sensuais ilude a si mesmo e é um escravo O homem sábio é um rei tem controle sobre si mesmo e é independente das coisas e das pessoas porque ninguém pode priválo de sua liberdade interior Estas duas perspectivas opostas se fundem numa única precisamente por que o ser humano em sua natureza razoável é ele mesmo uma cen telha do eterno e tem uma parte de si no divino A lei que nos governa é conseqüentemente também lei em nosso ser mais íntimo Somente o ser humano que é escravo de Deus conquistou a liberdade perfeita 282 Alf Ross Os estóicos introduziram o conceito de dever na filosofia moral e jurídica No pensamento grego antigo o destino era um poder externo que obrigava aos seres humanos por meio do castigo mas não em sua consciência Transgredir a regra era por conseguinte vaidade e estultícia hybrís mas não pecado ou desobediência Entre os filósofos o pro blema permanecera sempre dirigido à natureza do bem Foi entre os estóicos presumivelmente sob a influência do despotismo oriental que surgiu pela primeira vez a idéia de que a essência da moral não consistia nos fins externos da vontade mas em sua conformidade com uma lei o que é precisamente o cerne da idéia de dever24 O estoicismo conferiu ao direito natural uma direção religiosa e universal Não a razão individual mas a razão cósmicodivina é a fonte suprema do direito Mas a razão universal nos exige que leve mos uma vida social pacífica enquanto observamos aquelas regras que se encontram em nossa natureza razoável Na interpretação des te pensamento os estóicos com vigor crescente enfatizaram a idéia da igualdade de todos os seres humanos Cada ser humano encerra uma centelha do eterno somos portanto todos iguais diante de Deus A ordem fundamental da razão é respeitar todo outro ser razoá vel como um fim em si mesmo e o ideal da coexistência social é um estado universal no qual todos sejam iguais e vivam em harmonia com os comandos da natureza e da razão Num tal estado não have ria propriedade privada e nem escravidão Entretanto o desatino e a perversidade dos seres humanos resultou em que vivessem aparta dos em estados separados e de acordo com leis humanas que só refletem de maneira imperfeita a justiça natural O estoicismo também se tornou a filosofia de vida dos romanos cultos Cícero popularizou o estoicismo sob uma forma jurídica menos elaborada omitindo o místico e panteístico nele encerrados Em suas mãos a doutrina do direito natural se converteu numa introdução filosófica ao direito e foi comumente aceita pelos grandes juristas do período clássico Distinguiamse três tipos de direito Primeiro o jus clvile que era o direito que se aplicava aos cidadãos romanos e que era determinado pelo sistema romano tradicional de forma e ação Segundo o jus gentíum que era o direito comum aos romanos e ou tros povos e que portanto se aplicava aos estrangeiros e às relações entre Roma e outras potências tal como o jus clvile o jus gentíum é 24 Cf Alf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VII Direito e Justiça 283 direito positivo é um ordenamento baseado na força e administrado pelos pretores romanos para os estrangeiros praetores peregríni Era todavia mais livre na forma e mais flexível que o jus civie Sob a influência do estoicismo foi interpretado como sendo num grau mais alto do que o direito romano específico determinado pela natureza humana comum aos diferentes povos e viuse nele portanto num grau mais elevado do que no jus civile a expressão dos princípios bási cos do direito natural Finalmente havia o próprio jusnaturae basea do na razão inerente ao ser humano idêntica à razão divina que se aplica a todos os seres vivos Mas o jusnaturae não era um ordenamento baseado na força e na realidade era contrário ao pensamento roma no tradicional denominar tal ordenamento com a palavra direito is Isto ocorreu unicamente em virtude do respeito pela autoridade dos filósofos gregos Há contudo uma certa conexão com as idéias roma nas no conceito romano de aequum et bonum As doutrinas sobre a eqüidade aequitas que se desenvolveram no desenrolar do tempo para abrandamento do direito ritual estrito encontraram assim apoio na filosofia do direito natural Disto o exemplo principal foi a evolução favorável à promessa informal e a uma interpretação mais livre dela menos dependente das palavras utilizadas que da intenção 54 O DIREITO NATURAL DOS ESCOLÁSTICOS Tomás de Aquino25 Não foi difícil para os padres da Igreja e para os filósofos escolásticos interpolar as específicas idéias cristãs na tradição clássica do direito natural No lugar do vago conceito panteísta de uma razão divina universal bastoulhes colocar o Deus do cristianismo A distinção aristotélica entre o ser humano como ser sensual e o ser humano como ser racional se ajustava perfeitamente à distinção cristã entre corpo e alma entre este mundo e o reino de Deus Só que se acha va mais no espírito do evangelho ressaltar a pureza de coração a consciência em lugar da razão pensante como o órgão através do qual a voz de Deus fala ao ser humano 25 Pata um estudo mais minucioso e documentado ver Alf Ross Kritikdersogenanntenpraktischen Erkenntnis 19331 cap VI 4 Neste sentido a patrística mais exatamente Agostinho 354430 antecipandose em muitos séculos à escolástica e especialmente ao tomismo executou essa obra com base na metafísica de Platão a dualidade corpoalma e a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível se prestando impecavelmente à estruturação do pensamento cristão N TJ 284 Alf Ross A novidade mais importante ocorreu em dois pontos Em primeiro lugar o direito natural adquiriu um conteúdo mais variado Enquanto os antigos filósofos do direito natural não tinham ido além de impre cisas idéias acerca de uma lex naturae eterna e absoluta sem atri buirlhe um conteúdo sistemático preciso o cristianismo encontrou na Revelação um ponto de vinculação firme e dogmático O cerne de todo o direito natural cristão é a vontade revelada e neste sentido positiva de Deus a lei mosaica e o Evangelho Em segundo lugar a idéia da supremacia do direito natural sobre o direito humano foi então tomada a sério O direito humano somente adquire sua força obrigatória sua validade como direito enquanto em oposição ao poder arbitrário em virtude de sua derivação do divino e nenhum direito humano que esteja em conflito direto com o direito natural tem validade alguma Isto não significava entretanto que os seres humanos estavam livres para recusar obediência a toda lei injus ta por exemplo a uma lei tributária que não distribui eqüitativamente o ônus Em tal caso a lei da natureza exige do ser humano que antepo nha a paz e a ordem acima de seus próprios direitos Porém se o direito positivo prescreve ou permite algo que está em conflito direto com alguma ordem fundamental específica do direito natural tal como este é ensinado e interpretado pela Igreja então será o direito e dever de todos oferecer resistência ao rei e às autoridades porque então o direito não será mais direito mas força bruta e o rei não será mais rei mas tirano Fica claro que a conjunção desses dois pontos significou que de maneira engenhosa fossem combinados um direito natural de tipo conservador com outro moderadamente opositor Em geral o direito e a ordem receberam apoio religioso na medida em que se reservava à Igreja um direito de censura para a defesa de certos princípios elementares em particular em apoio do poder papal no seu conflito com o poder temporal26 Já se pode encontrar num decreto de Graciano do século XII uma teoria nessas linhas Uma vez atenuado o conflito entre o imperador e o papa o direito natural foi se tornando cada vez mais conservador O direito natural católico alcançou sua formulação definitiva em Tomás de Aquino 12261274 que com 26 0 aspecto político do direito natural em particular a doutrina referente à soberania o contrato de governo e o direito de resistência e o papel desempenhado por estas teorias na história política são tratados com maior amplitude em Alf Ross Why Democracy 1952 9 e segs Esta data não é unanimemente aceita Há quem opte por 12251272 N Tí Direito e Justiça 285 admirável energia e capacidade criadora construiu o sistema teológico filosófico medieval em sua poderosa Summa Theotogica cujos ensinamentos sem alterações e acréscimos particulares são aceitos ainda hoje pela filosofia jurídica católica A filosofia moral e jurídica de Aquino segue muito de perto a de Aristóteles a quem ele chama simplesmente de o filósofo está claro com a inserção da concepção cristã de Deus Sua concepção do mundo também é animista O bem é aquilo para o que tendem tudo todos os entes animados ou inanimados segundo sua natureza e destino divinamente criados O bem é a realidade mesma em sua própria perfeição de acordo com a idéia de Deus Tudo tende segun do sua própria natureza para a perfeição em Deus e por isso toda tendência natural é legítima Para o ser humano o bem significa aquilo para o que ele tende em virtude de sua natureza Isto não significa evidentemente que tudo que o ser humano de fato deseja seja bom A retidão interna está vinculada unicamente à nossa autêntica vontade íntima que se en contra por trás da tendência consciente Se a razão se limitasse a seguir a luz natural que Deus colocou em nossos corações nossa vontade consciente estaria também dirigida sempre para o verdadei ro bem Entretanto a razão do ser humano pode se achar corrompida e desafiar a lei natural A vontade se aparta assim de seu caminho e busca aquilo que se afigura bom ainda que não o seja Qual é então a lei que a razão seguirá a fim de guiar a vontade para o verdadeiro bem Em sua perfeição é a lei eterna idêntica à razão soberana de Deus a sabedoria divina que governa todos os seres criados que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações As leis restantes extraem sua força dessa lei Porém a lei eterna não pode ser captada em sua perfeição pelo ser humano Na medida em que pode ser apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural razão chamase direito natural Mas isto não é o bastante para capacitar o ser humano a alcançar seu propó sito divino E conseqüentemente Deus por revelação concedeu ao ser humano a título de orientação adicional uma participação na lei eterna tal é a lei divina a lei mosaica e o Evangelho Finalmente há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles princípios bá sicos que estão expressos na lei divina e na lei natural 286 Alf Ross Os diversos níveis da lei têm diferentes graus de evidência27 A evidência é naturalmente maior na lei revelada essencialmente a lei mosaica sua segunda tábua contém os mandamentos fundamentais para a vida humana em comunidade cuja transgressão enche todo ser humano de horror natural Diferentemente os princípios captados unicamente pela luz da razão possuem um grau menor de evidência porque a razão pode ser arrastada pelas paixões e pela natureza pe caminosa do ser humano O grau de evidência é mínimo na mais remota aplicação desses princípios às circunstâncias da vida Assim por exemplo concluise do oitavo mandamento Não roubarás que um depósito tem que ser restituído Contudo esta aplicação é unica mente válida como regra geral Pode haver exceções de acordo com as circunstâncias É mister dar ao legislador uma liberdade considerá vel na formulação do direito positivo O direito natural se limita a de terminar um padrão e não basta que o direito positivo seja simples mente justo devendo também ser benéfico isto é tem que servir às necessidades das pessoas Mas as necessidades mudam em função do ritmo das idéias costumes e circunstâncias econômicas na reali dade modificamse com o todo da própria civilização que varia no tempo e no espaço E por isso o direito tem também que mudar Fica claro que embora Aquino tenha dado ao direito natural um conteúdo mais sólido ao incorporar nele os dogmas fundamentais da moralidade cristã por exemplo a indissolubilidade do matrimônio ele está longe de um racionalismo abstrato que busca deduzir por meio da razão uma solução para cada questão específica e concreta Há assim muito espaço em sua construção para uma forma socioló gicorealista de política jurídica O mesmo ocorre com o tomismo de hoje Se deixamos de lado o metafísico e o dogmático portanto há possibilidades favoráveis para um entendimento entre essa tendên cia e um estudo realista do direito 55 RACIONALISMO8 À medida que a influência teológica sobre o pensamento foi declinando gradualmente o direito natural exceto por seu desen volvimento pela tradição católica ortodoxa foi se secularizando 27 Cf Henri Rommen Le droit natoe1945 72 e segs 28 Cf Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap VI 5 Direito e Justiça 287 Os séculos XVII e XVIII foram a era do racionalismo e do iluminismo e ao mesmo tempo o período de esplendor dos grandes sistemas de direito natural O direito natural tornouse a filosofia prática funda mental de toda uma época o pensamento dominante não apenas nos estudos jurídicos e na filosofia moral como também na economia e na política Despojouse de seu traje teológico e adotou a roupa gem da ciência pura auxiliada pelo método matemático dedutivo que constituiu a grande descoberta da época Os fundamentos dessa ten dência foram formulados pelo holandês Hugo Grócio De jure beiiiac pacis Livro III 1625 mas foi somente em meados do século XVII que o direito natural logrou o fastígio de seu desenvolvimento com os grandes sistemas de Baruch Spinoza Samuel Pufendorf Christian Thomasius Jean Barbeyrac Christian WolfT e outros Uma ênfase política particular apareceu no direito natural de Thomas Hobbes o defensor radical do poder absoluto e também na obra de John Locke e JeanJacques Rousseau os dois fundadores da democracia moder na Locke foi o pai ideológico da Revolução norteamericana e Rousseau da Revolução francesa Estas duas revoluções representaram o triunfo da idéia do direito natural relativamente à libertação do indivíduo in vocando os direitos inalienáveis da liberdade e os direitos inalienáveis do homem Estes direitos encontraram expressão na Declaração de Independência norteamericana de 1776 e na França na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 adotada como introdução à Consti tuição de 17910 projeto do Código Napoleão iniciouse com a notável frase seguinte a qual contém o credo da revolução em forma abrevi ada I existe un droit universei et immuabie source de toutes ies iois positives iinlest que ia raison natureiie en tant queüe gouverne tous leshommes Existe um direito universal e imutável fonte de todas as leis positivas é a razão natural que governa toda a humanidade O derradeiro grande nome dessa era foi Immanuel Kant Entretan to principalmente a caminho do desfecho do período houve uma proliferação de autores e sistemas menos conhecidos Não constitui ria exagero dizer que se tornou quase obrigatório que todo autor que se respeitasse elaborasse um sistema próprio A característica principal e mais óbvia do novo direito natural foi como já adiantamos sua natureza secular e não teológica Isto se patenteia na famosa afirmação de Grócio de que o direito natural continuaria sendo válido mesmo quando se sustentasse e isto seria 288 Alf Ross um horrível crime que Deus não existe etsl Deus non daretui 0 direito natural desenvolveuse agora sem nenhum apoio na teologia e na revelação e somente com base na natureza humana Isso em si não teria significado muito Os escolásticos haviam também tomado a natureza humana como fundamento e a interi pretação das ordens da natureza não difere muito se a ela se adicionai ou se subtrai a noção de Deus porém o que é novo é precisamente método pelo qual o direito natural é deduzido da natureza humana 0 fator novo e crucial é a orgulhosa confiança de ter descoberto umi método científico incontroverso para substituir o remendo semiteológicoi e semiempírico dos tempos passados Este é o método dedutivo oi geométrico de René Descartes Considerouse que haviam sido des cobertos os meios de elevar a filosofia ao mesmo nível científico das matemáticas Tudo que faltava era encontrar um ponto de partidf seguro numa série de axiomas indubitavelmente verdadeiros evij dentes29 O resto seria só lógica dedução como todas as matemá ticas não são mais do que dedução baseada num sistema de axio mas No âmbito na filosofia jurídica isso significava que partindo de alguns poucos princípios de absoluta clareza e evidência apreendi dos através da meditação sobre a natureza humana seria possívelf deduzir um sistema jurídico completo Este é o orgulhoso e esperanv çoso programa do racionalismo f Foi executado cabalmente Tomando como ponto de partida a leíj da sociabilidade que emana na natureza social do ser humano e qu o leva a unirse com seus semelhantes numa vida comunitária pacífH ca deduziuse um amplo sistema de regras jurídicas com freqüênd englobando até os detalhes mais diminutos30 Este sistema foi divicM do em disciplinas tal como o direito positivo Desta maneira o direitd natural tornouse não só uma mera coleção de algumas idéias impoN tantes ou dogmas mas um sistema jurídico detalhado semelhantej àquele do direito positivo E assim nos sistemas de direito naturafj podemos encontrar regras a respeito dos contratos da aquisição dâj propriedade do matrimônio da herança do governo etc todas ex postas com um cunho explícito e pormenorizado que fazem do direi to natural um sistema que ocupa a mesma escala do direito positivo i3 29 Descartes tomou como seu ponto de partida a célebre proposição cogito ergo sum 1 30 K 0 A Roeder cita como contravenções elementares ao direito natural entrar sem ser convidado fazer viagens probtew ticas os stocks de couro duro usados pelos soldados Ver Grvndzügen des Naturrechts 2 ed 1863 II 829198 Direito e Justiça 289 Outro fator adquiriu uma enorme e funesta importância Enquanto o direito natural foi concebido como composto unicamente por umas poucas máximas abstratas gerais tal como em verdade ocorrera em toda a filosofia anterior não houve perigo de que o direito natu ral e o direito positivo pudessem ser confundidos Ainda quando hou vesse por certo uma conexão entre eles na medida em que o direito positivo extraía sua validade do direito natural ficava claro todavia que este último não se dirigia às mesmas pessoas que o primeiro porque o direito natural continha os princípios morais e jurídicos que obrigavam ao legislador O acatamento deste ao direito natural era condição para que suas ordens constituíssem um comando jurídico verdadeiramente obrigatório e não o simples império da violência O direito possuía também além de seu caráter compulsório uma vali dade moral superior O direito natural estabelecia os princípios supre mos que eram a fonte dessa validade O direito natural tinha assim uma natureza moral ou políticojurídica mesmo quando não se fizes se distinção fundamental entre a moral e o direito porque se assumia que era parte da essência do direito ser também moralmente obriga tório obrigatório em consciência A palavra moral devia ser entendi da conseqüentemente como designadora daquela validade que di reito e moral em sentido restrito possuem em comum em contraposição ao caráter específico do direito como comando com pulsório Por outro lado jamais se considerou o direito natural como um conjunto de regras dirigidas aos cidadãos para regular suas rela ções recíprocas em termos de direitos e deveres Prova disto é que o direito natural foi sempre considerado como direito ou lei lavt natu ral nunca como um conjunto de direitos rights naturais Mas era diferente agora no século XVIII Uma vez iniciado o proces so de deduzir um sistema jurídico completo sobre base jusnaturalista a conseqüência inevitável foi considerarse o direito natural como um conjunto de direitos e deveres que têm uma aplicação válida direta aos cidadãos em suas relações recíprocas tal como ocorre no direito posi tivo O direito natural deixou de ser uma disciplina moral e se transfor mou numa genuína disciplina jurídica isto é em lugar da idéia logicamente não irrazoável de que o direito positivo era submetido a certos princípios morais que eram condição para sua força moralmente obrigatória os seres humanos foram induzidos a admitir uma duplica ção do sistema jurídico por trás ou acima das relações jurídicas fatuais principalmente expressas na categoria direito subjetivo existia outro 290 Alf Ross conjunto de direitos subjetivos rights os direitos rights naturais Em conformidade com esta idéia chegouse a uma distinção nítida en tre o direito e a moral O conceito de direito subjetivo cumpre lembrar está vinculado à experiência do poder exercido mediante a maquinaria estatal de compulsão O conceito de direito subjetivo é um conceito dó direito positivo Contudo como o direito natural era agora também concebido como formado por direitos subjetivos rights a conseqüên cia foi que todo o direito iaW tanto o natural como o positivo con trastando com a moral foi caracterizado pelo poder de compulsão Dessa maneira como conseqüência foi criada uma desafortunada duplicação do sistema jurídico a concepção de um sistema de direb tos subjetivos superiores situado por trás ou acima do sistema der direitos subjetivos positivos Enquanto o direito natural até então fora uma concepção moralfilosófica que os juristas podiam aceitar ou rejeitar sem que isso produzisse efeitos notáveis para a ciência do direito positivo o novo aparato conceituai gerou uma confusão que deixou marcas profundas em todo o pensamento jurídico até a atua lidade parágrafo 61 O conteúdo ideológico das exigências jusnaturalistas de reforma fbf determinado particularmente no século XVIII por reivindicações dd iluminismo a favor da libertação individual frente ao poder governa mental opressivo e frente à tradição feudal com seus grilhões e siste ma de privilégios Para falar em termos de clichê a ideologia do direito natural se fez individualista e liberal O Estado devia interferir o menos possível na vida dos cidadãos Sua ação devia limitarse a preservar 0 paz interna e externa e a garantir a propriedade e a liberdade contratual Os privilégios da nobreza deviam ser abolidos bem como o poder dasj corporações de ofícios guids e outras restrições arbitrárias à Iiberda4 de Esta ideologia encontrou sua expressão mais incisiva em Kant quÇ definiu a liberdade como o direito original do ser humano e exprimiu 5 suprema exigênciado direito natural no famoso enunciado o imperaí tivo categórico Uma conduta será legal se a liberdade de realizála for compatível com a liberdade de todas as demais pessoas de acordo com uma regra geral31 Desconsiderando o fato de que esta proposição não tem significado sua intenção é claramente assegurar um máximo de liberdade restringindoa apenas em seu próprio interesse 31 Cf Ross op cit cap IX 1 56 DIREITO NATURAL DISFARÇADO Direito e Justiça 291 Admitese comumente que com a reação conservadora posterior à Revolução francesa o direito natural pelo menos durante algum tem po desapareceu do cenário intelectual As tendências predominantes na filosofia jurídica e moral assim como na política durante a Restau ração e depois dela parecem confirmar esse ponto de vista Não foram desenvolvidos novos sistemas de direito natural e o próprio conceito parece ter sumido Na Alemanha floresceu uma filosofia da história românticoconser vadora que como reação às especulações abstratas do direito natu ral centrou sua atenção na evolução histórica das instituições sociais Friedrich Carl Von Savigny e Georg Friedrich Puchta fundaram a esco la histórica ou romântica cuja tese básica consistiu em afirmar que o direito não é criado conscientemente por deliberações racionais de senvolvendose sim de forma cega e orgânica como uma expressão do espírito do povo e da consciência jurídica popular O costume e não as leis é portanto a fonte suprema do direito32 Na França Auguste Comte lançou as bases do positivismo33 num programa que pretendia basear a política cientificamente nas leis que regem as comunidades e sua evolução sociologia Além disso os juristas franceses após a aprovação do grande código civil o Código Napoleão de 1804 perderam o interesse nas reivindicações político jurídicas de reforma e com isso no direito natural Seu interesse se concentrou no direito positivo o Código e sua interpretação34 Na Inglaterra finalmente encontramos também tendências histó ricoconservadoras correspondentes Burke Foi contudo Jeremy Bentham o fundador do utilitarismo quem exerceu maior influên cia35 Apesar de sua tendência liberal e de seu método abstrato não histórico que tinha afinidade com a tendência e o método da filosofia do direito natural do século XVIII Bentham foi o opositor mais faná tico do direito natural e quem com zelo e paixão insuperados denun ciou a idéia dos direitos naturais natural rights qualificandoa de 32 Cf Ross Theorie derRechtsquellen cap V 33 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 119331 cap VI 6 34 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap II 3 35 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 cap VI 6 Why Democracy 1952 pp 49 e segs 292 Alf Ross mera ilusão Bentham quis construir uma doutrina moral exclusiva mente com base no princípio da utilidade isto é fundada no critério da maior felicidade prazer para o maior número Através do filósofo do direito John Austin fundador da chamada escola analítica exer ceu uma influência decisiva sobre o pensamento jurídico inglês36 No entanto a idéia de que o direito natural se converteu em coisa do passado é errônea a menos que restrinjamos esse conceito às teorias racionalistas dos séculos XVII e XVIII Se incluirmos sob o rótulo de direito natural como aqui fizemos todas as teoria jurídicas metafísicas que são também políticojurídicas quer dizer que su prem um critério para a retidão ou justiça do direito então o direito natural ainda que com outro nome sobreviveu o prosperou ao longo do século XIX deverseia chamálo realmente de direito natural disfarçado O século XIX entretanto considerouse hostil ao direito natural porque a partir da perspectiva contemporânea o direito na tural era identificado com as tendências que haviam prevalecido nos dois séculos anteriores A reação não foi na realidade contra o direi to natural como tal mas contra o racionalismo o individualismo e o liberalismo que haviam caracterizado a filosofia do direito natural no período imediatamente anterior Tanto o historicismo como o positivismo seguiram linhas de pensamento que eram bem conheci das pelo direito natural mais antigo Não se pode dizer o mesmo com igual justificação a respeito do utilitarismo de Bentham mesmo que este pretendesse derivar a moral da natureza humana de sua ten dência à felicidade ou ao prazer A despeito disto veremos que certas idéias de característica origem jusnaturalista foram enxertadas no utilitarismo durante sua evolução no século XIX O historicismo37 afirma que a história é o critério do bem e do bom Na história da espécie humana aparecem forças que obede cendo a uma necessidade interna conduzem a humanidade avante rumo à sua meta A moral conseqüentemente não pode ser excogitada pelo raciocínio de um indivíduo devendo sim ser encon trada no desenvolvimento histórico das instituições sociais e jurídi cas As coisas existentes são também em sua essência as coisas boas O julgamento da história é também um julgamento moral A história é a passagem de Deus pelo mundo 36 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 119291 cap IV 36 37 Cf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 11933 cap XII Direito e Justiça 293 Comparada ao que afirmamos anteriormente essa linha de pen samento constitui uma variante nova da doutrina aristotélicotomista de que o bem é idêntico à essência das coisas e é determinado pela tendência para uma meta inerente a tudo que existe A única dife rença é que agora em lugar do indivíduo e da natureza humana é a humanidade e sua história que são introduzidas como o sujeito cujo ser e tendência determinam o que é bom Muitas variações em torno dessa idéia foram desenvolvidas po rém nenhuma atingiu tanta absurdidade fantástica quanto a famosa filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel38 Hegel considera que a essência íntima da existência é a razão o espírito absoluto e que a história é uma espécie de operação lógica gigantesca na qual a razão ou Deus se pensam a si mesmos num processo triádico peculiar Pri meiro é formulado um conceito ou tese este origina sua própria con tradição e logo ambos se fundem numa unidade superior o jogo prosseguindo com uma nova tese que se desenvolve da mesma ma neira Hegel afirmou que com esse esquema podia interpretar todo o existente e deduzir os resultados mais surpreendentes39 Em matéria de política sua filosofia conduziu a uma interpretação da história de acordo com a qual o povo alemão é escolhido para realizar o propósi to último de Deus com relação ao existente e o Estado prussiano de 1821 aparece como um modelo do verdadeiro Estado No campo da filosofia moral e jurídica Hegel formulou a sentença tão citada Was vernünftig ist dastst wirktich und was wirküch ist das ist vernünftig O que é racional é real e o que é real é racional Naturalmente com isso Hegel não quis dizer que tudo que fatualmente existe é também válido e bom Sua idéia era que a razão individual humana não pode excogitar o que é moral que isto se revela nas instituições históricas da moral objetiva a família a comunidade civil e o Estado em suas características fundamentais na interpretação que dá Hegel ao seu conceito ou idéia por meio do método dialético A escola jurídica histórica não baseou suas idéias em Hegel mas em Friedrich Wilhelm Schelling40 que retornou à antiga concepção 38 Cf ibid cap XIII 4 e o excelente estudo crítico de Hegel feito por K R Popper em The Open Society andits Enemies 19451 II cap 12 39 Cf Popper op cit II 2526 40 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 11933 cap XII 3 294 Alf Ross da necessidade do destino e interpretou a história como uma gigan tesca tragédia na qual o indivíduo se crê livre mas é conduzido de forma inexorável para uma meta predestinada Dirigido ao domínio do direito isso conduziu à doutrina de que o direito emergiu por necessidade do destino de forças cegas presentes nas profundezas do espírito popular O legislador pode fazer o que faz o bom jardineiro a saber estimular o crescimento natural mas nada mais Qualquer intervenção arbitrária está condenada de antemão ao fracasso Esta é a razão pela qual Savigny no seu afamado tratado questionou e censurou a vocação de legislar não só em seu tempo como também em qualquer outro41 A sociologia de Auguste Comte e a política positiva sobre ela construída aproximamse bastante da filosofia da escola histórica42 As leis que Comte acredita que podem ser estabelecidas para diferen tes etapas da civilização não são causais mas leis do destino consti tuem a expressão de uma necessidade interna determinada por uma meta uma necessidade que simultaneamente determina tanto o real como o valioso Em política o possível é portanto no principal tam bém o necessário O desenvolvimento entretanto não segue total mente a linha reta da necessidade Pode haver desvios menores para um ou outro lado Se e político tiver que cumprir sua missão se a política tiver que consistir em mais do que gestos impotentes deverá dar acabamento às tendências espontâneas de desenvolvimento O único poder possuído pelo ser humano é o de acelerar a necessidade o de remover obstáculos reduzindo desta maneira os desvios da linha reta Muito do que na França e em outras partes circulou mais tarde sob o nome de sociologia não é ciência empírica mas metafísica jusnaturalista de um tipo semelhante ao que descrevemos aqui O livro de John Stuart Mill On Liberty 185943 é um magnífico exemplo de que como idéias puramente jusnaturalistas se incorpora ram apesar do zelo de Bentham às formulações posteriores do utilitarismo O livro visa a desenvolver o princípio que justifica o exer cício da força censura moral ou jurídica pela comunidade ou pelo Estado contra o indivíduo Este princípio exprime que o único propósito Ross se refere como antes ao conceito grego de avayicri anangkêh aproximativamente correspondente ao latino fatum Inecessidade fatalidade destino IN TJ 41 7 Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap V 2 42 Cf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VI 6 43 Cf op cit p 191 Direito e Justiça 295 que justifica a força é impedir que uma pessoa cause dano a outra Visto que o dano não pode ser identificado com qualquer lesão a interesses é forçoso que o princípio queira dizer que a liberdade de ação é restringida em vista dos direitos opostos dos outros Estes direitos têm já que estamos lidando com um princípio para legisla ção que ser necessariamente direitos naturais e aqui retornamos novamente ao direito natural O mesmo aparece ainda com maior clareza no desenvolvimento evolucionista do utilitarismo feito por Herbert Spencer44 que salien tou quão impossível é calcular todas as conseqüências de uma ação e sua importância para a felicidade humana Em lugar disso se per gunta se a ação obedece às leis da vida aquelas que geralmente decidem a tendência da ação para promover prazer ou dor Mesmo que essas leis tenham que ser extraídas da experiência esta se cris talizou de tal maneira através da evolução da humanidade que as leis se apresentam aos olhos do indivíduo como princípios a priori evidentes a saber os princípios de justiça e igualdade Spencer sem conhecer Kant formulou por conta própria a lei da justiça da forma exatamente igual ao princípio de Kant Cada pessoa diz Spencer tem liberdade para fazer o que queira desde que não viole a igual liberda de dos outros Aqui novamente este princípio só tem sentido na pressuposição de que a liberdade dos demais seja definida em ter mos de direitos naturais De maneira semelhante Rudolf von Ihering enxertou o princípio eterno da justiça em seu utilitarismo social45 Ihering considerava a comunidade como um organismo vivo independente e colocou o bem estar social no lugar da soma das felicidades individuais O propósito mais elevado determinado pela moral e o direito é a garantia das condições de existência da comunidade E estas estão expressas nas exigências de justiça Posto que esta afirmação freqüentemente feita pelos mesmos homens que reprovam a comunidade existente devido à injustiça desta não pode ser deduzida da experiência tem que ser interpretada como uma nova manifestação do antiquíssimo postulado metafísico religioso que vê na justiça uma lei cósmica que garante a vitória dos justos das criaturas de Deus e assegura a felicidade ao homem virtuoso Heráclito 44 Cf op cit cap V 6 45 Cf op cit cap V 7 296 Alf Ross Esses exemplos bastam para mostrar como durante o século XIX continuou florescendo um direito natural metafísico e uma ideologia a priori da justiça encobertos em teorias aparentemente hostis que professavam um empirismo científico O que desapareceu junto com o século XVIII não foi o próprio direito natural mas os sistemas racionalistas do direito natural A ideologia a ele inerente mudou de cor em consonância com a mudança do clima político O individualis mo foi preterido numa medida continuamente crescente por idéias de matiz social Foise percebendo gradativamente que a liberdade sem restrições particularmente no domínio dos contratos não traz consi go apenas bênçãos mas também uma tendência a tornar o poderoso cada vez mais poderoso e o fraco cada vez mais fraco e que portan to regras sociais podem ser necessárias para proteger os membros mais fracos da comunidade 57 O RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL Em vista da situação descrita no parágrafo anterior não é de se surpreender que o direito natural tenha voltado a prosperar em prin cípios do século XX e que tenha desde então se expandido em tal medida que é comum falarse de um renascimento do direito natural Os abalos tremendos da política e da economia que caracterizam este século tem fomentado a ânsia de descobrir algo absoluto num mun do em dissolução e mergulhado no caos Pareceria que a realidade brutal fortaleceu o impulso de afirmar os ideais de justiça A primeira guerra mundial estimulou poderosamente o direito natural absolutis ta O idealismo francês foi colocado em contraposição à doutrina ale mã do poder e as doutrinas jusnaturalistas usadas para justificar os fins bélicos dos aliados e para robustecer a força de resistência da população46 Da mesma maneira as atrocidades de Hitler contribuí ram certamente para promover o crescente desejo de confirmar a crença nos direitos humanos tal como o regime de violência alemão nos países ocupados estimulou a ânsia de afirmar em termos absolu tos a diferença entre o direito e o poder e fundamentar o direito numa idéia absoluta Ou seja o século XX N Tl 46 Cf Alf Ross Theorie derRechtsquellen 1929 cap II 7 Direito e Justiça 297 Contudo o direito natural que hoje predomina na porção majori tária da filosofia jurídica não é uma ressurreição dos sistemas racionalistas do século XVIII mas uma linha de escolasticismo que foi retomada A doutrina de nossos dias e a iluminista diferem tipicamente em dois pontos Em primeiro lugar ninguém pensa mais em deduzir de princípios a priori regras específicas sobre mútuo aluguel penhor etc Tal pre tensão foi deixada de lado postulandose apenas certos princípios fundamentais Admitese que só podem ser complementados adap tandoos às circunstâncias levando em consideração as tradições his tóricas as condições técnicas e econômicas e as necessidades práti cas Tornouse usual falar de um direito natural de conteúdo variá vel Certos princípios superiores ou critérios formais são considera dos como eternos e invariáveis Por vezes a relatividade se estende inclusive a estes de sorte que a doutrina do direito natural se apro xima de um positivismo históricosociológico Em segundo lugar o conteúdo ideológico deu prosseguimento ao desenvolvimento que começou no século XIX afastandose do liberalismo individualista do iluminismo rumo a uma ideologia social e coletivista Quanto à explicação filosóficometafísica do direito natural o sé culo XX não tem produzido construções de particular originalidade talvez porque os temas possíveis estejam esgotados ou porque o talento para a criação de pensamento metafísico está decrescente As tendências seguintes são todas extensões amiúde macerações de elementos bem conhecidos Para começar temos é claro o neotomismo o qual desempenha um papel predominante especialmente na França47 Profundamente arraigada na tradição católica a chamada phiiosophia perennis o tomismo tem subsistido ao longo dos séculos à margem dos capri chos da metafísica mas parece atualmente ter conquistado apoio também fora dos círculos católicos ortodoxos Na Alemanha várias tendências neokantianas têm desempenhado um papel Variam em sua interpretação de Kant ao atribuir importância Não esqueçamos que Ross escreve estas linhas nos primeiros anos da década de 50 IN TJ 47 Com relação à doutrina francesa do direito natural ver também Ross op cit cap II 298 Alf Ross a aspectos diferentes de sua filosofia As distinções são sutis e só po dem ser indicadas com brevidade aqui48 Uma tendência a escola dé Marburgo deu continuidade ao que em Kant se chama de formalismo ou seja a idéia segundo a qual a moral é determinada pelo princípio da autonomia da vontade decisivo apenas é se a máxima segundo a qual alguém age é compatível com a idéia de uma lei universal Esta idéia foi elaborada em função da noção de uma vontade pura determinada unicamente por si mesma e não afetada por nenhum desejo condido nado pelos sentidos Sobre esta base que evidentemente carece de todo conteúdo e que somente por truques de mágico pode possibilitai que se chegue a postulados morais Rudolf Stammler construiu um direito natural de concepção formalista vazio e afetado que não obstante muitos julgaram profundo Seu postulado básico é a idéia de uma comunidade de indivíduos de vontade livre A partir desta idéia desenvolve uma série de proposições básicas sobre direito justo ou correto justorríghtlaw as quais são realmente tautológicas49 Outra tendência Friesianism erige sua construção sobre a idéia de Kant de que a lei moral é dada na consciência como fato de razão Sobre este postulado Leonard Nelson construiu sua teoria da justiça como um equilíbrio de interesses sem consideração das pessoas parágrafo 64 Nelson encontrou adeptos na Escola holandesa que busca extrair a lei fundamental da justiça de uma análise da consciência jurídica fatual50 As tendências jusnaturalistas disfarçadas do século XIX produzi ram novos rebentos no século XX O positivismo sociológico recebeu continuidade por parte do francês Duguit Como Hugo Grócio pará grafo 55 Duguit se empenha em derivar o direito le droit objectif da solidariedade o fato de que o ser humano só pode existir em comunidade com seus semelhantes Embora Duguit se comporte como o inimigo mortal da metafísica e do direito natural é óbvio que sua solidariedade é um ideal disfarçado não um fato e que seu droit objectif não passa de um novo nome para o droit naturel Nas fases posteriores de seu pensamento a metafísica aparece de forma definida a solidariedade é interpretada em harmonia com a escola histórica alemã como consciência jurídica popular 48 Podese encontrar um estudo mais completo em meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 caps X e XI 49 Cf também W Friedmann LegaI Theory 12 ed 1949 93 e segs Julius Stone Province and Function of Law 1946 1950 319 e segs 50 Cf Ross K ritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XI Direito e Justiça 299 Finalmente Duguit se declara de acordo com Tomás de Aquino ao aceitar um conceito de justiça como componente invariável da natu reza humana51 Hegel também teve seus sucessores Por um lado seu historicismo foi convertido numa filosofia da civilização mais relativista na qual a civilização com suas fases cambiantes ocupou o lugar da razão abso luta Josef Kohler Roscoe Pound52 por outro a deiftcação de Hegel do Estado e seu nacionalismo extremo foram a matériaprima ade quada para o desdobramento numa filosofia do direito fascista Julius Binder Giorgio del Vecchio53 Além desses representantes de modalidades de pensamento mais explícito e significativo há também muitos autores que professam o direito natural sobre uma base eclética ou sem se preocuparem de masiadamente com o fundamento filosófico Fornece um exemplo disto o eminente filósofo do direito francês François Gény que combi na elementos de sociologia com reminiscências do direito natural acionalista e inspirações da filosofia mística de Bergson54 Nas suas numerosas obras entretanto Gény trata menos da explicação filosó fica dos fatores racionais e ideais no direito do que da elaboração destes na ciência do direito e administração da justiça 51 Cl Ross op cit cap V 5 e Theorie der Rechtsquellen 1929 cap II 5 52 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis32 cap XIII 6 Com respeito a Kohler ver Julius Stone Province and Function of Law 19461950 cap XIII com respeito a Pound m op cit cap XV 53 Cf Ross Kritikdersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap XII 6 Quanto a Del Vecchio ver W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 100 e segs 54 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 5263 CITY OF GRESHAM CONSTRUCTION WORK NOTICE AIRPORT WAY AT 8TH AVE The City of Gresham will begin pavement and intersection work on Monday September 26 from Airport Way to 8th Avenue Work will take place between 700 am and 700 pm The contractor will be working to reconstruct pavement upgrade ADA ramps and move utilities This work will be located primarily within the curbtocurb paved street area so we expect no permanent impact to pedestrians or bicycles Motorists should expect one lane closure during the work Work will take multiple weeks to complete and traffic will be controlled by flaggers For questions or concerns please call the project hotline at 9712320136 or email greshamgreshamoregongov Visit the website for additional information httpsgreshamoregongovConstructionProjects Airflowasp If you need translation assistance or a flyer in a language other than English please call 9712320136 We appreciate your patience during this important work CITY OF GRESHAM PUBLIC WORKS DEPARTMENT 1333 NW EASTMAN PARKWAY GRESHAM OREGON 97030 5036182520 Capítulo XI Análise e Crítica da Filosofia do Direito Natural 58 PONTOS DE VISTA EPISTEMOLÓGICOS Uma crítica penetrante da filosofia do direito natural conduziria a profundidades que estão além dos limites de um teoria geral do direi to1 Mas talvez um olhar na história do direito natural nos seja mais útil do que a argumentação epistemológica para perceber a arbitrarie dade e imprecisão da especulação metafísica Estritamente falando as asserções metafísicas não admitem refutação precisamente por que se movem numa esfera que ultrapassa o alcance da verificação E preciso aprender simplesmente a ignorálas como algo que não tem função ou espaço legítimo no pensamento científico Provou alguém que não é Zeus ou as deusas do destino que guiam o curso do sol Tudo que podemos dizer é que a astronomia moderna administrou o problema sem essa pressuposição Analogamente o modo mais efi caz de derrotar a metafísica no direito é simplesmente criar uma teo ria jurídica científica cuja autosuficiência relegue as especulações 1 Em meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 tentei mostrar que a própria concepção de um conhecimento prático por exemplo tal como á postulado na filosofia moral e jurídica corrente contém uma contra dição lógica que se reflete por sua vez nas duas categorias nas quais se apresenta o conhecimento prático a saber a idéia do bem e a idéia do dever A filosofia do direito natural está concebida predominantemente segundo a categoria do bem Ver também parágrafo 70 302 Alf Ross metafísicas ao esquecimento junto com outros mitos e lendas da infância da civilização A história do direito natural revela dois pontos marcantes a arbi trariedade dos postulados fundamentais a respeito da natureza da existência e do ser humano e a arbitrariedade das idéias jurídico morais desenvolvidas com base nesse fundamento O direito natural busca o absoluto o eterno que fará do direito algo mais que a obra de seres humanos e livrará o legislador das penas e responsabilida des de uma decisão A fonte da validade transcendente do direito foi buscada numa mágica lei do destino na vontade de Deus ou numa percepção racional absoluta Porém a experiência mostra que as doutrinas que os homens construíram com base nessas fontes longe de ser eternas e imutáveis se alteraram em conformidade com o tempo o espaço e a pessoa O nobre manto do direito natural foi utilizado no decorrer do tempo para defender todo tipo concebível de exigências que surgem evidentemente de uma situação vital espe cífica ou que são determinadas por interesses de classe econômico políticos pela tradição cultural da época por seus preconceitos e aspirações em síntese para defender tudo aquilo que constitui o que se chama geralmente de uma ideologia A natureza exige que os seres humanos sejam entre si como irmãos ou é lei da natureza que o forte impere sobre o fraco e que por isso a escravidão e as diferenças de classe sejam parte do que Deus quis para o mundo Ambas estas proposições têm sido afirmadas com a mesma sustentação e o mesmo direito rig h tporque ninguém poderia optar entre esses absolutos exceto por uma afirmação absoluta acima de toda argumentação racional é assim porque eu sei que é assim A ideologia da igualdade foi pregada pelos sofistas no século V aC e por Rousseau no século XVIII como expressão das aspirações políticas de uma classe também foi sustentada pelos estóicos e pelos cristãos É forçoso que a ojeriza do empirista Alf Ross à metafísica se refira è metafísica tradicional de raizes gregas ciência das causas primeiras no dizer de Aristóteles levada ao clímax por Platão e o Estagirita cristianizada mais tarde principalmente pela patrística e a escolástica e conduzida à sua expressão mais sofisticada consumada e extrema da no sistema de Hegel Por certo Ross não deve se referir à metafísica enquanto tal ou indagação sobre o ser lontologia a não ser que desconhecesse ou propositalmente ignorasse o existencialismo de pensadores ateus como JeanPaul Sartre e Martin Heidegger Sein undZeit foi publicado em 1927 para os quais os conceitos de absoluto e eterno eram totalmente estranhos e inviáveis A propósito quanto ao assunto metafísica no direito é oportuno e proveitoso ler a obra Fenomenoíogia Existencial do Direito Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro de Jeannette Antonios Maman publicada pela Edipro IN TJ Direito e Justiça 303 porém aqui com um fundo religioso sem propósito político Platão por outro lado postulou a inata desigualdade dos seres humanos e advogou a escravidão e uma comunidade rigorosamente dividida em classes Aristóteles o seguiu no relativo à justificação natural da es cravidão e desde então o postulado da natural desigualdade humana tem sido o ponto de partida de muitas doutrinas jusnaturalistas con servadoras e de teorias orgânicas ou totalitárias de governo Carl Ludwig von Haller um professor suíço de direito constitucio nal do início do século XIX sustenta que segundo a lei da natureza o forte deve governar o fraco o marido a mulher o pai o filho o chefe os seus homens e o professor os seus alunos2 De maneira seme lhante Thomas Dew teórico político norteamericano declarou que está ordenado pela natureza e por Deus que o ser que possui a maior capacidade e saber e portanto maior poder deverá comandar e dispor sobre aquele que é inferior Baseado nisto Dew apoiou a instituição da escravidão nos Estados do sul e outros chegaram ao ponto de afirmar que a escravidão assegura os direitos naturais dos escravos A liberdade no seu sentido verdadeiro não é licença Por esta razão a escravidão assegura aos escravos seus direitos naturais e lhes outorga liberdade real na medida em que são capazes de recebê la Se a instituição da escravidão fosse abolida os escravos deixariam de gozar de seus direitos naturais No campo político sabese bem que o direito natural combinado com a doutrina do contrato social tem sido usado com sucesso para justificar todo tipo de governo desde o poder absoluto Hobbes até a democracia absoluta Rousseau O direito natural se pôs também a serviço de quem quis consolidar a ordem existente Heráclito Aristóteles Tomás de Aquino e outros e de quem preferiu advogar a revolução Rousseau Nos campos social e econômico o direito natural do século XVIII pre gou um individualismo e liberalismo extremos A inviolabilidade da pro priedade privada e a ilimitada liberdade contratual foram os dois dogmas que o século XIX herdou do direito natural dogmas que foram afirma dos na prática dos tribunais norteamericanos para invalidar muitas leis de caráter social Ainda em 1922 a Corte Suprema dos Estados Unidos 2 Restauration der Staatswissenschaft 1816 304 Alf Ross no caso Adkin3 declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Dis trito de Colúmbia sobre salários mínimos para mulheres apresentan do o fundamento de que essa lei que fora sancionada para assegu rar às mulheres com a pior das remunerações uma condição míni ma de subsistência e livrálas de cair na semiprostituição violava o direito natural dessas mulheres de celebrar contratos livremente Por outro lado o direito natural tem sido utilizado também como funda mento de uma moral da solidariedade Grócio Comte e outros sociologistas e inclusive na interpretação de Duguit para susten tar a negação de todos os direitos individuais e possibilitar um siste ma de serviços sociais O capítulo devotado ao direito de família nos sistemas de direito natural sempre propicia uma leitura divertida por refletir com clareza os preconceitos morais da época Para Tomás de Aquino a indissolubilidade do matrimônio Não cometerás adultério era está claro uma verdade evidente da razão A risível aridez do racionalismo se faz manifesta na definição que Kant dá ao matrimônio como um contrato entre duas pessoas de sexos diferentes para a posse mútua vitalícia de suas potências sexuais as relações sexuais só são permi tidas dentro do matrimônio se um dos cônjuges se entrega a um terceiro o outro cônjuge tem invariavelmente o direito de recobrar a posse do trânsfuga como se tratasse de um objeto material4 Seria fácil continuar mas que eu conclua lembrando a Epístola de São Paulo aos Coríntios Julgai por vós mesmos é honesto uma mulher rezar a Deus descoberta Não vos ensina a própria natureza que é vergonhoso para um homem ter os cabelos compridos Mas se uma mulher tem cabelos compridos é para ela honroso porque seus cabelos lhe foram dados como um véu que a cubra5 Como uma prostituta o direito natural está à disposição de todos Não há ideologia que não possa ser defendida recorrendose à lei natural E na verdade como poderia ser diferente considerandose que o fundamento principal de todo direito natural se encontra numa apreensão particular direta uma contemplação evidente uma intui ção Por que minha intuição não será tão boa quanto a dos outros 31922 261 US 525 4 Kant Metaphysische Anfangsgriinde der Rechtsiehre parágrafo 25 5 1 Coríntios cap 11 1315 Direito e Justiça 305 A evidência como critério de verdade explica o caráter totalmente arbitrário das asserções metafísicas Colocaas acima de toda força de controle intersubjetivo e deixa a porta aberta para a imaginação ilimitada e o dogmatismo A variabilidade histórica do direito natural dá suporte à interpretação de que os postulados metafísicos são meras construções para respaldo de posturas emocionais e satisfação de certas necessidades É mister todavia admitir que a variabilidade não é uma prova decisiva dessa interpretação Podese argumentar que as teorias científicas também mudam e que como dizia Tomás de Aquino a razão pode ser arrastada pelas paixões e que nem tudo que aparece como evidente é necessa riamente evidência genuína Isto contudo suscita o difícil problema de qual é o critério da genuína evidência problema que só pode ser resolvi do por meio de uma evidência à segunda potência e assim adinfínitum Um forte argumento em favor do ponto de vista de que as doutri nas jusnaturalistas são construções arbitrárias e subjetivas é que a evidência não pode ser um critério de verdade O que queremos dizer ao chamar uma proposição de verdadeira é obviamente diferente do fato psicológico de que a asserção da proposição seja acompanha da por um sentimento de certeza A afirmação de que a evidência garante a verdade de uma proposição não pode ser por conseguinte analiticamente verdadeira isto é uma definição do que significa ver dade Tem que ser tomada sinteticamente isto é como afirmando que o sentimento de evidência sempre ocorre associado a um tal estado de coisas que torne a proposição verdadeira Mas qual é a prova de que esses dois fenômenos caminhem sempre juntos Ne nhuma É certo que um sentimento de evidência acompanha muitas asserções verdadeiras porém não há razão alguma para que o mes mo sentimento não esteja também associado a erros e falácias A sólida crença na verdade de uma proposição necessita estar sempre justificada e jamais pode ser sua própria justificação A variabilidade histórica não é em si mesma decisiva O argu mento invocado se aplica independentemente dela Mesmo se admi tíssemos todos uma interpretação idêntica do direito natural e inclu sive ainda que essas idéias prevalecessem em nós com o automatismo de leis da natureza a crítica permaneceria ainda de pé Se sob a influência de alguma droga toda a humanidade tivesse visões estas fantasias não seriam verdadeiras na medida em que por verdade entendemos algo distinto de coerção psicológica 306 Alf Ross 59 PONTOS DE VISTA PSICOLÓGICOS As considerações psicológicas complementam a crítica epistemológica O quadro se faz mais claro se compreendermos não só que as especulações metafísicomorais são vazias e faltas de sentido mas também quais são as razões que fazem com que os seres huma nos persistam nelas A força de atração da metafísica no campo da moral e da reli gião é o temor das vicissitudes da vida da transitoriedade de to das as coisas da inexorabilidade da morte ou inversamente o desejo do absoluto do eternamente imutável que desafia a lei da corrupção Este temor em questões morais está associado ao te mor de ter que escolher e decidir sob circunstâncias que se alte ram e sob nossa própria responsabilidade É por isso que ao bus car justificação para nossas ações em princípios imutáveis que es tão fora de nós tentamos aliviar o peso da responsabilidade Se há uma lei independente de nossas escolhas e arbítrio que nos foi dada como verdade eterna baseada na vontade de Deus ou por meio de uma apreensão a priori da razão e que nos dita o proce dimento correto então ao obedecer essa lei universal não pas samos de peças obedientes de uma ordem cósmica e ficamos libe rados de toda responsabilidade O desejo do absoluto que nos liberte da responsabilidade e nos traga paz tem na vida moral humana as melhores condições para se transfor mar em crenças metafísicas difíceis de serem refutadas pelo pensamen to crítico A razão de tudo isso se encontra no peculiar mecanismo psico lógico do qual emana a consciência moral que se apresenta numa série de impulsos imperativos aparentemente cegos Como estes impulsos se fazem sentir de forma independente de nossas necessidades e desejos conscientes podem muito bem impor a nós a idéia ilusória de que em nossa consciência se manifesta uma voz ou uma lei que nos fala de uma validade ou retidão radicalmente distinta e independente de nossa natureza física de seus instintos e desejos A partir daqui abrese a via para toda sorte de construções metafísicas sobre a natureza da validade moral e o conteúdo da lei moral Mas tal como uma ilusão dos sentidos se desvanece quando observo seu objeto mais claramente assim também a fata Direito e Justiça 307 morgana da consciência moral desaparece ante uma observação psicológica mais intensa Não é possível fazer aqui um exame mais completo do mecanismo psicológico que enseja a consciência moral6 Aqui posso apenas assinalar que a consciência moral com seu pathos místico é como o maná caído do céu para quem tem fome metafísica e que afinal isso não é tão místico que não possa ser explicado cientificamente sobre uma base psicológica 0 que aqui se disse sobre a moral e a consciência moral vale para o direito e a consciência jurídica O direito também é experimentado como validamente obrigatório isto é como algo que obedeço não meramente em razão do temor à compulsão externa a sanção como também em razão do respeito pela autoridade interna validade do direito A consciência jurídica portanto tal como a consciência moral dá origem a interpretações supraempíricas O direito natural e a filo sofia moral estão estreitamente vinculados seja concebendose o direito natural como uma parte da moral seja concebendoo como um domínio independente da ética coordenado à moralidade 60 PONTOS DE VISTA POLÍTICOS Do ponto de vista político o direito natural pode ser conservador evolucionista ou revolucionário É claro que sua orientação política não pode ser invocada como um argumento a favor ou contra a plausibiiidade teórica da doutrina do direito natural porém as opiniões políticas de uma pessoa determinarão sua simpatia ou sua oposição relativamente à doutrina Embora ocorram os três tipos no curso da história o direito natu ral tem cumprido de forma primordial a função conservadora de outorgar ao poder existente um halo de validade O direito natural é primeira e principalmente uma ideologia criada pelos detentores do poder os estadistas os juristas o clero para legitimar e robus tecer sua autoridade7 A figura de linguagem é tomada da saga arturiana A fada Morgana era a irmã hostil do rei Artur Ross alude ao caráter fantasioso ilusório mágico da consciência moral é possível que esteja também de maneira sutil fazendo um significativo e irônico jogo de palavras aproximativo fatum quer dizer fatalidade fado destino IN TJ 6 Para um estudo mais completo ver Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 caps III 8 VII 1 e XIII 1 7 Isto não deve ser tomado ao pé da letra como se a ideologia tivesse sido inventada deliberadamente para esse propósito A relação entre a ideologia e o interesse é mais sutil 308 Alf Ross Um direito natural que em sua origem foi revolucionário transfor mase regularmente em conservador uma vez que tenham prevaleci do as classes sociais cujos interesses sustenta O direito natural indi vidualista e liberal que conduziu à revolução norteamericana é exemplo disso Os princípios referentes à propriedade à liberdade econômica e à liberdade contratual que tornaram possível a tremenda expansão da comunidade norteamericana na primeira parte do século XIX converteramse na última metade deste século num poder reacioná rio que para preservar as vantagens das classes capitalizadas obs truiu a evolução para o nivelamento e o bemestar sociais A Supre ma Corte dos Estados Unidos utilizou seu poder constitucional for çando amiúde sua interpretação da Constituição para invalidar uma série de leis inspiradas pelas necessidades dessa evolução mas que se achavam em conflito com os princípios jusnaturalistas de liberda de8 Isto ocorreu por exemplo com as leis que regulamentavam a jornada de trabalho e fixavam salários mínimos com as leis referen tes ao trabalho do menor nas minas e nas fábricas com as leis que proibiam os empregadores de interferir na afiliação dos empregados aos sindicatos com as leis que restringiam os ilimitados direitos do proprietário etc inclusive uma lei que propunha um modesto im posto de renda foi invalidada pela Corte Suprema 1895 resultando que não se pôde aprovar nenhuma lei desse tipo até que se introdu ziu uma emenda constitucional em 19139 Esta batalha contra os princípios sociais progressistas atingiu um clímax dramático quando depois da grande depressão de 1929 o Presidente Roosevelt iniciou seu New Deal na década de 30 A Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de diversas leis que visavam a restauração cons trutiva da vida econômica do país e o Presidente percebeu que não podia fazer outra coisa senão quebrar a resistência da Suprema Corte nomeando um número suficiente de novos membros j u i z e s partidá rios do progresso Em 1937 o Presidente submeteu ao Congresso um plano de reforma geral da organização dos tribunais cujo propósito real ainda que velado era possibilitar a nomeação de seis novos 8 Charles Grove Haines The Remai of Natural Law Concepts 1930 apresenta um bom estudo do tema Ver também Julius Stone Province and Function of Law 194650 cap IX W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 cap IX 9 Foi Cordell Hull mais tarde Secretário de Estado dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial que a partir de 1907 lutou a favor da implantação do imposto de renda e finalmente teve Sxito ao conseguir que se introduzisse a necessária emenda constitucional Ver Cordell Hull Memoirs 1948148505861 7071 Direito e Justiça 309 juizes da Suprema Corte O plano suscitou uma violenta oposição e nunca foi levado a cabo Durante algum tempo houvera uma crescen te minoria dentro da Suprema Corte que desejava acompanhar o Governo em sua política econômica Este grupo ganhou ascendência talvez como resultado da ameaça presidencial de aumentar o número de juizes porém não foram adotadas medidas drásticas A partir de aproximadamente 1937 a Corte Suprema dos Estados Unidos acei tou a nova ideologia econômica e limitou o exercício de seu poder de revisão judicial em relação às leis do Congresso Desde então somen te em um caso uma lei do Congresso foi declarada inconstitucional10 61 PONTOS DE VISTA DA TEORIA JURÍDICA Enquanto o direito natural foi simplesmente uma filosofia moral para justificar o direito positivo e para guiar o legislador não pôde causar sérios transtornos ao pensamento jurídico genuíno Seus postulados de que o direito deve estar em conformidade com a natureza humana ou com os princípios de justiça não impediam por si sós um trata mento realista dos problemas de política jurídica parágrafo 54 Em virtude de sua generalidade os princípios supremos não passaram de uma larga capa que dava ao direito uma roupagem moral sem impor tar necessariamente uma restrição à liberdade de pensamento Tal como assinalamos no parágrafo 55 o racionalismo introduziu uma alteração decisiva a essa situação O direito natural que era uma filosofia moral converteuse numa disciplina jurídica O racionalismo duplicou o sistema jurídico porque concebeu o direito natural como um conjunto de direitos naturais acima ou por trás dos direitos subjetivos positivos Diferentemente das meras especulações da filosofia moral essa duplicação do sistema jurídico resultou numa confusão de conceitos e na deterioração definitiva da análise jurídica e do tratamento dos problemas políticojurídicos O cerne do conceito de direito em sentido subjetivo foi sempre a idéia de um poder de coerção A realidade que corresponde a essa idéia é o poder do titular do direito de instaurar processos e por esta via acionar a maquinaria jurídica resultando que o poder político seja 10 United States v Lovett 328 US 303319 1946 cf Bemard Schwartz American ConstitutionaLaw 1955 212 310Alf Ross exercido em seu benefício parágrafos 39 e 33 Quando também o direito natural é concebido segundo a categoria do direito em senti do subjetivo e dessa maneira como um poder de coerção e tal foi a doutrina predominante no século XVIII surge a pergunta a que tipo de coerção nos referimos aqui Obviamente não pode ser a coerção exercida através da maquinaria do Estado porque esta se aplica aos direitos subjetivos do direito positivo Tampouco quere mos dizer que o titular de um direito subjetivo natural está moral mente autorizado a fazer uso da força porque neste caso o direito natural se dissolveria numa doutrina moral É inerente à constru ção que a força que está em jogo só pode ser aqui a que emana de potências espirituais ocultas um domínio invisível além da realida de empírica11 Mesmo que esse misticismo espiritual não tenha jamais recebido uma expressão clara e aberta está implícito na totalidade da linha de pensamento Manifestase numa concepção invertida da relação en tre o direito subjetivo e a sanção que é nosso legado da era do direito natural e que ainda hoje vicia o pensamento de juristas que se consideram positivistas A relação real é que o direito subjetivo nada mais é do que a unidade sobreposta numa totalidade de regras jurídi cas parágrafo 35 porque está vigente um conjunto de regras que me autorizam em virtude de certos fatos a reclamar indenização por danos restituição etc sou proprietário Mas no ponto de vista jusnaturalista a relação é invertida A pretensão de reclamar indeni zação por danos e prejuízos por exemplo se funda no fato de que meu direito foi violado O dano em princípio justifica a pretensão de reclamar reparo Do mesmo modo todas as outras sanções se pres supõem dependentes de violações prévias aos direitos subjetivos ma teriais de outra pessoa Desta maneira tornase impossível um exa me realista da função social do pagamento de indenizações por da nos e prejuízos ou de outras instituições jurídicas Só recentemente em particular na literatura jurídica escandinava foi possível eliminar essa confusão de conceitos Uma boa parte do mérito disto corresponde sem dúvida ao jurista sueco Lundstedt mesmo se con siderando que ao criticar as idéias vigentes tenha incorrido com fre qüência em exageros 11 Cf Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 11946 cap II p 12 Direito e Justiça 311 Por outro lado a habitual crítica de que o erro do direito natural consistiu em apresentar suas próprias exigências ideais como direito vigente não é correta O direito natural foi tipicamente não revolucio nário Reconheceu expressamente que os cidadãos devem obediên cia às leis do país ainda que não estejam de acordo com o direito natural porque as leis do país são sempre válidas em razão do con trato social e do princípio de pacta sunt servanda12 Isto se achava em perfeita concordância com a teoria política absolutista e com a prática da época As exigências liberais de reforma que foram formu ladas em nome do direito natural tinham o exclusivo propósito de servir de programa para a legislação O direito natural foi reformador evolucionista não revolucionário13 12 Ver por exemplo Pufendorf Le droit de ia nature et desgens tradução de Barbeyrac Livro XIII cap I seções 1 e 2 Segundo Pufendorf 3 relação entre o direito natural e o positivo pode ser descrita mais plenamente da seguinte maneira o direito natural não basta para assegurar a paz em virtude da fraqueza e natureza pecaminosa do ser humano É por isso que por meio do contrato social os seres humanos se submetem a um governo que tem autorida de para sancionar leis e fazer com que sejam cumpridas pela força Em virtude do contrato e do principio de direito natural que prescreve o cumprimento do convencionado as leis positivas adquirem sua validade natural isto é fazemse obrigatórias também aos olhos de Deus Entretanto o que lhes confere plena força ante os tribunais civis é a autoridade do soberano Possuem esta força independentemente de seu conteúdo Somente no caso do direito positivo carecer de um regra é que o direito natural a proporcionará 0 conteúdo do direito positivo direito civil consiste primordialmente nos princípios fundamentais do direito natural de cuja observância depende a vida pacífi ca comunitária entre os seres humanos Mas nas normas do direito positivo códigos civis esses principios surgem mesclados a regras sancionadas para o benefício ou conveniência do estado individual e também com muitas formalidades para a implementação técnica dos princípios 0 direito positivo direito civil compreende portanto o direito natural justiça benefício ou conveniência e positividades nuas e cruas Pufendorf op cit Livro I cap VI seção 12 Livro II cap III seção 11 Livro VII cap I seção 13 Livro VII cap II seção 7 Livro VIII cap I seções 12 Conseqüentemente a política enquanto doutrina acerca do conveniente distinguese nitidamente da moral e do direito como doutrina acerca do válido e do racional Ver Livro I cap II seção 4 13 Isto vale ao menos para o direito natural como doutrina jurídica A posição foi diferente nas teorias especificamente políticas que ao incluir no contrato social cláusulas referentes a certos direitos de liberdade Locke ou ao atribuir ao contrato social uma nova interpretação Rousseau adquiriram um conteúdo revolucionário Assim Locke foi também o pai ideológico da Revolução norteamericana como foi Rousseau o da francesa GRAMMAR Capítulo XII A Idéia de Justiça 62 A JUSTIÇA E 0 DIREITO NATURAL Na filosofia do direito natural a idéia de justiça ocupou sempre um lugar central O direito natural insiste que em nossa consgência resi de uma idéia simples e evidente a idéia de justiça que é o princípio mais elevado do direito em oposição à moral A justiça é a idéia espe cífica do direito Está refletida em maior ou menor grau de clareza ou distorção em todas as leis positivas e é a medida de sua correção Paralelamente a essa idéia em particular na filosofia mais antiga ocorre um outro uso de acordo com o qual justiça significa a virtude suprema que tudo abrange sem distinção entre o direito e a moral1 A justiça segundo esse modo de ver é simplesmente a expressão do amor ao bem e a Deus Neste espírito deve entenderse o Sermão da Montanha Bemaventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão satisfeitos Como princípio do direito a justiça delimita e harmoniza os desejos pretensões e interesses conflitantes na vida social da comunidade Uma vez adotada a idéia de que todos os problemas jurídicos são problemas de distribuição o postulado de justiça eqüivale a uma exigência de igualdade na distribuição ou partilha de vantagens ou cargas A justiça é igualdade Este pensamento foi formulado no século IV aC pelos 1 Ver Giorgio Del Vecchio Die Gerechtigkeit 1940 7 e segs 314Alf Ross pitagóricos que simbolizaram a justiça com o número quadrado no qual o igual está unido ao igual A idéia da justiça como igualdade desde então tem se apresentado sob inumeráveis variantes As vantagens ou cargas a cuja distribuição aludimos aqui podem ser de tipos diversos por exemplo salários impostos propriedade punição prestações individuais e sociais ou direitos e deveres tal como são distribuídos pelo ordenamento jurídico Em todos os casos a idéia de justiça exige uma distribuição igualitária 1 A idéia de justiça parece ser uma idéia clara e simples dotada de uma poderosa força motivadora Em todas as partes parece haver uma compreensão instintiva das exigências de justiça As crianças de tenra idade já apelam para a justiça se uma delas recebe um pedaço de maçã maior que os pedaços das outras Temse afirmado que mesmo os animais possuem o gérmen de um sentimento de justiça2 O poder da justiça é grande Lutar por uma causa justa fortalece e excita uma pessoa Todas as guerras têm sido travadas em nome da justiça e o mesmo se pode dizer dos conflitos políticos entre as clas ses sociais Por outro lado o próprio fato dessa aplicabilidade quase onipresente do princípio de justiça desperta a suspeita de que algo não anda bem com uma idéia que pode ser invocada em apoio de qualquer causa No parágrafo que se segue nos dedicaremos a exa minar mais de perto a idéia de justiça como exigência de igualdade 63 ANÁLISE DA IDÉIA DE JUSTIÇA Se a igualdade é tomada num sentido absoluto significa que todos quaisquer que sejam as circunstâncias deverão encontrarse exatamen te na mesma posição que os demais a cada um o mesmo No entanto fica óbvio que tal uniformidade absoluta não pode ser aquilo que se entende geralmente por justiça Tal feita de reconhecimento de todas as diferenças reais significaria de fato que todos ocupariam uma posição jurídica idêntica sem considerar a idade o estado civil se cometeu um assassinato ou não se celebrou um contrato ou não Está claro que ninguém jamais pretendeu atribuir esse significado àquela idéia3 2 Op cit p 55 com numerosas referências bibliográficas 3 Excepcionalmente justiça significa igualdade absoluta que não faz distinções Assim é quando a morte á por vezes interpretada como o destino igual que a todos alcança sem atender a diferenças mundanas De algum modo esta idéia inspira os quadros medievais da morte nos quais esta aparece dançando com seres humanos de todas as classes com o imperador e o papa com burgueses e mendigos Direito e Justiça 315 Não pode ser visto como injusto tendo ao contrário que ser um dos requisitos da justiça haver distinções de maneira tal que as vanta gens e as cargas os direitos e os deveres sejam distribuídos levando se em conta as circunstâncias condicionantes Os casados e os soltei ros os maiores e os menores os criminosos e os cidadãos respeitadores da lei não podem ter o mesmo status jurídico O requisito de igualdade encerra unicamente a exigência de que ninguém de forma arbitrária e sem razão suficiente para isso seja submetido a um tratamento que difere daquele que se dá a qualquer outra pessoa A exigência de igualdade deve ser compreendida portanto num sentido relativo isto é como uma exigência de que os iguais sejam tratados da mesma maneira Isto significa que como um prérequisi to para a aplicação da norma de igualdade e com independência dela é preciso que haja algum critério para determinar o que será conside rado igual em outras palavras a exigência de igualdade contida na idéia de justiça não é dirigida de forma absoluta a todos e a cada um mas a todos os membros de uma classe determinados por certos critérios relevantes Em conformidade com isso as diversas formula ções de justiça para grupos ou contextos diversos incluem além da idéia de igualdade um padrão de avaliação que deve ser aplicado como um prérequisito à definição da categoria cujos membros de vem ser tratados com igualdade Alguns poucos exemplos servirão para ilustrar este ponto4 A cada um segundo seu mérito Esta fórmula é usada com freqüência quando se alude à justiça nesta vida ou depois da morte O critério é dado pelos méritos morais ou o valor moral de uma pessoa e a idéia é que a justiça exige uma relação proporcionada entre mérito e destino neste mundo ou no outro A cada um segundo sua contribuição Esta fórmula é sustentada freqüentemente na teoria política pelo socialismo marxista por exemplo para cobrir o período de transição que precede a realização plena do comunismo como o princípio em favor da justa remuneração ou participação no produto O padrão de 4 Cf Perelman Dela justice 1945 16 e segs de onde foram extraidos os exemplos citados aqui 316 Alf Ross avaliação é aqui a contribuição que cada pessoa faz à economia social A relação é concebida como um intercâmbio de cumprimentos entre á pessoa e a comunidade A mesma fórmula todavia é utilizada também pelos teóricos que sobre bases individualistas concebem o trabalho e a remuneração como um intercâmbio de cumprimentos entre particulares Esse princípio é aplicado em sua forma mais pura quando a remu neração é fixada por unidades A determinação por unidade de tem po constitui uma adaptação prática baseada na quantidade média de trabalho executado por hora Esta fórmula de justiça é invocada quando atualmente as mulhe res exigem com freqüência uma remuneração igual a dos homens pelo mesmo trabalho Isto expressa precisamente a idéia de que o critério relevante que determina a classe que reclama tratamento igual é a quantidade de trabalho executado Todas as pessoas que pertencem a esta classe tanto as mulheres quanto os homens têm assim o direito de reivindicar a mesma remuneração A cada um segundo suas necessidades Esta é a fórmula de justiça segundo a teoria comunista para a comunidade plenamente socializada Nesta cada um deverá contri buir de acordo com sua capacidade e receber de acordo com suas necessidades O critério relevante não é pois o quantum da contri buição mas sim a necessidade Aquele que é enfermo ou fraco deve receber o que necessita sem se levar em conta o fato de que por essa mesma razão dá uma pequena contribuição ou nenhuma Enquanto a remuneração efetiva na comunidade moderna tanto na socialista quanto na capitalista está baseada principalmente no princípio de pagamento iguaipor trabalho igual o princípio de neces sidade é aplicado de forma crescente em matéria de proteção social O princípio de necessidade é o fundamento da idéia de que o desem pregado o doente o inválido o indivíduo deficiente ou o chefe de família têm direito a que lhes satisfaçam as necessidades que são a conseqüência de sua posição particular Numa certa medida o princí pio de necessidade se aplica também à remuneração por exemplo nas normas a respeito de salário mínimo na diferença de salários entre os homens e as mulheres em matéria de pensões familiares etc O aumento de remuneração do funcionário público de acordo com o maior tempo de serviço poderia também ser considerado como fundado parcialmente numa consideração de necessidade Direito e Justiça 317 A cada qual segundo sua capacidade Este princípio de justiça para a distribuição de cargas é a contrapartida do princípio de necessidade na distribuição de vanta gens Sua aplicação típica é a determinação do imposto de renda por meio de regras referentes a rendas mínimas isentas de imposto es calas progressivas deduções por filhos etc A cada um segundo sua posição e condição Este princípio aristocrático de justiça tem sido sustentado com fre qüência para justificar as distinções de classe social É preciso lem brarmos que o correlato lógico da exigência de igualdade é a exigên cia de tratamento desigual para o que é desigual à luz do padrão pressuposto de avaliação Neste caso o padrão medida é pertencer a uma classe determinada pelo nascimento raça cor credo idioma caráter nacional características étnicas status social etc Com base neste princípio é justo que se faça uma distinção entre o amo e o escravo entre pessoas brancas e pessoas negras entre nobres e camponeses entre raça superior e raça submetida entre nação im perial e nativos entre crentes ortodoxos e hereges entre membros do partido e os que não são Formulações deste tipo se encontram especialmente nas teorias orgânicas ou totalitárias de governo desde Platão até nossos dias as quais ressaltam a desigualdade natural entre os seres humanos e a construção orgânica ou hierárquica da comunidade num certo número de classes cada uma das quais de sempenhando sua função particular dentro do todo5 Indicamos esses exemplos não para discutir qual formulação do princípio de justiça é a correta mas para mostrar que a pura exigên cia formal de igualdade não significa em si muito e que o conteúdo prático da exigência de justiça depende de pressupostos que são Cumpre frisar que na prática ao longo da história das sociedades humanas essas teorias obviamente predominaram especialmente no seio das chamadas sociedades civilizadas seja em regimes políticos francamente totalitaristas absolutistas ou despóticos seja veladamente mas de fato em formas de governo ditas democráticas das quais são exemplos atuais as tantas democracias de direito e de direita mais escassas no tempo de Ross particular mente no bloco fragilizado dos países de terceiro mundo tristes e patéticas hipossuficiências na globalização chamadas segundo o artificioso eufemismo pretensamente otimista dos novos títeres de economias emergen tes Ocioso dizer que a recente hegemonia política e econômica dos EUA no planeta consolidou essa situação na qual o Brasil se destaca como grande coadjuvante Quanto a Platão ver os diálogos A República e As Leis ambos publicados por esta Editora IN T 5 Ver o capítulo Justiça totalitária em K R Popper The Open Society andits Enemies I 74 e segs 318Alf Ross externos ao princípio de igualdade a saber os critérios que determi nam as categorias às quais se deve aplicar a norma de igualdade Não representa muito sustentar que as remunerações e os impostos deverão ser estabelecidos com igualdade São fórmulas vazias a menos que se defina adicionalmente mediante qual critério deverseá de terminar o que se entende por com igualdade Examinaremos agora com maior rigor o papel desempenhado por cada um dos dois elementos contidos nas fórmulas de justiça a exigência formal de igualdade e o critério material para a determina ção da classe a que se aplica a norma de igualdade A exigência formal de igualdade não exclui uma diferenciação en tre pessoas que se acham em circunstâncias distintas O único requi sito é que a diferença deve atender ao fato de que à luz de certos critérios relevantes as pessoas pertencem a classes diferentes O prin cípio puro da igualdade contudo não nos informa quais são os crité rios relevantes Se este ponto permanece sem ser decidido a exigên cia de igualdade se reduz à exigência de que todas as diferenciações dependam de critérios gerais quaisquer que sejam estes critérios Entretanto isto não passa de uma exigência de que o tratamento concreto se apresente sob a forma da aplicação de uma regra geral qualquer que seja esta porque por tal regra entendemos precisa mente uma diretiva que torna contingente uma certa conduta a cir cunstâncias descritas com a ajuda de conceitos o que eqüivale a certas características ou critérios Conseqüentemente o ideal de igualdade por si só significa sim plesmente a correta aplicação de uma regra geral qualquer que seja ela Os conceitos ou características gerais empregados na regra de finem uma certa classe de pessoas ou situações às quais se deverá proporcionar um certo tratamento O tratamento igual de todos os que pertencem a essa classe é portanto conseqüência necessária da correta aplicação da regra Justiça nesse sentido formal como sinônimo da pura exigência de igualdade ou de estar submetido a regras pode também ser expressa como uma exigência de racionalidade no sentido de que o tratamento dado a uma pessoa deve ser prédeterminável por critérios objetivos estabelecidos por regras dadas Isto faz com que a aplicação concreta dentro de certos limites elásticos seja independente do sujeito que uireuo e justiça j i v decide Disto resulta que a justiça acaba por colocarse em oposição à arbitrariedade quer dizer a decisão que surge não determinavelmente da reação espontânea do sujeito que decide à situação concreta e é determinada por suas emoções e atitudes subjetivas Essa exigência formal de regularidade ou racionalidade e nada mais é o que emerge do primeiro dos dois elementos contidos nas fórmulas de justiça ou seja a pura exigência de igualdade6 É evi dente que essa exigência formal não pode jamais justificar a preten são de que uma regra terá que ser preferível a outra Qualquer que seja o conteúdo da regra a exigência de regularidade fica satisfeita As fórmulas correntes de justiça todavia pretendem ser padrões orientativos do legislador em sua escolha da regra correta Segue se disso que na medida em que possuam algum conteúdo este con teúdo não pode ser extraído do princípio de igualdade tendo sim que derivar do outro elemento que aparece nas fórmulas de justiça os critérios materiais pressupostos A relação entre os dois elementos das fórmulas de justiça tem importância primordial A aparente evidência que se pode atribuir à idéia de igualdade e que se sente dar às fórmulas de justiça sua justificação autosuficiente não abarca o elemento essencial nessas fórmulas quer dizer o postulado material de avaliação A idéia de justiça dizse surge de nossa consciência mais íntima com necessi dade imperativa a priori Porém dificílimo afirmar que em nossas mentes se aloja um postulado evidente que diz que o total dos impos tos deve estar relacionado com a capacidade de pagálos ou que a remuneração deve estar relacionada com a quantidade de trabalho executado O valor dessas regras obviamente não está acima de toda discussão elas devem ser justificadas à luz de suas conseqüên cias práticas Apresentálas como uma exigência de justiça fundada numa idéia evidente de igualdade é um hábil método que colima conferir a certos postulados práticos determinados pelo interesse a evidência aparente que pertence à idéia de igualdade As palavras justo e injusto ou retoe não reto têm sentido quan do empregadas para caracterizar a decisão tomada por um juiz ou por qualquer outra pessoa que deve aplicar um conjunto determina do de regras Dizer que a decisão é justa significa que foi elaborada 6 Tampouco há algo mais encerrado na máxima não faças aos outros o que não desejarias que fizessem a ti 320 Alf Ross de uma maneira regular isto é em conformidade com a regra ou sistema de regras vigentes paragrafo 65 menos precisamente es ses termos podem ser aplicados a qualquer outra ação que é julgada à luz de determinadas regras Neste sentido qualquer conduta pode ser denominada reta se estiver em harmonia com regras pressu postas jurídicas ou morais Contudo empregadas para caracterizai uma regra geral ou um ordenamento as palavras justo e injusto ca recem de significado A justiça não é uma orientação para o legisla dor já que na verdade é impossível como vimos extrair da idéia formal de igualdade qualquer tipo de exigência relativa ao conteúdos da regra ou do ordenamento Empregadas nesse sentido as palavras5 não têm nenhum significado descritivo Uma pessoa que sustenta que certa regra ou conjunto de regras por exemplo um sistemas tributário é injusto não indica nenhuma qualidade discernível nas regras não apresenta nenhuma razão para sua atitude Simplesmen te se limita a manifestar uma expressão emocional Tal pessoa diz Sou contra essa regra porque é injusta O que deveria dizer é Esta regra é injusta porque sou contra ela Invocar a justiça é como dar uma pancada numa mesa uma ex pressão emocional que faz da própria exigência um postulado absolu to Não é o modo adequado de obter entendimento mútuo É impos sível ter uma discussão racional com quem apela para a justiça porque nada diz que possa receber argumentação a favor ou contra Suas palavras são persuasão não argumentos parágrafo 72 A ideo logia da justiça conduz à intolerância e ao conflito visto que por um lado incita à crença de que a exigência de alguém não é meramente a expressão de um certo interesse em conflito com interesses opos tos mas sim que possui uma validade superior de caráter absoluto e por outro lado exclui todo argumento e discussão racionais que visem a um acordo A ideologia da justiça é uma atitude militante de tipo biológicoemocional para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e implacável de certos interesses Visto que a idéia formal de igualdade ou justiça como estrela polar para a orientação políticosocial carece de todo significado é possível advogar a favor de qualquer postulado material em nome da justiça Isto explica porque todas as guerras e conflitos sociais como foi dito anteriormente foram travados em nome da exaltada idéia de justiça E é demasiado esperar que isto mude no futuro Apelar para a justiça é Direito e Justiça 321 usar uma arma demasiadamente eficiente e conveniente do ponto de vista ideológico para que alimentemos a esperança de que os estadis tas os políticos e os agitadores mesmo quando percebam a verdade ousem pactuar o desarmamento nesse ponto Ademais a maioria de les são provavelmente vítimas da ilusão É muito fácil crer nas ilusões que excitam as emoções pelo estímulo das glândulas suprarenais 64 ALGUNS EXEMPLOS A análise da idéia de justiça baseada no parágrafo anterior em algumas fórmulas simples tomadas da ideologia política será exemplificada a seguir por teorias mais desenvolvidas tomadas da própria filosofia do direito Pelo que dissemos anteriormente fica patente que os filósofos que tentaram uma exposição mais teórica da idéia de justiça como a nor ma suprema para a criação do direito positivo trabalharam sob a pressão de um dilema Se por um lado caso fosse preciso conservar a ilusão de que a justiça é uma idéia a priori seria necessário conferir ao princípio uma formulação muito abstrata estreitamente vinculada à idéia pura de igualdade Entretanto quanto mais nos aproximamos dessa idéia mais nos evidencia que o princípio carece de conteúdo Se por outro lado fosse preciso dar ao princípio um conteúdo real seria difícil preservar a ilusão da evidência Esse dilema resultou na formulação mais ou menos tautológica ou despojada de significado do princípio enquanto ao mesmo tempo nele são introduzidos por contrabando postulados dogmáticos ocultos de cunho políticojurídi co Desta maneira aquilo que carecia de significado adquiriu um con teúdo aparente e este conteúdo adquiriu uma evidência aparente A fórmula pela qual os juristas romanos expressaram o princípio de direito natural ou justiça foi suum cuique tribuere neminem iaedere honeste vivere Foi amiúde repetida com insistência como se tratasse da quintessência da sabedoria Entretanto tratase de pura ilusão que atinge a aparência de algo óbvio porque não diz absolutamente nada Dar a cada um o seu soa esplêndido Quem ousará questioná lo A única dificuldade é que esta fórmula pressupõe que eu saiba o que é devido a cada pessoa como o seu quer dizer como seu direito A fórmula é assim carente de significado visto que pressu põe a posição jurídica para a qual deveria servir de fundamento 322 Alf Ross Coisa idêntica ocorre com a exigência de não causar dano ao ou tro O que é causar dano Não é possível que signifique agir de tal maneira que prejudique os interesses ou frustre os desejos alheios Neste sentido o credor causa dano ao devedor ao exigirlhe o paga mento de seu crédito um comerciante causa dano a outro quando compete com este e a comunidade causa dano ao criminoso ao punilo Não o significado só pode ser que não devo interferir ilicita mente nos interesses alheios ou que não devo violar seus direitos e aqui também o raciocínio é claramente circular O mesmo ocorre com o mandamento viver honestamente pois aqui honestamente só poder querer dizer como é óbvio que a con duta deve se conformar com a letra e o espírito da lei Uma das formulações mais famosas do princípio supremo do direi to é a de Kant Um procedimento é lícito se a liberdade para realizá lo é compatível com a liberdade de todas as outras pessoas segundo uma regra geral7 A mesma idéia pode ser expressa também como segue a única coisa que pode justificar uma restrição à liberdade de ação é essa restrição ser necessária à liberdade dos demais se a mesma regra for para se aplicar a todos Essa fórmula kantiana expressa o fato de que a exigência de igual dade é idêntica à exigência de uma regra geral Mas se não há outra maneira de saber qual deve ser o conteúdo da regra geral esse crité rio carece de significado É possível imaginar que qualquer ação seja justificada por uma regra geral ou outra que valha para todos Se por exemplo A mata o amante de sua mulher isto pode ser justificado com base numa regra geral que diz que é permitido o homicídio por ciúme A liberdade de A é assim compatível com a liberdade de todos os demais de acordo com a mesma regra geral O fato de que segundo outros fundamentos pensemos que tal regra não seja reco mendável não afeta o princípio de Kant Se é para esse princípio ter algum significado e conteúdo a idéia deve ser que a liberdade é restrita em vista dos direitos alheios e assim novamente o pensa mento volta a se mover de forma circular8 7 Immanuet Kant Metaphysik der Sítten Eineitung in die Rechtstehre par C 8 A Constituição turca de 10 de janeiro de 1945 seção 68 inclui uma regra de conteúdo similar àquele da regra kantiana Todo turco nasce livre e vive livre Goza de liberdade para fazer tudo aquilo que não prejudique os outros I Direito e Justiça 323 Uma concepção muito difundida que indubitavelmente reflete me lhor do que o formalismo de Kant a consciência geral de leigos e juristas sustenta que a justiça significa o igual equilíbrio de todos os interesses afetados por uma certa decisão Ninguém desenvolveu esta idéia de forma mais cabal e penetrante do que o filósofo alemão Leonard Nelson9 Utilizando como pontos de partida a consciência moral geral e a jurídica Nelson sustenta que a suprema norma de ação que determi na o dever humano se caracteriza como segue 1 É restritiva isto é não nos ordena realizar positivamente certos fins mas coloca limites à nossa liberdade de realizar os fins para os quais tendemos por natureza 2 Esse limite restritivo consiste na exigência de que na busca da realização de nossos interesses devemos também levar em conside ração os interesses dos demais 3 Essa consideração se expressa na exigência de que a pessoa que realiza a ação leve em consideração os interesses afetados por sua ação sejam próprios ou alheios Deve pesálos entre si sem aten der às pessoas ou como se fossem todos seus próprios interesses Esses três fatores são então unidos por Nelson na seguinte for mulação da norma de justiça Nunca ajas de tal maneira que não aprovasses tua ação se todos os interesses afetados fossem os teus Esse princípio que praticamente faz do agente o juiz de sua pró pria causa e exige dele uma decisão imparcial com abstração da dife rença entre seus próprios interesses e os alheios é inegavelmente muito atraente e se harmoniza com a concepção que muitos juristas têm da tarefa de encontrar a solução jurídica correta para um conflito de interesses A fórmula de Nelson requer um exame crítico Procurei realizálo num dos meus trabalhos anteriores10 Não caberia aqui re produzir a argumentação detalhadamente Apenas mencionarei al guns dos pontos principais 0 direito natural do indivíduo è liberdade é limitado pelas liberdades das quais gozam os seus concidadãos Estes limites são estabelecidos exclusivamente pela lei 0 absoluto vazio de tal fórmula assegurado de maneira comple mentar pela última frase á precisamente o que a torna adequada em elevado grau a servir fins ideológicos 9 leonard Nelson Kritik derpraktischen Vernunft 1917 Para um estudo documentado em detalhe da doutrina de Nelson ver meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XI 2 10 Ver nota anterior 324Alf Ross O conteúdo da lei de Nelson pode ser analisado em dois elemen tos Primeiro Nelson exige que realizemos um experimento no pen samento imaginar que todos os interesses afetados por uma ação são próprios do sujeito agente Segundo devemos investigar se com esse pressuposto o agente aprovaria a ação Se esta condição é cum prida a ação é legítima O caráter impraticável do experimento que Nelson nos solicita exe cutar deveria evidenciarse por si mesmo Enquanto facilmente posso imaginarme usando o chapéu de outrem com plena consciência de que pertence a outrem o mesmo não é possível no caso de um inte resse Não posso ter um interesse e ao mesmo tempo considerálo não como meu mas como de outra pessoa Uma análise acurada demonstrará que seja qual for o significado mais preciso que nos empenhemos em atribuir ao experimento do pensamento de Nelson conduzirá a um resultado absurdo e é irrealizável Somos obrigados portanto a dispensar o experimento e formular a exigência dizendo que o agente tem que ponderar todos os interes ses segundo o peso de cada um em si sem distinguir entre os seus e os de outras pessoas Diante disso se colocam duas objeções definitivas Primeiro e isto é definitivo independentemente da rejeição do experimento do pensamento o princípio de Nelson se apóia no pres suposto de que é possível numa dada situação analisar um certo número de interesses de conteúdo preciso determinável De outra maneira não teria sentido em se falar de ponderálos Esse pressu posto parece ser confirmado pela experiência ordinária Se por exem plo um banco quebra é possível distinguir pelo menos os seguin tes interesses o interesse dos clientes em recuperar seus depósitos o interesse dos credores pela cobrança de seus créditos e o interesse dos acionistas em proteger o capital Mas se por interesse de A em algo entendemos simplesmente sem pressupostos que a existência desse ago seria vantajosa e satisfatória para A à luz dos desejos necessidades e inclinações que a natureza nele colocou então não há razão para limitar os interesses da maneira assinalada Isto por que certamente seria vantajoso e satisfatório para os depositantes ob ter não só a restituição de seus depósitos como também o pagamento do dobro ou décuplo do montante dos mesmos e nesta medida Direito e Justiça 325 podese dizer que têm interesse nisso Não haveria então limites para o interesse de alguém podendose sim dizer que todos estão ilimi tadamente interessados em tudo que pode ser vantajoso para eles Isto pode parecer exagerado e ninguém pensaria em invocar o inte resse dos depositantes em obter mais do que seus depósitos sim plesmente porque o conceito de interesse que efetivamente maneja mos nos raciocínios jurídicomorais não é o conceito sugerido A nin guém ocorreria defender o interesse dos clientes em obter mais do que seus depósitos já que tal pretensão pareceria totalmente injustificada Mas isto significa que o próprio conceito de interesse está juridicamente qualificado não abarca todos os desejos ou preten sões imagináveis mas apenas aqueles que estão justificados E isto significa ademais que o conceito de interesse pressupõe a existência de um ordenamento jurídico e que a ponderação dos interesses não pode ser um princípio do qual deriva tal ordenamento jurídico Assim Nelson se equivoca quando pensa que pode extrair a su prema norma de ação ou o princípio de todo direito de uma pondera ção de interesses dados de um conteúdo preciso determinável A de terminação dos interesses dentro de um limite definido pressupõe ne cessariamente um ordenamento jurídico já existente para distinguir entre interesses que estão justificados e aqueles que não estão Esse ordenamento jurídico só pode ser o direito natural que se manifesta num conjunto de direitos rlghts subjetivos naturais O interesse justi ficado é o que surge de um direito subjetivo natural E assim também o princípio de justiça de Nelson se resolve numa tautologia a justiça consiste em satisfazer aqueles interesses que estão justificados A segunda objeção se refere à ponderação dos interesses justifi cados Como assinalamos devemos descartar a técnica de disfarçar essa ponderação imaginando que todos os interesses afetados são próprios do sujeitoagente e se perguntando se com base em tal suposição ele agiria da mesma maneira Por trás dessa ficção se oculta a idéia de que os interesses em jogo devem ser ponderados de forma objetiva isto é sejam quais forem os sujeitos desses interes ses e seja qual for sua força motivadora efetiva O próprio Nelson fala do interesse genuíno ou bem entendido determinado pelo valor objetivo dos benefícios correspondentes A ponderação se transfor ma assim na realidade não numa prova de força entre as forças motivadoras de interesses diferentes mas numa ponderação de be nefícios relativa a um padrão objetivo de valores predeterminados 326 Alf Ross Tomadas conjuntamente estas duas objeções deixam manifesto que a evidência que pode reclamar o princípio de igual ponderação de interesses de Nelson é um engano O conteúdo real do princípio não consiste na igual ponderação mas sim nas pressuposições ocultas referentes à justificação dos interesses e ao peso de seu valor objeti vo isto é nos postulados materiais que por seu caráter pertencem ao direito natural e à filosofia dos valores O caráter desses postula dos fica oculto sob a aparente evidência da idéia de igualdade A idéia de justiça dificilmente poderia encenar seu baile de máscaras de maneira mais eficaz 65 A IDÉIA DE JUSTIÇA E O DIREITO POSITIVO Precisamente como vimos a idéia de justiça se resolve na exigên cia de que uma decisão seja o resultado da aplicação de uma regra geral A justiça é a aplicação correta de uma norma como coisa opos ta à arbitrariedade A justiça portanto não pode ser um padrão jurídicopolítico ou um critério último para julgar uma norma Afirmar que uma norma é injusta como vimos não passa da expressão emocional de uma rea ção desfavorável frente a ela A declaração de que uma norma é injusta não contém característica real alguma nenhuma referência a algum critério nenhuma argumentação A ideologia da justiça não cabe pois num exame racional do valor das normas Isso não quer dizer que não haja conexão entre o direito vigente e a idéia de justiça Dentro desta idéia podese distinguir dois pontos primeiro a exigência de que haja uma norma como fundamento de uma decisão segundo a exigência de que a decisão seja uma aplica ção correta de uma norma E por isso o problema pode ser formula do de duas maneiras a saber a Podemos nos indagar que papel desempenha a idéia de justi ça na formaçãodo direito positivo na medida em que é entendida como uma exigência de racionalidade isto é uma exigência de que as normas jurídicas sejam formuladas com a ajuda de critérios obje tivos de tal maneira que a decisão concreta tenha a máxima inde pendência possível diante das reações subjetivas do juiz e seja por isso previsível Direito e Justiça 327 Tal exigência é resultado do direito ser uma ordem social e institucional diferentemente dos fenômenos morais individuais pa rágrafo 11 Sem um mínimo de racionalidade previsibilidade regu laridade seria impossível falar de uma ordem jurídica Isto pressu põe que é possível interpretar as ações humanas como um todo coerente de significados e motivações e dentro de certos limites prevêlas capítulo I Nesta medida a idéia de justiça no sentido de racionalidade e regularidade pode ser qualificada como constitutiva do conceito do direito A racionalidade formal objetiva porém é também um ideal do direito no sentido de que é desejável um máximo de racionalidade em harmonia com certas valorações que pelo menos na civilização oci dental estão presentes quando se cria o direito A regularidade objetiva como coisa oposta à arbitrariedade subje tiva é experimentada como um valor em si mesma Esta idéia se expressa na velha máxima inglesa de que a comunidade deverá ba searse no governo da lei não no governo dos homens O juiz não deve ser como o rei homérico que recebia seu themistes diretamente de Zeus ou como o cádi oriental que retira sua decisão de uma sabe doria esotérica A idéia da supremacia do direito nos faz reagir contra a tendência dos Estados totalitários autorizar o juiz a decidir deixan do de lado todas as regras estabelecidas para decidir segundo a sã consciência jurídica do povo ou os interesses do proletariado Ve mos nisto uma negação da própria idéia do direito Tal valoração por sua vez é provavelmente baseada nos efeitos sociais do império do direito Do ponto de vista dos cidadãos o impé rio do direito é a condição de segurança e possibilidade de cálculo nos assuntos da vida comunitária Do ponto de vista das autoridades é uma condição para o controle do comportamento dos cidadãos a lon go prazo isto é que ultrapassa o caso específico inculcando neles padrões fixos de conduta A regularidade objetiva ou racionalidade formal é uma idéia funda mental em todo direito mas não é a única Estabelecidas em catego rias determinadas por critérios objetivos as normas se apresentam como valorações formalizadas da tradição cultural Entretanto a regra jurídica formalizada nunca pode expressar exaustivamente todas as considerações e circunstâncias relevantes Inevitavelmente quando se 328 Alf Ross aplica ao caso individual é possível que a norma conduza a resulta dos que não podem ser aprovados pela consciência jurídica como a expressão espontânea não articulada daquelas valorações funda mentais Todo direito e toda administração de justiça portanto estão determinados em aspectos formais por um conflito dialético entre duas tendências opostas Por um lado a tendência à generalização e à decisão em conformidade com critérios objetivos e por outro lado a tendência à individualização e à decisão à luz das valorações e apreciações subjetivas da consciência jurídica ou mais sumaria mente por um lado a tendência para a justiça formal por outro a tendência para a eqüidade concreta Ambas as tendências fazem sentir seu influxo no direito em ação em todas as circunstâncias porém seu peso mútuo relativo pode variar com o tempo e com o lugar e de uma esfera do direito para outra Na administração de justiça o contraste se expressa na diferença entre o estilo restrito e o estilo livre de interpretação parágrafo 29 Na legislação o contraste aparece no grau de liberdade que as regras em sua formulação deixam a critério do juiz O legislador pode manter a ilusão de haver estabelecido uma regra mas expressá la em termos tão vagos por exemplo referindose à opinião moral dominante que o resultado seja uma larga liberdade para que o juiz ou o funcionário administrativo possam exercer seus critérios Este método de formular a lei é denominado método dos padrões jurídi cos11 ou o legislador autoriza francamente o juiz possivelmente dentro de certos limites a tomar uma decisão segundo seu critério Historicamente tanto na legislação como na administração de jus tiça o formalismo estrito desenvolveuse no sentido de proporcionar um espaço cada vez maior à sentença individualizadora O desacordo entre o direito formalizado e as exigências de eqüida de se torna mais aparente quando ocorre um desenvolvimento social sem que a legislação proceda a um ajuste das normas às novas con dições Sentese então uma particular necessidade de decisões con trárias ao direito formal A princípio tais decisões terão o caráter de eqüidade precisamente porque não acatam regras dadas surgindo 11 Ver por exemplo Mareei Stati Le Standardjuridique 1927 Direito e Justiça 329 sim de uma apreciação intuitiva da situação concreta Porém no decorrer do tempo lograrseá novamente a racionalidade formal Atra vés da prática dos tribunais surgirá uma nova doutrina e as decisões posteriores se fundarão nela perdendo seu caráter de eqüidade Cons titui circunstância histórica peculiar essa atividade de ajuste algumas vezes não ser exercida pelos tribunais ordinários mas sim por tribu nais especiais Em tais casos o novo direito assim desenvolvido pas sou a ser interpretado como um sistema jurídico especial um direito de eqüidade com o qual se visava a complementar o direito ordinário Um bom exemplo disso é o desenvolvimento da eqüidade no direito inglês12 A rigidez da common law tradicional e sua evidente falta de razoabilidade frente às novas condições sociais deu lugar num certo período à prática de recorrer ao rei contra decisões que não estavam de acordo com as exigências da consciência jurídica a administração de justiça era considerada uma prerrogativa do rei O rei nestes ca sos exercia seu poder através do chanceler que era considerado o guardião da consciência do rei O chanceler era por certo formalmen te obrigado a seguir a common law mas na realidade desempenha va sob a pressão dos fatos uma considerável atividade discrecional criadora de novo direito baseado em suas concepções de eqüidade No desenrolar do tempo a chancelaria CourtofChancer tornouse uma instituição permanente e as originais decisões de eqüidade discrecional foram substituídas por uma administração regular de justiça em con formidade com as doutrinas que foram se desenvolvendo através da prática da chancelaria As decisões de eqüidade do chanceler suscita ram em seu tempo muitas críticas Numa metáfora grotesca diziase que a eqüidade segundo a consciência do chanceler não era melhor que a eqüidade segundo o tamanho do seu pé Um chanceler tem pé grande outro pé pequeno um terceiro pé mediano o mesmo se passa com a consciência do chanceler Esta crítica perdeu logo sua validade e Lord Eldon um dos mais famosos chanceleres ingleses pôde proferir numa resolução Não posso concordar que as doutrinas deste tribunal sejam mudadas cada vez que muda o juiz Nada me causaria maior pesar ao deixar este cargo que a lembrança de ter justificado em alguma medida a reprovação de que a eqüidade deste tribunal varia como varia o tamanho do pé do chanceler13 12 Ver também C K Allen L m in theMaking 4 ed 1946 322 e segs e Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 11929 123 e segs com referências 13 Gee versus Pritchard 2 Swanst 414 T ranscrito de Holland Elements of Jurisprudence 74 330 Alf Ross Na Europa continental não se faz uma distinção correspondente à distinção entre direito em sentido estrito jus strictum e eqüidade Isto se deve em parte ao maior papel desempenhado pela legislação na atualização do direito e em parte à maior liberdade de interpretação exercida pelos juizes Para um juiz da Europa continental o direito e a eqüidade não se opõem sendo sim a eqüidade uma parte do direito b Podese perguntar então que papel desempenha a idéia de justiça na administração de justiça na medida em que essa idéia é entendida como uma exigência de que a decisão do caso individual aplique corretamente o direito vigente Esse papel sem dúvida alguma é importante A justiça concebida desta maneira como um ideal para o juiz para todo aquele que tem que aplicar um conjunto determinado de regras ou padrões é uma idéia poderosa na vida social Representa o que se espera de um bom juiz e é aceita pelo próprio juiz como padrão profissional supremo No que toca a isto a idéia de justiça faz sentido Referese a fatos observáveis Qualifi car uma decisão de injusta quer dizer que não foi realizada de acordo com o direito e que atende a um erro injusta em sentido objetivo ou a um desvio consciente da lei injusta em sentido subjetivo Dizer que um juiz cometeu uma injustiça subjetivamente significa que se deixou guiar por interesses pessoais pela amizade em relação a uma das par tes pelo desejo de agradar aos que estão no poder ou por outros moti vos que o afastam do acatamento do que ordena a lei Todavia é difícil uma delimitação mais precisa da palavra injustiça Quando uma decisão aplica corretamente a lei Tal como se de monstrou no estudo da interpretação capítulo IV nenhuma situa ção concreta enseja uma aplicação única da lei Isto é verdade inclu sive naqueles casos nos quais existe uma regra definida expressa em termos relativamente fixos e é verdade certamente num grau ainda maior quando o caso é julgado de acordo com padrões jurídi cos ou sob forma discrecional Há sempre uma margem de extensão variável e quando uma decisão cai dentro dessa margem ninguém a chamaria de injusta nem sequer em sentido objetivo Poderseia qualificála de equívoca no sentido de que quem emite a opinião teria aplicado a lei sob forma diversa Mas como determinarse essa margem Quais são os princípios de interpretação corretos E que liberdade de interpretação se deve Direito e Justiça 331 proporcionar ao juiz Não é de grande utilidade fazer referência a motivações especificamente jurídicas como coisa oposta a conside rações de poder ou de interesse porque não existe uma valoração especificamente jurídica O direito surge das mesmas atitudes práti cas interesses fatores de poder e componentes ideológicos que se apresentam na comunidade em esferas que são externas à vida do direito Talvez a única maneira de responder a questão seja por meio de uma referência ao típico e normana aplicação efetiva da lei Decidir com objetividade é fazêlo da forma típica normal decidir subjetivamente é incorrer em desvios excepcionais A decisão é obje tiva justa em sentido objetivo quando cabe dentro de princípios de interpretação ou valorações que são correntes na prática É subjetiva injusta em sentido objetivo quando se afasta disso As palavras subjetividade ou injustiça expressam precisamente o sentimento de que a decisão emana da individualidade ou subjetividade de um juiz particular em contraste com o que é típico dos juizes em conjunto As decisões pronunciadas pelo famoso juiz francês Magnaud iebon juge não eram portanto meramente errôneas tantas outras decisões afinal o são mas arbitrárias ou injustas em sentido objetivo O fato todavia de não dizermos que esse homem foi um juiz injusto em sentido subjetivo se deve a ele indubitavelmente ter atuado de acordo com suas convicções fundadas numa concepção do direi to caracterizada por profunda moralidade15 66 A EXIGÊNCIA DE IGUALDADE NO DIREITO VIGENTE Está claro pois que uma exigência geral indiscriminada de que todos sejam tratados de igual maneira só significa que o tratamento dado a cada pessoa deve seguir regras gerais Se tal exigência é auto rizada pelo direito tornase uma questão de interpretação determinar se é o caso de se fazer caso omisso dela como uma formulação mera mente ideológica juridicamente vazia ou se é possível conferirlhe sig nificado específico com base num fundamento histórico Se tal exigên cia aparece na doutrina é tarefa da crítica demonstrar sua vacuidade e averiguar o que se quis possivelmente dizer com ela 14 Como Otto Brusiin Über die Objektivitãt der fíechtssprechung 1949 2526 15 H Leyret LesJugementsduPrésident Magnaud1900 ver também François Gény Méthodedinterpretation 1919 II 278 e segs 332 Alf Ross A situação é distinta se a exigência recebe um conteúdo especial por exemplo igualdade a despeito das diferenças de sexo e raça Tal exigência tem um significado Proíbe que as leis que regem a posição jurídica de uma pessoa empreguem critérios determinados pelo sexo ou raça dela Neste caso segundo as circunstâncias podem surgir problemas de interpretação referentes ao exato alcance da proibição Alguns poucos exemplos podem ilustrar isso a Algumas Constituições expressam de forma específica que to dos os cidadãos são iguais perante a lei16 Tais cláusulas parecem estar desprovidas de significado específico Pareceria que somente podem significar uma das duas coisas seguintes 1 que a lei segundo seu conteúdo deve ser aplicada sem refe rência às pessoas isto se compreende por si e se encontra já no conceito de norma 2 que a lei não deve se basear em distinções ou características que sejam consideradas irrelevantes ou injustas Mas tal proibição de leis injustas não tem significado preciso já que injustiça nesse con texto é uma expressão emocionalmente tendenciosa que não pode ser definida por critérios objetivos É presumível que as cláusulas desse tipo possam ser explicadas histórica e ideologicamente como uma reação a um direito anterior no qual certos grupos da população por exemplo a nobreza ti nham privilégios em particular privilégios diante da possibilidade de ser demandados17 É possível compreendêlas segundo as circuns tâncias com fundamento histórico sobre uma base histórica como uma proibição contra a reimplantação de tais privilégios Se a exigência de igualdade é qualificada mediante uma referên cia a critérios definidos que não podem ser usados para introduzir discriminações então ao contrário a cláusula tem um significado tangível18 Exclui a presença de tais critérios em legislação ordinária 16 Por exemplo a Constituição da Irlanda 1 de julho de 1937 seção 40 Todos os cidadãos são como seres humanos iguais aos olhos da lei a Constituição da Checoslováquia 9 de maio de 1948 claúsula especial seção 1 Todos os cidadãos são iguais perante a lei a Constituição da Turquia 10 de janeiro de 1945 seção 69 Todos os turcos são iguais perante a lei Entre as Constituições dos paises nórdicos somente a da Finlândia 17 de julho de 1919 contém uma norma geral de igualdade a saber no parágrafo 5 Os cidadãos finlandeses são iguais perante a lei 17 A emenda XIV da Constituição dos Estados Unidos que garante a todos proteção igual das leis e que foi aprovada em 1868 depois da Guerra Civil colimou historicamente colocar os negros em igualdade de posição com os brancos 18 Por exemplo a Constituição da Itália 27 de dezembro de 1947 seção 3 Todos os cidadãos são iguais perante a lei sem consideração de seu sexo raça língua religião convicções políticas e posição social e pessoal Direito e Justiça 333 b Por vezes se estabelece um princípio abstrato de igualdade a título de orientação para a administração no exercício de sua discri ção O que foi dito em a vale no que lhe é pertinente também aqui Em princípio não contém nenhuma norma material para o exercício da discrição expressando sim unicamente uma exigência formal a saber que a decisão seja efetivada com base em valorações e consi derações gerais e não de forma caprichosa ou arbitrária Um exemplo de um princípio qualificado de igualdade é a lei dina marquesa n 100 de março de 1921 a qual com exceções isoladas estabelece que os homens e as mulheres são igualmente elegíveis para todos os cargos no governo e na administração pública e lhes impõe dever idêntico de aceitar encargos públicos c Na doutrina do direito internacional a igualdade abstrata dos Estados se apresenta amiúde como um dos chamados direitos rights fundamentais dos Estados19 Uma exigência de formulação tão abs trata carece de significado porém por trás dela está oculta por um lado a proibição de fazer discriminação com base no tamanho dos Estados e por outro certas regras que nada têm a ver com a igualda de ou a desigualdade o princípio de unanimidade e a regra sobre a imunidade dos Estados d Na doutrina da expropriação se sustenta que a linha que separa a expropriação das restrições ao domínio sem compensação é em princípio determinada por um critério de igualdade as restrições não conferirão direito de obter compensação se afetarem todas as proprie dades do mesmo tipo Fica claro contudo que o princípio de igualdade é aqui tão carente de significado como em outras partes Toda cláusula que descreve o objeto da restrição por meio de conceitos ou caracterís ticas gerais se refere igualmente a todas as propriedades do mesmo tipo A mão da natureza não determina quais objetos são do mesmo tipo isto depende unicamente da inclusão desses objetos na mesma categoria conceituai seja qual for a forma pela qual esta seja definida A palavra fazenda define um grupo de objetos do mesmo tipo Entre tanto isso ocorre também com qualquer outra definição conceituai por exemplo fazendas com uma população animal de mais de cem cabeças granjas com uma população anima de mais de cem cabeças e de uma extensão superior a cinqüenta acres fazendas localizadas 19 Alf Ross Textbook o f International Law 1947 parágrafo 34 334 Alf Ross em Ohio com uma população animal de mais de cem cabeças e uma extensão superiora cinqüenta acres cujo proprietário tenha estado de posse da fazenda durante mais de vinte e cinco anos e que esteja gravada com uma hipoteca de mais de US5000 Isto sem considerar se há sequer uma fazenda que satisfaça as condições dadas Se dizse que a exigência de igualdade não deve ser tomada em sentido formal mas que o fato decisivo é se a limitação ocorre de acordo com características distintivas que estejam bem fundadas que sejam razoáveis ou justas isto quer dizer que a idéia de igualdade desvanece para ser substituída por uma referência ao que se consi dera justo segundo uma opinião subjetiva e emocional Tal princípio não é um princípio autêntico mas o abandono de toda tentativa de análise racional Capítulo XIII O Utilitarismo e a Quimera do BemEstar Social 67 A RELAÇÃO ENTRE 0 UTILITARISMO E 0 DIREITO NATURAL1 A idéia central do direito natural foi que a retidão do direito positi vo depende de sua concordância com um padrão ou um ideal que se encontra na natureza ou na razão do ser humano O direito positivo não é julgado pelos efeitos que produz na comunidade As considera ções de utilidade não são destituídas de importância mas não se confundem com a exigência de justiça O direito tem sua meta dentro de si mesmo realizar o ideal de justiça Isso entretanto não deve ser interpretado no sentido de que a cada norma corresponde seu padrão ideal na razão Nossa razão se limita a um pequeno número de princípios básicos e evidentes e a retidão da norma particular depende de poder ser considerada como deduzida daqueles princípios básicos Já vimos que de um ponto de vista epistemológico a filosofia do direito natural se apóia numa intuição intelectual ou num sentimento de evidência que se supõe garante a retidão dos princípios básicos mas na realidade não passa de uma expressão dogmática e patética 1 Para um estudo mais detalhado e documentado ver meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis I1933 cap IV 1 336 Alf Ross da consciência moral e jurídica da época Não se investiga a origem dessa consciência ela não é considerada do ponto de vista histórico e psicológico como um produto de fatores combinados entre os quais o ordem social e jurídica vigente Tal consciência moral e jurídica não é criticada à luz de suas conseqüências sociais mas é aceita com reverência como um oráculo que revela ao ser humano a verdade moral a lei de Deus ou da razão válida por si mesma para o governo de suas ações O utilitarismo de Bentham significou uma nova abordagem a qual ele considerou uma revolução na história do pensamento moral Se guindo a filosofia empírica de Locke Bentham desejava erradicar todas as concepções de idéias inatas ou verdades a priori A consciência moral não é revelação de verdades eternas segundo Bentham mas simplesmente um catálogo de opiniões tradicionais e preconceitos difí ceis de ser abolidos porque foram inculcados nas mentes das pessoas desde sua mais tenra infância Em lugar de elevar de forma dogmática os sentimentos morais ao nível da validade absoluta uma teoria pro gressista da moral deve atingir o princípio racional que se encontra por trás do sentimento moral e dirigilo diz Bentham Este princípio não é percebido com clareza mas atua inconsciente e instintivamente Só quando é trazido à plena consciência é possível proporcionar um fun damento racional para a moral e criticar e corrigir o sentimento moral se houver risco de que este se torne retrógrado ou pervertido Bentham pensou que podia estabelecer esse princípio sobre uma base empírica considerando a natureza humana2 Todo esforço huma no é um esforço em busca da felicidade A felicidade portanto é a coisa que é boa em si mesma e o princípio moral do comportamento deve apontar para a ação que produz a maior soma possível de felici dade no mundo O valor de uma ação depende por isso dos efeitos que produz medido em termos de prazer felicidade ou dor humanos A ruptura de Bentham com o passado não foi entretanto tão profunda como ele julgava Derivar a moral do esforço natural do ser humano é uma idéia herdada do rejeitado direito natural uma idéia 2 Bentham começa sua principal obra An Introduction to the Principies of Morais and Legislation impressa em 1780 e publicada em 1789 com as seguintes palavras A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois amos soberanos a dor e o prazer Cabe a eles somente indicar o que devemos fazer bem como determinar o que faremos Por um lado o padrão do certo e do errado por outro a cadeia de causas e efeitos estão presos ao seu trono Direito e Justiça 337 que por exemplo encontrou significativa expressão em Tomás de Aquino Ademais fica claro que a crença de Bentham na possibilidade de construir uma doutrina moral sobre um fundamento puramente empírico é necessariamente uma ilusão Com base numa observação psicológicoempírica genuína jamais seria possível ir além de uma descrição de como os seres humanos se comportam de fato ou como se comportariam de fato em determinadas circunstâncias3 mas não chegar a uma moral padrões de conduta correta e incorreta isto é a como devemos nos comportar5 Se prosseguirmos em nossa refle xão se fará também claro que o princípio de Bentham da maior quan tidade possível de prazer não pode ser derivado de tal experiência sendo sim a expressão de um postulado metafísicointuitivo O ponto de partida de Bentham é que todo esforço humano é um esforço em busca do prazer Isto não significa contudo que os seres humanos agem sempre de forma egoísta no sentido habitual isto é buscando sua própria vantagem sem se preocuparem com os inte resses dos outros Bentham de modo algum negaria que o ser hu mano é capaz de ações altruístas de autosacrifício ou de ações he róicas impulsionado por sentimentos de simpatia para o próximo Só quer dizer que no fundo tais ações estão condicionadas pelo empe nho do ser humano na busca de seu próprio prazer a saber o prazer de satisfazer seu sentimento de simpatia pelos outros Um outro pon to é que tal como diz Bentham quando fala do princípio de autopreferência os sentimentos de simpatia são no ser humano geralmente fracos e impotentes no conflito com as forças egoístas no sentido usual desta última expressão Na prática são estas quase exclusivamente as que determinam o curso das ações na conduta Portanto o prazer que os seres humanos buscam é na maioria das vezes seu próprio prazer no sentido mais estrito6 Sobre esse pano de fundo consideremos agora o princípio supre mo de ação de Bentham Tal princípio me ordena agir de tal maneira que a soma total de felicidade no mundo seja a maior possível Exige me que ao julgar uma ação não leve em conta se o prazer que causa 3 Particularmente se tivessem uma concepção mais correta da realidade 4 Ver a citação da nota 2 5 Este ponto de vista foi mais tarde energicamente enfatizado por Moore Ver Ross op cit p 78 6 Ver também op cit cap V 2 338 Alf Ross a mim o causa a mim ou a outros O mesmo peso tem que ser atribuído ao prazer dos demais tanto quanto ao meu próprio e uma ação que é vantajosa para os outros deve ser preferida a uma ação que é vanta josa para mim mas apenas em menor grau É evidente que tal princípio não pode ser extraído do axioma socioló gico do prazer mas se opõe diametralmente à afirmação de que em seu conjunto as pessoas se comportam de forma egoísta Como outros prin cípios éticos possui o caráter de uma exigência suprema ou de uma validade específica em conflito com os impulsos de nossos sentidos Tal como os postulados do direito natural deve buscar seu fundamento na natureza razoável do ser humano e sua justificação numa intuição inte lectual Na realidade se aproxima muito da formulação de Nelson do princípio de justiça parágrafo 64 Ordename vencer minhas inclina ções egoístas e agir sem consideração das pessoas ou da maneira que agiria se todos os interesses afetados por minha ação fossem meus Entretanto não se deve desprezar a diferença que existe entre o utilitarismo e o direito natural A crítica de Bentham da consciência moral e jurídica e sua exigência de que uma ação seja julgada se gundo os seus efeitos de fato constituem passos de valor perma nente para uma teoria realista Bentham se equivoca ao crer que a consciência moral e jurídica é dirigida por um único princípio racional de acordo com o qual o julgamento dos efeitos de uma ação pode ser reduzido a um simples cômputo de máximos relativos a somas quantitativamente iguais 68 O PRINCÍPIO DA MAXIMIZAÇÃO E SUAS DISCORDÂNCIAS COM NOSSA ESCOLHA EFETIVA Como mostramos no parágrafo anterior o princípio utilitarista não pode ser derivado da experiência mas sim à semelhança de outros princípios éticos é um postulado metafísico baseado na intuição Mas ainda assim pode é claro revelar algo sobre a maneira como de fato raciocinamos a respeito de problemas morais e políticos E assim ocorre decerto com respeito ao ponto de vista básico de que as ações devem ser julgadas segundo suas conseqüências Não ocorre o mesmo em contrapartida com respeito à forma como segundo se crê tem lugar esse julgamento Direito e Justiça 339 O princípio do utilitarismo no seu último aspecto se apóia na pressuposição de que em toda situação prática nossa escolha pode ser reduzida a uma escolha racional entre montantes quantitativos medidos em termos de prazer Se se adota a premissa de que o pra zer é o intrinsecamente bom e que se deve dedicar a mesma conside ração ao prazer dos outros e ao próprio a escolha se reduz a um cômputo puramente racional Essa pressuposição contudo não é verdadeira Originase de uma falsa psicologia Nossas necessidades e desejos diferem qualitativa mente e são mutuamente incomensuráveis Os seres humanos têm as necessidades mais variadas por exemplo a de alimento de repouso e sono de ocupação de atividade sexual de cultura e conhecimento de experiência artística e recreação de amor e respeito de poder e pres tígio social Se todas minhas necessidades não podem ser satisfeitas e me encontro diante de uma escolha por exemplo entre ouvir uma sinfonia e saborear uma boa comida essa escolha não pode ser descri ta como uma alternativa racional entre duas quantidades comensuráveis de prazer Qual é a medida para o prazer que experimento numa situa ção ou em outra Qual deverá ser a unidade de medida O único crité rio concebível para chamar um bem de maior do que outro é obvia mente o fato de que na realidade eu o prefiro Mas neste caso a afirmação de que numa escolha prefiro o maior entre dois bens perde sentido e chamado de maior precisamente porque o prefiro A pressuposição utilitarista é uma enorme distorção racionalista da vida mental7 Reduz o fundamento irracional de nossas ações à valoração única de que o prazer é preferido à dor e transforma tudo o mais num cômputo racional de quantidades de prazer e de dor A situação verdadeira é que somos movidos por muitas necessidades e considerações diferentes que se confrontam e lutam num processo irracional de motivação Estamos submetidos à influência de uma di versidade de padrões de valoração e preferência que se desenvolvem e se estabelecem individual e socialmente Se considerarmos por exemplo as deliberações que têm lugar numa assembléia legislativa num conselho local numa diretoria numa comissão em suma em qualquer lugar em que sejam discutidos assuntos públicos e privados para determinar uma linha de orientação o que ocorrerá é que são 7 Esta distorção se baseia na afirmação empiricamente desprovida de sentido de que todo esforço é um esforço em busca do prazer Cf Ross op cit cap V 2 340 Alf Ross enunciadas e pesadas diversas considerações cada uma das quais possui uma certa força motivadora em relação a certos desejos e valorações No final essas considerações são integradas numa deci são que expressa a importância ou preferência atribuída às várias considerações Esta decisão é o que chamamos de uma resolução um ato irracional do espírito no qual todas as forças que foram mobi lizadas durante a fase da deliberação lutam entre si até que reajamos com um resultado a decisão Isto é algo bastante distinto de uma escolha racional entre quantidades quantitativamente definidas Expressandose isso numa breve fórmula podemos dizer a incomensurabilidade das necessidades não permite uma maximização quantitativa Por isso o princípio utilitarista é inaplicável em situações de conduta nas quais haja competição de muitas necessidades inte resses considerações qualitativamente diferentes Os problemas morais e políticos em sua grande maioria se referem a situações desse caráter Assim não ocorre necessariamente em ques tões econômicas Visto que todos os interesses econômicos podem ser expressos pelo menos aproximadamente em termos de dinheiro está aqui presente aquela comensurabilidade que torna possível a aplicação do princípio de maximização8 O princípio de maximização certamente reflete também algo fundamental da maneira pela qual são feitas as escolhas econômicas quando estão somente em jogo os interesses de um só indivíduo O homem de negócios por exemplo apreciará as diferentes possibilidades de investimento de acordo com o benefício calculado medido em termos de dinheiro e escolherá entre essas pos sibilidades a que lhe promete o maior lucro o que é um claro cálculo de maximização O princípio não se ajusta como medida por outro lado para problemas econômicosociais os problemas que se relacionam com indivíduos que mutuamente competem Ao atribuir importância exclusiva à soma total e não à sua distribuição todos os conflitos de interesses ficam ignorados desde o começo e se torna impossível atri buir à distribuição qualquer significado independente9 Porém a maior parte dos problemas econômicos de importância social são problemas 8 Isto explica o colossal papel que desempenhou o utilitarismo na teoria econômica durante o século XIX e até os nossos dias 9 Através da teoria da utilidade marginal já desenvolvida com completa clareza em Bentham e que mais tarde tornou se parte principal da doutrina econômica do valor a distribuição adquiriu uma certa importância derivada Segundo essa teoria a distribuição igual dos bens produzirá a maior soma de prazer Mas ainda de acordo com essa elabora ção da teoria a distribuição do próprio prazer continua sendo algo sem importância Cf Ross op cit 136 Direito e Justiça 341 de distribuição ou em todo o caso problemas que detêm um aspecto distributivo O problema da renda nacional por exemplo não é sim plesmente uma questão do seu montante como também de sua dis tribuição É possível que um sistema econômico que produza uma soma total menor mas com uma melhor distribuição da mesma seja preferido a outro com uma maior soma total mas com uma distribui ção mais desigual O mesmo ocorre com os problemas referentes ao abastecimento de certas mercadorias ao número de casas disponí veis para a população e muitas outras questões Nesses casos e outros semelhantes10 isto é quando somente por via de exceção podese considerar possível uma maximização quanti tativa podemos dizer que a desarmonia mútua dos interesses faz com que o princípio de maximização seja inadequado para a solução de problemas sociais de distribuição 69 A QUIMERA DO BEMESTAR SOCIAL Nos tempos modernos11 tornouse hábito falar de bemestar social das necessidades da comunidade etc em lugar da soma total do prazer dos indivíduos A introdução do conceito de sociedade como um sujeito único cujo bemestar deve ser promovido na maior medida pos sível permitiu contornar mas não superar os dois defeitos fundamen tais do utilitarism o assinalados no parágrafo anterior a incomensurabilidade das necessidades e a desarmonia dos interesses A idéia de que a comunidade é uma entidade independente com necessidades e interesses próprios deve ser rejeitada como ilusória Todas as necessidades humanas são experimentadas pelo indivíduo e o bemestar da comunidade é o mesmo que o de seus membros de sorte que retornamos às mesmas dificuldades anteriores De que modo a invocação do bemestarsociai nos ajuda a superar a incomensurabilidade qualitativa das necessidades Como escolher entre fomentar as artes e as ciências ou a construção de moradias 10 Também fora da esfera da economia é possivel que surjam problemas que podem ser formulados em termos de um cálculo de quantidades homogêneas 11 A exposição precedente se ateve ao utilitarismo sob sua forma original formulada por Bentham Em Bentham as linhas de pensamento aparecem com maior clareza já que no desenvolvimento ulterior do utilitarismo se produziu uma fusão dos elementos puros do utilitarismo com elementos do direito natural e do idealismo Cf Ross op cit cap V 58 342 Alf Ross Como somar liberdade alimentação moradia e boa música Mas sem esta soma preliminar não é possível decidir o que é que na maior extensão possível promove o bemestar social O mesmo ocorre com a desarmonia de interesses Dizse que to dos as pessoas em geral alguém desejam boas casas para morar Portanto pensase a diretiva de uma boa política de habitação deve consistir na melhor satisfação possível dessa necessidade comum A falácia reside nos termos gerais utilizados Alguém não vive em ca sas quem o faz é A Be C As pessoas não desejam obter boas casas mas sim A deseja obter uma boa casa para A deseja obter uma boa casa para B etc Se as circunstâncias não permitem a satisfação de todos os desejos esses interesses passam a ser competitivos O inte resse da comunidade o bemestar social é a falácia que contorna essa desarmonia e fabrica um interesse único harmônico e um cor respondente benefício único O utilitarismo e o princípio do bemestar social como a filosofia do direito natural são o resultado da necessidade que a consciência tem de um princípio de ação absoluto que possa libertar a humanidade da angústia da decisão Nesta variante da metafísica moral podese dis tinguir dois componentes um é o postulado de que os interesses dos outros devem ter o mesmo peso que os próprios Este apelo aos sentimentos de simpatia constitui a idéia econômica e politicamente ativa no utilitarismo Tornase óbvio que esse postulado é uma nova dogmatização da consciência moral e jurídica que só pode buscar seu fundamento numa intuição intelectual mesmo quando o próprio utilitarismo pretende se basear na experiência O segundo componente é a doutrina de que quando se aceita o postulado nossas escolhas podem ser descritas como uma decisão racional entre quantidades mensuráveis o que é uma falácia que se choca com dois fatos fundamentais a incomensurabilidade qualitati va das necessidades e a mútua desarmonia dos interesses Capítulo XIV Ciência e Política 70 CONHECIMENTO E AÇÃO1 O pressuposto das concepções jusnaturalista e utilitarista exami nadas no capítulos anteriores é que cabe à política jurídica descobrir o direito correto e válido em si mesmo e que este é um problema que pode ser resolvido cognoscitiva mente pelo menos na medida em que se pode estabelecer certos princípios gerais na qualidade de diretri zes para apreciar a retidão do direito positivo Não faz sentido indagar ademais porque o direito deve ser reto correto isto é porque deve satisfazer as exigências da idéia de justiça ou o cômputo do prazer Essas exigências são absolutas e categóricas surgem de uma apreensão a priorie não podem se fun dar em argumentos racionais O princípio de política jurídica a idéia de justiça ou o princípio da felicidade social segundo esse modo de ver é simultaneamente um conhecimento compreensivo insighl e uma exigência É um conhe cimento por apreensão dos princípios válidos que o direito tem que satisfazer para ser reto correto um conhecimento que tal como qualquer outro conhecimento tem a pretensão da verdade assim é e não de outra maneira É uma exigência porque reclama do legislador que aja de conformidade com esses princípios A esperança de que o 1 Ver Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnís 1933 cap I 344 Alf Ross legislador se comportará efetivamente assim se baseia tãosó num cha mado a sua razão ou consciência Como os outros seres humanos o legislador pode apreender ainda que seja de forma imperfeita o que é válido Constitui tarefa do conhecimento clarificar essa apreensão e tornála plenamente consciente na esperança de que o legislador in terpretará as ordens da razão e da consciência de acordo com isso O conceito de retidão rightness é um conceito a priori Não pode ser deduzido da experiência dos sentidos sendo sim captado numa intuição intelectual Do mesmo modo o conhecimento que nos facultará apreender o válido não é uma ciência em sentido empírico mas pressupõe uma fonte de conhecimento distinta da experiência dos sentidos Essa fonte de conhecimento é precisa mente a visão espiritual mediante a qual livres de amarras sensoriais apreendemos diretamente a natureza essencial da existência e a lei que governa nossas ações Um conhecimento deste tipo se denomi na metafísico Conseqüentemente toda filosofia jurídica e moral que tem que estabelecer normas válidas por si mesmas para a ação de seres humanos é metafísica Se tomarmos como ponto de partida a idéia de que toda metafísica é quimera e só há um conhecimento a saber o empírico parágrafo 58 poderemos nos perguntar como é possível atingir sobre essa base a política jurídica isto é o enunciar de alguma orientação para o legis lador Se não existe apreensão a priori de uma retidão rightness ab soluta no que fundar as normas de ação Se não há validadeabsoluXa com que direito right se pode formular diretivas para a ação humana Se o legislador não está metafisicamente obrigado pelas ordens a priori da razão que força motivadora podem possuir tais diretivas Se todo conhecimento científico é por sua natureza apreensão de fatos empíricos e de suas correlações funcionais invariáveis como é possível com fundamento científico enunciar algo que não se limite a simples declarações a respeito de fatos empíricos Esses problemas não são peculiares à política jurídica Existem problemas correspondentes em todas as ciências que pretendem ins truir como devemos nos comportar Será conveniente portanto divi dir a resposta em duas partes tratar primeiro em geral da relação entre conhecimento ciência e ação política e investigar em segui da os problemas particulares da política jurídica A primeira parte é ventilada neste capítulo e a segunda no seguinte uireito e justiça j d Imaginemos por um momento se for possível2 um ser semelhan te ao ser humano dotado de inteligência porém desprovido de sen timentos e paixões de qualquer espécie despojado de qualquer for ma de impulso empenho amor ódio etc Tal ser seria absolutamen te apático em relação a tudo que o circundasse e se conservaria mediante alimentação artificial Devido à sua inteligência poderia apre ender e compreender a realidade Entretanto mesmo que imagine mos esse ser dotado do mais amplo conhecimento de fatos do mais profundo discernimento das leis e correlações da existência nenhu ma quantidade de conhecimento seria capaz de despertar seu ser para a atividade Todo conhecimento carece de interesse prático para uma pessoa que não está interessada em nada O conhecimento de que um perigo ameaça minha vida a menos que me mova do lugar em que me encontro me deixará frio sem interesse e passivo se não alimento o desejo de preservar minha vida O conhecimento de como alcançar todas as glórias e bens do mundo carece de força motivadora para a pessoa que não deseja essas coisas Esse experimento serve para ilustrar a absoluta diferença que existe entre os atos de apreensão da consciência conceituais ou cognoscitivos e aqueles que constituem uma atitude3 Estes últimos são caracterizados por sua polaridade que se evidencia em pares de palavras tais como atraçãorepulsão amoródio aprovaçãorepro vação desejoaversão Como termo geral para fazer alusão a esses atos em que nos decidimos com base em uma atitude termo que abrange igualmente as atitudes com sinal de mais ou menos podese empregar a palavra Interesse ainda que no uso lingüístico ordinário essa palavra signifique principalmente uma atitude positi va Se bem que os atos de apreensão e aqueles nos quais nos deci dimos com base numa atitude ou como podemos também dizer as crenças e as atitudes ocorrem estreitamente conectados em interação mútua designam formas primárias irreduzíveis de consciência Toda atividade consciente está necessariamente enraizada numa atitude A mera apreensão como tal a pura apreensão ou conhecimento ca rece de toda força motivadora 20 experimento de pensamento somente é possfvel como uma abstração Na realidade o funcionamento da inteligência é em si uma atividade baseada em emoções 3 CtFranz Bretano Psychofogie 19251 II Bretano faz dessa distinção a divisão fundamental dos fenômenos psíquicos 346 Alf Ross Isso de modo algum significa que nossas crenças não influem em nossa atividade mas apenas que essa influência é exercida sempre por via de um interesse atitude Se de uma atitude surge um motivo para a ação a atividade resultante é guiada por nossa inteligente concepção dos fatos e circunstâncias Se tenho interesse em não me molhar meu conhecimento da condição do tempo determinará a rou pa que ponho Se tenho interesse em fazer negócios que visam ao lucro meus atos nesse terreno serão determinados por meu conheci mento de onde posso comprar em melhores condições de qual será a tendência dos preços etc A função do conhecimento na esfera da ação pode em conformi dade com isso ser definida da seguinte maneira o conhecimento jamais pode motivar uma ação porém pressupondo um dado motivo interesse atitude ele pode dirigira atividade Disso se conclui que o papel do conhecimento ciência na esfera da ação nunca pode consistir em estabelecer normas categóricas ou válidas em si mesmas isto é normas de um tipo cuja força motivadora consista no próprio conhecimento e sejam assim independentes de toda atitude ou interesse subjetivos Todo motivo para a ação e igualmente todo convite à ação surgem por necessidade de fatores irracionais interes ses atitudes A função do conhecimento só pode consistir em proporcio nar diretivas que têm somente uma força hipotética com o pressuposto de um motivo irracional determinado interesse atitude E assim a idéia de um conhecimento prático em sentido ético a idéia de um conhecimento que é em si um motivo ou a expressão de uma exigência categórica é uma impossibilidade São por isso ilusórias as muitas teorias formuladas no decorrer do tempo sobre a dedução de normas absolutamente válidas a partir de fatos empíricos o fato da solidariedade por exemplo ou da na tureza metafísica da existência ou da natureza humana Absoluta mente nada pode ser deduzido sobre a ação humana a partir de fatos como tais Os fatos são em si mesmos indiferentes Só ganham relevância ao serem colocados em relação com um interesse ou atitu de que é independente deles Isso vale inclusive quando somos capazes contrariamente ao que penso de apreender uma qualidade específica em certos fatos que pode ser denominada seu valor ou bondade Tal conhecimento Direito e Justiça 347 não tem tampouco força motivadora independente e só possui sig nificado prático se tenho interesse no valioso ou no bom É presumível que todas essas teorias relativas a normas de ação absolutas derivadas diretamente da realidade ou dadas diretamente em nosso conhecimento tenham como dissemos no parágrafo 59 uma explicação psicológica a saber que os seres humanos para escapar à responsabilidade da decisão e à agonia da escolha buscam ocultar a circunstância de que todas as decisões dependem em últi ma análise de nossas próprias atitudes 71 A INTERAÇÃO MÚTUA ENTRE CRENÇA E ATITUDE Se limitarmos o termo ação aos atos conscientes que são tema de deliberação e discussão poderemos dizer que toda ação está condicio nada por dois fatores as crenças do agente e suas atitudes Por crença entendo toda idéia sobre a natureza da realidade que o sujeito da crença julga verdadeira ou pelo menos provável Pode referirse a fatos simples e a correlações invariáveis a fenômenos cotidianos e a teorias científicas a circunstâncias passadas presen tes e futuras em síntese a tudo aquilo com respeito ao que os seres humanos fazem suposições mais ou menos bem fundadas Por atitude entendo aqueles fenômenos de consciência volitivos e emocionais que são a fonte motivo de toda atividade consciente Visam a um objeto que se apresenta ao sujeito O objeto pode ser uma coisa uma pessoa um evento um estado de coisas Tais fenô menos de consciência ocorrem em dois tipos polares básicos que se mostram em termos tais como os pares atraçãorepulsão desejo aversão aprovaçãoreprovação amoródio As atitudes podem ser experimentadas de diversas maneiras se gundo sua posição num contexto psicológico mais amplo O que têm de comum é que expressam uma certa tendência à ação A tendência pode ser mais incondicional definida e atual ou mais condicional indefinida e potencial Ocorre o primeiro caso com aquelas atitu des nas quais predomina um elemento voluntário como é o caso na Aparentemente Ross utiliza aqui estes termos no estrito sentido aristotélico de evepyeta energéia ato e ôuvouÇ Idynamis potência INTJ 348 Alf Ross consciência de um propósito clarificado por deliberação e decisão também nos estados emocionais mais transitórios com uma tendência definida de desafogo ódio medo ânsia desejo Nestas atitudes a tendência à ação é caracterizada por uma clara disposição à ação O segundo caso ocorre com aquelas atitudes nas quais predomina um elemento emocional Aqui pode também darse o caso de atitudes relativamente clarificadas e estáveis de amor e ódio por coisas ou pes soas ou de atitudes mais transitórias e volúveis de saudade esperan ça e desejo dirigidas a um evento ou circunstância Mesmo quando nessas atitudes preponderantemente emocionais a tendência à ação é menos acentuada elas contêm uma inclinação a atuar de uma ma neira definida se a ocasião se apresenta Aquele que sente amor por um objeto deseja seu bem aquele que deseja algo quer também atuar para que o que deseja se realize Porém visto que freqüentemente não se sabe se surgirá alguma oportunidade para a ação e qual será seu conteúdo preciso a tendência à ação adquire aqui como disse mos um caráter mais indefinido e latente Num grupo especial se en contram aquelas atitudes nas quais tendo que escolher preferimos um bem a outro Estas se chamam atitudes de preferência A crença e a atitude designam duas formas básicas de fenômenos de consciência a teórica e a prática Ocorrem freqüentemente em fusão íntima de sorte que só por abstração podese distinguir os dois componentes Muitos termos lingüísticos expressam ambas as formas ao mesmo tempo São tanto descritivos quando definitórios de atitu des têm podemos dizer um significado teórico e emocional volitivo Não é raro que duas palavras ou expressões sejam usadas para des crever praticamente o mesmo objeto mas com carga emocional dife rente exemplos líder ditador heróico temerário fazer respeitar o princípio de autoridade oprimir paladino da liberdade e dos direitos humanos rebelde política realista maquiavelismo Inversamente as mesmas palavras dotadas de forte carga emocional são usadas para designar fenômenos que diferem agudamente Na linguagem de Hitler sua ditadura era a verdadeira democracia seu Estado policial o ver dadeiro Estado constitucional sua economia capitalista o verdadeiro socialismo e sua regimentação a verdadeira liberdade Da mesma maneira Stalin não estava disposto a perder o capital de boa vontade ou valorchave que representa a palavra democracia Chamava a Cons tituição soviética de a única Constituição perfeitamente democrática do mundo admitindo ao mesmo tempo que estabelecia o regime da Direito e Justiça 349 ditadura do proletariado Os órgãos da imprensa comunista usam re gularmente uma expressão com uma forte carga emocional a vonta de do povo para designar a opinião de uma reduzida minoria que representa uma porcentagem mínima da população4 Esses fatos e outros similares explicam porque os estudos lingüísticos da carga emocional das palavras se contam entre os métodos empre gados para descobrir as atitudes predominantes de um grupo5 Num nível superior as atitudes e as crenças se fundem não sim plesmente nas palavras como também na criação de teorias de am plo alcance tais como ideologias e programas políticos sistemas re ligiosos e filosofias de vida Tal como já enunciado a atitude prática é um fenômeno espiritual irreduzível no sentido de que a partir de uma crença não se pode deduzir uma vontade para a ação ou uma exigência de ação para um ser desprovido de sentimento e vontade todo o conhecimento do mundo carece de força motivadora Assim é impossível provar por argumento racional recorrendose aos fatos e aplicandose a lógica a retidão de uma atitude Uma coisa completamente distinta o que é importante para os problemas que estamos investigando é que psicológica e causalmen te uma íntima interação mútua ocorre entre as crenças e as atitudes Nossas crenças a respeito do mundo em que vivemos não se for mam sucessivamente à medida que acumulamos gradualmente pro vas suficientes da verdade de certas suposições Pelo contrário a exigência de documentação e exame crítico aparece apenas de forma tardia no desenvolvimento espiritual O ponto de partida é que as crenças achamse apenas num ínfimo grau sob o controle da experi ência e da crítica evoluindo sim sob o impulso do temor da espe rança e dos desejos Todos nós temos uma forte tendência a conside rar como verdadeira qualquer coisa que possa acalmar nosso temor estimular nossas esperanças afagar nossos desejos Nos povos pri mitivos a livre fantasia estimulada pelas emoções quase não conhece limites Entretanto mesmo as comunidades que progrediram no sen tido de adquirir capacidade para o pensamento crítico mesmo os 4 Para as chamadas definições persuasivas ver Charles L Stevenson Ethics and Language 11945 206 e segs 5 Ver também Stuart Chase The Tyranny of Words 1938 350 Alf Ross cientistas para quem essa capacidade deveria ser uma virtude pro fissional exibem uma inequívoca tendência para que sua concepção da realidade se forme e se colora sob a pressão de fatores irracionais Estamos sempre dispostos a ver o que desejamos ver e a fechar os olhos para o que não queremos ver Nelson não foi o único a tentar o truque de colocar o telescópio num olho cego Basta que sondemos nossos corações para saber quão necessário é por mais honestas que sejam nossas intenções estar continuamente alertas contra a cegueira o preconceito o engano de si mesmo ou a adulteração O perigo do pensamento pleno de desejo ou do preconceito pessoal é particularmente grande relativamente às crenças sobre as condições sociais em parte porque nossa emoções concentramse nos assuntos de nossos semelhantes em maior grau do que na natureza e em parte porque a oportunidade para o conhecimento exato e a investigação efe tiva é muito inferior no âmbito social do que no âmbito da natureza De maneira inversa também nossas atitudes são influenciadas pelas crenças que alimentamos Todos nós queremos apoiar nossas atitudes em crenças Por exemplo eu baseio minha aversão às dita duras na crença de que a ditadura conduz à supressão da liberdade intelectual e pessoal à suspensão da segurança legal e a um empre go difundido da violência Mas não existe nenhuma conexão lógica entre essa crença e minha atitude prática posto que a lógica só se refere à relação entre o valor de verdade de diversas asserções Uma atitude não possui valor de verdade é um fato Analogamente A pensa que os banhos frios são bons porque crê que fortalecem o sistema nervoso ou Bé vegetariano porque consi dera a carne má para a saúde As crenças e as atitudes estão portanto em interação mútua e com freqüência é impossível decidir qual entre as duas é primária e qual secundária As razões boas que as pessoas vinculam às suas atitudes não são sempre as verdadeiras Quando não o são falamos de raciona lização Pode muito bem ocorrer por exemplo que a carne realmente não agrade ao vegetariano e sua crença de que a carne faz mal para a saúde seja a expressão de um preconceito pessoal nascido dessa atitu de Certamente não é fácil decidir se o povo dos Estados do sul dos Estados Unidos odeia os negros porque os julgam mentirosos estúpidos e sexualmente depravados ou se sustentam essas crenças porque os odeia Direito e Justiça 351 É possível que se aceite que em última instância as atitudes como os reflexos têm seu fundamento na natureza biológica do organismo mas que no curso do crescimento e desenvolvimento da pessoa elas são elaboradas e se tornam um conjunto ramificado condicionado pe las crenças a que estão vinculadas da mesma maneira que os reflexos condicionados de desenvolvem a partir dos incondicionados Por analo gia podemos falar assim de atitudes incondicionadas e condicionadas As atitudes condicionadas podem ser classificadas sob outras ati tudes mais elevadas ou mais gerais de acordo com as crenças que as condicionam Se por exemplo sou partidário dos banhos frios porque acredito que são benéficos para a saúde e sou vegetariano também por motivos de saúde ambas as atitudes podem ser consi deradas como derivadas de ou subordinadas a uma atitude positiva mais geral com respeito à saúde sua conservação e promoção Ao enunciar as razões de nossas atitudes podemos dessa maneira ten tar sistematizálas ou harmonizálas e superar aquelas que nos en caixam no sistema O impulso nessa direção é próprio sem dúvida do crescimento para o que chamamos de caráter e personalidade E mister frisar todavia que esse ajuste não é uma sistematização lógi ca mas uma harmonização prática e que a harmonia entre nossas atitudes é um ideal que como regra realizase apenas em modesto grau Na realidade as atitudes de uma pessoa são um conglomerado discordante numa medida bem maior do que tal pessoa queira admi tir Temos que nos pôr em guarda contra atitudes declaradas referen tes a princípios gerais Existe o perigo de que elas não passem de verbalismos aos quais não corresponde uma realidade psicológica Com demasiada freqüência vemos que as pessoas se declaram sustentadoras do princípio de oportunidade igual para todos mas no entanto se opõem a admitir que os negros tenham acesso à educa ção superior ou dizem que apóiam o princípio da livre competição e ao mesmo tempo se opõem às medidas tomadas para preserválo Quanto mais ascendemos nos níveis de generalização mais duvi doso se torna que os ideais declarados correspondam às atitudes reais Se um homem diz que não pode suportar seu vizinho pele vermelha que detesta carne bovina com cebolas ou que é contra a limitação das importações não há razão em princípio para suspeitar que está enganando a si mesmo Mas não podemos ouvir suas ob servações com igual confiança se se declara defensor da democracia ou a favor das reformas sociais para benefício da massa populacional 352 Alf Ross 0 acme das construções irreais é atingido nas numerosas tenta tivas que se tem feito no domínio da filosofia para sistematizar todas as atitudes numa atitude suprema expressa na idéia do bem absoluto Assim por exemplo quando o utilitarismo decide que o prazer é o intrinsecamente bom e que a maior soma de prazer é o objetivo de todos os esforços A afirmação de uma atitude funda mental como esta da qual se diz derivam todas as outras condicio nadas pelo cálculo hedonístico é um verbalismo que não tem apoio na realidade psíquica Por essa razão se para compreender prever ou influir na ação humana interessa conhecer as atitudes das pessoas temos que ten tar uma análise das atitudes concretas e efetivas e não das formula ções verbais que contêm princípios expressos 72 DESACORDOS PRÁTICOS ARGUMENTO E PERSUASÃO Suponhamos que numa certa situação A está agindo e B o obser va interessado Suponhamos também que haja um desacordo en tre eles se B tivesse que tomar a decisão agiria de maneira diferen te Com base nessas premissas perguntamos ao que faz com que A e B ajam de maneira distinta numa situação idêntica e ô j o que pode fazer B para convencer A de seu ponto de vista para transfor mar o desacordo em acordo a Segundo a análise anterior o ponto de vista de uma pessoa é ditado pela ação conjunta de suas crenças e atitudes Seguese daí que os desacordos práticos podem ser reduzidos a uma das três situa ções seguintes 1 Desacordo de crença acordo de atitude Exemplos A e B estão de acordo em seu desejo de manter a Dinamarca fora dos horrores de uma guerra A acredita que a participação da Dina marca nt Tratado do Atlântico Norte servirá a esse propósito B crê no contrario Estão portanto em desacordo prático a respeito de seus pontos de vista sobre a participação da Dinamarca no Tratado do Atlântico Norte Direito e Justiça 353 A e B estão de acordo no desejo de adotar medidas contra o perigo da inflação e o risco do desemprego A crê que para isso seria eficaz uma restrição ao crédito mas B pensa que se bem que a restrição ao crédito terá um efeito antiinflacionário gerará ao mesmo tempo de semprego Conseqüentemente B não aprova a linha política de A 2 Desacordo conflito de atitude acordo de crença Exemplos A é antisemita B não é Ambos estão de acordo que a discrimina ção contra os judeus prejudica o próspero desenvolvimento deles Con seqüentemente A apóia as medidas de discriminação enquanto B não Por razões de cunho religioso A se opõe à prática do aborto A atitude de B é que a mulher deve gozar da liberdade de decidir o que fará com seu corpo Ambos estão de acordo na crença de que o teor de um projeto de lei é permitir a prática do aborto Conseqüentemente um considera o projeto indesejável o outro precisamente o contrário 3 Desacordo divergência de atitude Exemplo A e B fazem uma viagem juntos A se interessa por arte e não por esporte B o contrário Um e outro desejam fazer coisas distintas durante a viagem Nesse caso há divergência de atitudes entre A e B um não parti lha da atitude do outro Entretanto não há entre eles conflito de atitudes relativamente ao mesmo objeto Na mesma situação A e B estão submetidos a interesses divergentes As crenças que são rele vantes para A que os museus estejam abertos o que é exibido nos teatros etc são por isso irrelevantes para B e viceversa Aqui não podemos falar portanto de acordo nem de desacordo de crença Todavia os casos desse tipo podem facilmente se transformar em casos do tipo 2 Se A e B estiverem interessados ambos tanto em esporte quanto em arte mas se suas predileções são diferentes existe um conflito de atitudes de preferência Este conflito é típico em polí tica na qual os partidos estão de acordo nas considerações relevan tes mas divergem quanto ao peso delas Assim ocorre por exemplo quando dois partidos concordam em que tanto a segurança militar quanto o bemestar social são objetivos desejáveis mas atribuem peso diverso a cada um deles e em virtude disto adotam pontos de vista diferentes a respeito do orçamento para a defesa 354 Alf Ross b Devemos examinar agora a questão das possibilidades que tem B de converter A ao seu ponto de vista Não se trata de um processo lógico cujo objetivo seja provar a verdade de uma asserção O ponto de vista de A não é uma asserção mas um fato psíquico Os fatos como tais diferentemente das asserções acerca dos fatos não são verdadeiros nem falsos não são corretos nem incorretos não são passíveis de serem provados ou refutados Contudo os fatos podem mudar e podem ser alterados por ação do empenho humano Toda a atividade técnica visa a modificar os fatos da ma neira desejada Mas a relação entre a intervenção técnica e o resul tado obtido é uma relação fatual de causa e efeito uma relação causai e não uma relação lógica entre premissas e conclusão Seguese daí portanto que todos os métodos para lograr acordos práticos são intervenções técnicas que se propõem a influir de forma causai sobre a outra parte visando a alterar seu ponto de vista Isto vale inclusive se empregar argumentos racionais porque o objeti vo e a intenção destes argumentos não são provar per se a verdade de uma asserção mas sim exercer influência sobre os fatos psíquicos nos quais consiste a crença sustentada por A O ponto de vsita de A numa dada situação é determinada como vimos pela ação conjunta de certas atitudes e certas crenças rele vantes para a decisão que encara Podemos chamar essas crenças que desempenham um papel na formação da ponto de vista de A de crenças operativas A tarefa de B segundo as circunstâncias pode consistir em influenciar nas crenças operativas de A tipo 1 ou em suas atitudes tipo 2 ou em ambas tipo 3 Entretanto seja qual for o caso a intervenção direta não tem que ser necessariamente aplica da ao ponto no qual o resultado deverá ser atingido Assim é em virtude da interação íntima já examinada que ocorre entre as cren ças e as atitudes de uma pessoa Se A por exemplo se opõe a que os negros tenham acesso à edu cação superior porque crê que a inteligência destes não é adequada B pode é claro atacar essa crença operativa diretamente mencionando as estatísticas a respeito de inteligência e outros fatos E possível tam bém que a crença de A seja um preconceito ou tendenciosidade de pendente emocionalmente de uma atitude de aversão geral aos ne gros Neste caso B pode lograr o mesmo resultado e inclusive um resultado melhor se tentar conseguir que A mude de atitude Direito e Justiça 355 Se ao contrário o problema como no tipo 2 é mudar a atitude de A isto pode ser logrado não só por influência direta como também através das crenças condicionantes as crenças que sem ser operativas na situação dada condicionaram em geral a atitude de A Assim seja qual for o tipo de desacordo a intervenção pode ser dirigida de forma imediata em razão da conexão íntima entre cren ças e atitudes seja ao conjunto de crenças de A seja ao conjunto de suas atitudes Daqui procede uma distinção fundamental entre os métodos utili záveis para lograr o acordo prático I os métodos racionais que bus cam influir diretamente sobre o conjunto das crenças de A e desta maneira de forma indireta talvez também sobre o conjunto de suas atitudes e II os métodos irracionais que buscam influir diretamente sobre o conjunto de atitudes de A e desta maneira de forma indire ta talvez também sobre o conjunto de suas crenças I Na prática os métodos racionais assumem a forma da argu mentação aduzindo asserções para fundamentar um ponto de vista a palavra fundamentar não é usada aqui em seu significado lógico A função do argumento não é convencer o oponente de que o ponto de vista é correto tal conceito carece de significado mas convertê lo alterando suas crenças operativas ou suas atitudes condicionadas Sobre esta base é impossível distinguir entre argumentos válidos e inválidos Os argumentos numa dada situação são simplesmente efi cazes ou não eficazes e não é possível decidir de antemão quais deles são e quais não são É preciso arriscar uma suposição quanto às crenças que de fato determinam a posição adversária A eficácia de um argumento não depende da verdade da asserção mas sim do fato desta contar com a crença do oponente Sabese de sobejo por mais lamentável que isto seja que muita propaganda eficaz emprega asserções mendazes Se por exemplo se deseja sus citar ou fortalecer uma atitude de antipatia em relação aos judeus talvez não baste dar expressão emocional a tal atitude Podese obter um efeito muito mais vigoroso se simultaneamente a propaganda emocional for reforçada pela menção de qualidades perniciosas e de sagradáveis dos judeus por exemplo que devoram crianças em suas A edição inglesa registra a atitude de Bv não a atitude de A equívoco corrigido na tradução espanhola de Genaro Carrió e nesta à luz do original e da coerência NTI 356 Alf Ross cerimônias religiosas que são a causa dos desastres que assolam o país que estão sempre prontos a ludibriar todo homem honesto etc Se existir já um certo preconceito contra os judeus tais afirmações se difundirão facilmente e serão eficazes a despeito de sua falsidade É claro que a pessoa que utiliza argumentos mendazes corre o risco de ver sua mentira ser revelada pelos outros O valor de verdade do argumento como tal está obviamente sujeito à crítica e ao exame usuais mediante a documentação dos fatos o recurso à experiência e a prova científica Nos assuntos públicos a discussão em função disso desempenha um grande papel ao contestar e neutralizar a agitação baseada na mentira Quando a informação não sofre restri ção e há liberdade de expressão a verdade a longo prazo prevalece As coisas são diferentes nos países nos quais o Governo controla os meios de informação e comunicação É marca trágica e funesta de nosso tempo que em tais condições virtualmente não há limites para a mendacidade com o que a propaganda pode ser disseminada objetivando envenenar os espíritos dos seres humanos e transformá los em instrumentos dóceis da política do poder A argumentação pode seguir diversas táticas segundo as linhas seguintes a Com relação à função da crença dentro do ponto de vista do oponente a argumentação pode dirigir seu ataque contra as cren ças que supomos que atuam de forma operativa ou contra as cren ças que supomos ter uma influência condicionante sobre as atitudes do oponente Na primeira alternativa buscase uma mudança de opinião capaz de influir diretamente no ponto de vista do oponente As crenças operativas podem sêlo com respeito a atitudes que já se fizeram ma nifestas no ponto de vista de A ver mais adiante o exemplo 1 ou Na sua dependência de alusão a fatos históricos este texto de Ross é atingido por um anacronismo compreensível e inevitável do ponto de vista do leitor contemporâneo que adentra o século XXI Não esqueçamos que Ross escreve estas linhas na Europa do pósguerra ainda assombrada pelo fantasma do totalitarismo nazifascista para cujo cresci mento muito contribuiu o Ministério da Propaganda do Terceiro Reich Fosse Ross ainda vivo ficaria por certo pasmo diante dos sofisticadíssimos recursos tecnológicos de que o poder hoje faz uso para manipular mentes humanas de cidadãos relativamente instruídos das classes médias anestesiadamente destituídos de qualquer agudeza de senso critico e para condenar à imbecilização contínua colossais contingentes de mentes propositalmente excluídas da educação básica e do mais ínfimo estímulo à possibilidade do exercício intelectual Ocioso dizer que não me refiro exclusivamente a regimes totalitaristas mas também e principalmente às democracias capitalistas IN Tl Direito e Justiça 357 também com respeito às atitudes que B supõe que são latentes em A exs 2 e 3 o que tem muita importância na argumentação corrente Com freqüência não temos consciência de todas as nossas atitudes nas deliberações que nos levam a adotar um ponto de vista Na discus são nosso oponente ao trazer à baila novas considerações tenta ape lar para atitudes latentes que não tiveram oportunidade de produzir efeito Em um ou outro caso as asserções argumentativas podem bus car lançar luz sobre o conteúdo direto da medida em discussão ex 2 ou também sobre os efeitos que a medida pode acarretar exs 1 e 3 Na segunda alternativa isto é quando o argumento se dirige às crenças condicionantes buscase uma mudança de opinião capaz de influir diretamente no ponto de vista do oponente mediante uma al teração em suas atitudes exs 4 5 e 6 ôJCom respeito ao meios empregados para alterar as crenças do oponente a argumentação pode procurar provar diretamente a ver dade teórica das crenças que deseja que o oponente aceite buscan do apoio no testemunho da experiência nas conclusões científicas e nas exigências da lógica ex 1 ou então pode tentar indiretamente suscitar uma dúvida no espírito do oponente abrindo os seus olhos para a possibilidade de que as crenças que sustenta podem ser explicadas psicologicamente como preconceitos ditados por certas atitudes ex 6 Desta maneira o oponente pode ser levado a uma reflexão crítica que por sua vez o conduza a uma revisão de suas crenças e com isso se suas crenças operativas ou condicionantes estiverem em jogo a uma mudança de seu ponto de vista c Finalmente as táticas de argumentação podem variar segundo o propósito de destruir determinadas crenças ou suprir crenças no vas ou ambos Na seqüência são dados alguns exemplos em parte inspirados por Stevenson 1 A Oponhome à participação da Dinamarca no Tratado do Atlân tico Norte Esta participação aumenta o risco da Dinamarca ser arras tada para um conflito entre as grandes potências B Isto não é verdade O tratado pelo contrário diminuirá esse risco e logo B expressa a usual argumentação teórica em suporte de sua asserção 358 Alf Ross Nesse caso B ataca as crenças operativas de A acerca dos efeitos de uma certa medida Não só deseja destruir as crenças de A como também proporcionarlhe crenças novas 2 A Sou a favor da projetada reforma tributária É preferível que haja aumento dos impostos do que o governo continuar a levantar mais empréstimos B Isto pode ser verdade Mas você considerou que o projeto tribu ta importantes artigos de primeira necessidade e reduz a renda isen ta de imposto a um mínimo A Não havia me dado conta disso Tenho que estudar melhor o projeto Nessa argumentação B ataca a posição de A lançando mais luz sobre o conteúdo direto da medida em questão Sua afirmação se propõe a fornecer a A crenças operativas que visam a despertar atitu des latentes nele 3 A Penso que é bom restringir o crédito na situação atual o que afastará o perigo da inflação B É possível mas por outro lado as restrições ao crédito produ zirão desemprego A Ah Isso mostra outro aspecto do problema Aqui B quer fazer A ver alguns efeitos que a medida pode acarre tar com a esperança de que isso despertará uma atitude latente 4 A As relações sexuais fora do casamento são pecaminosas e inadmissíveis B Pense por um momento qual foi a origem de sua atitude Trata se de uma tradição que você herdou de outras pessoas que por sua vez a herdaram de outras surgiu da necessidade de dar um status social seguro às crianças Naqueles tempos não se conheciam métodos de controle da natalidade dignos de confiança Utilizandose os meios disponíveis hoje em dia já não existe a mesma conexão entre as rela ções sexuais fora do casamento e a prole ilegítima Devemos nos liber tar do jugo da tradição e olhar o problema à luz de uma nova moral A argumentação de B é em parte do mesmo tipo que em 1 e 3 na medida em que quer lançar luz sobre as conseqüências da ques tão examinada A novidade está em que além disso se empenha em Direito e Justiça 359 enfraquecer o ponto de vista de A conscientizandoo da origem psi cológica e sociológica de sua atitude na esperança de que uma com preensão disso como crença condicionante debilitará sua fé na vali dade absoluta de seu ponto de vista Aqueles que nunca considera ram seriamente como suas atitudes morais se acham condicionadas pela história estão inclinados a interpretálas em termos religioso metafísicos é a voz de Deus ou a lei da natureza que lhes fala por meio de sua consciência Um ataque direto às suas crenças religioso metafísicas amiúde será em vão para isto bastando que a argumen tação epistemológica necessária seja tão complicada que poucos pu dessem captála Melhores resultados serão obtidos assim deixando de um lado a posição metafísica e pondo a descoberto a origem his tórica da moral Embora isso não conteste logicamente a asserção metafísica pode abalar a crença nela como fato psicológico No capí tulo anterior parágrafo 59 eu mesmo usei essas táticas em minha crítica ao direito natural e terei oportunidade de usálas novamente ao examinar a consciência jurídica6 5 A Sou a favor de leis que estabeleçam um controle mais rigoro so dos preços Reduzirão os exorbitantes aumentos de preço pratica dos no comércio B Penso que sua opinião sobre os homens de negócios é errada Eles desempenham uma importante função social e na maioria dos casos são pessoas que vivem modestamente A Bem talvez eu esteja equivocado a respeito deles Nessa argumentação B não toca nas crenças operativas de A refe rentes ao controle de preços e seus efeitos mas sim dirige sua artilha ria às crenças de A que presumivelmente condicionam sua suposta atitude de geral antipatia em relação aos homens de negócios 6 A Em minha opinião um imposto para os aparelhos de rádio é uma tolice Não é o rádio por acaso um meio de difusão da cultura B Digame você não é detentor de uma grande quantidade de ações de uma fábrica de aparelhos de rádio A Sou 6 Gostaria de acrescentar que neste livro e em outros formulei também uma critica epistemológica da metafísica moral Entendase por homens de negócios preferivelmente comerciantes IN Tl 360 Alf Ross B Ah agora posso entender melhor seu ponto de vista Esse exemplo mostra como B ao evidenciar os interesses de A e ao sugerir que influem no ponto de vista de A tenta levar 4 aum autoexame crítico que poderá talvez se traduzir numa mudança de ponto de vista Mesmo que não tenha êxito a argumentação de B num debate público será suficiente para desacreditar o ponto de vista de A aos olhos dos outros II Os métodos irracionais podem ser considerados como a contrapartida dos métodos racionais Abrangem todas as técnicas para converter um oponente exceto a argumentação enunciado de asserções É quase impossível encontrar um termo aceito para de signar o oposto de argumentação Prefiro usar a palavra persuasão A técnica de persuasão se baseia no fato psicológico fundamental de que as emoções atitudes emotivas e volitivas podem ser transmi tidas tal como as crenças Mas enquanto a comunicação das crenças pensamentos depende sempre do uso de uma linguagem7 a trans missão das emoções se vale de outros meios gestos conduta mímica humor etc e quando são usados termos lingüísticos estes funcionam de maneira diferente do uso na comunicação de pensamentos não tendo então a função de símbolos não se referindo a um objeto mas sendo sim expoentes diretos das emoções experimentadas Têm podemos também dizêlo carga emocional e não significado descritivo No parágrafo 2 ressaltamos que a linguagem é usada para outras coisas além da expressão de crenças asserções As exclamações e as ordens não têm significado descritivo mas expressam uma emo ção e mediante persuasão sugestiva provocam emoções corres pondentes nos outros Exemplos uma concentração de pessoas prorrompe em gritos ou exclama Viva o rei Alguém brada Abaixo para um orador Um homem exclama Olhe Uma mãe diz Você não deve fazer isso Vai em frente então etc Grito Ai quando me queimo Exclamo Que bonito Espero que ele venha etc A função emotiva da linguagem não se restringe a frases que como as mencionadas estão gramaticalmente no modo imperativo ou desiderativo Muitas frases que estão gramaticalmente no modo 7 Linguagem ordinária linguagem de signos matemáticos sinais ou algum outro sistema com função de símbolo Direito e Justiça 361 indicativo carecem de conteúdo descritivo e têm exclusivamente uma carga emocional Isto ocorre obviamente quando em tom de ordem digo a uma criança Agora vai comer o seu jantar Mas o mesmo se aplica aos enunciados morais mesmo que sejam tomados por muitas pessoas como asserções verdadeiras de uma validade ou retidão morais Cé seu dever é injusto é imoral Mas temos que ir além A função emotiva da linguagem não se limita às expressões que não têm significado descritivo Tal como ressaltamos anteriormente no parágrafo 71 muitas palavras têm ao mesmo tempo significado descritivo e carga emocional Isto é parti cularmente importante porque essa fusão abre caminho para a per suasão insinuada sob a roupagem de uma argumentação aparente mente racional Nestes casos a carga emocional será contudo ins tável e dependerá em grande medida da ênfase disposição e de outros fatores independentes da própria palavra Algumas palavras ou expressões reluzem como jóias Nossa augusta pátria e outras cheiram mal o monopólio plutocrático capitalista Há palavras que apresentam muitos graus distintos de calor e frio e que exibem sutis diferenças nas nuanças de valor quando se trata de elogiar e de censurar de expressar respeito e desprezo aprovação e reprovação admiração e desdém amor e ódio Adeqüamse muito bem para servirem de meios de persuasão e com freqüência são especialmente úteis precisamente porque a função de persuasão está associada à função descritiva Tais palavras são aceitas mais facilmen te sem que o ouvinte chegue a descobrir que foi objeto de persuasão As metáforas desempenham um papel importante Em virtude de seu significado descritivo fluído mas muito insinuante são eminente mente adequadas para a persuasão sugestiva 0a massa cinzenta do povo o rebanho da Igreja os lacaios do capitalismopadre como maneira de designar um sacerdote Toda a poesia lírica se vale de metáforas e a função prática de persuasão que cumprem é particu larmente clara nos hinos e nos cantos patrióticos A metáfora a me lodia e a magnitude do coro se combinam aqui para produzir um poderoso estimulante nacional enquanto o conteúdo descritivo das palavras é completamente esquecido 8 The Fine Art of Propaganda 1939 Cf Charles L Stevenson Ethics and Language 1944 249 e segs 362 Alf Ross É uma tarefa divertida e gratificante analisar um texto relativa mente à função persuasiva das palavras8 tal como fizeram Albert e Elisabeth Lee com as falas de rádio do padre Coughlin Os discursos religiosos patrióticos e políticos é claro são apropriadíssimos para essa análise Seria um erro entretanto crer que a função da persua são se limita unicamente a esses casos Sempre que usamos a lin guagem no nosso cotidiano ordinário utilizamos consciente ou in conscientemente os valores emocionais das palavras A persuasão através da linguagem tem especial interesse para nossos problemas em virtude de sua similitude externa que pode ser maior ou menor com uma argumentação racional Acresçase a isso que como salientamos há também formas de persuasão que não estão ligadas à linguagem O grito fogo num teatro gera pânico não só pela própria exclamação como também pelo tom e o gesto e pela excitação que sucede ao grito Uma mar cha de protesto uma procissão fúnebre o tremular de bandeiras o hastear de uma bandeira o aplauso o repicar de sinos o pranto de uma mulher etc todos estes e muitos outros fenômenos não lingüísticos cumprem cada um a sua maneira sua função própria de transmitir emoção que pode ser utilizada com fins de persuasão A integração religiosa e política de uma comunidade é obtida em gran de medida por meio de cerimônias cuja função é fortalecer e esti mular a unidade emocional do grupo Algo similar ocorre nos diversos tipos de fraternidades O efeito ideológico ligado a um sistema de sanções efetivamente aplicado o ordenamento jurídico constitui uma forma particularmente importante de persuasão Embora esses métodos não lingüísticos de persuasão sejam em si muito interessantes não me estenderei mais acerca deles porque seu estudo não tem importância para nossos problemas 73 CIÊNCIA E PRODUÇÃO POLÍTICA Após esse exame dos métodos de superação dos desacordos prá ticos voltamos agora ao problema do papel que cabe atribuir à ciên cia em relação a isso Tratase do mesmo problema que surge quan do nos perguntamos se a ciência pode dirigir a atividade humana ou Direito e Justiça 363 quando tentamos averiguar que relação há entre a ciência e a políti ca no sentido mais amplo desta última expressão Nosso ponto de partida é que a tarefa da ciência consiste unica mente em estar a serviço da argumentação racional suprindolhe asserções cientificamente sustentáveis e excluindo mediante discri minação crítica as que não são capazes de resistir a um teste cientí fico A persuasão se coloca necessariamente fora do âmbito da ciên cia seja por ocorrer de forma ostensiva ao decidir com base numa atitude e darlhe expressão seja por ocorrer ocultamente ao utilizar a carga emocional das palavras Visto que a palavra tarefa tem simultaneamente um significado descritivo e um significado emotivo esse enunciado sobre a tarefa da ciência requer uma explicação mais rigorosa e uma definição mais precisa Em primeiro lugar o enunciado é uma asserção teórica de caráter semântico Significa que se por ciência entendemos algo assim como um conhecimento sistematicamente desenvolvido e metodicamente comprovado as atitudes emocionais e sua expressão ficam claramente fora do âmbito da ciência Mas essa asserção semântica está claro não diz que os cientistas não podem ou que lhes é vedado expressar atitudes práticas Simplesmente quer dizer que esse aspecto de sua atividade não pode ser descrito como ciência na medida em que usa mos esta palavra com o significado que indicamos há pouco Em segundo lugar o enunciado é formulado também com a inten ção de expressar uma atitude moral uma ética profissional para cien tistas a idéia da objetividade ou pureza da ciência o que significa uma exigência dirigida em nome da honestidade aos cientistas para que se adentram o campo das atitudes e de sua expressão desta quem com a maior clareza possível9 os limites que separam aquela parte de sua atividade que pode reclamar a autoridade e a validade objetiva da ciência e da verdade e aquela outra parte que não pode pretendêlo10 Se não se fizer essa distinção o homem de ciência usurpará em benefício de suas atitudes subjetivas uma autoridade No sentido do inglês policy INTI 9 Os limites nunca podem ser traçados com absoluta precisão 10 Ao enfatizar que estou expressando uma atitude creio que neste caso satisfiz a exigência moral 364 Alf Ross que estas não têm o direito de reivindicar Não se trata simplesmente de um ato desonesto em si mesmo a longo prazo o prestígio e a autoridade da ciência se ressentirão11 Com base na mesma atitude a asserção semântica mencionada se eleva à posição de uma exigência moral aquela parte do labor do cientista que não é de natureza teórica não deveria ser designada com o nome de ciência porque isto contribui para suprimir o limite Por outro lado não se deve entender o enunciado como se pres supusesse uma atitude moral geral contrária ao uso de métodos irracionais com o propósito da persuasão Não podemos imaginar uma comunidade humana que não conheça a persuasão Toda a edu cação e a preparação moral se valem dela e a eficiência do direito depende em alto grau de seu poder ideologicamente sugestivo Jul gados à luz dos ideais humanistas os métodos racionais não são em si melhores nem piores que os irracionais Ambos podem ser empre gados igualmente a serviço do bem e do mal Qualquer apreciação a respeito deles deve levar em conta o espírito no qual são usados e as circunstâncias nas quais são postos em prática Propagandaé o nome odioso que recebe uma argumentação feita sem respeitar a verdade isto é que emprega mentiras ou distorções ou ocultando porções da verdade e recorrendo àquelas emoções que de um ponto de vista humanista são menos admiráveis ambição pelo poder ódio temor inveja vaidade Regimentação é o nome odioso que recebe a persu asão que não respeita a autonomia moral do ser humano Por outro lado informação é a denominação elogiosa que recebe uma argu mentação que respeita a verdade e educação a designação de uma persuasão emocional em harmonia com os ideais humanistas À parte aquelas tendências metafísicofilosóficas que ainda crêem na capacidade da ciência de captar uma retidão rightness a priori podemos afirmar que o princípio da pureza da ciência é hoje geralmen te reconhecido Se contudo continua ensejando polêmicas é porque a em parte a despeito da adesão ao princípio com freqüência ele é objeto de contradição na prática e bem parte há divergências quanto às conclusões metodológicas que são extraídas do princípio a Em relação ao primeiro ponto é um fato que a exigência de pureza é muito mais difícil de observar nas ciências sociais do que nas 11 A última frase do parágrafo expressa uma asserção que condiciona minha atitude Direito e Justiça 365 ciências naturais Isto se deve à circunstância de que o cientista do social numa medida muito superior que o cientista da natureza está comprometido emocionalmente com respeito ao tema de seu trabalho Nossa emoções mais fortes são aquelas que estão dirigidas às circuns tâncias de nossos semelhantes Uma pessoa cujo trabalho se refere a isso é ela mesma parte do tema que se ocupa numa medida muito maior do que uma pessoa dedicada ao estudo dos fenômenos naturais Por esta razão é muito mais difícil libertar as ciências sociais do pensa mento pleno de desejo e da ideologia Se alguns matemáticos experi mentaram uma incisiva preferência pelos círculos e outros pelos qua drados ou se alguns físicos a experimentaram pela luz e outros pelo som é concebível que nesses campos se faria sentir também uma inclinação semelhante ao preconceito ideológico Essas circunstâncias explicam o fato de que as ciências sociais foram e majoritariamente ainda são uma mescla infeliz de ciência e política No domínio do direito constitucional Hans Kelsen demons trou com infatigável empenho de que modo grandes setores dele foram escritos para defender os interesses de um regime existente De maneira magistral ele pôs a nu as manipulações e as imposturas que as atitudes políticas empregam consciente ou inconscientemen te para se disfarçar de ciência tentando se atribuir assim de forma enganosa a autoridade que o nome de ciência confere Em relação à economia Gunnar Myrdal em sua obra já clássica The PoliticalElement in the Development of Economic Theory mostrou numa brilhante análise como as atitudes políticas afetam secretamente os conceitos fundamentais e a elaboração da teoria econômica No conceito de valor na teoria dos preços e do juro nas idéias de bemestar público harmonia de interesses proporção equilíbrio estabilidade nas idéias de funcionamento natural liberdade administração econômica e em muitas outras partes elementares da teoria econômica deslizam ocul tos componentes de atitude que conferem à doutrina um direcionamento político ao mesmo tempo que essa doutrina é ofere cida como uma descrição objetiva e científica da realidade Numa obra posterior Myrdal demonstrou que na sociologia as coisas ocor rem de maneira semelhante12 b É um bom sinal uma prova de maior entendimento epistemológico e de um respeito mais vivo ao ideal de uma ciência 12 Gunnar Myrdal An American DUemma 194411045 e segs 366 Alf Ross pura o fato de recentemente terse experimentado em muitas áreas das ciências sociais uma poderosa reação contra a retrógrada influ ência da política sobre a teoria Max Weber foi o pioneiro e muitos outros seguiram seus passos Esta mesma reação entretanto explica talvez porque muitos estudiosos têm tirado conclusões metodológicas excessivas da idéia de pureza da ciência Na obra de Kelsen em alguns jovens juristas suecos e em muitos proeminentes sociólogos norteame ricanos por exemplo encontramos a exigência metodológica de que a ciência se atenha estritamente aos fatos e à sua explicação teórica e se abstenha de toda tentativa de converter o conhecimento teórico em diretriz para os esforços práticos este aspecto deve ser deixado aos políticos O lema é a ciência é uma coisa a política outra13 Myrdal demonstrou brilhantemente que esse idealismo em busca da objetividade que se afigura tão atraente excedese em suas pre tensões14 Em primeiro lugar a exigência ideal não pode realizar seu propósito Em segundo lugar na medida em que pudesse realizálo impediria toda cooperação frutífera entre a teoria e a prática No tocante ao primeiro ponto Myrdal mostra que o perigo ideoló gico não consiste tanto na formulação ostensiva de conclusões práti cas extraídas da teoria como nas atitudes ocultas que estão implíci tas nos conceitos empregados A maior parte da terminologia é toma da de empréstimo da linguagem cotidiana e tem uma carga emocio nal É na realidade impossível que o cientista social se eleve acima do meio social em que vive e liberte seu espírito de toda inclinação emocional A idéia de aterse aos fatos a todo custo é por conse guinte uma ilusão e tampouco necessária à pureza da ciência Essa exigência é satisfeita uma vez as atitudes ocultas são trazidas à luz do dia como pressupostos explícitos As conclusões adquirem então um caráter hipotéticoobjetivo são sustentadas sob a condição de que se aceite um determinado conjunto de atitudes A outra objeção de Myrdal tem talvez um peso ainda maior Se a ciência realmente tivesse de se abster de toda formulação prática de seus resultados poderíamos então imaginar uma compilação de todo o conhecimento teórico da qual o político teria que extrair por si mesmo o que necessitasse Com freqüência porém simplesmente 13 Cf Myrdal op cit p 1041 e segs 14 Loc cit Direito e Justiça 367 não o encontraria O conhecimento especial que é necessário para a solução de problemas práticos específicos só é alcançado em vista desses precisos problemas Para produzir o conhecimento técnico re querido a investigação teórica tem que ser organizada planejada e levada a cabo sob o norteamento dos problemas práticos Podese juntar a fim de complementar a linha de pensamento de Myrdal que esse estado de coisas já é bem conhecido nas ciências naturais As ciências técnicas ou aplicadas as ciências da medicina agricultura construção de pontes etc não consistem tãosó em uma adequada seleção e coordenação dos resultados das ciências básicas são ramos específicos da ciência cuja investigação é organi zada em vista de objetivos práticos específicos Seria inconcebível que um médico obtivesse sua instrução de uma seleção adequada das ciências básicas química biologia fisiologia etc A medicina é uma ciência específica no sentido de que à luz do conhecimento geral das ciências básicas investiga por iniciativa própria fatos e leis científicos segundo sua relevância operativa para uma atitude funda mental a saber que é importante preservar e promover a vida e a saúde do ser humano Do mesmo modo a física nuclear é organizada em relação com a atitude de que é desejável utilizar a energia atômi ca para a construção entre outras coisas de bombas Não ocorrerá a ninguém questionar por essas razões a pureza científica das ciências naturais aplicadas O dentista não decide por si mesmo a atitude a premissa valorativa que rege sua investigação não é sua O cientista nuclear não afirma o valor de produzir bombas atômicas como tampouco o estudante de ciências médicas afirma o valor de preservar e salvar a vida humana Sua ciência é puramente objetiva e hipotética tomados estes fins como dados o conhecimen to resultante é operativo com respeito a eles A premissa hipotética afeta a pureza da ciência tanto como a afeta a escolha que o es tudioso sempre tem que fazer antes de pôrse a trabalhar num ramo da ciência em lugar de fazêlo em outro Alberto de Santos Dumont teria se consumido em angústia quando soube que o aeropiano começava a ser utilizado com fins bélicos para destruir obras e vidas humanas Essa tradicional postura de isenção do cientista exato quanto aos tipos de uso que se farão do fruto de suas pesquisas e de seus inventos quando não encomendados e esse amoralismo tão útil e segundo muitos até necessário à objetividade e elevada eficiência do labor cientifico neutro e independente de ideologias valoração moral e autoreflexão tudo em nome de uma pureza da ciência deixando a classe científica pairando nas alturas comodamente apartada do moral ou seja da responsabilidade pelas conseqüências de suas obras dispensada de emitir juízos de valor sobre a pragmaticidade de suas criações sempre atraíram para os cientistas 368 Alf Ross A escolha da premissa é determinada pelo desejo de que os resulta dos da ciência aplicada tenham um valor operativo em relação com atitudes práticas O estudioso portanto só aceita de forma hipotética os objetivos vigentes A ciência da agricultura é motivada pelo fato de que as pessoas trabalham na agricultura e querem obter o maior pro veito econômico possível A ciência da engenharia é motivada pelo desejo de ser capaz de resolver problemas técnicos diversos É claro que nada impede o desenvolvimento de uma ciência aplicada referente à construção de pirâmides de vidro É evidente que se ela não se de senvolveu até hoje é porque não se experimentou um desejo prático correspondente Tal ciência seria desprovida de relevância operativa Cabenos agora indagar se é possível aplicar às ciências sociais pontos de vista metodológicos semelhantes Isto significaria que o cientista social aceita hipoteticamente da mesma maneira impessoal as atitudes políticas vigentes nos círculos que detêm o poder na co munidade ou seja que tal como seus colegas das ciências naturais aplicadas põe seu conhecimento à disposição de objetivos dados sem adotar por si nenhuma atitude com relação a eles Em princípio essa indagação pode ser respondida na afirmativa embora hajam algumas diferenças vitais que fazem com que o sonho corrente de que as ciências sociais cheguem algum dia a constituir uma enge nharia sociai tenha que continuar sendo um sonho Uma dessas diferenças é que enquanto é possível fixar as discipli nas das ciências naturais aplicadas em objetivos relativamente unívocos15 eficiência na agricultura na fabricação de bombas atômicas na cons trução de pontes não ocorre o mesmo com as ciências sociais aplica das Não existe um objetivo correspondente relativamente simples das ciências ditas exatas e com justiça a acusação de que essencialmente e em ultima instância não passam de serviçais do poder político e do poder econômico A propósito já há muito aprendemos a desconfiar da palavra pureza A afirmação de Ross de que ciência é uma coisa política outra a despeito de ser conceitualmente óbvia não tem nenhuma aplicação legítima na prática a menos que a relação entre cientistas exatos e poder político não fosse de subordinação dos primeiros ao segundo 0 possível argumento de que não compete ao cientista das ciências naturais aplicadas opinar a respeito do tipo de emprego da sua obra faz dele um gênio alienado e manipulado além de inevitavel mente nos lembrar da fábula trágica do Victor Franskenstein de Mary Shelley IN TJ 15 0 contraste não é absoluto Também as ciências naturais aplicadas operam em alguma medida com objetivos incomensuráveis Um receptor de rádio não pode possuir simultaneamente um máximo de seletividade e um máxi mo de qualidade de reprodução um motor não pode ter ao mesmo tempo um máximo de velocidade e um máximo de potência 0 contraste é entretanto significativo A inevitável escolha entre diversas possibilidades técnicas indispensáveis numa situação específica geralmente não terá caráter político e será aceita pelo interessado como uma solução técnica para suas necessidades Direito e Justiça 369 em política As tentativas de elaborar um sob a forma de bemestar da comunidade saúde sociai e coisas semelhantes são ilusórias A tarefa política terá sempre como referência uma multiplicidade de ati tudes que não constituem um sistema mas sim um conglomerado Analisando uma situação específica descobriremos uma grande varie dade de componentes de desejo que não refletem simplesmente os interesses de diferentes grupos sociais mas também uma diversida de de desejos e necessidades dentro do mesmo grupo Não há uma simples necessidade poiítica um simples objetivo político que pos sam ser definidos e isolados como o são os objetivos técnicos A tarefa política é sempre uma tarefa de integração um ajuste de con siderações incomensuráveis Há problemas de maximização e proble mas de distribuição considerações de economia de política partidá ria e de estratégia militar considerações sobre emprego e desempre go inflação balança comercial considerações a curto e longo prazo ideais culturais e sociais o desejo de segurança em matéria de políti ca exterior etc Tudo isso reflete uma multiplicidade de atitudes que têm que ser pesadas e ajustadas A decisão política portanto tem sempre o caráter de uma resolução não de uma solução como a solução de um problema técnico Ademais as atividades políticas com freqüência não apresentam clareza São incertas e nebulosas Nossas atitudes são condicionadas por nossas crenças Se estas últimas são incertas e nebulosas como o são por certo com respeito a conexões sociais enormemente com plicadas também o serão as atitudes Não possuímos conhecimento suficiente dos fatos sociais e de sua correlação para saber aquilo que queremos Ninguém pensou no pleno emprego como objetivo en quanto as crises econômicas foram consideradas fenômenos naturais inevitáveis Por isso o papel da teoria não é puramente técnico Deve nos orientar também no que tange ao próprio objetivo deve escla recer e precisar as atitudes políticas corrigindo e complementando as crenças condicionantes ou indicar os objetivos que proporiam aque les que detêm o poder se tivessem uma concepção mais adequada da realidade do que a que realmente têm16 As diferenças que ressaltamos explicam porque a ciência social apli cada tem que começar e terminar distintamente das ciências naturais 160 contraste tampouco é absoluto neste ponto 0 desejo de construir automóveis não surge enquanto não existe um certo conhecimento de tecnologia 370 Alf Ross Tem que começar de outra maneira porque não encontra suas premissas no mesmo estado de elaboração e clarificação que as ciên cias naturais O primeiro passo portanto deverá ser estudar e tabular as atitudes políticas fatuais tal como se expressam nos interesses simpatias aspirações e ideologias dos distintos grupos influentes Mas isto não passa de matériaprima a ser elaborada É preciso investigar se os diversos objetivos são compatíveis entre si ou exigem um contrabalanceamento recíproco é preciso examinar se estão condicio nados por uma inadequada concepção da realidade que reclama ser corrigida à luz de um conhecimento melhor e mais completo Só depois disto o cientista do social alcança o ponto no qual pode formular suas premissas hipotéticas a lista de considerações e objetivos políticos que haverão de determinar a direção de suas investigações e de suas con clusões práticas Mesmo quando o problema assim descrito possa ser em princípio colocado e resolvido como um problema objetivo cientí fico estará circundado entretanto por tantas dificuldades e incertezas que na prática as opiniões e preferências pessoais participarão inevi tavelmente da elaboração da lista de objetivos Na ciência social aplica da as pressuposições emocionais não podem ser objetivadas na mes ma medida que nas ciências naturais Dificilmente o cientista social deixará de ser em algum grau também um reformador social Talvez ainda mais importante seja frisar que a ciência social aplica da deve terminar também de outra maneira jamais pode ser racional mente concludente como o é a ciência natural isto é dar uma solução inequívoca aos problemas da ação Neste contexto não aludimos a defeitos nas crenças operativas que se devem aos presentes hiatos hoje existentes nas ciências sociais Referimonos aqui a uma questão de princípio que continuaria sendo válida ainda quando conhecêsse mos cabalmente os fatos e mecanismos da vida de uma comunidade O fator decisivo é o fato das considerações múltiplas Nunca será pos sível elaborar diretivas técnicas sobre o pleno emprego do mesmo modo que se pode suprir diretivas para a fabricação de bombas atômicas O problema prático do emprego e desemprego não pode ser isolado do contexto social Os métodos de intervenção variam com o contexto e devem ser avaliados com base na totalidade das considerações e não meramente por sua eficácia no combate do desemprego Mesmo após haver feito a mais exaustiva coleta de todos os fatos e suas correla ções sempre haverá um salto a ser dado o que significa que todas as Direito e Justiça 371 considerações são levadas em conta e pesadas numa resolução isto é num ato irracional A ciência social jamais pode pretender uma solu ção quer dizer uma diretiva que brote inequivocamente do objetivo dado em conexão com o conhecimento técnico Relativamente a isso apresentase um especial problema metodológico a saber se o cientista social deve empreender por si mesmo esse salto se deve realizar essa ponderação de considera ções que se traduz numa resolução ou se deve limitarse a dispor as considerações sobre a mesa e deixar que os homens de ação retirem as conclusões práticas o problema é agudo no atual debate sobre metodologia jurídica ver parágrafo 79 É óbvio que a atividade de que estamos falando não é de natureza científica Todavia da idéia de pureza da ciência não podemos inferir que tal atividade não deva ser efetivada por um cientista É mister simplesmente enfatizar que o cientista não atuaria ali como represen tante da ciência Ademais o teórico goza de melhor posição que o prático para empreender a ponderação visto ser ele o detentor de conhecimento direto e amplo dos fatos relevantes e de suas implica ções Mesmo que forneça esta informação ao prático esta não pro porcionará a este último a mesma compreensão das diversas consi derações e possibilidades Pensemos na relação paralela entre um médico e seu paciente Por exemplo um médico pode dar a um paciente um conselho preciso sobre cirurgia e sua opinião pode ser considera da obrigatória pelo paciente pois este entende que o médico está em melhor posição para apreciar as possibilidades à luz dos interesses do próprio enfermo Mas a ponderação das considerações pode ser tão pouco decisiva que o médico prefira informar ao paciente com maior amplitude para que este decida Acho portanto que é compatível com a idéia da pureza da ciência e que é inclusive conveniente que seja o teórico quem empreenda o salto irracional e faça conhecer o resultado sob forma de instruções ao prático As instruções do teórico certamente jamais podem eximir o prático da resolução final e da responsabilidade final Para esclarecer isto voltemos ao exemplo das instruções do médico ao paciente O conselho do médico se baseia na atitude geral referente à preservação da vida e da saúde em conexão com seu conhecimento profissional Mas para o paciente podem haver outras considerações que são também determinativas Do mesmo modo as diretivas que fornece a 372 Alf Ross economia aplicada estão determinadas com base no conhecimento do economista das condições econômicas enquanto é perfeitamente con cebível que o político responsável necessite aplicar também outros cri térios por exemplo aqueles que se referem à estratégia militar e a tática da luta partidária É sem dúvida desejável uma racionalização do comércio varejista com base em critérios puramente econômicos Todavia muitos políticos se opõem a essa idéia porque por funda mentos ideológicos ou em função de táticas partidárias julgam van tajoso continuar tendo uma classe de pequenos comerciantes inde pendentes Apesar dos bons argumentos econômicos Bismarck era contrário à liberdade industrial porque via um perigo para o Estado no crescimento de uma indústria em grande escala A socialização do comércio na Rússia foi levada a cabo não tanto por razões econômi cas como por razões políticas para desenvolver o movimento coope rativo na agricultura e com isso a coerência do novo Estado Esses exemplos podem ser generalizados da maneira seguinte o prático responsável situado no meio de uma situação real de ação deve levar em conta todas as atitudes e considerações que possam se originar das circunstâncias operativas Sua política é integral O teórico nunca se acha igualmente in médias res Suas premissas hipotéticas de atitude são estilizadas e simplificadas As condições operativas e as considerações condicionadas por elas que invoca estão restritas ao campo de visão próprio de sua profissão particular Suas observações são abstratas suas conclusões políticas diferenciais Isso explica porque todos os especialistas do mundo jamais torna rão o político desnecessário A tarefa irredutível que cabe a este é a integração das políticas diferenciais de todo o conjunto de especialis tas O especialista vê as coisas profissionalmente com um único olho Ross comete aqui uma impropriedade cultural visto que a figura e conceito do governantesábio ou govemantefilósofo ariston o possuidor da maior soma de virtudes ou excelências sabedoria senso de justiça temperança coragem e riqueza moderada não correspondem suficientemente ao conceito moderno de cientista mesmo se considerarmos o conceito intercambiável de sábio o francês sage evoluindo para savant e o inglês scholar 0 sábio platonicamente falando nesse contexto não é apenas aquele que tem conhecimento para fazer o intelectualmente capal mas sim o mais conjuntamente virtuoso 0 ariston como acima indicado é muito mais do que o máximo detentor de conhe cimento intelectual habilidades correlatas e carisma qualidades tão comuns nos políticos Se assim fosse os indiscutíveis governantes soberanos e líderes políticos de todos os tempos de Alexandre e Napoleão a Bill Clinton teriam sido capazes de assegurar efetivo bemestar em todos os aspectos a todos os súditos ou cidadãos das comunidades que governaram ou governa sem uma única exceção mesmo do mais humilde dos membros da sociedade Ademais a distinção estrutural e funcional entre sábio e político tão perceptível e flagrante na realidade moderna era bastante vaga no mundo grego e certamente ausente no platonismo Ver A República e As Leis de Platão constantes nesta mesma série Clássicos Edipro IN TJ Direito e Justiça 373 O político devia ter também olhos na nuca A idéia platônica de que os cientistas são os convocados para governar o Estado se funda na falsa idéia intelectualista de que para realizar a ação correta basta possuir o conhecimento correto Nos Estados Unidos de hoje essa idéia perdura no sonho de que as ciências sociais alcançarão um dia tal fastígio de perfeição que os cientistas sociais os técnicos sociais e os mecânicos sociais tornarão os políticos supérfluos e controlarão o Estado com a mesma eficiência prática que exibem seus colegas das ciências naturais quando constróem uma fábrica de automóveis17 Do lado oposto Hans J Morgenthau Scientifíc Man v Power Politics 1946 apresentou uma crítica aguda à crença racionalista na capaci dade da ciência para resolver problemas sociais e exercer controle da vida social por engenharia social Concordo com este ponto de vista mas não com a argumentação do autor pois Morgenthau começa por ressaltar a visão de que as ciências sociais não são capazes de prever com certeza o curso da vida social estando limitadas a um cálculo de tendências prováveis op cit126 e segs 151 Mesmo que isto fosse verdadeiro dificilmente seria decisivo O ponto relativo de incerteza não explica a diferença fundamental que distingue os problemas soci ais dos problemas das ciências naturais aplicadas Como é explicado no texto a diferença decisiva deve ser buscada nas pressuposições emo cionais O que é especificamente político é a integração de múltiplas considerações Cada uma destas pode ser baseada em conhecimento científico mas a integração em si é um ato irracional além do domínio da ciência causai procura produzir acordos práticos influindo sobre o ponto de vista de um oponente por meio da argumentação e da per suasão Dentro dessa estrutura desempenham um papel as asserções racionais argumentativas baseadas na experiência comum ou nò co nhecimento científico Mas sua função não é provar uma verdade mas convencer um oponente isto é convertêlo ao ponto de vista próprio 74 DISCUSSÃO Durante séculos a teoria política tem marchado sob o estandarte do absolutismo filosófico e do racionalismo O problema da ação po 17 Com relação ao problema do papel do jurista como técnico social os representantes típicos e mais influentes de um racionalismo vigoroso são Harold D Lasswell e Myres S McDougall Ver seu trabalho conjunto Legal Education and Public Policy em Lasswell TheAnalysis of PoliticalBehaviour 1947121 e segs e Myres S McDougall The Law School of the Future YaleL J 1947 1345 374 Alf Ross lítica tem sido considerado um problema relacionado com a discussão política como uma maneira de determinar à luz de princípios racionais qual é a ação correta Este absolutismo e racionalismo caracterizaram não só a teoria como também a prática não só filósofos como tam bém os políticos juristas e os leigos As ideologias políticas têm sido proclamadas e aceitas como verdades racionais e a argumentação de política jurídica tem assumido a forma de deduções a partir das verdades eternas da justiça e do direito natural Provavelmente sob essa roupagem metafísica sempre estiveram ocultos pensamentos mais ou menos imperfeitos baseados numa con cepção operativa da realidade sobre uma base empírica Somente nos tempos modernos nas últimas gerações tentouse seriamente dar à discussão política uma base científica Entretanto a essas ten tativas faltou suporte metódico numa teoria básica da natureza da argumentação prática de sua função e de sua mecânica Pareceme que a teoria delineada neste capítulo constitui uma primeira tentativa fragmentária nessa direção Baseiase no ponto de vista fundamental de que a discussão política não se dá no plano da lógica não se trata de provar verdades ela se dá no plano psicológicotécnico Nada há de novo sob o sol No que se relaciona a Morgenthau a tese aqui sustentada significa o reconhecimento de uma disciplina que desempenhou um papel considerável na antigüidade clássica mas que desde os dias de Descartes foi totalmente esquecida a retórica Para os gregos a retórica era diferente do estudo da oratória e mais impor tante que esta Tal como se depreende dos Tópicos e da Retórica de Aristóteles era um estudo amplo da técnica que se deve empregar para obterse o apoio dos outros mediante uma ação adequada sobre seus pensamentos e espíritos E este é o objetivo do político prático e político teórico Isto contrariamente ao que os racionalistas apresen tam nada tem a ver com o cinismo Essa técnica só se torna cínica se for exercida sem o respeito à verdade e os idçais humanistas de nossa civilização A tarefa da ciência é precisamente fomentar a argumenta ção política com o maior respeito possível pela verdade Charles L Stevenson e Ch Perelman18 entre outros contribuíram para a fundamentação de uma nova retórica 18 Ver Charles L Stevenson Ethics and Language 1944 Ch Perelman Réflexions sur Ia justice Revue de 1lnstitut de Sociologie n 21951 Bruxelas Raison éternelle raison historique Actes du VI Congrès des Sociélés de Philosophie de Langue Française 11952 347 Ch Perelman e L OlbrechtsT yteca Rhétorique etPhiosophie 1952 Capítulo XV O Domínio e a Tarefa da Política Jurídica 75 DELIMITAÇÃO ENTRE A POLÍTICA JURÍDICA E AS OUTRAS POLÍTICAS Se partirmos de uma teoria idealista do direito não será difícil esta belecer qual é a tarefa específica da política jurídica que é o que a distingue das outras políticas O direito tem o seu objetivo em si mes mo aperfeiçoar a idéia de justiça a ele inerente A política jurídica é a doutrina que ensina como atingir esse objetivo o qual distingue a po lítica jurídica da política do bemestar da política cultural e da política do poder que são determinadas com base em objetivos diferentes econômicos culturais e políticos É possível também adotar o ponto de vista de que a política jurídica é um ramo específico da política cultural aquele ramo que está encerrado na idéia cultural específica do direito Se rejeitarmos em contrapartida tal como fizemos a concepção de uma idéia específica do direito que confere a este um valor abso luto por si mesmo e em lugar disso considerarmos o direito positivo como uma técnica social ou como um instrumento para atingir obje tivos sociais de qualquer tipo econômicos culturais e políticos en tão a questão se tornará mais complexa Parece portanto que o ponto de partida será que a política jurídi ca não é determinada por um objetivo específico mas por uma técni ca específica abarca todos os problemas práticos que surgem do 376 Alf Ross uso para o atingimento de objetivos sociais da técnica do direito em particular da legislação Assim definida entretanto a política jurídica ocuparia um domínio muito maior do que aquele que em geral se considera como legítimo campo de ação do jurista Um orçamento do Estado impostos taxas e empréstimos gover namentais são fixados impostos e aumentados mediante sanção legislativa A despeito disso os problemas que se enquadram nesses rubros não são considerados próprios da política jurídica mas ques tões que pertencem à política financeira e à esfera da competência dos economistas Do mesmo modo os problemas do regramento das relações entre as classes sociais em particular o regramento das condições de trabalho da previdência social e do apoio aos necessita dos pertencem à política social por mais que tais medidas sejam levadas a cabo por meio da legislação os problemas de câmbio e das restrições à importação e à exportação pertencem à política comercial os problemas de preços produção e distribuição à política industrial e da produção os problemas educativos religiosos etc à política cultural os tratados à política exterior as questões militares à polí tica de defesa nacional e assim sucessivamente Deixando de lado questões puramente lingüísticas de formulação a orientação exclusiva nestes e noutros problemas políticos tem que ser proporcionada naturalmente pelos especialistas nos respectivos campos economistas educadores militares e especialistas em políti ca exterior e não pelos juristas Qual é então o lugar reservado à específica política jurídica como esfera de competência dos juristas Talvez pudéssemos pensar que tal esfera compreende por exemplo os contratos a responsabilidade extracontratual seguros registros casamento a maioridade a he rança a legislação penal e outros temas que por tradição constituem o território principal dos juristas Quando se aceita todavia que tampouco nessas esferas o direito existe por si mesmo mas que tem que ser valorado segundo sua função em relação a objetivos e atitu des que se acham fora do direito parece então que inclusive esses problemas de política devem competir aos diversos especialistas não jurídicos Por exemplo não está por acaso a regulamentação da res ponsabilidade extracontratual e a dos seguros estreitamente ligadas Direito e Justiça 377 aos problemas econômicos Ou se pode opinar acerca de uma lei de regulamentação das compras por cotas sem considerar a importân cia desse sistema para a produção e o investimento Dessas reflexões concluise que a natureza da política jurídica não pode ser buscada num objetivo específico tal como por exemplo a ciência da medicina a ciência da agricultura ou a ciência da constru ção de pontes estão organizadas em relação a um objetivo específi co Se é para a política jurídica ser uma disciplina com conteúdo pró prio a posição terá que ser a inversa Sua natureza particular tem que se achar condicionada por um corpo particular de conhecimen tos que é relevante logo que a técnica do direito seja empregada para a solução de problemas sociais independentemente do objetivo destes Este corpo especial de conhecimentos só pode ser buscado no conhecimento sociológicojurídico que versa sobre a conexão cau sai entre a função normativa do direito e a conduta humana ou tam bém poderíamos dizer que versa sobre as possibilidades de influir na ação humana mediante o aparato das sanções jurídicas A política jurídica é sociologia jurídica aplicada ou técnica jurídica Creio que esse ponto de vista pode lançar luz sobre as questões que colocamos Não há problemas de legislação que sejam especifi camente problemas políticojurídicos ainda que todo problema de legislação tenha um aspecto políticojurídico Entretanto em situa ções diferentes esse aspecto políticojurídico pode desempenhar pa péis muito diversos com o resultado de às vezes passar ele desper cebido e às vezes ser considerado o único aspecto do problema Se por exemplo é necessário que sejam aprovadas medidas polí ticofinanceiras tais como um novo imposto o estabelecimento de poupança obrigatória ou o aumento de certas taxas o interesse não se centra no problema técnicojurídico isto é o primeiro elo da cor rente causai a saber entre a aprovação da norma e seu cumprimen to mas nos efeitos ulteriores vinculados à inflação à balança comer cial ao emprego e o desemprego etc Os problemas políticojurídicos têm importância secundária permanecem no fundo ou são passados por alto porque apontam objetivos temporários e em transformação o que é usualmente entendido por política no sentido mais estrito Ao contrário os problemas técnicojurídicos são predominantes quando são consideradas instituições profundamente enraizadas na 378 Alf Ross estrutura econômica e ideologia relativamente permanentes da co munidade tais como a propriedade os contratos e o casamento Precisamente porque as atitudes ideológicas e os objetivos que se encontram por trás dessas instituições são experimentados pela tra dição como uma coisa quase óbvia e não problemática situada muito acima do político em sentido estrito tais atitudes e objetivos não atraem a atenção Não são discutidos e dificilmente são experimenta dos de forma consciente Todo o esforço espiritual se concentra nas questões técnicojurídicas como devem ser formuladas as normas jurídicas para estimular aquela conduta que melhor se harmonize com as atitudes e objetivos pressupostos O jurista e o especialista em política jurídica encontram aqui sua tarefa A questão se torna políticojurídica na medida em que não é política em sentido estrito O contraste não é absoluto É uma questão de graus de diferença e estados de transição Ainda assim a intervenção política mais efêmera tem seu aspecto políticojurídico Em torno da cambiante legislação tributária e seus problemas puramente políticofinanceiros com o desenrolar do tempo se acumula todo um conjunto de proble mas técnicojurídicos que focalizam a direta relação sociológicojurí dica entre norma e conduta Desenvolvese um direito tributário De maneira similar desenvolvese um direito administrativo um direito social etc Por outro lado mesmo as instituições mais centrais não são colocadas acima da transformação política e da reconsideração com critério político Juntamente com a evolução dinâmica de uma comunidade se produz também uma transformação em seu funda mento ideológico O direito dos contratos e da propriedade experi mentou variações fundamentais no período transcorrido entre o zêni te do liberalismo e a atual legislação social Essa evolução trouxe seus próprios problemas e conflitos os quais ultrapassam o campo técni cojurídico até atingir os efeitos sociais de amplo alcance da legisla ção apreciados em relação com os interesses encontrados dos diver sos grupos dentro da comunidade Tampouco se deve entender que o contraste significa que o jurista deve limitarse estritamente aos problemas técnicojurídicos à ver dadeira política jurídica deixando todas as demais questões aos ou tros especialistas Ocorre freqüentemente o jurista dedicado a pro blemas de iege ferenda numa esfera que tem caráter predominante mente técnico se ocupar do grupo de problemas como um todo quer Direito e Justiça 379 dizer também daqueles aspectos que pressupõem familiaridade com temas econômicos ou outros que não são de caráter sociológicojurí dico Um relatório sobre um projeto de modificação da regulamenta ção das compras por cotas preparado por um jurista incluirá por exemplo uma investigação das funções econômicas desse método comercial e da estrutura econômica e hábitos do comércio varejista Nessa medida o jurista não se apresenta como especialista a título próprio mas toma em empréstimo o seu conhecimento alhures Nada há de mau nisto desde que o faça com discernimento e tato Entre tanto o perigo de diletantismo é óbvio se o jurista em lugar de confiar em outros especialistas se atribuir capacidade para ter domí nio sobre problemas que estão fora de seu campo profissional Os diferentes papéis que desempenha o conhecimento jurídico especialista se refletem na composição das comissões que se costu ma nomear para produzir relatórios sobre reformas legislativas O papel do jurista em tais situações é com freqüência duplo Por um lado é um especialista em seu campo específico o da sociologia jurídica por outro lado ele é quem amiúde depois que os especia listas fizeram conhecer sua opinião pesa e estima todas as conside rações e alcança a formulação que integra de melhor maneira todos os componentes motivadores Tal como se disse anteriormente essa atividade não é de natureza teórica mas prática A política jurídica nessa medida é uma arte uma habilidade prática na qual o valor do resultado é medido por ser de fato aceito pelos outros particular mente por aqueles que detêm o poder como a decisão que melhor harmoniza todas as atitudes dominantes e as crenças operativas O jurista está profissionalmente treinado nessa arte e em tal medida sua tarefa consiste em ser árbitro dos especialistas Isto é demons trado na prática pelo fato de que se costuma confiar a advogados a presidência de comissões integradas por diversos especialistas Conseqüentemente a política jurídica abrange na prática os se guintes elementos 1 os problemas especificamente técnicojurídi cos de natureza sociológicojurídica política jurídica em sentido pró prio 2 os outros problemas políticos estreitamente ligados àqueles na prática que por sua índole pertencem na realidade ao campo profissional de outros especialistas e a respeito dos quais o jurista aparece portanto como um especialista de segunda mão 3 a ati vidade de pesar considerações e decidir como árbitro dos especialistas 380 Alf Ross e 4 a formulação lingüística da decisão a qual que se diga de pas sagem dificilmente pode ser separada da própria decisão numa linguagem jurídica aceitável e que se harmoniza com o corpo de nor mas existente1 76 POLÍTICA JURÍDICA DE LEGE FERENDA E DE SENTE NUA FERENDA Até agora a política jurídica foi principalmente considerada como política legislativa Entretanto o direito não é criado unicamente pelo legislador Vimos capítulo IV que toda administração da justiça con tém um ponto de decisão que transcende a atividade intelectual A decisão judicial contudo é menos livre do que a decisão legislativa A autoridade que administra o direito em particular o juiz se sente obrigada pelas palavras da lei e as outras fontes do direito Todavia estas sempre deixam espaço para a interpretação e a norma jurídica concreta na qual se traduz a decisão é sempre criação no sentido de que não é uma mera derivação lógica de regras dadas Com base nesses fundamentos a política jurídica não só cumpre o papel de guia para o legislador como também o de guia para as autoridades que administram o direito em particular os juizes Essa forma de política jurídica é a que aparece na contribuição que a doutrina faz à interpretação Demonstrouse antes de que maneira especial as considerações jurídicas teóricas se confundem com as considerações jurídicas políticas De acordo com as premissas de atitude adotadas a interpretação doutrinária pode ser uma asserção teóricojurídica sobre a maneira como terão que reagir os tribunais com toda probabilidade ou um conselho jurídicopolítico que indica ao juiz como este deve reagir 77 O FUNDAMENTO TEÓRICO DA POLÍTICA JURÍDICA Toda política poHc cientificamente fundamentada tecnologia é teoria aplicada e em função disto assoma a questão qual conheci mento teórico é o que encontra aplicação na política jurídica 1 No parágrafo 83 in fine é mencionado um possível quinto campo para a política jurídica Direito e Justiça 381 No que tange à política jurídica em sentido estrito o conhecimento que encontra aplicação aqui é o conhecimento sociológicojurídico da conexão causai entre a aprovação das normas e a conduta humana ou o conhecimento de como é possível influir na conduta humana por meio da maquinaria jurídica a qual é por sua vez determinada pelas normas O conhecimento relevante para a política jurídica em sentido estrito lida com problemas tais como por exemplo os seguintes que influência tem a formulação de normas relativas a danos e prejuízos sobre a cautela que as pessoas observam em várias situações Que papel desempenham em relação a isso as facilidades para obtenção de um seguro que cubra esse risco de responsabilidade Que impor tância têm as normas que regram as hipotecas e outras instituições de garantia com respeito ao crédito e o comércio Qual é a influência do sistema compraaluguel sobre as disponibilidades financeiras das pes soas e em que medida constitui uma tentação para atos criminosos Em princípio a resposta para perguntas desse tipo é teoricamente baseada na sociologia jurídica Entretanto hoje em dia não existe uma sociologia jurídica que seja uma ciência sistemática apoiada em investigações metódicas em todo caso tal disciplina está apenas engatinhando O jurista opera com conhecimentos obtidos da experi ência comum da vida complementados por dados estatísticos mais ou menos fortuitos Isso explica porque no raciocínio políticojurídico a conjetura e o cálculo vago substituem o conhecimento exato O enunciado que se segue tomado de um relatório sobre a responsabilidade por danos é um exemplo típico da imprecisão que com freqüência temos de acei tar inclusive em problemas de fundamental importância no âmbito da sociologia jurídica É multo provável que a adoção de uma regra jurídica no sentido de que a indenização por danos seja paga pela pessoa que os causou com sua conduta irresponsável contribuirá para manter a atitude gerai de que é mister proceder com cuidado em relação aos outros Ademais é concebível que a medida um seguro geral de respon sabilidade se traduzirá num perigoso relaxamento do cuidado ordi nário Mesmo no atual estado do direito no quai o seguro de respon sabilidade é normalmente voluntário e portanto nem todos o contra tam muitas pessoas opinam que o seguro resultou num relaxamento 382 Alf Ross da cautela Outros contudo sustentam que o seguro só influi sobre o cautela numa medida bastante modesta e não é fácil descobrir quem tem razão2 Com freqüência o político jurídico não exibe tanta honestidade e circunspecção atribuindo sim a suposições imprecisas uma certeza que estas não têm o direito de reclamar Construir uma sociologia jurídica científica é uma tarefa urgente e difícil Teria que ser formada primeiramente por uma parte básica geral que a partir de um sistema jurídico particular e de um meio social específico estudasse a mecânica geral de motivos por meio dos quais o direito influi na conduta dos seres humanos e em seguida por uma parte técnica ou aplicada que tendo em vista problemas práticos es tudasse correlações concretas Algumas tentativas nessa direção fo ram realizadas particularmente nos Estados Unidos Enquanto esta tarefa não for cumprida o político jurídico terá que seguir com um conhecimento nebuloso e parcial derivado da experiência ordinária e da familiaridade profissional com os fenômenos do direito em ação Quanto à política jurídica em sentido amplo é ocioso salientar que para obter o conhecimento indispensável o jurista tem que recorrer aos ramos da ciência particularmente a economia que são relevantes aos fins do cálculo dos efeitos de maior alcance de certas medidas legislativas Em geral será conveniente que consulte especialistas do campo particular posto que é perigoso informarse apenas em livros num campo profissional no qual não é especializado Finalmente a atividade de ponderar considerações e formular a decisão não se baseia em conhecimentos teóricos mas sim numa habilidade que precisa ser desenvolvida via treinamento e para a qual a familiaridade com a tradição jurídica e a substância do direito são é claro importantes 78 A TAREFA DA POLÍTICA JURÍDICA ENUNCIAÇÃO DAS PREMISSAS Tal como se disse no capítulo anterior o princípio de pureza da ciência requer que toda diretiva política expresse os objetivos e atitu des que são aceitos como as premissas hipotéticas que guiam as 2 Transcrito a partir de um relatório dinamarquês referente à responsabilidade por danos 1950 Direito e Justiça 383 investigações teóricas e as conclusões práticas Além disso se a diretiva política tiver que ser aceita por aqueles a quem aponta essas premis sas emocionais deverão ser eleitas com objetividade Devem ser es colhidas não em razão de que o próprio investigador partilha dessas atitudes mas porque são realmente entretidas ou com melhor co nhecimento seriam entretidas por aqueles que têm o poder para agir Somente desta maneira pode a objetividade da ciência política ser preservada Suas proposições assumirão em princípio a seguinte forma se se pressupõem tais e tais objetivos e atitudes tais e tais crenças sobre os fatos e sua correlação são operativos e conduzem a tais e tais instruções práticas A primeira tarefa da política jurídica será portanto estudar os objetivos e atitudes que de fato predominam nos grupos sociais influentes e determinantes para os órgãos legislativos Como já sali entamos ao aludir a esses objetivos e atitudes não nos referimos a generalidades tais como o bemestar da comunidade ou o bem co mum mas aos resultados concretos efetivos da ideologia e interes ses comuns predominantes ou ao interesse resultante dos interesses encontrados dos diversos grupos Cabe perguntar se é possível chegar por essa via a uma série de premissas de atitude que sejam em alguma medida inequívocas Não há afinal tantos conjuntos de atitudes quanto indivíduos atitudes que variam segundo a estrutura mental de cada pessoa seu credo e seus interesses particulares A resposta é que uma comunidade não seria uma comunidade não seria concebível como tal se não houvesse um amplo corpo de credo e vontade compartilhados de ideologia e inte resses comuns É este corpo que chamamos de unidade de uma cultu ra e de uma nação É claro que essa unidade não é absoluta Dentro de sua estrutura existem muitas divergências práticas As exigências dos diversos grupos sociais são conflitantes As ideologias opostas se cho cam entre si Mas numa grande medida esses conflitos obedecem a concepções divergentes de realidade parágrafo 72 e não exteriorizam nenhum desacordo com respeito a atitudes fundamentais Se o desa cordo for mais profundo as pessoas não se sentirão parte de uma nação minorias nacionais religiosas políticas A exigência programática estabelecida aqui tem que ser encarada com reservas Os fatos psicológicos sociais não são mecanicamente tan gíveis Não podem ser coletados descritos e catalogados da mesma 384 Alf Ross maneira que a flora e a fauna de um país Em alguma medida serão sempre fluídos Certa interpretação e estilização são inevitáveis e com isso certa subjetividade Nos problemas de política no sentido mais estrito devese estudar as diversas ideologias e plataformas políticas e se analisar os interesses dos diversos grupos sociais Em algumas situações surgirá um conjun to de objetivos que se pode dizer tem o apoio preponderante das forças que dominam o poder político e portanto são aceitáveis como premissas de atitude Em outras situações o quadro será menos claro podendo ser mais prudente operar com premissas alternativas Em questões de política jurídica em sentido estrito é preciso bus car as premissas em nível mais elevado na tradição cultural no corpo de idéias compartilhadas relativamente permanentes Uma das for mas mais importantes de se revelar essa tradição é a legislação pré via e a tradição política como um todo Entretanto essa tradição pode ter se tornado retrógrada relativamente às mudanças culturais pode haver um atraso cultural O problema da política jurídica é um proble ma de ajuste Aponta para uma mudança nas condições existentes nunca para uma reformulação radical do direito a partir de seus fun damentos em direção do espaço vazio sem fundo histórico A exigência programática deve também ser qualificada no sentido de que nenhuma investigação políticojurídica pode ser requerida co meçando por um resumo completo de todas as atitudes hipotetica mente aceitas As atitudes e considerações relevantes para um pro blema legislativo se revelaram com freqüência somente por meio da investigação dos efeitos causais de uma lei proposta O que se deno mina consideração é precisamente a combinação orgânica de uma crença operativa e uma atitude de valoração A consideração por exemplo da segurança comercial expressa ao mesmo tempo a crença operativa de que a medida judicial em pauta tem efeitos nessa dire ção e que a segurança comercial é digna de proteção O espírito com que se empreende a investigação é decisivo que o investigador seja consciente de que suas diretivas políticojurídicas devem ser necessariamente baseadas não só em fatos como tam bém em atitudes pressupostas que seja consciente de que essas premissas emocionais devem ser eleitas de forma objetiva não como a expressão de seu próprio credo e vontade Quanto mais estiver Direito e Justiça 385 imbuído desse espírito mais será natural para ele dar conta plena mente do fundamento de atitude de sua política Mas mesmo considerada com essas reservas não se pode em ge ral dizer que a literatura atual satisfaça a exigência metodológica En tretanto encontramos às vezes representantes do ponto de vista in gênuo segundo o qual é cientificamente possível descobrir diretamen te a partir da natureza do caso a solução mais vantajosa isto é aquela que produz as melhores relações entre os homens ou os efeitos mais benéficos para a humanidade Este ponto de vista não percebe que toda política tem necessariamente suas raízes em atitudes que ultra passam o conhecimento A idéia que talvez predomina é que o jurista dedicado à política jurídica sem se deter na reflexão sobre o método valora espontaneamente o direito com base nas atitudes sociais que inspiram o próprio jurista sentindo ao mesmo tempo de forma mais ou menos consciente que ele é que tem autoridade para expressar a cul tura jurídica da nação Às vezes essa idéia se combina com uma forte crença no valor da consciência e da tradição jurídicas O resultado é uma crença romântica na função oracular do jurista como portavoz da consciência jurídica da nação A intuição ocupa o lugar da análise Usu almente o jurista não compreende que a consciência jurídica popular não é absoluta mas sim o produto de um conjunto de atitudes interes ses e objetivos variáveis Ou ainda o jurista pode indagar sob a consci ência jurídica mas sem atingir tão profundamente as atitudes sociais concretas e efetivas Em lugar disso se prenderá ao conceito vazio de bemestar ou felicidade social como a única idéia norteadora suprema O jurista pode então sob a aparência de uma cautelosa objetividade preencher essa casca vazia com suas próprias aspirações pessoais de reforma social Tanto num caso como no outro o resultado é uma forma de política jurídica que é sermão e não ciência O jurista se apresenta como um sumo sacerdote ou reformador social e não como um técnico social As atitudes motivadoras não são introduzidas como hipótese mas como postulados destituídos de qualquer secondicionante 79 A TAREFA DA POLÍTICA JURÍDICA FORMULAÇÃO DE CONCLUSÕES Tendo examinado as premissas emocionais o próximo passo numa investigação políticojurídica é descrever os fatos sociais e definir as 386 Alf Ross correlações causais sociais que são operativas em relação às premis sas Esta parte da investigação é puramente teórica e não dá origem a problemas específicos de método políticojurídico Tal como se fez notar esse segundo passo se confunde amiúde com o primeiro O terceiro e último elo da investigação políticojurídica é a formu lação de conclusões sob forma de diretivas ao legislador ou ao juiz A palavra conclusão não deve nos conduzir a malentendidos Enfatizouse antes parágrafos 71 e 73 que a relação entre os argumen tos crenças operativas e a atitude tal como a relação entre ambos e a decisão resultante ou ação não é lógica mas exclusivamente fatual É uma relação de causalidade psíquica As diretivas práticas significam em princípio uma indicação sobre a maneira na qual se pode supor que o legislador ou o juiz atuará com base em suas atitudes sob a suposição de que aceite as crenças operativas colocadas diante dele mister lem brar aqui que isso pode incluir também o efeito de que os argumentos formulados podem alterar algumas das atitudes prévias do legislador que tenham estado condicionadas por crenças insustentáveis Dado que a relação entre os argumentos e a conclusão não tem caráter lógico o terceiro nexo ou nexo final na política jurídica não tem caráter científico ou teórico sendo a expressão de uma reação pessoal Tem o caráter de uma decisão Esse salto alógico distingue se ademais pelo fato de que a decisão tem geralmente como causa o peso de considerações diferentes mutuamente incomensuráveis Aqui surge a questão não exigirá o princípio da pureza da ciência que o homem político jurídico se abstenha de dar esse salto e se limite a exibir sua argumentação diante do legislador e do juiz dei xando a estes a tarefa de tirar suas conclusão práticas Já me ocupei desta questão em termos gerais parágrafo 73 e afirmei que o prin cípio da pureza da ciência não é violado desde que se evidencie que essa parte da política jurídica não é de natureza científica Na prática isto significa que as diretivas devem ser apresentadas não como con clusões científicas revestidas de autoridade como leis cientificamen te descobertas mas como um conselho uma recomendação Deve se entender que sempre existe a possibilidade de que outra pessoa ainda quando aceite os argumentos formulados e não invoque con traargumentos possa atuar de maneira distinta da recomendada sem que isso justifique que se diga que tal pessoa agiu equivocamente Direito e Justiça 387 Simplesmente deu o salto irreduzível de forma distinta pesou as con siderações relevantes de maneira diferente Diante disso toda argu mentação cessa A única coisa que se pode fazer é reformular os próprios argumentos e verificar se o oponente os entendeu bem Se tal parece ser o caso nada resta a fazer Além disso argumentei a favor da idéia de que também é desejável que o teórico complete a investigação por si mesmo extraindo as conclusões práticas e formu landoas como recomendações Veremos agora que caminhos tem trilhado esse problema geral na discussão do método científico A partir do princípio da pureza da ciência particularmente da ciên cia do direito Kelsen concluiu que a interpretação doutrinária deve se abster de valorar escolher e decidir isto é deve absterse de todo tipo de consideração pragmática sobre o propósito das normas jurídicas ou seus fundamentos sociológicos3 É certo diz Kelsen que a interpreta ção autêntica entendendo por isso a interpretação do juiz ou de outra autoridade capacitada a ditar decisões obrigatórias é motivada por considerações pragmáticas A tarefa do juristaescritor contudo con siste unicamente em descobrir por meio da análise lingüística e lógica as diversas interpretações possíveis e evidenciar suas conseqüências práticas Compete então ao juiz e não ao autor de direito que se pretende científico escolher entre essas diferentes possibilidades Desta maneira e somente assim o estudo do direito pode preservar sua pureza A interpretação doutrinária prepara o caminho para a decisão da política prática ao expor os resultados de sua análise mas não adota por si mesma uma posição política De outro modo a interpreta ção doutrinária degenera num dogmatismo no qual os postulados po líticos são mascarados por uma falsa objetividade científica A isso devemos responder em primeiro lugar como foi explicado ple namente ao estudarmos a doutrina da interpretação capítulo IV que a idéia de uma interpretação puramente lógica isenta de todo pragmatismo é uma ilusão4 em segundo lugar que tal como vimos nas páginas pre cedentes a idéia da pureza das ciências não é prejudicada desde que se indique com clareza o limite entre a ciência e a política 3 Ver por exemplo Hans Kelsen The Law of the United Nations WSbO prefácio 4 Num exame de Kelsen op cit Uus Gentíum II 1950250 e segs mencionei exemplos a fim de mostrar como Kelsen em sua interpretação do Charter das Nações Unidas não consegue deixar de cair nas pressuposições pragmáticas ocultas 388 Alf Ross A doutrina de Kelsen sobre a interpretação é um bom exemplo da afirmação de Myrdal não é possível realizar a idéia de pureza da ciência por meio da eliminação metodológica de todas as decisões valorativas e de todas as atitudes emocionais A solução está em ser consciente acerca delas e apresentálas como pressupostos explíci tos e podemos acrescentar que as conclusões práticas sejam ex pressas como recomendações e não como postulados Finalmente desejaria confessar que não foi confortavelmente que assumi essa posição contrária a Kelsen A idéia da pureza da ciência é a pedra fundamental do ethos profissional do homem de ciência Creio nela com a maior firmeza e me sinto satisfeito toda vez que alguém a defende atacando a corrupção da ciência resultante da não adesão a essa idéia Contudo não posso fechar os olhos diante do erro das exigências metodológicas que Kelsen e outros dela extraem O erro repousa podese dizer numa confusão entre o que é verdade para a ciência como idéia e o que é verdade para a ciência como profissão Não se pratica nenhuma violência contra a idéia se a profissão for em busca da ciência e da política de forma conjunta desde que o limite ideal entre elas seja mantido com clareza Capítulo XVI Possibilidade da Política Jurídica Entre o Destino e a Utopia 80 OS PROFETAS DO DESTINO NEGAM A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA JURÍDICA Antes de desenvolver razoavelmente uma política jurídica que sir va de guia ao legislador e antes de poder formular exigências e dar conselhos aos outros é mister satisfazer certos requisitos São Fran cisco pregava aos pássaros mas é provável que a maioria das pesso as julguem isso destituído de sentido As comunidades primitivas crê em que suas palavras têm poder sobre o vento as condições atmos féricas sobre as colheitas a vida e a morte magia A maioria dos seres humanos hoje ainda crê que é possível influir no curso dos eventos terrenos por meio de invocações verbais dirigidas à divinda de oração Além de empregar as ferramentas supridas pelas supre mas conquistas técnicas da ciência os exércitos modernos ainda pra ticam extensivamente a oração Ross é um indivíduo e um cidadão que como intelectual expressa o sentimento geral que as pessoas do seu tempo final da primeira metade do século XX experimentavam diante das ciências naturais e exatas na alvorada da tecnologia o que resultou num movimento exacerbado a que convencionamos chamar posteriormente de tientificismo Embo ra paradoxal a despeito do colossal avanço efetivado por essas ciências na segunda metade do século XX brindan do a humanidade principalmente as camadas economicamente favorecidas das sociedades com proezas tecnológicas Ilaser fibra óptica o chip a monumental revolução da informática robótica telefonia celular clonagem etc etc a ciência não é mais objeto de culto e deslumbramento por parte da maioria das pessoas de algum senso critico 390 Alf Ross De um ponto de vista científico esses exemplos testemunham um gigantesco exagero do poder e alcance das palavras e da argumenta ção Mas o desacordo se refere mais à essência da natureza do que às condições nas quais as invocações verbais podem ser eficazes As práticas mágicas e religiosas apóiamse no pressuposto de que a na tureza é animada e governada por um ser dotado de razão e vontade A ciência prescindiu desse pressuposto Parece haver unanimidade geral de que as invocações emocionais e a argumentação raciocinada só têm sentido diante de seres dotados de razão e vontade não diante de coisas Mas é preciso explicar o que se quer dizer com vontade relativamente a isso A filosofia tradicional metafísicoreligiosa que também se encon tra por trás da teoria jurídica idealista vincula a questão à liberdade metafísica da vontade sua independência com respeito à iei da cau salidade indeterminismo A esta independência se deve o absoluto abismo que há entre a natureza ou necessidade e a moral ou liberda de Não tem sentido fazer exigências a uma pessoa cuja vontade não é livre Se as ações dos seres humanos são determinadas pela neces sidade é inútil nos dirigir a eles e tentar fazêlos agir de maneira diferente da maneira que de fato agem e têm que agir Esse ponto de vista mostra uma incompreensão do significado da causalidade ou das correlações invariáveis Confunde determinismo com fatalismo ou predestinação Insere no determinismo uma neces sidade fatal que é estranha ao pensamento científico O determinismo nada tem a ver com o inevitável como se pode apreciar melhor se refletirmos que o propósito de todas as ciências naturais aplicadas é precisamente mudar o curso dos eventos naturais por meio de uma adequada intervenção em conformidade com objetivos desejados A necessidade da natureza depende sempre de circunstâncias condicionantes Alterandose estas alterase o curso da natureza Esse curso só é inevitável se as circunstâncias condicionantes estive rem fora do alcance da influência humana Assim por exemplo um Por outro lado especialmente em função do maloQro das ciências humanas a ciência social no dizer de Ross na obten ção de métodos e técnicas para a solução ou minimização de problemas sociais crônicos pobreza extrema analfa betismo doenças medievais prostituição infantojuveníl drogas etc a marginalização já convertida em exclusão social no terceiro mundo e da inação ou ação medíocre e insensível das classes políticas encarregadas da execu ção e implantação de tais métodos e técnicas hoje ciência e religião e mesmo ciência e magia não são mais considerados pólos antagônicos e mutuamente excludentes de uma dicotomia inescapável N TJ Direito e Justiça 391 eclipse do sol pode ser previsto sem reservas Mas quanto ao mais o curso da natureza só pode ser objeto de previsão sob a condição de que não haja interferências com as circunstâncias condicionantes Por isso o determinismo na natureza não impede a intervenção guiada por um propósito sendo ao contrário condição necessária para ela1 O mesmo vale para a técnica social isto é a possibilidade de inter venção orientada por um propósito para influir no curso da ação social O determinismo como tal não impede isso sendo ao contrário condição disso O pressuposto essencial da política considerada como uma técnica para influir na comunidade com a ajuda de métodos racionais não é portanto a existência de uma vontade livre mas a hipótese de que a deliberação racional e a argumentação estão entre os fatores determinantes das ações dos seres humanos Com especial referência à política jurídica e à sua possibilidade a questão decisiva portanto é se o direito é criado e em que medida pela vontade do legislador entendida não como uma vontade metafísica livre mas como a expressão de uma atividade consciente determinada por deliberação racional e argumentação ou se o direito é criado e em que medida por um processo independente dessa vontade Acerca deste assunto foram sustentados os mais variados pontos de vista ao longo das diversas épocas Uma concepção que desempenhou e prossegue desempenhando um papel importante o historicismo se baseia em visões metafísicas Sua idéia fundamental é que o curso da história é determinado por uma necessidade fatal ou destino A idéia da fatalidade é a velha concepção metafísicoreligiosa de que os eventos caminham para uma meta prédeterminada com soberano desprezo pelos objetivos dos próprios sujeitosagentes Seu efeito contundente no drama trágico consiste no contraste entre a boa vontade e a necessidade inexorável nas mãos da qual o ser humano é um joguete A profecia dizia que Édipo mataria seu pai e desposaria sua mãe Isto foi o que ocorreu apesar de tudo o que se fez para evitálo O destino a vontade dos deuses não admitem interferências A necessidade fatal nada tem a ver com o determinismo Ela é inevitável A necessidade determinista pelo contrário é fundamento 1 Este último enunciado não é de todo correto Ver K R Popper The Open Society andits Enemies 1945 II 81 392 Alf Ross da intervenção orientadora da ciência aplicada Falando metaforica mente podemos dizer que enquanto as causas impulsionam os efei tos o destino faz com que a meta futura predeterminada atraia os eventos Mas como pode estar determinada a meta futura da evolu ção e como pode ela por sua vez determinar o presente a menos que se encontre estabelecida por uma vontade divina que também guia o curso dos eventos rumo a essa meta A idéia do destino é assim a expressão de uma metafísica religiosa que está em conflito com a con formidade da natureza com as leis causais da ciência natural Tal é o caráter essencialmente diferente das previsões feitas com base num fundamento científico e daquelas que se fundam na crença de uma necessidade fatal ou destino As previsões da ciência normal mente se fazem com a reserva de que ocorram certas circunstâncias condicionantes Têm a forma de uma hipótese Se existe esta ou aquela situação como ponto de partida então esta ou aquela situa ção será a conseqüência Apenas naqueles casos em que os fatores condicionantes estão fora do alcance do ser humano a previsão pode assumir o caráter incondicional de uma profecia Podemos prever que dentro de dois mil anos haverá um eclipse do sol mas não como evoluirá amanhã uma enfermidade Isto porque esta última depende também de nossa intervenção nos fatores condicionantes As previsões do historitismo pelo contrário têm sempre caráter profético isto é previsões do curso da história sem considerar os esforços humanos e a despeito destes A necessidade divina torna ine ficaz toda deliberação plano e propósito humanos ou seja toda políti ca Nossa crença de que podemos fazer algo é um sonho vão Enquan to sonhamos esse sonho somos arrastados rumo a uma meta inevitá vel por forças sobre as quais não exercemos controle Não passamos de marionetes Um poder superior move os fios O homem sábio que o compreendeu julga melhor submeterse ao inevitável Desta maneira pode minorar as dores que provoca o parto do futuro pelo presente Pode auxiliar a evolução evitando inúteis atritos entre a vontade divina e a própria De todas as maneiras tanto o tolo como o sábio deterão seu esforço atingirão o repouso no ponto estabelecido A influência prática que essa crença no destino tem sobre o curso da conduta humana é notoriamente equívoca Teoricamente conduz à negação de toda política à passividade completa ou o que se de nomina quietismo Na prática é diferente A meta postulada é claro Direito e Justiça 393 nasceu psicologicamente de certas atitudes sob forma de exigências objetivos aspirações A crença de que esse objetivo será inevitavel mente alcançado cria em seus adeptos uma certeza da vitória e um fanatismo que não conhece concessões estimulandoos a uma luta implacável A argumentação e o compromisso são deixados de lado como inúteis A inevitabilidade da meta justifica todos os meios Este é o segredo da absoluta intolerância que mostra o comunismo ante qualquer outro sistema2 A filosofia romântica alemã dos primeiros anos do século XIX se afas tou do racionalismo da era precedente e se entregou a interpretações vagamente proféticas da natureza e da história como uma revelação de forças espirituais que evoluem e se movem para uma meta predetermi nada Só havia desprezo dirigido às ciências naturais objetivas e mecâni cas construídas sobre fundamentos empíricos e se desejava em contrapartida compreender a natureza de dentro como um jogo de forças ou princípios que se desenvolvem em etapas sucessivas para for mas cada vez mais elevadas de revelação da alma do universo3 2 Porque o comunismo se apóia na filosofia econômica fatalista de Marx Cf parágrafo 82 Após distinguir com invulgar acuidade e rigor a necessidade fatala avayictj dos gregos em Platão por exemplo e o maktub dos árabes da necessidade determinista melhor determinismo histórico Ross nem sempre se preocupa em exprimir certos conceitos com precisão o autor perpetra um erro incompreensível ao considerar fatafista o pensamento de Marx que ele chama de fíosofia econômica Confunde manifestações particulares e concretas no tempo e no espaço o comunismo de Lenine de Trotsky ou especialmente de Stalin na Rússia o comunismo de Mao T setung na China etc baseadas em interpretações do materialismo histórico com o próprio ou seja a filosofia da praxis de Karl Marx Ora o determinismo para Marx está compreendido numa dimensão rigorosamente humana sendo o conjunto de efeitos produzido necessariamente na história a partir das ações humanas empreendidas na arena econômica e no mundo político e material das relações conflitantes das classes sociais onde no seio do sistema capitalista analisado por Marx ocorrem fenômenos concretos e carnais conceituados por ele como deten ção dos meios de produção alienação mais valia etc É forçoso lembrar que antes de fixar os fundamentos de sua teoria materialista Marx alijou radical e sumariamente todo o cortejo de conceitos da metafísica tradicional acom panhado do entulho teológico produzido a partir dela isto á de Platio a Hegel passando pela patristica e a escolástica o qual serviu de respaldo ideológico da exploração do homem pelo homem desde os tempos da escravatura oficial da antigüidade atá o capitalismo industrial do século XIX com sua escravidão velada do proletariado ver por exemplo A Ideologia Alemã 0 futuro do homem é determinado historicamente pelo próprio homem Isto não tem nada a ver de modo algum e muito pelo contrário com o fatalismo religioso ou metafísico IN TJ 3 Schelling por exemplo ao explicar os diversos níveis de natureza inorgânica e orgânica supunha que a natureza ordenadora ou invisível compreende três forças primárias gravidade luz e a faixa ou principio da vida A gravidade a mais baixa das forças não significa gravidade física mas o principio de corporeidade o principio que no mundo visível cria a matéria em seus diferentes compostos Quando a luz não a luz física mas o princípio da alma se une à matéria atingese uma novo nível no mundo inorgânico o processo dinâmico a matéria animada Numa potência crescente essa união se desenvolve como magnetismo eletricidade e processos químicos 0 mundo orgânico emer ge acima do anterior através do acréscimo da terceira força o principio ou faixa da vida Neste mundo o principio de gravidade se revela como reprodução isto é alimento crescimento e propagação da espécie o nível das plantas e das mulheres Ao princípio da luz corresponde a irritabilidade o nível dos animais e dos homens Através do principio 394 Alf Ross A história também foi considerada como uma revelação do abso luto Schelling em sua filosofia da história retoma a idéia do destino O indivíduo crê que tem liberdade de ação e todavia a necessidade governa a história Entretanto esta necessidade não é de tipo mecâ nico segundo leis causais mas providência destino A história é o progresso de Deus através do mundo Nela a raça humana evolui rumo ao seu destino Schelling compara também a história com um drama no qual cada ator individual desempenha seu papel com intei ra liberdade mas no qual a despeito disso emerge um resultado razoável da confusão porque há um espírito que tudo inspira4 Hegel conduziu estas idéias ainda mais além A essência íntima da existên cia é a razão um espírito absoluto e a história é uma espécie de operação lógica gigantesca na qual Deus ou a razão pensa o seu caminho através de um processo dialético5 Esse absurdo há muito foi esquecido no que se refere à ciência natural Quem interpretaria hoje o átomo como a revelação de um princípio espiritual Todavia esse absurdo deixou marcas permanen tes na ciência social e particularmente na filosofia do direito Do ro mantismo alemão partem duas linhas de pensamento as quais cada uma a sua maneira se apóiam na idéia da necessidade fatal da histó ria e na impotência do legislador Uma é a chamada escola histórica na ciência do direito fundada por Savigny e Puchta que manteve a metafísica espiritual tradicional A outra é a filosofia materialista da história de Marx que pôs Hegel de cabeça para baixo e deu ao abso luto uma interpretação materialista 81 A ESCOLA HISTÓRICA A escola histórica foi uma reação contra o jusnaturalismo racionalista e sua crença no poder do legislador para reformar a comunidade e o direito de acordo com a razão6 Como parte do despertar nacional da vida finalmente surge o fenômeno natural supremo a sensibilidade ou o estágio do ser humano Assim imagina Schelling o conjunto da natureza sobre vários níveis de desenvolvimento construído por forças internas e invisíveis que em sua unidade constituem a alma do universo Ver Schelling Ideen w einer Philosophie der Natur 17971 Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie Allgemeine Deduktion des dynamischen Prozesses oder der Kategorien der Physik Zeitschrift fürspekulative Physik 1800 Von der Weltseele 1800 4 Para um estudo mais detalhado e documentado da filosofia da história de Schelling ver Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 cap V 10 e Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XII 3 5 Ver Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 933 cap XII 4 6 Cf Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap V 2 Direito e Justiça 395 em 1804 surgiu o desejo de um Código alemão que seria uma réplica do Código francês e um símbolo da unidade da nação Tal tendência encontrou expressão num panfleto intitulado Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgeriichen Rechts für Deutschland escrito com grande fervor pelo jurista de Heidelberg A F J Thibaut Em resposta a isso nesse mesmo ano Friedrich Carl von Savigny publicou seu famoso trabalho Vom BerufunsererZeitfürGesetzgebung und Rechtswissenschaft no qual frisou o crescimento históricoor gânico do direito e sua dependência da consciência éticojurídica es pontânea que prevalece na comunidade Como a linguagem o direito é um produto de forças anônimas e obscuras e não é criado por delibe ração e por decisão arbitrária A consciência éticojurídica comum po pular é a verdadeira fonte de todo direito Num primeiro nível de de senvolvimento ele se expressa diretamente no costume Mais tarde juntamente com um desenvolvimento cultural superior surge uma classe especial os juristas profissionais cujo dever é interpretar e elaborar tecnicamente a consciência éticojurídica do povo A ciência do direito ocupa então o lugar do costume como a forma mais importante de revelação do costume O legislador não pode criar direito por meio de poder e ordens arbitrárias Tal como um jardineiro que cuida do cresci mento de uma planta assim o legislador com o auxílio dos estudos científicos pode favorecer ao desenvolvimento natural do direito mas não interferir nele Se o legislador interpreta mal sua missão e tenta interferir arbitrariamente seus esforços serão vãos e serão esmagados pelas forças do desenvolvimento Uma codificação requer se pretender constituir uma versão correta do direito vivo um conhecimento jurídico altamente evoluído que considerava Savigny seus contemporâneos não possuíam Ademais se pretende ser definitiva toda codificação se choca com o crescimento orgânico do direito e só pode ser justificada em períodos de decadência cultural Essa idéia básica foi depois elaborada mais profundamente e sis tematizada por Puchta Das Gewohnheitsrecht 18281837 Foi ele quem introduziu o termo Voiksgeistcomo designação de uma subs tância espiritual que se desenvolve num povo e que é o fundamento primário de todo direito Sobre a necessidade de um Direito Civil geral para a Alemanha NT Da Vocação do nosso Tempo para a Legislação e a Ciência do Direito INTI 396 Alf Ross Um estudo superficial pode nos conduzir à opinião de que a idéia fundamental da escola histórica é uma teoria empírica sociológico jurídica da subordinação do direito à comunidade isto é uma teoria que talvez sob forma um tanto exagerada ressalta as restrições que pesam sobre a capacidade do legislador de criar direito As referências de Savigny ao crescimento orgânico do direito poderiam ser entendidas como alusivas a correlações causais observáveis e o conceito de Puchta sobre o espírito do povo como uma expressão abreviada para um complexo causai isto é a expressão de uma soma total de características sóciopsicológicas observáveis influ enciadas por circunstâncias condicionantes clima raça tradição história e que influem por sua vez na criação do direito Entretanto como tentei demonstrar alhures7 com provas con cretas tal interpretação não é correta A escola histórica deve ser entendida em função do clima espiritual de seu tempo é filha do romantismo alemão O orgânico nada tem a ver com a causalidade da natureza Para o romantismo orgânico era sempre uma palavra com carga emocional que se usava para designar as forças obscuras que animam todas as coisas vivas e tendem para uma meta algo absoluto e irredutível a primária e obscura força da vida que é lei em si mesma e está acima da mecânica da causalidade Do mesmo modo o espírito do povo nada tem a ver com 1esprit des tois de Montesquieu e não é a designação de um complexo causai É um princípio espiritual uma essência espiritual absoluta e irredutível que se revela na vida de um povo inclusive em sua vida jurídica e que se desenvolve de conformidade com leis próprias rumo a uma meta imanente como expressão do significado e missão divinos desse povo Da mesma maneira finalmente a necessidade que tra va a liberdade do legislador para criar direito não é a força das leis da natureza às quais deve se submeter todo técnico mas sim uma necessidade fatal ou destino que expressa a dinâmica soberana do espírito do povo e do direito A evolução do direito não é determi nada mas predestinada Só assim podemos compreender Savigny quando ele alude à missão histórica do legislador e à impotência deste se pretender deixar de cumprila 7 Ross op cit cap V Volksgeist N TJ Direito e Justiça 397 É importante considerar que a escola histórica não foi simples mente uma doutrina sobre a criação fatual do direito Foi ao mes mo tempo uma forma oculta de direito natural parágrafo 56 Historicismo não é apenas história Sua idéia fundamental é que a história é também o critério do bem O objetivo ou tendência imanente da realidade é também o supremo valor O princípio ab soluto que se manifesta na história é também o bem absoluto Estas idéias que encontrarão a maturidade com Hegel também se evi denciam na escola histórica Diferem de Hegel em que o absoluto não é concebido como razão universal mas um espírito nacional A consciência éticojurídica popular não se limita a ser a fonte da qual de fato surge o direito mas é também a fonte da retidão ou valida de do direito A realidade é ao mesmo tempo validade absoluta pois sua essência íntima é espírito8 A escola histórica portanto representa não só uma filosofia jurídica fatalista como também uma filosofia jusnaturalista Por trás de seu cunho aparentemente apolítico se oculta uma atitude política que dá auspícios aos juristas para que sejam os condutores de um desenvolvi mento cuidadosamente reformador do direito com base histórica A consciência éticojurídica popular é a fonte suprema do direito mas os juristas especialmente os professores são seus intérpretes genuínos e portavozes os guardiões da cultura jurídica da nação O espírito do povo é o absoluto e o professor de direito seu profeta No decorrer do tempo essa tendência foi se tornando cada vez mais conservadora Através de sua crença no valor especial da tradição jurídica a escola histórica se direcionou para o pedantismo históricofilológico e para o formalismo da jurisprudência de conceitos 82 O HISTORICISMO ECONÔMICO DE MARX Marx foi aluno de Hegel Entretanto como é dito com freqüência colocou o sistema de Hegel de cabeça para baixo fez das forças econômicas o absoluto na evolução e dos fenômenos espirituais um produto derivado O socialismo de Marx é um programa de ação Possui profundas raízes emocionais em impulsos humanistas na sua simpatia pelos 8 Para documentação ver Ross op cit cap V 12 398 Alf Ross oprimidos e na sua indignação diante das lamentáveis condições da classe operária na Inglaterra durante o primeiro período do industrialismo9 O programa não se reduz a um conjunto técnico de instruções sobre o modo de alcançar o poder e adquirir vantagens para que os papéis das classes se invertam O socialismo é também uma luta pela justiça O gozo capitalista da mais valia é considerado uma exploração do trabalhador Depois do triunfo da revolução social não haverá uma nova exploração em substituição à anterior mas sobrevirá a sociedade sem classes com liberdade e igualdade de oportunidades para todos Ao mesmo tempo Marx atacou desdenhosamente toda moralização Julgava que sua missão era liberar o socialismo de seu fundo senti mental e filantrópico e distanciálo assim da utopia visando a aproximálo da ciência Marx nutria o maior desprezo pelas frases e ilusões recebidas da grande revolução e pelos métodos bem intencio nados que os socialistas idealistas haviam concebido para a reforma da sociedade10 DieArbeiterklassehatkeineIdeaiezuerfüllen11 O socialismo científico tem que se basear na análise das correlações cau sais sociais e em previsões fundadas nas leis invariáveis do desenvol vimento da sociedade Esses são os elementos típicos do historicismo12 Como Hegel a escola histórica e Comte Marx se volta contra a razão subjetiva e suas idéias a priori O razoável a norma política devem ser buscados na própria realidade objetiva em sua tendência imanente de desen volvimento A partir daqui ele avança para uma filosofia da história que interpreta a história como um curso de eventos encaminhados para uma meta predeterminada O socialismo de Marx é científico no mesmo sentido em que Comte chama sua política de positiva Nem aquele nem esta têm nada a ver com a ciência Marx não pensa como um cientista social que usa o conhecimento científico como fundamento de uma intervenção orien tada por um propósito Marx pensa como um profeta social que prevê o inevitável que é também o bem Sua necessidade não é científica e 9 Ver em 0 Capital a seção relativa ao efeito do progresso na posição da classe trabalhadora 10 Karl Marx e Friedrich Engels O Manifesto Comunista 1848 O Manifesto Comunista consta nesta mesma série Clássicos Edipro IN T 11 Karl Marx Der Biirgerkrieg in Frankreich 3 ed 50 Em alemão no original A classe trabalhadora não tem nenhum ideal para satisfazer IN TI Direito e Justiça 399 determinista mas inevitável e fatal Confunde determinismo com predestinação Crê erroneamente que a possibilidade da previsão ci entífica se funda no pressuposto de que o futuro existe como gérmen no passado como se houvesse neste uma imagem remota daquele E por essa razão a atitude de Marx em relação à política em rela ção à intervenção humana orientada por um propósito é também típica do historicismo a política é impotente não passa de uma ilusão O curso da história está predeterminado Tudo quanto o ser humano pode fazer é eliminar do caminho da evolução seus piores obstáculos Mesmo quando uma sociedade tenha descoberto escreve Marx em O Capitara lei natural que determina seu movimento não pode sal tar as fases naturais de sua evolução nem afastálas do mundo por um traço da caneta Porém pode fazer isto abreviar e diminuir as dores do parto13 Comparese com a analogia de Savigny entre o legislador e o jardineiro que pode ajudar o crescimento orgânico da planta14 e com a doutrina de Auguste Comte de que o político é capaz de eliminar pequenos desvios na curva da evolução15 12 Cf a brilhante análise de Marx que faz K R Popper em The Open Society andits Enemies 11945 especialmente nos caps XIII XV e XXII As forças econômicas que determinam de forma inexorável a história são forças artificiais de modo algum forças naturais ou transcendentes ou seja geradas pelo homem 0 caráter e o conteúdo dessas forças são constituídos por ações humanas livres e independentes de qualquer poder ou fator extrahumanos São ações concretas no tempo e no espaço relativas e contingentes A tentativa reducionista do autor de classificálas como nova roupagem do absoluto nos parece infundada Quanto à importante distinção entre determinismo e predestinação entendemos que o único destino concebível no âmbito do pensamente de Marx é o destino para a sociedade humana determinado pelas forças econômicas promovidas e construídas pelo próprio homem A necessidade ou inexorabilidade está no fato de ser impossível para o homem voltar atrás nas suas ações retomando no tempo Essencialmente tratase do próprio princípio da causalidade das ciências exatas aplicado aos fenômenos sócioeconômicos toda ação gera necessariamente um efeito que é irreversível pois é impossível desfazer a ação só restando a possibilidade de proceder a novas ações se disparo um tiro à queimaroupa contra o coração nada impedirá o efeito fatal ou necessário dessa ação que será a minha morte É esta inflexibilidade que Marx v i nas forças econômicas Finalmen te quanto à atividade política e a produção do direito Marx não encara a primeira como ilusão mas como amarrada e subordinada à economia o que aliás ó patente na atualidade nas democracias neo liberais ou de centro direita quanto à segunda concordamos com o autor de que não há a rigor criação de direito para o marxismo sendo o sistema jurídico mera expressão constitucionalizada dos interesses e anseios da classe dominante N TJ 13 Karl Marx O Capital 1864 Transcrito de Popper op cit II 82 Embora seja impossível negar o aspecto profético e futurológico presente no marxismo o único absoluto aspas obrigatórias que nele existe é o império inexorável das forças econômicas como causas determinantes dos fatos sociais 0 marxismo é uma forma muito peculiar de humanismo mas não deixa de ser humanismo vigoroso À citação que Ross faz de Marx acresço a seguinte encontrada em A Sagrada Família a critica da critica crítica Se o homem é um produto das circunstâncias humanizemos as circunstâncias 14 Friedrich Carl von Savigny System des heutigen rõmischen fíechts 1840 40 15 Auguste Comte Opuscules dephilosophie sociaíe 18191822 1883 127 Cf Cours dephilosophiepositive IV2 edk 1864 247285 292 400 Alf Ross O historicismo interpreta tipicamente a história como se procedes se através de uma série de fases rumo a uma meta que por estranho que pareça pensouse que seria alcançada no século XIX ou muito pouco depois A interpretação da história de Marx é a mesma Desde a era dourada do comunismo primitivo a evolução passou através de uma série de guerras de classes nas quais uma classe exploradora ia deslocando outra Atingiuse agora o ponto no qual a classe explora da o proletariado já não pode se libertar da classe exploradora a burguesia sem libertar ao mesmo tempo e de forma definitiva a sociedade inteira da exploração opressão e luta de classes16 Agora ou num futuro próximo quando a revolução social final tiver sido cum prida surgirá a sociedade sem classes o Estado desaparecerá e a verdadeira natureza humana será liberada e partejada17 A história prévia da humanidade chega ao seu fim a queda do ser humano superada o milênio se torna realidade Este não é o lugar para aprofundar nas teorias que Marx utiliza como fundamento de sua filosofia da história e de sua profecia A título de esboço esquemático podemos distinguir três níveis na ela boração de seu pensamento 1 A concepção econômica da história Esta doutrina sustenta que a chave da história inclusive da histó ria das idéias deve ser buscada na relação do ser humano com o mundo material nas condições nas quais ocorre a produção econômi ca isto é na vida econômica e não na vida espiritual do ser humano As condições da produção e seu desenvolvimento constituem o abso luto na história tudo o mais daqui deriva 2 A história como luta de casses Esta é a doutrina da mecânica pela qual as condições de produção determinam a história Como as ações humanas que constituem a história são diretamente motivadas por interesses e ideologia é mis ter explicar como esses motivos provêm das condições de produção 16 Ver o prefácio de Friedrich Engels à edição alemã do Manifesto Comunista 1883 Ver também este prefácio de Friedrich Engels à edição alemã do Manifesto Comunista 18831 na edição histórica comemorativa dos 150 anos do Manifesto Edipro Bauru SP 1998 NE 17 Numa passagem bastante citada de Engels é declarado A peculiar união dos seres humanos para a vida em comunidade que antes se apresentava como algo imposto a eles se toma agora sua própria e livre realização Dá assim a humanidade o salto do reino da necessidade ao reino da liberdade Direito e Justiça 401 O lugar que o indivíduo ocupa no processo de produção determina o seu pertencer a uma classe Cada classe tem interesses econômicos que conflituam com os interesses de outras classes Os interesses econômicos por sua vez determinam a ideologia aceita pela classe A moral e o direito as verdades eternas da filosofia e da religião não passam de uma superestrutura ideológica variável de acordo com a estrutura econômica As diferenças de classe econômica e ideológi cas levam à guerra entre as classes As armas mais importantes nes ta luta são o Estado e a revolução O Estado é o instrumento pelo meio do qual a classe governante mantém seu domínio sobre as clas ses oprimidas A revolução é a rebelião das classes oprimidas para conquistar por meio da força o poder do governo 3 A revolução do proletariado e o estabelecimento da sociedade sem classes do socialismo Esta é a doutrina do progresso da luta de classes A luta de classes progride segundo um esquema dialético rumo a uma meta definitiva O capitalismo conduz por um lado a uma contínua acumulação de riquezas e por outro a um empobrecimento sempre crescente do proletariado Desse modo e de forma gradual as classes se reduzi rão a duas uma pequena burguesia dominante e um enorme prole tariado empobrecido Quando esta evolução atingir um limite a cres cente tensão entre as duas classes encontrará um escape na insurrei ção do proletariado uma revolução social que terminará com a vitória dos muitos Após um curto período de transição a ditadura do prole tariado como correlato dialético da ditadura da burguesia a socieda de sem classes surgirá como a síntese final das diferenças superadas Uma vez cessados o conflito e a guerra das classes o Estado não terá mais razão de ser e desaparecerá A humanidade viverá em liberdade e feliz A história terá alcançado a sua meta A atitude de Marx frente ao problema do condicionamento social do direito e a possibilidade de uma política jurídica é fundamental mente igual à da escola histórica o direito não é criado arbitraria mente o direito é um produto necessário da evolução O legislador é na realidade impotente é meramente o portavoz da necessidade Esta concordância entre o marxismo e a escola histórica é o simples resultado do fato de que as duas ideologias são subramificações do mesmo ramo uma filosofia do destino historicista e romântica Toda via no que toca à interpretação das forças que dirigem a evolução 402 Alf Ross necessária do direito as duas doutrinas apresentam enormes dife renças Para a escola histórica essa forças são espirituais o espírito do povo ativo na consciência jurídica da nação é a fonte de todo direito Para o marxismo ao contrário as idéia do direito e institui ções jurídicas são meras superestruturas ideológicas de interesses econômicos Não existe uma consciência jurídica nacional O que se intitula assim é a ideologia da classe dominante que reflete seus interesses econômicos As idéias eternas do direito e da justiça são ilusões Todo o direito é um instrumento de poder nas mãos da classe governante para a exploração econômica das classes oprimidas 83 LIMITAÇÕES DA POLÍTICA JURÍDICA E ESTUDO DAS TENDÊNCIAS Temos que rejeitar a negativa categórica que os filósofos do desti no fazem com relação à possibilidade de uma política jurídica Tal negativa é baseada em concepções metafísicas sobre predestinação que nada têm a ver com o determinismo científico A experiência não abona a tese de que as deliberações a razão e a vontade humanas não estão entre os fatores que determinam o curso da evolução A filosofia do destino não é simplesmente falsa Fomenta uma atitude conflitante com os ideais humanistas A crença de que os poderes superiores sejam espirituais ou econômicos guiam o curso da evolução conduz à passividade ou ao fanatismo que justifica todo crime para que se cumpra o inevitável Aniquila a responsabilidade moral cujo fundamento é a consciência de que somos os senhores de nosso destino Conduz quando foram eliminadas a razão e a vonta de à veneração do poder interpretado seja em forma conservadora como expressão da sociedade existente e suas instituições tradicio nais Hegel Savigny seja em forma revolucionária como a expres são da luta de classes e a rebelião que haverá de conduzir o proleta riado à vitória Marx As teorias que estudamos são produtos típicos da atitude metafísica e antiracionalista do romantismo alemão Ademais foram condiciona das negativamente pelo Estado liberal contemporâneo e suas oportu nidades reais de controle e intervenção efetivos são bastante escassas Frente às poderosas forças econômicas desencadeadas pela revolução Direito e Justiça 403 industrial e a ruptura do feudalismo a política do íalssezfaire foi mais uma necessidade do que uma virtude ou se fez dela uma virtude por necessidade As experiências das poucas gerações passadas no senti do de uma intervenção legislativa orientada por um propósito demons traram a notória falsidade da afirmação da impotência do legislador e da política Tornouse óbvio que embora o aparato do governo não seja a lâmpada de Aladim quem controla esse aparato domina forças pode rosas capazes para o bem ou para o mal de dirigir decisivamente a vida material e espiritual do povo para uma meta planificada Ninguém dirá hoje que o poder político é impotente Os próprios governantes que herdaram a doutrina de Marx e a elevaram à posição de religião de Estado têm demonstrado com mais vigor do que ninguém os usos que podem ser dados ao poder político No que concerne à consciência jurídica e cultural de um povo vi mos como a propaganda eficiente Alemanha nazista ou a propa ganda combinada com uma reconstrução radical das condições de produção Rússia soviética foram capazes de produzir alterações pro fundas na vida jurídica e cultural que não podem ser explicadas pelo normal crescimento do espírito do povo No que tange à relação entre a política e a economia não é possível restar mais nenhuma dúvida de que o poder político é o fundamental Em última instância o poder político condiciona o poder econômico e não o contrário A crença de Marx de que a propriedade do capital é a base fundamental de todo poder é a expressão de um respeito não crítico que tem quase um sabor jusnaturalista frente à propriedade como poder preestatal absolutamente válido Marx não compreendeu que o poder do proprietário é só um reflexo da proteção que o Estado lhe concede por meio da polícia e dos tribunais e por isso algo que deriva do poder político ou que mediante leis é possível regular e controlar o poder efetivo do proprietário até reduzilo ao papel de um funcionário público mais ou menos bem remunerado De todo modo Savigny e Marx nos ensinaram algo de que não devemos nos esquecer Se essas teorias forem despojadas de seu traje absoluto dogmático e metafísico aparecerá uma verdade rela tiva a subordinação relativa do legislador diante de forças sociais que limitam seu podér formal soberano Se se diz que o Parlamento britâ nico pode fazer tudo menos transformar um homem em uma mulher 404 Alf Ross isto pode ser verdadeiro se for tomado como expressão de uma ideolo gia jurídica porém é falso se lhe conferirmos uma interpretação so ciológicojurídica 0 legislador não é como um Deus cuja palavra cria um mundo a partir do nada A tarefa do legislador é motivar os seres humanos a certo comportamento desejado A fonte de seu poder con siste na ideologia ou mito políticos que lhe conferem autoridade jurídi ca Mas ao lado desse acato formal à autoridade legítima atuam mui tas outras forças no espírito humano entre elas tanto as forças cegas e irracionais que brotam da tradição o costume e a consciência jurídica material como as forças racionais norteadas por um propósito que surgem dos interesses econômicos e das relações de poder18 0 poder político é portanto apenas um dos muitos componentes de força que estão entretecidos em dependência mútua numa rede de centros e de relações de poder A liderança política é uma tentativa de integração que permite certa tensão entre o poder político e outras forças sociais Entretanto se a tensão for excessiva a tentativa fracassará O valor desses pontos de vista sociológicojurídicos se faz claro se os contrapomos ao racionalismo abstrato não histórico da época pre cedente do qual um dos representantes típicos é Bentham Se o romantismo reverenciou as forças obscuras instintivas e irra cionais a Bentham faltou toda a compreensão desse aspecto da na tureza humana que se acha fora da razão19 Seu grande sonho foi um pannomium uma clara e exaustiva codificação racional do direito20 18 Cf R M Maclver The Web of Government 1948 19 Afirma Leslie Stephen um dos maiores especialistas em Bentham Seria impossível traçar um quadro mais vivido do abstrato raciocinador cujos cálculos sobre os motivos humanos omitem toda referência à paixão e que imagina que todos os preconceitos podem ser conjurados mediante uns poucos atos de lógica The Engfish UtiStarians I 1900 199 20 0 entusiasmo de Bentham pela codificação deve ser examinado considerandose as condições do direito então predominantes A common law inglesa que se desenvolvera lentamente com base nas decisões judiciais exibia ainda concepções medievofeudais 0 excesso de distinções escolásticas e de ficções ininteligíveis para o senso comum havia convertido o direito inglês da época de Bentham num perfeito tojal um labirinto apropriado em alto grau para degradar o direito e fazer da administração de justiça um proveitoso negócio para Juizes e Cia Ver Leslie Stephen op cit pg 278 e John Stuart Mill Dissertations andDiscussions I 1859 368 e segs 0 direito sucessório inglês por exemplo é descrito por Bentham da seguinte maneira É tão complicado no que se refere è herança dos bens admite distinções tão singulares as prévias decisões que servem para regrálo são tão sutis que não apenas é impossível o simples bom senso presumilas como também difícil entendêlas É um estudo tão profundo como o das ciências mais abstratas só têm acesso a ele um pequeno número de privilegiados e inclusive estes tiveram que se subdividir pois nenhum jurista conhece o todo Tal foi o fruto de um respeito excessivamente supersticioso a antigüidade E quanto a common law em geral ele escreve São os juizes como vimos que produzem a common law Sabeis como a fazem Pois bem tal como um homem elabora regras para seu cão Quando vosso cão faz algo que vós não quereis que ele continue fazendo esperais que o faça e depois o castigais por têlo feito Assim á como elaborais regras para vosso cão e assim é como os juizes fazem regras para vós e para mim Ver Bentham Works publicação de John Bowring 11843 1323324 e V 235 el V 442 e IX 8 Direito e Justiça 405 que pusesse fim a todos os costumes21 e à toda interpretação22 Bentham nunca refletiu sobre a possibilidade de incorporar tal cons trução verbal à tradição cultural de um povo aos seus costumes e preconceitos existentes Ele mesmo elaborou o projeto de muitas gran des codificações que englobam o direito civil o direito penal o direito processual e o direito constitucional e confiava que os legisladores dos jovens Estados sulamericanos levassem aquela obra à prática23 Executou também o planejamento de codificações para a Rússia a Espanha Marrocos e a Baviera24 Dizia que poderia legislar para o Hindustão e sua própria paróquia com igual facilidade25 Atualmente tudo isso nos parece ingênuo e inteiramente utópico já que sabemos que o direito depende de condições históricas e nacio nais Tal é o cerne da doutrina de Savigny Marx deu uma passo adiante Ensinounos a olhar por trás da ideologia da consciência jurídica a não considerála dogmaticamente como uma revelação de idéias eternamente váli das mas sim a perguntar quais forças a condicionam e dirigem Nesta medida Marx estava de acordo com Bentham parágrafo 67 Mas enquanto o último veria a consciência jurídica e moral como produtos de um único princípio evidente Marx considera que as forças diretrizes são os interesses econômicos das classes sociais A questão não é na realidade tão simples Entretanto se generalizarmos a idéia de Marx e dissermos que a consciência ju rídica deriva dos interesses que se encontram por trás dela prova velmente estaremos no caminho certo 21 Ver Bentham op cit I 320 Se o obscuro sistema chamado direito consuetudinário deixasse de ser tolerado e desaparecesse e todo o direito fosse formulado por escrito se as leis referentes a todos os indivíduos fossem reunidas num volume e as concernentes a certas classes formassem parte de coleções separadas toda desvio delas seria perceptível todo cidadão seria seu guardião não haveria mistério para encobrilas não haveria monopó lio no que diz respeito à sua explicação não haveria fraude ou chicana para eludilas Cf III 211 V 439 IV 503 e alhures 22 Como outros adeptos racionalistas da codificação Bentham concluiu desta idéia que doravante não se deveria permitir aos juizes interpretar o direito legislado Ver Bentham op cit I 325 Comparese com isto Alf Ross Theorie der Rechtsquellen cap III 1 sobre Montesquieu e a codificação francesa 23 No que concerne aos planos de Bentham de legislar para o México e a Venezuela ver Bentham op cit X 433457 458 cf Stephen op cit p 220 24 Stephen op cit 1300 A respeito da correspondência de Bentham com o rei da Baviera a quem enviou o projeto de uma Constituição ver Bentham op cit X 578 e segs 25 Bentham op cit X 292 406 Alf Ross É possível sintetizar o exposto como segue a política é possível por que o legislador não é impotente As possibilidades da política jurídica são limitadas porque o legislador tampouco é todopoderoso Ele se defronta com forças sociais em particular a consciência jurídica os inte resses econômicos e as relações de poder que não podem ser exorciza das com meras palavras Por outro lado não há tampouco uma barrei ra permanente e infranqueável A consciência jurídica e as forças econô micas são em si mesmas numa certa medida produtos da evolução do direito da evolução da legislação contemplada em sua continuidade his tórica As diversas forças sociais a ideologia política a consciência jurí dica e os fatores econômicos operam juntos em interação mútua As barreiras portanto não devem ser consideradas como diques perma nentes que fecham um canal Representam um ponto de inércia na interação recíproca e podem ser comparadas com as margens de um rio as quais estão determinadas pela erosão da corrente e seus depósitos e ao mesmo tempo determinam o curso da água Essa conclusão concorda que o legislador é um técnico social que através da mecânica do direito procura moldar a evolução social A engenharia social se acha por sua subordinação fundamentalmente na mesma posição das demais engenharias O engenheiro técnico tampouco dispõe de uma lâmpada de Aladim Também ele está limita do pela resistência da matéria pelas forças que sobre ela atuam Cabe indagar se a sociologia pode iluminar o legislador acerca das limitações da política jurídica numa dada situação Segundo o que vimos tal esclarecimento no melhor dos casos pode indicar limitações mais elásticas determinadas pela plasticidade do material social e não barreiras permanentes e infranqueáveis Adquire aqui importância o estudo sociológico de tendências em evolução O curso da história não está predestinado não pode ser objeto de previsões que sejam independentes da intervenção deter minada pelo conhecimento e a vontade do ser humano Tampouco pode ser objeto de previsões científicas mediante a inclusão dessas intervenções no cálculo As crenças futuras e as doutrinas científi cas em todos os casos não podem ser calculadas de antemão porque se pudessem sêlo já existiriam por exemplo a teoria da relatividade de Einstein teria existido como uma previsão antes que Einstein a tivesse elaborado E como nossas crenças condicionam Direito e Justiça 407 nossos objetivos e outras atitudes estas tampouco podem de an temão ser calculadas26 Por outro lado há continuidade nas transformações operadas no conhecimento e nas atitudes dos seres humanos donde que partin do de dados determinados e projetandose para um futuro próximo é possível calcular tendências em evolução Tais cálculos contudo não são mais que probabilidades baseadas na pressuposição de que não ocorrerão mudanças substanciais nos conhecimentos e atitudes dados A determinação das tendências não deve ser confundida com a extrapolação mecânica de uma curva A circunstância de que os preços durante um certo tempo foram baixando não constitui em si27 funda mento pare estabelecer uma tendência de baixa dos preços do mesmo modo que a circunstância de ter chovido durante um certo tempo não constitui em si28 justificação para suporse que continuará chovendo O pensamento popular amiúde não vai além de tal extrapolação Um es tudo científico de tendências pressupõe uma análise profunda dos da dos em conexão com um conhecimento das correlações invariáveis que determinam a evolução É possível portanto que um economista que conheça a teoria dos ciclos de negócios possa prever com base na que da dos preços durante períodos de tempo bastante longos uma tendên cia de alta Este exemplo ilustra também que qualquer determinação de tendências depende do conhecimento sociológico da época e varia com um aumento desse conhecimento Até recentemente há poucos anos os economistas consideravam que os ciclos econômicos eram inevitáveis e portanto previam uma tendência a movimentos contínuos para cima e para baixo Atualmente graças a economistas como Myrdal e Keynes possuímos o conhecimento necessário para conter tais movimentos de maneira eficiente por meio do equilíbrio do orçamento e outras medidas A tendência cíclica com que se contara sempre anteriormente e que ainda parece ser um pressuposto dogmático na política da Rússia sovié tica frente aos Estados Unidos já não é considerada do mesmo modo devido ao nosso melhor conhecimento 26 A fundamental imprevisibilidáíle da história deriva ademais do fato de que a própria previsão é um fator que influi sobre o curso da evolução Ver parágrafo 9 27 Embora possa sêlo em conexão com uma teoria do comércio 28 Embora possa sêlo em conexão com uma teoria meteorológica no sentido de que o tempo as condições atmosféri cas tem caráter periódico 408 Alf Ross O estudo de tendências não deve ser confundido tampouco com a filosofia do destino O estudo de tendências é relativo e empírico enquanto a filosofia do destino é absoluta e metafísica O primeiro não se atribui significado normativo quanto à legislação e a política Simplesmente esclarece o legislador acerca das condições nas quais deverá atuar define sua tarefa e estabelece certos limites para a política possível A missão do legislador é acomodar as tendências em consonância com seus propósitos Os limites consistem na continui dade da evolução e em seu momentumde inércia Não nos propomos dizer em que medida na etapa presente do desenvolvimento das ciências sociais somos capazes de levar a cabo um estudo de tendências que possa nortear o legislador As tentati vas de um argumento raciocinado nessa direção as quais aparecem nos relatórios legislativos se baseiam mais em impressões vagas do que no conhecimento científico Nosso propósito foi indicar simples mente uma tarefa científica que é fundamentalmente possível e que na medida em que é suscetível de realização acrescentará outro do mínio ao âmbito do trabalho da política jurídica tal como delineado no parágrafo 75 Capítulo XVII O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica 84 ATITUDES BASEADAS EM NECESSIDADES INTERESSES A palavra interesse pode ser tomada em sentido amplo e em sen tido estrito O sentido amplo abrange todo estado de consciência que encerra uma atitude Neste sentido estamos interessados em tudo aquilo a respeito do que experimentamos uma atitude positiva ou negativa Por outro lado quando dizemos que uma ação nasce dos interesses de uma pessoa a palavra é tomada em sentido estrito Com a palavra interesse se designa então uma classe particular de atitudes conhecida em psicologia como atitudes fundadas em neces sidades Sua contrapartida são as atitudes baseadas em sugestões Entre estas as atitudes morais têm importância especial para a polí tica jurídica Ainda que a divisão não seja exaustiva nas páginas seguintes me referirei aos interesses atitudes baseadas em necessi dades e às atitudes morais como se fossem conceitos opostos As necessidades têm suas raízes num mecanismo biológico de autorregulação necessidade em sentido biológico Diversos estados biológicos que em relação à função norma do organismo podem ser denominados estados de carência estimulam o organismo a uma 410 Alf Ross atividade que pelo menos em conexão com certas experiências é apropriada para fazer cessar o estado de carência com cujo desapare cimento cessa também a atividade Por exemplo a carência de alimen tos para um mecanismo biológico no qual desempenham um papel o estômago vazio e os sucos gástricos estimula uma infatigável ativida de de busca até que o animal encontre e consuma objetos adequados à alimentação Os alimentos extinguem o estímulo biológico ativador e sobrevêm um estado de repouso Após algum tempo o processo re começa Os objetos apropriados para extinguir o impulso coisas materiais ou formas de energia por exemplo alimentos ar calor luz e atividades ou funções por exemplo movimentos ou reações de excreção corporal são conhecidos em psicologia como satisfazedores Fenomenologicamente as necessidades aparecem no ser humano como experiências de necessidade descontentamento anseio relati vamente a algo necessidades em sentido psicológico A atividade estimulada pela necessidade é experimentada como um esforço e a extinção do impulso que resulta da atividade como uma satisfação É improvável que o ser humano tenha uma consciência inata de quais são os objetos adequados à satisfação de uma determinada necessidade A premência ou anseio é originariamente cega um es forço desprovido de meta Um bebê está intranqüilo e chora porque necessita de alguma coisa alimentos fraldas limpas ser aquecido ou refrescado Entretanto seus impulsos não têm uma direção particu lar e não há razão para supor que um bebê tenha alguma idéia do que é que necessita Graças à ajuda de outros seres humanos suas diversas necessidades são satisfeitas e à medida que sua consciência do que o cerca aumenta gradualmente melhora sua capacidade para reconhecer os diversos satisfazedores que em situações distintas lhe foram fornecidos Já não experimenta então a necessidade pura e simplesmente como descontentamento como anseio cego mas como uma premência ou anseio para este ou aquele objeto definido sua mãe sua mamadeira seu chocalho Seu esforço impulsivo não é mais desprovido de direção mas um esforço orientado por um propósito um esforço que aponta satisfazedores específicos Assim as experi ências do indivíduo a respeito do que é que satisfaz suas necessida des fazem com que seu anseio não seja mais cego e transformam sua ação impulsiva sem direção num esforço orientado por um propósi to que busca um fim específico Direito e Justiça 411 Se uma pessoa é consciente do objeto de sua necessidade sua experiência dela em suas diversas fases anseio esforço satisfação possui o caráter de uma atitude para esse objeto Esta atitude é usualmente denominada interesse em sentido estrito E comum distinguirse entre necessidades corporais e espirituais Ao primeiro grupo pertencem a necessidade de respirar de abrigo de água e de alimentos de excreção de higiene de atividade sexual e de descanso O segundo grupo inclui a necessidade de estímulo ou distração de expressão de produção de companhia de amor ou cuidado de se gurança a necessidade de possuir e juntar de ajudar também a necessidade de destruição de autoafirmação de autorespeito de justificação de conhecimento de harmonia etc Os interesses não são necessariamente egoístas interesses pró prios O interesse baseado na necessidade de ajudar é dirigido à satisfação de necessidades alheias Nasce de um impulso de ajudar outros que estão necessitados e se funda em sentimentos de simpa tia em relação a eles O interesse altruísta tem caráter indireto se remete a um interesse direto de outro ou seja a um interesse que é experimentado por alguém que não é a própria pessoa como um interesse direto ou um interesse próprio Quando no campo do direito ou da moral falamos de um equilíbrio de interesses queremos dizer interesses próprios autointeresses 841 Interesses individuais e coletivos Os interesses são experimentados por pessoas não conhecemos outros centros de experiência e neste sentido são individuais Falar de interesses coletivos ou comunitários no sentido de que é o grupo ou a comunidade que experimenta ou tem o interesse carece de sentido Devemos procurar outra maneira de atribuir a essas palavras um significado aceitável Imaginemos dois indivíduos A e B prisioneiros de uma mesma cela Ambos querem fugir Os dois têm cada um de sua parte inte resse em sair da prisão Neste medida podese afirmar que seus inte resses coincidem Suponhamos além disso que a fuga requer neces sariamente a cooperação dos dois Cada um deles portanto tem f interesse em ajudar o outro não por razões altruístas mas porque a fuga de cada um depende de uma cooperação que possibilita tam bém a do outro Nessa medida podese dizer que seus interesses estão ligados Finalmente podemos imaginar que cada um sente tal impulso altruísta de ajudar o outro a ponto de levar a ambos a pensar na fuga não como a fuga de A ou a de B mas como a fuga comum a fuga de A B Temos que tentar fugir dizem Em tal medida podemos dizer que seus interesses são comuns Fica claro que o fato dos interesses coincidentes estarem também ligados depende unicamente de circunstâncias externas no caso uma situação fatual de solidariedade que move A na direção de B e reci procamente como instrumentos necessários para a satisfação de seus interesses egoístas Que A e B sejam também conscientes da cone xão mútua de interesses depende unicamente portanto de um co nhecimento racional do estado fatual de solidariedade Por outro lado que os interesses coincidentes sejam experimenta dos também como um interesse comum depende de algo subjetivo a saber que cada uma das partes se identifique de tal maneira com as outras ou com o todo que nasça em cada uma delas uma consci ência de grupo Isto significa que cada uma sente como se não esti vesse agindo em seu próprio nome e em seu próprio interesse mas como um órgão de um todo de uma comunidade Não é A quem planeja a fuga de A nem B quem planeja a de B mas A B planeja a fuga de A B Parece natural então falar de um interesse em escapar que não é atribuído singularmente a A nem a B mas ao todo A B É preciso ter presente todavia que a expressão o interesse de A B em fugir é uma frase que não deve ser interpretada com base na analogia com a expressão o interesse de A em fugir Isto porque não designa um interesse único experimentado por um sujei to comum A B mas uma constelação de interesses individuais experimentados sob pressupostos emocionais dados Atribuir o inte resse a um todo supraindividual um sujeito coletivo uma comuni dade é usar uma expressão metafórica para a experiência individual de coparticipação de interesses Cabe perguntar se A pode experimentar a situação como uma coparticipação de interesses sem que B o faça É verdade por certo que A pode sentir simpatia por B e um impulso altruísta para ajudálo 412 Alf Ross Direito e Justiça 413 sem que haja reciprocidade de sentimentos da parte de B Por outro lado a experiência de identificação e coparticipação pressupõe quase com certeza certa reciprocidade da parte do outro indivíduo A conexão de interesses solidariedade fatual já o dissemos não é idêntica à comunidade de interesses solidariedade emocional É coisa distinta se poder considerar que o conhecimento da dependên cia mútua condiciona a atitude de coparticipação Os interesses conectados talvez sejam experimentados mais facilmente como co muns do que os interesses coincidentes O que acabamos de indicar a respeito da situação de A e B na prisão pode ser generalizado e se aplicar à comunidade da vida humana na luta contra a natureza À medida que a técnica de produção se trans forma num aparato altamente organizado e ramificado fazse mais claro que todos dependem de todos numa solidariedade fatual Nin guém se basta a si mesmo O capital depende do trabalho e o trabalho do capital A prosperidade da agricultura é condição para o bemestar das indústrias urbanas e viceversa Uma crise de produção nos Esta dos Unidos seria ruinosa para a economia européia e reciprocamente os Estados Unidos se beneficiam com uma Europa florescente Os inte resses humanos se acham extensivamente ligados e se traduzem numa cooperação que por sua vez aumenta a dependência mútua Em cer ta medida são experimentados como interesses comuns atribuídos a uma coletividade As formas correspondentes de vida social podem ser denominadas sociedade e comunidade1 A distinção entre elas se baseia num sentimento de simpatia e de pertencer ao grupo que faz com que o indivíduo se identifique com o grupo O limite portanto é fluído Com esta disposição podese di zer que as empresas comerciais e outras associações técnicofinancei ras e a cooperação entre Estados são exemplos de formas de vida social que têm de modo predominante caráter de sociedade a na ção a família os clubes e as comunidades religiosas são exemplos de grupos que têm de modo predominante caráter de comunidade Mostrar o fato da solidariedade isto é indicar em que medida os interesses humanos estão mutuamente ligados é uma tarefa teórica Falar de interesses comuns ou interesses comunitários é algo mais 1 0 sociólogo alemão F Tõnnies foi quem cunhou estes termos quê são contudo usados aqui num sentido um tanto diferente daquele que lhes atribuiu Tõnnies 414Alf Ross não é simplesmente uma asserção sobre a conexão fatual de interes ses mas também um meio de persuasão uma forma de expressar uma atitude de sentimentos comuns que apela aos mesmos senti mentos em outras pessoas Se digo por exemplo que numa dada situação a poupança é de interesse comum ou de interesse da comu nidade não só estou indicando certas relações econômicas que ligam nossos interesses como também estou fazendo um chamado ao sen so comunitário ou ao sentimento comunitário Isto significa apelar aos sentimentos de pertencer ao grupo identidade solidariedade e aos interesses altruístas a eles Ngados que lutam com os interesses egoístas que impulsionam o indivíduo a buscar sua própria vantagem às expensas do todo1 Devese observar que nem todos os interesses de um indivíduo estão ligados aos interesses dos outros Tampouco se pode dizer em geral que alguns interesses estão isolados e outros ligados Em lugar disso cada interesse tem um aspecto que está individualmente isola do e outro que está socialmente ligado3 Se por exemplo pensamos no interesse de um indivíduo na posse de objetos materiais este interesse se choca com os interesses conflitantes de outras pessoas Esses interesses são coincidentes e ligados em um só aspecto todos estão interessados que haja um ordenamento geral da propriedade que garanta a cada um segurança em certa posse limitada Assim a propriedade de A considerada individualmente quer dizer como seu interesse em dispor de certa fração de terra é um interesse mera mente individual porém seu interesse e o interesse de cada um dos outros num ordenamento da propriedade que dê segurança à posse é um interesse social4 Introduzimos este termo para designar os inte resses geralmente coincidentes e ligados dentro de um grupo no qual haja uma certa ordem social Fazer uma hipóstase adicional dos inte resses sociais em que haja um ordenamento da propriedade sustenta dos por A B C etc e falar de um interesse supraindividual atribuído à comunidade o ordenamento ou regulamentação da propriedade como 2 A tentativa de Duguit de derivar o direita objetivo natural do fato da solidariedade se baseia podemos dizêlo com brevidade na errônea concepção de que a solidariedade como atitude emocional e ideal é substituída pela solida riedade como fato Cf parágrafo 57 3 Há por certo algumas necessidades tais como a necessidade de ar e de excreção corporal que não têm aspecto social isto é sua satisfação não depende da cooperação com os outros 4 0 uso do singular não indica que o interesse é atribuído a uma única parte interessada a comunidade mas que muitas partes interessadas têm um interesse de mesmo conteúdo Direito e Justiça 415 um interesse comunitário5 é como já vimos fazer uma metáfora cuja função consiste em apelar ao sentimento de simpatia e ao interesse altruísta através do qual o indivíduo se identifica com o todo Isso deixa claro que toda tentativa de formular um catálogo de interesses individuais e sociais conflitantes e independentes está fa dada ao fracasso Tratase de dois aspectos da mesma coisa o espe cífico e o geral Se por exemplo incluímos entre os interesses indivi duais o interesse de A em possuir objetos materiais em gozar de integridade pessoal em casarse e formar uma família em celebrar acordos obrigatórios etc então a eles corresponderão os interesses sociais num ordenamento ou regulamentação geral da propriedade da paz do casamento e da família dos contratos etc Pela mesma razão é também impossível distinguir entre as esferas da vida dominadas por interesses individuais e esferas dominadas por interesses sociais6 842 Interesses privados e públicos7 Essa distinção deriva logicamente da distinção entre os interesses individuais e sociais Se o poder político da comunidade protege um interesse social por meio da legislação se diz que esse interesse é público O interesse individual em contrapartida é denominado pri vado Os interesses públicos podese dizer também são interesses sociais protegidos pelo Estado como expressão dos órgãos politica mente organizados do poder da comunidade Assim os interesses sociais num ordenamento ou regulamentação da propriedade da paz do casamento da defesa do país etc são interesses públicos A expressão se usa também para designar os interesses específicos indi viduais derivados detidos pelas autoridades públicas em conexão com a proteção dos interesses públicos no sentido geral Por exemplo se as 5 0 uso do singular aqui é para mostrar que o interesse metaforicamente é atribuído a uma única parte interessada a comunidade 6 Concluise daqui que com esta base é impossível distinguir entre direito público e direito privado Considerado como um ordenamento geral todo sistema jurídico protege interesses sociais aqueles que nessa medida são chamados de interesses públicos cf o texto que se segue na imediata seqüência Considerado do ponto de vista da relação jurídica específica todo sistema jurídico protege interesses individuais Cf parágrafo 46 7 0 problema dos interesses individuais sociais privados e públicos foi discutido principalmente por Ihering e Roscoe Pound ver Julius Stone The Promce and Function of Law 1950 cap XI parágrs 3 e 7 cap XX parágrs 15 cf cap XXI e XXII mas em minha opinião sem uma clarificação dos termos 416 Alf Ross forças armadas como parte de seu trabalho em prol da defesa nacio nal querem instalar uma linha de tiro numa certa área este interesse individual também é denominado interesse público Seria todavia conveniente por razões de clareza reservar a expressão interesse público para os interesses sociais gerais em nosso exemplo a defe sa nacional e chamar os interesses individuais derivados instalar uma linha de tiro de interesses do Estado 85 ATITUDES MORAIS Nem todas as ações humanas são interessadas motivadas por uma necessidade Isto se aplica não só aos reflexos piscar espir ro que ocorrem sem conhecimento e vontade como também às formas de ação superiores e organizadas as quais são conhecidas como atos de volição Entre as ações desinteressadas as mais importantes são as ações sugeridas ou persuadidas É um fato psicológico que sob certas cir cunstâncias meios adequados de persuasão podem transmitir atitu des e impulsos de ação a outras pessoas Tal como vimos mais exten sivamente anteriormente parágrafo 72 os meios de persuasão po dem ser lingüísticos ordens petições convites e outras exortações verbais ou seja palavras com uma carga emocional ou não lingüísticos o tom de voz a expressão facial o gesto Comumente ambos os tipos são utilizados de forma simultânea Quando os pais em tom imperativo dizem a uma criança Não mexa ou quando o sargento dá aos seus homens a voz de comando Marchem estas ordens desencadeiam impulsos espontâneos de não agir ou agir de uma maneira específica Tais impulsos não nascem de uma necessidade e não expressam nenhum interesse da parte da pessoa que os obede ce Outra coisa é que a disposição de obediência da criança e do soldado pode ser cultivada pois essa disposição tem suas raízes numa relação de dependência ou de poder entre as partes que condicionam originariamente no dependente ou no subordinado um interesse de obedecer Uma vez estabelecida a disposição quando o poder se transformou em autoridade podese omitir o apelo a um motivo de interesse resultando a obediência do mesmo modo não por temor mas de forma espontânea O impulso à ação surge automaticamente e com força compulsiva ainda quando seja conflitante com fortes Direito e Justiça 417 interesses O propósito dos exercícios militares com sua eterna repe tição de ordens aparentemente sem sentido é cultivar tal disposição permanente à obediência cega que quando surgir a necessidade de combater bastará uma ordem para que os soldados reajam esponta neamente como autômatos em conflito com os poderosos motivos do instinto de autopreservação e do medo Os impulsos e atitudes particulares que são experimentados como morais têm também um caráter desinteressado isto é não baseado em necessidades Isto se constata com clareza quando a moral é experimentada e interpretada como dever8 O que é característico da experiência do dever é precisamente que apreendemos nela um impulso para a ação que se apresenta como uma exigência indepen dente de tudo que nossos desejos inclinações e interesses nos suge rem O imperativo do dever não busca sua justificação em nenhuma utilidade ou vantagem não apela a nenhum interesse apresentan dose com absoluta independência Não é necessário que o dever esteja em conflito com nossas inclinações naturais mas assume sua forma mais clara quando isso ocorre É experimentado então se cumprimos com o nosso dever como uma censura à nossa natureza sensual nos sentimos impelidos por um motivo que nada tem a ver com nossas necessidades e interesses por um motivo desinteressa do o puro sentido do dever As atitudes morais têm origem social são inculcadas na pessoa pela persuasão sugestiva de seu meio A peculiaridade da persuasão que cria a moralidade é que acontece nos primeiros anos da vida Desde a infância a criança cresce num meio social representado primeiro pelos pais irmãos e irmãs mais tarde pelos colegas da esco la e os professores Neste meio a criança é constantemente submeti da a um bombardeio de persuasões consoantes com a tradição cultu ral comum do grupo social com a herança social As persuasões con sistem primeiramente em exortações verbais Não minta Mante nha a palavra Não jure Não seja egoísta É covardia bater em alguém menor que você Estas exortações são logo apoiadas por outros meios de persuasão que expressam aprovação e reprovação 8 0 mesmo ocorre também quando a moral é interpretada como consciência do valor ou do bem Ver Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 cap III 8 Uma análise mais profunda da experiência do dever será encontrada na op cit cap VII 1 e 2 418 Alf Ross elogio censura castigo isolamento do grupo privação de afeto e simpatia etc Desta maneira a criança cresce no interior de uma ampla rede de regras convencionais que abrangem os aspectos mais variados da vida regras de linguagem de jogo de intercâmbio social de urbanidade e de moralidade em sentido estrito Estas regras são sentidas como morais isto é obrigatórias na medida em que são suscetíveis de se chocar com o prazer e as inclinações pessoais9 Assim por exemplo as regras da gramática são experimentadas como puramente convencionais enquanto o imperativo de não jurar adqui re um tom moral10 As exigências de higiene e de urbanidade são experimentadas originalmente pela criança como exigências morais mas pouco a pouco a conduta correspondente é inculcada até atingir um grau tal de automatismo que já não se deseja agir de maneira distinta As regras perdem assim seu caráter moral11 Com o tempo o fator de sugestão admoestação dos pais pode desaparecer A atitude moral será então acoplada diretamente à situação e à regra moral correspondente O adulto ou o adolescente não lembra como os impulsos morais foram nele implantados Apesar disso vive estes impulsos plena e espontaneamente como uma força que reprime suas inclinações Esta circunstância explica a inexplicabilidade que caracteriza a moral Enquanto parece bastante natural satisfazer nossas necessidades há algo estranho no fato de que cumprimos nosso dever inclusive contra nossos interesses Não parece que o dever possa ser atribuído à nossa natureza Afigurase óbvio conseqüentemente interpretar o impulso moral como expres são de uma específica validade sobrenatural que tem sua fonte em Deus ou na natureza racional suprasensível do ser humano que nos fala através de nossa consciência12 9 Cf Ross op cit p 422 e segs À distinção entre normas convencionais e morais corresponde uma diferença na reação social frente às transgressões A transgressão de uma norma convencional tipica provoca assombro ridículo e reserva Uma pessoa que se apresenta vestida de forma imprópria cai no ridículo e não faz parte da boa sociedade A transgressão a uma norma moral típica é recebida ao contrário com protestos de reprovação que podem atingir a ira a indignação e o horror 10 Se alguém sentisse o desejo de conjugar mal um veibo a norma gramatical presumivelmente teria para ele um tom moral 11 As normas comuns referentes ao decoro no vestir são geralmente sentidas portanto como meramente convencio nais Só naqueles casos excepcionais nos quais a exigência é experimentada como uma carga em conflito com as preferências pessoais por exemplo a exigência de usar traje acadêmico em certas cerimônias da universidade ela adquire o caráter de um dever moral 12 Na filosofia metafísica esta interpretação deu origem ao dualismo entre o ser humano como ser natural sujeito à lei universal da causalidade e o ser humano como ser dotado de razão uma pessoa moral cuja vontade é livre Jamais fui capaz de compreender como essas concepções opostas entre as quais oscila a filosofia prática de Kant podem ser conciliadas Direito e Justiça 419 A distinção entre atitudes e impulsos interessados e desinteressa dos entre interesse e moral não se confunde com a distinção entre egoísmo e altruísmo O interesse como vimos também pode ser altruísta A diferença decisiva na medida do que concerne a atitudes para uma regra de ação ou uma ordem social é a diferença entre racionalidade e irrracionalidade Na sua forma original e não qualifica da o interesse é uma atitude frente a um satlsfazedor repulsor isto é um objeto cuja aquisição eliminação satisfaz a uma necessidade A atitude interessada frente a uma regra de ação ou uma ordem social é uma atitude derivada e condicionada pela crença de que a regra ou ordem pode satisfazer certas necessidades O ponto de vista fundado no interesse está pois condicionado por certas crenças e em tal medi da pode ser justificado por argumentação racional A atitude moral senso moral ao contrário é uma atitude direta e absoluta frente a uma norma de ação ou ordem social É irracional no sentido de que expressa uma emoção e é inacessível à justificação e à argumentação A força motivadora desses dois tipos de atitude varia de uma pes soa para outra segundo certas crenças condicionantes sobre a natu reza e a origem do senso moral De acordo com a maneira na qual o indivíduo reage ao senso moral podemos distinguir dois tipos princi pais a atitude moral dogmática e a atitude morai cética Uma atitude moral dogmática é caracterizada por um sentimento de reverência diante da voz que vem de nossos corações Ninguém expri miu com maior beleza do que Kant o sentimento de profundo temor ante a majestade sublime da lei moral Kant escreveu as famosas palavras Zwei Dinge erfüiien das Gemüt m it immer neuer und zunehmender Bewunderung und Ehrfurcht je õfter und anhaitender sich das Nachdenken damit beschãftigt der bestimte Himmei über mir und das moraiische Gesetz in mirP Duas coisas locupletam meu coração com renovada e crescente admiração e temor quanto mais nelas medito o céu estrelado acima de mim e a lei moral no meu interior Esta atitude se baseava decerto em crenças religiosas ou filosóficometafísicas so bre a natureza e origem da consciência14 A voz que provém de nossos corações é interpretada como revelação de uma validade absoluta a priori que é atribuída a Deus ou à natureza racional suprasensível do ser humano que o coloca acima do mundo da necessidade 13 Immanuel Kant Kritik der praktischen Vernunft 1788 seção final Beschluss 14 Kant negou que a consciência moral pudesse ser explicada em termos de história e psicologia 420 Alf Ross A atitude moral cética em contrapartida desconfia das atitudes emocionais que confrontam diretamente certas normas de ação e exige que estejam justificadas pelo interesse Este atitude se baseia na crença de que o senso moral é um fenômeno empírico e psíquico como os demais A consciência em meu coração não é incompreensí vel e sublime Não me fala da vontade de Deus ou das leis categóri cas da razão mas simplesmente dos preconceitos que foram inculca dos em mim desde o berçário Tais preconceitos são por sua vez o produto de tradições sociais herdadas As atitudes morais têm origi nariamente sua raízes em necessidades sociais Entretanto estas se respaldam em parte em concepções mágicas religiosas e outras concepções falhas acerca da realidade física e social e em parte em condições que imperam na comunidade que podem ter se altera do posteriormente de modo que a moralidade herdada já não serve mais aos interesses que a originaram Por estas razões o senso mo ral não pode ter pretensão a um respeito cego No melhor dos casos pode ser considerado como uma indicação prima fàcie de que uma certa conduta serve a determinados interesse sociais É imperioso que seja nossa tarefa se for possível que seja levada a cabo15 exa minar essa hipótese e racionalizar nossa atitude emocional por meio de uma análise do problema da ação à luz de nossos interesses e de uma adequada concepção da realidade Como sucede nos problemas práticos não é possível provar a re tidão da atitude que se adota a não ser discutindo unicamente as crenças que a condicionam O cético moral pode em apoio de sua atitude denunciar a interpretação metafísica da consciência moral por considerála tão insustentável arbitrária e fantástica como todas as outras metafísicas parágrafo 58 pode apresentar uma explica ção psicológica da razão porque o impulso metafísico é tão poderoso na esfera da moral parágrafo 59 e pode fazer referência às obras modernas que explicaram a origem e a evolução do senso moral em termos de sociologia história e psicologia16 Se esses argumentos são aceitos e se é dispersada assim a névoa metafísica o resultado psicológico será indubitavelmente a demolição da cega reverência do dogmatismo moral frente à consciência moral 15Cf parágrafo 87 16 Ver por exemplo Edward Westermarck The Origin and Oevebpment of the Moral ldeasM 1924261 Direito e Justiça 421 Não posso conceber que seja possível aceitar uma versão científica isto é relativista histórica e psicológica do senso moral como um fenôme no empírico entre outros e ao mesmo tempo manter uma atitude de respeito submisso e obediência absoluta aos seus comandos 86 O PAPEL DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA NA POLÍTICA JURÍDICA TRÊS POSTULADOS FUNDAMENTAIS As observações feitas nos dois parágrafos anteriores sobre o inte resse e o senso moral podem ser aplicadas às considerações práticas e à consciência jurídica como fatores da política jurídica As considerações práticas considerações de interesse considera ções de utilidade são a expressão de uma valoração das regras jurí dicas com base em argumentos racionais acerca da relevância das regras para interesses pressupostos A consciência jurídica como o senso moral é uma atitude desin teressada de aprovação ou reprovação frente a uma norma social Difere do senso moral em que distintamente deste não aponta a relação direta entre ser humano e ser humano mas sim o regramento social organizado da vida da comunidade A consciência jurídica se dirige à ordem social Decide com base em atitudes em questões do tipo das seguintes se os criminosos devem ser punidos em relação a sua culpa se o aborto deve ser permitido se as mulheres devem ter o mesmo status jurídico dos homens se os trabalhadores devem ter direito de se reunirem em sindicatos se o casamento pode se dissolvi do pelo divórcio e sob que condições etc Em certa medida a consci ência jurídica é determinada pelo próprio ordenamento jurídico exis tente e por sua vez exerce influência sobre este último Podemos enunciar agora os três seguintes postulados fundamen tais relativos ao papel que cabe atribuir à consciência jurídica em questões legislativas competitivamente às considerações práticas lk consciência jurídica do próprio homem político jurídico não deve ser considerada como a medida da retidão correção de uma norma Este postulado praticamente dispensa justificação adicional Fica claro que qualquer idéia que conceba a consciência jurídica como 422 Alf Ross revelação de princípios de validade absoluta sobre a retidão do direito nos traz de volta às concepções metafísicas que temos rejeitado de maneira reiterada 2 A consciência jurídica que de fato predomina nos círculos dos governos não deve fazer parte dos pressupostos impessoais de atitu de do homem político Nos parágrafos 73 e 78 se estabelece como uma exigência metodológica que resulta do princípio de pureza da ciência que o investigador social à semelhança do técnico das ciên cias naturais deve aceitar como hipótese as atitudes políticas de fato existentes nos círculos predominantes da comunidade Pareceria in ferirse disso que deve aceitar também as atitudes especiais expres sas na consciência jurídica É mister lembrar todavia que as atitudes existentes são apenas a matériaprima que deverá ser elaborada Em particular será necessá rio averiguar se as atitudes estão condicionadas por uma concepção inadequada da realidade e necessitam por isso correção à luz de um conhecimento científico mais adequado Isto vale em especial para a consciência jurídica Os pontos de vista aqui aplicáveis são análogos aos que se referem ao dogmatismo moral e ao ceticismo moral pará grafo 85 Quando se percebe que a consciência jurídica não é uma revelação de uma validade sobrenatural de princípios eternos de justi ça ou da vontade de Deus mas simplesmente um fato psíquico entre outros quando se vê que é um produto da história resultante de um jogo de forças que inclui poderosos interesses de grupo instintos pri mitivos e idéias tradicionais mágicas e religiosas quando se comprova que se bem que tal consciência jurídica muda com as condições em mutação da comunidade parágrafo 87 com freqüência se retarda por trás da evolução da comunidade em virtude da inércia da tradição quando compreendemos tudo isto com clareza a consciência jurídica perde sua força motivadora Não se pode então deixar de se indagar por que ao nos ocuparmos dos problemas sociais permitimos que nos domine essa emoção que de forma irracional nos ata ao passado Queremos desafiar a consciência jurídica e averiguar se pode ser justificada como uma soma total da experiência de gerações sobre o que está a serviço de certos interesses sociais A consciência jurídica só deve ser reconhecida como indicação prima facie de necessidades so ciais É imperioso que se exija que sua atitude irracional seja subs tituída na maior medida possível por uma análise racional com base Direito e Justiça 423 de determinados interesses e por um conhecimento racional dos efei tos das medidas legislativas em discussão Poderseia dizer aqui novamente que essa atitude cética diante da consciência jurídica expressa um ponto de vista não uma verdade científica mas um ponto de vista que se nos impõe uma vez que compreendamos e aceitemos as crenças sobre a natureza da consci ência jurídica Estas crenças podem ser defendidas e justificadas como verdades objetivas Além disso independentemente dessa atitude cética ser comparti lhada ou não o apelo à consciência jurídica está fora do âmbito da política jurídica científica A tarefa desta como sustentamos anterior mente parágrafo 73 deve consistir em orientar a argumentação racional suprindoa com asserções cientificamente sustentáveis Mas o apelo à consciência jurídica se o considerarmos como uma atitude motivadora e não como uma circunstância fatual ver terceiro postula do na seqüência não é um argumento mas um meio direto de per suasão O apelo à consciência jurídica faz cessar toda argumentação racional e só pode ser neutralizado por meio da expressão emocional de uma consciência jurídica divergente Há lugar somente para uma argumentação racional quando a consciência jurídica deixa de ser acei ta como motivação em si mesma e se exige que seja posta à prova e justificada à luz de considerações práticas interesses A justaposição de considerações práticas e consciência jurídica comum na argumentação de política jurídica é uma mistura metodi camente impossível de argumentação racional e persuasão irracio nal17 O caráter absurdo desta mistura permanece oculto porque uma mão invisível parece governála com tal sabedoria que o apelo à cons ciência jurídica sempre concorda com a argumentação prática Mas qual seria a posição se as duas abordagens levassem a resultados conflitantes Só haveria duas possibilidades ambas inaceitáveis ou bem se faz necessário preferir uma abordagem à outra a consciência jurídica às considerações práticas ou viceversa em cujo caso é ab initio inútil invocar ambos os pontos de vista se um deles tem que ser deixado necessariamente de lado quando contradiz o outro ou bem se faz necessário efetuar uma ponderação e ajuste semelhantes aos que 17 As coisas são diferentes quando a consciência jurídica é considerada como circunstância fatual Cf o terceiro postulado e o parágrafo seguinte 424 Alf Ross precisam ser realizados quando diversas considerações práticas são ponderadas umas em relação às outras Porém tal ponderação ou balanceamento tem que resultar inaceitável a partir de cada um dos pontos de enfoque o racional e o irracional já que ambos recla mam validade soberana Se se aceita a consciência jurídica toda consideração de interesses deve ser rejeitada Se uma conduta é emocionalmente reprovada como má em si mesma não há ponto de vista racional fundado em interesses que tenha peso algum Inver samente caso se tenha decidido com base numa valoração racional de interesses não haverá aprovação ou reprovação emocional que tenha qualquer peso 3 A consciência jurídica predominante na comunidade só pode ser levada em consideração como um fator espiritual de que depende a viabilidade prática de uma reforma jurídica São essencialmente aplicáveis a essa questão os comentários fei tos no capítulo sobre as possibilidades da política jurídica O legisla dor não pode moldar a evolução arbitrariamente suas possibilidades estão limitadas entre outras coisas pela consciência jurídica predo minante na comunidade Essa restrição aos esforços do legislador na direção da conduta dos seres humanos deve ser levada em conta por este em seu cálculo jurídicosociológico do efeito fatual de um projeto de lei Tal é o cerne da doutrina da escola histórica A consciência jurídica segundo essa idéia é considerada como uma circunstância fatual e não como um motivo isto é figura entre as crenças operativas que descrevem fatos e correlações sociológico jurídicos e não entre as premissas de atitude motivadora Em conso nância com isto não se leva em conta a consciência jurídica em si mesma mas sim seus efeitos quer dizer a conduta que ela presumivelmente condiciona Ainda quando uma consciência jurídica popular existente não te nha talvez força suficiente para frustrar uma medida legislativa pro posta pode fundar um argumento contra o projeto pois não se deve esquecer que uma lei adotada que seja contrária à consciência jurídi ca popular provavelmente causará má vontade insatisfação e atrito e isto pode ter um efeito indesejável sobre o acatamento geral à lei Tais pontos de vista são importantes para decidir acerca de atos que sem chegar a lesar interesses alheios são contrários à crença Direito e Justiça 425 moral predominante e por isso são geralmente censurados Particu larmente em épocas anteriores mas também ainda hoje tem sido freqüente punir atos por considerálos pecaminosos por exemplo di versas formas de relações sexuais homossexuais extraconjugais re lações sexuais entre parentes distantes ou entre parentes afins defini dos pelos casamentos adultério práticas antinaturais heresia e ou tros atos condenados pela Igreja18 Para uma atitude moral dogmática o senso moral é em si mesmo razão suficiente para o castigo de tais atos É inútil discutir tal ponto de vista A punibilidade pode ser justificada por considerações práticas de interesses mas somente com base na idéia de que se deve proteger o sentimento de indignação dos cida dãos e satisfazer o seu desejo de castigar aqueles que provocaram a indignação Como sempre ocorre com as valorações práticas a decisão tem que se apoiar num equilíbrio das considerações em conflito no exemplo que examinamos se apoiará num equilíbrio do sentimento de indignação e da liberdade de pensamento e de ação do próximo De minha parte penso que a indignação moral não merece proteção quando se opõe aos interesses dos outros Em geral recomendaria que não se proibisse nenhum ato cuja única interferência com os interesses dos outros consiste em que os condenam por razões morais Para dizêlo mais simplesmente os seres humanos devem ser livres para realizar aqueles atos que não dizem respeito aos outros mesmo que os outros os considerem pecaminosos Tratase da essência do princípio da tolerância A evolução na cultura ocidental passou por duras lutas em seu avanço rumo a um triunfo desse princípio A emancipação do jugo da intolerância reli giosa e moral expressa no desaparecimento de um grande número de anteriores proibições e castigos é em minha opinião um passo vital adiante para a felicidade humana Esta tendência deve receber nossa adesão para quê o princípio da tolerância adquira vigência plena no âmbito do direito e nas outras esferas da vida comunitária do ser humano 18 Os atos aos quais aludimos aqui que se caracterizam pelo fato de que a própria ação isto é com independSncia de sua condenação moral não diz respeito aos outros não devem ser confundidos com os casos nos quais a ação em si mesma é uma ofensa contra a vida emocional de outras pessoas As ofensas contra o pudor público os insultos às crenças religiosas blasfêmia as injúrias e calúnias e outros delitos não devem portanto ser aqui incluídos Aqui Ross do nosso ponto de vista atual mais uma vez incorre num anacronismo inevitável em função da realidade que observava na década de 50 do século XX mas ao mesmo tempo demonstra uma lucidez de homem de vanguarda para sua época o que é reforçado na posição assumida nas palavras que profere na imediata seqüência NT 426 Alf Ross 87 0 PAPEL DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA QUANDO FALTAM CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS Em nosso terceiro postulado se estabeleceu que a consciência ju rídica entendida como aquela que prevalece na comunidade só pode ser considerada como circunstância fatual não como um moti vo em si mesma Vimos que a consciência jurídica pode constituir às vezes uma resistência ou mesmo uma barreira às exigências de política jurídica em prol de reformas fundadas em considerações práticas A consciência jurídica pode chegar a desempenhar um papel mais decisivo ainda em certas circunstâncias a saber quando as conside rações práticas estão ausentes Visto que qualquer reforma jurídica é em si uma intervenção que acarreta inconveniências próprias a toda mudança deve provar que é justificada Se não existirem considera ções práticas que a justifiquem será preciso remeterse à tradição arraigada na consciência jurídica popular Os argumentos práticos podem faltar seja porque numa determi nada questão o ordenamento jurídico é indiferente às considerações práticas determinadas pelo interesse seja porque nosso atual conhe cimento das relações sociais não nos permite formar opiniões bem fundadas a respeito das conseqüências sociais das possíveis solu ções e não estamos por isso em situação de realizar uma escolha racionalmente justificada entre essas soluções Não há uma linha demarcatória precisa que separe esses dois casos Podem ocorrer situações desse tipo tanto com relação a normas particulares dentro de nossas instituições jurídicas como em relação às próprias instituições em seus componentes fundamentais O primei ro caso é bem conhecido O segundo tem sido percebido raramente É fácil encontrar justificações práticas para a regulamentação do trânsito a liberdade irrestrita conduziria ao caos Por outro lado é muito difícil invocar fundamentos práticos para se decidir entre ado tar nessa regulamentação o tráfego pela direita ou pela esquerda Nesta situação o habitual podemos dizer também a consciência jurídica é o decisivo O mesmo ocorre com outros aspectos da regulamentação do trânsito Mesmo quando talvez se possam in Direito e Justiça 427 vocar certas considerações práticas qualquer mudança nos hábitos do trânsito firmemente estabelecidos traz inconvenientes que têm uma forte carga de prova contra si Em outras áreas jurídicas nos deparamos com situações análogas É importante que haja regras claras e estabelecidas firmemente quanto ao termo da prescrição prazo de resgate e demais termos ainda que freqüentemente seja difícil argumentar racionalmente a favor de um prazo desta ou aquela duração Coisa idêntica sucede com as regras que determinam quando se atinge a maioridade e as que fixam a idade mínima para contrair matrimônio para votar etc No mundo dos negó cios e em outras esferas da vida nas quais a clareza e a certeza têm valor preponderante sói ser mais importante dispor de uma regra pre cisa do que a preferência de um conteúdo relativamente a outro Em tais casos é freqüente se falar da positividade pura do direito aludindo com isto à arbitrariedade como coisa oposta à racionalidade Existe uma situação semelhante com relação às instituições jurídi cas fundamentais nas suas características básicas A regulamentação da propriedade é tão necessária quanto a regu lamentação do trânsito Quando entretanto levantase a questão de se o ordenamento da propriedade deve ser baseado no capitalismo ou no socialismo não sabemos como a produção o comércio as relações humanas etc se verão afetadas por cada um desses siste mas e por isso não podemos formar uma opinião comparativa bem fundada quanto a que sistema é preferível Embora existam diferen tes crenças sobre o assunto nenhuma conta com suficiente apoio na ciência ou na experiência que as façam merecer outro nome senão aquele de ideologias O mesmo ocorre talvez com mais clareza com relação ao nosso regramento do casamento Da maneira como vejo a questão não é possível apresentar um argumento racional sustentável do porque a monogamia é preferível à poligamia e a outras formas fundamentais de matrimônio que são conhecidas em outras culturas As condições para celebrar um casamento e em particular para dissolvêlo têm variado extensivamente através dos tempos e ainda hoje em dia dife rem consideravelmente de um país para outro Embora essas varia ções correspondam em alguma medida a variações dos interesses e necessidades das diversas comunidades é difícil aceitar que toda a 428 Alf Ross explicação se resuma nisso Não parece possível demonstrar racio nalmente qual é o regramento do matrimônio que serve melhor aos interesses sociais específicos O que realmente sabemos sobre as conseqüências para o indivíduo ou para a comunidade das regras matrimoniais rígidas ou das elásticas Antes se pensava que uma maior elasticidade em relação a questões matrimoniais favoreceria a decadência moral da comunidade A experiência não tem confirmado isto Entretanto estamos em condição de fornecer uma interpretação mais sustentável da questão As instituições jurídicas fundamentais não parecem permitir um argumento racional Os problemas que colocam são amplos demais para possibilitarem um juízo comparativo de suas conseqüências so ciais Podemos ser capazes de calcular aproximadamente os efeitos de medidas particulares dentro da instituição a importância da exis tência de registros para um sistema creditício sólido a importância da desapropriação para o planejamento urbano e outros empreendimen tos sociais etc As próprias instituições fundamentais todavia de vem ser aceitas pelo que parece como fatos culturais Nas diversas culturas as instituições assumem diferentes formas Uma vez molda das por causas que não podemos compreender as instituições são preservadas por uma tradição cultural e sustentadas por uma consci ência jurídica que reflete essa tradição A tradição e este sentimento contudo não são imutáveis mudando com o tempo É tentador su por com a escola histórica que vivem sua própria vida orgânica De fato todavia é mister aceitar que mudam sob a pressão da experiên cia e das necessidades mas de uma maneira que não podemos con trolar As instituições fundamentais mudam conjuntamente com a evolução da comunidade e inclusive podem mudar por ação das revoluções mas se encontram fora do âmbito da política racional Esses fatos explicam o caráter fictício das razões que em diferentes épocas foram apresentadas em apoio das instituições jurídicas funda mentais sob a forma que se desenvolveram no tempo e no espaço Essas supostas razões ostentam claramente o timbre de criações adhoc Têm caráter ideológico isto é são construções teóricas nascidas da necessi dade de justificar uma atitude prática ou um programa de ação Quando faltam os argumentos racionais ou têm eles escassa força diretiva a consciência jurídica se apossa do papel diretor Isto signifi ca que por falta de argumentos em favor de algo distinto lançase Direito e Justiça 429 mão da tradição jurídica e cultural herdada Isto não é exatamente o mesmo que o conservadorismo absoluto Pela evoluçãoda comunida de e pelas alterações na moralidade se faz necessário um ajuste con tínuo do direito em parte condicionado pelos desenvolvimentos téc nicos e em parte pelas mudanças nas concepções da realidade rele vantes para as atitudes morais O debate público pelo menos numa democracia é um processo contínuo através do qual novas impressões novos eventos e novos conhecimentos são absorvidos incessantemente e transformados em opinião pública a qual por sua vez se cristaliza no senso moral geral e na consciência jurídica do momento Tomemos por exemplo o pro blema racial norteamericano Como se forma a opinião pública sobre esse tema Em parte depende das condições de produção a posição do negro nas áreas industriais do norte foi sempre distinta da posição do negro nos Estados agrícolas do sul em parte se desenvolve lenta mente mediante o debate contínuo19 A força que move esse debate é em última análise o esclarecimento dos fatos um melhor conhecimen to da natureza do negro das condições em que vive do papel que desempenha na comunidade norteamericana etc Os fatos de gran de ou pequena importância experimentados reiteradamente fazem sua própria narrativa Popularizamse verdades científicas e estatísti cas Enquanto se encontravam nas forças armadas durante a guerra muitos brancos aprenderam mais acerca das pessoas de cor de pele diferente do que o que haviam aprendido a vida toda O esclarecimen to pode ter que travar uma árdua luta contra as mentiras da propagan da porém a longo prazo a verdade triunfa Ao mesmo tempo os apelos às atitudes latentes em favor da liberdade e igualdade de opor tunidades para todos que constituem uma parte central do credo nor teamericano surtem seus efeitos Desta maneira as concepções fal sas e os preconceitos são lentamente destruídos pois os preconceitos são atitudes condicionadas por concepções falsas A tarefa da política jurídica nesses campos consiste em lograr um suave ajuste do direito às condições técnicas e ideológicas modificadas com a consciência jurídica como estrela polar É mister preservar a con tinuidade na tradição jurídica e tentar ao mesmo tempo satisfazer 19 Isto significa que as idéias não são simplesmente uma superestrutura das condições de produção Marx Possuem também um impulso próprio Cf Gunnar Myrdal An American Diiemma 1944 1032 e segs 430 Alf Ross novas aspirações É claro a configuração mais detalhada da consciência jurídica em regras de direito manejáveis tem que atender a considera ções técnicas fundadas em conhecimentos sociológicos ou em cálculos O respeito à tradição e à consciência jurídica explicam porque o ponto de vista dos advogados é profissionalmente conservador Este ponto de vista se justificava particularmente outrora já que conside rações ideológicas fundadas no direito natural ou em conceitos histó ricos reinavam de forma quase suprema O papel do jurista como homem político jurídico é atuar na medi da do possível como um técnico racional neste papel ele não é nem conservador nem progressista Como outros técnicos simplesmente coloca seu conhecimento e habilidade à disposição de outros em seu caso aqueles que seguram as rédeas do poder político 0 que sempre ensejou e justificou o questionamento da própria atividade jurídica em relação ao poder político Deverá ela inserirse no poder como já ocorreu e tem ocorrido em vários sistemas políticos e formas de governo inclusive nas democracias de fato contemporâneas EUA Alemanha por exemplo e até nas democracias meramente de direito vide Brasil fundindose à atividade política e participando ativamente do poder não há apenas juristas no poder judiciário há inúmeros advogados no legislativo ou deverá ser independente exceto pelo poder judiciário das decisões políticas do poder domínio ideológico como diria Ross limitandose à lídima e precipua busca da justiça e isenção que lhe permitirá a nobre e efetiva postura crítica do governo ao lado da sociedade civil Esta á a indagação fundamental que permanece há muito carente de uma resposta satisfatória por parte da classe jurídica Enquanto não for respondida devidamente a despeito dos brios feridos de certos juristas e da indignação ou indife rença pedante de certos representantes do mundo jurídico os juristas e o direito serão tidos por muitos como meros instrumentos funcionais do poder político ou na expressão pejorativa já notória lacaios do poder IN TJ Bibliografia Esta Bibliografia não constante na obra original de Ross é uma sugestão editorial com obras sobre o tema em geral e não somente dos livros citados ou sugeridos pelo Autor muitos dos quais não constam aqui inclusive em função de sua indisponibilidade AQUINO Tomás de Suma Teoogca EspasaCalpe Espanha 1996 ARISTÓTELES A Política Clássicos Edipro Bauru São Paulo 1995 trad Nestor Silveira Chaves ARISTÓTELES Ética a Nicômacos UnB Brasília 1996 trad Mário da Gama Kury BENTHAM Jeremy Uma Introdução aos Princípios da Morai e da Legislação Os Pensadores Ed Nova Cultural São Paulo 1984 trad Luiz João Baraúna CHAUÍ Marilena S Introdução à História da Filosofia Brasiliense São Paulo vol 1 1995 COHEN F S El Método Funcional en el Derecho AbeledoPerrot Buenos Aires 1962 trad Genaro R Carrió COSSIO C Ciência del Derecho y Sociologia Jurídica Rev de Ia Facultad de Derecho y Cs Sociales Buenos Aires 1960 COSSIO C Teoria Egológica y Teoria Pura Rev Jur Argentina La Ley Buenos Aires 1949 DABIN Jean El Derecho Subjetivo Revista de Derecho Privado Madri 1955 trad Francisco Jovier Osset DEL VECCFIIO Giorgio La Justicia Depalma Buenos Aires 1952 trad Francisco Laplaza DUGUIT Leon Las Transformaciones del Derecho Privado desde el Código de Napoleón Francisco Beltrán Madri 1912 DUGUIT Leon Las Transformaciones del Derecho Publico Francisco Beltrán Madri 1923 trad Adolfo Posada e Ramón Jaen DURKHEIM Émile Da Divisão do Trabalho Social Martins Fontes SP 2a ed 1999 GÉNY F Método de Interpretación y Fuentes del Derecho Positivo Reus Madri 1925 GURVITCH G Sociologia Jurídica Ed Rosário Rosário 1945 trad Ângela Romero Vera HEGEL G Wilhelm Friedrich Fenomenologia do Espírito Vozes SP 1993 HESÍODO A Teogonia Iluminuras São Paulo 1995 trad de Mary de Camargo Neves Lafer Os Trabalhos e os Dias Iluminuras São Paulo 1996 trad Mary de Camargo Neves Lafer HOLMES 0 W La Senda Dei Derecho Perrot Buenos Aires 1959 trad Carlos A Garber HOMERO Odisséia EDUSP São Paulo 1996 trad de Manuel Odorico Mendes Iiíada Melhoramentos 13a ed 1998 trad Gilberto Domingos do Nascimento HUSSERL E Problemas Fundamentaes de Ia Fenomenologia Alianza Editorial KANT Immanuel Doutrina do Direito ícone São Paulo 1993 trad Edson Bini Metafísica de los Costumbres Espasa Calpe 1946 trad Manuel Garcia Morente KELSEN Hans Teoria Geraldo Direito e do Estado Martins Fontes São Paulo Teoria Pura do Direito Martins Fontes São Paulo 6a ed 1998 LOCKE John Ensaio acerca do Entendimento Humano Os Pensadores Ed Nova Cultural São Paulo 1983 trad Anoar Aiex 432 Alf Ross MAINE H B Derecho Antigo Biblioteca Jurídica de Autores Contemporâneos Madri 1873 trad A Guerra MAMAN Jeannette Antonios Fenomenologia Existencial do Direito Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro Edipro BauruSP 2000 MARX Karl e ENGELS Friedrich O Capital edição condensada Clássicos Edipro BauruSP 1998 trad de Gabriel Deville MARX Karl The German Ideology Progress Publishers Moscou 1968 MILL J S La Libertad Fernando Fe Madri 1890 MONTESQUIEU Charles Louis de Secondat Do Espírito das Leis Clássicos Edipro Edipro BauruSP 2000 trad Edson Bini OGDEN C K e RICHARDS I A El Significado del Significado Paidós Buenos Aires 1954 trad Eduardo Prieto OLIVECRONA Karl El Derecho como Hecho Depalma Buenos Aires 1959 trad Jerónimo Cortes Funes PFIILOSTRATOS and EUNAPIOS Lives of the Sophists Harvard University Press The Loeb Ciassical Library Cambridge trad Wilmer Cave Wright PLATÃO A República Clássicos Edipro BauruSP 1994 trad Albertino Pinheiro PLATÃO As Leis Clássicos Edipro BauruSP 1999 trad Edson Bini POPPER K R La SociedadAbierta y SusEnemigos Paidós Buenos Aires 1957 trad Eduardo Loedel RADBRUCH Gustav Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal AbeledoPerrot Buenos Aires 1962 trad Maria Isabel Azaretto de Vázquez ROSS Alf A Textbook of International Law General Part Longmans Londres 1947 Constitutionofthe UnitedNations analysis ofstructure andfunction E Munksgaard Copenha gue 1950 Constitución de Ias Naciones Unidas Madri 1954 trad Atrias Parga De Forenede Nationer Fred og Fremskrídt Copenhague 1963 Directives and Norms Routledge Kegan Paul Londres 1968 Directivesand Norms Humanities Press Nova York 1968 Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis zugeich Prolegomena zu einer Kritik der Rechtswissenschaft Levin 8i Munksgaard Copenhague Feliz Meiner Leipzig 1933 Laerebog i Folkeret E Munksgaard Copenhague 1946 Lehrbuch des Vôlkerrechts W Kohlhammer Stuttgart Colônia 1951 On Guilt Responsibility and Punishment University of Califórnia Press Berkeley 1975 The United Nations peace and progress Bedminster Press Totowa Nova York 1966 Theorie der Rechtsquellen ein Beitrag zur Theorie des positiven Rechts auf Grundlagi dogmenhistorischerUntersuchungen Leipzig F Deuticke Viena 1929 Towards a Realistic Jurisprudence a Criticism of the Dualism in Law Munksgaarc Copenhague 1946 Hacia una Ciência del Derecho Critica del Dualismo en el Derecht AbeledoPerrot Buenos Aires 1961 trad Julio Barboza Varfeor Demokrati Tidens Feorlag Estocolmo 1948 Questce que Ia démocratie Revu du Droit Public et de Ia Science Politigue en France et à lÉtranger Paris 1950 Why Democracyí Harvard University Press Cambridge 1952 j ROUSSEAU JeanJacques Do Contrato Social Clássicos EDIPRO BauruSP 2000 trad Edson BiniJ SAVIGNY Friedrich Carl von Sistema del Derecho Romano Actual F Góngora y Cia Madri 1878 VICO Gianbattista De 1antique sagesse de L Italie Flammarion Paris trad Jules Michelet WITTGENSTEIN Ludwig Investigações Filosóficas Os Pensadores Ed Nova Cultural São Paulo 1979 trad José Carlos Bruni n How To Save Your Planet In 12 Easy Steps Slide 1 Introdução à Ideia de Justiça A justiça é apresentada no âmbito da filosofia do direito natural como o princípio supremo que guia a relação entre normas jurídicas e valores morais Segundo Alf Ross a justiça representa um ideal de equilíbrio harmonia e correção refletido nas leis positivas ainda que nem sempre de forma perfeita página 314 Além disso é destacada como a virtude maior transcendendo a divisão entre direito e moral com raízes profundas na ética universal Um exemplo disso está no Sermão da Montanha que afirma Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão satisfeitos página 314 Ross também relaciona a justiça ao acesso igualitário a direitos e instrumentos jurídicos Sem acesso efetivo à justiça o ideal de igualdade se torna apenas uma abstração perdendo sua eficácia prática página 321 Slide 2 Justiça e Igualdade no Acesso O princípio da igualdade é essencial para a ideia de justiça Conforme descrito por Ross a igualdade não exige um tratamento idêntico para todos mas sim o reconhecimento das particularidades de cada indivíduo ou grupo A justiça requer que iguais sejam tratados igualmente e que diferenças relevantes sejam levadas em consideração como idade estado civil ou condições sociais página 315 Ross aponta que as vantagens e obrigações devem ser distribuídas de forma equitativa utilizando critérios objetivos para garantir que nenhum grupo seja arbitrariamente privilegiado ou prejudicado página 315 No que diz respeito ao acesso à justiça garantir igualdade implica criar condições para que todas as pessoas possam usufruir plenamente de seus direitos independentemente de sua situação social ou econômica Políticas públicas como defensorias e assistência jurídica gratuita desempenham um papel crucial nesse processo página 321 Slide 3 Modelos de Justiça e Inclusão Ross apresenta diferentes princípios de justiça que influenciam a forma como os direitos são reconhecidos e distribuídos Um exemplo é o princípio a cada um segundo seu mérito que valoriza a contribuição individual recompensando esforços ou méritos morais Já o princípio a cada um segundo suas necessidades prioriza os mais vulneráveis sendo uma base essencial para políticas sociais inclusivas páginas 316317 Outros modelos incluem a cada um segundo sua capacidade aplicado à distribuição de encargos como impostos progressivos Essas diferentes abordagens mostram que a justiça deve considerar o contexto social e econômico para ser efetiva página 317 Esses princípios se refletem no acesso à justiça quando são implementadas políticas que promovem a inclusão de grupos vulneráveis Exemplos incluem a atuação da Defensoria Pública e a criação de centros de mediação gratuitos que garantem suporte jurídico a quem mais precisa página 317 Slide 4 Justiça como Previsibilidade e Segurança Um aspecto fundamental da justiça é a previsibilidade que Alf Ross associa à aplicação de normas gerais de forma consistente e racional Essa abordagem evita decisões arbitrárias e fortalece a segurança jurídica página 326 A previsibilidade das normas jurídicas é essencial para que as pessoas possam compreender o sistema de justiça e planejar suas ações de acordo com regras claras e compreensíveis Isso cria um ambiente de estabilidade e confiança social páginas 327328 Ross também destaca que a previsibilidade é um dos pilares da democracia pois assegura que decisões judiciais sejam fundamentadas em regras objetivas e transparentes promovendo um sistema acessível e confiável página 328 Slide 5 Justiça Conflitos e Acesso Segundo Ross a justiça é frequentemente utilizada como um ideal universal para justificar interesses em disputa Contudo a ideia de justiça nem sempre é consensual podendo ser utilizada tanto para emancipação quanto para opressão página 321 O autor ressalta que a justiça exige ponderação de interesses evitando arbitrariedades e promovendo decisões baseadas em critérios objetivos Isso é fundamental para impedir que o direito seja instrumentalizado por grupos privilegiados página 321 No contexto do acesso à justiça é essencial criar mecanismos que conciliem interesses divergentes e ofereçam soluções equitativas Métodos alternativos como mediação e arbitragem são destacados como formas práticas de aliviar a sobrecarga dos tribunais e ampliar o acesso à justiça página 327 Slide 6 Conclusão e Reflexões A ideia de justiça segundo Ross deve orientar a construção de sistemas jurídicos que promovam a inclusão de todas as pessoas Ele reforça que o direito deve equilibrar justiça formal e equidade concreta garantindo que cada indivíduo tenha acesso pleno a seus direitos páginas 327328 Apesar disso Ross aponta que ainda existem desafios significativos para alcançar o acesso universal à justiça especialmente em contextos de desigualdade estrutural É necessário avançar em políticas públicas inclusivas e fortalecer instituições que promovam um sistema jurídico acessível e imparcial páginas 329330 Conforme descrito a justiça deve ser mais do que um ideal teórico ela precisa ser concretizada em decisões normas e práticas que garantam proteção efetiva aos direitos de todos os cidadãos página 330 Slide 1 Introdução à Ideia de Justiça Definição de Justiça no Direito Natural A justiça ocupa um papel central na filosofia do direito natural sendo vista como o princípio supremo que orienta a relação entre normas jurídicas e valores morais Representa um ideal de equilíbrio harmonia e correção refletido nas leis positivas ainda que nem sempre de forma clara ou perfeita A justiça é entendida como a virtude maior transcendendo a divisão entre direito e moral com raízes profundas na ética universal Relação com o Acesso à Justiça A ideia de justiça está intrinsecamente ligada ao acesso igualitário a instrumentos e direitos que garantam proteção jurídica para todos Sem acesso efetivo à justiça o ideal de igualdade perde significado prático A justiça deve ser um princípio que se manifesta de forma concreta no dia a dia garantindo que todos possam buscar a resolução de conflitos com igualdade de condições Slide 2 Justiça e Igualdade no Acesso Princípio da Igualdade O princípio da igualdade essencial à ideia de justiça exige que todos sejam tratados com respeito às suas particularidades Isso significa que a igualdade não é apenas formal mas também material reconhecendo e adaptando as normas às diferentes necessidades e condições das pessoas A justiça requer que as vantagens e obrigações sejam distribuídas de maneira equitativa levando em conta critérios objetivos e relevantes Por exemplo um tratamento jurídico diferenciado pode ser necessário para equilibrar desigualdades sociais preexistentes Impactos no Acesso à Justiça Garantir igualdade no acesso à justiça significa criar condições para que todas as pessoas independentemente de sua condição social ou econômica possam usufruir plenamente de seus direitos Políticas públicas como a criação de defensorias públicas e serviços jurídicos gratuitos são fundamentais para combater barreiras estruturais que limitam o acesso de populações vulneráveis ao sistema de justiça Slide 3 Modelos de Justiça e Inclusão Formulações de Justiça Diferentes princípios de justiça influenciam a maneira como os direitos são reconhecidos e distribuídos A cada um segundo seu mérito Este princípio valoriza a contribuição pessoal recompensando aqueles que se destacam por esforço ou mérito moral frequentemente aplicado no reconhecimento profissional ou acadêmico A cada um segundo suas necessidades Fundamental em teorias como o comunismo este princípio prioriza a alocação de recursos para os mais necessitados destacando a solidariedade como base da justiça Aplicações no Acesso à Justiça O princípio das necessidades é central para políticas sociais que garantem o acesso universal à justiça permitindo que pessoas em situação de vulnerabilidade tenham os mesmos direitos que outras mesmo com recursos limitados Exemplos práticos incluem a atuação da Defensoria Pública e a criação de centros de mediação gratuitos que promovem a inclusão de quem mais precisa de assistência jurídica Slide 4 Justiça como Previsibilidade e Segurança Racionalidade e Regras Gerais A justiça requer a aplicação de normas gerais com previsibilidade e regularidade para evitar decisões arbitrárias ou baseadas em critérios subjetivos Isso fortalece a segurança jurídica que é essencial para que as pessoas compreendam e confiem no sistema de justiça Essa aplicação objetiva permite que os indivíduos planejem suas ações com base em regras claras e compreensíveis aumentando a confiança no poder judiciário Segurança Jurídica e Acesso à Justiça O acesso à justiça está intimamente relacionado à previsibilidade das decisões judiciais Um sistema jurídico caótico ou arbitrário torna impossível para os cidadãos compreenderem e acessarem seus direitos A previsibilidade também é um pilar da democracia assegurando que decisões judiciais sejam fundamentadas em regras claras e transparentes fortalecendo a confiança social na justiça Slide 5 Justiça Conflitos e Acesso Conflitos e Ideologia da Justiça A justiça é frequentemente utilizada como um ideal universal para justificar interesses em disputa No entanto a ideia de justiça nem sempre é consensual e pode servir a interesses conflitantes resultando em debates ideológicos e sociais Historicamente muitos conflitos políticos sociais e econômicos foram justificados em nome da justiça evidenciando como ela pode ser utilizada tanto como ferramenta de emancipação quanto de opressão Relevância para o Acesso à Justiça A justiça deve ser um instrumento de mediação de conflitos garantindo que todas as partes envolvidas tenham voz e condições igualitárias para apresentar seus argumentos Isso se traduz na promoção de métodos alternativos de resolução de conflitos como mediação e arbitragem que oferecem caminhos mais rápidos e acessíveis para a solução de disputas aliviando a sobrecarga dos tribunais Slide 6 Justiça e Acesso Universal A ideia de justiça deve orientar a construção de sistemas jurídicos que assegurem a inclusão de todas as pessoas independentemente de sua origem condição social ou econômica O acesso à justiça é um dos pilares de uma sociedade democrática e inclusiva garantindo que direitos sejam efetivamente protegidos e que injustiças sejam corrigidas Desafios Atuais As desigualdades estruturais continuam a limitar o acesso de muitas pessoas à justiça especialmente em países com grande desigualdade social O futuro da justiça depende do fortalecimento de instituições que promovam o acesso universal da educação em direitos e da ampliação de políticas públicas que combatam as barreiras sociais e econômicas que ainda persistem
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Texto de pré-visualização
Esta edição em línguaportuguesa de Direito e Justiça vem preencher uma grande lacuna em nosso País na linha da interpretação realista do direito em sua vertente de caráter empirista No prefácio à edição inglesa de Direito e Justiça Ross afirma que a idéia principal do livro é desenvolver os princípios empiristas no campo jurídico Desta idéia surge a exigência metodológica de se seguir no estudo do direito aos tradicionais padrões de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empírica Alaôr Caffé Alves Direito e justiça ISBN 8572832629 00000044840 Alf Ross Direito e Justiça Direito e Justiça Belinda Alf Ross PHD Uppsala JURD Copenhague JURD Oslo Professor de Direito na Universidade de Copenhague Tradução e notas de Edson Bini Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP Prefácio do Prof A laô r C a ffé A lves Professor Associado da Faculdade de Direito da USP Revisão Técnica do Prof Alysson Leandro M ascaro Faculdade de Direito da USP Direito e ED1PR0 2000 Direito e Justiça Artktosl la Edição 3000 Lot Vieira Coordenador EdiôrjtVinicius Lot Vieira Editor Alexandre Rudyard Benevides Projeto Gráfico e Capa Maria do Carmo Fortuna Tradução e Notas Edson Bini Revisão Técnica Prof Alysson Leandro Mascaro Revisão Edson Bini e Ricardo Virando N de Catálogo 1268 D a d o s d e C a t a lo g a ç ã o n a F o n te C IP I n te rn a c io n a l C â m a ra B ra s ile ira d o L iv ro S P B ra s il Ross Alf Direito e Justiça 1 Alf Ross tradução Edson Bini revisão técnica Alysson Leandro Mascaro Bauru SP EDIPRO 2000 Título original On law and justice Bibliografia ISBN 8572832629 1 Direito Filosofia 2 Justiça I Título 994402 CDU34011 ín d ic e s p a ra c a t á lo g o s is te m á tic o 1 Direito e justiça Filosofia 34011 EDIPRO E d iç õ e s P ro f is s io n a is L td a Rua Conde de São Joaquim 332 Liberdade CEP 01320010 São Paulo SP Fone 011 31074788 FAX 011 31070061 Email ediprouolcombr Atendemos pelo Reembolso Postal Apresentação à Edição Brasileira 9 Nota do Tradutor 15 Nota à Tradução em Língua Portuguesa 17 Prefácio à Edição Inglesa19 Prefácio á Edição Espanhola 21 Capítulo I Problemas da Filosofia do Direito 1 Terminologia e Tradição 23 11 0 Problema do Conceito ou Natureza do Direito 24 12 0 Problema do Propósito ou Idéia do Direito 25 130 Problema da Interação do Direito e a Sociedade 26 2 A Natureza do Direito 28 3 Análise Preliminar do Conceito de Direito Vigente 34 4 Os Ramos do Estudo do Direito 42 41 Ciência do Direito 45 42 Sociologia do Direito 46 5 Em lugar de Filosofia do Direito Problemas Jusfilosóficos 48 6 Discussão 51 Capítulo II 0 Conceito de Direito Vigente 7 0 Conteúdo do Ordenamento Jurídico 53 8 A Vigência do Ordenamento Jurídico 59 9 Verificação de Proposições Jurídicas Concernentes a Normas de Conduta 63 10 Verificação de Proposições Jurídicas Concernentes a Normas de Competência 76 11 Direito Força Validade 77 12 Direito Moral e outros Fenômenos Normativos 84 13 Discussão Idealismo e Realismo na Teoria Jurídica 91 14 Discussão Realismo Psicológico Realismo Comportamentista e sua Síntese 97 6 Alf Ross Capítulo III As Fontes do Direito 15 Doutrina e Teoria das Fontes do Direito 101 16 Legislação 104 17 Precedentes Jurisprudência 111 18 Costume 118 19 A Tradição de Cultura Razão 124 20 A Relação das Diversas Fontes com o Direito Vigente 128 21 A Doutrina das Fontes do Direito 130 22 Discussão 132 Capítulo IV O Método Jurídico Interpretação 23 Doutrina e Teoria do Método 135 24 O Fundamento Semântico 139 25 Problemas de Interpretação Sintáticos 151 26 Problemas de Interpretação Lógicos 157 261 Inconsistência 158 262 Redundância 162 263 Pressuposições 162 27 Problemas de Interpretação Semânticos 164 28 Interpretação e Administração da Justiça 165 29 Os Fatores Pragmáticos na Interpretação 174 30 Os Fatores Pragmáticos e a Técnica de Argumentação 181 31 Discussão185 Capítulo V As Modalidades Jurídicas 32 Terminologia da Linguagem Jurídica 189 33 Uma Terminologia Melhorada 192 331 Dever e Faculdade 193 332 Liberdade e NãoFaculdade 195 333 Sujeição e Potestade 198 334 Imunidade e Impotência 200 34 Discussão 200 Capítulo VI O Conceito de Direito Subjetivo 35 O Conceito de Direito Subjetivo como uma Ferramenta Técnica de Apresen tação 203 36 Aplicação do Conceito de Direito Subjetivo a Situações Típicas 209 37 Aplicação do Conceito de Direito Subjetivo a Situações Atípicas 212 38 A Estrutura de um Direito Subjetivo 217 39 Discussão 221 Direito e Justiça 7 Capítulo VII Direitosln Rem e Direitos In Personam 40 Doutrina e Problemas 225 41 Direito de Disposição e Direito de Pretensão ou Faculdade 229 42 Proteção In Rem e Proteção In Personam 233 43 A Conexão entre Conteúdo e Proteção 234 Capítulo VIII As Divisões Fundamentais do Direito 44 Direito Público e Direito Privado 239 45 O Direito Substantivo e o Direito Adjetivo 245 46 Discussão 249 Capítulo IX Os Fatos Operativos 47 Terminologia e Distinções 253 48 A Disposição Privada 256 49 Promessa Encargo e Autorização 262 Capítulo X Algumas Características da História do Direito Natural 50 Crenças Populares Gregas Homero e Hesíodo 267 51 Os Sofistas 273 52 Aristóteles 278 53 Os Estóicos e o Direito Romano 281 54 O Direito Natural dos Escolásticos Tomás de Aquino 283 55 Racionalismo 286 56 Direito Natural D i s f a rç a d o 291 57 O Renascimento do Direito Natural 296 Capítulo XI Análise e Crítica da Filosofia do Direito Natural 58 Pontos de Vista Epistem ológicos301 59 Pontos de Vista Psicológicos 306 60 Pontos de Vista Políticos 307 61 Pontos de Vista da Teoria Jurídica 309 Capítulo XII A Idéia de Justiça i 62 A Justiça e o Direito Natural 313 63 Análise da Idéia de Justiça 314 64 Alguns Exemplos 321 65 A Idéia de Justiça e o Direito Positivo 326 66 A Exigência de Igualdade no Direito Vigente 331 8 Alf Ross Capítulo XIII O UtiUtarismo e a Quimera do BemEstar Social 67 A Relação entre o Utilítarismo e o Direito Natural 335 68 O Princípio da Maximização e suas Discordâncias com nossa Escolha Efetiva 338 69 A Quimera do BemEstar Social 341 Capítuio XIV Ciência e Política 70 Conhecimento e Ação 343 71 A Interação Mútua entre Crença e Atitude 347 72 Desacordos Práticos Argumento e Persuasão 352 73 Ciência e Produção Política 362 74 Discussão 373 Capítulo XV O Domínio e a Tarefa da Política Jurídica 75 Delimitação entre a Política Jurídica e as outras Políticas 375 76 Política Jurídica de Lege Ferenda e de Sententia Ferenda 380 77 O Fundamento Teórico da Política Jurídica 380 78 A Tarefa da Política Jurídica Enunciação das Premissas 382 79 A Tarefa da Política Jurídica Formulação de Conclusões 385 Capitulo XVI Possibilidade da Política Jurídica Entre o Destino e a Utopia 80 Os Profetas do Destino Negam a Possibilidade da Política Jurídica 389 81 A Escola Histórica 394 82 O Historicismo Econômico de Marx 397 83 Limitações da Política Jurídica e Estudo das Tendências 402 Capítulo XVII O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica 84 Atitudes Baseadas em Necessidades Interesses 409 841 Interesses Individuais e Coletivos 411 842 Interesses Privados e Públicos 415 85 Atitudes Morais 416 86 O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica Três Postulados Fun damentais 421 87 O Papel da Consciência Jurídica quando Faltam Considerações Práticas 426 Bibliografia 431 Apresentação à Edição Brasileira Aí tem o leitor em mãos uma obra que já granjeou grande prestígio no campo da jusfilosofia mundial Finalmente foi suprida uma carência sentida por todos nós da comunidade da língua portuguesa com a tradução desta principal obra do dinamar quês Alf Ross 18991979 para o nosso vernáculo Junto com os mais destacados trabalhos dos juspositivistas Kelsen Hart e Bobbio já traduzidos para o português esta obra de Alf Ross completa o rol dos grandes nomes do positivismo jurídico que merecem ser estudados e analisados pela nossa comunidade científica do direito Entre os grandes jusfilósofos escandinavos Alf Ross da chamada escola de Copen hague foi um dos mais expressivos representantes do realismo escandinavo den tre os quais avultam Hãgerstrõm Lundstedt Olivecrona escola de Uppsala Jorgensen Naess Ofstad Brusiin etc Esse realismo é muito variado quanto às linhas de conteúdo mas podese divisar uma identidade básica no que respeita às preocupações antimetafísicas de seus próceres Alf Ross recebe significativa influ ência do sueco Axel Hãgerstrõm 18681939 quem lhe fez ver o vazio das especu lações metafísicas no campo do direito e da moral bem como de Hans Kelsen 1881 1973 a quem agradece por têlo iniciado na filosofia do direito De Hãgerstrõm fundador da escola de Uppsala Ross herdou um conceito mate rialista da realidade e as tendências de crítica filosófica da linguagem na esteira do movimento neoempirista que antes da segunda Grande Guerra grassava na Europa por influência do Círculo de Viena e da escola de Cambridge No âmbito da filosofia prática em paralelo com as colocações sugeridas por Carnap Ayer e Stevenson e na mesma senda aberta por Hãgerstrõm o nosso autor sustentará que os valores são subjetivos expressões de sentimentos e desejos e não vinculados a proprieda des reais dos objetos Por isso não cabe predicarlhes a verdade ou a falsidade Ainda por influência do fundador da escola de Uppsala Ross critica a noção kelseniana de validez jurídica e defenderá uma reconstrução realista desse e de outros conceitos do direito objetivando um conhecimento empírico dos mesmos 10 Alf Ross De Kelsen Ross apesar das críticas à teoria pura do direito assimila importantes elementos de sua teoria como por exemplo a distinção entre normas e proposições jurídicas da ciência jurídica a coerção física como nota de identificação do direito a negação de conhecimento objetivo sobre as questões morais a importância das nor mas para caracterizar o direito e os juizes como destinatários das normas jurídicas Da corrente do neopositivismo ou neoempirismo lógico Ross aceita os critérios de abordagem empírica do conhecimento e propugna explicitamente pela adoção do princípio de verificação como base medular de sua construção científica do direito Segundo essa posição o nosso autor defende que a verdade e a falsidade de uma proposição jurídicocientífica dependem de sua verificação e contrastação na expe riência sensível Dessa corrente também acolhe a concepção da filosofia como mé todo de análise lógicolinguística da ciência negando à jusfilosofia pretensões ontologizantes e afirmando o emotivismo ético com forte rejeição às correntes de inspiração metafísica 0 professor dinamarquês segue igualmente as orientações analíticas do segundo Wittgenstein das Investigações Filosóficas florescentes em Oxford a partir dos anos 50 É facilmente notada esta influência em outra obra de Ross Lógica das Normas Directives and Norms de 1968 especialmente do pro fessor de filosofia moral daquela Universidade Richard Mervyn Hare Vêse pelo exposto que Ross é animado por convicções epistemológicas de clara filiação neoempirista consignandoque o verdadeiro caminho científico para a análise e conhecimento do direito deve ser percorrido pela firme compreensão a respeito das classes de proposições válidas cientificamente Com efeito na opinião de Ross as proposições são distinguíveis em empíricas e apriorísticas As proposi ções apriorísticas são verdadeiras tão só em virtude de sua forma e por isso são tautológicas ou analíticas pois nada dizem a respeito do mundo São as proposições das Matemáticas e da Lógica Em razão da forma estas proposições serão falsas se forem contraditórias Isto se obtém sem o apelo à experiência apenas com a força do pensamento por si mesmo segundo sua estrutura lógica De modo diverso ainda seguindo os cânones do neoempirismo lógico as proposições empíricas só possuem valor enquanto possam refletir a realidade dos fatos devendo portanto ser verificadas por meio da experiência Fora dessas duas classes de proposições de âmbito cientí fico restam enunciados carentes de sentido uma vez que não podem ser submeti dos aos princípios da lógica e da verificação empírica Neste último caso temos as proposições metafísicas que seguindo o conselho de Hume merecem ser jogadas na fogueira pois só podem conter enganos e sofismas 0 professor Ross ao perfazer o caminho científico do direito seguirá esse esque ma proposicional de forma incondicional pois somente assim a ciência do direito que mereça ser desse modo considerada isto é como uma verdadeira ciência pode estabelecer com segurança qual é o direito de um determinado país com relação a certos problemas de modo objetivo com base em fatos observáveis e segundo o método de verificação empírica Direito e Justiça 11 Esta primeira edição em língua portuguesa de Direito e Justiça vem preencher uma grande lacuna em nosso País na linha da interpretação realista do direito em sua vertente de caráter empirista No prefácio à edição inglesa de Direito e Justiça Ross afirma que a idéia principal do livro é desenvolver os princípios empiristas no campo jurídico Desta idéia surge a exigência metodológica de se seguir no estudo do direito aos tradicionais padrões de observação e verificação que animam toda a moderna ciência empírica Esta orientação já estava solerte no pensamento de Ross por ocasião da publicação em 1946 de sua conhecida obra Para uma Ciência Realis ta do Direito Crítica do Dualismo no Direito na qual parte de uma profunda dicotomia entre concepções jurídicas realistas e idealistas Os idealistas segundo Ross propugnam pela concepção de que o direito pertence principalmente ao mundo das idéias onde a idéia de validez é captada imediatamente pela razão desprezando o mundo dos fenômenos sensíveis no tempo e no espaço como algo básico na formação essencial do direito Tais idealistas no pensamento do professor dinamarquês dividemse em duas correntes A dos idealistas axiológicos que entendem a idéia de justiça como elemento constituinte substancial do direito outorgandolhe força obrigatória ou validez bem como um ideal para apreciar e justifi car o direito positivo e a dos idealistas formais cujo paradigma é Kelsen que afasta na compreensão científica do direito toda questão ética ou política poder do direito po sitivo para considerálo vigente no mundo dos fatos Porém a descrição básica do direito não aponta para a ordem dos fenômenos materiais relações sociais poder político ou para a dimensão axiológica valores éticos e sim para algo ideal compreen dido como validez que resulta do encadeamento regressivo de dever ser até a norma fundamental Assim para esta corrente idealista a existência de uma norma jurídica eqüivale à captação imediata de sua validez pela razão conforme uma categoria for mal de pensamento jurídico sem nenhuma exigência de conteúdo Em face dessas posições Ross procura superar a dicotomia entre validade e realidade ao descartar a idéia de uma validez específica e racionalmente subsistente seja como idéia material axiológica justiça seja como categoria formal de dever ser validade Eliminando qualquer apriorismo racionalista ou axiológico o autor consi dera o direito na interpretação de Enrico Pattaro como um conjunto de fatos sociais reduzido a um único mundo o da realidade empírica Segundo Pattaro o direito e sua validez em Ross são estudados e compreendidos em termos de efetividade social No âmbito do realismo o professor italiano distingue um realismo antinormativista e outro normativista localizando neste último o pensamento de Ross Conforme a metodologia de Ross na ciência jurídica devese sustentar que o direito é um fato social cuja existência e descrição somente podem ser equacionadas em termos pu ramente fáticos sensíveis e empíricos sem necessidade de se recorrer a princípios apriorísticos morais racionais ou ideológicos Ao tentar circunscrever o direito Ross faz um grande esforço para subtrairse de qualquer fórmula que possa induzilo ao pensamento ontológico de índole metafísica 12 Alf Ross Descartando o pensamento metafísico o professor dinamarquês combate os inten tos para se descobrir no mundo da realidade uma essência ou natureza específica do direito 0 direito é uma palavra que não designa uma natureza ontológica um direito em si mas é utilizada como instrumento semântico para descrever sistemas ou ordens normativas nacionais desenvolvidas que se apresentam empiricamente à nossa investigação científica Rejeitando as definições ontológicometafísicas e as definições persuasivas ou emotivas Ross considera que a experiência jurídica é indicada por definições que apenas servem para assinalar certos ordenamentos normativos nacionais Como bom empirista não procura realidades essenciais ou substanciais no mundo dos fatos jurídicos busca apenas referências que possam submeterse ao tratamento empíricocientífico do direito Nessa linha o nosso autor diz que as regras de direito têm que se referir a ações definidas e realizadas por pessoas definidas Porém que ações e que pessoas são estas A resposta rossiniana é os juizes são os destinatários das normas e o objeto delas é o exercício da força Nesta ordem verificase aqui uma forte influência da teoria pura de Kelsen 0 direito é uma ordem normativa que estabelece as condições do exercício da força e determina quem deve exercêla Nas palavras de Ross um ordenamento jurídico nacional é o conjunto de regras para o estabelecimento e fun cionamento do aparato de força do Estado Neste sentido são demarcadas as ca racterísticas que distinguem o fenômeno jurídico como ocorrência normativa espe cífica dos demais fenômenos normativos moralidade religião trato social conven ções usos regras políticas etc A ordem jurídica estabelece através da legisla ção não só as normas de conduta pelas quais se prescrevem as condições para aplicação da força física sanções jurídicas como também as normas de competên cia dirigidas a instituir um aparato de autoridades públicas tribunais e órgãos execu tivos com a função de aplicar as normas de conduta objetivando o exercício legiti mado da força Vêse assim que o elemento coercitivo e o elemento institucional perfazem as notas específicas de uma ordem jurídica nacional De grande significação para a teoria jurídica de Ross é também a questão da vigência jurídica Afirmar a vigência de uma norma de direito implica dois elementos um referente à efetividade real da norma estabelecida pela observação externa e o outro referente ao modo como a norma é vivida internamente enquanto motivadora da conduta sentida como socialmente obrigatória Nesse sentido vigência significa que dentro de uma comunidade determinada as normas recebem adesão efetiva porque os julgadores se sentem socialmente obrigados pelas diretivas nelas conti das e atuam segundo as mesmas decidindo por conseqüência As normas jurídicas enquanto vigentes são conteúdos de caráter diretivo ideais e abstratos que funcio nam como esquemas racionais de interpretação ao permitirem compreender os com portamentos jurídicos e dentro de certos limites predizer o curso das decisões dos tribunais Há uma correspondência mútua entre fenômenos jurídicos direito em ação e normas jurídicas esquemas de interpretação 0 direito vigente significa que suas Direito e Justiça 13 normas são efetivamente obedecidas singularmente no âmbito dos tribunais preci samente porque elas são vividas como socialmente obrigatórias pelos destinatários juizes 0 direito em ação fenômenos jurídicos consiste justamente na aplicação das normas pelos tribunais cujo comportamento é entendido como um todo coeren te de significado e motivação na utilização daqueles esquemas de interpretação A vigência das normas jurídicas depende de que seus destinatários juizes ajustem suas condutas àquelas normas e que as experimentem como socialmente obrigató rias Em resumo a vigência jurídica exige um duplo requisito a realidade social refe rente à conduta dos juizes elemento social exercendo legitimamente a força física objeto das normas jurídicas e a convicção dos juizes elemento psicológico de que aquelas normas são socialmente obrigatórias Por essa razão Ross descarta o idealismo jurídico que se funda na distinção do mundo dos fatos da conduta das relações sociais e o mundo da validez racional do direito propondo uma teoria jurídica de caráter realista na medida em que vê no direito um fenômeno social determinado pela aplicação feita pelos tribunais A vigên cia de uma norma jurídica significa que seu conteúdo ideal é ativo na vida jurídica da comunidade como direito em ação Enquanto na teoria pura de Kelsen perguntase pela validade da norma cuja resposta se obtém por remissão à norma superior no pensamento de Ross a pergunta é pela vigência que se obtém por remissão ao comportamento de seus destinatários com o sentimento de sua obrigatoriedade social Nas palavras de Ross ao fazer da validade uma relação internormativa a validade de uma norma deriva da validade de outra Kelsen se impediu desde o começo de lidar com o cerne do problema da vigência do direito a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade social Ao defender uma noção psicosociológica empíricofática da vigência jurídica Ross atende ao seu propósito empirista de buscar o direito na realidade dos fatos possibilitandolhe o conhecimento científico Entretanto a sua posição é intermediá ria entre duas classes de realismo A sua opção é uma tentativa de superar a alterna tiva entre o realismo psicológico da escola de Uppsala Hãgerstrõm Lundstedt Olivecrona e o realismo comportamentista americano Holmes Uewellyn etc 0 realismo psicológico considera que a regra jurídica é assim qualificada porque é acei ta pela consciência jurídica popular que determina também por conseqüência as reações dos juizes sendo portanto derivada e secundária a sua aplicação pelos tribu nais 0 direito nesta hipótese é aplicado porque é vigente segundo critérios psico lógicos Ross objeta que a consciência jurídica neste caso é um conceito perten cente à psicologia individual ficando o direito reduzido ao âmbito individual das opini ões subjetivas emparelhado com o plano moral bloqueando por esse modo o en tendimento do direito como uma ordem nacional enquanto fenômeno intersubjetivo 0 realismo comportamentista sociológico por outro lado converte a realidade do direito em fatos sociais compreendidos nas ações comportamentos dos tribu nais Nas palavras de Holmes o direito são as profecias do que os tribunais farão de 14 Alt Ross fato Segundo essa corrente do realismo sociológico uma norma jurídica está vi gente se existem fundamentos suficientes para supor que será aceita pelos tribunais como base de suas decisões Nesse sentido a questão de se as regras de direito são ou não compatíveis com a consciência jurídica dominante é considerada como algo derivado ou secundário 0 direito nesta hipótese comportamentista é vigente porque é aplicado A principal objeção ao comportamentismo jurídico sustentada por Ross é a de que não é possível fazer uma interpretação puramente comportamental do conceito de vigência porque é impossível predizer a conduta do juiz por meio de uma observação puramente externa do costume O direito não é simplesmente uma ordem familiar ou habitual Essas duas vertentes teóricas do realismo jurídico são sintetizadas no pensa mento de Ross perfazendo o realismo psicosociológico Segundo o professor dina marquês a sua opinião é comportamentista na medida em que visa a descobrir consistência e previsibilidade no comportamento verbal externamente observado do juiz e é psicológica na medida em que a aludida consistência constitui um todo coerente de significado e motivação somente possível com base na hipótese de que em sua vida espiritual o juiz é governado e motivado por uma ideologia normativa cujo conteúdo nós conhecemos Por isso a vigência jurídica no pensamento de Ross é o resultado do encontro do fator comportamental integrante da conduta dos tribunais ao exercerem a força contida nas regras de direito e do fator psicológico integrante do sentimento de obrigatoriedade social que acompanha o referido com portamento judicial Aí estão pois as linhas básicas do pensamento de Alf Ross cuja obra Direito e Justiça agora tivemos o prazer de prefaciar nesta primeira edição em português Felicitamos a Edipro por esta iniciativa editorial que será no limiar deste século XXI certamente de grande utilidade e valia para os estudiosos do direito em todos os níveis da vida acadêmica e profissional de nosso País São Paulo janeiro de 2000 Alaôr Caffé Alves Professor Associado da Faculdade de Direito da USP Nota do Tradutor A edição mais conhecida de Direito e Justiça não é a original a dinamarquesa de 1953 Om Ret og RetfoerdighedJ mas sim a tradução inglesa de Margaret Dutton fOn Law and Justicej publicada em 1958 por Stevens Sons Limited Londres logo publicada no ano seguinte pela University of Califórnia Press Berkeley A presente tradução para o português é baseada na tradução inglesa mas tivemos o cuidado de pesquisar expressões e os principais conceitos emitidos por Ross com o original Alguns exemplos filosofia do direito retsfilosofij inglês jurisprudence ciência do direito tretsvidenskab inglês doctrinal study of the law Independentemente destas naturais diferenças idiomáticas houve casos em que discordamos conceitualmente da tradução digase de passagem excelente de Dutton do que é exemplo marcante o conceito gaeldende ret que aparece nume rosas vezes no texto traduzido por valid law e que preferimos traduzir na literalidade por direito vigente A despeito de nossas reservas fomos fiéis a certas adjetivações de Ross na terminologia filosófica como metafísicoreligioso filosofia metafísica necessidade fatal e outras impropriedades perpetradas por seu zelo de adepto do empirismo No mais solicitamos de hábito a complacência do leitor para nossas falhas e sua manifestação crítica para que possamos melhorar sempre Somos gratos mais um vez ao Departamento de Produção da Edipro e ao editor Alexandre Rudyard Benevides pela técnica e competência Finalmente agradecemos ao Prof Alaôr Caffé Alves pela preciosa apresentação que faz a esta obra a Vinicius Lot Vieira pela oportuna sugestão editorial e a Dan Dixon da University of Califórnia Press que com simpatia e profissionalismo ímpar nos recepcionou e remeteu uma cópia da tradução inglesa de seu arquivo particular já que praticamente não há mais exemplares riisnnníveis O n la w a n H Instina Traços Biográficos do Autor AlfNiels Christian Ross nasceu em 1899 em Copenhague Dinamarca Formouse em direito e sua tese de doutorado Virkelighed og gyldighed i Retslaeren en kritik af den teoretiske retsvidenskabs grundbegreber Uma crítica aos fundamentos teóricos da ciência do direito é de 1934 Começou a lecionarem 1935 Foi PHD em Uppsala JURD em Oslo e JURD em Copenhague aposentando se nesta última Universidade como professor de direito em 1974 Faleceu em 17 de agosto de 1979 Em 11 e 12 de junho de 1999 comemorouse na Dinamarca o centenário do nascimento de Alf Ross na Conferência Internacional sobre Filosofia do Direito 16 Alf Ross 0 tradutor Bauru janeiro de 2000 Nota à Tradução em Língua Portuguesa A empreitada da publicação pela primeira vez em língua portuguesa da obra de Alf Ross Direito e Justiça é sem dúvida louvável e ao mesmo tempo complexa Originalmente escrita em dinamarquês mas sendo a sua principal versão a de língua inglesa a tradução desta obra enfrenta os problemas lingüísticos próprios de um mundo jurídico e filosófico diferente do nosso notadamente por seus sistemas de common law e suas características empiristas de tal modo que é impossível obter se na comparação de três línguas a dinamarquesa a inglesa e a portuguesa uma paridade perfeita de idéias que as línguas não podem oferecer Esta obra de Alf Ross muito estudada nos meios acadêmicos e jurídicos brasilei ros já de algum modo foi incorporada às nossas idéias principalmente naquele ramo denominado de teoria geral do direito ou então da sempre discutida ciência do direito A tradução mais próxima de nossa língua é a castelhana feita pelo conhecido mestre argentino Genaro Carrió Por conta disso podese dizer alguns termos de Alf Ross já se encontram sem tradução arraigados em nosso meio intelectual jurídico brasileiro e creio também português como a palavra validez que sem tradução mesmo do espanhol os nossos alunos incorporaram ao seu vocabulário com tanta facilidade quanto a palavra validade sua correlata de língua portuguesa Os problemas técnicos fundamentais da tradução da obra do jurista dinamarquês a uma língua latina em grande parte foram resolvidos por Carrió quando parece que acertadamente trata do valid inglês como vigente em espanhol o que pode e deve ser acompanhado na língua portuguesa como a melhor tradução do termo Claro está que é impossível uma tradução perfeita mesmo por diferenças de base entre os sistemas de direito e os significados dos termos para cada qual deles A excelente tradução em língua portuguesa de Edson Bini em muitos aspectos demonstra maior fidelidade e acerto em relação aos originais que a própria tradução castelhana 0 professor Tércio Sampaio Ferraz Jr na sua conhecida e referencial obra Intro dução ao Estudo do Direito apresentou pioneiramente e bem trabalhou no Brasil vários conceitos de Alf Ross Sua tradução de alguns termos específicos da obra do jurista dinamarquês faculdade nãofaculdade potestade e impotência por exem plo que não seguem uma absoluta paridade com outras traduções nos parece no entanto muito mais feliz que a tradução literal dos termos E além disso o fato de já estarem tais palavras muito usadas e consagradas por meio da obra do Prof Tércio nos recomenda assim a sua utilização no presente livro 0 público de língua portuguesa de tal modo tem na presente obra desconta das as pequenas imprecisões intransponíveis das línguas uma feliz tradução que parece bem representar tecnicamente as idéias expressas por esse livro de Ross Acrescida da qualidade da apresentação do estimado Prof Alaôr Café Alves vem esta obra completar na língua portuguesa o quadro das grandes obras do positivismo jurídico do século XX 18 Alf Ross São Paulo janeiro de 2000 Alysson Leandro Mascaro Da Faculdade de Direito da USP Prefácio à Edição Inglesa Este estudo de autor escandinavo é apresentado ao público anglo norteamericano na esperança de que venha a contribuir para o fortaleci mento dos vínculos entre a cultura nórdica e as grandes tradições do mundo anglosaxão A iniciativa e o generoso patrocínio dos norteamericanos es pecialmente a partir da Segunda Guerra Mundial têm possibilitado um ativo intercâmbio de pessoas e idéias entre o Novo e o Velho Mundo Sinto que nós deste lado do oceano temos uma obrigação permanente de contribuir em tudo que pudermos para essa comunicação Particularmente no campo da ciência do direito surgem oportunidades para uma fértil cooperação e o mútuo estímulo A partir da obra de John Austin e Oliver Wendell Holmes o pensamento jurídico anglo norteamericano tem sido dirigido a uma interpretação realista do direito ou seja uma interpretação de acordo com os princípios de uma filosofia empirista Um empirismo semelhante tem dominado a teoria jurídica escandinava desde o tempo de Anders Sandõe Õrsted 17781860 e Axel Hàgerstrõm 18681939 É graças a essa tendência comum que as tradi ções dessas duas partes do mundo têm se dissociado das doutrinas jusnaturalistas e outras ramificações da filosofia do direito idealista predo minantes na Europa continental A principal idéia deste trabalho é levar no campo do direito os princípios do empirismo às suas conclusões últimas Desta idéia emerge a exigência metodológica do estudo do direito seguir os padrões tradicionais de obser vação e verificação que animam toda a moderna ciência empirista e a exigência analítica das noções jurídicas fundamentais serem interpretadas obrigatoriamente como concepções da realidade social do comportamen to do homem em sociedade e nada mais Por esta razão é que rejeito a idéia de uma validade a priori específica que coloca o direito acima do mundo dos fatos e reinterpreto a validade em termos de fatos sociais rejeito a idéia de um princípio a priori de justiça como guia para a legisla ção política jurídica e ventilo os problemas da política jurídica dentro de 20 Alf Ross um espírito relativista quer dizer em relação a valores hipotéticos aceitos por grupos influentes na sociedade e finalmente rejeito a idéia segundo a qual o conhecimento jurídico constitui um conhecimento normativo específico ex presso em proposições de dever ser e interpreto o pensamento jurídico for malmente em termos da mesma lógica que dá fundamento a outras ciências empíricas proposições de sei Não há a meu ver princípios definidos que determinem o domínio da ciência do direito nenhum critério interno que determine onde termina a ciência do direito como estudo doutrinai do direito e começa a filosofia do direito Numa grande medida essa questão será decidida pela tradição e inclinações pessoais Da minha parte tenho como importante tratar não somente de problemas de um elevado nível de abstração como também de noções e questões com as quais o estudante de direito está familiarizado em função de seu trabalho em classe nos tribunais ou na legislatura Deste modo espero demonstrar que a ciência do direito não é apenas uma atraen te atividade mental per se mas também um instrumento capaz de beneficiar qualquer advogado que queira entender melhor o que faz e porque o faz Durante os mais de trinta anos em que me ocupei dos estudos jusfilosóficos tenho é claro recebidoorientação e inspiração procedentes de muitos lugares Sem elas teria sido impossível escrever este livro Tais débitos são esquecidos facilmente o que me torna incapaz de apresentar uma lista completa Mas devo mencionar dois mestres que tiveram para mim uma maior significação do que quaisquer outros Hans Kelsen que me iniciou na filosofia do direito e me ensinou acima de tudo a importância da coerência e Axel Hàgerstrõm que me abriu os olhos para o vazio das espe culações metafísicas no campo do direito e da moral A edição dinamarquesa deste livro foi publicada em 1953 O caminho que conduziu à esta tradução e publicação foi longo e acossado por muitos obstáculos Não poderia ter sido trilhado sem o infatigável concurso da tradutora Margaret Dutton de Londres e do editor Max Knight da University of Califórnia Press Sempre me lembrarei com gratidão do interesse com o qual ambos se dedicaram a minha obra e a diligência e os escrúpulos com os quais realizaram seu trabalho Por fim desejo expressar minha gratidão às duas Fundações dinamar quesas que tornaram financeiramente possível esta tradução RaskÓrsted Fondet e Statens aimindelige Videnskabsfond Copenhague setembro de 1958 Alf Ross Prefácio à Edição Espanhola Quando há alguns anos fui honrado com o convite para proferir conferên cias na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Buenos Aires muito me impressionou o papel ali desempenhado pela filosofia do direito no ensino do direito Depareime entre colegas nesse campo com um conhecimento um interesse e uma compreensão muito maiores do que aqueles encontra dos geralmente em meu país Causoume particular impressão o fato de tal interesse pela filosofia do direito não se restringir a um estreito círculo de especialistas nesse domínio mas poder ser percebido igualmente em espe cialistas de outras áreas do direito entre os estudantes e os advogados e até entre pessoas cultas estranhas ao estudo e à prática do direito A que se deve esse interesse Acredito que o estudo da filosofia deve encontrar em si mesmo sua recompensa na medida em que satisfaz um inveterado anseio de clareza e nos permite saborear os puros prazeres do espírito Se além disto esse estudo nos proporciona um entendimento mais completo do mecanismo e da lógica do direito e aumenta nossa capacidade para o cumprimento da tarefa teórica e prática a que nos devotamos tanto melhor Entrego este livro aos leitores de língua espanhola imbuído de um espí rito de gratidão e de humildade Sintome grato porque foime dada a oportunidade de propagar os frutos de estudos aos quais dediquei minha vida inteira de difundir idéias que estou convicto constituem o funda mento de uma análise realista do direito positivo e de uma discussão inte ligente acerca de sua reforma Entrego o livro com humildade porque per cebo plenamente a limitação e a frivolidade de meus esforços É animado deste espírito que posso subscrever minha obra como aquele velho pintor holandês com as palavras De acordo com minhas possibilidades Estou em débito com muitos amigos da Argentina Sem que isto signifi que o esquecimento dos demais desejo expressar meu reconhecimento a dois deles ao Prof Dr Ambrosio L Gioja a quem mais do que a nenhum 22 Alf Ross outro se devem os meus contatos com a Universidade de Buenos Aires e ao Prof Dr Genaro R Carrió que se encarregou da tradução deste livro Minha falta de domínio do idioma espanhol me impede de opinar a respeito da qualidade da tradução mas a despeito disto minha corres pondência com Dr Carrió versando sobre diversos aspectos lingüísticos associados à tradução convenceume de que não poderia ter encontra do ninguém melhor capacitado para realizar essa delicada tarefa que tanta perícia requer do que ele Agradeço cordialmente a ambos pela amabilidade e compreensão Copenhague novembro de 1962 Alf Ross Capítulo I Problemas da Filosofia do Direito 1 TERMINOLOGIA E TRADIÇÃO Nos países de língua inglesa jurisprudence é um ramo do co nhecimento jurídico que se distingue de outros ramos por seus problemas objetivos propósitos e métodos Esse termo jurisprudence é empregado vagamente para designar vários es tudos gerais do direito distintos da matéria principal de ensino das faculdades de direito nas quais são ministrados estudos doutriná rios ordinários que visam a apresentar as regras jurídicas vigentes numa certa sociedade numa época determinada Esses vários estudos gerais designados como jurisprudence não detêm em comum elementos suficientes para que se possa organizálos como pequenas ramificações do mesmo grande ramo do saber abordam assuntos muito diferentes e refletem perspec tivas filosóficas largamente distintas O termo jurisprudence não é em geral usado na Europa conti nental sendo substituído por expressões como philosophy of law filosofia do direito general Science of law ciência geral do direi to legal encydopedia enciclopédia jurídica e general theory of law teoria geral do direito No âmbito dos estudos heterogêneos reunidos sob a designa ção jurisprudence podese discernir três áreas de investigação e correspondentemente três escolas de investigação a saber 24 Alf Ross 110 Problema do Conceito ou Natureza do Direito Esta área inclui outros conceitos fundamentais considerados com preendidos essencialmente no conceito do direito como por exem plo a fonte do direito a matéria do direito o dever legai a norma jurídica a sanção legal é possível que sejam incluídos também con ceitos não necessariamente essenciais como propriedade direitos in personam e direitos in rem pena intenção culpa etc A escola de filosofia do direito expressão que usaremos por ora para designar genericamente os trabalhos que discutimos que concerne majoritariamente a esse grupo de problemas é conhecida como analítica visto que procura analisar e definir conceitos tais como os mencionados acima A escola analítica foi fundada pelo in glês John Austin que proferiu uma série de conferências no University College Londres entre 1828 e 1832 Posteriormente foram publicadas com o título The Province of Jurisprudence Determined1 Austin não foi muito famoso durante sua vida Devido a razões de ordem financeira foi forçado a abandonar sua atividade como confe rencista e por ocasião de sua morte era quase desconhecido Logo depois as coisas mudaram incisivamente Entre 1861 e 1863 sua viúva publicou uma edição nova e completa das conferências a qual foi mais tarde objeto de sucessivas reimpressões O método analítico de Austin deixou sua marca num número tão grande de estudiosos ingleses e norteamericanos até a atualidade por exemplo W Markby2 S Amos3 I E Holland4 E C Clark5 E E Hearn6 J Salmond7 J C Gray8 e G W Paton9 que se pode falar de uma Escola Analítica 1 Para um estudo de Austin sua doutrina e influência ver Alf Ross Theorie der Rechtsqueilen 1929 cap IV incluindo Apêndice A em particular pp 8387 2 Elements of lêw W 3 Science of Jurisprudence 1872 4 Jurisprudence 1880 5 Practical Jurisprudence 11883 6 Theory of LegaiDuties and Rights 11883 7 Jurisprudence 1902 8 Nature and Sources of law M3Q9 9 Jurisprudence 1946 Direito e Justiça 25 Somente no século XX que Austin exerceu influência sobre es tudiosos do direito da Europa continental de modo destacado o húngaro Felix Somlo10 e o suíço Ernest Roguin11 A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen12 a mais importante contribuição à filosofia do direito do século pertence também à escola analítica Historicamente entretanto não há conexão algu ma entre a Teoria Pura do Direito e a escola de Austin Tomada como um todo a escola analítica leva o selo de um formalismo metódico O direito é considerado um sistema de normas positivas isto é efetivamente vigorantes A ciência do direito busca apenas estabelecer a existência dessas normas no direito efetivo in dependentemente de valores éticos e considerações políticas Tampouco formula a escola analítica qualquer questão relativa às cir cunstâncias sociais penetradas pelo direito os fatores sociais que determinam a criação do direito e seu desenvolvimento e os efeitos sociais que se produzem ou se pretende produzir mediante normas jurídicas Este formalismo encontrou destacada expressão nas obras de Kelsen A pureza que ele exige da ciência do direito tem objetivo duplo por um lado livrar a ciência do direito de qualquer ideologia moral ou política de outro livrála de todo vestígio de sociologia isto é considerações referentes ao curso efetivo dos eventos De acordo com Kelsen a ciência do direito não é nem filosofia moral nem teoria social mas sim teoria dogmática específica em termos normativos 120 Problema do Propósito ou Idéia do Direito Esta área de investigação diz respeito ao princípio racional que concede ao direito sua validade ou força obrigatória e que cons titui o critério para a retidão de uma norma jurídica Geralmente se considera que a justiça é a idéia do direito dè onde surgem questões fundamentais acerca do teor e argumento do princípio de justiça acerca da relação entre a justiça e o direito positivo acerca do papel desempenhado pelo princípio de justiça na legislação na administração do direito e assemelhados 10 Juristische Grundlehre 1917 11 La Science Juridique Pue 19251 12 A última exposição completa de Kelsen é sua Teori Geraldo Direito e do Estado 1946 Podese encontrar uma versão concisa e de fácil leitura dos princípios fundamentais do sistema kekeniano na sua Teoria P m do Direito 1953 26 Alf Ross O ramo da filosofia do direito que considera mormente problemas dessa espécie é conhecido como jusfilosofia axiológica ou filosofia do direito natural Modernamente a expressão filosofia do direito é com freqüência reservada exclusivamente a esse ramo particular Essa escola de pensamento que está estreitamente ligada à abor dagem religiosa ou metafísicofilosófica possui uma longa história A filosofia do direito natural se estende da época dos primeiros filósofos gregos até os nossos dias Esta filosofia atingiu seu apogeu clássico com os grandes sistemas racionalistas dos séculos XVII e XVIII Após a reação histórica e positivista do século XIX a filosofia do direito natural voltou a conquistar espaço no século XX Falase num renascimento do direito natural Seu fundamento filosófico repousa primeira e principal mente na escolástica católica que é perpetuada no direito natural do tomismo e em vários desenvolvimentos dos sistemas de Kant e Hegel que encontraram adeptos particularmente na Alemanha e na Itália As teorias do direito natural também encontraram fundamento em outras escolas filosóficas a saber no utilitarismo filosofia da solidariedade intuicionismo de Bergson fenomenologismo de Husserl e outras mais A história do direito natural é tratada no capítulo X 13 O Problema da Interação do Direito e a Sociedade Esta área de investigação inclui questões relativas à origem histó rica e o desenvolvimento do direito aos fatores sociais que em nos sos dias determinam o teor variável do direito à sua dependência da economia e da consciência jurídica popular e sua influência sobre estas aos efeitos sociais de certas regras ou instituições jurídicas ao poder do legislador em dirigir o desenvolvimento social à relação entre o direito vivo isto é o direito tal como se desenvolve real mente na vida da comunidade e o direito teórico ou dos livros e às forças que de fato motivam a aplicação do direito em contraposição aos fundamentos racionalizados presentes nas decisões judiciais Esta escola de filosofia do direito é conhecida como históricosocio lógica Podese subdividila em dois ramos um predominantemente histórico e o outro predominantemente sociológico e psicológico Semelhantemente à escola analítica é de data relativamente recente Sucedendo a alguns precursores do século XVIII Vico Montesquieu a abordagem histórica do direito surgiu com a escola romântica alemã Savigny e Puchta tratadas na seqüência nos parágrafos 56 e 81 Direito e Justiça 27 Na Inglaterra H Maine13 fundou uma escola de filosofia do direito histórica que se dedicou ao estudo da correlação entre lei e sociedade na antiguidade Foi sucedido por J Bryce14 D Vinogradoff15 C K Allen16 e outros O enfoque sociológico representado por estudiosos como Émile Durkheim17 Léon Duguit18 Roscoe Pound19 N S Timasheff20 e Karl Llewellyn21 tem predominado na França e nos Estados Unidos Interpretações psicológicas estão presentes nas obras de Jerome Frank22 Edward Robinson23 e outros Há uma grande quantidade de estudos especiais de sociologia do direito de considerável interesse particularmente no campo da criminologia Relatórios realizados por comissões e estudos práticos semelhantes constituem amiúde valiosas contribuições para a melhor compreensão dos fatos da vida jurídica e suas correlações Trabalhos de caráter geral que respondem pelo nome de sociologia do direito24 por vezes tendem a não ir além do enunciar de programas gerais ou a se revelarem eles mesmos filosofias do direito natural disfarçadas Esta última tendência resulta do fato da sociologia ser em sua origem uma filosofia política disfarçada parágrafo 56 Georges Gurvitch25 constitui um exemplo típico sua sociologia do direito tem pouco a ver com a ciência empírica detendo mais a natureza de uma interpreta ção metafísicoespiritualista dos conceitos do direito e justiça radicados no intuicionismo de Bergson e na fenomenologia de Husserl 13 Ancienl Law 11861 e Early History of Institutions 11875 14 Studies in History and Jurisprudence 11901 15 Histórica Jurisprudence 1923 G Law in the Making 921 17 De Ia Division du Travail Social 1893 18 Les Transformations Générales du Droit Privé 1912 Les Transformations du Droit Public 1913 19 Para uma síntese das doutrinas de Pound a respeito das linhas sociais de desenvolvimento no moderno direito inglês e norteamericano com referências bibliográficas completas ver sua obra OutUnes of Lectures on Jurisprudence 5 ed 1943 4349 Ver também Pound Social Control through Law 1942 Interpretations of Legal History 1923 Scope and Purpose of Sociological Jurisprudence Harv L fíev 24 1911 591 20 Introduction to the Sociology of Law 1939 21 K N Llewellyn e E A Hoebel The Cheyenne Way 1942 22 Law and the Modem Mind 1930 23 Law and the Lawyers 1935 24 Um dos mais conhecidos é Grundlegung der Soiiologie des Rechts de E Ehrlich 1913 Adicionalmente podese mencionar os seguintes Introduction to the Sociology of Law de N S Timasheff 1939 RechtssozMogie de B Horváth 1934 Sociology of the Law de G Gurvitch 1942 e Theory of Legal Science de H Caims 1941 25 Ver a nota anterior e meu exame crítico de Gurvitch em Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap II 8 28 Alf Ross Este sumário dos temas e tendências da literatura existente sobre filosofia do direito jurisprudence nos conduz à questão de como deve ser definido racionalmente esse ramo do estudo do direito Parece que essa questão só pode ser respondida com base num exame geral das diversas abordagens através das quais um estudo dos fenômenos ju rídicos poderia ser tentado selecionandose um entre eles que possa em nossa opinião ser racionalmente descrito como jusfilosófico A esta altura entretanto assoma uma dificuldade Por um lado não é possível formar uma opinião bem fundada das várias ramifica ções do estudo da lei em sua totalidade enquanto não se tenha deci dido qual é a natureza dos fenômenos jurídicos por outro lado o problema do conceito ou natureza do direito é indubitavelmente um dos principais problemas da filosofia do direito Não há desacordo neste ponto Tanto aqueles que centram sua atenção principalmente na validade ideal do direito quanto aqueles que se preocupam com a existência do direito na comunidade têm que necessariamente ba sear suas teorias num conceito sobre a natureza geral do direito Pareceria por conseguinte que não é possível indicar o objeto pró prio da filosofia do direito enquanto não for descoberta uma solução para um de seus principais problemas Essa dificuldade pode ser superada pela apresentação a princípio de tãosomente uma tentativa de orientação sobre a natureza dos fenômenos jurídicos num capítulo posterior apresentarseá uma in vestigação mais completa 2 A NATUREZA DO DIREITO A questão da natureza do direito constitui um dos principais pro blemas permanentes de qualquer filosofia do direito Chega a ser es tranho que ninguém é o que parece jamais tenha considerado digna de atenção a colocação de tal questão ou tenha ponderado sobre sua razão e sua importância E todavia quando nos pomos a pensar nisso a questão se mostra um tanto peculiar Quem pensaria em destinar o problema da natureza de fenômenos psíquicos a um tratamento in dependente numa outra ciência que fosse distinta da psicologia Ou o problema da natureza da natureza a qualquer ciência que não fosse as ciências naturais O que mais poderia ser dito a respeito da nature za dos fenômenos psíquicos além do que emerge das descrições e Direito e Justiça 29 explicações fornecidas sobre eles pela psicologia Ou acerca dos fenômenos da natureza além daquilo que emerge das diversas ciên cias naturais Por que é a posição tão diferente com respeito ao direito Por que é o problema da natureza do direito um problema que se encontra fora do âmbito da ciência jurídica estritamente falando O que há para ser dito sobre a natureza dos fenômenos jurídicos além do que emerge do estudo doutrinai do direito ciência do direito que tem esses próprios fenômenos como seu objeto Para responder estas perguntas será conveniente realizar uma breve digressão lingüística Entendo por expressão lingüística uma organização consciente da linguagem na utilização real oral ou escrita Distinto da expressão mesma como um fenômeno lingüístico é o seu significado É imperioso que se faça essa distinção visto que expres sões diferentes podem ter o mesmo significado bem como uma mes ma expressão pode de acordo com as circunstâncias deter significa dos variados O significado pode ser de dois tipos a saber expressivo ou sinto mático e representativo ou semântico Toda expressão lingüística possui um significado expressivo que é a manifestação ou sintoma de algo Isto quer dizer que como um elo num todo psicofísico a expressão se refere àquela experiência que lhe deu origem Não importa o que eu diga minha expressão tem que ter sido causada por circunstâncias emotivovolitivas que me im peliram a me expressar um impulso para comunicar idéias aos outros ou uma emoção que espontaneamente requer expressão Certas expressões lingüísticas possuem adicionalmente um sig nificado representativo quer dizer a expressão indica simboliza ou representa um estado de coisas Não se trata de uma relação causai mas lógica Se digo por exemplo meu pai está morto esta expres são indica um certo estado de coisas Na seqüência destas considerações preliminares é possível agora estabelecer as seguintes distinções e concepções a Expressões que têm tanto significado expressivo quanto repre sentativo como por exemplo meu pai está morto Seu significado 30 Alf Ross expressivo será normalmente um impulso para comunicar o fato a uma outra pessoa Em outras palavras formular a expressão é nor malmente a manifestação desse impulso Dáse o nome de asserção ao seu significado representativo a asserção de que o estado de coisas é esse a saber que meu pai está morto Essa asserção pode ser considerada abstraída da expressão e do contexto da experiência associados a ela Sua verdade ou falsidade pode ser verificada b Expressões que têm apenas significado expressivo Se por exem plo grito Ai porque me queimei ou digo a alguém Feche a porta essas expressões não asseveram que dói ou que me acho num esta do em que desejo que a pessoa feche a porta Essas expressões nada simbolizam não têm significado representativo mas são portadores diretos de uma carga emocional ou intencional Expressam uma experiência porém nada representam Seu significado expressivo não pode ser separado da experiência Às vezes como por exemplo quando grito Ai a expressão não é feita intencionalmente e não visa a influenciar os outros mas tem o caráter de um reflexo automático Essas expressões são cha madas de exclamações Por outro lado quando digo a alguém Fe che a porta a expressão é produzida com a intenção que ela expressa de influenciar diretamente a outra pessoa de um modo definido induzila a fechar a porta O traço característico dela é ser a influência direta quer dizer é exercida pela força sugestiva ou pressão encerrada no próprio expressar e não transmitida pela co municação de uma asserção Está claro que é também possível es timular impulsos para a ação mediante esse último método por exemplo dizendo a uma pessoa que sua casa está em fogo Não há um termo geral para as expressões emotivovolitivas portadoras de intenção A esta categoria pertencem fenômenos tão heterogêneos como ordenar dirigir sugerir desejar exortar rogar solicitar Visto que é mais prático trabalhar com um termo geral proponho para essa finalidade o termo diretiva Em conformidade com isso é possível distinguir entre três tipos de expressões lingüísticas26 26 Não julgo necessário investigar se é possível sustentar que a classificação é exaustiva se por exemplo expressões interrogativas podem ser reduzidas a uma combinação de 1 e 2 ou 1 e 3 Direito e Justiça 31 1 Expressões de asserção ou sumariamente asserções com o que esta palavra entretanto se torna ambígua já que significa tanto o expressar quanto o seu significado representativo isto é expres sões com significado representativo 2 Exclamações isto é expressões sem significado representativo e sem intenção de exercer influência e 3 Diretivas isto é expressões sem significado representativo mas com intenção de exercer influência Numa certa medida essas categorias correspondem à classifica ção gramatical orações indicativas interjeições e orações imperati vas Devese notar contudo que uma expressão lingüística que apa rece como uma oração no indicativo pode muito bem ser uma diretiva e não uma asserção A oração Você levará esta carta ao posto do correio amanhã poderia ser uma asserção uma predição do que vai acontecer Poderia entretanto a despeito de sua forma gramatical mente indicativa também ser entendida como uma diretiva ordem Agora considerando tais antecedentes formulamos a pergunta à qual dessas categorias pertencem as orações encontradas nas regras jurídicas Parece óbvio que devam ser diretivas27 e não exclamações nem asserções As leis não são promulgadas a fim de comunicar verda des teóricas mas sim a fim de dirigir as pessoas tanto juizes quanto cidadãos particulares no sentido de agirem de uma certa maneira desejada Um parlamento não é um escritório de informações mas sim um órgão central de direção social Rca particularmente claro que as regras jurídicas por seu teor lógico são diretivas quando notamos que há regras jurídicas que contêm expressões comumente usadas em diretivas É o caso por exemplo de normas penais que expressam que qualquer pessoa sob certas condições deverão ser punidas de um 27 A análise precedente supõe a condição simples de que a expressão procede de um autor individual Não há tal indivíduo único por trás do direito Isto contudo não faz nenhuma diferença 0 que importa á que o direito funciona da mesma maneira que diretivas que procedem de um autor individual e que a legislação carrega uma intenção social que pode ser encarada como análoga à intenção individual Karl Olivecrona expressou essa idéia chamando as regras do direito deimperativos independentes ver Lawasfact 1939 págs 42esegs Preferi o termo mais geral e neutro diretiva visto que o vocábulo ordem1 imperativo está associado a idéias dificilmente apropriadas ao direito particularmente em sua relação aos juizes e outras autoridades legais administrativas que indubitavelmente consideram o direito como uma diretiva e não uma ordem Nenhum dos termos específicos correntes empregados para designar expressões sem significado representativo mas com intenção de influenciar parece a mim inteiramen te adequado na qualidade de termo descritivo do conteúdo do direito A terminologia aqui usada evita essas dificul dades ao criar um termo geral para expressões desse tipo No fundo não discordo de Olivecrona 32 Alf Ross certo modo e no direito civil regras que expressam que uma pessoa tem que ou pode fazer ou não fazer algo O mesmo vale entre tanto no caso em que uma regra jurídica se apresenta gramatical mente no modo indicativo e aparentemente contém uma descrição asserção É o caso por exemplo quando se estabelece que uma obrigação um dever ou uma responsabilidade surge sob tais e tais condições Embora um tal enunciado aparentemente possua a mes ma estrutura de à guisa de exemplo a proposição da química de que sob dadas condições se gera hidrogênio não pode haver dúvida de que o seu significado lógico não consiste em informar sobre fatos mas sim prescrever um comportamento A regra jurídica não é nem verdadeira nem falsa é uma diretiva A seguir surge a questão de se as frases que lemos num livro de direito ou em qualquer outra parte na qual se expressa o direito vigente são logicamente diretivas Aparentemente elas são porque parece não haver quaisquer diferenças entre as orações empregadas pelos escrito res de direito e as que figuram nas normas jurídicas A linguagem por exemplo de John Honnold em Cases and Materials on the Law of Sales and Sales Ftnandngè exatamente a mesma do Uniterm Sales Act e de outras leis A despeito da similaridade deve haver entretanto uma dife rença no significado lógico das mesmas orações nos dois contextos Não resta dúvida de que as proposições num livro pelo menos num certo grau pretendem descrever não prescrever28 Na medida em que a lite ratura jurídica pretende ser conhecimento do que é efetivamente o direi to vigente tem que consistir em asserções não em diretivas Toda pro posição de um livro precisa ser entendida sob a condição geral de que o autor está expondo o direito vigorante dentro de um sistema legal espe cífico o direito de Illinois o direito da Califórnia a common law etc A proposição de um livro que prima fade apresenta o caráter de uma diretiva D tem portanto de modo a ser entendida como uma proposição não do direito mas sobre o direito que ser reformulada assim D é direito vigente de Illinois da Califórnia etc29 28 Ver parágrafos 9 e 79 29 A radical diversidade entre as normas jurídicas ou seja as regras jurídicas contidas nas leis ou extraídas de precedentes ou outras fontes do direito e as proposições doutrinárias dos livros é claramente estabelecida aqui As primeiras sáo diretivas alògicasl as segundas sio asserções lógicas que expressam que certas diretivas sào direito vigente Se nèo se tiver em mente essa diversidade com clareza e se as normas jurídicas forem colocadas no mesmo plano das propo sições doutrinárias que a elas se referem disto resultará necessariamente uma visào distorcida de umas e de outras Direito e Justiça 33 r E importante enfatizálo aos estudantes ingleses e norteamericanos Na língua inglesa inexiste uma distinção clara entre a o próprio direito enquanto regras jurídicas e b o conhecimento acerca do di reito enquanto proposições acerca de regras jurídicas Não há nenhu ma expressão correspondente à expressão Science of law ciência do direito science du droit Rechtswissenschaft etc usada na Europa continental A expressão legaldocthne doutrina jurídica referese mais a um corpo de regras do que ao conhecimento a respeito das regras Como é importante para os propósitos da filosofia do direito operar com um termo que distinga claramente o conhecimento do direito do próprio direito eu proponho a expressão doctrinastudy of law ciência do direito para o primeiro Al Por um lado haverá uma tendência a imaginai que as proposições doutrinárias também consistem em diretivas ou normas Isto se desenvolve na concepção que vê no estudo doutrinai do direito ciência do direito um conhecimento normativo Essa designação sugere várias coisas Ou 1 que a ciência do direito constitui um conhecimento que colima estabelecer normas ou 2 que constitui um conhecimento que se expressa mediante normas embora sem estabelecâlas visto que as normas apresentadas são aquelas tidas como positivamente dadas ou finalmente que o conhecimento do direito é um conhecimento concernente a normas Somente este último significado é sustentável Mas o termo normativo neste sentido compreendido é lingüisticamente impróprio já que naturalmente insinua o significado indicado em 1 ou 2 0 primeiro destes expressa o postulado jusnaturalista de um conhecimento que é a um tempo discernimento e exigência parágrafo 70 0 último corresponde ao ponto de vista de Kelsen ao menos como exposto em seus primeiros trabalhos Nestes ver especialmente Reine Rechtsiehre 1933 21 e segs Rechtsnorm norma jurídica e Rechtssati proposição doutrinária são coisas idênticas Das Soiien o dever ser é a forma categórica tanto para o próprio direito quanto para as proposições doutrinárias concernentes ao direito e o conhecimento do direito é concebido como expressivo de normas não descritivo de normas coma a expressão direta de normas e a imanente reivindicação destas à validade Numa obra posterior General Theory of Law and State 11945 45 cf 167 Kelsen claramente visa a uma distinção entre a norma jurídica como prescritiva e a proposição doutrinária que ele chamou de regra jurídica como descritiva Mas a distinção não á elaborada com clareza De um ponto de vista puramente lingüístico parece enganoso designar uma proposição descritiva uma asserção mediante o nome regra Kelsen prossegue supondo ser a proposi ção doutrinária um pronunciamento de o que deve ser das Sollen e não um pronunciamento de o que é tdas Sein e continua empregando o nome norma com o acréscimo no sentido descritivo da palavra Ver a p 43 e confrontar com a p 163 na qual se nega que as proposições doutrinárias são normas E confuso Desconheço o que se entende por uma norma no sentido descritivo Semelhantemente a todas as outras proposições descritivas as da ciência do direito estudo doutrinário do direito têm que ser expressões do que é e não do que deve ser têm que ser asserções não diretivas normas Quando o estudo doutrinário do direito ciência do direito descreve certas normas como direito vigente descreve certas realidades sociais um certo conteúdo de idéias normativas como realmente experimentadas e realmente eficazes Mas se isto for admitido a distinção radical de Kelsen entre a ciência do que é Seinswissenschaffi e a ciência do que deve ser Sollenswissenschaft cairá por terra Para uma exposição mais elaborada dessa crítica ver minha resenha de Hans Kelsen What is Justicei na Califórnia law Review 45 1957 564 e segs 8 Por outro lado a fusão de normas jurídicas e proposições doutrinárias do direito pode ter como resultado que se conside rem as primeiras como da mesma natureza das últimas quer dizer como sendo asserções expressões de um discernimento ou cognição não de uma intenção Assim Carlos Cossio fundador da chamada teoria egológica do direito afirma Egoiogische Theorie und Reine Rechtsiehre Õsterr Z f õft R ns V 1952 15 e segs em particular 4661 Jurisprudence and the Sociology of Law Cot L R 52 1952 356 e segs particularmente p 499 que um código de leis não menos do que uma exposição científica do direito é conhecimento ciência não no sentido da legislação se basear no conhecimento científico de um certo tipo a regra do direito á em si mesma um discernimento um conheci mento a legislação em si mesma constitui um ato científico A regra jurídica é o conhecimento jurídico que a comuni dade tem de si mesma 34 Alf Ross Atingimos agora o ponto que encerra a explicação do porque cons titui um problema a natureza do direito e o que é o significado desse problema Percebemos que toda proposição que se apresenta no estu do doutrinário do direito ciência do direito contém como uma parte integrante o conceito direito vigente de Illinois da Califórnia etc Por essa razão não é possível declarar de maneira precisa e completa o significado representativo de quaisquer dessas proposições enquanto não se torne patente o significado do conceito direito vigente Muito do aparente desacordo entre os autores de direito pode ser atribuído ao fato de que suas obras estão tacitamente baseadas em distintas conjeturas em relação ao significado desse conceito Tratase de problema peculiar ao estudo do direito Não tem parale lo por exemplo na psicologia ou nas ciências naturais Explica porque a natureza do direito constitui o principal problema da filosofia do direito Despido de sua formulação metafísica o problema da nature za do direito é o problema de como interpretar o conceito de direito vigente de Illinois da Califórnia da common law como uma parte constitutiva integrante de toda proposição do estudo doutrinário do direito ciência do direito Qual significado representativo deve ser atribuído a esse conceito Este problema se encontra além da esfera do advogado profissional pelo que é destinado à filosofia do direito 3 ANÁLISE PRELIMINAR DO CONCEITO DE DIREITO VIGENTE Imaginemos que duas pessoas estão jogando xadrez enquanto uma terceira observa Se o observador nada conhecer de xadrez não compreenderá o que está se passando Com base em seu conhecimento de outros jogos provavelmente concluirá que se trata de algum tipo de jogo Porém não será capaz de compreender os movimentos individuais ou perceber qualquer conexão entre eles Terá menos ainda qual quer noção dos problemas envolvidos por qualquer disposição parti cular das peças sobre o tabuleiro Se o observador conhecer as regras do xadrez mas além disso não conhecer muito a respeito da teoria do jogo sua experiência sobre o jogo dos outros mudará de caráter Compreenderá que o Direito e Justiça 35 movimento irregular do cavalo é o prescrito para essa peça Estará em posição de reconhecer os movimentos das peças em turno como movimentos prescritos pelas regras Dentro de certos limites será capaz até de predizer o que acontecerá pois sabe que os jogadores se revezam para executar um movimento e que cada movimento tem que cair dentro do total de possibilidades permitidas pelas regras em qualquer dada disposição das peças Mas além disso especial mente se os jogadores forem algo mais do que meros principiantes muito do que ocorre lhe parecerá enigmático Ele não entende a es tratégia dos jogadores e não enxerga os problemas táticos da situa ção Por que por exemplo o jogador não toma com suas peças bran cas o bispo Para um completo entendimento do jogo é essencial um conhecimento não apenas das regras do xadrez como também um certo conhecimento da teoria do jogo A probabilidade de ser capaz de predizer o próximo movimento aumenta se se leva em conta não somente as regras do jogo mas também a teoria do jogo e a compre ensão que cada jogador possui dessa teoria Finalmente também será necessário levar em conta o propósito alimentado por cada joga dor no jogo Supõese normalmente que um jogador joga para ga nhar Porém há igualmente outras possibilidades por exemplo dei xar que seu oponente ganhe ou experimentar e pôr à prova o valor de um determinado movimento Essas considerações do jogo de xadrez encerram uma lição inte ressante e peculiar Temos aqui diante de nós uma série de ações humanas os movimentos das mãos para alterar a posição de certos objetos no espaço e nos é facultado supor que esses movimentos somados a outros processos corpóreos respiração processos psicofísicos etc constituem um curso de eventos que segue certas leis biológicas e fisiológicas Todavia é óbvio que ultrapassa o limite de toda possibilidade razoável considerar esse curso de eventos de tal maneira que os movimentos individuais do xadrez possam ser explicados e preditos com uma base biológica e fisiológica O problema apresenta um aspecto inteiramente distinto se nos transportamos a um outro nível de observação e interpretamos o curso dos eventos à luz das regras e da teoria do xadrez Certos elementos da totalidade da série dos eventos nomeadamente o movimento das peças se destacam então como sendo ações rele vantes ou significativas para o xadrez O movimento das peças não é 36 Alf Ross considerado como uma mera mudança de posição dos objetos no espaço mas sim como movimentos do jogo e este se transforma num todo coerente pleno de significação porque os movimentos se motivam reciprocamente e são interpretados como ataque e defesa de acordo com os princípios teóricos do jogo Se observarmos os jogadores entenderemos cada movimento executado por cada joga dor do ponto de vista da consciência que eles têm das regras do xadrez associada ao conhecimento que supomos terem eles da teoria do jogo e a da meta a que se propuseram no jogo Ademais é tam bém possível ignorar as pessoas dos jogadores e entender o jogo por si só na sua significação abstrata um jogo num livro de xadrez Cumpre notar que o entendimento no qual estamos aqui pen sando é de um tipo distinto do causai Não operamos aqui com leis de causalidade Os movimentos não entretêm qualquer relação mutua mente causai A conexão entre eles é instaurada por meio das regras e da teoria do xadrez A conexão é de significado Podese afirmar ademais que a coparticipação fellowshlp cons titui fator essencial num jogo de xadrez Quero dizer com isso que os objetivos e interesses perseguidos e as ações por estes condiciona das só podem ser concebidos como um elo num todo maior que inclui as ações de uma outra pessoa Quando dois homens cavam uma vala juntos não estão fazendo nada que cada um deles não pudesse igual mente fazer por sua própria conta No xadrez ocorre algo absoluta mente contrário Não é possível para uma pessoa por sua conta pro porse a meta de ganhar no xadrez As ações que constituem o jogar xadrez somente podem ser efetuadas jogandose em revezamento com uma segunda pessoa Cada jogador tem seu papel a ser desem penhado mas cada papel apenas logra significação quando o segun do jogador cumpre seu papel30 A coparticipação é também revelada no caráter intersubjetivo das regras do xadrez É essencial que recebam a mesma interpretação ao menos da parte dos dois jogadores numa dada partida Caso con trário não haveria jogo e os movimentos individuais permaneceriam isolados sem significação coerente 30 Em sua Schachnovelle Stephan Zweig apresenta uma interessante descrição de uma pessoa capaz de jogar xadrez consigo mesma Explicase indicando que ela desenvolveu esquizofrenia de modo a ser capaz de atuar como duas pessoas distintas Direito e Justiça 37 Ora tudo isso demonstra que o jogo de xadrez pode ser tomado como um simples modelo daquilo que chamamos de fenômeno social A vida social humana numa comunidade não é um caos de ações individuais mutuamente isoladas Adquire o caráter de vida comuni tária do próprio fato de que um grande número de ações individuais não todas são relevantes e têm significação relativamente a um conjunto de regras comuns Tais ações constituem um todo significa tivo guardando a mesma relação entre si como movimento e contra movimento Aqui também há interação mútua motivada pelas regras comuns do jogo social que lhe conferem seu significado E é a consciência dessas regras que possibilita o entendimento e numa certa medida a predição do curso dos eventos Passarei agora a examinar mais de perto o que é realmente uma regra do xadrez e de que forma é possível estabelecer quais são as regras que regem o jogo de xadrez Refirome aqui às regras primárias do xadrez as que determinam a disposição das peças os movimentos a tomada etc e não às regras da teoria do xadrez No tocante a estas últimas algumas observações bastarão Como outras regras técnicas são obviamente enunciados hipotéticoteóri cos Pressupõem a existência das regras primárias do xadrez e indi cam as conseqüências que as diferentes aberturas e gambitos produ zirão no jogo na apreciação do ponto de vista da possibilidade de ganhar Semelhantemente a outras regras técnicas sua força diretiva está condicionada por um interesse neste caso o interesse de ganhar a partida Se não existe este interesse por parte de um jogador então a teoria do jogo carece de importância para ele As regras primárias do xadrez por outro lado são diretivas Embo ra sejam formuladas como asserções a respeito da capacidade ou poder das peças em se moverem e tomar fica claro que visam a indicar como deve ser jogado o jogo Visam diretamente isto é não qualificadas por nenhum objetivo subjacente a motivar o jogador é como se lhe dissessem jogase assim Essas diretivas são sentidas por cada jogador como socialmente obrigatórias quer dizer o jogador não só se sente espontaneamente motivado ligado a um certo procedimento como também está ao mesmo tempo seguro de que uma transgressão às regras provocará 38 Alf Ross uma reação protesto de seu adversário E deste modo as regras primárias distinguemse claramente das regras técnicas que formam a teoria do jogo Um movimento estúpido pode suscitar espanto po rém não um protesto Por outro lado as regras do xadrez não têm o matiz da moralidade o que resulta do fato de que normalmente ninguém efetivamente de seja violálas parágrafo 85 O desejo de trapacear num jogo se deve ao fato do jogador visar a um objetivo que difere do mero propósito de ganhar de acordo com as regras do jogo por exemplo ele poder dese jar ser alvo de admiração ou ganhar dinheiro Este último objetivo está freqüentemente presente num jogo de cartas e é notório que a exigên cia de respeitar as regras assume aqui um valor moral Como é possível então estabelecer quais regras diretivas re gem o jogo de xadrez Poderíamos talvez pensar em abordar o problema sob o ângulo comportamental limitandonos ao que pode ser estabelecido pela observação externa das ações descobrindo daí determinadas regula ridades Porém desta maneira jamais conseguiríamos atinar com as regras do jogo Jamais seria possível distinguir as práticas vigentes nem sequer as regularidades condicionadas pela teoria do jogo das regras do xadrez em sentido próprio Mesmo após observar mil parti das ainda seria possível crer que contraria as regras abrir o jogo com um peão de torre O mais simples talvez seria deixarse orientar por certos regula mentos dotados de autoridade por exemplo regulamentos aprovados em congressos de xadrez ou pelas informações presentes em livros sobre xadrez que gozam de reconhecimento Contudo até mesmo isso poderia não ser o suficiente porquanto não é certo que tais declara ções recebam adesão na prática Por vezes as partidas de fato são jogadas de muitas maneiras diversas Mesmo num jogo clássico como o xadrez variações desse gênero podem ocorrer por exemplo a regra referente a tomada en passantnem sempre recebe adesão Conse qüentemente esse problema de saber quais regras regem o xadrez tem que ser entendido falandose em termos estritos na sua referên cia às regras que regem uma partida concreta entre duas pessoas específicas São suas ações e suas ações exclusivamente aquelas que estão aglutinadas num todo significativo e regidas pelas regras Direito e Justiça 39 Assim só nos resta adotar um método introspectivo O problema é descobrir quais regras sentem efetivamente os jogadores ser social mente obrigatórias no sentido indicado acima O primeiro critério é que sejam realmente efetivas no jogo e que sejam externamente visíveis como tais Mas para que se decida se as regras que são acatadas são mais do que meros usos ditados pelo costume ou motivadas por razões de caráter técnico é mister indagar aos jogadores por quais regras se sentem obrigados Em consonância com isso podemos dizer uma regra de xadrez é vigente significando que dentro de uma dada coparticipação que compreende fundamentalmente os dois jogadores de uma partida con creta essa regra recebe efetiva adesão porque os jogadores sentem a si mesmos socialmente obrigados pela diretiva contida na regra O conceito de vigência no xadrez envolve dois elementos Um deles se refere à efetividade real da regra que pode ser estabelecida pela obser vação externa O outro se refere à maneira na qual a regra é sentida como motivadora ou seja socialmente obrigatória Há uma certa ambigüidade no conceito regra de xadrez As regras do xadrez carecem de realidade e não existem independentemente da experiência dos jogadores isto é de suas idéias sobre certos padrões de comportamento e a elas associada a experiência emocional de se acharem compelidos a obedecer É possível abstrair o significado de uma asserção puramente como um conteúdo de pensamento 2 2 são 4 da apreensão da mesma por uma dada pessoa num dado tempo e precisamente de modo idêntico é também possível abstrair o significado de uma diretiva o rei tem o poder de moverse uma casa em qualquer direção a partir da experiência concreta diretiva O con ceito regra de xadrez em qualquer análise acurada precisa portanto ser dividido em duas partes I aas idéias experimentadas em torno de certos padrões de comportamento acompanhadas das emoções que lhes são concomitantes e 2a o conteúdo abstrato dessas idéias as normas do xadrez As normas do xadrez são pois o conteúdo ideal abstrato de natu reza diretiva que permite na qualidade de um esquema interpretativo a compreensão dos fenômenos do xadrez as ações dos movimentos e os padrões de ação experimentados como um todo coerente de signi ficado e motivação uma partida de xadrez e conjuntamente com ou tros fatores e dentro de certos limites o predizer do curso da partida 40 Alf Ross Os fenômenos do xadrez e as normas do xadrez não são mutua mente independentes como se uns e outras detivessem sua própria realidade são aspectos diferentes de uma mesma coisa Nenhuma ação biológicofísica considerada em si mesma é um movimento do xadrez Só adquire tal qualidadeao ser interpretada em relação às normas do xadrez E inversamente nenhum conteúdo ideal de natu reza diretiva tem por si mesmo o caráter de uma norma válida de xadrez Só adquire essa qualidade pelo fato de que juntamente com outros conteúdos pode ser efetivamente aplicado como um esquema interpretativo aos fenômenos do xadrez Os fenômenos do xadrez se tornam fenômenos do xadrez exclusivamente quando colocados em relação com as normas do xadrez e viceversa O propósito dessa discussão sobre o xadrez neste ponto fica indubitavelmente claro Aponta para a afirmação de que o conceito norma vigente do xadrez pode atuar como paradigma para o con ceito direito vigente o que constitui o verdadeiro objeto de nossas considerações preliminares Podese também considerar o direito como consistindo parcialmente em fenômenos jurídicos e parcialmente em normas jurídicas em mú tua correlação Se observarmos o direito como funciona na sociedade descobrire mos que um grande número de ações humanas são interpretadas como um todo coerente de significação e motivação por meio de normas jurídicas que configuram um esquema interpretativo A com pra uma casa de B Ocorre que a casa está cheia de cupins A pede a B uma redução do preço de compra mas B não concorda A move uma ação contra B e o juiz de acordo com o direito presente no contrato ordena que pague a A uma certa quantia num determina do prazo B não o faz A consegue que o juiz do condado confisque os bens móveis de B os quais são então vendidos num leilão público Essa seqüência de eventos compreende toda uma série de ações humanas do estabelecimento do direito contido no contrato ao lei lão A consideração biológicofísica dessas ações não pode revelar qualquer conexão causai entre elas Tais conexões ocorrem unica mente na esfera de cada indivíduo Mas nós as interpretamos medi ante o auxílio do esquema referencial do direito vigente como fenô menos jurídicos constituintes de um todo coerente de significado e motivação Somente quando assim é feito cada uma dessas ações Direito e Justiça 41 adquire seu caráter jurídico A compra da casa por parte de A aconte ce por meio da expressão falada ou da escrita porém estas apenas se tornam uma compra quando consideradas na sua relação com normas jurídicas As várias ações se motivam reciprocamente tal como os movimentos do xadrez O juiz por exemplo é motivado pelos pa péis que A e B desempenham no negócio e pelas circunstâncias adicionais a ele associadas por exemplo o estado da casa bem como pelos precedentes vigentes na área do direito contratual Todo o processo tem o caráter de um jogo regido por normas muito mais complicadas do que as do xadrez Com base no que foi dito formulo a seguinte hipótese o conceito direito vigente de Illinois da Califórnia da common iavtf pode ser em princípio explicado e definido da mesma maneira que o conceito norma vigente do xadrez para dois jogadores quaisquer Quer dizer direito vigente significa o conjunto abstrato de idéias normativas que serve como um esquema interpretativo para os fenômenos do direito em ação o que por sua vez significa que essas normas são efetivamente acatadas e que o são porque são experimentadas e sentidas como socialmente obrigatórias31 Podese talvez ter essa conclusão na conta de um lugar comum e pode parecer que um excessivo aparato de raciocínio foi empregado visando a esse fim Isto poderia revelarse verdadeiro se os problemas fossem abordados por uma pessoa que não alimentasse noções precon cebidas Porém não seria verdadeiro no caso de uma abordagem histó rica A grande maioria da totalidade dos autores de filosofia do direito até a atualidade tem sustentado que não é possível explicar o conceito di reito vigente sem a referência à metafísica O direito de acordo com este ponto de vista não se limita a ser um fenômeno empírico Quando dizemos que uma regra do direito é vigente ou válida nos referimos não somente a algo fatual a algo observável mas também a uma vali dade de cunho metafísico Supõese que essa validade seja um puro conceito da razão de origem divina ou existente a priori independente da experiência na natureza racional do ser humano E eminentes auto res da filosofia do direito que rejeitam tal metafísica espiritual têm con siderado todavia que a validade do direito só pode ser explicada por meio de postulados específicos 31 Ou seja pelo juiz e outras autoridades da justiça que aplicam o direito parágrafo 8 42 Alf Ross Vista sob essa luz nossa conclusão preliminar estou confiante não será classificada de lugar comum Essa análise de um modelo simples é deliberadamente direcionada no sentido de suscitar dúvi das no que tange à necessidade de explicações metafísicas com res peito ao conceito do direito A quem ocorreria buscar a validade das normas do xadrez numa validade a priori numa idéia pura do xadrez concedida ao ser humano por Deus ou deduzida pela razão humana eterna Tal pensamento é ridículo porque não tomamos o xadrez tão a sério como o direito e assim é porque há emoções mais fortes vinculadas aos conceitos jurídicos Mas isto não constitui razão para crer que a análise lógica deva adotar uma postura fundamentalmente diferente em um e outro caso Está claro que para lograr uma análise satisfatória do conceito de direito vigente é preciso ainda resolver muitos problemas Mas não há necessidade de aprofundar esta matéria neste ponto Esse estudo preliminar é suficiente a título de base para um exame dos vários ramos do estudo do direito e para determinar o lugar apropriado da filosofia do direito 4 OS RAMOS DO ESTUDO DO DIREITO A distinção levada a cabo no parágrafo anterior entre os fenôme nos jurídicos ou melhor o direito em ação e as normas jurídicas forma a base para uma distinção correspondente entre os dois princi pais ramos do estudo do direito Chamase de sociologia do direitc2 o ramo que se ocupa do direito em ação enquanto chamase de ciên cia do direito o ramo que se ocupa das normas jurídicas O direito em ação e as normas do direito não são duas esferas de existência independentes mas aspectos diferentes de uma mesma realidade Conseqüentemente podese falar de dois pontos de vista cada um deles pressupondo o outro A ciência do direito dirige sua atenção ao conteúdo ideal abstrato das diretivas ignorando as realidades do direito em ação A ciência do direito visa a à descoberta do conteúdo ideal que poderíamos tam bém chamar de ideologia que funciona como o esquema interpretativo para o direito em ação e b à exposição dessa ideologia como um 32 Esta expressão é aqui empregada visando a abarcar também os estudos psicológicos e históricos do direito em ação Direito e Justiça 43 sistema integrado Visto que a ciência do direito se ocupa de normas se pode denominála normativa Mas é mister que este termo não dê margem à confusão Como foi delineado no parágrafo 2 as proposi ções cognoscitivas não podem naturalmente consistir em normas diretivas É necessário que consistam em asserções asserções refe rentes a normas o que por sua vez significa asserções que enunciam que certas normas detêm a natureza de direito vigente O caráter normativo da ciência do direito significa portanto que se trata de uma doutrina que diz respeito a normas e não uma doutrina composta de normas Não objetiva postular ou expressar normas mas sim esta belecer o caráter de direito vigente dessas normas A ciência do direi to é normativa no sentido de que é descritiva de normas e não no sentido de expressiva de normas parágrafo 2 nota 29 E contudo a ciência do direito jamais poderá ser separada da sociologia do direito Embora a ciência do direito esteja interessada na ideologia é sempre uma abstração da realidade social Mesmo que o jurista não esteja interessado no nexo que liga a doutrina à vida real esse nexo existe Reside no conceito de direito vigente que como foi mostrado constitui parte essencial de todas as propo sições doutrinárias pois esse conceito em consonância com nossa análise provisional se refere à efetividade das normas enquanto cons tituintes de um fato social Ademais uma ciência do direito que ignora a função social do direito tem que resultar insatisfatória quando julgada segundo o cri tério do interesse em predizer as decisões jurídicas Como vimos o conhecimento das normas primárias do xadrez só possibilitará a pre dição do curso de uma partida dentro de um quadro muito amplo É o que ocorre porque os jogadores não são exclusivamente motivados pelas normas do xadrez a saber também são motivados por seu propósito ao jogar e as proposições teóricas do xadrez no tocante às conseqüências dos movimentos de acordo com as regras do jogo O mesmo ocorre no direito O juiz não é motivado exclusivamente pelas normas jurídicas também o é pelos fins sociais e pelo discernimento teórico das conexões sociais relevantes ao atingir daqueles fins Por esta razão temse exigido da ciência do direito em especial modernamente que dirija sua atenção para as realidades da vida social Isto demonstra ademais que a fronteira entre a ciência do direito e a sociologia do direito não é nítida residindo sim numa rela tiva diferença de abordagem e interesse 44 Atf Ross A sociologia do direito por sua vez dirige sua atenção para o direito concreto em ação para o comportamento jurídico e as idéias jurídicas que operam nesse comportamento e não pode ser separa da da ciência do direito tanto quanto esta não pode ser separada dela a sociologia do direito Os fenômenos sociais que constituem o objeto da sociologia do direito não adquirem seu caráter jurídico específico enquanto não são postos em relação com as normas do direito vigente A sociologia do direito como ramo científico é todavia tão nova e pouco desenvolvida que é difícil assinalar quais os problemas que lhe concernem Falando em termos gerais procura ela descobrir correlações invariáveis no direito em ação enfocando o problema sob o ângulo da psicologia da história e da sociologia geral As normas jurídicas só podem indicar uma estrutura na qual se desen volve o direito em ação influenciado também pelos costumes fato res econômicos e ideológicos fins sociais e percepções extraídas da teoria social Quando se trata do direito em ação na vida real é possível que um conjunto de normas jurídicas por exemplo o que contém nor mas que regulam o divórcio seja desenvolvido das maneiras mais variadas talvez fosse mais adequado dizer que poderseia jogar com essas normas de maneiras diferentes Quem conheça somen te as normas pouco conhece da realidade social correspondente Na prática quais bases para o divórcio são invocadas nos diversos seto res da sociedade Que possibilidades existem de escapar às leis mediante o forjar de provas e que costumes têm sido desenvolvidos em conexão com isso Com que favorecimento ou desfavorecimento os tribunais consideram as várias bases para o divórcio particular mente quando apreciam a prova Questões desta natureza tocan tes à viva e concreta realidade jurídica social são consideradas e tratadas na sociologia do direito Um campo de investigação que tem particular interesse para o estudo da sociologia do direito é a interação entre direito e socieda de O que produz o respeito pelo direito o qual permite ao legisla dor guiar a vida da comunidade Que outros fatores entram em jogo e estabelecem um limite para o poder do legislador Quais reações é possível presumir que serão provocadas pela aprovação Direito e Justiça 45 de uma determinada lei E inversamente quais forças sociais de terminam o conteúdo e o desenvolvimento de um ordenamento ju rídico Que papel desempenham aqui as circunstâncias econômicas e as posturas éticojurídicas dominantes É o desenvolvimento do direito o produto de forças cegas ou desempenham o planejamento e o discernimento racional um papel nesse desenvolvimento Os dois ramos principais do estudo do djreito a ciência do direito e a sociologia do direito podem ser subdivididos a primeira em ciência do direito no sentido mais estrito história do direito e direito comparada a segunda em sociologia fundamental do direito e socio logia do direito aplicada 41 Ciência do Direito A A ciência do direito no sentido mais estrito ocupase de um sistema de direito definido numa sociedade definida por exemplo o direito de Illinois vigente na atualidade Tradicionalmente é por sua vez subdividida em muitos ramos de estudo como será mostrado no capítulo VIII B A história do direito descreve um direito vigente no passado e trata de seu desenvolvimento histórico Difere da ciência do direito presente por dois modos adicionais I o O momento presente é mais do que um mero ponto temporal disposto ao lado de todos os outros pontos no tempo Distinguese de todos os outros pelo fato de ser o ponto no tempo no qual o curso da realidade chegou e está na iminência de adentrar o futuro O direito é apreendido nesta progressão Qualquer exposição do direito vigente confinada a uma determinada data é um instantâneo snapshot que captou um corte transversal dessa corrente Mas um corte transver sal do agora é caracterizado pelas questões que estão abertas ao futuro A questão de determinar qual é o direito de hoje o que vere mos logo na seqüência no parágrafo 9 envolve sempre a questão de saber o que ocorrerá amanhã Um fator codeterminante para este cálculo de predição é o que ocorreu ontem O direito vigente jamais é um fato histórico mas sim um cálculo com o olhar no futuro Isto confere às proposições do estudo do direito de hoje um elemento fundamental de incerteza e resulta na medida em que a certeza do 46 Alf Ross cálculo diminui numa fusão peculiar dos problemas do direito vigente com os problemas políticojurídicos33 relativamente à criação do direi to novo parágrafo 9 A história do direito não apresenta caracterís ticas semelhantes Aqueles problemas que vistos com os olhos do passado estavam abertos se acham hoje fechados A história do di reito portanto se ocupa exclusivamente com os fatos 2o Se por um lado a história do direito carece de contato com a política jurídica por outro mantém contato mais estreito com a socio logia do direito34 Não só objetiva apresentar o direito num determi nado momento como também descrever e explicar seu desenvolvi mento Estuda o desenvolvimento do direito em relação ao desenvol vimento de outros fenômenos sociais C O direito comparado como a história do direito tem também um raio de ação mais amplo não se limitando a apresentar o direito vigente em diferentes países Pode ter seja caráter contemporâneo seja caráter histórico Pertence à primeira categoria quando investiga os efeitos sociais de diversos ordenamentos jurídicos sendo neste caso um instrumento de política jurídica Pertence à segunda catego ria quando investiga as circunstâncias sociais capazes de explicar porque o direito se desenvolveu segundo diferentes linhas em dife rentes sociedades Ambos os tipos de direito comparado apresentam marcantes elementos sociológicos visto incorporarem no estudo a relação entre o direito e a sociedade É evidente que a sociologia desempenha um papel tão importante tanto na história do direito quanto na ciência comparada do direito a ponto de tornar quase uma questão de preferência pessoal classificar essas duas subdivisões como parte da ciência do direito ou da socio logia do direito 42 Sociologia do Direito A A sociologia fundamental do direito admite várias divisões uma parte geral e muitos ramos especializados 33 0 significado desta expressão é explicado na seqüência 34 A aparente falta de clareza que parece resultar do fato de se sustentar como se sustenta mais adiante que a política jurídica é sociologia do direito aplicada desvanece quando se acrescenta que a sociologia que interessa ao político jurídico e assim ao professor de direito se ocupa dos problemas dos efeitos sociais do direito enquanto a sociologia que interessa ao historiador do direito se ocupa dos fatores sociais que exercem influência sobre a evolução do direito Direito e Justiça 47 I o A parte geral se ocupa das características gerais do direito em ação sua estrutura e dinâmica sem referência a qualquer ramo parti cular do direito A investigação pode ser dirigida seja a um certo tipo de comunidade por exemplo a moderna comunidade democrática com vista ao estudo dos traços típicos da estrutura e função do direito em ação nesse meio em particular a mecânica da motivação jurídica e a interação entre o direito e outras forças sociais sociologia estática do direito seja ao desenvolvimento histórico com vista à descoberta dos princípios gerais que regem as relações entre o direito e o desenvolvi mento da comunidade sociologia dinâmica do direito 2o Os vários ramos especializados correspondem às esferas espe ciais do direito A criminologia a qual estuda o comportamento crimi noso associado aos fatores individuais e sociais que o condicionam corresponde ao direito penal a ciência política a qual estuda a vida política particularmente as ideologias e instituições políticas corresponde ao direito constitucional as relações internacionais correspondem ao direito internacional e a ciência da administração ao direito administra tivo Até os dias de hoje nenhum outro ramo especial da sociologia do direito apareceu mas se afiguraria inteiramente possível imaginar ou tros correspondentes ao direito que regulamenta a propriedade35 o direito das pessoas o direito da família etc B A sociologia do direito aplicada como as ciências naturais apli cadas cobre um campo de estudo selecionado e organizado em con formidade com os problemas práticos A ciência da agricultura por exemplo se ocupa das circunstâncias e problemas práticos que são relevantes à exploração do campo Identicamente a sociologia do direito aplicada se ocupa de fatos e relações que têm importância em referência aos problemas práticos da legislação Ao se preparar uma certa reforma legislativa a sociologia do direito aplicada descreve as condições predominantes na sociedade e analisa as mudanças que a nova legislação pode produzir O resultado de tais estudos constitui valiosa orientação para o legislador ou para a pessoa que lida com os problemas do ponto de vista do legislador Os estudos de sociologia do direito não ocorrem muito amiúde de maneira independente mas como parte do trabalho oficial de reforma legislativa relatórios de comissões e documentos análogos 35 Ver por exemplo Karl Renner The Institutions of Private Law and their Social Functions 1949 48 Alf Ross Mesmo quando o conhecimento sociológico jurídico dos efeitos das medidas legislativas sobre a sociedade é valioso para o legislador o informando acerca das conseqüências da escolha entre várias alter nativas sua decisão depende também de seus objetivos imediatos e de sua filosofia social como um todo ou seja das metas e valores últimos que o legislador reconhece como padrões para a vida social e a atividade criadora de direito dele O mesmo é verdadeiro também em relação ao juiz na medida em que direito novo é criado através da prática dos tribunais A expressão política jurídica é introduzida para designar a atividade criadora de direito do legislador ou do juiz e a discussão racio nal dessa atividade Seria supérfluo salientar que a política jurídica nada tem a ver com a política no sentido ordinário desta palavra A questão que se apresenta agora é saber até onde e de que maneira os problemas de política jurídica podem ser discutidos e so lucionados racionalmente Há uma ciência da política jurídica uma ciência do direito de tege ferenda et de sententia ferenda capaz de postular uma verdadeira filosofia dos valores que devem presidir a legislação A aspiração da filosofia do direito natural é com efeito estabelecer tal ciência do direito como deve ser A segunda metade deste livro capítulos X a XVIII responde essa pergunta na forma negativa Não há nenhuma ciência específica da política jurídica ou do direito natural Na medida em que a política jurídica é determina da por um conhecimento racional é ela sociologia do direito aplicada De resto é baseada em valorações que se encontram fora do âmbito do conhecimento racional parágrafos 73 e 79 5 EM LUGAR DE FILOSOFIA DO DIREITO PROBLEMAS JUSFILOSÓFICOS No parágrafo 1 descrevemos os três enfoques tradicionais da filo sofia do direito analítico ético e históricosociológico mas deixa mos em aberto o problema de como deve ser definido esse ramo do estudo do direito Dissemos que esse problema só pode ser solucio nado com base num exame geral das diversas abordagens mediante as quais poderia tentarse um estudo do direito Esse exame acabou de ser realizado no parágrafo precedente O resultado entretanto parece ser negativo na medida em que nenhum dos ramos do estudo do direito ali mencionados parece possuir aquele caráter filosófico Direito e Justiça 49 que o autorizaria a receber o nome de filosofia do direito no senti do mais amplo ou jurisprudence nos países de língua inglesa É verdade que o que se denomina jurisprudence históricosocio lógica se enquadra na sociologia do direito tal como definida no pa rágrafo 4 Mas esse ramo a sociologia do direito quando desenvol vido como uma ciência empírica carrega tão claramente a marca de uma ciência especializada entre outras que seria injustificável elevá lo sob o nome de jurisprudence ao nível de um estudo filosófico A denominada filosofia do direito natural ou filosofia jusnaturalista não consta no exame do parágrafo 4 o que se deve ao fato de que o que será ventilado nos capítulos XI a XIII o que atende por essa designação não passa de especulação metafísica sem justificação científica Dos ramos tradicionais da filosofia do direito portanto resta apenas o ramo analítico Este ramo do estudo do direito parece realmente possuir um caráter verdadeiramente filosófico e merecer o nome de filosofia do direito ou jurisprudence Mas este tampouco figura entre as diferentes abordagens esboçadas no parágrafo 4 Como explicálo Para suprir essa explicação é necessário formular algumas consi derações gerais acerca da relação entre a filosofia e as ciências A moderna filosofia baseada numa perspectiva empírica a que subs crevo adota o ponto de vista geral segundo o qual a filosofia carece de objeto específico seja coordenado àquele das várias ciências seja distinto dele Filosofia não é dedução a partir de princípios de razão por meio de que se nos revela uma realidade superior àquela dos sentidos Tampouco é a filosofia uma extensão das ciências destinada a descobrir os componentes extremos da realidade Não é de modo algum teoria mas sim método e este método é análise lógica A filosofia é a lógica da ciência e seu objeto é a linguagem da ciência Disso se infere que a filosofia do direito não possui objeto especí fico coordenado ao objeto da ciência do direito o estudo do direito ou distinto desse objeto nas suas várias ramificações A relação da filosofia do direito com a ciência do direito é reflexa a filosofia do direito volta sua atenção para o aparato lógico da ciência do direito em particular para o aparato dos conceitos visando a tornálo obje to de uma análise lógica mais minuciosa do que aquela que lhe é dedicada pelos vários estudos jurídicos especializados O filósofo do 50 Alf Ross direito investiga problemas que com freqüência constituem premis sas tidas como pacíficas pelo jurista Seu objeto é predominante mente os conceitos fundamentais de alcance geral tais como por exemplo o conceito de direito vigente que por essa razão não é designado como tarefa particular a quaisquer dos muitos especialis tas dentro do amplo domínio do direito O objeto da filosofia do direito não é o direito nem qualquer parte ou aspecto deste mas sim a ciência do direito A filosofia do direito se acha por assim dizer um andar acima da ciência do direito e a olha de cima36 Os limites entre a ciência do direito e a filosofia do direito não são rígidos A análise lógica realmente ocorre também latamente no âmbi to do estudo tradicional do direito Inexistem critérios internos que determinem onde finda a ciência do direito e começa a filosofia do direito Podese apresentar uma delimitação do domínio desta última considerandose o que a primeira obteve Esta circunstância explica de que forma a corrente filosofia do direito Jurisprudence inglesa abran ge uma série de conceitos e problemas tais como por exemplo dolus dous eventuafís culpa intenção o propósito da punição e as teorias penal da propriedade da posse do contrato da prova do ônus da prova etc conceitos e problemas que na tradição norteamericana e na da Europa continental formam ordinariamente parte das diversas disciplinas jurídicas Encontrase a explicação no escasso desenvolvi mento na doutrina inglesa de qualquer análise e elaboração de concei tos jurídicos Por conseguinte na Inglaterra a filosofia do direito lá chamada de jurisprudence chegou a ser o sítio onde quase todas as investigações fundamentais se reúnem Em outros sistemas não seria razoável atribuir um domínio tão amplo à filosofia do direito pois isto conduziria a repetições Portanto só incluirei em minha exposição so bre a filosofia do direito os problemas que não são examinados na literatura jurídica corrente ou que o são de forma insatisfatória Este fator relativo explica também porque não é conveniente falar de filosofia do direito já que esta expressão sugere um domínio de inves tigação sistematicamente restrito Daí minha preferência pela expressão 36 As proposições contidas nesta parte do texto concernentes à filosofia do direito situamse num nível ainda mais alto A proposição contida na primeira frase desta nota referente às proposições que concernem à filosofia do direito situase por sua vez num nível mais alto ainda de sorte que poderíamos seguir ad infinitum k idéia por vezes sustentada de que a série pode ser concluída por uma proposição que se refere a si mesma é insustentável Direito e Justiça 51 problemas jusfilosóficos Os interesses de cada estudioso em parte e em parte o desenvolvimento dos estudos jurídicos num dado tempo determinarão quais problemas serão submetidos à análise filosófica A análise jusfilosófica pode dirigir sua atenção a ambos os ramos do estudo do direito a ciência do direito e a sociologia do direito Como contudo o aparato lógico da sociologia do direito é principal mente idêntico ao empregado em outras sociologias e na história pareceria razoável circunscrever os problemas especificamente jusfilosóficos à consideração da ciência do direito Esta conclusão inclusive é apoiada por fundamentos pedagógicos já que uma aná lise filosófica da sociologia do direito careceria de valor como parte da educação jurídica tradicional Dentro da sociologia do direito todavia a sociologia do direito aplicada detém uma posição especial devido à sua estreita ligação com a política jurídica parágrafo 4 in fine A discussão dos problemas de política jurídica desempenha um papel importante e crescente nos trabalhos dos autores da área e no ensino das faculdades de direito Por esta razão a análise lógica será tam bém dirigida ao pensamento políticojurídico e à sociologia aplicada como parte dele Em consonância com isso a exposição que se segue se enquadra rá em duas seções principais problemas jusfilosóficos na sua relação com a ciência do direito capítulos II a IX e problemas jusfilosóficos na sua relação com a política jurídica capítulos X a XVIII 6 DISCUSSÃO Penso que a relação entre minha interpretação da natureza e tare fa da filosofia do direito por um lado e os pontos de vista tradicionais por outro ficou suficientemente clara mediante o exposto nos pará grafos anteriores Diante disto limitarmeei aqui a traçar algumas observações suplementares Se descartei a filosofia do direito natural como falta de justificação científica não faço decerto objeções aos estudos históricosociológi cos desde que efetuados de acordo com princípios empíricos e não sejam especulação metafísica disfarçada A interpretação histórico sociológica da filosofia do direito foi rejeitada com o fundamento sistemático de que os estudos desse tipo possuem todos os traços 52 Alf Ross característicos de uma ciência especializada e portanto não devem ser mesclados ao enfoque analítico e considerados pertinentes à filo sofia do direito Isto entretanto não significa negar a importância das investigações sociológicas para a filosofia do direito concebida como análise de conceitos jurídicos Estas são importantes e é impe rioso que sejam se se presume como eu o faço que todas as propo sições acerca do direito se referem em última análise a uma realida de social O fundamento da filosofia do direito tem que ser uma pers pectiva sociológica Julius Stone oferece uma definição eclética da tarefa da filosofia do direito a qual inclui problemas lógicoanalíticos problemas éticos e problemas sociológicos37 Seu princípio norteador é que a filosofia do direito estuda o direito à luz da lógica da ética e da sociologia O princípio em si não é claro e se traduz num agregado de materiais heterogêneos sem coesão orgânica Stone escreveu um livro colossal despendendo tremenda laboriosidade e prodigiosa erudição porém não produziu nenhuma teoria coerente 37 The Province and Functions of Law 1946 cap I parágrafos 11 a 13 Definições ecléticas semelhantes podem ser encontradas nas obras de muitos autores ingleses e norteamericanos tais como Vinogradoff Pound Keeton Kocourek Hohfeld Wigmore Timasheff às vezes como em Stone camufladas por um esquema de classificação pretensamente racional Ver Stone op cit cap I parágrafos 8 e 9 Josef L Kunz Zur Problematik der Rechtsphilosophie um die Mitte des zwanzigsten Jahrhunderts Õster Z f õftfí n s IV 1951 1 etseq afirma que todas as três tendências são ramos de igual status da mesma ciência filosofia do direito ou jurisprudence Capítulo II O conceito de Direito Vigente 7 0 CONTEÚDO DO ORDENAMENTO JURÍDICO No capítulo anterior tomando como base uma análise do jogo de xadrez e suas regras formulei uma hipótese de trabalho segundo a qual tem que ser possível definir e explicar o conceito de direito vigente em princípio da mesma forma que o conceito de norma vigente do xadrez A tarefa a ser empreendida agora é tentar de senvolver essa hipótese transformandoa numa teoria da significação da expressão direito vigente A hipótese de trabalho infere que as normas jurídicas como as normas do xadrez servem como um esquema interpretativo para um conjunto correspondente de atos sociais o direito em ação de tal modo que se torna possível compreender essas ações como um todo coerente de significado e motivação e predizêlas dentro de certos limites Esta capacidade do sistema se funda no fato de que as normas são efetivamente acatadas porque sentidas como social mente obrigatórias A elaboração dessa hipótese requer a resposta a duas questões I a Como o corpo individual de normas identificado como um ordenamento jurídico nacional se distingue do ponto de vista de seu conteúdo de outros corpos individuais de normas tais como as nor mas do xadrez do bridge ou da cortesia 54 Alf Ross 2a Se a validade de um sistema de normas lato sensu significa que o sistema devido à sua efetividade pode servir como um esque ma interpretativo como aplicar esse critério ao direito A primeira questão será discutida neste parágrafo a segunda nos parágrafos 8 a 10 Consideremos mais uma vez por um momento o jogo de xadrez Não faz sentido obviamente querer definir as regras do xadrez distin guindoas por exemplo das regras do tênis do futebol ou do bridge As regras do xadrez é a designação de um conjunto individual de normas que constituem um todo coerente e significativo Do mesmo modo que John Smith é o nome de um indivíduo que não pode ser definido mas pode ser destacado regras do xadrez é o nome de um conjunto indivi dual de normas que não são definidas mas são destacadas estas são as regras do xadrez Na prática não há dificuldade em manter as regras do xadrez distintas das regras do tênis do futebol do bridge ou quaisquer outras normas sociais O problema da definição só surgirá se tivéssemos que classificar as regras do xadrez juntamente com as regras do futebol e as regras do bridge sob o título único de regras de jogos Teríamos então que indagar que característica em qualquer sistema individual de normas é decisiva para determinar se o incluímos ou não sob esse título Esse problema de definição não surgirá se quisermos apenas expor as regras do xadrez Para fazermos isto não é necessário conhecer coisa alguma acerca do que há de comum entre as regras do xadrez e outros sistemas individuais de regras que poderiam ser classificados conjunta mente sob o título regras de jogos Ocorre precisamente o mesmo no direito Direito dinamarquês é o nome de um conjunto individual de normas que constituem um todo coerente significativo e que portanto não comportam definição mas podem ser destacadas Direito dinamarquês direito norueguês di reito sueco etc correspondem aos vários conjuntos individuais de regras dos jogos O problema da definição só surgirá se tivéssemos que classificar esses vários sistemas individuais associativamente sob o título direito ou ordenamento jurídico Mas também é verdade aqui que esse problema da definição não surgirá se desejarmos somente expor o direito dinamarquês vigente Para isso não é necessário conhe cer coisa alguma do que esse sistema de normas tem em comum com outros sistemas de normas passíveis de ser classificados associativamente sob o título direito ou ordenamento jurídico Direito e Justiça 55 Visto que pretendemos restringir a filosofia do direito ao estudo de conceitos que estão pressupostos na ciência dogmática do direito o problema de uma definição de direito ordenamento jurídico é es tranho à filosofia do direito Jamais compreendeuse isso Acreditouse que para definir a esfera de trabalho do jurista era necessário produzir uma definição do direito que o distinguisse de outros tipos de normas sociais Esse erro foi cometido porque não se entendeu que direito nacional vigente constitui um todo individual O que nele está incluído depende da coerência de significado nele presente O vocábulo direi to não é comum a uma classe de regras de direito mas sim a uma classe de ordenamentos jurídicos individuais A experiência também o confirma pois na prática não é geralmente1 difícil para um jurista de terminar se uma regra do direito faz parte do direito nacional ou se pertence a um sistema distinto de normas por exemplo a outro ordenamento nacional às regras do xadrez ou à moralidade Porém mesmo a questão da definição do direito ordenamento jurídico saindo assim do âmbito da filosofia do direito como foi es boçado aqui a existência de uma tradição a respeito e o desejo de oferecer um quadro geral justificam algumas considerações sobre o assunto No parágrafo 12 retornarei a este ponto novamente Por ora quero apenas antecipar o parecer que é fundamental de que nenhum interesse particular exceto a conveniência se prende à for ma como se define o conceito As intermináveis discussões filosóficas tocantes à natureza do direito se fundam na suposição de que o direito extrai sua validade específica de uma idéia a priori e que a definição do direito é portanto decisiva para determinar se uma dada ordem normativa pode apresentar a reivindicação ao título honorífico do direito Se abandonarmos essas pressuposições metafísicas e as posturas emocionais nelas envolvidas o problema da definição per derá o interesse A função da ciência do direito é expor um certo sistema individual e nacional de normas Existem vários outros siste mas individuais que em maior ou menor grau se lhe assemelham por exemplo outros sistemas nacionais o direito internacional a ordem social de uma comunidade primitiva que não possui organização al guma que a estabeleça ou a preserve a ordem de um bando de criminosos a ordem mantida pelo poder ocupante num país ocupa do etc Todas estas ordens ou sistemas são fatos quer nos agradem Ocasionalmente podem surgir dúvidas Ver parágrafo 10 56 Alf Ross ou não De qualquer modo necessitamos de um termo para descrever esses fatos e tratase puramente de questão terminológica destituída de quaisquer implicações morais se para esse propósito elegemos o termo direito ou qualquer outro termo Não seria conveniente afastar mos o uso do termo direito relativamente aos sistemas que não nos agradam Que a ordem que prevalece numa quadrilha por exemplo seja denominada ordenamento jurídico direito da quadrilha é um problema que considerado cientificamente quer dizer a palavra direi to sendo liberada de sua carga emotivomoral não passa de uma ques tão arbitrária de definição Asseverouse que o sistema de violência de Hitler não era um ordenamento jurídico e o positivismo jurídico foi acusado de traição moral por sua admissão não crítica de que tal ordem era direito2 Contudo uma terminologia descritiva nada tem a ver com aprovação ou condenação moral Embora eu possa classificar uma certa ordem como ordenamento jurídico é possível para mim ao mesmo tempo ter como meu dever moral mais elevado derrubar essa ordem Esta mistura de pontos de vista descritivos e atitudes morais de aprova ção que caracteriza a discussão do conceito de direito é um exemplo daquilo que Stevenson chama de definição persuasiva3 É o bastante para o inútil problema da definição do conceito de direito ou ordenamento jurídico Posso voltar agora à questão de como um ordenamento jurídico individual nacional se distingue em conteúdo de outros corpos individuais de normas Um ordenamento jurídico nacional como as normas do xadrez cons titui um sistema individual determinado por uma coerência interna de significado e nossa tarefa é indicar no que consiste isso Enquanto se trata das regras do xadrez o caso é simples A coerência de significado é dada pelo fato de que todas elas direta ou indiretamente se referem aos movimentos executados pelas pessoas jogando a partida de xadrez Se as regras jurídicas terão analogamente de constituir um sistema terão analogamente que guardar referência com ações definidas realiza das por pessoas definidas Mas que ações são estas e quem são estas pessoas Esta pergunta só pode ser respondida estabelecendose medi ante uma análise das regras comumente tidas como um ordenamento jurídico nacional a quem são dirigidas e qual é o seu significado 2 Gesetzliches Unrecht und iibergesetzliches Recht Anhang 4 in Gustav Radbruch Rechtsphilosophie 4 ed 1950 347 e segs 3 Charles L Stevenson Ethics andLanguage 1944 206 e segs Direito e Justiça 57 As normas jurídicas podem ser divididas de acordo com seu con teúdo imediato em dois grupos normas de conduta e normas de competência Ao primeiro grupo pertencem as normas que prescre vem uma certa linha de ação por exemplo a regra da Lei Uniforme de Instrumentos Negociáveis Uniterm Negotiabie Instruments Act seção 62 que prescreve que aquele que aceita um instrumento ne gociável se obriga a pagar de acordo com o teor de sua aceitação O segundo grupo contém as normas que criam uma competência po der autoridade são diretivas que dispõem que as normas que são criadas em conformidade com um modo estabelecido de procedimen to serão consideradas como normas de conduta Uma norma de com petência é deste modo uma norma de conduta expressa indireta mente As normas da Constituição concernentes à legislatura por exemplo são normas de conduta expressas indiretamente que pres crevem comportamento de acordo com as normas ulteriores de con duta que sejam criadas por via legislativa A quem são dirigidas as normas de conduta O Uniterm Negotiabie InstrumentsAct seção 62 por exemplo prescreve aparentemente como uma pessoa que aceitou uma letra de câmbio deverá se comportar Porém este enunciado não esgota o significado normativo de tal nor ma na verdade não chega sequer a se aproximar do que é realmente relevante A seção 62 é ao mesmo tempo uma diretiva aos tribunais quanto a como num caso que se enquadre nessa regra deverão exer cer sua autoridade É óbvio que é somente isto que interessa ao juris ta Uma medida legislativa que não encerre diretivas para os tribunais só pode ser considerada como um pronunciamento ideológicomoral sem relevância jurídica Inversamente se a medida contiver uma diretiva para os tribunais não haverá necessidade de dar aos indivíduos parti culares instruções adicionais relativas à sua conduta São dois aspectos do mesmo problema A instrução diretiva ao particular está implícita no fato de que ele sabe que reações pode esperar da parte dos tribu nais em dadas condições Se desejar evitar essas reações tal saber o levará a se conduzir da forma que está de acordo As normas do direito penal são redigidas dessa maneira Nada dizem a respeito da proibição aos cidadãos de cometerem homicí dio limitandose a indicar ao juiz qual será a sentença em tal caso Nada impede em princípio que as regras do Negotiabie Instruments Act ou quaisquer outras normas de conduta sejam formuladas do 58 Alf Ross mesmo modo Isto mostra que o conteúdo real de uma norma de conduta é uma diretiva para o juiz enquanto a instrução diretiva ao particular é uma norma jurídica derivada ou norma em sentido figura do deduzida daquela4 As normas de competência são redutíveis a norma de conduta tendo portanto que ser também interpretadas como diretivas aos tribunais A sentença é a base da execução Seja qual for a forma que a sentença possa assumir ela constitui potencialmente o exercício de força física contra uma pessoa que não quer agir de acordo com o teor da sentença Um juiz é uma pessoa qualificada de acordo com as regras que regem a organização dos tribunais e a designação ou eleição dos juizes Deste modo as regras do direito privado dirigidas aos juizes estão integradas às regras do direito público O direito em sua tota lidade determina não só nas regras de conduta em que condições o exercício da força será ordenado como também determina as autoridades públicas os tribunais estabelecidos para ordenar o exercício da força5 O corolário natural disso e que confere ao exercício público da força seu efeito e significado especial é que o direito ao exercício da força física é em todos os aspectos essenciais o monopólio das autoridades públicas Naqueles casos nos quais existe um aparato para o monopólio do exercício da força dizemos que há um Estado Em síntese um ordenamento jurídico nacional é um corpo inte grado de regras que determina as condições sob as quais a força física será exercida contra uma pessoa o ordenamento jurídico nacional estabelece um aparato de autoridades públicas os tribu nais e os órgãos executivos cuja função consiste em ordenar e levar a cabo o exercício da força em casos específicos ou ainda mais sinteticamente um ordenamento jurídico nacional é o con junto de regras para o estabelecimento e funcionamento do apa rato de força do Estado 4 Esta questão volta a ser discutida no parágrafo 11 onde é explicado que as normas jurídicas em sentido figurado também cumprem uma função ideologicamente motivadora independente do receio das sanções 5 Os fatos se revelam um tanto mais complicados porque em alguns casos relativamente raros a força pode ser ordena da diretamente por órgãos administrativos sem a intervenção dos tribunais A VIGÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO O ponto de que partimos é a hipótese de que um sistema de normas será vigente se for capaz de servir como um esquema interpretativo de um conjunto correspondente de ações sociais de tal maneira que se torne possível para nós compreender esse conjun to de ações como um todo coerente de significado e motivação e dentro de certos limites predizêlas Esta capacidade do sistema se baseia no fato das normas serem efetivamente acatadas porque são sentidas como socialmente obrigatórias Ora quais são esses fatos sociais que como fenômenos jurídicos cons tituem a contrapartida das normas jurídicas Têm que ser as ações hu manas regulamentadas pelas normas jurídicas Estas como vimos são em última análise normas que determinam as condições sob as quais a força será exercida por meio do aparato do Estado ou concisamente normas que regulamentam o exercício da força ordenado pelos tribu nais Concluise disso que os fenômenos jurídicos que constituem a contrapartida das normas têm que ser as decisões dos tribunais É aqui que temos que procurar a efetividade que constitui a vigência do direito Em conformidade com isso um ordenamento jurídico nacional considerado como um sistema vigente de normas pode ser definido como o conjunto de normas que efetivamente operam na mente do juiz porque ele as sente como socialmente obrigatórias e por isso as acata O teste da vigência é que nesta hipótese ou seja aceitando o sistema de normas como um esquema interpretativo podemos com preender as ações do juiz as decisões dos tribunais como respostas plenas de sentido a dadas condições e dentro de certos limites po demos predizer essas decisões do mesmo modo que as normas do xadrez nos capacitam a compreender os movimentos dos jogadores como respostas plenas de sentido e predizêlos A ação do juiz é uma resposta a muitas condições determinadas pelas normas jurídicas digamos que se tenha celebrado um contrato de venda que o vendedor não tenha entregado a coisa vendida que o comprador a tenha reclamado oportunamente etc Ademais todos esses fatos condicionantes ganham seu significado específico como atos jurídicos através de uma interpretação feita à luz da ideologia das normas Por esta razão poderiam ser abrangidos pela expressão fenômenos jurídicos no seu sentido mais lato ou direito em ação Direito e Justiça 59 60 Alf Ross Todavia somente os fenômenos jurídicos no sentido mais restrito a aplicação do direito pelos tribunais são decisivos para determinar a vigência das normas jurídicas Contrastando com as idéias geral mente aceitas é mister enfatizar que o direito supre as normas para a conduta dos tribunais e não para aquela dos indivíduos particula res A efetividade que condiciona a vigência das normas só pode portanto ser buscada na aplicação judicial do direito não o podendo no direito em ação entre indivíduos particulares Se por exemplo proíbese o aborto criminoso o verdadeiro teor do direito consistirá numa diretiva ao juiz segundo a qual ele deverá sob certas condi ções impor uma pena por aborto criminoso O fator decisivo que determina que a proibição é direito vigente é tãosomente o fato de ser efetivamente aplicada pelos tribunais nos casos em que trans gressões à lei são descobertas e julgadas6 Não faz diferença se as pessoas acatam a proibição ou com freqüência a ignoram Esta indi ferença se traduz no aparente paradoxo segundo o qual quanto mais é uma regra acatada na vida jurídica extrajudicial mais difícil é veri ficar se essa regra detém vigência já que os tribunais têm uma opor tunidade muito menor de manifestar sua reação7 No que precede as expressões o juiz e os tribunais foram usadas indiscriminadamente Quando nos referimos a um ordenamento jurídico presumese que estamos lidando com um con junto de normas que são supraindividuais no sentido de que são normas particulares da nação variáveis de nação para nação e não de um juiz individual para outro razão pela qual é indiferente refe rirse ao juiz ou aos tribunais Na medida em que o juiz individual é motivado por idéias particulares pessoais estas não podem ser atribuídas ao direito da nação ainda que constituam um fator a ser obrigatoriamente considerado por quem esteja interessado em pre ver uma decisão jurídica concreta 6 0 termo tribunais deve ser aqui entendido como um termo de sentido amplo para designar as autoridades encarrega das da prevenção e punição dos crimes polícia Ministério Público e tribunais Se a policia regularmente se omitir quanto à investigação de certas trangressões ou se os agentes do Ministério Público regularmente se omitirem quanto a formular uma denúncia ou acusação o direito penal perderá seu caráter de direito vigente não obstante sua aplicação ocorra muito intermitentemente nos tribunais 7 Para a aplicação deste ponto de vista ao direito internacional ver Alf Ross Textbook of International Law 19471 parágrafos 24 e 28 IV Direito e Justiça 61 Quando o fundamento da vigência do direito é buscado nas deci sões dos tribunais pode parecer que o encadeamento do raciocinar esteja atuando de forma circular visto que é possível alegar que a qualificação do juiz não é meramente uma qualidade fatual já que deriva necessariamente do direito vigente em particular das regras do direito público que regem a organização dos tribunais e a designa ção dos juizes Antes de poder verificar se uma certa regra do direito privado é direito vigente portanto precisarei estabelecer o que é direito vigente nesses outros aspectos E qual o critério para isso A resposta é que o ordenamento jurídico forma um todo integran do as regras do direito privado às regras do direito público Funda mentalmente a vigência é uma qualidade atribuída ao ordenamento como um todo O teste da vigência está no sistema na sua integrida de utilizado como um esquema interpretativo fazernos compreen der não só a maneira de agir dos juizes mas também que estão agindo na qualidade de juizes Não há ponto de apoio de Arquimedes para a verificação nenhuma parte do direito que seja verificada antes de qualquer outra parte8 O fato de que fundamentalmente o ordenamento jurídico inteiro sofre verificação não exclui a possibilidade de investigar se uma regra individual definida é direito vigente Simplesmente quer dizer que o problema não pode ser solucionado sem referência ao direito vigen te como um todo Estes problemas de verificação mais particulares são discutidos nos parágrafos 9 e 10 O conceito de vigência do direito repousa de acordo com a expli cação apresentada nesta seção em hipóteses que concernem à vida espiritual do juiz Não é possível determinar o que é direito vigente por meio de recursos puramente comportamentais ou seja pela ob servação externa da regularidade nas reações costumes dos juizes Ao longo de um extenso período o juiz pode ter manifestado uma certa reação típica por exemplo pode ter imposto penas por aborto criminoso De súbito essa reação muda porque uma nova lei foi 8 Nada há de peculiar no fato do ordenamento como um todo entrar em jogo para a verificação 0 mesmo princípio é aplicado também no domínio das ciências naturais A verificação de uma lei natural particular tem lugar na pressu posição de que muitas outras são verdadeiras 0 problema consiste em saber se a lei particular é compatível com o sistema até então aceito Mas nada é estabelecido ao abrigo de dúvidas Nada há que impeça que experiências novas nos obriguem a revisar todos os pontos de partida até então aceitos É sempre o todo sistemático em sua plenitude que permanece o critério final na decisão do que deverá ser tido como verdadeiro 62 Alf Ross promulgada A vigência não pode ser determinada recorrendose a um costume mais geral externamente observável nomeadamente o de obedecer o legislador pois não é possível a partir da observa ção externa identificar o legislador que está sendo obedecido A observação puramente externa poderia levar à conclusão de que se obedece às pessoas mencionadas nominalmente que no momento da observação eram membros da legislatura Mas um dia também a composição desta sofrerá mudança Podese prosseguir dessa ma neira ascendendo até a Constituição mas nada há que impeça que um dia a Constituição seja também mudada Nada se obtém pois mediante uma interpretação comportamental O comportamento de mudança do juiz somente pode ser compreen dido e predito mediante interpretação ideológica isto é por meio da hipótese de uma certa ideologia que anima o juiz e motiva suas ações Uma outra forma de expressar o mesmo é dizer que o direito pres supõe não só regularidade com respeito ao comportamento do juiz como também sua experiência de estar submetido às regras O concei to de vigência envolve dois pontos em parte o acatamento regular e externamente observável de um padrão de ação e em parte a experi ência desse padrão de ação como sendo uma norma socialmente obri gatória Nem todo costume externamente observável no jogo de xa drez constitui expressão de uma norma vigente de xadrez Não o é por exemplo o costume de não abrir com um peão ou torre igualmente nem toda regularidade externa e observável nas reações do juiz é a expressão de uma norma vigente do direito Pode ser por exemplo que entre os juizes tenha se desenvolvido o costume de punir unica mente com multas certas transgressões à lei embora o encarceramento também esteja autorizado Cumpre nesta oportunidade acrescentar que os costumes dos juizes exibem um pronunciado pendor para se transformarem em normas obrigatórias e que neste caso um costu me seria interpretado como expressão do direito vigente Mas isso não ocorre enquanto o costume não for mais que um hábito de fato Este aspecto dúplice do conceito de direito vigente explica o dualismo que sempre caracterizou esse conceito na corrente teoria metafísica do direito Segundo esta teoria direito vigente significa tanto um ordenamento efetivo quanto um ordenamento que possui força obrigatória derivada de princípios a priori o direito é ao Direito e Justiça 63 mesmo tempo algo real no mundo dos fatos e algo válido no mundo das idéias parágrafo 13 Não é difícil perceber que esse dualismo no ponto de vista pode acarretar tanto complicações lógicas quanto epistemológicas que encontram expressão em muitas antinomias na teoria do direito9 Tal dualismo conduz coerentemente à afirmação metafísica de que a existência mesma é válida em seu ser íntimo Hegel10 Como a maioria das construções metafísicas a construção relativa à validade imanente do direito positivo repousa sobre uma interpretação incorreta de certas experiências neste caso a experiên cia de que o direito não é meramente um ordenamento fatual um puro hábito mas sim um ordenamento que é experimentado como sendo socialmente obrigatório A concepção tradicional portanto se dela removermos a metafísica pode vir em apoio de meu ponto de vista na medida em que se opõe a uma interpretação puramente comportamental da vigência do direito 9 VERIFICAÇÃO DE PROPOSIÇÕES JURÍDICAS CONCERNENTES A NORMAS DE CONDUTA No parágrafo 2 foi indicada a diferença entre o conteúdo de signi ficado das normas jurídicas elas mesmas e aquele das proposições doutrinárias referentes às normas jurídicas As normas jurídicas são diretivas as proposições doutrinárias são asserções cuja relação com essas diretivas podem ser indicadas como se segue A asserção D é direito vigente no qual por exemplo D a Uniform Negotiabíe Instruments Act seção 62 No parágrafo 7 foi mostrado que um ordenamento jurídico nacio nal constitui um sistema individual de normas cuja unidade pode ser buscada no fato de que direta ou indiretamente todas elas são diretivas concernentes ao exercício da força pela autoridade pública No parágrafo 7 nos ocupamos portanto do D da fórmula acima No parágrafo 8 voltamos nossa atenção à parte da fórmula em que D é caracterizado como direito vigente e mostramos que esta caracterização se referia a uma correspondência entre o sistema de 9 A demonstração destas antinomias é o tema principal de meu livro Towards a Realistic Jurisprudence 11946 10 Ibid p 42 e Alf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 64 Alf Ross normas ao qual pertence D e uma realidade social a saber a aplicação do direito pelos tribunais A correspondência é tal que aplicando o sis tema de normas como um esquéma interpretativo nos capacitamos a compreender as ações dos tribunais como respostas plenas de sentido a dadas condições e dentro de certos limites a predizer essas ações Neste parágrafo e no seguinte investigaremos com maior rigor o método para comprovar se uma norma dada é direito vigente o que é idêntico a comprovar a verdade da asserção doutrinária correspon dente A situação irá variar de algum modo segundo nos ocupemos de normas diretas de conduta ou normas de competência e a inves tigação será dividida conseqüentemente em duas partes Neste pa rágrafo examinaremos as normas diretas de conduta e no próximo as normas de competência Constitui um princípio da moderna ciência empírica que uma pro posição acerca da realidade contrastando com uma proposição ana lítica lógicomatemática necessariamente implica que seguindo um certo procedimento sob certas condições certas experiências diretas resultarão Por exemplo a proposição isto é giz implica que se ob servarmos o objeto sob um microscópio certas qualidades estrutu rais se farão visíveis se eu verter ácido sobre ele o resultado será certas reações químicas se o friccionarmos contra um quadro negro surgirá uma linha e assim por diante Esse procedimento é chamado de procedimento de verificação e dizse que a soma das implicações verificáveis constitui o conteúdo real da proposição Se uma asserção qualquer por exemplo a asserção de que o mundo é governado por urg demônio invisível não envolver qualquer implicação verificável dizse tratarse de uma proposição destituída de significado lógico é desterrada do domínio da ciência como asserção metafísica11 A interpretação da ciência do direito exposta neste livro repousa no postulado de que o princípio da verificação deve se aplicar tam bém a este campo do conhecimento ou seja que a ciência do direito tem que ser reconhecida como uma ciência social empírica Isto sig nifica que não devemos interpretar as proposições acerca do direito 11 Ver por exemplo Victor Kraft Einführungin die Philosophie 1950 68 e segs que apresenta uma boa introdução às idéias fundamentais da moderna filosofia científica No texto acima por uma questão de conveniência utilizei o termo verificação Visto que uma confirmação definitiva da verdadede uma proposição científica não é possível seria mais preciso falar em comprovação testing Direito e Justiça 65 vigente como proposições que aludem a uma validade inobservável ou força obrigatória derivada de princípios ou postulados a priori mas sim como proposições que se referem a fatos sociais É mister evidenciar quais são os procedimentos que permitem verificálas ou quais são as implicações verificáveis delas Nossa interpretação baseada na análise precedente é que o con teúdo real das proposições da ciência do direito se refere às ações dos tribunais sob certas condições O conteúdo real por exemplo da proposição que afirma que a seção 62 do Uniform Negotiabie Instruments Acté direito vigente de Illinois é a asserção de que sob certas condições os tribunais de tal Estado atuarão de acordo com o teor dessa seção Esse teor é uma diretiva ao juiz para que ordene ao sacado pagar a letra que aceitou mas que deixou de pagar no dia do vencimento parágrafo 7 Em conformidade com isso dizse amiúde que uma regra é direito vigente quando é aplicada na prática dos tribunais Mas este é um enunciado grosseiro e vago que requer uma análise mais precisa em diversos aspectos I o Primeiramente não está claro o que quer dizer o uso do tem po presente é aplicada Referese isto a decisões jurídicas passa das a decisões presentes ou a decisões futuras Se alguém indaga qual é o direito vigente hoje em relação a uma determinada matéria o que indubitavelmente deseja saber é como se rão decididos os conflitos presentes se submetidos aos tribunais Neste caso obviamente não interessa saber quais regras até agora os tribunais têm seguido ao elaborar suas decisões a menos que haja razão para crer que continuarão atuando do mesmo modo Inversamente uma re gra pode ser considerada direito vigente a despeito de não ter sido até agora aplicada pelos tribunais por exemplo caso se trate de uma lei recentemente promulgada É considerada vigente se sob algum funda mento além da prática prévia dos tribunais houver razão para supor que a regra será aplicada em qualquer decisão jurídica futura Por conseguinte um enunciado sobre o dirèito vigente da atuali dade não se refere ao passado Por outro lado tampouco parece se referir ao que ainda está por vir Afirmar o que é direito vigente na atualidade não pode implicar na intenção de prever a maneira na qual os tribunais reagirão em vinte anos caso uma ação sobre o ponto de 66 Alf Ross nosso interesse não seja instaurada antes desse tempo O estado do direito poderá ter mudado nesse ínterim E em princípio o mesmo se mostra verdadeiro ainda que a decisão esteja mais próxima Além disso não sabemos se uma futura decisão jurídica sobre o ponto de nosso interesse será tomada algum dia Tais reflexões nos conduzem forçosamente à conclusão de que os enunciados que concernem ao direito vigente da atualidade têm que ser entendidos como enunciados alusivos a decisões futuras hipotéti cas submetidas a certas condições se se instaurar uma ação em relação à qual a regra jurídica particular apresenta relevância e se nesse ínterim não houve nenhuma modificação no estado do direito quer dizer nas circunstâncias que condicionam nossa asserção de que a regra é direito vigente tal regra será aplicada pelos tribunais As condições indicadas determinam ao mesmo tempo o método de verificação Para verificar uma proposição acerca do direito vigen te é preciso satisfazer as condições prescritas e observar a decisão O fato de que eu próprio possivelmente não esteja numa posição para pôr em marcha esse processo carece de relevância O significado de uma asserção está satisfatoriamente definido se ela puder em princí pio ser verificada isto é independentemente de dificuldades técni cas ou obstáculos Por exemplo a proposição de que a face oculta da lua é coberta de florestas detém portanto um significado certo embora não tenhamos sido capazes até agora de observar essa face da lua Acresçase a isto que dispomos de todas as razões para con siderar falsa a proposição visto não ser compatível com muitas hipó teses bem verificadas relativas às condições reinantes na lua É pos sível elaborar uma argumento paralelo com respeito à asserção de que uma medida legislativa que foi derrogada logo após sua aprova ção sem ter sido aplicada foi direito vigente durante o período inter mediário Embora não tenhamos podido verificar a asserção por meio de observação direta com base em muitas outras pressuposições bem verificadas relativas à mentalidade dos juizes dispomos de boas razões para considerar a asserção verdadeira 2o Em segundo lugar requerse uma definição mais exata do que significa a regra ser aplicada pelos tribunais Se tomarmos a seção 62 mencionada anteriormente seu ser aplicada não pode se referir a uma sentença de um determinado teor por exemplo que se ordene ao Direito e Justiça 67 sacado pagar a letra já que é possível que em conformidade com outras regras jurídicas possa ele opor uma contestação sustentável Poderia ocorrer por exemplo que se tratasse de um menor ou que o detentor do documento tivesse cometido algum ato que tenha prejudi cado seus direitos12 A seção 62 obviamente pertence a um todo coe rente de significado associado a várias outras regras jurídicas Conse qüentemente sua aplicação na prática jurídica só pode significar que nas decisões nas quais se supõe existirem os fatos condicionantes de tal regra esta forma parte essencial do raciocinar que funda a senten ça e que portanto a regra em questão constitui um dos fatores decisi vos que determinam a conclusão a que chega o tribunal É possível combinar as definições mais precisas expostas em 1 e 2 na fórmula seguinte o conteúdo real da asserção A seção 62 do Uniform Negotiabie Instruments Act constitui direi to vigente na atualidade num certo Estado é uma predição no sentido de que se ante os tribunais desse Estado se instaura uma ação na qual se afirma a existência dos fatos condicionantes de tal seção 62 e se no ínterim não houve modificações nas circunstâncias que constituem o fundamento de A a diretiva ao juiz contida naquela regra será parte essencial do raciocinar em que se funda a sentença A é considerada como verdadeira se dispomos de boas razões para supor que essa predição será cumprida Mesmo após terem sido ditadas uma ou mais decisões que veri ficam A A continuará sendo em princípio uma predição incerta relativamente a decisões jurídicas do futuro A questão da verdade de A não está ainda resolvida de forma definitiva Suponhamos que At representa a asserção A formulada no tempo t Uma decisão jurídica subseqüente ditada no tempo t certamente verifica A mas não A tl A decisão simplesmente supre apoio adicional à hipótese de que A ainda é isto é agora no tempo tl direito vigente Apesar de tudo que ocorreu e que ocorre o enunciado que alude ao direito do presente sempre mantém referência com o futuro 12 Não são levadas em conta aqui as regras de procedimento que estabelecem a exclusão provisional de certas contes tações num caso tocante a letras de câmbio 68 Alf Ross A verdade de A não pressupõe que estejamos em posição de pre dizer com razoável certeza o resultado de uma futura ação jurídica concreta mesmo se estivermos de posse dos fatos relevantes Em primeiro lugar o resultado dependerá da prova produzida e da avalia ção de que será objeto Como por exemplo as testemunhas se com portarão no tribunal e que impressão terá o juiz de sua confiabilidade A avaliação da prova é em tão grande medida condicionada subjeti vamente que esta razão por si só elimina toda possibilidade de calcu lar antecipadamente com certeza o resultado de casos nos quais há fatos controvertidos13 E ademais a interpretação das regras jurídi cas oferece pontos vitais de incerteza os quais serão examinados no capítulo IV Finalmente as idéias do juiz acerca do que é o direito vigente não constituem o único fator que o motivam Este último ponto é particularmente interessante já que o grau em que o juiz é motivado por outros fatores além dos fatores ideoló gicojurídicos é decisivo para o valor prático da ciência do direito a qual se ocupa da ideologia normativa pela qual o juiz é animado Um conhecimento desta ideologia e sua interpretação nos capacita portanto a calcular antecipadamente com considerável certeza o fun damento jurídico de certas decisões futuras fundamento que apare cerá nos argumentos Mas que relação existe entre os argumentos e a sentença parte dispositiva a qual naturalmente é o que realmen te desejamos predizer No que respeita a essa questão há grande diversidade de opiniões O ponto de vista tradicional não questiona que a sentença parte dispositiva seja o resultado do raciocínio realizado nos argumentos A decisão de acordo com essa opinião é um silogismo Os argumen tos contêm as premissas a sentença parte dispositiva a conclusão Em oposição a este parecer alguns estudiosos de época mais recente 13 Este ponto de vista foi enfaticamente defendido por Jerome Frank ver por exemplo Courts on Trial 11949 que destaca os fatores de inconfiabilidade inerentes às observações e depoimentos da testemunha e resultantes ainda das inclinações pessoais do juiz ao valorar o testemunho A afirmação que se segue é característica desse modo de ver de Frank É provável que as simpatias e antipatias do juiz se revelem ativas relativamente às testemunhas Seu próprio passado pode ter criado nele uma reação favorável ou desfavorável em relação às mulheres ou mulheres louras ou homens com barba ou sulistas ou italianos ou ingleses ou encanadores ou sacerdotes ou bacharéis ou democratas Um certa contração do rosto tosse ou gesto pode suscitar lembranças agradáveis ou desagradáveis Essas lembranças do juiz ao ouvir uma testemunha acometida por tal contração facial tosse ou gesticulação podem afetar a escuta inicial do juiz ou sua recordação posterior do que foi dito pela testemunha ou a importância e credibilidade que o juiz atribuirá ao depoimento da testemunha op cit 1511 Direito e Justiça 69 têm sustentado que o raciocínio feito nos argumentos não passa de uma racionalização da sentença parte dispositiva Com efeito di zem o juiz toma sua decisão em parte guiado por uma intuição emocional e em parte com base em considerações e propósitos práti cos Uma vez estabelecida a conclusão o juiz encontra uma adequa da argumentação ideológica jurídica que justifique sua decisão Usu almente isto não será difícil para ele A variedade das regras a incer teza de sua interpretação e a possibilidade de elaborar construções diversas sobre as matérias em debate geralmente permitirão que o juiz encontre uma roupagem jurídica plausível com que revestir sua decisão A argumentação jurídica encerrada nos considerandos do silogismo não passa de uma fachada que visa a dar suporte à crença na objetividade da decisão14 Não procurarei aqui aquilatar os méritos dessas teorias conflitantes mas simplesmente salientar a relevância por elas detida no tocante à questão do valor prático da ciência do direito Fica claro que se o ponto de vista tradicional é admissível o conhecimento acadêmico do direito vigente e de sua interpretação proporciona o melhor funda mento possível com a exceção das questões da prova para predi zer o resultado das futuras decisões jurídicas Se é possível predizer as premissas jurídicas também é possível predizer a conclusão Se gundo a teoria antagônica o conhecimento da ideologia jurídica é de pouca valia porque não motiva os juizes Aliás duvidase se é de algum modo possível atingir uma autêntica compreensão do que su cede quando um juiz toma uma decisão e granjear conhecimento de como predizer o resultado de disputas legais De uma maneira ou outra esses problemas são propriamente os objetos de estudo de disciplinas que são distintas da ciência do direito 14 Tais pontos de vista têm sido sustentados mormente pelo grupo de juristas norteamericanos conhecidos como realistas do direito e especialmente pelo subgrupo chamado por Frank op cit 73 de céticos da regra em sua contraposição com os céticos dos fatos A título de exemplos que ilustrem esses pontos de vista consul tar os primeiros trabalhos do próprio Frank particularmente Law and the Modem Mindi 19301 100 e segs e What Courts do in Fact III L R 2 6 11932 645 e segs Ver também Felix S Cohen Transcendental Nonsense and the Functional Approach Col L R 35 1935 809 e segs Karl N Llewellyn A Realistic Jurisprudence the Next Step Cot L R 30 19301431 e segs John Dickinson Legal Rules Their Function in the Process of Decision University of Pennsyivania L R 79 1931 833 e segs B N Cardozo em vários escritos expôs uma critica equilibrada dos exageros do realismo ressaltando em particular a diferença entre casos correntes e casos excepcionais Ver Seiected Writings 1947 7 esegs 20160177 212 Na mesma linha ver também o valioso tratado de Lon L Fuller American Legal Realism Proceedings of the American Philosophicai Society 76 1936 191 e segs 70 Alf Ross Se a asserção doutrinária de que uma certa regra é direito dina marquês vigente é de acordo com seu conteúdo uma predição de que a regra será aplicada em decisões jurídicas futuras seguese daí que as asserções dessa natureza jamais poderão pleitear certeza ab soluta podendo apenas ser mantidas com um maior ou menor grau de probabilidade dependente da força dos pontos sobre os quais se apóiam os cálculos a respeito do futuro Essa probabilidade pode ter um valor que varia entre a certeza virtual e a ligeira probabilidade Esta incerteza introduz nas proposições jurídicas um elemento de relatividade que é essencial manter em vista mas que a filosofia do direito tradicional passa por alto ou nega De acordo com o ponto de vista tradicional afirmar que o direito vige ou vale é atribuirlhe uma qualidade irredutível derivada de prin cípios a priori ou postulada como um prérequisito do conhecimento jurídico A validade de uma norma particular é derivada da norma superior de acordo com a qual foi criada em última instância do direito natural ou de uma hipótese inicial pressuposta ou norma bási ca parágrafo 13 Com tais premissas obviamente o conceito de validade tem que ser absoluto uma regra jurídica vale ou não vale Pareceria que os escritos jurídicos continuam predominantemente baseados em tais pressuposições Em verdade a asserção de que uma regra é direito vigente é altamente relativa Podese também dizer que uma regra pode ser direito vigente num maior ou menor grau o qual varia com o grau de probabilidade mediante o qual pode mos predizer que será aplicada Este grau de probabilidade depende do material de experiência sobre o qual é edificada a predição fontes do direito A probabilidade é elevada e a regra detém um correspon dente elevado grau de vigência se a predição se baseia numa doutri na bem estabelecida apoiada numa série ininterrupta de precedentes incontroversos ou se se baseia numa injunção legislativa cuja inter pretação foi estabelecida numa prática extensa e coerente Por outro lado a probabilidade é baixa e a regra detém um correspondente baixo grau de vigência se a predição de baseia num precedente único e dúbio ou mesmo em princípios ou razão Entre estes dois extre mos se estende uma escala de variações intermediárias Conseqüente mente é enganoso tratar as várias fontes do direito como se possuís sem o mesmo status Qualquer exame honesto do problema exige uma classificação gradativa que distinga as áreas nas quais podemos Direito e Justiça 71 com grande probabilidade expressar uma opinião acerca do que é direito vigente daquelas nas quais nossos pontos de vista não vão além da mera conjectura A análise precedente teve por meta a interpretação do conteúdo real das proposições detentoras do caráter de asserções de que uma certa regra é direito vigente Um outro problema é determinar em que medida a ciência do direito tal como se apresenta nas exposições correntes dos ordenamentos jurídicos nacionais consiste realmente em asserções desse tipo É o problema de determinar em que medida a ciência do direito é conhecimento do direito vigente no sentido definido na análise precedente Não resta dúvida que a intenção dos autores de direito é enunciar o direito tal como ele é como um fato Mas apenas uns poucos autores se restringem a isso Em casos nos quais o estado do direito não é determinado com um alto grau de certeza estando ainda aberto a novos desdobramentos no futuro a maioria dos juristas não se contentará em calcular quais resultados se afiguram como os mais prováveis tratando sim de exercer influência nos resultados influenciando o juiz Apelando para a consciência jurídica e conside rações práticas os autores tentam estabelecer uma certa interpre tação do direito na esperança de que seus pronunciamentos influ enciarão as decisões jurídicas futuras Nesta medida conseqüente mente suas expressões não são asserções mas diretivas parágra fo 2 que assumem a forma de conselhos solicitações recomenda ções ao juiz quanto a como deve ele decidir o caso em pauta São diretivas de sententia ferenda Assim o conteúdo típico dos trabalhos doutrinários pode ser ca talogado como se segue I o asserções cognoscitivas referentes ao direito vigente dota das de um maior ou menor grau de probabilidade 2o diretivas nãocognoscitivas 3o asserções cognoscitivas referentes a fatos históricos econô micos e sociais e a circunstâncias que atuam como argumentos para 1 ou para 2 72 Alf Ross O papel relativo de 1 3 e 2 3 respectivamente isto é do conteúdo cognoscitivojurídico e políticojurídico da doutrina variará de acordo com o propósito prático da exposição e de acordo com a personalidade do autor Minha impressão é que ao menos nos países escandinavos a maioria dos juristas consideram o aspecto político da doutrina as diretivas de sententia ferenda que não devem ser con fundidas com diretivas de iege ferenda como a parte mais essencial de seus trabalhos Seu interesse principal tem cunho prático não teórico Consideramse mais políticos no sentido mais lato do que teóricos embora seja naturalmente verdadeiro que sua política se funda em observações científicas representadas na categoria 3 do catalogado acima Nos parágrafos 73 e 79 tratarei do debate programático sobre se a doutrina deve absterse de emitir diretivas ou se de todas as manei ras deve dar conta de suas valorações práticas e dos pressupostos que lhes subjazem Aqui contudo tratarei da dificuldade de traçar uma linha fronteiriça nítida entre pronunciamentos que pertencem à esfera da teoria jurídica e à esfera da política jurídica Essa dificulda de é oriunda de uma peculiaridade que caracteriza todas as ciências sociais na sua diferença das ciências naturais Se um astrônomo prevê um eclipse do sol esta previsão não exer ce qualquer influência nos eventos astronômicos aos quais a previsão se refere Não há conexão causai entre os fenômenos mentais que constituem a previsão e a crença em sua verdade e os movimentos do sol e da lua A previsão é verdadeira ou falsa na dependência do eclipse ocorrer ou não Em 1950 foi previsto que os comunistas marchariam contra Berlim ocidental em junho É possível que essa previsão fosse verdadeira no sentido de que uma marcha desse tipo fora decidida Poderseia supor razoavelmente que a marcha teria ocorrido não tivesse sua própria previsão provocado contramedidas por parte das potências ocidentais cujo resultado foi que a previsão que era efetivamen te verdadeira se tornasse a si mesma falsa Ao contrário é possível imaginar que um economista preveja um aumento nos preços em circunstâncias que não garantam essa pressuposição e que a previ são portanto tenha que ser classificada como falsa Mas a mera proclamação de uma previsão desse gênero poderia produzir o Direito e Justiça 73 aumento dos preços visto que os consumidores tratariam de se pre caver contra uma tal contingência transformando assim a previsão falsa em previsão verdadeira15 É evidente que essas circunstâncias peculiares se originam do fato de que a previsão sua proclamação e o crédito a ela atribuído por outras pessoas constituem em si mesmos uma parte da entidade social à qual a previsão se refere A vida da comunidade não pode ser estudada com a mesma objetividade com a qual se estuda os movi mentos dos planetas ou uma paisagem sob vista aérea Isso significa que a história o curso da vida social é em princí pio indeterminada No máximo é apenas possível prever tendências prováveis Mas toda previsão de uma tendência é ao mesmo tempo um fator que se presta ele mesmo ou a fomentar essa tendência ou a oporse a ela sendo assim um fator político o que significa por sua vez que nas ciências sociais é fundamentalmente impossível estabe lecer uma nítida distinção entre a teoria e a intervenção política16 Portanto não é possível traçar uma nítida linha divisória entre os enunciados cognoscitivos concernentes ao direito vigente e a ativida de políticojurídica Em primeiro lugar fica claro que é difícil traçar essa linha divisória inclusive no tocante à intenção de quem formula o enunciado Nos problemas jurídicos onde é possível dispondo apenas de um baixo grau de probabilidade prever a reação dos tribunais o autor de direi to pode adotar uma ou outra das posturas a seguir Ou se identifica com os tribunais na tentativa de conjeturar as valorações que pos sam ser orientativas dos tribunais e calcular a solução mais provável ou segue suas próprias valorações a fim de descobrir a solução a que ele próprio chegaria se estivesse na posição do juiz No primeiro caso sua atitude é cognoscitiva e seu enunciado teórico ainda que o valor 15 Após escrever isto conheci a obra de R K Merton Social Theory and Social Structure 2 ed 1951 na qual pp 179 e segs são cunhadas as expressões autoconfimadoras selffulfilling e autodestruidoras self destroying se referindo a previsões Ver também Ernst Topitsch Sozialtheorie und Gesellschaftsgestaltung Archiv fiirRechts und Sozialphilosophie XUI 1956 171 e segs 187 16 Sabese sobejamente que na física nuclear não é possível separar com nitidez a observação física da intervenção no observado Mas esta circunstância e suas conseqüências são fundamentalmente distintas das que ocorrem nas ciências sociais Na física nuclear a própria observação influencia seu objeto nas ciências sociais o conhecimento adquirido mediante a observação e a proclamação desse conhecimento produzem o efeito 74 Alf Ross de probabilidade do mesmo seja baixo No segundo caso sua postura é política e seu enunciado é uma diretiva calculada para influenciar o juiz quanto ao que deve ser direito vigente Na prática contudo essa dife rença de postura freqüentemente não será consciente porque o jurista com acerto ou erroneamente identifica suas próprias valorações com as do tribunal Não raro o jurista não tem ciência sequer do caráter condicional e problemático dessas pressuposições não as atribui a si mesmo ou aos tribunais operando com elas como algo a ser tido como pacífico uma atmosfera cultural que circunda igualmente o próprio ju rista e os juizes dos tribunais Nestas circunstâncias o resultado prático será idêntico seja a atitude teórica ou política A interpretação que o jurista aceitará caso se veja forçado a decidir será determinada por seu temperamento Alguns juristas darão prioridade à avaliação política se sentirão intérpretes ou portavozes de uma ideologia e reconhecerão portanto que sua atividade não é cognoscitiva exceto no que tange à investigação dos fatos e circunstâncias que constituem as premissas para sua avaliação No que toca a outros o fator teórico será dominante verão em suas interpretações valorativas o extremo mais questionável do cálculo de o que é direito vigente Na falta de certos indícios eles supõem que sua interpretação valorativa representa a conjetura mais provável quanto à maneira como efetivamente reagirão os tribunais Em segundo lugar e este é o ponto crucial o paradoxo próprio de todas as ciências sociais é imperioso também que consideremos que a despeito de ser a intenção puramente teórica limitandose a prever qual regra mais provavelmente será a aceita pelos tribunais a interpretação todavia tal qual qualquer outra previsão científica so cial é em si mesma um fator políticojurídico Os argumentos que dão respaldo à interpretação hipoteticamente aquela que o tribunal aplicará são passíveis ainda que a hipótese fosse originalmente fal sa de exercer uma influência sobre os tribunais e desse modo transformar a hipótese em verdadeira Conclusão asserções referentes ao direito vigente são de acordo com seu real conteúdo uma previsão de futuros eventos sociais Estes estão fundamentalmente indeterminados e não é possível formular a seu res peito previsões isentas de ambigüidade Toda previsão é ao mesmo tem po um fator real passível de influenciar o curso dos acontecimentos e nessa medida um ato político Conseqüentemente em termos funda mentais a ciência do direito não pode ser separada da política jurídica Direito e Justiça 75 Seria entretanto equivocado interpretar esse enunciado como es cusa metodológica que justificasse toda mescla de cognição e políti ca O ponto decisivo para o bom método jurídico não é tanto ser a interpretação oferecida como parecer subjetivo ou asserção objetiva o que importa é o jurista oferecer suas interpretações com o entendi mento de que não podem ser enunciadas como direito vigente com a mesma certeza de quando estão envolvidas regras firmemente estabelecidas e de que o grau de certeza em muitos casos é tão pequeno que seria mais natural não se falar em direito vigente mas simplesmente em pareceres e sugestões aos juizes O jurista não deve procurar enganar a si mesmo ou aos outros passando por alto que há diferentes graus de certeza Podese objetar que a interpretação precedente do direito vigente subordina a teoria à prática exclui a possibilidade de criticar uma deci são jurídica como equívoca e que portanto contraria as idéias corren tes Em virtude disso essa interpretação não pode se arvorar em ser uma adequada elaboração do conceito de direito vigente com o signi ficado que com efeito lhe é atribuído no pensamento jurídico Essa objeção se funda numa incompreensão As idéias aqui de senvolvidas não impedem que se qualifique uma decisão como equí voca Uma decisão é equívoca isto é está em desacordo com o direi to vigente se depois de tudo considerado inclusive a própria decisão e as críticas que ela pode suscitar se afigurar o mais provável que no futuro os tribunais não acatem essa decisão Em alguns casos é pos sível prever isso com um alto grau de certeza por exemplo se for óbvio ter o tribunal aplicado por erro uma lei derrogada A origem dessa incompreensão está evidentemente no erro criti cado anteriormente neste mesmo parágrafo de considerar que a questão da vigência de uma regra fica resolvida quando foi ditada uma decisão que verifica essa regra O problema do que é o direito vigente jamais se refere à história passada mas sempre ao futuro Em princípio a situação permanece inalterável mesmo quando a decisão equívoca é acompanhada por uma ou mais decisões em idên tico sentido Mas é lógico que quanto mais decisões houver particu larmente se emanam do supremo tribunal do país menos fundamen to haverá para uma asserção segundo a qual é improvável que os tribunais acatem essa linha no futuro 76 Alf Ross Diante de uma prática estabelecida dos tribunais é forçoso que a teoria capitule como é forçoso que capitule no caso de uma nova legislação do direito Os autores que insistem em chamar uma regra de direito vigente não obstante admitam que na prática se obedece equivocamente a uma regra distinta se limitam a proferir palavras vazias17 10 VERIFICAÇÃO DE PROPOSIÇÕES JURÍDICAS CONCERNENTES A NORMAS DE COMPETÊNCIA Normas de competência são normas de conduta indiretamente formuladas Conseqüentemente sua verificação em princípio pode ser explicada nas mesmas linhas que indicamos para as normas de conduta no parágrafo anterior Assim à guisa de exemplo o conteú do real do enunciado que afirma que as regras constitucionais refe rentes ao poder legislativo são direito vigente é uma previsão de que as normas de conduta criadas pela legislação em conformidade com a Constituição serão aplicadas pelos tribunais Esta interpretação contudo só é possível sob certas condições É possível se as normas de competência tiverem como efeito a anulabilidade Isto significa que os tribunais devem aplicar somente as regras de conduta criadas de acordo com as condições estabelecidas nas normas de competência Se essas condições não forem satisfeitas os tribunais colocarão essas normas de lado como nulas Este não é o lugar para discutirmos em que medida as normas de competência pro duzem esse efeito Bastará deixarmos registrado que isso é o que comumente ocorre com as normas que regulam a competência dos indivíduos particulares e da administração enquanto vários ordenamentos jurídicos resolvem a questão diferentemente quando se trata das normas que regulam a competência do poder legislativo Em alguns países os tribunais têm o poder de revisar a validade das leis 17 No tocante a este ponto ver Alf Ross Theorie derRechtsquellen 1929 cap III 3 e4 a respeito da escola exegética francesa de meados do século XIX Em 1934 escreve Ancel Journal of the Society of Comparative legislation feverei ro de 19341 Os autores têm o hábito de dar suas próprias interpretações do direito que por vezes contrariam as soluções dos tribunais mas que eles consideram todavia como a única expressão real do direito francês Em muitos pontos importantes háuma doutrina dos tribunais e uma doutrina dos autores Assim é possível encontrar na França um direito que á impresso nos livros e ensinado nas universidades e que não obstante muito difere e chega até a contrariar o direito que é aplicado pelos tribunais Atualmente os autores não se limitam a enunciar suas opiniões expondo também o parecer da jurisprudência embora ainda assim apresentem prioritariamente as soluções deles como as únicas soluções jurídicas citado de C K Allen Law in the Making 4a ed 1946167168 Direito e Justiça 77 A interpretação também é possível mesmo na ausência de qualquer efeito de anulabilidade se as normas de competência têm como efeito a responsabilidade Isto significa que os tribunais talvez um tribunal especial devem ordenar sanções contra o responsável pelo excesso de competência É o caso que ocorre quando um procedimento espe cial de impeachmentê instituído visando a conferir efetividade à res ponsabilidade de um ministro por violação de regras constitucionais Se entretanto uma norma de competência não tem um ou outro desses efeitos sua interpretação como norma de conduta indireta mente formulada dirigida aos tribunais não é possível Tal pode ser o caso de umas poucas regras constitucionais por exemplo a regra da Constituição dinamarquesa a qual exige que toda lei seja lida três vezes no Parlamento Isto acarreta a conseqüência de que tais regras não podem ser consideradas como direito vigente no sentido que definimos aqui porque de modo algum podem elas ser interpretadas como detentoras de diretivas aos tribunais para o exercício da força Se contudo tais regras imperfeitas são comumente consideradas como integrantes do ordenamento jurídico é porque possuem a mes ma força moralideológica da regras do direito vigente parágrafo 11 A questão é puramente terminológica e de pouca monta 11 DIREITO FORÇA VALIDADE O precedente se baseia no entendimento de que um ordenamento jurídico nacional é um corpo de regras concernentes ao exercício da força física Segundo um ponto de vista largamente difundido a relação entre o direito e a força é definida de outra maneira o direito nesse ponto de vista é constituído por regras que são respaldadas pela força Essa posição está fundada na consideração daquelas normas que no parágrafo 7 são chamadas de normas de conduta derivadas e em sentido figurado tais como por exemplo a seção 62 do Negotiabíe Instruments Act entendido segundo seu conteúdo direto como uma diretiva ao aceitante de uma letra de câmbio Com referência a elas podese razoavelmente dizer que são respaldadas pela força se o aceitante não pagar no dia do vencimento da letra incorrerá no risco de juízo sentença e execução E no entanto essa interpretação das normas do direito é inadmis sível já que se apóia em pressuposições falsas e conduz a conclusões inaceitáveis 78 Alf Ross Apóiase na pressuposição de que a diretiva da seção 62 dirigida ao aceitante da letra de câmbio é uma coisa e a diretiva ao juiz para que respalde essa regra pela força é uma segunda coisa independente En tretanto o que temos aqui não são duas normas distintas mas sim dois aspectos da mesma norma É dirigida ao juiz e condiciona a aplicação da compulsoriedade à conduta do aceitante o que dá origem a um efèito reflexo cria um motivo para que o aceitante da letra evite uma conduta que desencadeará o uso da força Em outras palavras cria um motivo para que o aceitante pague A interpretação segundo a qual o direito é constituído por regras respaldadas pela força é inadmissível por outra razão resultaria na ex clusão do domínio do direito de partes essenciais que estão indissoluvelmente conectadas às normas de conduta em sentido figura do as quais têm o respaldo da força Em primeiro lugar tal interpretação excluiria todas as normas de com petência visto não serem estas respaldadas pela força Com base no ponto de vista que estamos criticando sempre constituiu um problema saber como ser capaz de reconhecer como direito grandes áreas do direi to constitucional e administrativo que são compostas de normas dessa espécie Razões de coerência lógica nos obrigam a negar que tais áreas do direito possuam caráter jurídico o que é disparatado não tanto por que contradiz concepções correntes mas porque tais normas na quali dade de normas de conduta indiretamente formuladas se acham numa coesão inseparável de significado com as normas de conduta diretas Em segundo lugar essa interpretação alijaria as próprias normas que respaldam a aplicação do direito nomeadamente as normas secundárias que garantem as normas primárias de conduta Não é possível evitar esta conclusão frisando que essas normas secundárias são elas mesmas respaldadas pela força mediante um conjunto de normas terciárias Na maior parte dos casos não haverá uma realidade social que corresponda a essa interpretação ademais ela meramente posterga o problema já que não podemos seguir adinfínitum dispondo norma atrás de norma É forçoso portanto que insistamos que a relação das normas jurídi cas com a força consiste no fato de que se referem à aplicação da força e não que são respaldadas pela força18 18 No que tange a este ponto de vista estou em débito com Hans Kelsen Ver por exemplo seu Allgemeine Staatslehre 11925117 Ponto de vista idêntico também é sustentado por Karl Olivecrona em The Law as Fact 1939 134 e segs Direito e Justiça 79 Intimamente ligada a esse problema está a questão sociológico jurídica dos motivos que levam os seres humanos a agir de uma maneira lícita Este problema escapa ao propósito deste livro porém o abordaremos sumariamente aqui Como será sugerido de modo mais minucioso na seqüência parágra fos 84 e 85 os motivos humanos podem ser divididos em dois grupos principais 1 impulsos fundados em necessidades nascidos a partir de um certo mecanismo biológico e experimentados como interesses e 2 impulsos inculcados no indivíduo pelo meio social e experimentados como um imperativo categórico que o obriga sem referência aos seus inte resses ou mesmo em conflito direto com estes Os motivos do segundo grupo são por isso facilmente interpretados em termos metafísicos como uma revelação na consciência de uma validade superior que como dever se contrapõe à natureza sensual humana e aos interesses que surgem a partir desta Ora que papel desempenham essas experiências de motivos na vida jurídica da comunidade No que diz respeito às normas jurídicas em sentido próprio isto é as normas dirigidas ao juiz e que funcionam como padrões para sua decisão é mister que definitivamente se tenha como pacífico que o juiz é motivado primeira e principalmente por impulsos desinteressados pelo puro sentimento do dever e não pelo temor das sanções legais ou por quaisquer outros interesses As sanções legais que atingem a um juiz em funçãò da forma como executa suas tarefas somente são pos síveis em casos de desvios judiciais extremos suborno e similares e dificilmente têm um papel efetivo na prática O motivo que leva os juizes a respeitar as normas não se encontra portanto na justiça retributiva No que toca aos juizes dos tribunais superiores o interesse em granjear ou preservar certa reputação profissional e fazer carreira pode desempenhar um papel mas raramente o decisivo Se os tribu nais forem considerados coletivamente encabeçados pela Corte Su prema não haverá apelação possível contra as decisões que de fato adotem A meu ver é mister ter como ponto pacífico acima de qualquer dúvida embora eu admita que é difícil suprir uma prova meticulosa disto que jamais seria possível edificar um ordenamento jurídico eficaz se não existisse no seio da magistratura um sentimento vivo e desinte ressado de respeito e obediência pela ideologia jurídica em vigor É mister supor que as normas jurídicas em sentido próprio são observa das tão voluntariamente como as normas do xadrez 80 Alf Ross A questão é mais complicada se voltarmos nossa atenção para as normas de conduta em sentido figurado ou seja aquelas que podem ser derivadas das normas de conduta propriamente ditas por exem plo a seção 62 do Uniform Negotiabte Instruments Actsegundo seu conteúdo direto A consciência de que o comportamento contrário a essas normas de conduta traz consigo o risco de juízo sentença e execução indiscutivelmente gera um forte motivo para agir de uma maneira lícita Isto é claramente confirmado pelo aumento dds cri mes em circunstâncias excepcionais quando a polícia e os tribunais não funcionam normalmente19 Mas esta não é a razão única A maio ria das pessoas obedecem ao direito não só por receio da polícia e das sanções sociais extrajurídicas perda da reputação da confiança etc mas também por acato desinteressado ao direito O cidadão comum também é animado num maior ou menor grau por uma atitude de acato ao direito à luz do qual os governantes aparecem como poderes legitimos ou autoridades as exigências do direito como credoras de acato e a força que é exercida em nome do direito não é considerada como mera violência mas sim justificada na qua lidade do que respalda o direito Quando as regras do direito estão bem estabelecidas essa atitude se torna automática de sorte que nenhum impulso surge no sentido de contrariar o direito É presumível que apenas algumas poucas pessoas tiveram alguma vez que repri mir o desejo de cometer um assassinato20 Esse componente de motivação desinteressada de cunho ideológi co é com freqüência descrito como consciência moral produzida pela tradicional observância do ordenamento jurídico A ambigüidade do termo moral parágrafo 12 pode gerar malentendidos É verdade que a atitude que consideramos pode ser genuinamente reprovadora do ato ilícito porém isso não é essencial Comumente essa atitude encerra mais caráter formal é dirigida às instituições e importa o reco nhecimento de sua validade como tais independentemente do fato das exigências nas quais se manifestam poderem ser aprovadas como moralmente certas ou justas O direito é o direito e tem que ser observado dizem as pessoas e aplicam esta máxima mesmo aos casos nos quais as exigências do direito estão em conflito com idéias de justiça aceitas Para distinguir esta atitude da genuína atitude 19 Assim aconteceu na Dinamarca durante os sete meses da ocupação alemã 20 Para uma discussão minuciosa da função motivadora ideológica do direito ver Olivecrona op cit 150 e segs Direito e Justiça 81 moral a expressão consciência jurídica formalou institucional será aqui empregada para as primeiras enquanto as últimas serão chama das de consciência jurídica material ou moral Naturalmente há um limite para o hiato possível entre as duas atitudes de consciência juridica Quando este limite é alcançado o respeito dirigido ao governo e ao direito é substituído por uma cons ciência revolucionária Um cálculo estratégico das possibilidades de êxito determinará que essa consciência rebelde force a coisa e atinja o conflito franco Se o tempo para a revolução não estiver contudo ainda maduro a tarefa tática será solapar a ordem social existente mediante obstrução e propaganda Aqueles que estão submetidos a um regime efetivo de força nem sempre o experimentam como válido Nos casos em que um regime efetivo existente não recebe aprovação ideológica na consciência jurídica formal dos governados submetidos sendo sim obedecido unicamente por temor estes não o experimentam como um ordenamento jurídico mas sim como um ditado de força ou vio lência O governante não é então autoridade ou poder legíti mo e sim um perpetrador de violência um tirano um ditador Isto se aplica por exemplo à população de um país ocupado e à sua atitude ante o regime de força que é sustentado unicamente pelo poderio militar ou às minorias permanentes nacionais religiosas raciais hostis à maioria governante21 Essas reações emocionais são as experiências que dão à palavra lawe ainda mais ao alemão Rechte ao francês droit o matiz emocio nal que faz da mesma um título de honra parágrafo 7 e elas são a fonte da noção metafísica de validade como uma qualidade mo ralespiritual atribuída a um ordenamento jurídico em contraposição a um regime de violência De um ponto de vista cognoscitivodes critivo e este tem que ser o ponto de vista da filosofia do direito como uma atividade teórica é impossível todavia distinguir entre um ordenamento jurídico e um regime de violência porque a qua lidade de validade que se prestaria para caracterizar o direito não é uma qualidade objetiva do ordenamento ele mesmo mas apenas uma expressão da maneira na qual o ordenamento é experimentado 21 A respeito das minorias permanentes ver Alf Ross Why Oemocracy 11952 pp 191 192 82 Alf Ross por um indivíduo O mesmo ordenamento portanto pode ser para uma pessoa um ordenamento jurídico e para outra um regime de violência Seria possível por certo limitar o conceito de direito por meio de uma caracterização psicológica social objetiva de tal modo que só chamaríamos um ordenamento de jurídico se recebesse aprovação ideológica da maioria das pessoas submetidas a ele En tretanto não vejo nenhuma vantagem nisto sendo na verdade uma desvantagem ligar o conceito a um critério difícil de ser mançjado na prática Ademais recebendo ou não aprovação o ordenamento é um fato que requer descrição e que pode ser descrito exatamente da mesma maneira que é descrito um ordenamento jurídico isto é como normas concernentes ao exercício da força Como assinalamos no parágrafo 7 uma tal terminologia descritiva é destituída de quais quer conseqüências morais Temor e respeito os dois motivos que caracterizam a experiência do direito estão reciprocamente relacionados22 A força exercida pela polícia e as autoridades executivas não se baseia exclusivamente em fatores físicos tais como de homens à sua disposição seu treino e armamento mas também em fatores ideo lógicos Conspirassem em conjunto todo os cidadãos particulares e seriam indubitavelmente mais fortes do que a polícia Mas isto não acontece O cidadão acatador da lei respeita a polícia O poder da polícia ba seiase majoritariamente nesse respeito em conjunção com o senti mento que a própria polícia tem de que está exercendo a sua autori dade em nome da lei Para generalizar podese dizer que os meios físicos de compulsão têm sempre que ser operados por seres huma nos O controle dos meios de compulsão depende portanto do po der ou domínio de que são detentores os seres humanos que operam esses meios Este domínio por sua vez pode estar parcialmente mas nunca inteiramente baseado na força Em última instância devem existir normas para o exercício da força que não são elas mesmas respaldadas pela força mas que são acatadas em virtude de um respeito isento de temor Um homem forte mediante a força física por si só pode lograr o domínio sobre uns poucos outros seres humanos Em sociedades de qualquer tamanho que pressuponha um aparato organizado do poder operado por outros seres humanos isso 22 Esta idéia é desenvolvida mais minuciosamente em meu livro Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap IV 3 Direito e Justiça 83 não é possível Nenhum Hitler pode aterrorizar uma população sem que ao menos no âmbito do grupo que maneja o aparato da força haja uma obediência em alguma medida voluntária Em última análi se todo poder tem uma base ideológica23 O poder compulsivo do direito é deste modo uma função de sua validade Inversamente esta última é também uma função da força efetivamente exercida Posto que a obediência é fortalecida pelo cos tume toda ordem mantida de fato incluso aquela que se apóia prin cipalmente na mera força tende a se transformar numa ordem ideo logicamente aprovada Este é o fenômeno que foi descrito pelo filóso fo do direito alemão Georg Jellinek como a força normativa do real mente existente Todo poder soberano de jure tem como antecessor um poder soberano de facto O tempo que a tudo dá remédio como diz o brocardo popular também cumpre sua obra nesta esfera O temor e o respeito por um lado a força e a validade por outro se condicionam reciprocamente e isto vale tanto para uma análise éstática da vida jurídica num determinado momento quanto para uma descrição histórica evolucionista Nenhum dos dois fatores precede ao outro Estas observações pretendem arrojar nova luz ao velho problema da relação entre o direito e o poder que tem dado lugar a muitíssimas especulações metafísicas Segundo o ponto de vista metafísico tradi cional o direito e o poder estão diametralmente em oposição O direi to é o idealmente válido um sistema de normas obrigatórias e a soberania é a capacidade de criar direito e obrigar aos outros O poder é um fato social o domínio sobre seres humanos a capacidade para motiválos a agirem de acordo com a vontade daquele que exer ce o poder Nesta base é possível fiar uma dialética interminável acer ca da relação entre o direito e o poder Para sua realização o direito necessita o poder por trás de si Porém como pode isto ocorrer sem que o direito capitule ante o poder Como é possível que o poder crie direito Rendese este à espada 23 No mesmo sentido R M Maclver em The Web of Government 1947 16 A força não pode por si só manter um grupo unido Um grupo pode dominar pela força o resto da comunidade mas o grupo inicial já submetido ao governo antes que este pudesse dominar não está aglutinado pela força Os conquistadores podem impor sua vontade por meio da força sobre os conquistados mas os conquistadores foram eles próprios primeiramente unidos por algo distinto da força Em todo governo constituído algum tipo de autoridade se acha por trás da força 84 Alf Ross Um ponto de vista realista não vê o direito e o poder como opostos Se por poder social entendemos a possibilidade de dirigir as ações de outros seres humanos então o direito é um instrumento de poder e a relação entre os que decidem o que há de ser o direito e os que estão submetidos a esse direito é uma relação de poder O poder não é alguma coisa que se posta por trás do direito mas sim alguma coisa que funciona por meio do direito O problema que em termos metafísicos é formulado como uma questão sobre as relações externas entre o direito e o poder é na realidade uma questão tocante à relação entre o temor e o respeito como motivos que integram as relações de poder políticojurídicas em suma a questão que acabou de ser discutida De acordo com os recursos e a técnica empregados no exercício do poder é possível distinguir diversas formas típicas do poder a títu lo de exemplos o poder da violência o poder econômico o poder espiritual e o poder da personalidade24 O poder político ou poder do Estado é o poder exercido mediante a técnica do direito ou em ou tras palavras mediante o aparato do Estado que é um aparato para o exercício da força Mas a função desse aparato está como vimos condicionada por fatores ideológicos a consciência jurídica formal O poder daqueles que controlam o aparato do Estado está subordinado ao fato de que eles ocupam as posições chaves que de acordo com a Constituição outorgam a competência jurídica para exercer esse po der Todo poder político é competência jurídica Não existe um poder nu independente do direito e de sua base Não é necessário decerto que o fundamento ideológico de um regime político compreenda a totalidade da população de governa dos Na nossa geração a experiência demonstrou tragicamente que é possível para um grupo relativamente pequeno animado por uma consciência revolucionária apoderarse do aparato existente do Esta do mudar o seu pessoal e exercer um domínio que a maior parte da população tem como um regime de violência e terror 12 DIREITO MORAL E OUTROS FENÔMENOS NORMATIVOS No parágrafo 7 asseveramos que se o problema é considerado cientificamente quer dizer se a palavra direito é libertada de sua 24 Ver Bertrand Russell oivw1938 Direito e Justiça 85 carga emocional carece então de interesse particular a forma como se define o conceito de direito ou ordenamento jurídico Em si mesmo não tem importância se a designação ordenamento jurídico é aplica da a certos sistemas individuais de normas Os sistemas nem ganham nem perdem por serem designados como jurídicos O único ponto importante é estar ciente das similaridades e diferenças existentes Com essas idéias em mente prefiro reservar a expressão ordenamento jurídico aos sistemas normativos que tenham as mes mas características essenciais de um ordenamento jurídico nacional moderno bem desenvolvido sem atribuir contudo nenhum critério ideológico à expressão ou seja sem conferir relevância ao fato de que tal ordenamento é experimentado como um ordenamento váli do ou um regime de violência O conceito de direito ou ordenamento jurídico pode em con sonânciacom isso ser caracterizado por dois pontos Em primeiro lugar o direito consiste em regras que concernem ao exercício da força Vista em relação às normas jurídicas derivadas ou normas jurídicas em sentido figurado a força aparece como uma sanção isto é como uma pressão para produzir o comportamento desejado Logo quando na seqüência dissermos que as normas do direito são sancionadas pela força e outras normas por outros meios isto deverá ser entendido como uma maneira conveniente de falar mesmo não sendo inteiramente correta Em segundo lugar o direito consiste não só em normas de conduta mas também em normas de competência as quais estabelecem um conjunto de autoridades públicas para aprovar normas de conduta e exercer a força em conformidade com elas Devido a isto o direito tem o que podemos denominar caráter institucional Funciona através de uma maquinaria jurídica que visa à legislação o juízo e a execução e se afigura portanto ante os olhos do indivíduo como algo objetivo e externo E a expressão de uma comunidade supraindividual uma or dem social enraizada numa consciência jurídica formal Os outros fenômenos normativos podem ser classificados segun do suas características correspondentes relativas a esses dois pontos Diferem em parte segundo o caráter da sanção e em parte segundo tenham ou não caráter institucional 86 Alf Ross A Há fenômenos normativos que exibem uma estrutura institucional semelhante à do direito mas que são baseados em san ções distintas da força física 1 As associações e organizações privadas de vários tipos se ba seiam amiúde num sistema de regras que possuem um caráter institucional semelhante àquele do direito e que freqüentemente re cebem a designação de constituição ou lei da associação estatutos regulamentos internos A associação pode conter órgãos legislativos bem como executivos e judiciários Diferem do direito conforme de finimos este termo uma designação sinônima de ordem normativa do Estado moderno pelo fato da sanção não consistir em força físi ca O monopólio desta está nas mãos do Estado Uma associação pode muito bem impor aos seus membros sanções disciplinares de vários tipos mas jamais poderá pôlas em execução mediante o em prego da força A sanção mais grave é a expulsão e as outras sanções derivam da expulsão Pode suceder ser possível executar uma pena de multa da maneira ordinária segundo a sentença de um tribunal Porém nesta hipótese a execução tem lugar porque o direito do país reconheceu ou incorporou o direito da associação As regras de jogos de vários tipos guardam estreita semelhança com as regras das associações Um jogo pode ser considerado como uma associação temporária de duas ou mais pessoas com o propó sito de entretêlas jogandose segundo certas regras Tem lugar uma legislação rudimentar na medida em que os jogadores estão de acordo ou chegam a um acordo quanto às regras a serem segui das Freqüentemente há também um juiz umpirerefereé que pode impor penas Aqui também a sanção mais grave é a expulsão da associação isto é o juiz interrompe o jogo e expulsa aquele que violou a regra 2 Também o direito internacional possui um caráter institucional Há métodos institucionais procedimentais tanto para o estabeleci mento de normas gerais quanto para a decisão jurídica de controvér sias Por outro lado o direito internacional como o direito das associa ções carece de regras institucionais para a aplicação de sanções mediante a força física Na comunidade dos Estados inexiste por certo o monopólio da força Se a parte perdedora não acata uma decisão no campo do direito internacional a sanção se limita a uma reprovação pública por sua atitude Direito e Justiça 87 B Em toda comunidade há uma tradição cultural viva que en contra expressão em idéias mais ou menos uniformes sobre a con duta que cumpre assumir numa dada situação Como será demons trado na seqüência com maiores detalhes parágrafo 85 essas idéias são inculcadas no indivíduo durante seu período de crescimento atra vés da pressão do seu ambiente social Desde a tenra infância ou seja desde que é um bebê a criança é exposta a um bombardeio de impressões que moldam sua postura Aprende a comer e beber a falar a assearse a dizer como vai a apertar as mãos das pessoas a não dizer mentiras ou praguejar a ser trabalhador e cumprir a palavra empenhada E assim a criança cresce por assim dizer dentro de um vasto conjunto de regras de vida que ela absor ve gradualmente e que se manifestam como atitudes automáticas que em dadas situações levam o selo da validade Estas regras são sensivelmente vividas como regras morais quando entram em con flito com os desejos do indivíduo Se não houver conflito são expe rimentadas como convenção por exemplo as regras de polidez da urbanidade do vestir etc Embora essas regras tenham uma origem social sendo portanto mais ou menos uniformes entre povos que vivem no mesmo meio social constituem não obstante fenômenos individuais Não se acham ligadas a normas de competência que instituem autoridades comuns capacita das a determinar e estabelecer normas gerais e autorizar sanções por conta da comunidade No domínio da moral e dos usos convencionais não há legislador e igualmente não há juiz Cada indivíduo decide por si o que julga moral ou apropriado Do mesmo modo a reprovação a qual é a sanção para as violações da moral e dos usos convencionais25 procede de cada indivíduo e não de uma autoridade comum Por con seguinte não há moral ou convenção com vigência nacional mas unicamente atitudes individuais mais ou menos paralelas dentre as quais algumas podem ser caracterizadas como predominantes ou típicas num determinado meio social Quando a palavra moral é usada como uma designação para as normas de conduta que são apro vadas pelo indivíduo em sua consciência não é possível falar da mo ral como fenômeno objetivo da mesma maneira que é possível falar do direito Quando no uso corrente da linguagem se fala da moral como se fosse um sistema objetivo de normas análogo ao direito está se pagando tributo a uma interpretação metafísica da consciência como revelação de princípios a priori autoevidentes da razão 88 Alf Ross No direito o temor da sanção e o sentimento de se achar obrigado pelo que é válido operam conjuntamente como motivos integrantes da mesma ação na moral e na convenção ao contrário os motivos correspondentes se integram cada um de acordo com sua maneira e independentemente um do outro O motivo que interessa o temor da sanção motivam uma pessoa a agir de um tal modo que não a faça merecer a reprovação das outras O motivo desinteressado o senti mento de um impulso interior rumo ao que é torreto a motiva a agir de uma tal maneira que ela própria aprove suá ação Essa motivação dupla se evidencia de forma particularmente clara na moral onde pode facilmente ocorrer que o juízo moral de uma pessoa seja diferente daquele de outras e que a sua consciência portanto a induza a agir de uma maneira que sabe ser reprovada pelo ponto de vista que prevalece no seu meio É menos evidenciada quando se trata de convenção visto que as divergências individuais são neste caso menos importantes Todavia a situação tem que ser fundamentalmente a mesma A reação a uma transgressão a um uso convencional procede de cada indivíduo isolado e devemos presumir portanto que cada indivíduo tem uma postura imediata pessoal acer ca do que é apropriado Os fenômenos normativos mencionados podem ser mostrados sob forma de tabela26 como se segue Sanção força física expulsão reprovação Fenômeno institucional direito lei da associação direito internacional Fenômeno individual Ex regras da vingança privada não existem no Estado moderno que monopoliza a força moral usos convencionais 25 A exclusão dos círculos sociais refinados o ridículo e reações similares são também expressões qualificadas de reprovação e não destinadas a ser instrumentos de pressão 26 Esta tabela não pretende ser exaustiva Direito e Justiça 89 A palavra moral é não raro tomada num sentido mais lato do que o indicado aqui Tendese a chamar de morais todos os impulsos desinteressados que são experimentados com o timbre de validade ou sentimento de acharse obrigado Tomada a palavra moral neste sentido a consciência jurídica formal tem caráter moral e os fenôme nos morais são parte essencial dos fenômenos jurídicos27 A realidade é um tanto mais complicada do que se afigura na tabela A força reação jurídica tem ao mesmo tempo normalmente o caráter de reprovação pública pois constitui um sinal de que a conduta que origina a reação é socialmente indesejável Tal conduta é qualificada assim como violação e a contrária como dever No entanto a reação nem sempre tem esse caráter É imperioso traçar uma distinção entre sanções repreendedoras e sanções nãorepreendedoras À falta des ta distinção que se baseia na função ideológicomoral da sanção não seria possível entender a diferença entre responsabilidade por culpa em lato sentido e responsabilidade objetiva ou a diferença entre as sanções penais por um lado e as normas para a segurança comunitária e as normas fiscais por outro lado28 O problema da relação entre direito e moral não pode ser formula do sob forma de uma comparação entre dois sistemas análogos de normas Pelo contrário é preciso mostrar como está relacionado o sistema institucional do direito com as atitudes morais individuais que predominam na comunidade jurídica É óbvio que é necessário haver um grau considerável de harmonia entre um e outras já que um e outras estão radicados em valorações fundamentais comuns na tra dição cultural da comunidade O ordenamento jurídico e as atitudes morais se acham também em relação de cooperação recíproca As instituições do direito constituem um dos fatores do meio ambiente que moldam as atitudes morais individuais Estas últimas por sua vez constituem parte dos fatores práticos que através da consciên cia jurídica morai contribuem para moldar a evolução do direito Por outro lado certas diferenças típicas se manifestam resultando numa difícil comparação real entre o direito e a moral As regras jurídicas tendem a ficar cristalizadas em conceitos que visam a lograr certeza e objetividade na administração da justiça Este é um aspecto 27 Este uso da linguagem ocorre quando o direito internacional é descrito por alguns autores como uma mera ordem moral Isto não pode significar que o direito internacional seja caracterizado como uma pura questão pessoal de consciência 28 Cf parágrafos 32 e 33 e Ross Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap VII seção 6 90 Alf Ross da idéia de justiça parágrafo 65 Porém as atitudes morais são o resultado da reação do indivíduo em situações concretas Ainda que mediante esse processo se desenvolvam certas máximas que são aceitas como norteamentos morais elas não são sentidas como re gras obrigatórias mas apenas como generalizações empíricas sujei tas à mudança quando necessário se uma situação for considerada em toda sua plenitude de concreção Este é o verdadeiro significado do adágio princípios são feitos somente para serem transgredidos Se meditarmos sobre uma máxima moral corrente por exemplo a exigência de veracidade descobriremos de imediato que não pode ser aceita como absoluta como crê ingenuamente o Rearmamento Moral A máxima precisa ser adaptada à luz de múltiplas circunstâncias as quais o sentimento moral não pode nem deseja racionalizar em regras fixas classificadas de acordo com conceitos A experiência moral sempre assume suas manifestações mais vivas na decisão concreta ajustada a uma situação particular e a esta situação exclusivamente É por isso que a tendência do direito para uma racionalização sob a forma de conceitos só é obtenível às expensas do desejo moral de alcançar soluções adequadas aoscasós concretos Nesta medida por tanto o direito e a moral se encontram em perpétuo e indissolúvel conflito Costumase dizer que a suprema justiça pode constituir uma injustiça suprema Quando o direito cede diante das pressões do de sejo moral de soluções adequadas aos casos concretos e diminui sua objetividade conformandose às circunstâncias particulares falamos de moralização do direito ou de eqüidade em oposição ao direito es trito strictum jus Com freqüência o ajuste ou adequação ocorre simplesmente porque as regras do direito prescrevem que o juiz se oriente pelos padrões morais correntes O direito e a moral diferem consideravelmente quanto aos seus efeitos na vida social Visto que o direito é um fenômeno social uma ordem integrada comum que busca o monopólio da força é sempre uma ordem para a criação de uma comunidade que colima a manuten ção da paz Em certo sentido podese afirmar que o propósito do direito é a paz na medida em que todo ordenamento jurídico qualquer que seja seu conteúdo é produtor de paz embora não passe de paz da prisão A moral por outro lado é um fenômeno individual podendo com a mesma facilidade arrastar os seres humanos ao conflito ou uni los Idéias morais conflitantes por certo podem constituir uma fonte de discórdia do tipo mais profundo mais perigoso e menos controlável 13 DISCUSSÃO IDEALISMO E REALISMO NA TEORIA JURÍDICA A interpretação do conceito direito vigente oferecida nos capítulos precedentes difere incisivamente do ponto de vista tradicional predomi nante na teoria jurídica da Europa continental pode ser caracterizada como teoria jurídica realista em contraposição à teoria jurídica idealista Esta última se apóia na suposição de que existem dois mundos distintos aos quais correspondem dois métodos diferentes de conhe cimento De um lado o mundo da realidade que abarca todos os fenômenos físicos e psíquicos no tempo e no espaço que apreende mos por meio da experiência dos sentidos de outro o mundo das idéias ou validade que abarca vários conjuntos de idéias normativas absolutamente válidas a verdade o bem e a beleza que apreende mos imediatamente por meio de nossa razão Este último conheci mento é assim independente da experiência dos sentidos e portan to denominado a priori A teoria jurídica idealista também supõe que o direito pertence a ambos os mundos O conhecimento do direito por conseguinte está simultaneamente fundado tanto na experiência externa quanto no ra ciocínio a priori O direito é um fenômeno de realidade na medida em que seu conteúdo constitui um fato histórico que varia de acordo com o tempo e o lugar que foi criado por seres humanos e que depende de fatores externos de poder Entretanto que esse conteúdo tenha valida de como direito é algo que não pode ser observado na experiência Não cabem descrições ao que se deve entender por validade Este é um conceito a priori dado numa intuição direta e irredutível da razão Mas a validade não é meramente uma qualidade percebida por intui ção é também uma exigência ou pretensão que obriga de forma ab soluta à ação humana e à vontade humana Somente aquele que acata a exigência válida age corretamente Esta correção tal como a própria validade tampouco admite explicação ou prova tratase simplesmen te de outro aspecto do conceito de validade A diferença entre o direito e a moral pode segundo o ponto de vista idealista ser expressa da seguinte maneira enquanto a nor ma moral se origina na pura razão inclusive no seu conteúdo a validade do direito se vincula a um conteúdo terreno e temporal o direito positivo com seu conteúdo historicamente determinado Direito e Justiça 91 92 Alf Ross A moral é pura validade o direito é simultaneamente fenômeno e validade uma intersecção entre a realidade e a idéia ou a revelação de uma validade da razão no mundo da realidade29 Há duas variedades principais de idealismo que podem ser deno minadas a material e a formal A variedade material poderseia dizer toma o idealismo a sério A idéia específica que se manifesta no direito é a idéia de justiça Não só outorga um ideal para apreciação do direito positivo como tam bém constitui o direito isto é é o princípio inerente a este que lhe confere sua força obrigatória ou validade como tal Em virtude disso limita o que pode ser reconhecido como direito Uma ordem eficaz sustentada no mundo dos fatos que não satisfaz essas exigências mínimas derivadas da idéia de justiça ou que não é sequer uma tentativa de realizar a justiça não é reconhecida como detentora do caráter do direito sendo qualificada como mero regime de violência Pontos de vista deste jaez têm sido hegemônicos na teoria do direito natural desde os tempos mais remotos até a atualidade capítulo X A variedade formal que encontrou sua expressão mais completa no sistema de Hans Kelsen dissociase terminantemente da censura ética que o direito natural exerce sobre o direito positivo Aceita sem reservas como direito qualquer ordem vigente no mundo dos fatos Todavia sustenta que de acordo com o significado que lhe é inerente o conhecimento do direito não visa à descrição de algo fatual mas sim à apreensão do que é válido A apreensão da existência de uma norma é a mesma coisa que a apreensão da validade dela Contudo a validade de uma norma jamais pode derivarse de um fato natural mas apenas de outra norma superior Um decreto real à guisa de exemplo é válido não por ser promulgado pelo rei mas por ser pro mulgado de acordo com uma lei que estabelece que tais regras deve rão ser tidas como válidas Assim a fim de encontrar a validade dos atos jurídicos é mister que recorramos a uma hierarquia de normas A validade da lei está fundada na validade da Constituição Para expli car a validade da Constituição é necessário postular uma norma ain da superior que diz Kelsen é pressuposta Tratase da norma básica Grundnorm ou hipótese inicial cuja única função é outorgar valida de à Constituição O conhecimento do direito portanto através de 29 Ver Ross Towards a Realistic Jurisprudence 19461 cap II Direito e Justiça 93 todas as etapas consiste em enunciados normativos acerca do que deve ser válido e não em enunciados acerca do que efetivamente ocorre O pensamento jurídico de acordo com Kelsen é pensamento em termos de o que deve ser sollen e não de o que é sein a ciência do direito é uma doutrina normativa e não uma teoria social Nessa variante do idealismo a validade é reduzida a uma catego ria formal do pensamento isenta de qualquer exigência relativamente ao conteúdo material que é apreendido sob essa forma de categoria A norma básica é destituída de qualquer matiz ético Ajustase à or dem que está de fato em vigor e não é mais do que um postulado no sentido de que essa ordem possui validade30 A Reine Rechtsiehre Teoria Pura do Direito é uma conquis ta singular na moderna filosofia do direito Distinguese por sua notável agudeza dialética brilhante e lógica inexorável A doutri na de Kelsen mais do que qualquer outra realização individual criou uma escola de pensamento e exerceu uma profunda in fluência na teoria jurídica recentemente São poucos os filóso fos do direito de nosso tempo que direta ou indiretamente consciente ou inconscientemente não estão em débito com Kelsen O poder de inspiração de sua obra não se deve a quais quer idéias revolucionárias mas à coerência por meio da qual ele desenvolve as premissas do positivismo jurídico Estas po dem ser formuladas em duas proposições básicas I ao direito é um conteúdo ideal normativo estabelecido mediante atos his tóricos humanos mas que em si difere destes 2a o direito possui validade por direito próprio isto é independentemente de sua concordância com postulados éticos Sobre estas bases Kelsen desenvolveu sua teoria pura do direito ou seja uma teoria independente da sociologia e também da ética e da polí tica A ciência do direito é uma doutrina normativa específica e não é nem conhecimento da realidade nem direito natural 30 Nos meus livros Theoríe derRechtsquellen 1929 cap I e IX e Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap II seç 6 está presente um exame mais amplo das idéias de Kelsen ao qual remeto o leitor Ver também supra parágrafo 2 nota 29 onde se alude à obscura distinção kelseniana entre normas jurídicas e proposições sobre normas jurídi cas e infra parágrafo 79 onde nos referimos à teoria kelseniana da interpretação Em minha crítica ao livro de Kelsen What is Justice publicada na Califórnia Law Review t 4511957 564 e segs formulei um exame crítico de sua noção de validade 94 Alf Ross As principais obras de Kelsen são Hauptprobleme der Staatsrechtslehre 1911 AHgemelne Staatslehre 1925 e Ge neral Theory of Law and State 1945 Este último trabalho con tém inclusive uma bibliografia detalhada de seus numerosos outros escritos e de outros trabalhos concernentes à ciência pura do direito Em sua Théorie pure du droit 1953 ele próprio fez uma exposição sintética dos principais pontos do sistema O pensamento que se encontra na base do realismo jusftlosófico está vinculado ao desejo de entender o conhecimento do direito de acordo com as idéias sobre a natureza problemas e método da ciên cia tais como elaborados pela moderna filosofia empirista Várias ten dências filosóficas o empirismo lógico a escola de Uppsala a escola de Cambridge e outras têm fundamento comum na rejeição da metafísica no conhecimento especulativo baseado numa apreensão a priori pela razão Há somente um mundo e um conhecimento Toda a ciência está em última instância interessada no mesmo corpo de fatos e todos os enunciados científicos sobre a realidade isto é aqueles que não têm cunho puramente lógicomatemático estão sujeitos à prova da experiência Do ponto de vista de tais pressupostos é inadmissível uma valida de específica seja em termos de uma idéia material a priori de justi ça seja como uma categoria formal As idéias de validade são cons truções metafísicas erigidas com base numa falsa interpretação da força obrigatória experimentada na consciência moral Como todas as outras ciências sociais a ciência do direito tem que ser em última análise um estudo dos fenômenos sociais a vida de uma comunida de humana e a tarefa da filosofia do direito deve consistir na inter pretação da vigência do direito em termos de efetividade social isto é de uma certa correspondência entre um conteúdo normativo ideal e os fenômenos sociais Neste capítulo tento demonstrar como essa tarefa pode ser realizada Na teoria norteamericana do direito o termo realismo é empregado primordialmente num sentido distinto do aqui indi cado a saber para designar uma postura cética ante conceitos jurídicos e regras jurídicas e o papel que desempenham na administração da justiça parágrafo 9 nota 14 Ao mesmo tem po todavia a escola norteamericana do pensamento também é realista no sentido no qual empregamos o termo na medida Direito e Justiça 95 em que vê no direito um fenômeno social determinado pela aplicação do direito pelos tribunais Na vanguarda do realismo norteamericano esteve Oliver Wendell Holmes The Path of the Law Harv L R 10 1897 457 e segs reimpresso em CollectedPapers 1920 e John Chipman Gray The Nature and Sources of Law 1909 Entre os mais conhecidos represen tantes dessa escola estão Jerome Frank Law and the Modern Mind1930 Courts on Trial 1950 K N Llewellyn CSome Realism about Realism Harv L R 44 1931 1222 com E A Hoebel The Cheyenne Ma1942 e Underhill Moore Rational Basis of Legal Institutions Co L R 23 1923 609 An Institutional Approach to the Law of Commercial Banking Yale L R 38 1929 703 Uma bibliografia será encontrada em E N Carlan Legai Realism and Justice 1941 Quanto a um estu do introdutório ver por exemplo W Friedmann Legal Theory 2a ed 1949 189 e segs Para um estudo crítico ver por exemplo Cardozo Selected Writings 1947 7 e segs Lon L Fuller American Legal Realism Proceedings of the American Philosophical Society vol 76 1936 191 e segs e A Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 59 e segs A ten dência na teoria do direito que qualifica a si mesma como socio logia do direito consiste majoritariamente em idealismo disfar çado parágrafo 1 notas 24 e 25 Esta é a posição relativa das duas principais tendências na filosofia do direito ou seja o idealismo metafísico e o realismo científico A batalha final entre elas não pode ser travada no domínio da própria filosofia do direito tendo sim que ser travada no campo da filosofia geral A controvérsia entre o idealismo e o realismo na filosofia do direito se dissolve necessariamente em problemas fundamentais de epistemologia No que a estes tange tudo que o filósofo do direito pode fazer é indicar as linhas principais do fundamento filosófico que dá sustentação à sua teoria Estou convencido além disso de que a metafísica desaparecerá gradualmente do campo do direito assim como quase desapareceu do domínio das ciências naturais não tanto devido aos argumentos lógicos contra ela formulados porém mais porque o interesse nas construções metafísicas desvanece paulatinamente na medida em que se desenvolve uma ciência regular que demonstra seu próprio valor Quem hoje em dia pensaria em refutara crença na pedra filosofal Deixemos que os mortos enterrem os seus mortos 96 Alf Ross Por outro lado compete à filosofia do direito executar uma crítica do idealismo em sua aplicação aos problemas teóricos do direito Uma daá grandes dificuldades do idealismo jurídico tem sido explicar como é posí sível que o ato de legislação no seu caráter de fenômeno social pod produzir algo que não sejam efeitos sociais a saber obrigações válidas de uma natureza a priori Se o idealismo for tomado a sério quer dizer se com relação a certas regras ou ordenamentos se lhes nega caráteri jurídico porque não se harmonizam com um ideal pressuposto de justij ça isso conduzirá a uma limitação inconveniente do conceito de direito Constitui princípio elementar de ciência a necessária definição de unrtj objeto de acordo com qualidades objetivas e não de acordo com quais quer avaliações É irrelevante por exemplo que as leis de Hitler contraí os judeus ou certas leis estrangeiras que autorizam a poligamia sejam consideradas incompatíveis com a idéia do direito resta ainda o cumprij mento inescapável da tarefa prática de expor essas regras realmente efetivas em conexão com o sistema no qual ocorrem Pareceme absur do exprimir reprovação moral pela exclusão desses temas do domínio daí ciência do direito A idéia do direito se é que a admitimos pode portan to no máximo ser uma idéia reguladora jurídicopolítica porém não um elemento constitutivo do conceito do direito Caso se intente debilitar a pretensão do idealismo dizendo que em todo o caso o direito positivo tem que consistir numa tentativa de realizar a justiça isso introduzirá entre os fetos objetivos do direito um fator subjetivo de intenção de difícil explicação As tentativas podem lograr êxito ou falhar É a tentativa ma lograda também direito A interpretação se afiguraria tão arbitrária quanto se alguém pretendesse sustentar que um cão constitui uma tentativaj malograda de criar um gato I Finalmente caso se rejeite radicalmente toda censura ética como faz Kelsen e se aceite simplesmente como direito a ordem que tem efetividade a validade específica como categoria formal se transforma em algo supérfluo Kelsen faz uma tentativa de determinar a natureza do direito positivo prescindindo da realidade psicológica e social A im possibilidade disto se patenteia ao chegarmos na hipótese inicial nor ma básica ou Grundnorm Enquanto permanecermos nos degraus in feriores do ordenamento jurídico será possível retardar o problema da validade da norma nos remetendo a uma norma superior Entretanto este procedimento não pode ser empregado ao chegarmos à hipótese inicial A esta altura a questão da relação da norma com a realidadç se torna inevitavelmente urgente Se se pretende que o sistema faça Direito e Justiça 97 5entido está claro que a hipótese inicial não poderá ser selecionada arbitrariamente O próprio Kelsen afirma que esta tem que ser escolhi da de tal modo que abranja o sistema que se acha efetivamente em vigor Mas então fica claro que na realidade a efetividade é o critério do direito positivo e que a hipótese inicial uma vez que sabemos que é direito positivo apenas cumpre a função de outorgarlhe validade que é exigida pela interpretação metafísica da consciência jurídica embora ninguém saiba no que consiste tal validade A hipótese inicial é a fonte última de que emana a validade que se estende através de todo o sistema Poderseia passar tudo isso por alto como uma cons trução supérflua mas inócua se dela não resultasse o fechamento dos olhos a uma rigorosa análise do critério de efetividade Ao fazer da validade uma relação internormativa a validade de uma norma deriva da validade de outra Kelsen se impediu desde o começo de lidar com o cerne do problema da vigência do direito a relação entre o conteúdo ideal normativo e a realidade sociaí31 14 DISCUSSÃO REALISMO PSICOLÓGICO REAUSMO COMPORTAMENTISTA E SUA SÍNTESE Todas as teorias realistas concordam em interpretar a vigência do direito como em termos de efetividade social das normas jurídicas Um norma vigente difere de um mero projeto de lei ou de uma peti ção de reforma legislativa porque o conteúdo ideal normativo da nor ma vigente é ativo na vida jurídica da comunidade há um direito em ação que corresponde ao direito nas normas Resta definir com maior precisão essa ser ativo Neste ponto as teorias divergem Há duas abordagens que poderiam ser denominadas como o ramo psicológico e o ramo comportamentista do realismo jurídico O realismo psicológico descobre a realidade do direito nos fatos psicológicos Uma norma é vigente se é aceita pela consciência jurídi ca popular O fato desta regra ser também aplicada pelos tribunais é de acordo com esse ponto de vista derivado e secundário uma con seqüência normal da consciência jurídica popular que é inclusive determinante das reações do juiz O critério efetivo não é a aplicação como tal mas sim o fator determinante por trás dela 31 Ver Ross Towards a fíealistic Jurisprudence 1946 cap II seç 6 e a crítica ao livro de Hans Kelsen What is Justice publicada na Califórnia LawReview t 45 1957564 e segs 98 Alf Ross Segundo esse ponto de vista portanto para comprovar se uma dada regra é direito vigente devemos proceder a certas investigações sóciopsicológicas Teremos que nos indagar se a regra é aceita pela consciência jurídica popular Somos informados que essa investigação pode ser fácil se a regra for encontrada numa lei adotada de forma constitucional isto porque a consciência jurídica popular sustenta acima de tudo como seu conteúdo indireto e formalizado a crença de que o direito é direito e que tem que ser obedecido O público geralmente aceita que qualquer coisa estabelecida em conformidade com a Cons tituição se arvora objeto titular a ser respeitado como direito32 Contudo a consciência jurídica popular não está atada à lei Pode acontecer que uma lei não seja aceita pela consciência jurídica popu lar e assim não se transforma em direito vigente Do mesmo modo quando um precedente pela primeira vez estabelece uma regra a decisão não passa de uma tentativa de criar direito O que é decisivo é a aceitação da regra por parte da consciência jurídica A única pe dra de toque ou critério possível para a existência de uma regra jurídi ca é o seu confronto com a consciência jurídica popular Knud Illum Admitese que a consciência jurídica do homem da rua é demasiada mente precária para valer como critério e que por conseguinte é preciso levar em conta a consciência jurídica dos juristas profissionais do país mormente a dos autores de direito Estes são os guardiães da herança da tradição jurídica nacional e é mister que seja a opinião deles que em caso de dúvida decida o que é direito vigente Pontos de vista semelhantes a estes animaram em tempos mais longínquos a escola históricoromântica Savigny Puchta parágra fo 81 e recentemente foram defendidos pelo autor dinamarquês Knud Illum Idéias similares a despeito de menos elaboradas po dem também ser encontradas nas obras do filósofo do direito sue co Karl Olivecrona O objeção principal ao realismo psicológico é que consciência jurí dica é um conceito que pertence à psicologia do indivíduo Ao vincular o conceito de direito vigente à consciência jurídica individual esse 32 Para outros detalhes ver Karl Olivecrona LawasFact 1939 51 e segs Numa certa medida o realismo ideológico se assemelha ao idealismo formal de Kelsen segundo o qual a validade do direito é derivada dedutivamente da Constituição e da hipótese inicial A diferença pareceria ser simplesmente que enquanto Kelsen considera a ideo logia constitucional como uma hipótese normativa autônoma em abstrato e dissociada da realidade social Olivecrona frisa que é o conteúdo de concepções psicológicas reais que existem nas mentes dos seres humanos Direito e Justiça 99 ramo do realismo converte o direito num fenômeno individual que se acha num plano idêntico ao da moral Basta que pensemos em pro blemas como aborto traição aplicação de impostos a cooperativas ou liberdade comercial para constatarmos quão diversificada pode ser a consciência jurídica inclusive entre os juristas O próprio Illum não recua diante da conclusão lógica de que fundamentalmente há tantas variedades de direito quanto homens familiarizados com a tra dição jurídica Sobre esta base não seria possível falar de um ordenamento jurídico nacional tal como não é possível falar de uma moral nacional terseia que dizer que há simplesmente uma opinião jurídica predominante Uma tal definição é inaceitável É preciso pressupor que ao menos dentro de certos limites é possível definir um ordenamento jurídico nacional como um fenômeno externo intersubjetivo e não como uma mera opinião subjetiva que pode ser medida por meio de uma pesquisa de opinião Gallup entre os professores de direito Se há razões plausíveis para supor que uma dada regra será ado tada pelos tribunais do país como fundamento para suas decisões então essa regra é direito nacional vigente tal como entendem os juristas geralmente essa expressão e são irrelevantes as opiniões que possam existir na consciência jurídica do professor Illum ou na de qualquer pessoa O realismo comportamentista encontra a realidade do direito nas ações dos tribunais Uma norma é vigente se houver fundamentos suficientes para se supor que será aceita pelos tribunais como base de suas decisões O fato de tais normas se compatibilizarem com a consciência jurídica predominante é segundo esse ponto de vista derivado e secundário tratase de um pressuposto normal porém não essencial da aceitação por parte dos tribunais A oposição en tre este ponto de vista e a teoria psicológica pode ser assim expres sa enquanto esta última define a vigência do direito de tal sorte que somos forçados a dizer que o direito é aplicado porque é vigen te a teoria comportamentista define o conceito de tal modo que somos obrigados a dizer o direito é vigente porque é aplicado2 33 As duas frases em itálico não exprimem qualquer divergência no tocante a fatos mas indicam que a frase ser vigente é definida de maneiras distintas em cada uma das duas frases 100 Alf Ross Pontos de vista semelhantes têm desempenhado um importante papel no realismo norteamericano o qual remonta a Oliver WendeH Holmes que já em 1897 enunciou a tão citada frase O que entenda por direito e sem nenhuma outra ambição são as profecias do que os tribunais farão de fato34 E todavia não é possível fazer uma interpretação puramente comportamental do conceito de vigência porque é impossível predi zer a conduta do juiz por meio de uma observação puramente extern na do costume O direito não é simplesmente uma ordem familiar oy habitual parágrafo 8 Só é possível atingir uma interpretação sustentável da vigência do direito por meio de uma síntese do realismo psicológico e do realismo comportamental que foi o que tentei explicitar no presente capítulo Minha opinião é comportamentista na medida em que visa a desco brir consistência e previsibilidade no comportamento verbal externa mente observado do juiz é psicológica na medida em que a aludida consistência constitui um todo coerente de significado e motivação somente possível com base na hipótese de que em sua vida espiritual o juiz é governado e motivado por uma ideologia normativa cujo con teúdo nós conhecemos 34 34 The Path of the Law Harvard Law Review t 10 1897 457 e segs publicado em CollectedPapers 19201 Essa linha de pensamento foi seguida por John Chipman Gray I The fJature and Sources of Law 1909 que definiu o direito como as regras que os tribunais formulam para a determinação dos direitos e deveres e fez a notável afirmativa de que o direito de uma grande nação é constituído pelas opiniões de meia dúzia de velhos senhores alguns deles podese concebêlo de inteligência bastante limitada porquanto se meia dúzia de senhores consti tuem a mais alta corte de um país nenhuma regra ou princípio que eles se recusem a seguir será direito nesse país Op cit 84 e 125 A partir deste ponto a idéia foi conduzida às suas conclusões lógicas extremas por Jerome Frank Law and Modem Mind 1930 a saber à conclusão de que o direito não consiste em absoluto em regras mas tão só na soma total das decisões individuais Podemos agora arriscar uma definição rudimentar e provisória do direito do ponto de vista do homem médio para qualquer pessoa particular leiga o direito relativamente a qualquer conjun to particular de fatos constitui uma decisão de um tribunal no tocante a esses fatos na medida em que essa decisão afeta essa pessoa Enquanto um tribunal não tiver se pronunciado sobre esses fatos não existirá direito sobre o ponto Antes de tal decisão o único direito disponível é a opinião dos advogados acerca do direito aplicável a essa pessoa e a esses fatos Essa opinião referencial não é realmente direito mas meramente uma conjetura do que decidirá o tribunal 0 direito portanto acerca de uma dada situação é a direito efetivo isto é uma decisão específica passada referente a dita situação ou b direito provável isto é uma conjetura quanto a uma decisão específica futura Op cit 46 Benjamin Cardozo não aprova os excessos do realismo mas aceita a idéia funda mental Eu contemplo um vasto e pouco preciso conglomerado de princípios regras costumes usos e padrões morais prontos para ser incorporados numa decisão conforme certo processo de seleção a ser praticado por um juiz Se estiverem estabelecidos de sorte a justificar com razoável certeza a previsão de que encontrarão o respaldo do tribunal no caso de sua autoridade ser questionada então direi que são direito Seected Writings 1947 18 Para um exame e crítica mais minuciosos de Gray e Frank ver Alf Ross Towards a flealistic Jurisprudence 1946 59 e segs Capítulo III As Fontes do Direito 15 DOUTRINA E TEORIA DAS FONTES DO DIREITO No capítulo anterior chegamos à conclusão de que o conteúdo real da asserção A D é direito vigente é uma previsão de que D sob certas condições será adotada como base para decisões em disputas jurídicas futuras A experiência mostra que tal previsão é realmente possível dentro de certos limites embora o grau de probabilidade com o qual pode ser feita possa variar consideravelmente Ora se como nas regras do xadrez um ordenamento jurídico nacional consistisse num pequeno número de normas simples conci sas e invariáveis poderseia supor simplesmente que a previsibilidade dependeria do fato de essas normas estarem num momento deter minado presentes de modo ativo na mente do juiz Mas este não é o caso Um ordenamento jurídico nacional não é apenas uma vasta multiplicidade de normas estando ao mesmo tem Po sujeito a um contínuo processo de evolução Em cada caso por conseguinte o juiz tem que abrir caminho através das normas de conduta que necessita como fundamento para sua decisão Se a despeito de tudo a previsão for possível terá que sêlo porque o Processo mental pelo qual o juiz decide fundar sua decisão em uma 102Alf Ross regra de preferência a outra não é uma questão de capricho e arbí trio variável de um juiz para outro mas sim um processo determina do por posturas e conceitos por uma ideologia normativa comum presente e ativa nas mentes dos juizes quando atuam como tais E verdade que não podemos observar diretamente o que ocorre na mente do juiz porém é possível construir hipóteses no tocante a isso e o valor delas pode ser comprovado observandose simplesmente se as previsões nelas baseadas foram acertadas Essa ideologia é o objeto da doutrina das fontes do direito Constitui o fundamento do ordenamento jurídico e consiste em diretivas que não concernem diretamente ao modo como deverá ser resolvida uma disputa legal mas que indicam a maneira pela qual um juiz deverá proceder a fim de descobrir a diretiva ou diretivas decisivas para a questão em pauta Está claro que essa ideologia só pode ser observada na conduta efetiva dos juizes É a base para as previsões da ciência do direito no que respeita à maneira pela qual os juizes reagirão no futuro A ideo logia das fontes do direito é a ideologia que de fato anima os tribu nais e a doutrina das fontes do direito é a doutrina que concerne à maneira na qual os juizes efetivamente se comportam Partindo de certas pressuposições seria possível desenvolver diretivas quanto a como deveriam proceder na eleição das normas de conduta nas quais baseiam suas decisões Porém é evidente que a menos que sejam idênticas às que são de fato seguidas pelos tribunais tais diretivas são destituídas de valor como fundamentos para previsões relativas à conduta futura dos juizes e por isso mesmo não servem para deter minar o que é direito vigente Qualquer doutrina normativa das fontes do direito que não se adeqüe aos fatos carece de sentido se pretender ser algo mais que um projeto de um direito novo e melhor A doutrina das fontes como qualquer outra doutrina acerca do direito vigente é descritiva de normas e não expressiva de normas é uma doutrina que se refere a normas não uma doutrina que consiste em normas A expressão metafórica tradicional fontes do direito se deve à idéia de que a ideologia que examinamos consiste em diretivas ao juiz que lhe ordenam a aplicar regras criadas de acordo com certos modos específicos de procedimento Daqui basta um passo à frente para este modo de procedimento ser concebido como fonte O direito brota de certos procedimentos específicos do mesmo modo que a água brota de uma fonte Esta concepção se coaduna às regras do Direito e Justiça 103 direito legislado visto que estas são definidas decerto como regras criadas pelo procedimento de legislação sendo natural designar a legislação como a fonte de todo direito que existe sob a forma de regras legisladas A metáfora se revela menos apropriada ao prece dente ao costume e à razão como fontes adicionais do direito já que estas palavras não indicam três procedimentos adicionais para a cria ção do direito que concedam ao juiz um produto elaborado tal como faz a legislação Metaforicamente falando podemos talvez dizer que a legislação concede um produto acabado pronto para ser utilizado enquanto o precedente e o costume proporcionam somente semi manufaturados que requerem acabamento pelo próprio juiz e a ra zão apenas produz certas matériasprimas a partir das quais o pró prio juiz tem que elaborar as regras de que necessita Nestas circunstâncias é somente com dificuldade e receio que se poderia formular antecipadamente um conceito de fontes do direito que incluísse elementos tão diversos como a legislação o costume o precedente e a razão Em todo caso terseia que enfatizar que a desig nação fonte do direito não pretende significar um procedimento para a produção de normas jurídicas Esta característica pertence exclusiva mente à legislação Se quisermos contudo formular um conceito de fontes do direito que não seja em si mesmo necessário para dar conta da ideologia a que estamos aludindo teremos que definilo de uma maneira mais imprecisa Por fontes do direito por conseguinte enten derseá o conjunto de fatores ou elementos que exercem influência na formulação do juiz da regra na qual ele funda sua decisão acresçase que esta influência pode variar desde aquelas fontes que conferem ao juiz uma norma jurídica já elaborada que simplesmente tem que aceitar até aquelas outras que lhe oferecem nada mais do que idéias e inspira ção para ele mesmo o juiz formular a regra que necessita Considerandose que a ideologia das fontes do direito varia de um sistema jurídico para outro descrevêla é tarefa da ciência do direito a doutrina das fontes do direito Esta tarefa como vimos somente pode ser realizada por meio do estudo minucioso da maneira como procedem de fato os tribunais de um país visando a descobrir as normas em que baseiam suas decisões E a tarefa da filosofia do direito só pode consistir neste caso em estabelecer e identificar os tipos gerais de fontes do direito que em conformidade com a experiência aparecem em todos os sistemas jurídicos maduros a Teoria das Fontes do Direito 104Alf Ross Diversas abordagens se apresentam como o fundamento de umê classificação generalizadora desse tipo Seria possível por exemplo caracterizar os vários tipos de fontes segundo o papel dominante que desempenharam na evolução histórica do direito Deste ponto de vis ta o precedente e a razão são caracterizáveis como as fontes que sempre desempenharam um papel considerável que corresponde às idéias de justiça formal e material o costume e a legislação como as fontes cujo papel tem variado grandemente sendo o costume a fonte predominante no direito primitivo e a legislação no direito moderno Neste livro entretanto o fundamento será outro a saber o grau de objetivação dos diversos tipos de fontes Por isto entendo eu o grau no qual elas apresentam ao juiz uma regra formulada pronta para sua aplicação ou inversamente o grau no qual lhe apresentam um material que será transformado numa regra somente após uma ativa contribuição de labor por parte do juiz Consoante a isso o esquema de classificação será o seguinte I o o tipo de fonte completamente objetivada as formulações revestidas de autoridade legislação no sentido mais amplo 2oo tipo de fonte parcialmente objetivada costume e precedente 3o o tipo de fonte não objetivada livre a razão 16 LEGISLAÇÃO A fonte mais importante no direito da Europa continental atual mente é constituída sem dúvida pelas normas sancionadas pelas autoridades públicas Com efeito os juizes se sentem obrigados em alto grau ante as declarações da legislatura e a doutrina ideoló gica oficial assevera que o direito legislado em lato sentido possui força obrigatória absoluta Na prática entretanto os tribunais aberta ou subrepticiamente por vezes desconsideram as regras legislativas discordantes da consciência jurídica material predominante1 Na mente dos juizes como na dos outros cidadãos há um limite para o possível hiato entre a consciência jurídica institucional e a consciên cia jurídica material parágrafo 11 De modo particular as regras 1 Ver à guisa de exemplo Jean Crutz La Vie du Droit et 1lmpuissance des Lois908 Direito e Justiça 105 jurídicas antigas podem perder vigência porque já não se acham em harmonia com as novas condições e idéias Dizse então que a lei foi abolida por desuetudo Historicamente o crescimento de uma legislatura constitui um fe nômeno estranho parágrafo 18 e muito tempo levou para que as autoridades do direito legislado lograssem reconhecimento geral Afir ma Allen2 que ainda no século XIV não era incomum na Inglaterra os juizes se recusarem franca e prontamente a aplicar o direito legislado Houve luta pela supremacia na criação do direito entre a common law e o Parlamento3 conflito que era ideologicamente sustentado pela doutrina do direito natural No caso Bonham4 em 1610 Coke C J defendeu o direito dos juizes da common awdeclarar nula uma lei do Parlamento mas após a revolução de 1688 a supremacia absoluta do Parlamento foi reconhecida5 Blackstone em 1765 pôde não obstante pagar um tributo verbal à doutrina do direito natural ao sustentar que nenhuma lei é válida se oporse à natureza e à razão mas na prática reconheceu a competência absoluta e irrestrita do Parlamento6 O direito legislado é direito sancionado ou seja foi criado por uma resolução de certos seres humanos e por isso pressupõe normas de competência que indicam as condições nas quais isso pode ocorrer Cabe à doutrina das fontes do direito expor e explicar essas normas de competência A teoria das fontes do direito deve se restringir à elucidação de certos traços característicos do direito legislado Toda sanção em exercício de uma competência é conhecida sob a designação comum de legislação Tomada TienJtiílaodo a pala vra legislação compreende não apenas a Constituição se escrita e as leis do Parlamento mas também todo tipo de normas sancionadas subordinadas e autônomas não importa com que nome se as desig ne ordens do Conselho regras e ordens estatutárias regulamentos de autoridades locais de corporações autônomas de igrejas etc 2 Law in the Making 4 ed 1946 365 e segs 3 Ver também W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 50 e segs 4 T ransparece nos nossos livros que em muitos casos a common law se acha acima das leis do Paríamento e às vezes as declara absolutamente nulas pois quando uma lei do Parlamento se opõe à razão ou è justiça comum ou seu cumprimento é repugnante ou impossível a common law a colocará sob seu controle e a declarará nula 16108 Co CP 114a 5 Ver porém Goschen contra Stonington 1822 4 Conn 209 225 quando o juiz Hosmer põe ainda em dúvida a onipotência do Parlamento ver também Julius Stone The Province and Function of Law 1950 2268 6 Commentaries 1765 II 4143 106Alf Ross Uma norma do direito legislado recebe sua autoridade das nor mas de competência que definem as condições sob as quais a san ção terá força legal Estas condições podem ser divididas em dois grupos As condições formais de competência definem o procedimento para a sanção da norma o que inclui a identificação das pessoas qualificadas para adotar as diversas etapas do procedimento O pro cedimento legislativo exemplificando exige que as diversas etapas na Câmara de Representantes e no Senado sejam cumpridas por pessoas que segundo as leis eleitorais e o resultado das eleições estejam qualificadas como membros de uma casa e de outra As condições materiais definem o objeto ou conteúdo da norma que pode ser sancionada mediante o procedimento indicado i Combinando ambos os conjuntos de condições nos é possível di zer que uma norma sancionada detém força legal se tiver sido ditada por uma autoridade que acatou o procedimento regular e que tenha operado nos limites de sua competência material A competência para sancionar normas não está geralmente limi tada a uma única autoridade Parte do direito que é criado mediante leis consiste em novas normas de competência que constituem no vas autoridades as quais por sua vez podem ser competentes para estabelecer outras autoridades Deste modo surge um complicado sistema de autoridades em vários níveis Uma autoridade cuja com petência é determinada por normas criadas por outra autoridade situase num nível inferior a esta última Duas autoridades cujas com petências respectivas foram criadas pela mesma autoridade superior situamse no mesmo nível e gozam de status idêntico Chamemos a autoridade que estamos considerando de At foi constituída segundo um conjunto de regras de competência formais e materiais Se chamarmos estas regras de Cx Ct terão que ter sido sancionadas por uma autoridade superior A2 ou não Se foram sancio nadas por A2 A2 terá que ter sido constituída por C2 que por sua vez têm que ter sido sancionadas por A3 ou não Visto que a série de autoridades não pode ser infinita é forçoso concluir que em última instância as normas mais altas de competência não podem ser san cionadas tendo que ser pressupostas A linha de pensamento pode ser ilustrada do seguinte modo Direito e Justiça 107 A3 constituída por C3 não sancionadas por uma autoridade A2 constituída por C2 sancionadas por A3 A constituída por Ct sancionadas por A2 A3 é a autoridade suprema e conseqüentemente tem que ser ne cessariamente constituída por normas de competência que não foram sancionadas por nenhuma autoridade sendo porém pressupostas As normas que constituem uma autoridade A e sua competência são ao mesmo tempo normas que determinam como pode ser reformado 0 direito criado por A As normas constituintes determinam as condições para a validade das normas subordinadas e conseqüentemente regem tanto sua sanção como sua reforma Inversamente as normas formula das para a reforma do direito criado por A são ao mesmo tempo nor mas que constituem A As normas que regulam a maneira de legislar por exemplo são simultaneamente normas que indicam de que forma pode ser reformada uma lei nomeadamente por uma nova lei E inversa mente as normas da Constituição que regem o procedimento especial para a reforma da Constituição são ao mesmo tempo normas que esta belecem uma autoridade constituinte distinta da legislativa A pequena tabela apresentada supra mostrou que uma certa auto ridade era suprema e que as normas que constituem essa autoridade não podiam portanto ter sido sancionadas por nenhuma outra auto ridade tendo sim que existir como uma ideologia pressuposta Isto significa que não existe norma superior que determine as condições para sua sanção e reforma válidas De um ponto de vista jurídico portanto é impossível emitir qualquer juízo no tocante ao modo como pode ser alterada a ideologia constituinte superior pressuposta E no entanto esta muda seja mediante revolução seja mediante evolução Mas em ambos os casos 0 fenômeno da mudança é um fato sócio psicológico puro que se acha fora do âmbito do procedimento jurídico Nos Estados Unidos a autoridade suprema é 0 poder constituinte instituído pelas regras estabelecidas no art V da Constituição Estas regras encarnam 0 mais elevado pressuposto ideológico do ordenamento jurídico norteamericano porém não podem ser consideradas como san cionadas por nenhuma autoridade e não podem ser reformadas por nenhuma autoridade Qualquer reforma do art V da Constituição que na prática se leve a cabo é um fato ajurídico e não criação do direito Por meio de um procedimento que tenha sido instituído 108 Alf Ross Estou decerto ciente de que se objetará que todos os políticos que ocupam posições de autoridade atuam de fato na suposição de que o art V da Constituição pode ser juridicamente reformado e que só pode o ser por meio de um certo procedimento a saber o indicado no próprio art V Certamente aceito este modo de ver como um fato sóciopsicológico que exercerá uma grande influência no curso efeti vo da vida política entretanto tal circunstância não é uma razão para modificar a análise lógica precedente Só há um meio possível de objetar o raciocínio expresso na tabela acima Poderseia sustentar que certa autoridade por exemplo A3 pode ser estabelecida em normas sancionadas por ela mesma o que eqüivale a dizer que é possível que uma norma determine as condi ções para sua própria sanção incluindo a maneira pela qual pode ser modificada Uma refíexividade desse tipo contudo constitui uma impossibilidade lógica sendo de ordinário assim reconhecida pelos lógicos7 Uma proposição não pode referirse a si mesma Seria pos sível oferecer uma prova completa disso mas este não é o lugar adequado para tal Penso que se admitirá não ser possível imaginar a legislatura constituída por lei e a lei não poder estabelecer as condi ções para sua própria reforma As regras para isto precisam necessa riamente estar num nível que seja superior em um degrau ao nível da lei Entretanto se admitirse isto para a lei terseá que admitir algo análogo para a Constituição A Constituição tal como a lei não pode expressar as condições para sua própria reforma O art V da Consti tuição portanto não é logicamente parte da Constituição mas com preende normas pressupostas de um plano mais elevado as quais por sua vez não podem estabelecer as condições para sua própria reforma Se tais condições existissem estariam estabelecidas num plano ainda mais elevado Mas não existem de fato O art V da Constituição não é direito legislado mas sim pressuposto Que se adicione a isso que se o art V da Constituição é reformado na prática por um procedimento que se conforma com suas próprias regras não é possível considerar o novo art V como derivado do anterior ou como válido porque é dele derivado Uma tal derivação pressupõe a validade da norma superior e daí a existência continuada da mesma e por meio de derivação não se pode estabelecer uma 7 Ver por exemplo Jírgen Jírgensen Some Reflections on Reflexivity M indlM 19531289 e segs Direito e Justiça 109 nova norma que contrarie a que lhe serviu de fonte Isto será mais fácil de ser entendido se examinarmos um caso menos complicado do que as regras do art V da Constituição Se um monarca absoluto outorga uma Constituição livre o signi ficado jurídico deste ato pode ser interpretado de duas maneiras dis tintas É possível considerar que a nova Constituição possui validade em virtude do poder absoluto do monarca que a outorgou o qual prossegue assim como autoridade suprema A norma básica anterior portanto continua sendo válida e a nova ordem pode ser revogada a qualquer momento pelo mesmo poder absoluto que a outorgou Ne nhuma alteração ocorreu no pressuposto essencial do sistema em sua ideologia fundamental Contudo a nova Constituição também pode ser outorgada pelo monarca com a intenção de que não seja revogável Neste caso não podemos considerar que deriva de seu poder absoluto Não é possível que na conclusão de uma inferência dedutiva válida surja algo que se ache em conflito com as premissas A idéia de que o rei entrega seu poder soberano ao povo como alguém que entregasse um objeto tangível se funda em idéias de soberania puramente mágicas Resulta que ou a nova Constituição deriva da antiga e neste caso não há realmente uma nova Constituição pois o poder absoluto do rei continua invariável ou a nova Constituição substituiu a ante rior mas neste caso não pode ser derivada dela A determinação de qual destas duas interpretações é apropriada em dadas circunstâncias históricas não se respalda em considerações de lógica jurídica mas exclusivamente na ideologia política que se aplica de fato A situação é semelhante no caso das regras mais complicadas do art V da Constituição Segundo esse artigo uma emenda constitucional exige a ratificação de três quartos dos Estados Se por meio desta maioria se decide que no futuro será exigida uma ratificação de quatro quintos dos Estados a nova regra relativa a emendas não pode ser considerada como derivada da anterior do contrário seria possível emendar a nova norma básica por meio do mesmo procedimento utili zado para criála isto é por uma maioria de três quartos e a regra atual de emendas continuaria sendo a norma mais elevada do sistema Tudo isso como dito não nega o fato sóciopsicológico de que um novo art V será mais facilmente aprovado se for adotado o procedi mento estabelecido nas regras do art V da Constituição 110Alf Ross Em suma todo sistema de direito legislado no lato sentido ba seiase necessariamente numa hipótese inicial que constitui a autori dade suprema mas que não foi criada por nenhuma autoridade Existe apenas como uma ideologia política que forma o pressuposto do sis tema Qualquer emenda via procedimento jurídico estabelecido só é possível dentro do sistema cuja identidade é determinada pela hipó tese inicial Toda mudança nesta última isto é toda transição de um sistema para outro é um fenômeno extrasistemático uma mudança fática sóciopsicológica na ideologia política dominante e não pode ser descrito como criação jurídica mediante um procedimento Ao mesmo tempo é difícil imaginar que o art V da Constituição seja alterado salvo num processo que se assemelhe ao procedimento ju rídico determinado pelo próprio art V As forças políticas são domina das de fato por idéias que não podem ser expressas racionalmente mas tãosó em termos mágicos o procedimento estabelecido no art V é o ato mágico que com exclusividade pode soltar o laço criado pelo próprio artigo com apenas uma possível reserva Se na prática se revelasse impossível a reforma do art V em conformidade com suas próprias regras seria possível talvez recorrer com êxito a uma ideologia ainda mais fundamental em apoio à mudança o direito do povo norteamericano de darse a qualquer tempo uma Constituição Em The Age of Jackson 1946 p 410 Arthur M Schleslnger recorda uma tentativa interessante embora infrutífera de recor rerão poder constituinte fundamental do povo Por volta de 1840 no Estado federativo de Rhode Island possuidor de uma Consti tuição que era se comparada com a dos outros Estados muito conservadora surgiu um movimento popular sob a liderança de Thomas Wilson Dorr que exigia a extensão do direito de voto e outras reformas liberais da Constituição O governo conservador permaneceu firme nos seus direitos exclusivos diante do que Dorr recorreu ao poder soberano do povo como fundamento de todo governo Em conseqüência dessa estratégia houve em 1841 duas assembléias constituintes rivais uma convocada apressadamente pelo governo para abrandar os ânimos do povo e uma segunda que não foi o resultado de um procedimento legítimo tendo bus cado sua legitimação diretamente no poder constituinte do povo Neste contexto o passo seguinte foi a aprovação de duas Consti tuições A Constituição popular obteve apoio esmagador num ple biscito e Dorr formou um governo fazendose nomear como go vernador Nenhum dos dois governos se mostrou disposto a ceder Direito e Justiça 111 Em 1842 ocorreu um conflito armado e Dorr foi vencido Fugiu do Estado e centenas de seus adeptos foram presos No ano seguinte tentou retornar secretamente mas foi imediatamente preso e pro cessado Foi condenado à prisão perpétua em regime de trabalhos forçados A despeito do malogro de seu plano este fortaleceu o movimento liberal Em 1845 Dorr foi posto em liberdade e em 1854 sua sentença foi anulada 17 PRECEDENTES JURISPRUDÊNCIA Com certeza podese ter como pacífico que os precedentes isto é as decisões jurídicas anteriores desempenharam sempre um papei importante na decisão relativa a uma disputa legal perante um tribu nal O fato de que num caso anterior de caráter similar se tenha escolhido uma certa regra como fundamento da decisão constitui um forte motivo para que o juiz baseie a decisão presente na mesma regra Além de tal procedimento poupar tempo dificuldades e res ponsabilidades ao juiz esse motivo está estreitamente relacionado à idéia de justiça formal a qual em todos os tempos parece ter sido um elemento essencial da administração de justiça a exigência de que os casos análogos recebam tratamento similar ou de que cada deci são concreta seja baseada numa regra geral parágrafo 63 Por outro lado razões de peso podem ser dadas para a ruptura com práticas anteriores particularmente sob condições sociais em mudança e em relação a áreas do direito nas quais a legislação con tudo não tem interferido para atualizar as normas Em tais circuns tâncias atribuir demasiado valor aoprecedente será considerado formalismo como uma ênfase excessiva nas exigências de justiça formal às expensas da eqüidade material Tal como se afirmou no parágrafo 15 a doutrina das fontes do direito se ocupa daqueles fatores que de fato influem no comporta mento do juiz visto que somente eles podem nos auxiliar na previsão de suas reações futuras Conseqüentemente a única coisa importan te para a doutrina das fontes do direito é o papel motivador que o precedente efetivamente desempenha e não a doutrina oficial que nos diz se o juiz pode levar em consideração os precedentes e caso Possa nos informa se está ou não obrigado por eles Esta doutrina tem estado submetida a uma grande gama de variações nas diferen tes épocas e diferentes sociedades 112 Alf Ross Associativamente às grandes codificações o legislador na vã es perança de preservar sua obra tem proibido amiúde a interpretação das normas e que a prática dos tribunais se desenvolva como fonte do direito Já Justiniano proibiu decisões de acordo com precedentes non exemplis sed leglbus judícandum esfa No Código Prussiano Allgemeines Landrecht de 1794 encontramos preceitos similares Na Dinamarca depois da aprovação do Código Dinamarquês em 1683 proibiuse que os advogados citassem precedentes perante a Corte Suprema A medida foi rescindida em 1771 Essas proibições drásti cas se provaram ineficazes tornando preponderante na Europa con tinental o ponto do vista de que no interesse da certeza das decisões prévias dos tribunais superiores em particular as da Corte Suprema deviam ser respeitadas embora não dispusessem de força obrigató ria formal como acontecia com o direito legislado A doutrina anglosaxônica é totalmente distinta9 Já no século XIII tornouse usual citar precedentes e no seu famoso NoteBook Bracton colecionou dois mil casos quase certamente para finalidade prática Originalmente não se entendia que o juiz estivesse obrigado por eles A doutrina anglosaxônica desenvolveuse muito gradualmente e assu miu uma forma mais definida nos séculos XVII e XVIII Porém a au sência de uma organização hierárquica homogênea dos tribunais e o estado das coleções jurídicas impediram que a doutrina alcançasse seu pleno desenvolvimento Estas deficiências foram remediadas recente mente no século XIX A doutrina atualmente objeto de reconhecimento geral denominada stare decisis pode ser sintetizada como segue 1 Um tribunal é obrigado pelas decisões dos tribunais superiores e na Inglaterra a Câmara dos Lords e a Corte de Apelações estão obrigadas por suas próprias decisões 2 Toda decisão relevante pronunciada por qualquer tribunal cons titui forte argumento passível de pleitear respeitosa consideração 3 Uma decisão somente é obrigatória com respeito a sua ratio decidendi 4 Um precedente não perde vigência embora os precedentes muito antigos não sejam em princípio aplicáveis às circunstâncias modernas 8 Código 7 45 13 9 Ver por exemplo C K Allen Law in the Making 4 ed 11946 151 e segs Direito e Justiça 113 Não é fácil decidir em que medida os juizes ingleses e norteamericanos em harmonia com a doutrina da força obrigató ria atribuem na realidade maior importância ao precedente em suas decisões do que seus colegas da Europa continental o que não pode ser tomado por pressuposto Por um lado é fato que os juizes anglosaxões sem se sentirem obstados pela doutrina de stare decisis freqüentemente desconsideram os precedentes que não se coadunam mais com as novas condições A maior prova disso reside no fato de que a common law que se desenvolveu através da prática dos tribunais não é atualmente a mesma de cem anos atrás Houve mudanças e continuam havendo Não se trata de algo incompatível com a doutrina de stare decisis O decisivo ao considerar essa doutrina não é o problema ideológico de determinar se os precedentes possuem na realidade força obrigató ria ou não mas sim saber se a doutrina fornece a este respeito crité rios objetivos tais que ao apreciar a força motivadora das decisões anteriores seja possível falar de uma limitação genuína à liberdade do juiz o que tem que ser negado em particular por duas razões a Em primeiro lugar como já indicamos um precedente só é con siderado obrigatório na medida em que concerne a ratio decidendi subjacente à decisão10 Por isso se entende o princípio geral de direito que tem que ser introduzido como premissa para dar suporte à deci são Contudo ao determinar o princípio básico de um caso o juiz não se encontra obrigado pelas declarações feitas pelo juiz que o decidiu considerase que o segundo juiz tem direito de interpretar a decisão à luz de sua própria razão11 Mas é óbvio que uma decisão poderia ser encarada como derivada de uma grande variedade de regras gerais tudo conforme os fatos do caso que julgamos relevantes 10 Ver Allen ibid 227 e segs G W Paton Jurisprudence 1946 159161 11 Quando se trata de lei criada por caso de precedência e inexiste norma legislada o juiz não se acha submetido à enunciação da regra jurídica feita pelo juiz anterior nem sequer na suposição de que a regra tenha sido enunciada no controlling case Tal enunciado constitui simples dictum o que quer dizer que o juiz do caso presente pode julgar irrelevante a existência ou a ausência de outros fatos que os juizes anteriores consideraram importantes Não é o que foi proposto pelo juiz anterior que tem importância pelo contrário é o que o juiz do caso presente tentando ver o direito como um todo dotado de razoável grau de consistência pensa que deve ser a classificação determinante Edward H Levi An Introduction to Legal Reasoning 1949 2 Qualquer caso constitui precedente detentor de autoridade somente para um juiz que como resultado de sua própria reflexão decide a favor dessa autoridade Jerome Frank Courts on 7a 1949 279 114 Alf Ross Um autor norteamericano12 cita o seguinte exemplo O pai de A a induz para que não se case com B com quem A prometeu se casar O juiz decide que o pai não é responsável perante B por sua atitude Esta decisão pode fundarse numa série de propo sições de amplitude crescente Eis a seguir algumas I aO pai tem o direito de induzir suas filhas a violar promessas de casamento v 2a Os pais quer dizer o pai e a mãe têm tal direito 3a Os pais quer dizer o pai e a mãe têm tal direito tanto no tocante às filhas quanto aos filhos 4a Todas as pessoas têm o direito de induzir às demais a violar promessas de casamento 5a Os pais pais e mães têm tal direito relativamente a qualquer promessa feita por seus filhos filhos e filhas 6 aTodas as pessoas têm tal direito relativamente a qualquer pro messa feita por qualquer pessoa Ainda quando muitas dessas interpretações possíveis achamse além do que pensamos poderia um juiz sustentar é inegável que o juiz detém considerável liberdade para interpretar a ratlo decidendi de tal sorte que um precedente invocado não constitua necessaria mente um obstáculo à decisão que por outros motivos deseja ele ditar Neste ensejo a citação a seguir é oportuna Em qualquer tentativa de descobrir quais são os fatos rele vantes surgem muitas dificuldades Assim em Donoghue contra Stevenson7 decidiuse que um fabricante de cerveja de gengi bre tinha o dever perante o consumidor de impedir que restos decompostos de caracóis causassem transtornos gástricos no con sumidor Teria sido absurdo restringir a ratio à cerveja de gengi bre Mas restringiase a regra a gêneros alimentícios Ou a coi sas capazes de causar dano à vida à saúde ou à integridade física Tinha relevância o fato de não ter havido possibilidade de uma inspeção intermediária por parte do varejista Ou era sufici ente que a res tivesse chegado ao consumidor sujeita ao mesmo 12 H Oliphant A Return to Stare Decisis Amer BarAss Jo 1 141928 71 esegs 159 e segs 13 1932 A C 562 Direito e Justiça 115 defeito não existindo probabilidade comercial de uma inspeção intermediária Muitas decisões foram necessárias para a elabo ração do significado real da doutrina O Prof Goodhart sugere que um fato é relevante a menos que seja considerado explícita ou implicitamente irrelevante porém a dificuldade consiste em descobrir o que é o implícito Em verdade não podemos freqüentemente descobrir o ponto relativamente ao qual um caso tem força obrigatória a não ser que o consideremos na sua rela ção com casos anteriores ou posteriores Um caso por assim dizer indica um ponto no gráfico mas para traçar a curva do direito necessitamos de uma série de pontos14 b Em segundo lugar mesmo quando o juiz não deseje discutir a ratio decidendiúe um precedente ihe é possível distinguir o caso pre sente do anterior As circunstâncias efetivas nunca são idênticas O próprio juiz aquilata quais entre elas são relevantes e pode eludir um precedente citado se sustentar que num aspecto ou outro o caso em pauta difere do anterior de modo a não ser obrigado pelo precedente15 Por conseguinte a doutrina de stare decisisnão passa na realida de de uma ilusão Tratase de uma ideologia mantida por certas razões com o intuito de ocultar aos seus propugnadores e aos demais a livre função criadora de direito detida pelos juizes e transmitir a impressão falaciosa de que estes apenas aplicam o direito existente o qual pode ser determinado em virtude de um conjunto de regras objetivas como indica a doutrina de stare decisis Por outro lado é também um fato que mesmo supondose que o precedente não possua força obrigatória os juizes da Europa continen tal são influenciados em grande medida por decisões anteriores e apenas esporádica e relutantemente se afastam da prática aceita Po rém também neste caso é difícil descobrir o que realmente acontece 4 Citação de G W Paton Jurisprudence 1946 160 15 Este resultado pode ser obtido limitando um caso aos seus fatos particulares E quando constatamos que isso é afirmado acerca de um caso passado sabemos que de fato o caso foi superado overruledl Só um convencionalismo um convencionalismo de algum modo absurdo impede que em tais casos se recorra a uma pura e simples superação overmíng 16 A despeito de Allen ser adepto da doutrina tradicional segundo a qual o juiz é obrigado pelos precedentes admite que cabe ao próprio juiz decidir se nas circunstâncias que se apresentam existe tal obrigação Dizemos que é obrigado pelas decisões de tribunais superiores e sem dúvida é Entretanto o tribunal superior não acorrenta o juiz ê ele que acorrenta a si mesmo 0 juiz tem que decidir se o caso a ele citado se ajusta às circunstâncias em pauta e se encarna precisamente o princípio por ele buscado 0 mais modesto dos oficiais do judiciário tem que decidir por si mesmo se é ou não obrigado nas circunstâncias particulares do caso por qualquer decisão determinada da Câmara dos Lords C K Allen Law in theMaking 4 ed 1946 247248 116 Alf Ross em parte porque amiúde os considerandos não mencionam o preceden te e em parte porque com freqüência as novas linhas jurisprudenciais não aparecem como um abandono da prática anterior abertamente admitido Não houve no continente europeu um predomínio de uma ideologia correspondente à angloamericana presumivelmente em vir tude do papel muito mais substancial que desempenha aqui a legisla ção como fonte do direito O desejo de ver o juiz obrigado por um direito objetivamente determinado estabelecido de antemão é satisfeito aqui pela doutrina da força obrigatória absoluta da lei Diante dessas circunstâncias é forçoso reconhecer que não exis tem pontos para comparação direta entre os dois sistemas no tocante ao papel que de fato o precedente desempenha como fator de mo tivação na prática judicial A única coisa que podemos afirmar com alguma certeza é a proclamada ideologia porém isto não indica como são efetivamente as coisas E contudo é possível apontar várias circunstâncias de fato que em escala muito maior que a ideologia podem explicar a diferença entre os dois sistemas e mostrar porque o precedente e a legislação desempenham um papel diferente em cada um deles Primeiramente contemplamos o papel tradicionalmente protagonizado na evolução do direito pelo jurista acadêmico e a legis lação sistemática Cumpre buscar a diferença fundamental entreos dois sistemas nesse ponto Na tradição da Europa continental o direi to é em ampla medida um produto acadêmico ostentando por isso num grau correspondente o timbre do pensamento acadêmico e sua tendência à análise sistemática e à racionalidade Com firme funda mento na tradição do direito e por meio do pensamento racional bus case chegar a princípios gerais que sirvam de diretrizes e sistematizar as normas jurídicas em conformidade com esses princípios Ausentes a tradição acadêmica e os estudiosos do direito os quais têm desempe nhado o seu papel desde o tempo dos glosadores até a atualidade as codificações da Europa ocidental seriam inconcebíveis Na Inglaterra por outro lado foi o jurista prático o juiz quem exerceu a influência preponderante no desenvolvimento do direito o qual assim evoluiu nas linhas de um método experimental Por meio de um processo gra dual de tentativa e erro de um caso para outro buscouse formular uma doutrina para expressar o direito que rege uma certa esfera da vida Só nos tempos modernos surgiu uma tendência para sistematizar Direito e Justiça 117 e generalizar o material jurídico desenvolvido daquela forma Sob a pres são do número esmagador de precedentes que ameaçam detonar as bibliotecas os norteamericanos têm produzido uma série de restatements ou seja codificações no padrão europeu porém desprovidas de autori dade oficial Esses restatements são o produto de extensos trabalhos coletivos realizados por estudiosos do direito Na Inglaterra igualmente os trabalhos doutrinários de sistematização desempenham um papel cres cente A próxima etapa no desenvolvimento será talvez uma codificação detentora de autoridade via legislação Então desaparecerá a diferença real entre o direito da Europa continental e o angloamericano embora a doutrina de stare decisis permaneça inalterada É compreensível que a concepção do precedente como uma fonte do direito provida de autoridade tenha se originado num sistema no qual o direito se desenvolveu através da prática dos tribunais e no qual a legislação desempenhou um papel secundário Contudo como fiz notar não se pode ter por certo que a doutrina de stare decisis reflete uma situação efetiva no sentido de que os juizes angloamericanos se sentem obrigados pela jurisprudência preceden tes num maior grau que seus colegas da Europa continental Pelo contrário seria possível supor que os juizes do continente europeu não se sentem responsáveis pela evolução do direito em medida idên tica aos seus colegas angloamericanos estando sim inclinados a deixar nas mãos do legislador qualquer tentativa de reforma ao menos na quelas esferas jurídicas que tradicional e regularmente estão submeti das à legislação Se assim fosse resultaria que contrariamente ao que proclama a ideologia oficial o juiz estaria de fato menos disposto a afastarse dos precedentes Juntese a isso que a maneira tradicional de redigir as decisões exerce uma importante influência no peso que na prática se atribui ao precedente Os pareceres dos juizes ingleses destacamse devido a sua ampla discussão dos pontos de vista jurídicos que fundamentam a decisão Embora segundo a doutrina oficial tais raciocínios não sejam obrigatórios para interpretar a ratio decidendiúa decisão é óbvio que de fato assumem grande importância Oferecem ao novo juiz um copioso acervo de material para lhe servir de orientação A prática da Europa continental segue linhas distintas Na Dinamarca por exemplo existe a tendência de expressar o raciocínio dos pareceres nos termos mais concretos e menos comprometedores possíveis O resultado natural é que as decisões perdem valor como precedentes orientativos 118 Alf Ross Outro fator é a quantidade e acessibilidade da jurisprudência prece dentes O hábito de recorrer à jurisprudência nos escritos e petições dos advogados requer coletâneas de registros analíticos contendo excertos de decisões numa escala que é desconhecida nos países da Europa continental 18 COSTUME É fato sociológico notório que a vida de um povo primitivo é regida nos seus mais ínfimos detalhes pelo costume Há normas consuetudi nárias sobre a maneira de caçar de pescar e de fazer a guerra no que toca à divisão do saque às relações sexuais o relacionamento socialas boas maneiras o cumprimento das cerimônias religiosas e mágicas etc O costume é um modo de conduta que é geralmente seguido e que é experimentado como obrigatório qualquer trans gressão suscitando reações de reprovação por parte da tribo Tais reações partem originalmente do grupo como um todo podendo as sumir uma grande variedade de formas desde a pena de morte o castigo corporal e a expulsão da tribo até a manifestação do desprezo público e a exposição ao ridículo17 Tal como observou Abraham Tucker é um argumento constante entre as pessoas comuns que uma coisa tem que ser feita e deve ser feita porque sempre foi feita As crianças mostram respeito ao consuetudinário o mesmo ocorrendo com os selvagens Se alguém indaga a um cafre porque faz isto ou aquilo ele responderá Como posso explicálo Nossos antepassados sempre procederam assim A única razão que os esquimós podem apresentar como explicação para alguns de seus costumes aos quais acatam por receio de má fama entre os seus é os antigos assim faziam e conseqüentemente é preciso assim fazer No comportamento do aleutiano que se enver gonha se for surpreendido fazendo algo que não se costuma fazer em sua comunidade e no terror do europeu médio de parecer singular reconhecemos a influência da mesma força do hábito18 Mesmo entre os povos muito primitivos podese por vezes en contrar um chefe um grupo de anciões um conselho de sacerdotes 17 Ver Edward Westermarck The Orígin and Oevelopment of the Mora Ideás 111924 170 e segs 18 Ibid p 159 Direito e Justiça 119 ou um tribunal de algum tipo que em caso de dúvidas decide que sanções devem ser aplicadas19 Isto poderia ser considerado como o primeiro gérmen de uma autoridade pública A partir daí desenvolve se paulatinamente um poder judicial organizado e estabelecido e posteriormente grupos especiais cuja função é legislar e executar as decisões compulsoriamente Deste modo criase gradativa mente um mecanismo jurídico e um sistema de autoridades públicas que reivin dicam o monopólio do exercício da força Assim de forma gradual o direito e o costume se diferenciam por um lado as normas que são respaldadas pelo exercício organizado da força e por outro as nor mas que só encontram respaldo nas reações espontâneas não violen tas desprezo exposição ao ridículo etc É evidente que o poder judicial sempre precede o legislativo O juiz formava originariamente seu juízo de acordo com as regras tradicionais do costume Paulatinamente à medida que surgiam situações novas o juiz foi descobrindo o que era correto ou adequado isto é as regras tradicionais foram adaptadas e desenvolvidas segundo o espírito tradicio nal para atender às novas necessidades Através da prática dos tribu nais no decorrer do tempo uma torrente herdada de idéias jurídicas vivas que brotavam na consciência do povo ou ao menos na dos espe cialistas em questões de direito assumiu expressão e se consolidou No que tange ao direito primitivo portanto não nos cabe per guntar se o costume é uma fonte do direito e o sendo por que é O costume é o ponto de partida natural da evolução jurídica Sob a perspectiva da evolução histórica o grande problema é mais exata mente o da gênese de um poder legislativo ou seja como aconteceu de nascer e perdurar a ideologia de que certas pessoas possuem autoridade para proclamar novas normas que serão aceitas como váidas pelos juizes e pelos súditos20 Este problema aponta para a origem de uma ideologia política e constitui um tema de sociologia jurídica e não de filosofia do direito Aceitamos o desenvolvimento de um poder legislativo como um fato É de se supor que o grosso da legislação consistiu num primeiro momento em codificar o direito que já era vigente Foi somente de Ibid p 173 20 Os índios norteamericanos às vezes dizem Outrora não havia lutas por territórios de caça ou de pesca Não havia então lei de modo que todos faziam o que era correto A expressão deixa claro que outrora eles não se considera vam submetidos a um controle social imposto do exterior Ruth Benedict Pattern of Culture Mentorbook ed 1946 233 120 Alf Ross modo lento e gradual que a legislação passou a ser um instrumento social e político colimando o regramento consciente e deliberado daj vida da comunidade Enquanto o costume determinou originariamen te o direito com o transcorrer do tempo o direito determinou dei maneira cada vez mais crescente o costume Mas é fácil perceber que o poder do legislador de moldar o desenvolvimento do direito foi limij tado Nos casos em que a divergência entre o direito e as idéiasi jurídicas herdadas mostrouse muito acentuada o direito foi incapaz de modificar a consciência jurídica e se converteu em letra morta f À medida que o direito foi se tornando progressivamente mais fixo através da legislação e da prática dos tribunais o costume como fonte do direito foi perdendo terreno Presentemente o costume salvo nos usos comerciais tem importância secundária O costume como fonte do direito suscita um problema que ocupou e continua a ocupar um lugar na história da filosofia do direito que é desproporcional ao lugar que ocupa o costume nas comunidades ju rídicas modernas Parece óbvio que nem todo costume pode ser con siderado fonte do direito Dizse que somente o costume jurídico o é e este é caracterizado por um elemento especial em termos de expe riência psicológica chamado opinio necessitatis sive obligationis um sentimento de estar obrigado ou uma convicção de que o comporta mento exigido pelo costume é também um dever legal Essa explicação todavia pode não ser correta Todo costume in clusive aquele que me leva a apresentarme com uma roupa apropria1 da é sentido como obrigatório e o comportamento que se opõe a ele i como algo merecedor de reprovação Este sentimento e esta reaçãoi definem o costume como algo distinto da mera convenção e da prática comum O costume jurídico tampouco pode ser caracterizado pelas convicção de que a conduta exigida por ele seja um dever legal con vicção que necessariamente eqüivale à expectativa de que o costume terá que ser aceito pelos tribunais como um padrão que sirva para fundar decisões Tal convicção não pode surgir arbitrariamente tendo sim que ser motivada e justificada por alguma qualidade inerente ao costume que é considerado obrigatório e que o distingue de outros costumes A convicção do caráter jurídico do costume tem necessaria mente que derivar de um critério objetivo e o costume não pode ser definido por essa convicção tal como o ferro não pode ser definido dizendose que é a substância que geralmente é considerada ferro Direito e Justiça 121 É mister que busquemos a explicação do costume como fonte do direito de acordo com nosso esquema da história da evolução do direito Originalmente todas as relações da vida comum no grupo social se achavam igualmente submetidas ao regramento não organizado do costume mas a diferenciação de um ordenamento jurídico fundado na aplicação da força física dividiu essas relações Extensas esferas da vida da comunidade se tornaram objeto de regramento jurídico Outras esfe ras nas quais se considerou desnecessária a aplicação de medidas de força ficaram regradas pelos usos convencionais com sanções que se restringiam à pressão não violenta Um costume jurídico é simplesmen te um costume regulador numa esfera da vida que está ou que chega a estar 21 sujeita ao regramento jurídico Essa teoria esclarece que ra zões tem o juiz para levar esses costumes em consideração e esclarece também porque a reação do juiz pode ser antecipada por aqueles que praticam o costume A opinio aecesstefscaracterizadora de todo cos tume está vinculada à expectativa de uma reação social de reprovação de uma forma ou outra contra aquele que viola o costume Numa esfe ra de vida que se acha submetida ao regramento jurídico tal expectati va assume esta forma sanções legais são previstas se a questão é levada aos tribunais Assim neste campo o sentimento geral de achar se obrigado opinio necessitatis combinase com uma expectativa que certamente pode ser qualificada como atitude éticojurídica Uma decisão norueguesa referese ao caso do proprietário de um sítio em Trysil que apresentou uma demanda sustentando que se gundo o costume daquela região os pequenos proprietários tinham o direito de se apropriarem da madeira caída que se encontrava em terra alheia A existência desse costume não foi aceita porém se o fosse teria constituído um caso conspícuo de costume jurídico já que as questões relativas à propriedade são reguladas pelo direito É costume jurídico um uso vigente no comércio de madeira segun do o qual temse como pagamento à vista o pagamento feito dentro dos trinta dias da data da fatura e o é porque a questão referente ao ensejo do pagamento está sujeita ao regramento jurídico Inversamente o costume que requer o uso da beca na cerimônia de formatura na Universidade não é um costume jurídico já que nos 21 Penso aqui que uma esfeta de vida até esse momento fora do campo do direito é submetida ao regramento deste por meio da prática dos tribunais 122 Alf Ross limites da decência as questões de vestimenta não são normalmentai regidas pelo direito todavia uma oplnlo necessltatls slve obllgatlonls bastante definida está certamente ligada a esse costume Porémj quando em casos excepcionais a maneira de vestir é regida pelo dN reito como ocorre no caso dos uniformes é possível que surçam cos tumes jurídicos dentro de tais esferas particulares j Num sistema jurídico evoluído no qual a diferença entre direito el usos convencionais pode ser considerada completa normalmente nãctj resta dúvidas portanto quanto a quais costumes são tidos como fonte do direito Pode haver incerteza contudo em particular relatiJ vãmente aos costumes comerciais com respeito à existência de urr determinado costume isto é se existe como ordem ante a qual as pessoas se sentem obrigadas e cuja violação merece reprovação geral ou se pelo contrário o padrão de comportamento não passa de um hábito ou uso convencional sem nenhuma qualidade normativa a qual existe por exemplo por razões de conveniência técnica A maio ria de nós por exemplo acendemos a luz quando escurece e nosj agasalhamos quando faz frio mas o fazemos sem nos sentirmos obrb gados pelo costume além de não haver reprovação geral se alguém agir diferentemente A distinção entre costume e prática comum usoJ convencional contudo nem sempre é fácil Pode ser difícil decidirj por exemplo se a concessão de um preço regular de um serviço oul de um benefício similar é simplesmente uma conveniência quer dij zer um método geral de competição ou um costume Nos sistemas jurídicos primitivos por outro lado não é possível traçar uma linha divisória nítida entre os costumes jurídicos e os qud não o são porque a diferenciação entre as esferas de vida regrada pelo direito e as liberadas aos usos convencionais não foi consumada As condições se acham entretanto num estado evolutivo sendo ta refa própria do juiz e do legislador decidir quais costumes serão transformados em direito e quais não serão E o que ocorre numa grande medida com o direito internacional É difícil decidir se urríí costume internacional será aceito como direito ou simplesmente conJ siderado como parte da comitas gentium Muitos costumes relaciona dos à atividade diplomática e às demonstrações honoríficas entrei Estados têm esse caráter e o problema de determinar quais costu mes devem ser aceitos como direito só pode ser solucionado pofj decisões futuras ou pela codificação j Direito e Justiça 123 Por conseguinte no Estado moderno um costume jurídico indica que em certas situações determinadas regras jurídicas que são nor malmente aplicáveis não são observadas por setores mais ou menos grandes da população os quais acatam em contrapartida a regra consuetudinária As leis gerais reguladoras da propriedade podem ce der por exemplo diante um costume local que autorize a apropria ção da madeira caída em terra alheia Ora não é difícil um tal efetivo estado de coisas poder levar um juiz a apoiarse no costume para construir uma decisão Um parecer formado sobre esse fundamento se ajustará melhor às idéias e expectativas das partes e conseqüente mente será considerado justo e apropriado Robustecerá a confiança nos tribunais e o sentimento de certeza como o leigo entende esta expressão isto é como concordância entre a decisão e as expectativas da consciência jurídica popular22 Por outro lado também é concebível que o juiz considere que o costume é tão contrário aos princípios jurí dicos fundamentais tão irrazoável que se negue a aceitálo A razão básica em virtude da qual o juiz leva em consideração o costume é o elemento psicológico o sentimento de obrigação e va lidade com o qual a conduta consuetudinária é experimentada A conduta exterior por outro lado é apenas significativa como indica ção externa e visível e prova de que esse sentimento existe com tal seriedade e força que é capaz de prevalecer sob forma efetiva dentro de um determinado grupo Encaradas as coisas deste modo o juiz não tem porque exigir que o costume tenha sido observado durante um certo lapso de tempo quando as circunstâncias oferecerem fundamento sufi ciente para se crer que chegou a predominar uma atitude éticojurídica dotada de um certo grau de estabilidade Quando a exigência da condu ta exterior e do fator tempo se debilitam o costume como fonte do direito conduz imperceptivelmente a situações nas quais o juiz é motiva do por uma nova concepção jurídica da comunidade mesmo quando tal concepção não tenha encontrado expressão em nenhum costume Há um domínio particular no qual a doutrina tradicional de que o costume tem que haver sido observado por um longo tempo para ser reconhecido como jurídico é evidentemente inadequada Os costumes relativos ao comércio especialmente os costumes ou usos comerciais de uma forma de comércio em particular não são de ordinário muito A certeza jurídica no sentido que lhe atribui o profissional significa o grau de probabilidade com o qual o jurista versado pode calcular de antemão as reações do tribunal 124 Alf Ross antigos A despeito disso é obrigatório além de constituir uma prática jurídica geral leválos em consideração ao interpretar os contratos A doutrina tradicional do direito consuetudinário como a doutrina inglesa do precedente empenhase em estabelecer sob quais condições objetivas o juiz está obrigado por um costume Desde a época do desen volvimento dessa doutrina na teoria romanocanônica dos séculos XII a XVI período dos glosadores até o presente os pormenores da formulai ção daquelas condições certamente sofreram variação a idéia subjacente contudo tem permanecido idêntica a saber que é possível enunciai critérios objetivos para determinar quando um costume é obrigatóriá Para o direito inglês Allen formulou as condições que se seguem23 O costume tem que 1 ser imemorial isto é ter existido pelo menos desde o anq 1189 Quando o costume foi vigente por um longo tempo presume se que tenha existido desde aquela data 2 ter sido acatado continuamente 3 ter sido exercido pacificamente e nec dam nec precário 4 ter sido sustentado pela opinio necessitatis 1 j 5 ser certo e 6 ser razoável implicando entre outras coisas que não tenha que ser incompatível com os princípios fundamentais da common iau e do direito legislado Se houver provas de que tais condições são satisfeitas diz Allen o juiz terá o dever de declarar que o costume é direito válido Está doutrina como a doutrina do precedente é uma ideologia cuja função consiste em ocultar a liberdade e a atividade jurídica criadora do juiz É óbvio que as condições estabelecidas particularmente eni 4 e 6 facultam ao juiz ampla liberdade para o seu parecer 19 A TRADIÇÃO DE CULTURA RAZÃO j No parágrafo anterior procurei mostrar como o direito se desenj volveu originariamente a partir de costumes da tribo até que fosses 23 Allen oo cit 127 e seps Direito e Justiça 125 gradualmente estabelecido por meio da prática dos tribunais e a le gislação O direito criado dessa maneira é chamado de direito positi vo Esta expressão sugere a existência do direito sob a forma de normas objetivamente fixas Essa positividade é mais manifesta no direito legislado isto é o direito que encontrou formulação verbal revestida de autoridade Porém o direito criado por casos de prece dência especialmente se houver uma prática há muito existente tam bém possui um elevado grau de positividade mesmo quando careça de formulação verbal revestida de autoridade O direito legislado não é está claro um fíatarbitrário emitido pelo legislador O poder deste é um poder sobre as mentes dos seres huma nos e se apóia na consciência jurídica institucional parágrafo 11 Mas há um limite para a possível discordância entre o respeito leal ao direito legislado de um lado e do outro os costumes tradicionais da comuni dade e a tradição cultural em que se sustentam Os costumes popula res não são nem absolutos nem fundamentais mas sim manifestações de uma fonte ainda mais profunda No seio de todo povo há uma tradição comum viva de cultura que anima todas as formas manifestas da vida do povo seus costumes e suas instituições jurídicas religiosas e sociais É difícil descobrir a natureza e essência dessa tradição Pode se falar de um conjunto de valorações mas esta expressão é enganosa porque é capaz de sugerir princípios de conduta e padrões formulados de maneira sistemática Seria melhor dizer que sob a forma de mito religião poesia filosofia e arte vive um espírito que expressa uma filosofia de vida que é uma íntima combinação de valorações atitu des parágrafo 70 e uma cosmogonia teórica incluindo uma teoria social mais ou menos primitiva Entretanto seria errôneo pensar com base nesta distinção abstrata que a tradição comum de cultura é algo composto em parte por posturas valorativas e em parte por uma concepção teórica da realidade O mito é um credo sobre a criação e a natureza do mundo o poder dos deuses e suas vidas as origens de um Povo sua história destino e missão a luta entre o mal e o bem a origem da vida e seu significado o lugar da humanidade em relação aos deuses e à natureza A religião a poesia a filosofia e a arte ocu Pamse de distintas maneiras dos mesmos objetos E todos eles são em idêntica medida a expressão de ideais de modos de vida e de crenças teóricas O conceito de credoé caracterizado precisamente por essa dualidade Um credo é uma crença teórica cuja função principal é Apressar uma filosofia de vida 126 Alf Ross A tentativa de distinguir entre uma apreensão não valorativa uma atitude valorativa o princípio norteador da ciência é um fenc meno muito posterior que ocorre dentro de uma esfera particular d cultura o qual é cultivado por um pequeno círculo de especialistaí amiúde com escasso êxito i A tradição cultural não é imutável O fator de mudança em seü desenvolvimento pareceria ser um certo discernimento de tipo matí ou menos científico que lentamente surge da experiência Desta prd vém por um lado uma mudança de técnica em todas as fases da vida métodos de produção métodos bélicos métodos políticoadml nistrativos etc e por outro lado uma revisão crítica dos mitos furi damentais Ambas atuam de modo reflexo sobre a tradição cultural Limitome aqui a assinalar esses fatos elementares cuja descrição adequada pode ser encontrada em trabalhos de sociologia da cultura2 a fim de deixar claro quão pouco realista é esse tipo de positivisma jurídico que restringe o direito às normas estabelecidas pelas autoridan des e crê consistir a atividade do juiz apenas numa aplicação mecânica de tais normas Podemos comparar essas normas positivas a cristais que se depositaram numa solução saturada que se conservam graças a essa solução mas que se destruiriam se fossem colocados num líquidâ diferente ou podemos comparálas a plantas que morrem quando sã arrancadas do solo nutriente no qual cresceram As normas jurídicas tal como toda outra manifestação objetiva da cultura são incompreen síveis se as isolarmos do meio cultural que lhes deu origem O direitd está unido à linguagem como veículo de transmissão de significado e d significado atribuído aos termos jurídicos é condicionado de mil manei ras por tácitas pressuposições sob forma de credos e preconceitos aspirações padrões e valòrações que existem na tradição cultural qu circunda igualmente o legislador e o juiz j No cumprimento de sua missão o juiz se acha sob a influência dá tradição cultural porque é um ser humano de carne e osso e não um autômato ou melhor porque o juiz não é um mero fenômeno biológico mas também um fenômeno cultural Vê em sua atividade uma tarefa enrt serviço da comunidade Deseja descobrir uma decisão que não seja d resultado fortuito da manipulação mecânica de fatos e parágrafos maá 24 Ver por exemplo Ruth Benedict Patterns ofCulture 1934 Quanto à palavra mito ver R M Maclver The Web Government 1948 3 e segs e 447 e segs Direito e Justiça 127 sim algo que detenha um propósito e um sentido algo que seja válido A tradição cultural adquire primordialmente significado porque o juiz lê e interpreta o direito no espírito deste ver próximo capítulo Mas a tradição cultural pode também atuar como uma fonte do direito direta isto é pode ser o elemento fundamental que inspira o juiz quando este formula a regra na qual baseia sua decisão É possível surgir uma situação na qual o juiz seja incapaz de en contrar entre as fontes positivas alguma regra passível de ser tomada como fundamento para sua decisão Ele sempre pode proferir sua sentença a favor do demandado com base em que não há norma detentora de autoridade que sustente a reivindicação do demandante Tal seria provavelmente o resultado se por exemplo A instaurasse um processo contra seu vizinho B visando a obter uma ordem judicial para que ele removesse uma estátua instalada no jardim de B cuja baixa qualidade artística a torna intolerável para A que pode vêla através de sua janela Entretanto o resultado não seria necessaria mente o mesmo se A pretendesse que se proibisse a B utilizar a história da vida dele A como tema de um filme Talvez neste caso um parecer a favor do demandado se afigurasse insatisfatório aos olhos do juiz visto que tal resultado quem sabe não se harmonizas se com as posturas e pontos de vista inerentes à tradição jurídica e cultural que determina a reação emocional do juiz Nesta conjetura o juiz poderia sentirse pouco inclinado a rechaçar a demanda porque não há norma detentora de autoridade que lhe dê apoio A ausên cia de toda norma detentora de autoridade é sentida como uma falta um defeito ou lacuna no direito que o juiz deve preencher Ele o fará decidindo a questão concreta colocada na forma que aquilate como justa e ao mesmo tempo se empenhará em justificar sua decisão destacando os pontos do caso que lhe parecem relevantes E assim inspirado pelas idéias fundamentais da tradição jurídica e cultural o juiz formará como se fosse experimentalmente uma regra jurídica geral Mediante uma série de decisões referentes a circunstâncias análogas os perfis dessa regra irão adquirindo fixidez gradualmente e fará sua aparição um direito de precedentes criado pelo juiz Ao preparar assim o caminho para um novo direito o juiz pode se deixar orientar diretamente por seu senso de justiça ou pode tentar racionalizar sua reação por meio de uma análise das considerações Praticas com base num cálculo jurídicosociológico dos efeitos 128 Alf Ross presumíveis de uma regra geral ou outra Mas também neste últim caso a decisão surgirá de uma valoração fundada nos pressupostc da tradição jurídica e cultural O que denominamos razão ou com derações práticas é uma fusão de uma concepção da realidade e d uma atitude valorativa parágrafo 78 A premência do tempo contudo impedirá na maioria dos casc todo estudo teórico mais profundo das condições sociais implicada na questão jurídica que o juiz tem que decidir Entregue às suas prt prias forças o juiz terá que confiar principalmente no que sente int mamente Porém em relação a issó a doutrina pode contribuir par a prática com uma valiosa ajuda pois é precisamente tarefa da doutr na em considerações feitas de sententia ferenda reunir e sistemat zar aqueles conhecimentos e valorações de fatos sociais e circunstâr cias correlatas que podem constituir uma contribuição valiosa ao pre gresso do direito através da prática dos tribunais É imperioso portanto que se rejeite o positivismo porque faltalh compreensão no tocante à influência da atmosfera cultural na aplia ção do direito Por outro lado com a mesma firmeza precisamos reje tar a postura antipositivista corrente que interpreta o fundament não positivista das normas positivas em termos metafísicos quer a zer como um direito natural baseado num discernimento racional priori Bastará a esta altura consultar o parágrafo 13 e o capítulo X A palavra positivismo é ambígua Pode significar tanto o apoiado n experiência quanto o que está formalmente estabelecido A reaçã contra o positivismo que parece ser uma característica predominant da moderna filosofia do direito se justifica em relação ao último desse significados mas não em relação ao primeiro Uma doutrina realista da fontes do direito apóiase na experiência porém reconhece que nef todo direito é direito positivo no sentido de formalmente estabelecida 20 A RELAÇÃO DAS DIVERSAS FONTES COM O DIREITO VIGENTE Geralmente admitese como ponto pacífico que uma lei que foi dev damente sancionada e promulgada é por si mesma direito vigentx isto é independentemente de sua ulterior aplicação nos tribunais Ir versamente é provável que raramente se pensa que o que pode st derivado da razão tenha tãosó por isso caráter de direito vigentí Direito e Justiça 129 somente o reconhecimento na prática dos tribunais confere tal caráter ao produto da razão No que concerne ao costume há aguda divergên cia de opiniões A doutrina mecanicista tradicional do direito consuetu dinário pressupõe que o costume se preencher as exigências para seu reconhecimento como costume jurídico é direito por si mesmo da mesma maneira que o é uma lei Outros sustentam que o costume não se converte em direito enquanto não for formulado com autoridade e reconhecido pelos tribunais25 Graças a este reconhecimento o costu me recebe um novo status deixa de ser algo simplesmente fatual para transformarse em direito vigente No direito da Europa continental não se coloca o problema relativo aos precedentes já que ali estes não são reconhecidos como uma fonte genuína de direito no sentido metafísico No direito angloamericano admitese geralmente que os precedentes a jurisprudência são por si mesmos direito vigente Essas questões são ordinariamente abordadas da seguinte manei ra em que medida o direito existe já criado na própria fonte na legislação no costume no precedente na razão e em que medida é o juiz que o cria À luz de nossa análise do conceito de direito vigente parágrafos 8 a 10 não será difícil acredito compreender que o que examinamos aqui como se fosse da elaboração de um produto material se refere na realidade ao grau de probabilidade com o qual é possível prever a influência motivadora de uma fonte sobre o juiz Considerar que a lei é direito por si mesma significa que geral mente e num grau de probabilidade muito próximo da certeza pode mos predizer que será aceita pelo juiz Inversamente as regras deri vadas da razão não são consideradas diretamente como direito por si mesmas porque aqui só podemos fazer conjeturas a respeito da rea ção dos tribunais A controvérsia concernente à metamorfose do cos tume em direito reflete o fato de que embora haja pontos objetivos que dão apoio a um prognóstico ao mesmo tempo o juiz goza de ampla liberdade para aceitar ou rejeitar o costume Tratase de uma diferença de grau Mesmo uma lei pode consoante as circunstâncias ser desconsiderada pelo juiz Isto fez Gray negar que 25 Esta é a linha que seguindo Austin adotou a doutrina inglesa Ponto de vista idêntico é sustentado por Lambert na França e por uma modesta minoria de autores na Alemanha Cf bibliografia de obras sobre direito consuetudinário incluída em Alf Ross Theorie derfíechtsquellen 19291435 e segs 130 Alf Ross as leis como tais são direito Segundo Gray não passam de um fator dí motivação uma tentativa de criar direito e não podemos conhecer á resultado da tentativa até constatarmos se os tribunais aceitam a lei como a interpretam Por isso afirma esse autor que o direito consisti unicamente naquelas regras que são aplicadas pelos tribunais e queç todo o direito portanto é criação do juiz26 Entretanto este ponto dç vista é ilógico Quais regras são aplicadas na prática é observado nj comportamento dos tribunais até o presente o que implica por consé guinte que Gray faz referência aos precedentes como a fonte que por si mesma cria direito Contudo não entendo porque Gray não adota rela tivamente aos precedentes óurisprudência como fonte a mesma posi ção que adota frente à lei Também aqueles não passam de fatores motivadores e não sabemos com certeza nenhuma que influência terãq sobre as decisões jurídicas futuras O problema se reduz ao seguinte sé uma regra tiver somente que ser reconhecida como direito vigente se pudermos dizer com certeza que será aplicada pelos tribunais no futuro então nenhuma regra poderá ser reconhecida como direito vigente Tal foi a conclusão a que chegaram Jerome Frank e outros realistaií norteamericanos ao afirmarem que o direito não consiste em regras mas sim exclusivamente no conjunto das decisões jurídicas específicas27 21 A DOUTRINA DAS FONTES DO DIREITO A caracterização dos diversos tipos de fontes feita no parágrafo anterior é tema próprio de uma teoria geral das fontes do direito Cabe à doutrina das fontes do direito como parte da ciência do direito parágrafo 15 fornecer uma descrição minuciosa de cada uma das fontes e de sua irrv portância relativa no âmbito de um ordenamento jurídico específico Tal descrição é particularmente significativa no que toca à legisla ção no sentido mais lato como fonte Todos os ordenamentos jurídii cos modernos contêm uma copiosa série de normas referentes aos diversos procedimentos para formular regras de direito a relação rei cíproca entre os diversos níveis do direito legislado desde a Consti tuição até os contratos particulares a promulgação e colocação em vigor das leis a delegação do poder legislativo a anulabilidade d 26 John Chipman Gray The Nature andSources of Law 1909184125 e alhures Cf supra parágrafo 14 nota 3 e Atf Ross Towards a Reaiistic Jurisprudence 1946 59 e segs j 27 Jerome Frank Law and the Modem Mind 1930 46132 Cf supra parágrafo 14 nota 3 e Alf Ross 68 e segs Direito e Justiça 131 controle judicial etc Todos estes são elementos da doutrina das fon tes do direito mesmo quando não são agrupados sob esse título mas sejam incluídos sob títulos designativos variados direito consti tucional direito administrativo direito dos contratos Por outro lado é praticamente impossível desenvolver de maneira análoga uma doutrina das fontes do direito não legislado porque como resulta do que dissemos não é possível indicar as condições objetivas para que ocorra a influência motivadora dos costumes do precedente e da razão As tentativas de enunciar tais condições não passam na realidade de racionalizações ideológicas para preservar a ficção de que o juiz unicamente aplica direito objetivamente existen te Neste campo a doutrina das fontes do direito tem que limitarse a indicar em termos imprecisos o papel desempenhado pelas diversas fontes num ordenamento jurídico específico A esse respeito pode haver grandes variações Enquanto a legislação desempenha um papel preponderante no direito europeu continental o direito angloamericano continua baseado no precedente jurisprudên cia embora haja uma tendência crescente em sistematizar e inclusive talvez em codificar o direito baseado em casos precedentes No direito primitivo o costume é a fonte primária como ainda é no direito interna cional ainda que atualmente acompanhado por uma tendência à estabi lização que se acentua e que se manifesta tanto no desenvolvimento de um direito criado por caso de precedência quanto por codificação A razão aquela criação de direito que sem qualquer objetivação de maneira direta se respalda em atitudes culturais fundamentais valorações e padrões aparece especialmente no período que sucede a uma revolu ção Até que os vencedores revisem o direito legislado e o reformulem de acordo com o espírito da revolução exigese do juiz que ele se inspire diretamente na mitologia e filosofia sociais do novo regime Depois da revolução bolchevique a filosofia de Marx e a consciência revoiucionáría da ciasse trabalhadora viera m a desempenhar o papel de fonte suprema do direito tal como o fizeram a ideologia do Führer e Mein Kampfóe Hitler na Alemanha posterior à revolução nazista28 À medida que as condições gradualmente se estabilizam e voltam à normalidade essa tendência cede espaço para um maior respeito pelo direito legislado 28 No que concerne aos decretos soviéticos de 27 de novembro de 1917 e de 18 de março de 1918 ambos remetendo o juiz à consciência revolucionária ver John N Hazard no British Journal of Sociology IV 1953112 132Alf Ross 22 DISCUSSÃO Como enfatizado no parágrafo 15 uma doutrina realista das foi tes do direito tem que se ocupar da ideologia que efetivamente ai ma os tribunais que os motiva na busca das normas que irão adol como fundamento de suas decisões Tal ideologia só pode ser desc berta estudandose a conduta efetiva dos tribunais Segundo o ponto de vista corrente entretanto a doutrina dá fontes do direito é normativa não descritiva mais exatamente ei pressiva de normas e não descritiva de normas Visa a prescrevi como está o juiz obrigado a comportarse e não a descrever como el realmente se comporta Entretanto a que tipo de dever se refer essa doutrina E de qual norma obrigatória esse dever deriva Parece óbvio que o dever aludido não pode ser concebido comi um mero dever moral pois de maneira diversa a doutrina das fonto do direito pertenceria à filosofia moral e seu conteúdo seria uma qu tão de consciência Está claro não ser esta a intenção de tal doutrim Contudo parece igualmente impossível considerar o dever um obrigação jurídica do juiz no mesmo sentido por exemplo em qu um devedor se encontra no dever de pagar sua dívida pois um deve jurídico como este por sua vez teria que se fundar numa regra d direito derivada de uma fonte jurídica Para determinar portanto que é uma fonte do direito teríamos que pressupor um conhecimenÉ das fontes do direito o que é um círculo vicioso Este defeito se fa patente quando a doutrina das fontes do direito é desenvolvida coí base na interpretação de normas positivas tais como por exemplo Código Civil suíço art Io ou o art 38 do Estatuto da Corte Intern cional de Justiça29 Nestes exemplos é pressuposto que o direito I gislado e os tratados respectivamente são obrigatórios para os trt bunais o que precisamente forma parte dessa doutrina das fontes dt direito que se supõe deve ser deduzida daquelas normas O mesmo podese dizer em princípio quando como por vezes ocori ao desenvolver a doutrina das fontes do direito se tenha afirmado q 29 Por exemplo Max Gmür Die Anwendung des Rechts nach Art 1 des schweizerischen Zmlgesetzhuches 11908 Erich Danz Einführung in die Rechtssprechung 1912 Géza Kiss Gesetzesauslegung und ungeschriebenes Recht lherings Jahrbücher LVIII 1911 e Theorie der Rechtsquellen in der angloamerikanischen Literatur Arch f büfi Recht XXXIX 1913 265 e segs Cf também Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 321322 conjuntarr te com a nota 14 0 método do direito positivo é comum nos estudos das fontes do direito internacional Direito e Justiça 133 sua autoridade não emana do direito escrito mas sim da chamada ra zão quer dizer quando a doutrina se desenvolve valorando qual atitude é recomendável como a mais conveniente em vista de considerações diversas30 Por mais interessantes e bem fundadas que sejam tais reco mendações são irrelevantes para uma descrição do direito vigente se os tribunais realmente não atuarem segundo aqueles pontos de vista Freqüentemente entretanto a doutrina normativa das fontes do direito não se refere a um dever imposto pelo direito positivo nem a um dever baseado na razão A idéia de acordo com os pressupostos da filosofia do direito idealista é que o direito em si possui uma validade inerente e supraempírica ou força obrigatória e que a fonte do direito é precisamente o fator do qual essa validade flui E portanto a mesma coisa algo ser uma fonte do direito e o juiz estar obrigado a aplicálo Não há aqui pois pressuposição de nenhuma norma distinta da própria fonte do direito que obrigue o juiz a acatar a fonte O dever do juiz é somente uma outra expressão da idéia de que o direito por si mesmo isto é independentemente de toda sanção física possui força obrigatória ou validade supraempírica Adotada essa linha de pensamento não pode haver vária fontes independentes de direito A unidade do conceito de direito ficaria destruída se tivesse que assumir por um lado que uma lei é válida porque foi sancionada por uma autoridade com poder de comando e por outro lado que o costume é obrigatório porque foi produzido pela consciência jurídica dos súditos Segundo o aludido conceito de validade do direito tem que haver uma fonte e somente uma de força obrigatória e todas as outras fontes têm que ser consideradas em relação a ela A doutrina tradicional das fontes do direito consiste principalmente em especulações tais como estas de onde extraem as diferentes fontes do direito sua força obrigatóriaqual é em última instância a fonte suprema de toda a validade do direito e que conclusões pode mos extrair portanto com respeito à força relativa dessas fontes en tre si por exemplo se um costume pode abolir uma lei se a livre criação do direito pode ocorrer não só praeter legem como também 30 Philip Heck Gesetzesauslegung und Interessenjurisprudenz 1914 representa essa tendência Ver ademais Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 cap XIII 2 onde numerosos exemplos são citados 1 3 4 Alf Ross contra legem etc Tudo isto é tão ocioso quanto especulativo Podi se mencionar aqui com brevidade umas poucas teorias em voga 1 a No continente europeu seguramente por influência do sisterrl político da monarquia absoluta a doutrina positivista tem sido predl minante Segundo ela em toda comunidade existe uma vontade s l berana que é a fonte suprema de toda validade jurídica A expressa dessa vontade o direito legislado é conseqüentemente a fonte su prema do direito Ao seu lado só se admite o costume e a razão pòi sua força obrigatória é buscada num reconhecimento expresso J tácito especial ou geral da parte do legislador31 1 b Segundo a teoria jusnaturalista a fonte de validade do direitl é a idéia de direito ou a idéia de justiça como princípio racional j priori O direito legislado por conseguinte somente possui forg obrigatória absoluta na medida em que é uma realização ou umj tentativa de realização da idéia do direito Visto que se pressupq que o direito natural embora com algumas reservas exige obediêil cia às autoridades estabelecidas da comunidade as conseqüência práticas da teoria se adequam aos fatos Mas insistese firmemend na inadequação do direito escrito e as deduções científicas a part da idéia do direito constituem uma fonte importante e independe te ao lado do direito legislado32 c A escola romântica ou histórica do direito parágrafos 56 e 8Í acreditou encontrar a fonte fundamental da força obrigatória do direi to não em uma vontade soberana nem em princípios racionais abs tratos mas sim na consciência jurídica popular revelada na história na vida de uma nação O costume como espelho do espírito populá é conseqüentemente a fonte suprema do direito A legislação possível não como um ato arbitrário da vontade soberana mas unicáí mente como uma tentativa de conceitualizar a consciência jurídica díj espírito popular 31 Com respeito è chamada Gestattungstheorie ver Ross ibid pp 430 e segs 32 A título de exemplo típico podese citar a teoria de Gény das fontes do direito ver em Alf Ross ibid cap III 67 Capítulo IV O Método Jurídico Interpretação 23 DOUTRINA E TEORIA DO MÉTODO No capítulo II foi explicado como as proposições doutrinárias to cantes ao direito vigente segundo a fórmula A D é direito vigente podem ser interpretadas como previsões no sentido de que sob deter minadas condições os tribunais tomarão D como base para suas sen tenças No capítulo III buscouse explicar o papel que desempenha a ideologia das fontes do direito na sua relação com essas previsões A doutrina não se restringe entretanto a proposições que respon dem àquela fórmula Encerra por exemplo proposições referentes à interpretação de D isto é daquelas normas que são consideradas direito vigente Tais enunciados interpretativos podemos dizêlo em caráter provisório pretendem determinar o significado da diretiva indicando mais especificamente sob quais circunstâncias terá que ser aPÜcada e em tal caso como o juiz deverá se comportar O art 67 da Constituição dinamarquesa por exemplo garante a liberdade religio sa aos cidadãos Sustentase que a palavra cidadãos deve aqui ser interpretada no sentido inclusivo tanto dos nacionais da Dinamarca quanto aqueles que não o são o que significa que ao aplicar o art 67 0 juiz não deve atribuir importância alguma à nacionalidade da pes sa que recorre ao direito de professar seu culto 136Alf Ross Devemos agora examinar se esses enunciados referentes à inl terpretação podem ser considerados como asserções sobre o que interpretação vigente análogas às asserções acerca do que é direk to vigente Se este for o caso então também esses enunciados da acordo com seu conteúdo real serão entendidos como previsc quer dizer previsões no sentido de que tal interpretação terá a a são dos tribunais quando a regra em questão for adotada cc base para a decisão de um caso jurídico específico Uma previsão desse tipo pode apoiarse em precedentes Ne caso o pronunciamento referente à interpretação pode ser equi rado aos pronunciamentos acerca do direito vigente Quando os precedentes não proporcionam um critério provido autoridade é preciso indagar se mediante o estudo da prática tribunais podem ser descobertos certos princípios uma certa ideolc que de fato guiam os tribunais na sua aplicação de regras gera casos específicos Se isto for possível então também o será conside as proposições doutrinárias a respeito da interpretação como asserç acerca da interpretação vigente isto é previsões que nos dizem cc será aplicada a regra pelos tribunais Na medida contudo em qu interpretação não pretende se basear em princípios de interpreta vigentes ela é política jurídica e não ciência do direito Temos que analisar portanto a prática dos tribunais e nos errN penharmos em descobrir os princípios ou regras que realmente os norteiam no trânsito da regra geral à decisão particular Denominai se esta atividade método jurídico ou no caso da aplicação do diren to formulado direito legislado em lato sentido interpretação Poderíamos adiantar que não é possível enunciar uma ideologia do método com a mesma precisão de uma ideologia das fontes dqj direito especialmente no que diz respeito à interpretação do direitoj legislado Regras fixas não podem ser formuladas O máximo que se pode atingir é digamos um estilo de método ou estilo de interpreta ção Diante disso o grau de certeza das asserções concernentes àj interpretação vigente é muito baixo Assim sendo como foi assinalai do no parágrafo 9 os pronunciamentos teóricos referentes ao direit vigente confundemse com diretivas de política jurídica Portanto compreensível que muitos juristas não atribuam à sua interpretaçãoj o caráter de enunciados teóricos quanto a como aplicar o juiz o direitoí Direito e Justiça 137 mas sim o de conselhos e instruções ao juiz a respeito da forma como deve fazêlo E indubitável contudo que inclusive um jurista cuja inten ção é poltticojurídica se deixa guiar consciente ou inconscientemente pelo estilo ou espírito do método que realmente é vigente nos tribunais Se não o fizer suas interpretações não terão possibilidade de ser atendi das pelos tribunais Por outro lado quanto mais sua interpretação políti ca for inspirada pelo mesmo espírito e estilo que animam o método dos tribunais maior será a probabilidade dos tribunais se deixarem ser influ enciados por esse aconselhamento A interpretação do jurista se tornará verdadeira e não obstante sua intenção em contrário também poderá ser considerada como uma previsão acerca da forma na qual os tribunais aplicarão efetivamente o direito Na interpretação do direito vigente de monstrase com máxima clareza que a ciência do direito e a política jurídica não podem em última análise ser separadas Tal como a doutrina das fontes do direito uma doutrina do método que se proponha a servir como norteamento da interpretação tem que se referir à maneira como se comportam de fato os tribunais na aplica ção do direito vigente a situações específicas A doutrina do método deve ser descritiva não normativa descritiva de normas não expres siva de normas Está claro que nada impede que partindo de alguns axiomas pressupostos sejam estabelecidas diretivas acerca de como os tribunais devem proceder na aplicação prática do direito Entretan to tal doutrina normativa do método seria o esboço de um estado diferente do direito sem valor como norteamento para a interpretação doutrinária ou para os cálculos do jurista prático acerca da maneira como será resolvida uma determinada disputa legal pelos tribunais O estudo do método identicamente ao das fontes do direito preci sa ser dividido numa parte doutrinária e uma teoria gerai A primeira investiga o método seguido pelos tribunais num ordenamento jurídico específico e constitui uma porção da ciência do direito Tal como não uma ideologia universal das fontes do direito também não há um método universal A tarefa da teoria geral do método só pode consistir em 1 explicar certas pressuposições fatuais dos problemas dos méto dos e 2 subsumir e caracterizar dentro de uma tipologia geral vários estilos de método e interpretação que realmente ocorrem As ideologias das fontes do direito e do método estão intimamen te ligadas e por esta razão fica claro que o estudo doutrinário do método tem que assumir um caráter diferente nos diversos sistemas 1 38 Alf Ross I 1 Os problemas do método têm que assumir uma forma diferente p exemplo num sistema como o inglês no qual os precedentes jurii prudência constituem a fonte predominante do direito comparati mente a um sistema em que a legislação é a fonte principal No primeiro sistema o juiz não se encontra diante de uma fòrmij lação revestida da autoridade de uma regra geral de direito O probki ma do método portanto consiste em como extrair uma regra geri dos precedentes existentes e aplicála ao caso a ser decidido A situi ção se complica pelo fato da regra geral com freqüência se alterar n curso desse desenvolvimento de um caso para outro Haver continu dade ou alteração dependerá do juiz ao examinar as semelhanças as diferenças entre o caso presente e o precedente entender que d fatos relevantes podem ser classificados segundo os mesmos conce tos pressupostos no precedente ou em outras palavras decidir que mister introduzir uma distinção com o auxílio de outros conceitos Neste último caso a regra geral adquiriu um conteúdo distinto N começo de uma linha de precedentes a regra geral pressuposta terá de ordinário um conteúdo muito pouco definido Uma doutrina nâl foi ainda cristalizada Por isso a tarefa que tem diante de si o juiz na consiste tanto em aplicar uma regra geral a um caso específico mal em decidir se o caso difere do precedente de tal maneira que existanj fundamentos para chegar a uma decisão distinta O raciocínio jurídia método jurídico num sistema como esse é raciocínio por via de exetú plos e a técnica de argumentação exigida por esse método visa j mostrar as semelhanças e diferenças exibidas pelos casos e assevera que as diferenças são ou não são relevantes1 No segundo sistema no qual a legislação é a fonte predominanti do direito o método possui o caráter de interpretação de um textlf provido de autoridade A atenção se concentra aqui na relação exi tente entre uma dada formulação lingüística e um complexo específf co de fatos A técnica de argumentação exigida por esse método visl a descobrir o significado da lei e a sustentar que os fatos dados sã abarcados por ele ou não i Esta última é a forma típica que os problemas do método assúi mem nos sistemas jurídicos da Europa continental A contribuiçãí para uma teoria geral do método presente neste capítulo limitase i interpretação do direito legislado em lato sentido 1 Ver o excelente estudo realizado por Edward H Levi An Introduction to LegaReasoning 19491 24 O FUNDAMENTO SEMÂNTICO2 Toda interpretação do direito legislado principia com um texto isto é uma fórmula lingüística escrita Se as linhas e pontos pretos que consti tuem o aspecto físico do texto da lei são capazes de influenciar o juiz assim é porque possuem um significado que nada tem a ver com a substância física real Esse significado é conferido ao impresso pela pes soa que por meio da faculdade da visão experimenta esses caracteres A função destes é a de certos símbolos ou seja eles designam querem dizer ou apontam para algo que é distinto deles mesmos Há muitas coisas que têm uma função simbólica no seio de pessoas de um grupo determinado Certos distintivos usados por um oficial indicam sua posição ou patente um emblema na lapela demonstra que aquele que o usa pertence a uma certa associação a foice e o martelo são o símbolo de uma convicção política os químicos convencionaram que o H significa hidrogênio o O oxigênio e assim por diante Os carteiros os militares os policiais os escoteiros os sacerdotes os reis e muitas outras pessoas envergam vestes ou con decorações que simbolizam sua ocupação dignidade ou posto Em todas as partes tanto nas comunidades primitivas quanto nas mais civilizadas nos defrontamos com símbolos dos tipos mais diversos É possível fazer uma distinção entre signose símbolos A umidade da terra é um signo sinal de que choveu recentemente o trovão um signo do raio o pranto de uma criança um sinal de que aconteceu algo desagradável a ela A diferença entre signo e símbolo consiste no fato de que o signo sinal é naturaienquanto o símbolo é artificiai um produto elaborado por seres humanos Mais exatamente a significa ção do signo está contida simplesmente em meu conhecimento do curso da natureza e da interação das coisas Sabendo por meio da experiência que A e B ocorrem ordinariamente juntos tomo A a umidade da terra o trovão o pranto da criança como signo de B a Recentemente temos assistido ao desenvolvimento da semântica geral a qual se ocupa da linguagem como meio de expressão e comunicação sua importância no que se refere à ação e compreensão a função das palavras como símbolos e seu valor emocional além de outros problemas correlatos Uma ampla literatura se formou em torno do tema Uma introdução popular recomendável é Language in Thought and Action de S I Hayakawa 1949 Entre as obras mais conhecidas podese também mencionar C K Ogden e I A Richards The Meaning ofMeaning 8 ed 1946 C Morris Signs Language andBehavior 1946 A Korzybski Science andSanity 2 ed 1941 M Black Language and Philosophy 1949 C L Stevenson Ethics and Language 1945 Arne Naess Interpretation and Preciseness lV 19471951 Stephen Ullman Wordsandtheir Use S51l Direito e Justiça 139 140 Alf Ross chuva o raio a experiência desagradável Uma luz vermelha que s alterna com uma verde e uma amarela num cruzamento viário é par uma pessoa que tem o conhecimento necessário o signo de uma insi talação elétrica e de um mecanismo que acende e apaga as luzes numa certa ordem regular Todavia o fato da luz vermelha ser tambérçl símbolo de um restrição policial relativamente ao cruzamento depenckj de uma convenção que poderia perfeitamente ter conferido ao ver melho um significado diferente Todos os símbolos são convencionais isto é a conexão entre o símbolo e o que ele simboliza é produzida pdf seres humanos através de acordo ou uso costume3 De todos os sistemas de símbolos a linguagem é o mais plena mente desenvolvido o mais eficaz e o mais complicado A linguagerrj pode manifestarse como uma série de formas auditivas ou visuai fala e escrita O significado atribuído a estas formas é clarament convencional Nada impediria que a palavra gato fosse empregad para designar o animal doméstico de quatro patas que faz uau uaiA e cão para designar o que faz miau O significado atribuído aojl símbolos lingüísticos é determinado pelos costumes da comunidade referentes às circunstâncias nas quais se considera adequado emitií certos sons Acmeles que cresceram junto aos costumes de uma coi munidade de língua portuguesa estão tão habituados a eles que juN gam adequado dizer Olhe é um gato ao se aproximar o anima doméstico que mia embora julgue a mesma expressão inteiramente deslocada se usada para se referir ao animal que ladra j 3 Muitos enganos e problemasilusórios da filosofia metafísica se originam da crença de que as palavras representai objetivamente determinados conceitos ou idéias cujo significado deve ser descoberto e descrito pela filosofi Partindo dessa concepção que remonta ao idealismo de Platão e à teoria da definição de Aristóteles parágrafo 52y o filósofo se pergunta o que são realmente a verdade a beleza a bondade etc e crê ser possível estabetoi cer definições verdadeiras A filosofia tradicional do direito seguindo esse modelo tem considerado que sua princljj pal tarefa é fornecer uma definição do conceito de direito Após a morte de Alf Ross 1979 a filologia a filosofia da linguagem a semiologia e a lingüística assumiram definiti vamente posição marcante Os trabalhos teses ou teorias de Ferdinand de Saussure Herbert Marcuse Jacque Derrida Michel Foucault filósofos existencialistas como Martin Heidegger e outros revelaram uma complexidadl da linguagem ainda muito maior do que aquilo que Ross indica nesta obra A afirmação de cunho generalizador pal exemplo de que o significado das formas da linguagem é claramente convencional é discutível pois só se pod afirmálo categoricamente com relação às línguas conceituais por assim dizer Refirome à quase totalidade itd línguas modernas cujos alfabetos e formação abstrata das palavras permitiram a criação de conceitos puros n que se aplica precisamente o exemplo dos conceitos de gato e cio É o que ocorre nas línguas matrizes arianas con o sânscrito o grego e o latim nas semíticas hebraico aramaico árabe etc e nos idiomas modernos em geral no quais as milhares de palavras encerrando conceitos são formadas pela combinação múltipla e diferenciada de aprirç ximadamente 23 letras do alfabeto Entretanto se pensarmos em certas línguas primitivas eg escrita cuneiformel e mais particularmente nas línguas ideográficas como o egípcio hieroglífico o chinês e várias línguas asiáticas questão lingüistica assume outra dimensão São línguas não alfabéticas nas quais não existem conceitos puros 0 Direito e Justiça 141 OS costumes ou normas lingüísticas que estabelecem a função simbólica da linguagem só podem ser descobertos por meio de um estudo do modo pelo qual as pessoas se expressam Por expressão entendo a unidade lingüística mínima que é portadora de significado por direito próprio Olhe é um gato é uma expressão É em sua integridade a portadora de um significado A comunicação lingüística entre os seres humanos ocorre por meio de tais unidades e conse qüentemente devem constituir o ponto de partida para o estudo da função simbólica da linguagem É importante frisálo pois de outra maneira podese facilmente cair no erro de pensar que o significado de uma expressão é o resul tado da adição total dos significados das palavras individuais que a formam As palavras individuais carecem de significado independen te possuindo apenas um significado abstraído das expressões nas quais aparecem Se alguém diz gato isoladamente isto nada signifi ca Não é uma expressão a menos que a palavra de acordo com as circunstâncias por exemplo se farejo o ar e olho inquisitivamente ao redor possa ser interpretada como uma forma abreviada de um juízo como deve haver um gato aqui perto Que significa a palavra mesa A resposta só pode ser dada estu dando um grande número de expressões nas quais apareçam essa palavra Tal é o procedimento adotado na elaboração de um dicioná rio Coletase uma imensa quantidade de material que consiste em expressões que constituem exemplos de usos da palavra O contexto mostrará a referência com a qual a palavra tem sido usada em cada caso individual Anotandose assim cada referência individual surgirá uma campo de referência correspondente à palavra ideogramas do kandji são milhares de representações cada uma para uma coisa e presumivelmente se originaram da observação da natureza inicialmente a representação gráfica de uma coisa que chamamos conceitualmente em português de montanha era um desenho tosco que imitava uma montanha com o transcorrer do tempo esse dese nho rudimentar ideograma que copiava a natureza uma concreção e não uma abstração foi sendo graficamente aprimorado a ponto de se distanciar nos seus contornos do original da natureza Num sentido ou outro notase que o ideograma é essencialmente uma imitação uma representação exclusiva de uma coisa natural mesmo sofrendo um processo de abstração posterior e não um símbolo com significado convencional facultativo e préestabelecido uma abstração pura artificial Isto vale para a linguagem escrita considerandose que a fonética tem papel secun dário nas línguas ideográficas 0 fato de nós ocidentais darmos nomes nossa manifestação cultural é profusa e profundamente verbal e conceituai aos ideogramas por ekemplo yama ao ideograma que representa montanha não nivela a língua ideográfica com a conceituai Na verdade a discussão sobre a natureza da linguagem é antiga sendo um tema já ventilado por Platão no CrátUo N T 142Alf Ross que pode ser comparado com um alvo Em torno do centro haverá uma densidade de pontos cada um dos quais marcando um impactq na referência Rumo à periferia a densidade decrescerá gradualmerH te A referência semântica da palavra tem por assim dizer uma zona central sólida em que sua aplicação é predominante e certa e urtl nebuloso círculo exterior de incerteza no qual sua aplicação é menos usual e no qual se toma mais duvidoso saber se a palavra pode sei aplicada ou não Não duvido por um só instante que posso chamar dá mesao móvel junto ao qual estou sentado e sobre o qual escrevo Dc mesmo modo usarei a palavra para outros objetos semelhantes poíj rém de tamanho inferior a mesa do quarto das crianças a mesa dm casa de bonecas Entretanto não há um limite quanto à pequenez do objeto Em outros casos parece que é a função e não a forma o quâj determina o uso lingüístico Colocamos a mesa pergunto ao meti companheiro de viagem no compartimento de trem referindomejj aqui a uma prancha suspensa Normalmente não descreveríamos umgjj caixa de madeira como uma mesa Porém se por falta de algo me3 lhor pus uma toalha sobre ela e aí depositei a comida poderei certaJ mente dizer que a mesa está pronta Podemos chamar de mesal uma mesa de operações ou só se pode usar a expressão composta Não vem ao caso portanto indagar o queé realmente uma mesa4 Se em certos casòs duvido se algo é ou não uma mesa esta dúvida nãqj revela falta de conhecimento acerca da natureza do objeto nasce simJ plesmente do fato de que não estou seguro se estará em conformidade com o uso aplicar a palavra mesa para designar o objeto particular Estai hesitação por sua vez resulta do fato de ser possível empregar a palaj vra dessa maneira em certas expressões e certas circunstâncias poréml não em outras expressões e em outras circunstâncias Vimos por exenvf pio que em certas circunstâncias posso descrever uma caixa de madeira como uma mesa enquanto está claro geralmente não o faça Essas observações sobre a palavra mesa valem para todas as pa i lavras no uso ordinário cotidiano É válido para elas seu significado ser vago ou seu campo de referência ser indefinido consistindo numaj zona central de aplicações acumuladas que se transforma gradual mente num círculo de incerteza que abarca possíveis usos da palavra s sob condições especiais não típicas 4 Ver a nota 2 deste capitulo Direito e Justiça 143 A maioria das palavras não têm um campo de referência único mas sim dois ou mais cada um deles construído sob forma de uma zona central à qual se acrescenta um círculo de incerteza Tais pala vras são chamada de ambíguas Em inglês isto vale por exemplo para a palavra nail Em síntese os seguintes axiomas se aplicam às palavras no uso cotidiano I o O significado possível de toda palavra é vago seu campo de referência possível é indefinido 2o A maioria das palavras são ambíguas 3o O significado de uma palavra é determinado de modo mais preciso quando é considerada como parte integrante de uma expres são definida 4o O significado de uma expressão e com isso o significado das palavras contidas na mesma é determinado de modo mais preciso quando a expressão é considerada na conexão em que é formulada Esta conexão pode ser lingüística o contexto ou não lingüística a situação Com base em 3 e 4 é possível formular a seguinte gene ralização o significado de uma palavra é uma função da conexão expressão contexto situação na qual a palavra aparece Visando a analisar com maior rigor o papel que desempenha a conexão veja mos alguns exemplos A palava inglesa nail pode referirse a uma parte do corpo humano e a um artigo de uso geral Na expressão my nail hurtsÇmmha unha dói ou meu prego produz dor pareceria claro que a palavra é usada no primeiro sentido visto que só nesse sentido a expressão parece ter um significado razoável Partimos da hipótese portanto da razoabilidade do significado da expressão Com base nessa hipó tese a interpretação espontânea é a mais óbvia porém não a única Que significa tanto unha quanto prego Neste caso a ambigüidade ocorre com as palavras homógrafas isto é de grafia igual mas significado diferente Este fenômeno lingüístico manga designa uma fruta e uma parte da vestimenta se manifesta praticamente em todas as línguas mas de maneira bastante variável Em linguas de vocabulário ordinário pouco rico como o inglês nas quais as palavras suportam grande carga semântica basta atentar para o enorme leque e gama de significações da notória palavra get para percebêlo o fenômeno é muito mais comum a significa ção correta sendo via de regra definida pela posição e função da palavra na oração ou seja pela sintaxe o contexto em que a palavra aparece na oração Nas línguas declinadas como o latim e o alemão a incidência é bem menor e portanto os casos de ambigüidade relativamente escassos W T 144 Alf Ross E possível imaginar circunstâncias nas quais uma interpretação diver sa seja a indicada por exemplo se a expressão é formulada quandc duas pessoas estão tentando verificar se dói se picarem com tipo diferentes de pregos O mesmo é aplicável à maneira na qual o significado de uma ex pressão é especificado pelo contexto ou pela situação Se tomarmd a frase the nail is too long a unha está longa demais ou o prego 1 longo demais isoladamente será impossível descobrir com qual sig nificado é empregada a palavra nail Entretanto se pelo contexto otj a situação ficar claro que a expressão é formulada como preliminaij de um pedido de alguém para que lhe cortem as unhas então nãíj caberá dúvida alguma De tudo isso podemos deduzir que o papel desempenhado pela conexões na determinação do significado consiste em elas proporcio narem um fundamento para se decidir com base em certas hipóte ses qual das diversas interpretações cada uma delas possível se s se leva em conta o uso lingüístico é a mais provável A interpretaçã por conexão não se apóia no uso lingüístico e não utiliza como ferrai mentas as palavras empregadas mas sim outros dados Trabalhf com todos os fatos hipóteses e experiências que podem lançar lujj sobre o queim a pessoa buscou comunicar A interpretação por conj xão é um estúdo de prova circunstancial que lembra o trabalho de un detetive que investiga um crime Em função de tudo isso é imperioso decidir o que pode ser aceitoy conforme as circunstâncias como contexto e situação O contexto sg estende até onde se possa supor que uma expressão foi formulad tendo outra em mente e que o autor desejou que ambas se aplicasj sem de forma conjunta Freqüentemente se tem por certo não senr otimismo que isso é o que ocorre com todas as expressões que aparé cem numa mesma obra científica Contudo se as primeiras obras de um autor são tomadas como dados de interpretação é preciso que sé leve em conta que suas opiniões juntamente com sua terminologia Cj seu estilo podem ter se alterado com o decorrer do tempo No campo jurídico é usual considerar que as expressões que aparecem numíf mesma lei decreto contrato etc formam parte do mesmo contexto Se são levadas em consideração disposições legais antigas associadaS a outras mais recentes as mesmas reservas devem ser feitas A situai ção abrange todos os fatos e circunstâncias que podem indicar qual era Direito e Justiça 145 a intenção do autor incluindo assim sua orientação política suas idéias filosóficas as características das pessoas a quem eram dirigidas suas declarações a razão provável que o moveu a proferilas os gestos as expressões faciais e ênfase etc além de toda a situação fatual física e social de vida que condicionou a expressão A atividade que colima expor o significado de uma expressão se denomina interpretação Esta palavra é utilizada também para desig nar o resultado de tal atividade A interpretação pode assumir duas formas Pode ser executada de sorte que o significado de uma expres são seja definido mais claramente por meio de uma descrição formula da em palavras ou expressões diferentes cujo significado seja menos vago ou de uma tal maneira que ante um conjunto de fatos concretos experimentados sob forma definida seja possível decidir com um sim um não ou um talvez se o conjunto de fatos constitui ou não uma referência que corresponde à expressão Tomemos por exemplo a expressão quando se combina ácido clorídrico e zinco liberase hidro gênio Uma interpretação do primeiro tipo visará a explicar mediante palavras de modo mais completo o que é que deve ser entendido por cada uma das expressões usadas Poderia por exemplo mostrar que se combiná significa que o zinco é posto em contato com o ácido mas não por exemplo que um pedaço de zinco e um frasco de ácido clorídrico são embrulhados um ao lado do outro num pedaço de papel Uma interpretação do segundo tipo pretenderá decidir se um certo curso de fatos satisfaz o significado da expressão de modo que se possa afirmar que nos achamos na presença de fatos que a expressão designa A interpretação do primeiro tipo chamase interpretação por significado e a do outro tipo interpretação por referência O princípio condutor para toda interpretação é o princípio da função primária determinativa de significado da expressão como uma entida de e as conexões nas quais ela aparece O ponto de partida de toda compreensão é a expressão como entidade tal como é experimentada pela pessoa que a recebe numa situação concreta definida A partir deste ponto a interpretação pode prosseguir em parte para uma aná lise dos elementos que constituem a expressão as palavras individuais e sua conexão sintática e em parte para uma análise do contexto no qual aparece a expressão e da situação em que foi formulada Na primeira análise isto é aquela que se dirige ao significado das Palavras é importante entender que o significado de uma expressão 146 Alf Ross não é construído como um mosaico com o significado das individuais que a compõem pelo contrário o significado que o dudth se é capaz de atribuir aos elementos individuais é sempre uma funj ção do todo no qual aparecem Com freqüência nos defrontamos coil a opinião de que a interpretação da lei pode ou tem que tomar comij ponto de partida o significado ordinário das palavras tal como resultí de seu uso Este parecer é enganoso Não existe tal significado Sd mente o contexto e o desejo de descobrir um significado bom o razoável em relação a uma dada situação determinam o significada das palavras individuais Mas freqüentemente não nos apercebemos da função do contexto Se em uma das entradas de uma exposiçãjj de gado houver um aviso que diz Entrada somente para criadorejf com animais ninguém imaginará que o aviso autoriza o ingresso cki criadores que carreguem consigo seus canários É fácil passar por altá o fato de que a palavra animal recebe aqui uma interpretação condicioi nada pela situação e o propósito a qual é muito mais restrita do qué uma definição do significado da palavra segundo o uso É evidente quci em outras situações a palavra poderia incluir os canários Na segunda análise referente ao contexto e à situação em que expressão é formulada as coisas são um tanto diferentes A conexãcj externa da expressão não é dada de modo imediato associada a esta O contexto não é apreendido simultânea mas sucessivamente Quandj leio um livro não é verdade que não confiro nenhum significado èj primeira frase enquanto não ler a obra inteira Entretanto de todqi modo o contexto é codeterminativo Acontece com freqüência mi nha compreensão das primeiras páginas do livro terem mudado quandéj eu o termino e recomeço sua leitura Ocorre uma curiosa vibraçãl interpretativa Minha compreensão das primeiras frases codetermH na a compreensão das seguintes Mas minha apreensão do livro ná sua totalidade que surge como resultado pode ter um efeito retroa tivo modificador que influencia minha compreensão das frases indiviJ duais e isto por sua vez oferece a possibilidade de minha concepção do todo poder acabar alterada e assim sucessivamente Algo seme lhante pode ocorrer no que diz respeito ao papel da situação na qual a expressão foi formulada Na linguagem cotidiana o contexto e a situação constituem os fato1 res mais importantes na determinação do significado Entretanto não são os únicos O significado das palavras é relativo ou dependente num Direito e Justiça 147 plano totalmente distinto que poderíamos chamar de sinonímico ou sistemático Isto quer dizer que o significado de uma palavra é deter minado com maior precisão se a compararmos a outras palavras que possam ocupar o mesmo lugar numa frase e que ofereçam um cam po de significado mais amplo Por exemplo a escala de adjetivos ardente quente cálido tépido fresco frio gelado Ao comparar uma determinada palavra com outras que lhe são próximas ou com pala vras opostas poderemos determinar sua posição relativa num campo de significado O significado por exemplo da palavra propósito mma dada expressão é definido de maneira mais precisa imaginando quais outras palavras podem ser inseridas no mesmo lugar na expressão e então determinando a posição relativa ocupada por propósito no cam po de significado deslindado dessa maneira acidente negligência grave negligência propósito intenção premeditação deliberada e assim su cessivamente No tocante à linguagem cotidiana todavia o método sinonímico jamais pode substituir o contexto e a situação como funda mento da interpretação A linguagem científica por outro lado é carac terizada por uma tendência a cultivar a formação pura de conceitos sistemáticos tornandose assim independente do contexto e da situa ção Contudo foi só na linguagem mais elevada da linguagem científi ca na linguagem simbólica das matemáticas puras que esse esforço obteve pleno êxito Visto que as diretivas jurídicas estão predominan temente cunhadas na terminologia da linguagem cotidiana o contexto e a situação são os auxiliares fundamentais para a interpretação judicial O método sinonímicosistemático somente desempenha o papel mais modesto que lhe cabe em outros usos lingüísticos não científicos Uma interpretação de um tipo ou outro geralmente não nos con duzirá a um resultado preciso e isento de ambigüidade Considere mos os exemplos seguintes transcritos do filósofo norueguês Arne Naess5 Alguns estudantes acreditavam que mais de 25 dos candi datos que num certo ano haviam tentado ser aprovados num exame de filosofia tinham fracassado Neste enunciado a frase mais de 25 dos candidatos tinham fracassado pode ser interpretada ao menos das seguintes maneiras distintas 1 Mais de 25 dos candidatos que se inscreveram para o exame não obtiveram nota suficiente para serem aprovados 5 Arne Naess ínterpretation and Preciseness I 1947 51 148 Alf Ross 2 Mais de 25 dos candidatos que efetivamente se apresentaá ram pana o exame não foram aprovados Alguns candidatos não com pareceram por motivo de doença etc 3 Mais de 25 dos candidatos que se apresentaram para fazer q exame e não deixaram a sala após ter Iido as questões não foram apro vados Alguns candidatos pretendiam tentar mas desistiram imediatai mente diante das questões que lhes pareceram demasiado difíceis 4 Mais de 25 dos candidatos que tentaram resolver as ques tões não foram aprovados 5 Mais de 25 dos candidatos que entregaram as questões nãò foram aprovados A opinião dos estudantes se referia à qual desses significados possH veis Há duas razões para esta pergunta provavelmente não poder ser respondida Em primeiro lugar é possível que ocorra que uma interpreí tação baseada no contexto e na situação não conduza a resultado algum tal como é possível ocorrer que um detetive não seja capaz de descobrir provas concludentes que permitam identificar o autor de um assassinato Em segundo lugar pode ocorrer que o resultado negativo se deva ao fato dos próprios estudantes não estarem perfeitamente cientes do que exatamente queriam dizer Isto pode transparecer se os interrogarmos a respeito porque poderão reconhecer que não lhesi haviam ocorrido as várias possibilidades e portanto que não haviam se decidido por nenhuma delas Numa situação como esta não é posí sível que o detetive solucione o assassinato pela simples razão de não ter sido cometido assassinato algum Diante desses casos Naess diria que o tema a ser interpretado possui menos precisão de intenção ou profundidade de intenção do que as interpretações possíveis Uma imprecisão de intenção não é necessariamente uma falha do autor Provavelmente um certo grau de imprecisão é sempre inevitá vel porquanto é possível imaginar em todos os casos determinações cada vez mais sutis O propósito prático de uma expressão determina o grau de precisão de intenção apropriado É perfeitamente sensato dizer a um motorista que a distância entre New York e Boston é 184 milhas É verdade que a intenção pode ser aprofundada por meio de precisão interpretativa de que ponto de New York até que ponto de Boston e assim sucessivamente de sorte que podemos exprimir a distância em polegadas Entretanto na prática isto não viria ao caso Direito e Justiça 149 Se por uma razão ou outra quer dizer seja porque é impossível localizar provas concludentes ou a intenção carece de suficiente pro fundidade não é possível prosseguir com a interpretação além de um ponto que deixa em aberto muitas possibilidades o intérprete deverá desistir Se ele contudo optar por uma possibilidade particu lar não dará o próximo passo no âmbito de uma interpretação mas sim tomará uma decisão motivada por considerações alheias ao de sejo de apreender o significado de uma expressão A interpretação de diretiva em especial requer decisões dessa espécie Se há uma regra por exemplo no sentido de que quando mais de 25 dos candidatos são reprovados nos exames de filosofia o chefe do depar tamento deve tomar certas medidas então este pode verse forçado a eleger uma ou outra das possíveis interpretações especificadas Neste caso o chefe do departamento toma uma decisão que nada tem a ver com a interpretação da diretiva É freqüente se fazer uma distinção entre as chamadas interpreta ção subjetiva e interpretação objetiva no sentido de que a primeira visa a descobrir o significado que se buscou expressar isto é a idéia que inspirou o autor e que este quis comunicar enquanto a segunda visa a estabelecer o significado comunicado isto é o significado con tido na comunicação como tal considerada como um fato objetivo Um trabalho literário ou científico por exemplo pode ser interpreta do buscandose atinar com o que o autor realmente pensou e dese jou expressar ou pode ser considerado uma manifestação intelectual objetiva divorciada de seu autor caso em que a interpretação busca descobrir o significado que a obra pode transmitir a uma pessoa que a lê De modo idêntico uma promessa pode ser interpretada tendo em vista o que o promitente realmente tencionou expressar mesmo quando tenha se expressado mal ou tendo em vista o significado que suas palavras podem ter transmitido ao destinatário Encarada assim como um contraste absoluto entre intenção e co municação entre o que se quer dizer e o que se diz a distinção é insustentável Por um lado a intenção sendo um fenômeno de cons ciência interno do autor é fundamentalmente inacessível O que en tendemos por interpretação subjetiva é na realidade a interpretação que atingimos quando tomamos em consideração não apenas a ex pressão lingüística como também todos os outros dados relevantes o contexto e a situação que incluem as opiniões políticas e filosóficas 150 Alf Ross do autor o propósito declarado e o propósito presumido que o guioy na formulação da expressão etc Podemos inclusive interrogálo e sua resposta proporcionará dados interpretativos adicionais Por ouj tro lado a comunicação como tal não tem um significado objetivo preciso a compreensão que suscita aos demais variando com os da dos de interpretação que o destinatário considera A diferença entre interpretação subjetiva e objetiva portanto não deverá ser buscada no contraste entre os propósitos da interpretação o significado tencionado em oposição ao significado comunicado Toda interpretação parte da comunicação e busca atingir a intenção A diferença depende dos dados tomados em consideração ao inter pretar A interpretação subjetiva se vale de todas as circunstância que podem lançar luz sobre o significado particularmente todas así circunstâncias pessoais e de fato ligadas à composição da expressão e a sua declaração A interpretação objetiva restringe os dados aos discerníveis pelo destinatário na situação em que ele se acha ao apre ender a expressão A diferença é mais significativa quando a situação na qual a expressão é apreendida difere da situação na qual foi for mulada Se por exemplo o objeto da interpretação é uma obra lite rária do passado uma interpretação subjetiva investigará as opiniões culjturais básicas do período e a vida do autor com a esperança dei eptontrar aí indícios para a compreensão da obra uma interpretação objetiva em contrapartida prescindirá de tudo isso e procurará comi preender a obra a partir de seu conteúdo ideal imanente o que não quer dizer entretanto que a interpretação objetiva é puramente lin güística Tal como salientaremos nos parágrafos seguintes a crença numa interpretação literalé uma ilusão A interpretação se apóia sem pre em outros fatores em particular em conjeturas acerca da idéia o propósito ou a intenção associados à obra A própria consciência do fato de que alguém está se ocupando de um poema de uma obra científica de uma lei etc é em si importante A interpretação objeti va simplesmente se recusa a investigar a intenção estudando a ma neira pela qual a obra foi produzida Deste modo a interpretação objetiva contrastando obviamente com o que a terminologia autori zaria a crer adquire um tom de maior imprecisão e arbitrariedade que a interpretação subjetiva A interpretação objetiva de obras poé ticas como o Fausto de Goethe ou o Hamlet de Shakespeare tende a transformarse em subjetiva no sentido de que chega a ser a ex pressão do que épocas diferentes têm visto nessas obras Direito e Justiça 151 A interpretação objetiva pode chegar a ser uma construção ideal em conflito direto com a intenção do autor As diversas interpretações de Kant por exemplo não colimam verificar o que Kant realmente quis dizer inclusive a resposta deste se fosse possível interrogálo não seria decisiva para determinar qual das interpretações é a correta Es tas interpretações por assim dizer atravessam a obra do autor e possuem uma profundidade intencional maior que a da própria obra Apóiamse num ideal de consistência lógica interna ao sistema que não diz respeito aos fatos e apontam para um significado hipotéticoideal mais do que para o significado de Kant como fato históricopsicológico Entretanto esse atravessar com o pensamento pode se realizar de mais de uma maneira segundo o que é considerado de maior impor tância no sistema As interpretações desse tipo são pois valorativas e criadoras e ultrapassam os limites de uma interpretação genuína no sentido em que esta palavra foi aqui entendida 25 PROBLEMAS PE INTERPRETAÇÃO SINTÁTICOS O princípio orientativo para toda interpretação tal como vimos no parágrafo 24 é o princípio da função primária determinativa de signi ficado das expressões como entidade e das conexões em que elas aparecem princípio de entidade Isto deve ser considerado ao se distinguir os diferentes grupos de problemas de interpretação pro blemas sintáticos lógicos e semânticos em sentido estrito É mister lembrarmos que estamos falando de abstrações analíticas e que os problemas de interpretação aqui abordados de maneira isolada na realidade são sempre apreendidos como partes orgânicas dentro da conexão de significado captada de forma simultânea ou sucessiva O significado de uma expressão depende da ordem das palavras e da maneira em que se acham conectadas Os problemas que concernem à conexão das palavras na estrutura da frase chamamse problemas sintáticos de interpretação O princípio de entidade se aplica também à interpretação sintáti ca Assim como as palavras não têm em si mesmas uma referência exata tampouco as conexões sintáticas têm uma inequívoca função determinativa de significado Também aqui o sentido naturalé condi cionado por fatores não lingüísticos o desejo de descobrir um signifi cado bom ou razoável que se harmonize com aquele que o contexto e a situação indicam como tais 152 Alf Ross Os problemas sintáticos de interpretação que eu saiba não fòrare objeto de uma exposição e análise sistemáticos O presente estudí não tem esta pretensão Meu propósito é simplesmente estimular compreensão de problemas desse tipo oferecendo alguns exemplo Decerto os estudos sistemáticos seriam importantes para a interprei tação das leis e em particular para a redação destas I a Frases adjetivais orações adjetivas la Foi uma tentativa de encontrar uma solução que satisfizesse 1 todos It was an attempt at finding a soution that woud satisq everyone 1 1b Foi uma tentativa de encontrar uma solução que todaviaj não teve êxito It was an attempt at finding a soution that was rtch successfui however i 2a Ninguém pode ter um tutor 7oeseja mais jovem do que eles Nobody can have a guardian who is younger than himsef jjj 2b Ninguém que não tenha ao menos 21 anos de idade pode sej nomeado tutor Nobody can be appointed a guardian who is notak ieast twentyone years od J Esses exemplos mostram que não há regras sintáticas que especf fiquem o aíntecedente de uma oração relativa Contudo os exemplo não deixam margem à duvida porque só há uma interpretação capai de produzir um significado razoável Porém em outros casos o signl ficado pode provocar dúvidas Se dissermos por exemplo I si 3 Instigação ao crime que foi cometido num país estrangeiro nãc é incluída Incitement to crime which hasbeen committedin a foreigt country is not induded não saberemos com certeza se é a insti gação ou o crime que terão sido cometidos num país estrangeiro 0 autor está se referindo a um problema de sintaxe de uma oração adjetiva relativa instaurada pelo conectivo prononM relativo que numa correta construção gramatical préestabelecida Ross esbarra aqui numa dificuldade filológic o que não é de se surpreender porque ele não conhecia bem as línguas romãnicas ou latinas nas quais o portugué por exemplo a mera substituição do pronome que por a qual ou o qual e a variação verbal eliminariam o problema dl interpretação É necessário portanto entender sua análise num âmbito idiomático circunscrito ao inglês e extensi vo às línguas anglosaxônicas em geral como o dinamarquês e o norueguês no qual a oração subordinada adjethrí é exclusivamente introduzida por that who ou which que são pronomes neutros sem gênero e número Por outK lado se removêssemos o pronome relativo no português teríamos uma segunda solução ainda devido à variação 4l gênero e número a instigação a um crime cometido cometida num pais estrangeiro Em inglês o problema perm nece porque os verbos no caso committed também são invariáveis quanto a gênero e número Jll T Direito e Justiça 153 A interpretação neste caso tem que se apoiar em dados não lingüísticos principalmente em informações sobre o propósito da regra Se o intér prete permitir que suas preferências pessoais decidam a questão ex cederá os limites de uma interpretação autêntica parágrafo 24 b O problema de se os adjetivos e frases adjetivais orações adjetivas qualificam duas ou mais palavras 4a Livros e jornais que contêm figuras indecentes não devem ser importados Books and newspapers which contaín indecentpictures must not be imported 4b Oficiais e soldados rasos que tenham sido alistados há mais de seis meses têm direito a um soldo extra Officers and prívates who have been conscripted more than six months are entitied to extra allowances 5a Homens e mulheres jovens que tenham sido aprovados no exame podem ser designados fYoung men and women who have passed the quaüfying examination can be appointed 5b Homens e mulheres jovens que tenham prestado serviços nas organizações auxiliares femininas podem ser designados Young men and women who have served in the WACS can be appointed 6a0 Rei pode fazer projetos dee e outras medidas serem intro duzidos no Parlamento The King may cause proposals for statutes and other measures to be introduced in the pariiament 6b O Conselho se ocupa de projetos de leis e outras matérias importantes The Counciideais with proposaisfor statutes and other matters of importance Estes exemplosdemonstram que não há regras fixas que defi nam quando um adjetivo um pronome relativo ou uma preposição se referem somente a uma palavra e quando se referem a mais de uma Nesses exemplos o significado é satisfatoriamente claro à luz da exigência de um significado razoável Ao interpretarse 4a en tretanto o propósito presumível do legislador ou a própria atitude do intérprete terão que desempenhar um papel e em 4b será deci sivo para a interpretação verificar se de acordo com o contexto é Possível que os oficiais sejam alistados Em outros casos podem SlJrgir sérias dúvidas 154 Alf Ross Sí 7 No contexto agências e instituições de caridade charitablel institutions and agencies a expressão de caridade charitable sei refere de acordo com o uso ordinário da língua tanto às agêndaà quanto às instituições Porém dúvidas poderão surgir se além dòl conectivo houver uma palavra que qualifique o primeiro membro como ocorre na frase instituições de caridade ou organizações comi pessoa jurídica charitable institutions or incorporated organizations Assim no caso escocês Symmers Trustees contra Symmers 1918 S C 337 em que os fideicomissários receberam instruções para dividir o remanescente entre tais instituições de caridade ou agências me recedoras de sua escolha such charitable institutions or deserving agencies as they may select decidiuse que o legado era nulo por falta de certeza pois a descrição instituições merecedoras deserving institutions tinha que ser entendida independentemente deinstitui ções de caridade charitable institutions e assim o legado não era exclusivamente de caridade6 Ternos um outro exemplo nas seguintes palavras do British Roac TrafficActúe 1930 parágrafo 11 1 Se uma pessoa conduzir um veículo motorizado por uma estradai de maneira descuidada ou a uma velocidade ou de uma maneirai perigosa ao público tendo em conta todas as circunstâncias do caso incíusive a natureza estado e uso da estrada e a densidade do trát go que ocorre realmente na ocasião ou que razoavelmente poderse ia esperar na estrada será responsável etc Parece ter sido aceito sem problemas que as palavras em itálic se referem tanto à condução descuidada quanto à velocidade e maneira de conduzir ver por exemplo Elwes contra Hopkins 1906 2 K Bl JusticesManual1950 vol II p 2056 Entretanto relatif vãmente a uma lei australiana de redação similar decidiuse no casc Kane contra Dureau 1911 VDR 293 que essas palavras qualificar somente as frases a uma velocidade e de uma maneira7 6 Citação de E L Piesse e J Gilchrist Smith The Elemeats ofDrafting 1950114 7 Op cit 1617 Neste caso e nos próximos que se seguem não registramos o inglês visto a pertinência não se restringir às língw inglesa e dinamarquesa atingindo também o português W T Direito e Justiça 155 c Pronomes demonstrativos e relativos 9a0 Rei citará anualmente um parlamento ordinário e decidirá quando termina a sessão Isto todavia não pode ocorrer até que de acordo com o parágrafo 48 se tenha autorizado legalmente a co brança dos impostos e o pagamento das despesas do governo Cons tituição Dinamarquesa 1920 parágrafo 19 9b O presidente convocará uma reunião e anexará uma cópia de seu relatório Isto todavia não pode ocorrer enquanto o tesoureiro não expor suas contas 10aSe uma das Câmaras for dissolvida por ocasião de sessão do Parlamento as reuniões da outra Câmara serão suspensas até que o Parlamento todo se reúna novamente Isto tem que ocorrer dentro de dois meses após a dissolução Constituição Dinamarque sa 1920 parágrafo 22 10bSe a competência do presidente for questionada este adiará a reunião até que o Conselho tenha chegado a uma decisão stotem que ser realizado mesmo que o presidente declare sua disposição para renunciar 11a Os Ministros serão responsáveis perante o Rei e o Parla mento pelo exercício de suas funções Constituição Dinamarquesa 1920 parágrafo 14 llb Os professores deram a João e Pedro um presente em seu aniversário Fica claro pelo contexto que são gêmeos Nas citações da Constituição parece completamente claro a que se referem as palavras em itálico As passagens concebidas como contrapartida demonstram entretanto que de um ponto de vista puramente sintático é possível que sejam entendidas de maneiras diversas e que a leitura natural portanto é na realidade determina da não apenas pelo que pode ser lido como também por um juízo sobre o significado que se pode razoavelmente presumir Entretanto esse juízo nem sempre produz certeza Problemas difíceis de inter pretação têm surgido por exemplo com relação à frase a mesma obrigação do Estatuto da Corte Internacional Permanente de Justi Ça art 36 5 seção 28 8 Ver Hans Kelsen The Law of the United Nations 1950 526 3i d Frases de modificação exceção e condição j Do ponto de vista da sintaxe é com freqüência duvidoso com q u i membro primário uma frase de modificação exceção e condição esq conectada Nestes casos a pontuação pode ser importante J 12 No exercício de suas funções os juizes são limitados pel direito Os juizes não serão destituídos de seus cargos a não séf mediante juízo nem serão transferidos contra sua vontade excera nos casos em que ocorra uma reorganização dos tribunais Const tuição Dinamarquesa 1920 parágrafo 71 A estrutura da sentença nesse enunciado não deixa claro se a exoe ção relativa à organização dos tribunais se aplica somente à regra dd juizes não poderem ser transferidos contra sua vontade ou também regra de não poderem ser destituídos de seus cargos sem juízo O fatc decisivo é a vírgula após a palavra vontade Isto demonstra que interpolação nem serão transferidos contra sua vontade se acha er oposição à ou paralela à primeira parte da sentença e que a exceçã se relaciona igualmente com ambas as alternativas Se suprimirse vírgula seria natural a interpretação contrária A importância da pontuação se faz patente no protocolo de Berlirj de 6 de outubro de 1945 cujo único intuito foi substituir um ponto vírgula por uma vírgula Os crimes contra a humanidade foram da finidos da seguinte maneira no art 69 da Carta do Tribunal MilitJ Internacional contida no Acordo de Londres de 8 de agosto de 1943 13 Os crimes contra a humanidade a saber homicídio extermíniq escravidão deportação e outros atos desumanos cometidos contra qual quer população civil antes ou depois da guerra ou perseguições pd razões políticas raciais ou religiosas em execução ou em conexão con qualquer crime compreendido dentro da jurisdição do Tribunal sejam c não transgressões das leis internas do país onde perpetrados No mencionado protocolo o ponto e vírgula situado depois d palavra guerra foi substituído por uma vírgula A jurisdição do tribiíj nal ficou assim substancialmente circunscrita porque a condiçã do ato ser cometido em conexão com um dos crimes compreendíjj dos na esfera de jurisdição do tribunal se fez aplicável a todos casos de crimes contra a humanidade e não somente aquele gru po perseguições mencionado depois do ponto e vírgula originaiá 156 Alf Ross Direito e Justiça 157 A correção entretanto não foi inspirada por uma mudança de inten ção Simplesmente ocorreu que a função sintática do ponto e vírgula não fora percebida antes Os diversos grupos de exemplos dados logo acima bastam pro vavelmente para confirmar que as formas sintáticas conectivas não exercem uma função inequívoca e que os problemas sintáticos não podem ser resolvidos com base em dados de interpretação pura mente lingüísticos Nisto assemelhamse aos problemas semânticos em sentido restrito Por outro lado diferem destes num aspecto mesmo quando a imprecisão de significado das palavras é irremediá vel os problemas sintáticos por meio de uma prolixa e talvez tedio sa composição lingüística poderiam limitarse àqueles cuja solução se faz patente sem dúvida alguma pelo simples sentido comum Por exemplo que a palavra suas em lla se refere a os Ministros e não ao Rei ou ao Parlamento Os casos realmente duvidosos de problemas sintáticos de interpretação tais como os presentes na British Road TrafficActúe 1930 s 111 e no art 36 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça poderiam ser evitados graças a uma redação mais cuidadosa Se nos habituamos a dizer que um texto é claro ou isento de ambigüidade é possível que isso manifestando se com propriedade se refira somente a essa interpretação sintáti ca Do ponto de vista da semântica no sentido restrito um texto é sempre afetado pela inevitável imprecisão de significado das pala vras e nessa medida jamais é claro ou isento de ambigüidade o que significa que constantemente podem surgir situações atípicas diante das quais fica dúbio se o texto é aplicável ou não Por outro lado isso não exclui que em outras situações de caráter típico não se dê margem a dúvidas Entretanto a certeza da aplicação em algumas situações não justifica a afirmação geral de que o texto não é ambíguo 26 PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO LÓGICOS Os problemas lógicos da interpretação são os que se referem às ilações de uma expressão com outras expressões dentro de um contexto Entre estes problemas destacamse a inconsistência a re dundância e as pressuposições 158 Alf Ross 261 Inconsistência Existe inconsistência entre duas normas quando são imputad efeitos jurídicos incompatíveis às mesmas condições fatuais Pode haver inconsistência entre duas normas de três maneir distintas I a Inconsistência totaitotal isto é quando nenhuma das norm pode ser aplicada sob circunstância alguma sem entrar em conflí com a outra Se os fatos condicionantes de cada norma são simbi zados por um círculo há uma inconsistência desse tipo quando am os círculos coincidem 2a Inconsistência totaiparciai isto é quando uma das duas nc mas não pode ser aplicada sob nenhuma circunstância sem entr em conflito com a outra enquanto esta tem um campo adicional aplicação no qual não entra em conflito com a primeira Tal inconsf tência ocorre quando um círculo se acha dentro do outro 3a Inconsistência parcialparciai isto é quando cada uma duas normas possui um campo de aplicação no qual entra em confll com a outra porém também possui um campo adicional de aplicaçi no qual não são produzidos conflitos Tal inconsistência existe qua do os dois círculos são secantes Para simplificar nossa linguagem podemos empregar também seguinte terminologia I a Inconsistência totai ou incompatibilidade absoluta 2a Inconsistência totalparcial ou inconsistência entre a rei geral e a particular As expressões regra geral e regra particular s correlativas Uma regra é particular em relação à outra se seu fia condicionante é um caso particular do fato condicionante da out regra Se o fato condicionante desta última é F a b c isto é ií fato definido pelas indícios a b c então o fato condicionante regra particular é F a b c m n Se por exemplo houver uma re que dispõe que os estrangeiros não gozam do direito de pescar águas territoriais de um país marítimo e houver outra que estabel que os estrangeiros com mais de dois anos de domicílio no país zam desse direito então a primeira regra será geral em relaçã segunda e a segunda será particular em relação à primeira Direito e Justiça 159 3a Inconsistência parciai ou sobreposição de regras No julgamento das inconsistências constitui fator importante a rela ção existente entre as leis a que pertencem as normas conflitantes Deve ser realizada uma distinção entre a inconsistências na esfera da mesma lei e b inconsistências entre uma lei anterior e outra posterior No último grupo é necessário fazer a distinção considerando se as duas leis estão no mesmo nível ou em níveis diferentes parágrafo 16 I As inconsistências totais dentro de uma mesma lei são raras Todavia a Constituição Dinamarquesa de 1920 estabelece na primei ra parte do parágrafo 36 que o número dos membros da Primeira Câmara não pode exceder setenta e oito enquanto na segunda parte são estabelecidas normas minuciosas para sua eleição e distribuição das quais se conclui que o número de membros a ser eleito é setenta e nove Não há regras gerais que indiquem como resolver uma in compatibilidade absoluta como essa entre duas normas A decisão segundo as circunstâncias terá que se basear seja numa interpreta ção fundada em dados alheios ao texto seja no critério A relação entre uma regra geral e uma regra particular no âmbito de uma mesma lei raramente dá origem a dúvidas Com freqüência como ocorre na linguagem falada normal a regra particular está liga da à regra geral por meio de um nexo sintático todavia a menos que com a exceção de etc que indica que a regra geral só deverá ser aplicada com a limitação imposta pela particular Não há verdadei ra inconsistência aqui mas uma forma de expressão lingüística que pode ser parafraseada numa regra Ademais ao redigir uma lei aceitase uma convenção geral quase fixa segundo a qual os nexos conectivos sintáticos podem ser omiti dos se alterarse com isso o significado A regra particular se mante rá limitando a geral É freqüente a regra geral estar cçntida numa seção e as exceções em uma ou mais seções distintas É incontestá vel a regra particular limitar a geral É de pouquíssima monta deter minar se isso será considerado como uma simples interpretação lin Qüística que introduz uma conjunção sintática implícita ou como um caso de uma regra positiva de interpretação que pode ser chamada de lex speciais dentro de uma mesma lei Por outro lado a sobreposição de normas dentro de uma mesma ei gera freqüentes problemas de interpretação Não há regras gerais 160 Alf Ross para sua solução e a decisão deve apoiarse em dados alheios ao text ou no critério Por exemplo de acordo com o art 53 da Carta d Nações Unidas não se tomará nenhuma medida de força dentro d tratados regionais ou pelos organismos regionais sem a autorizaçj do Conselho de Segurança Segundo o art 51 entretanto nada i que é estabelecido na Carta restringe o direito à autodefesa individu ou coletiva em caso de ataque armado e as medidas de defesa n estão sujeitas a autorização Estas duas regras se sobrepõem parcii mente o problema consistindo por conseguinte em saber qual deli deve ceder se de acordo com um tratado regional se desejar pôr é prática uma medida de força que consiste numa autodefesa coletlv contra um ataque armado Este problema se destacou na discussão i Tratado do Atlântico e é insolucionável por meio de interpretação líí güística ou construção lógica A resposta a ele dependerá da informj ção relativa às circunstâncias que cercaram a criação da Carta e í uma valoração das vantagens políticas de uma ou outra interpretaçã I I Pensase freqüentemente que quando se trata da relaç entre leis diferentes as inconsistências podem ser resolvidas mec ante duas simples regras convencionais de interpretação conhecidí como lex posterior e iex superior Lex posterior significa que de duas leis do mesmo nível a segunt prevalece sobre a anterior É indubitável que se trata de um princíp jurídico fundamental embora não esteja expresso como norma poí tiva que o legislador pode derrogar uma lei anterior e que pode faz Io criando uma regra nova incompatível com a anterior que ocuf seu lugar Todavia não é correto guindar este princípio à categoria i axioma absoluto A experiência mostra que não há adesão incondiciá nal a ele sendo permissível colocálo de lado quando em conflito co outras considerações O princípio da lex posterior portanto só poá ser caracterizado como um importante princípio de interpretação en tre outros Além disso a força do princípio variará segundo os difi rentes casos de inconsistência I 1 No caso de incompatibilidade absoluta é muito difícil concebi considerações de suficiente peso que justifiquem deixar de lado 1 princípio de lex posterior J ZôO mesmo ocorre naqueles casos de inconsistência totalpardi nos quais a última regra é a particular Neste caso a lex postem opera em conjunção com a lex specialis Direito e Justiça 161 2b Nos casos de inconsistência entre regras particulares anterio res e regras gerais posteriores a lex speclalis pode segundo as cir cunstâncias prevalecer sobre a lex posterior Imaginemos por exem plo uma lei anterior que contenha uma regra geral à qual em leis posteriores foram introduzidas várias exceções para situações parti culares Subseqüentemente a regra geral anterior é substituída por outra que não menciona as exceções Em tal situação para determi nar se as exceções anteriores podem não obstante ser consideradas válidas terá que se recorrer a outros dados e considerações valorativas 3 Nos casos em que as regras se sobrepõem parcialmente a lex posterior certamente dá suporte à presunção de que a regra mais recente terá preferência sobre a mais antiga anterior porém isto não se aplica incondicionalmente A lex posterior só se aplica na me dida em que em termos subjetivos o legislador teve a intenção de substituir a lei mais antiga anterior Entretanto pode também ter tido a intenção de que a nova regra se incorporasse harmoniosamen te ao direito existente como um suplemento dele A decisão acerca de qual das duas possibilidades é aplicada num caso concreto depen derá como de costume de uma prova alheia ao texto ou do critério Lex superior quer dizer que num conflito entre previsões legislativas de nível diferente a lei de nível mais elevado qualquer que seja a ordem cronológica se achará numa situação de preferência relativa mente a de nível mais baixo a Constituição prevalece sobre uma lei uma lei sobre um decreto e assim sucessivamente Contudo na experiência jurídica tampouco esse princípio é incon dicionalmente válido Em primeiro lugar a prioridade da Constituição depende dos tribunais terem competência para revisar a constitucionalidade material das leis E mesmo quando os tribunais tenham tal competência com freqüência se recusarão de fato a registrar o conflito e a declarar a invalidade Nestes casos segura mente acatarão formalmente a lex superior porém se negarão a admitir a existência de um conflito que em outras circunstâncias teriam reconhecido Em segundo lugar a instância legislativa superior Pode ser competente para autorizar a inferior a ditar regras que te nham força derrogatória com relação a normas de um nível imedia tamente superior Assim por exemplo uma lei pode autorizar o Po der Executivo a ditar decretos que possam derrogar leis vigentes ou delas se desviar ou autorizar os cidadãos particulares a celebrar 162 Alf Ross transações contrárias a normas legislativas aquelas que não são apljj cáveis se as partes pactuam outra coisa Não é excluível a possibill dade dos tribunais ainda que sem autoridade para tanto se desviei da lex superior kl 262 Redundância Há redundância quando uma norma estabelece um efeito jurídio que nas mesmas circunstâncias fatuais está estabelecido por outrí norma Uma das duas normas na medida em que isso ocorre redundante É freqüente na conversação diária enfeitarmos nossa expressões com redundâncias Não diga mentiras contenos corri realmente foi Na redação das leis onde se requer maior cuidadd procurase evitar dizer mais do que o necessário Temse por pressií posto que uma lei não contém redundâncias e uma coincidência apá rente de duas normas portanto induz a interpretar uma delas maneira tal que a aparente redundância desapareça Entretanto nM é possível sustentar que existe um princípio incondicional de interpre tação segundo o qual não possa haver redundâncias É mister leva m conta a possibilidade de que aquele que teve como incumbêncii redigir a lei não tenha se apercebido da coincidência em especial 9 é o caso de uma redundância que assoma ao comparar a lei com umi norma anterior ou a possibilidade de por razões históricas dese jouse salientar um ponto de vista particular ou que para oferece um quadro geral em benefício mormente do leitor inexperiente julgouse necessário incluir num só texto material que de outro modo teria que ser procurado alhures enunciados ex tuto Na realidade a teoria da redundância poderia ser desenvolvidl semelhantemente à teoria da inconsistência porém tal desenvoM mento apresentaria pouco interesse O ponto essencial é que para redundância tampouco há solução mecânica É mister que a decisãij se baseie em considerações diversas inclusive a pressuposição gera de que não há redundâncias i 263 Pressuposições 1 Se digo a uma criança que tem uma maçã na mão Dême a maçl que você furtou e a criança não furtou a maçã a diretiva não pode s Direito e Justiça 163 cumprir Decidase o pequeno a entregar a maçã ou retêla consigo sua decisão estará fundada em motivos e idéias que nada têm a ver com o acatamento à diretiva Algo similar ocorre quando uma regra produz pressuposições incorretas ou falhas Os problemas que surgem neste caso não podem ser resolvidos por interpretação lingüística sen do necessário o recurso a outros dados de interpretação ou ao critério Há falsas pressuposições fatuais quando por exemplo uma lei qualifica uma substância inócua de venenosa ou proíbe a pesca numa área que atualmente é desértica ou regulamenta a navegação num rio que já não é mais navegável ou dispõe que a administração deve consultar um organismo que não existe mais Há falsas pressuposi ções jurídicas quando uma norma faz pressuposições incorretas ou falhas sobre o conteúdo do direito vigente ou a respeito de situações jurídicas específicas Por exemplo que na Califórnia a maioridade é adquirida aos 30 anos ou que as mulheres não têm direito ao sufrá gio ou que uma certa zona se encontra sob uma autoridade munici pal diferente daquela que na realidade lhe corresponde Está claro que é improvável que tais erros grosseiros ocorram Por outro lado não é difícil incorrerse em erros menos graves especialmente quan do uma lei faz referência a leis anteriores que posteriormente são derrogadas por outras e se esquece que as referências devem ser modificadas de maneira concordante Das falsas pressuposições fatuais ou jurídicas surgem problemas de interpretação que não podem ser resolvidos por regras mecânicas Também aqui lograse a harmonia com a ajuda do senso comum e do critério A regra pode ser aplicada a despeito da pressuposição incor reta ou falha ou a regra pode ser modificada ou considerada nula No caso de um erro jurídico surge a questão da pressuposição poder ser considerada como garantia para a criação de direito em conformida de com seu conteúdo Recapitulando o que dissemos a respeito do conflito de normas fica claro não haver na realidade princípios fixos para a solução me cânica desses problemas Todos os problemas lógicos da interpreta ção são lógicos no sentido de que podem ser determinados mediante ürna análise lógica da lei Contudo não são de modo algum lógicos no sentido de que possam ser resolvidos com o auxílio da lógica ou de Princípios de interpretação que operam de forma mecânica Lex sPeciaiis lex posterior e superior não são axiomas mas princípios de 164 Alf Ross peso relativo que gravitam em torno da interpretação ao lado de outra considerações em particular uma valoração acerca da melhor maneir de fazer com que a lei esteja de acordo com o senso comum com consciência jurídica popular ou com os objetivos sociais supostos 27 PROBLEMAS DE INTERPRETAÇÃO SEMÂNTICOS Os problemas semânticos da interpretação em sentido estritc são aqueles que se referem ao significado das palavras individuais ot das frases Aplicamse a este tópico principalmente os comentários feitos r parágrafo 24 Devese recordar em especial que a maioria das palá vras são ambíguas e que todas as palavras são vagas isto é que sa campo de referência é indefinido pois consistem num núcleo ou zon central e um nebuloso círculo exterior de incerteza e que o significa do preciso de uma palavra numa situação específica é sempre en função da unidade total ou entidade a expressão como tal o conte toe a situação É por conseguinte errôneo crer que a interpretação semântic começa por estabelecer o significado das palavras individuais atinge o da expressão pela soma dos significados parciais O pontí de partida é a expressão como um todo com seu contexto e i problema do significado das palavras individuais está sempre uròj do a esse conceito A palavra casa pode designar uma grande vâ riedade de objetos Falase da casa habitação da casa que ufl caracol leva às costas das casas bancárias das casas de deter ção das casas de famílias reais das casas de um tabuleiro da casas decimais e muitas outras Em certas circunstâncias comN toda criança sabe um sapato velho pode ser uma casa Entrei tanto numa lei habitacional a maior parte de tais possibilidade são afastadas pois seriam absurdas É errôneo também portanto crer que um texto pode ser tãí claro a ponto de ser impossível que suscite dúvidas quanto a sui Por questões filológicas somos obrigados a diversificar certos exemplos já que no inglês existem numerosas exprí sões compostas analíticas que correspondem a expressões simples sintéticas no português Exemplificamos I house não corresponde a casa de galinhas mas a galinheiro NT Direito e Justiça 165 interpretação9 Tal como vimos no parágrafo 25 in fine tal clareza só é atingível sempre que haja um certo mínimo de senso comum no tocante à interpretação sintática e não no tocante à interpretação semântica em sentido estrito Logo que fazemos a transição do mun do das palavras ao mundo das coisas nos defrontamos com uma incerteza fundamentalmente insuperável10 ainda que em situações típicas a aplicação do texto não ofereça nenhuma dúvida Por isso tampouco a interpretação semântica é um processo mecâ nico Salvo nos casos de referência clara e óbvia o juiz tem que tomar uma decisão que não é motivada pelo mero respeito à letra da lei 28 INTERPRETAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA Nos parágrafos anteriores fornecemos exemplos dos problemas de interpretação que enfrentam os juizes e as outras autoridades na administração do direito Dirigimos agora nossa atenção ao problema de como são resolvi dos esses problemas na administração da justiça Não queremos com isso dizer como devem ser resolvidos Tal como verseá mais detidamente no parágrafo 31 as teorias correntes so bre a interpretação têm um conteúdo normativo isto é se propõem a proporcionar diretivas que prescrevem como deve ser interpretado o direito na administração da justiça Na medida em que são deduzidas de idéias preconcebidas referentes à natureza do direito o conceito do direito o propósito da administração do direito e coisas semelhan tes eqüivalem a postulados dogmáticos Na medida èm que são ba seadas em considerações de vantagens e desvantagens sociais apre ciadas em relação a certos valores pressupostos eqüivalem a suges tões de política jurídica dirigidas ao juiz Em ambos os casos exceto 9 Este ponto de vista errôneo está entretanto difundido 0 projeto do Code Civil do ano VII continha esta cláusula Quand une loi est daire il ne faut pas en éluder le texte sous pretexte den respecter 1esprit Em relação a isto Henri LévyBruhl na obra coletiva Introduction à 1étude du droit 1951 283 Se a norma é clara é inútil e até perigoso interpretála A Corte Internacional a Corte Permanente de Justiça Internacional tem declarado reiteradamente que os trabalhos preparatórios não podem ser invocados para interpretar um texto que é em si suficientemente claro Ver por exemplo Interpretation of the Statute of the IMemel Territory PCI J série AB n 47 p 249 e Emptoyment of Women during the Night PCIJ série AB n 50 p 378 0 Talvez tenhamos que excetuar as designações individuais Inomes e os números 166Alf Ross quando mais ou menos fortuitamente refletem o método seguid prática pelos tribunais tais diretivas carecem de valor para com ender o direito positivo e para prever decisões jurídicas futuras Nosso problema é de natureza analíticodescritiva isto é proc mos descrever como ocorre na prática a interpretação Uma an mais radical se enquadra no estudo doutrinário de um sistema jur específico Uma teoria geral do método só pode mostrar os fat gerais que operam em toda administração da justiça e esboçar tipologia geral a fim de caracterizar as variedades de estilo de mé e interpretação existentes Ademais essa descrição e tipologia sã quisito prévio essencial de um exame políticojurídico racional do rr do Sem a compreensão do que realmente ocorre na administraçã justiça falta a base necessária para estabelecer objetivos de po jurídica bem fundados a respeito de como deve ocorrer tal tarefa Em primeiro lugar é essencial ter uma clara idéia da atividad juiz quando se defronta com a tarefa de interpretar e aplicar a um caso específico Nosso ponto de partida é que a tarefa do juiz é um probl prático O juiz tem que decidir se utilizará ou não força contra c mandado ou o acusado Decerto o conhecimento de diversas c os fatos do caso o conteúdo das normas jurídicas etc desempe um papel nessa decisão e nessa medida a administração da ju se funda em processos cognitivos Entretanto isto não modifi fato de que a administração da justiça mesmo quando seu cam é preparado por processos cognitivos é por sua própria natui indubitavelmente uma decisão um ato de vontade Como toda decisão deliberada ver mais detalhadamente no p grafo 70 ela surge de um substrato da consciência constituído dois componentes I oum motivo que concede à atividade sua ção na busca de uma meta e 2o certas concepções operativas é elementos cognitivos que dirigem a atividade rumo a tal meta ilustrar este ponto minha decisão de sair com guardachuva part desejo de não me molhar como motivo em conexão com a con ção operativa de que provavelmente choverá e de que o guc A antiga teoria positivistamecanicista da função da administr da justiça oferecia um quadro muito simples desses componei chuva é um instrumento de proteção Direito e Justiça 167 Supunhase que o motivo era ou devia ser a obediência à lei isto é uma postura de acatamento e respeito em relação ao direito vigente concebido como vontade do legislador Supunhase que as concep ções operativas consistiam em um conhecimento do verdadeiro signi ficado da lei e dos fatos comprovados O significado de uma lei de certo não é sempre claro não raro tem que ser descoberto mediante interpretação mas a interpretação segundo esse ponto de vista é fundamentalmente uma tarefa teóricoempírica Pode ocorrer que não se possa estabelecer com certeza o significado e que em razão disso o juiz disponha da liberdade para estimar o que é que nas circunstân cias deve ser presumido como o mais provável Porém uma incerteza desse calibre caracteriza muitos outros problemas cognitivos e não afeta o caráter teórico da interpretação Segundo esse quadro da administração da justiça o juiz não valora nem determina sua postura ante a possibilidade de interpretações diferentes O juiz é um autômato Temse como pacífico que é neces sário que se ajuste à lei e sua função se limita a um ato puramente racional compreender o significado da lei e comparar a descrição desta dos fatos jurídicos aos fatos do caso que ele tem diante de si Esse quadro não se assemelha em nada com a realidade É equívoco e para percebêlo basta assinalar que a interpretação no sentido de determinação do significado como fato empírico amiúde não conduz a qualquer resultado certo ver parágrafo 24 A inevitável imprecisão das palavras e a inevitável limitação da profun didade intencional fazem com que freqüentemente seja impossível estabelecer se o caso é abarcado ou não pelo significado da lei O caso não é óbvio É plausivelmente possível definir o significado das palavras de tal modo que os fatos acabem abarcados pela lei Porém também é possível de forma igualmente plausível definir o significa do das palavras de tal modo que o caso saia do campo de referência da lei A interpretação em sentido próprio ou seja como atividade cognitiva que só busca determinar o significado como fato empírico tem que fracassar Entretanto o juiz não pode deixar de cumprir sua tarefa Tem que escolher e esta escolha terá sua origem qualquer que seja seu conteúdo numa valoração Sua interpretação da lei num sentido mais amplo é nessa medida um ato de natureza construti va não um ato de puro conhecimento Seus motivos não se reduzem ao desejo de acatar uma determinada diretiva 168 Alf Ross Mas esse quadro é falso ainda num outro aspecto já que se baseia numa apreciação da atividade do juiz que é psicologicamente insustenJ tável O juiz é um ser humano Por trás da decisão tomada encontrase toda sua personalidade Mesmo quando a obediência ao direito a consj ciência jurídica formal esteja profundamente enraizada na mente do juiz como postura moral e profissional ver nesta o único fator ou móvel é aceitar uma ficção O juiz não é um autômato que de forma mecânica transforma regras e fatos em decisões É um ser humano que presta cuidadosa atenção em sua tarefa social tomando decisões que sente ser corretas de acordo com o espírito da tradição jurídica e cultural Seul respeito pela lei não é absoluto A obediência a esta não constitui o único motivo Aos seus olhos a lei não é uma fórmula mágica mas uma mani festação dos ideais posturas padrões ou valorações que denominamos tradição cultural parágrafo 19 Sob o nome de consciência jurídica material essa tradição vive no espírito do juiz e cria um motivo passível de entrar em conflito com a consciência jurídica formal e sua exigência de obediência ao direito A crítica do juiz pode dirigirse assim contra aaj decisão no caso específico que ele sente como injusta não obstante aprove a regra ou pode dirigirse contra a própria regra A crítica poctej surgir na consciência do juiz como uma reação emocional espontânea ou resultar de uma análise consciente dos efeitos da decisão realizada em relação a padrões pressupostos Em todos os casos essas atitudes atuam participativamente na mente do juiz como um fator que motiva sua decisão Na medida do possível o juiz compreende e interpreta a leig à luz de sua consciência jurídica material a fim de que sua decisão possa ser aceita não só como correta mas também como justa ou socialmente desejável Se a divergência entre a consciência jurídica formal e a mate rial exceder certo limite pode até ser que o juiz prescinda de restrições obviamente impostas pelas palavras ou pela intenção do legislador Suai interpretação construtiva neste caso não se reduz a buscar uma maiorj precisão mas retifica os resultados alcançados por uma interpretação da lei que simplesmente averiguasse o que esta significa j Podese assim dizer que a administração da justiça é o resultante de um paralelogramo de forças no qual os vetores dominantes são al consciência jurídica formal e a consciência jurídica material A decisãoj obtida é determinada pelo efeito combinado da interpretaçãoj cognoscitiva da lei e da atitude valorativa da consciência jurídica11 i 11 Isto não significa que os dois vetores apareçam na mente do juiz como motivos independentes a serem subsa qiientemente contrabalançados entre si Isto poderia ocorrer porém é mais provável que se fundissem na ativi dade subconsciente do juiz Direito e Justiça 169 Seria errôneo limitar a atividade valorativa àquelas ocasiões relativa mente raras nas quais ela se manifesta como desvio do resultado a que conduziria uma interpretação meramente cognoscitiva da lei A consciência jurídica material está presente em todas as decisões Se na maioria dos casos o juiz decide dentro do campo da interpretação cognoscitiva é indício de que sua consciência jurídica julgou possível aprovar a decisão ou em todo o caso não a considerou incompatível com o justo ou o socialmente desejável num tal grau que tornasse necessário recorrer a algum expediente para livrarse das amarras da lei Se os postulados políticojurídicomorais de sua consciência jurídi ca tivessem levado o juiz a considerar que a decisão era inaceitável este teria podido também mediante uma argumentação adequada descobrir a via para uma melhor solução A despeito de ser a tarefa de administrar justiça muito mais ampla do que a de interpretar a lei no autêntico sentido desta expressão é não obstante comum usar a palavra interpretação para designar a atividade integral do juiz que o conduz à decisão inclusive sua ativi dade crítica inspirada por sua concepção dos valores jurídicos que emerge a partir de atitudes que transcendem o mero respeito pelo texto da lei Este uso lingüístico responde ao desejo de ocultar a função criadora do juiz preservando a aparência de que ele não pas sa de um portavoz da lei O juiz não admite abertamente portanto que deixa o texto da lei de lado Graças a uma técnica de argumenta ção que foi desenvolvida como ingrediente tradicional da administra ção da justiça o juiz aparenta que por meio de várias conclusões sua decisão pode ser deduzida da verdadeira interpretação da lei para detalhes adicionais ver parágrafo 30 Podemos de maneira definitiva dizer que a administração do di reito não se reduz a uma mera atividade intelectual Está enraizada na personalidade total do juiz tanto em sua consciência jurídica for mal e material quanto em suas opiniões e pontos de vista racionais Tratase de uma interpretação construtiva a qual é simultaneamen te conhecimento e valoração passividade e atividade Para atingir uma verdadeira compreensão da função do juiz é im portante ressaltar essa dupla natureza Contudo ao mesmo tempo é preciso reconhecer que a distinção entre a função cognoscitiva e a valorativa é artificial na medida em que ambas se fundem na prática o que impossibilita afirmar com precisão onde uma termina e começa i1 a outra Assim é porque é impossível para o próprio juiz bem como para os demais distinguir entre as valorações em que se manifestair as preferências pessoais do juiz e as valorações atribuídas ao legisla dor as quais são portanto dados para uma interpretação puramentd cognoscitiva Tal como salientamos no parágrafo 24 a funçãoj determinativa de significado do contexto consiste no próprio fato de proporcionar um fundamento para presumir o que é que o autor pode razoavelmente ter querido dizer na situação dada Do mesmo modo toda interpretação jurídica em sentido próprio inclui presunções quéj tangem aos critérios e valores sociais que motivaram o legislador Se aj juiz errônea ou acertadamente identifica suas próprias valorações com as do legislador os dois tipos de interpretação se flindem em seu espí rito A situação encontra paralelo naquilo de que falamos na parte fina do parágrafo 9 ao nos ocuparmos do limite impreciso entre a intenção teóricojurídica e a intenção políticojurídica contidas na doutrina Disto se conclui que existe um limite fluido entre aaqueles casos em relaçãOj aos quais o juiz crê que há na própria lei ou em sua história legislativa certos elementos que provam que sua interpretação concorda com a intenção do legislador b aquelescasos em relação aos quais acerta da ou erroneamente e sem ter clara consciência disto o juiz identifica suas próprias atitudes pragmáticas com as do legislador e finalmente c aqueles casos em relação aos quais o juiz se dá conta de que está interpretando a lei à luz de idéias que não podem ser atribuídas adj legislador e que inclusive possivelmente se acham em oposição dire4 ta às intenções do legislador í Nas páginas anteriores enunciamos os fatores gerais que estão prei sentes em toda administração da justiça por um lado uma atividadd puramente cognoscitiva que colima expressar certos dados por outroi uma atividade emotivovolitiva fundada em valorações sociais e em observações sociológicojurídicas Entretanto é possível distinguir ntl âmbito dessa estrutura diversos tipos de estilos de interpretação que variam com a força relativa de cada um desses fatores e com os dados que convencionalmente são levados em consideração no caso da interi pretação da lei em sentido próprio o fator cognoscitivo a De acordo com o grau de liberdade que o juiz se atribui nat interpretação da diretiva da lei à luz das reclamações da consciência jurídica material e das exigências sociais podese distinguir entre un estilo de interpretação relativamente livre e um estilo relativamente 170 Alf Ross Direito e Justiça 171 limitado Todavia é difícil decidir se a diferença de estilo é tão grande como pode parecêlo à primeira vista É possível que a diferença não esteja tanto no grau de liberdade de que goza o juiz quanto na fran queza com que essa liberdade é reconhecida Em torno de meados do século passado se desenvolveu na França e na Alemanha um estilo de interpretação claramente limitado Em harmonia com uma doutrina das fontes do direito estritamente positivista quisse criar a aparência de que em todos os casos era possível derivar uma decisão da lei com a ajuda da interpretação lingüística e dos métodos lógicos de inferência ou construíla por dedução a partir de conceitos jurídicos pressupostos Jurisprudência de concepções ou jurisprudência mecânica12 Próximo ao fim do sé culo passado e no início do presente século uma forte oposição sur giu nesses dois países Na França ficou conhecida como ie combat pour ia méthode e na Alemanha como die Freirechtsbewegung13 O método tradicional foi qualificado de reverência aos textose de cons trução de conceitos formaiistas 14 E seus opositores exigiam que o juiz tivesse uma maior liberdade para inspirarse na vida nas neces sidades e nos interesses práticos Esta exigência estava combinada a idéias de um direito naturai desenvolvido pela ciência segundo fun damentos filosóficos ou sociológicos visando a complementar o direi to positivo ia libre recherche scientifique das freie Recht Não é fácil decidir em que medida esse movimento constituiu expressão de uma exigência genuinamente políticojurídica em prol de um novo espírito na administração do direito e em que medida foi meramente uma transação na esfera da teoria jurídica com as ficções formaiistas da interpretação então corrente15 Ou seja século XIX M T 12 Ver também Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 caps II 3eVI 6 Ou seja séculos XIX e XX W T I 13 Ver também ibid caps III 49 e VII com bibliografia detalhada 14 Um exemplo típico é a seguinte caricatura da concepção positivista do juiz Este douto alto funcionário está sentado em sua cela armado somente com uma calculadora embora certamente da melhor qualidade 0 único móvel da sala é uma mesa verde sobre a qual se encontra diante dele o código Podemos colocar diante de seus olhos qualquer caso real ou fictício e ele poderá pois tal é seu dever estabelecer com exatidão absoluta a decisão predeterminada pelo legislador utilizando tãosó operações lógicas e uma técnica secreta que apenas ele entende Gnaeus Flavius Der Kampf um die Rechtswissenschaft 1906 7 15 Como produto extremado das idéias do direito livre costumase citar o juiz francês Magnaud que na última década do século passado foi presidente do tribunal de ChâteauThierry Por suas decisões caracterizadas por grande humanidade e escasso respeito è letra da lei granjeou o apelido de ie bon juge Cf H Leyret Les Jugements du président Magnaud 1900 172Alf Ross bj Outra diferença de estilo de interpretação é a amplitude em que se tomam em consideração elementos de juízo alheios às palavras da lei No parágrafo 24 foi examinada a diferença entre a chamada interpreta ção subjetiva e a objetivar de acordo com isto podese formular uma distinção entre o estilo subjetivo e o objetivo de interpretação da lei É inconcebível um estilo de interpretação completamente objetivo no sen tido de que se funde exclusivamente nas palavras da lei A atitude do juiz em relação à lei será sempre influenciada por uma série de fatores produtos da situação e pela conexão entre a lei e o resto do direito Jamais será possível evitar levar em consideração que o texto que tem diante de seus olhos não é uma peça de ficção nem um artigo científico mas precisamente uma lei isto é um instrumento de direção política que nasce do seio de interesses e idéias conflitantes e que aponta para certos objetivos sociais A compreensão da lei por parte do juiz depende rá sempre de sua compreensão dos motivos e propósitos da lei O que distingue um estilo subjetivo de um estilo objetivo de interpretação é realmente apenas que de acordo com o primeiro e não de acordo com o segundo a história legislativa é admitida como evidência para expor o propósito da lei e projetar luz sobre as minúcias de seu significado Essa distinção entre interpretação subjetiva e objetiva não coinci de com a distinção entre interpretação livre e limitada A primeira se refere ao modo em que a interpretação ocorre em sentido próprio a segunda ao grau de liberdade com o qual o juiz reage ante os resul tados dessa interpretação Há contudo uma conexão entre ambas Exatamente porque a interpretação objetiva rejeita certos dados de interpretação os antecedentes da lei e se atém exclusivamente ao próprio texto conduzirá freqüentemente a resultados menos preci sos que a interpretação subjetiva deixando assim maior raio de a cance para a liberdade do juiz Num certo sentido conseqüentemen te a interpretação objetiva é mais subjetiva do que a subjetiva De que modo os antecedentes da lei podem proporcionar informa ção sobre as intenções do iegisiadofí Se o legislador fosse um indiví duo particular que elaborasse suas próprias leis por si não haveria problemas Porém na realidade não há esse legislador unipessoal e as leis bem como o material explicativo delas são em grande medi da o produto do trabalho de pessoas que não integram a legislatura O único item decisivo para a aprovação de uma lei é o que o texto em sua versão final obtenha o número exigido de votos no Parlamento Direito e Justiça 173 A real vontade do legislador se encontra em última instância nos membros da Câmara que votaram o projeto de lei Entretanto como é possível que a história do projeto forneça informação acerca das atitudes dessas pessoas que talvez nem sequer o conheçam mas que como coisa rotineira se limitaram a votar a seu favor A resposta se acha talvez numa convenção Uma vez admitida a importância dos antecedentes legislativos tal convenção servirá de base para a conclusão razoável de que a passividade dos membros que votaram pode ser considerada como expressão da aprovação das opi niões explicativas da lei formuladas no curso do processo de sanção da lei Isto porque de acordo precisamente com essa convenção os mem bros da legislatura têm um motivo para se familiarizarem com o que ocorre durante esse processo e se não se opõem ao expresso no curso do processo tal atitude será interpretada como aprovação Podese também dizer que o que se submete à votação não é unicamente o texto mas o texto à luz das notas explicativas que o acompanham e de outras partes dos antecedentes da lei Em conformidade com esses pontos de vista diversas circunstân cias influem no peso que se concede às diversas partes dos antece dentes legislativos A importância das notas do projeto depende da medida em que este foi modificado durante sua passagem pelo Parla mento As notas não são reescritas em caso de modificação do proje to Quanto mais meticulosamente tenha sido preparado o projeto particularmente se preparado por uma comissão de especialistas maior é o peso atribuído às notas que o acompanham Dada a impor tância do trabalho da comissão para a redação de um projeto de lei se confere em geral maior peso às manifestações contidas num re latório da comissão do que aos pronunciamentos da Câmara Não se pode negar que a interpretação subjetiva se traduz em incerteza Dificulta aos cidadãos saber como devem se comportar Esta circunstância e a tradicional aversão dos ingleses ao direito le gislado que é considerado uma intrusão no território da common iaW explicam porque a teoria jurídica inglesa somente admite um uso bastante limitado da história da lei para a interpretação desta Os relatórios diários das sessões do Parlamento não são reconhecidos como evidência do propósito de uma lei e o relatório de uma Comis são Real só pode ser utilizado para mostrar em que estado de encon trava o direito antes da aprovação da lei Os juizes ingleses portanto 174 Alf Ross têm que formar opinião a respeito dos propósitos da lei unicamente com base na própria lei16 Na Europa continental e nos Estados Unidos é usual reconhecer os antecedentes da lei como dados de interpretação Está claro que isto não significa que a história da lei seja obrigatória para o juiz constitui apenas na interpretação em sentido próprio um elemento entre outros que pode ser contrabalançado por valorações e considerações em sentido contrário Quanto mais livre for a interpreta ção mais facilmente poderá suceder que o juiz chegue a desconsiderar as claras manifestações que aparecem nos antecedentes legislativos Estes são primariamente importantes para a escolha entre alternati vas quando o juiz não tem uma preferência particular Os antecedentes legislativos tornamse menos importantes à me dida que a lei envelhece A interpretação subjetiva da lei assume então o caráter de interpretação histórica da lei Apesar de certas idéias dogmáticas referentes à vontade do legislador é praticamente inevitável que o juiz resista ao poder dos mortos se as condições da vida presente favorecerem uma interpretação animada por um novo espírito17 Isto tem maior relevância para a interpretação das leis constitucionais que amiúde permanecem estáticas enquanto as con dições da vida política permanecem evoluindo Em tais circunstâncias pode ocorrer uma ampla Verfassungswandunçf8 ou metamorfose da Constituição sem que se opere nenhuma mudança do seu texto í 29 OS FATORES PRAGMÁTICOS NA INTERPRETAÇÃO Nos parágrafos 24 e 27 salientouse que toda interpretação tem seu ponto de partida na expressão como um todo em combinação com o contexto e a situação nos quais aquela ocorre É pois errôneo crer 16 Ver por exemplo G W Paton Jurisprudence 1946 191 W Friedmann Legal Theory 12 ed 1949 282 C K Allen Law in the Making 4 ed 1946 404 e segs 17 BallotBeaupré presidente da Courde Cassation por ocasião do centenário do Code Civil em 1905 expressou veementemente esse ponto de vista nas seguintes palavras tantas vezes citadas 10 juiz não deve se deixar levar por uma busca obstinada do que era há cem anos a idéia dos autores do Código deve perguntarse qual seria essa idéia se eles tivessem que redigir atualmente o mesmo artigo deve compreender que levando em conta todas a l mudanças ocorridas durante um século na moral nas instituições e nas condições econômicas e sociais da França a justiça e a razão exigem uma adaptação liberal do texto às realidades e ès necessidades da vida moderna 18 Georg Jellinek Verfassungsànderung und Verfassungswandlung 1906 Direito e Justiça 175 que o ponto de partida são as palavras individuais consideradas em seu significado lingüístico natural Este significado lingüístico é ampla mente aplicável porém tão logo uma palavra ocorre num contexto seu campo de referência fica restrito Por exemplo a palavra casa de um ponto de vista puramente lingüístico o que não pode abarcar Entretanto se aparecer numa lei da habitação a maioria dessas possi bilidades ficarão automaticamente excluídas parágrafo 27 Sugeriuse também que a função determinativa de significado do contexto consiste no fato de que o contexto oferece uma base para conclusões acerca do que o autor razoavelmente pode ter querido dizer Especificamente ao interpretar as leis razoável significa o que é na prática razoável A interpretação se baseia aqui na suposição de que o legislador quis sancionar disposições que em seus efeitos práticos se harmonizassem com as exigências valorações ou atitu des que presumivelmente gravitavam em torno dele Os fatores pragmáticos na administração da justiça são considera ções baseadas numa valoração da razoabilidade prática do resultado apreciado em relação a certas valorações fundamentais pressupostas Os fatores pragmáticos são colocados aqui em contraste com os fatores puramente lingüísticos Sua influência se faz sentir num grau muito superior ao que geralmente se admite Como regra o zero na escala de medida da interpretação pragmática se coloca no nível do sentido lingüístico natural em consonância com o significado usual das pala ssTodavia como afirmamos há pouco parágrafos 24 e 25 esse próprio padrão está na realidade colorido ainda que de forma mais ou menos inconsciente pela razoabilidade prática do resultado Por exem plo se uma regra constitucional estabelece que cada Câmara designará quinze membros para formar uma comissão fica claro que isso significa quinze membros da Câmara pertinente e não por exemplo quinze membros de um clube desportivo Isto é tão óbvio que temos que fazer um esforço para perceber que seria possível tomar a regra num sentido distinto desse sentido óbvio Entretanto é verdadeiro que neste e em inúmeros casos similares a interpretação se acha codeterminada por considerações pragmáticas sob forma de senso comum Conseqüentemente é imperioso que afirmemos claramente que a interpretação não tem ponto de partida lingüístico independente mas que desde o início é determinada por considerações pragmáticas sob a forma do senso comum 176 Alf Ross Na seqüência contudo deixaremos de lado os fatores pragmáti cos implícitos no simples senso comum e nos ocuparemos unicamen te dos fatores pragmáticos superiores que assomam como delibera ções a respeito das conseqüências que uma certa interpretação acar retará estimadas e mutuamente ponderadas à luz de valores funda mentais Este tipo de raciocínio é o que estamos habituados a chamar de argumentos baseados em considerações práticas razão No que toca a isto não há diferença fundamental entre a argumentação po líticojurídica de iege ferenda e de sententia ferenda A diferença con siste exclusivamente nos limites estabelecidos pelas palavras da lei à liberdade de ação na administração de justiça Seria impraticável enumerar ou classificar as possíveis valorações na interpretação pragmática A interpretação pragmática pode consi derar não só os efeitos sociais previsíveis como também a acuidade técnica da interpretação e sua concordância com o sistema jurídico e as idéias culturais que servem de base a esse sistema Destacamos neste ensejo unicamente o ponto de vista negativo a saber que a interpretação pragmática não pode ser identificada com a interpreta ção do ponto de vista do propósito ou linha de orientação de uma lei e que a expressão corrente interpretação teleológica é portanto de masiado restrita Primeira ainda que o propósito de uma atividade possa ser esta belecido de forma inequívoca não proporciona a única orientação para essa atividade visto jamais ocorrer que uma pessoa persiga um só propósito com exclusão de todas as considerações restantes Por exemplo se o propósito ao construir uma ponte é criar melhores meios de comunicação entre duas regiões de um país este propósito requer que a ponte seja o mais útil possível Porém esta exigência tem que ser contrabalançada por considerações tais como custo pos sível interferência com a navegação razões estéticas exigências mi litares e políticas interesses locais e muitas outras O propósito indica o efeito diretamente almejado É contudo também necessário levar em conta os diversos efeitos incidentais em outras direções Coisa idêntica ocorre com a atividade que consiste em legislar e executar a lei Aqui tampouco é possível conservar o olhar rigorosamente fixo na ratio isolada da lei individual sendo mister adotar abordagens valorativas mais amplas Direito e Justiça 177 Segunda é impossível com freqüência estabelecer sem ambi güidade o propósito de uma lei Sobre uma base subjetiva talvez seja possível obter informações a respeito daquilo que o legislador se propôs realizar19 Todavia se a história legislativa se mantém silente a esse respeito ou se princípios objetivos de interpretação são seguidos como poderseia obter semelhante informação Quais dos efeitos calculáveis serão eleitos como o propósito da lei Em tais condições o propósito da iei é em maior ou menor medida uma construção arbitrária Finalmente é freqüente ser impossível atribuir algum propósito a uma lei Há um propósito evidente sem dúvida naquelas medidas mediante as quais o legislador de nossos dias intervém de forma técnica e administrativa na vida da comunidade leis econômicas leis reguladoras do comércio e da indústria medidas de justiça social leis relativas à construção civil à saúde etc Por outro lado parece im possível perceber algum propósito nas normas concernentes a nos sas instituições legais centrais as quais estão profundamente arrai gadas na tradição cultural Por exemplo qual o propósito de nossas leis relativas ao casamento divórcio propriedade e herança Qualquer coi sa que se possa dizer a respeito disso é trivial ou padece de obviedade Por exemplo que o propósito das regras do divórcio é habilitar as pes soas a ter um razoável acesso ao divórcio O fato é que as instituições legais fundamentalmente existem como postulados culturais a título próprio e não porque servem a algum propósito social Em resumo a interpretação pragmática é a integração de uma multiplicidade de valorações e o propósito da lei indica somente uma consideração única dentro dessa multiplicidade Se apesar disso se prefere usar a expressão interpretação teleológica em lugar de inter pretação pragmática é mister enfatizar que tetos não designa o pro pósito isolado da lei individual mas parspro toto se refere a todas as considerações admissíveis De acordo com o resultado da interpretação comparado com os significados lingüísticos naturais úo texto a interpretação pragmática pode ser especificadora restritiva ou extensiva 19 Às vezes o próprio texto legal contém tal informação Alf Ross está escrevendo estas linhas no início da década de 50 do séc XX W T 178Alf Ross a A interpretação especificadora tem lugar quando as considera ções pragmáticas são decisivas para a eleição entre várias interpreta ções todas elas possíveis e razoáveis dentro do significado lingüístico naturai do texto A eleição pode referirse a dúvidas interpretativas de natureza sintática lógica ou semântica as últimas podem consis tir em ambigüidade ou em imprecisão O escritor norueguês Per Augdahl cita um curioso exemplo de uma ousada interpretação pragmática especificadora Durante a guerra entre a Noruega e a Inglaterra uma ordem de 1807 declarou que entre outras coisas as sease t0mmereram contrabando de guerra coisas que podem ser apreendidas como presas T0mmer é uma palavra ambígua Pode significar madeira ou rédeas Um navio neutro transportando uma carga de vigas mastros botalós etc que nave gava rumo a Inglaterra foi capturado por um corsário norueguês levado a Kristiansand e submetido ao tribunal de presas local Era essa carga uma presa De acordo com o contexto da ordem ficava inegavelmente claro que o sentido que se quis exprimir era o de rédea e o tribunal de presas em conformidade com isto liberou o navio Entretanto a Suprema Corte do Almirantado ao conhecer da apelação declarou que o navio era uma presa Tratavase de uma guerra naval e a Noruega nada tinha a temer da cavalaria inglesa Mas mastros e botalós eram indispensáveis à frota britânica Levan do em conta estes antecedentes não seria possível supor que a pala vra t0mmerse referisse a rédeas b Falase de interpretação restritiva quando as considerações prag máticas excluem a aplicação de uma regra que segundo o sentido lingüístico natural seria aplicável Podese aqui distinguir duas cate gorias subordinadas I ak interpretação restritiva de propósito ocorre quando a aplica ção da regra é supérflua para a consecução do propósito da lei Por exemplo de acordo com a Constituição dinamarquesa toda pessoa que é presa deve ser levada à presença do juiz dentro de vinte e quatro horas Quando se supõe que o propósito dessa disposição é proporcionar aos cidadãos segurança contra restrições à liberdade que excedam a um período bastante curto será desnecessário apre sentar o prisioneiro aos tribunais quando a polícia estiver disposta a pôlo em liberdade antes de terem transcorrido vinte e quatro horas A disposição é pois interpretada restritivamente Direito e Justiça 179 2 a A interpretação restritiva de exceção é motivada por conside rações contrárias apesar do fato de que o caso em si mesmo esteja compreendido pelo propósito da disposição Se as considerações con trárias encontraram expressão em outras regras de direito sobrepos tas essa interpretação se confundirá com a que ocorre nos casos de sobreposição de regras parágrafo 26 É difícil dar exemplos claros desse tipo de interpretação pois nor malmente os tribunais não se mostram dispostos a admitir aberta mente que estão restringindo a esfera de atuação da lei Preferem dizer ao contrário que não é possível supor que o propósito da eou a intenção do legislador é que ela se aplique a um caso como o que têm de decidir Tal como observamos há pouco essas expressões teleológicas são utilizadas para encobrir considerações pragmáticas do tipo mais reservado O juiz atribui cortesmente à vontade real ou hipotética do legislador tudo aquilo que ele julga correto c Falase de interpretação extensiva interpretação por analogia quando as considerações pragmáticas se traduzem na aplicação da regra a situações que contempladas à luz do sentido lingüístico natu ral se encontram claramente fora de seu campo de referência À primeira vista poderíamos nos achar inclinados a supor que a interpretação extensiva é análoga à interpretação restritiva Porém um exame mais detido nos demonstra que as coisas não são assim Considerandose o propósito amiúde afigurase bastante claro que em certos casos para realizálo não é necessária determinada reação jurídica e que portanto uma interpretação restritiva é a indicada Por outro lado raramente será necessária uma interpretação extensiva para fazer com que uma regra de direito atinja seu propósito pressuposto Nesta situação é preciso contemplar a possibilidade de que a restrição tenha sido motivada intencionalmente por considerações contrárias Sustentar que essas considerações contrárias não prevalecem e que portanto a regra deve ser extensiva requer uma investigação mais minuciosa e denota uma valoração muito mais radical da regra jurídica Também a interpretação restritiva de exceção freqüentemente aparece como algo óbvio o que não ocorre na interpretação extensiva O problema subjacente à interpretação extensiva interpretação por analogia pode ser descrito da maneira que se segue Se segundo seu sentido lingüístico natural uma regra se aplica à esfera A sua extensão à esfera B pressupõe 180 Alf Ross 1 Que atua uma valoração jurídica em favor da aplicação da regra à esfera B Essa valoração pode fundarse em particular na concep ção de que a regra é uma formulação parcial uma revelação incom pleta e esporádica de um ponto de vista mais geral 2 Que não há diferenças entre A e B que possam justificar o tratamento distinto dos dois casos Se por exemplo uma lei antiga utiliza palavras tais como ele e homem podese sustentar que no direito atual já não subsiste a diferenciação jurídica entre homens e mulheres e que a lei portanto deve estenderse por analogia às mulheres Dizse habitualmente que só é possível extrair uma analogia de A para B se B não estiver já compreendido por uma lei Todavia esse critério não é acatado na prática e não parece estar justificado É preciso pressupor que a relação entre a regra analógica e uma regra legislativa existente que se refere ao mesmo caso será decidida como outros casos de conflito de normas Nada impedirá por exem plo a extensão por analogia de uma regra de exceção mesmo o caso estando compreendido pela regra geral anterior d Não há outras variantes possíveis além das mencionadas em a b e c Uma interpretação comparada ao sentido natural é especificadora restritiva ou extensiva O tipo de interpretação conhe cido como conclusão a contrario não é uma nova variedade de inter pretação pragmática superior mas simplesmente uma parte do senti do natural ou uma rejeição da extensão por analogia Podese falar em conclusão a contrario espúria quando um signifi cado conforme o uso lingüístico costumeiro é expresso indiretamen te mas sem ambigüidade Se dizemos dez candidatos comparece ram para o exame e um deles foi aprovado isto claramente significa que os outros nove foram reprovados Seria fantasioso afirmar que o enunciado só exprime que um foi aprovado e que portanto não ex clui a possibilidade de que talvez outros também tenha obtido apro vação Na linguagem jurídica encontramos com freqüência uma for ma similar de expressão Quando por exemplo dispõese que uma pessoa adquire a maioridade ao cumprir dezoito anos isto significa sem dar margem a dúvidas que até então era menor de idade Neste caso e em casos similares a conclusão ao contrário é simplesmente parte da interpretação lingüística geral Direito e Justiça 181 Contudo uma conclusão a contrario real isto é que transcende uma interpretação lingüística geral não é uma conclusão em sentido autêntico Significa apenas que o conteúdo de uma regra jurídica é aplicável unicamente com certa limitação excluindo de tal modo a interpretação extensiva por analogia relativamente a essa limitação Uns poucos exemplos deixarão isto mais claro Suponhamos que uma lei diz que uma promessa ilegitimamente obtida por meio de força não é obrigatória para a pessoa que foi coagida a formulála se o próprio beneficiário da promessa exerceu a violência ou sabia ou deve ter sabido que foi arrancada por um terceiro naquelas circunstâncias Cos tumase dizer que disso se pode inferir a contrario que a promessa é obrigatória se o beneficiário atuou de boa fé Ora posto que a referida lei se apresenta como uma exceção à regra geral principal concernente à força obrigatória das promessas a inferência simplesmente significa que entendemos a exceção com a limitação dada de que o beneficiário tenha atuado de má fé com o que rejeitamos a possibilidade de esten der a regra por analogia a casos de boa fé Do mesmo modo se uma lei regulamenta os casos em que o matrimônio pode ser dissolvido presumivelmente se concluirá a contrario que um casamento não pode ser dissolvido em outros casos Entretanto isto apenas significa a rejei ção da extensão por analogia dos casos de dissolução Em conexão com o critério geral de que o casamento não pode ser dissolvido salvo quando a lei o autorize essa rejeição conduz a tal resultado Nos documentos legislativos sistemáticos a conclusão a contrario se baseia na suposição de que a lei foi concebida com tanto escrúpulo que suas normas relativas a exceções condições e assim por diante podem ser consideradas exaustivas Há contudo casos nos quais a mesma lei ou suas notas explicativas indicam o contrário Podese dizer que podemos optar diante do texto de uma lei entre deduzir uma conclusão por analogia ou realizar uma conclusão a con trario Do que foi dito ficará claro que na realidade optamos entre fazer ou não fazer uma interpretação extensiva por analogia 30 OS FATORES PRAGMÁTICOS E A TÉCNICA DE ARGUMENTAÇÃO O papel criador desempenhado pelo juiz na administração da justiça ao definir com mais precisão ou retificar a diretiva da lei manifestase 182 Alf Ross raramente Comumente o juiz não admite que sua interpretação te nha esse caráter construtivo mas por meio de uma técnica de argu mentação procura fazer ver que chegou a sua decisão objetivamente e que esta é abarcada pelo significado da iei ou pela intenção do legislador Cuida de preservar ante seus próprios olhos ou pelo me nos ante os olhos dos demais a imagem examinada no parágrafo 28 ou seja que a administração da justiça é somente determinada pelo motivo da obediência ao direito em combinação com uma percepção racional do significado da lei ou da vontade do legislador Uma vez os fatores de motivação combinados as palavras da lei as considerações pragmáticas a avaliação dos fatos tenham produ zido seu efeito na mente do juiz e o influenciado a favor de uma determinada decisão uma fachada de justificação é construída amiú de discordante daquilo que na realidade o fez se decidir da maneira que decidiu20 Se o juiz se limitar a aplicar a lei aos claros casos referenciais se manterá preso às palavras literais da lei atitude que possivelmente se liga à rejeição de uma concebível restrição dela para o que aplica por analogia outras normas jurídicas Por outro lado se o juiz desejar tomar uma decisão que se situa na zona duvidosa da regra interpre tação especificadora ou que inclusive é contrária ao signifícadú lingüístico natural interpretação restritiva ou por extensão buscará apoio para o resultado desejado onde quer que possa encontrálo Se o relatório da comissão dos redatores da lei puder lhe oferecer tal apoio ele o citará se não puder oferecêlo ele o ignorará Quando há sobreposição de regras o juiz goza de grande liberdade pois lhe é oferecida uma larga possibilidade para justificar o resultado deseja do Acresçase a isso que a interpretação restritiva pode ser obtida recorrendose ao propósito provável da lei As interpretações extensi vas apóiamse no argumento de que as condições para o uso da 20 As observações seguintes feitas pelo juiz Bernard Botein TrialJudge 1952 52 ilustram a função do juiz embora ainda preso à ficção de que o juiz apenas molda o direito 0 juiz começa por investigar os fatos em seguida investiga o direito e por último sonda sua própria alma Se todas as três investigações apontarem na mesma direção sua tarefa será fácil mas se divergirem ele não poderá ir muito longe As leis não são feitas para serem violadas pelos juizes mas em mãos sensíveis apresentam uma certa tolerância elástica que lhes permite ceder para dar conta de uma situação especial A lei ricocheteará quando demasiadamente pressionada por um juiz insensível que a manuseie com violência Pode ser deformada por um juiz impulsivo 0 juiz experiente moldará a lei no âmbito da tolerância desta de modo a ajustála aos contornos do caso particular 0 juiz preciso e meticuloso não verá esses contornos devido à inflexível severidade de seu prumo Direito e Justiça 183 analogia estão reunidas Se nenhuma outra possibilidade ocorrer ao juiz este poderá recorrer a meros postulados relativos à suposta in tenção do legislador presumindo simplesmente que é forçoso ter ele desejado o que é desejável para o próprio juiz O segredo dessa técnica de argumentação consiste em não haver critério que indique qual regra de interpretação deverá ser emprega da Quando são decisivas as manifestações feitas durante o processo de sanção da lei Quando não há considerações de suficiente peso para desconsiderálas Quando usar a analogia quando a conclusão a contrario Numa certa medida a escolha pode ser motivada pelos dados da interpretação Tal como se afirmou anteriormente o caráter sistemático de uma lei pode ser uma forte razão em muitos casos incontroversa para rejeitar a extensão por analogia Independente mente disto não há critério externo que indique quando devemos recorrer à inferência por analogia e quando à inferência a contrario É comum ter como pacífico que a proibição de levar cães em bondes tem que ser interpretada por analogia no sentido de que inclui tam bém os macacos ou ursos ou outros animais que provocam os mes mos inconvenientes Entretanto segundo as circunstâncias seria igual mente possível tirar uma conclusão a contrario por exemplo se a proibição fosse motivada pelo perigo de certas doenças caninas se difundirem Suponhamos que haja uma regra que proíbe andar em traje de banho e que nos perguntemos com base nessa regra se é lícito ou não andar nu Devemos tirar uma conclusão a contrario ou por analogia A decisão dependerá sem dúvida da proibição ter sido implantada num acampamento de nudismo ou num recatado hotel Essas técnicas de argumentação são recursos integrantes do equi pamento de todo jurista experimentado Ele tem que saber como justificar tecnicamente mediante argumentos interpretativos a so lução jurídica que considera justa ou desejável Seria porém um erro aceitar os argumentos técnicos como se fossem as razões verda deiras Estas devem ser buscadas na consciência jurídica do juiz ou nos interesses defendidos pelo advogado A função dos métodos de interpretação é estabelecer limites à liberdade do juiz na administra ção da justiça os quais determinam a área de soluções justificáveis As máximas de interpretação variam de um país para outro Em todo lugar contudo exibem características idênticas fundamental mente são conjuntos não sistemáticos de frases atraentes via de 184Alf Ross regra cunhadas sob forma de brocardos e de significado impreciso passíveis de ser manejadas de tal maneira que conduzam a resulta dos contraditórios Como não existem critérios objetivos que indi quem quando se deve aplicar esta ou aquela máxima elas proporcio nam um largo espectro no qual o juiz possa atingir um resultado julgado por ele desejável Não é para surpreender portanto que Allen ao escrever sobre o direito inglês conclua que é certo que toda nossa doutrina da interpretação da lei mostra inconsis tências que sugerem haverem algum lado uma debilidade radical A maior inconsistência é aquela que existe entre a interpretação am piae a restrita A antítese é de definição impossível tudo que se pode dizer é que às vezes um tribunal conduzirá a interpretação aos seus limites mais extremos para efetivar a políticade uma lei e que outras vezes se prosternará perante à letra da lei quando segundo a opinião corrente pareceria muito fácii e razoável deixarse guiar pelo espírito21 Não me parece contudo que essas contradições sugiram uma debilidade Indicam a verdade fundamental de que as máximas de interpretação não são regras efetivas mas implementos de uma técr nica que dentro de certos limites habilita o juiz a atingir a conclu são que julga desejável nas circunstâncias e ao mesmo tempo pref serva a ficção de que só está obedecendo a lei e os princípios objeti vos de interpretação 0 escritor norteamericano Max Radin expressa o mesmo pensamento com muita clareza Diznos que as máximas não são realmente regras no sentido de nos obrigarem a atingir um resultado e não outros na aplicação de uma lei mas constituem um vocabulário e um método de apresentação para casos nos quais por razões totalmente distintas dessas regras e de suas exceções se alcança um resultado de certo tipo no esforço de saber se um ato é proibido ou permitido segundo a lei22 É possível que seja um problema interessante de psicologia social determinar o porque se deseja ocultar o que realmente ocorre na administração da justiça Aqui devemos nos contentar em asseverar 21 C K Allen Law in the Making 4 ed 1946 428 e 433 22 Califórnia Law Review t 33 219 Direito e Justiça 185 que parece um fenômeno universal simular que a administração da justiça constitui uma simples dedução lógica de regras jurídicas sem nenhuma valoração por parte do juiz Provavelmente não há razão para nos preocuparmos com relação a esse Accionalismo na administração da justiça quer o próprio juiz creia ou não que a fachada de argumentação expressa o que real mente motivou sua decisão E sem uma profunda investigação de psicologia social não ousaríamos sequer negar que é provável que essa ficção tenha inclusive efeitos socialmente benéficos 31 DISCUSSÃO Tal qual a doutrina tradicional das fontes do direito a teoria tradi cional do método não está construída como uma teoria analíticodes critiva que explica como o direito é administrado particularmente interpretado mas como uma doutrina dogmáticonormativa que ex pressa como deve ser administrado interpretado Esses postulados dogmáticos se desenvolvem de forma dedutiva a partir de idéias pre concebidas sobre o conceito do direito a natureza do direito e o papel da administração da justiça e são formulados como afirmações sobre o objetivo ou o propósito da interpretação Desses postulados é deduzida por sua vez uma série de princípios gerais de interpreta ção ou regras de interpretação mais concretas Em geral essas cons truções carecem de valor para a compreensão do direito vigente ou para predizer decisões jurídicas futuras a menos que reflitam de forma mais ou menos casual o método que na prática empregam os tribunais seu relativo valor de verdade é limitado porque tentam unir artificialmente num propósito único as diversas considerações que influem na interpretação Há naturalmente uma relação estreita entre a doutrina das fon tes do direito e a teoria do método A doutrina positivista das fontes do direito que deseja derivar a validade de todo o direito de uma vontade soberana suprema poderosa parágrafo 22 encontra seu Paralelo numa teoria do método que considera que a teoria da inter pretação consiste em estabelecer exclusivamente por métodos lógi cos e sem fazer referência a propósitos e valorações alheios ao texto legal a verdadeira vontade do legislador imanente em suas sanções 186Alf Ross Desenvolvese um bom número de métodos lógicos de inferência com cuja ajuda se acredita possível deduzir o significado da legislação além do que está expresso de forma direta Esses métodos de inferência costumam ser desenvolvidos mediante a chamada cons trução de conceitos Pensase que os efeitos jurídicos possíveis são determinados por um número limitado de dados conceitos pressu postos pelo ordenamento jurídico A decisão de um caso jurídico é obtida por meio de sua classificação em um dos conceitos reconheci dos e a solução é logo deduzida de acordo com os efeitos jurídicos contidos por aquele conceito A doutrina alemã e francesa do século XIX em particular constituíram exemplos representativos de uma jurisprudência conceituai desse tipo Contrastando com isso há as teorias do método da escola do direito livre correspondentes às teorias jurídicas idealistas segundo as quais a validade do direito é oriunda de uma idéia princípio ou propósito inerentes ao direito a idéia de justiça as atitudes éticojurídicas pre dominantes do povo o princípio de solidariedade o princípio de justiça social etc A lei de acordo com isso é considerada como uma tentati va mais ou menos frutífera de realizar essa idéia e a tarefa da interpre tação legislativa se define como um pensar plenamente a lei em har monia com o princípio imanente ao direito As teorias interpretativas dó movimento do direito livre segundo os pressupostos que sejam adotados relativamente à natureza do direito podem ostentar a marca jusnaturalista ou apresentar um caráter sociológicohistóricopsicológi co Nos tempos modernos é corrente o referirse particularmente a considerações de propósito social e à ponderação dos interesses como diretrizes para a interpretação livre23 As teorias do movimento do direito livre se acham mais próximas da verdade do que as teorias positivistas Por trás da aparência dogmáticonormativa há uma compreensão correta do fato de que ai administração da justiça não se reduz a uma derivação lógica a partir de normas positivas As teorias positivistas ocultam a atividade políti cojurídica do juiz Da mesma maneira que o jogador de xadrez é motivado não só pelas normas do xadrez como também pelo propósi to do jogo e pelo conhecimento de sua teoria também o juiz motivado por exigências sociais e por considerações sociológico 23 Ver adicionalmente Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 caps III 49 e VII com bibliografia detalhada Direito e Justiça 187 jurídicas O papel desempenhado pelas considerações livres pode variar com o estilo de interpretação porém jamais pode ser excluído por completo A lógica imanente que as teorias positivistas frisam é uma ilusão A razão jurídica imanente ou a própria regra de direito não pode ser separada do propósito prático que se situa fora dela nem as conseqüências formais podem ser separadas de um ajuste valorativo das regras em relação com os valores pressupostos No âmbito da doutrina da interpretação em sentido estrito fazse tradicionalmente uma distinção entre as teorias chamadas subjetiva e objetiva De acordo com a primeira o propósito da interpretação é descobrir a vontade do legislador De acordo com a segunda a lei é considerada como uma manifestação objetiva da mente que uma vez engendrada vive uma vida própria e deve ser compreendida unica mente com base naquilo que dela emerja A comunicação externa as palavras e não a vontade que está por trás dela constitui o juridica mente obrigatório e por conseguinte o objeto de toda interpretação Tal como vimos no parágrafo 24 essa distinção é falsa Referese na realidade aos elementos de interpretação que são levados em con ta A teoria subjetiva e a teoria objetiva distinguemse pela importância atribuída à história da sanção da lei Esse problema não pode ser resol vido com base em idéias metafísicas concernentes a se a força obriga tória do direito emana da vontade ou da palavra Seria possível anali sar as vantagens e as desvantagens de um e outro ordenamento con tudo no que diz respeito a um sistema jurídico vigente é questão fatual saber se os tribunais seguem tradicionalmente um estilo de in terpretação subjetiva ou objetiva parágrafo 29 Wake Up Capítulo V As Modalidades Jurídicas 32 TERMINOLOGIA DA LINGUAGEM JURÍDICA No parágrafo 7 é explicado que as normas jurídicas têm que ser interpretadas como diretivas aos juizes Todavia é raro uma lei estar lingüisticamente estruturada como os códigos penais dessa manei ra De ordinário a lei se dirige a todos os cidadãos fornecendolhes instruções relativamente a sua conduta mútua de tal modo que a diretiva ao juiz emerge da lei de forma indireta As diretivas aos cidadãos tampouco têm comumente a forma de instruções claras e diretas acerca de seu comportamento Uma lei típica não é expressa em frases diretivas correntes coloquiais isto é em palavras que expressam de modo direto uma chamada à ação uma ordem um desejo um pedido mas sim descreve um meca nismo segundo o qual diversos acontecimentos fatos ou ações pro duzem efeitos invisíveis denominados dever faculdade daim po tência validade etc As normas leis falam com freqüência como se por trás do mundo do tempo e do espaço existisse uma outra realidade um mundo de reiações jurídicas determinadas por forças desencadeadas por fatos criadores retificadores e dissovedores Falam por exemplo de certos fatos que obrigam uma pessoa de outros que têm o efeito de iiberaçãa podem dizer que certos fatos criam um direito a favor de uma pessoa direito que pode ser alterado ou extinto por outros fatos e que pode prevalecer sobre o direito de outras pessoas ou ceder ante ele Por exemplo as normas falam de 190Alf Ross uma compra e venda como se o acordo produzisse uma relação jurí dica entre as partes consistente num conjunto de faculdadese deve res para cada uma delas Estes efeitos contudo se desenvolvem dinamicamente em virtude de outros fatos Por exemplo se o vende dor não faz a entrega oportunamente o comprador se torna capaz de cancelar o contrato e reivindicar danos isto é certas ações suas produzem agora o efeito de que seu dever de pagar fica extinto enquanto o dever de entregar do vendedor se transforma num dever de pagar uma certa soma de dinheiro De modo similar muitos outros eventos posteriores impossibilidade de pagar cumprimento falência e outros podem sobrevir e criar efeitos em virtude dos quais a rela ção jurídica entre as partes se altera Se a relação jurídica já não atingiu o seu fim poderá em última instância ser removida mediani te sentença e execução e assim desaparecer do mundo O direito legislado parece estar constituído pois de enunciados teó ricos referentes a um mundo invisível de qualidades peculiares rela ções jurídicas que são criadas e se desenvolvem como efeitos de uma força criadora jurídica particular que certos fatos possuem E contudo não podemos claro está levar tal descrição a sério É absurdo dizerf que quando faço uma compra surgem alguns efeitos invisíveis Qual quer que tenha sido a razão pela qual essa terminologia foi posta enr uso fica claro que o significado e função real que correspondem acÈ direito legislado não são de cunho teórico mas prático Os enunciado aparentemente teóricos da lei foram na realidade formulados com a propósito de servir como diretivas para influir na conduta dos seresl humanos dos cidadãos e juizes igualmente parágrafo 2 I Por outro lado o modo peculiar de expressão que acabamos dá examinar é um fato e nos obriga a investigar as palavras e frase empregadas pelo direito com a função de diretivas De maneira espejj cífica teremos que desemaranhar as relações mútuas entre as diver sas frases e verificar se foi desenvolvida uma terminologia em algu ma medida constante e livre de ambigüidades Na edição original dinamarquesa deste livro investiguei a termino logia jurídica dinamarquesa e mostrei que as diversas expressões diretivas correntes eram ambíguas sem exceção Não me sinto capa de executar um empreendimento análogo no campo da terminologia jurídica inglesa mas creio que bastará um superficial olhar às lei para justificar a afirmação de que o mesmo ocorre com expressõef Direito e Justiça 191 diretivas correntes tais como itisthedutyofé o dever de musttem que is bound to está obrigado a is iiabie to é responsável por shall deverá may pode has a right to tem direito a is entitíed to está habilitado a is authorised to está autorizado a etc Outro defeito fundamental da terminologia é sua carga ideológica o que fica conspícuo na maneira como se aplica o conceito de dever Quando uma lei estabelece que A tem um certo dever isto normalmen te quer dizer que A pode ser condenado a uma pena ou a realizar um certo ato ou a pagar indenização por danos e prejuízos Entretanto não é possível dizer ao contrário que as reações jurídicas desse tipo pressupõem a transgressão de um dever A responsabilidade por danos e prejuízos não provém necessariamente do fato de A ter cometido o que a lei descreve como transgressão a um dever Por exemplo se A faz uma promessa de cumprimento impossível será condenado se gundo as circunstâncias a pagar indenização por danos e prejuízos embora a sua ignorância da impossibilidade seja escusável mas nin guém afirmaria que tinha o dever de cumprir o prometido Algo seme lhante ocorre no caso de responsabilidade estrita ou objetiva por con duta perigosa A despeito de haver responsabilidade por danos não há transgressão a um dever a conduta perigosa é considerada lícita A relação entre o dever e a reação jurídica é o resultado da função ideológica do conceito de dever Este conceito só se aplica quando a reação condicionada é experimentada com reprovação social A rea ção não é experimentada assim nos casos mencionados e por isso não se pressupõe uma transgressão ao dever como fato condicionante dela Essa função ideológica tem indubitavelmente seu valor na vida jurídica da comunidade A idéia de dever atua como um motivo para o comportamento lícito não por temor das sanções mas em virtude de uma atitude desinteressada de respeito ao direito Essa função ideológica geradora de motivos concede ao direito sua sacraiidade ou validade e sem isso não é possível criar uma ordem social pará grafo 11 Tal dependência ideológica por outro lado faz com que o conceito de dever não seja muito adequado como instrumento da ciência do direito Diferentemente da legislação a doutrina não se Propõe a exercer uma influência ideológica sobre os cidadãos mas simplesmente descrever as reações jurídicas que são esperadas em dadas circunstâncias e o conceito de dever não se ajusta ao cumpri mento dessa tarefa Por um lado a afirmação de que A tem o dever 192 Alf Ross de se comportar de certa maneira não indica sem ambigüidade quai reações jurídicas podem ser esperadas se A transgredir ao seu dever por outro pode ocorrer uma reação de tipo similar àquela tipicamen te vinculada à violação de um dever sem que se dê tal violação Devemos concluir que seria desejável que as exposições doutriná rias do direito vigente eliminassem o conceito de dever Em lugar d operar com este termo inadequado seria mais conveniente se ater simplesmente à conexão jurídicofuncional entre os fatoj condiciona ntes e as reações condicionadas Seria porém muito difícil levar a efeito essa idéia O mundo dos conceitos tradicionais e a dificuldade de romper com pontos de vista ideológicos se opõem a ela 33 UMA TERMINOLOGIA MELHORADA Visto que a linguagem do direito não pode prescindir de uma teHj minologia de deveres faculdades etc e visto que tal terminologia não pode ser totalmente suprimida da ciência do direito cabeno perguntar se não seria possível melhorar seu uso Talvez o importan te não seja a terminologia em si mesma mas a consciência das diver sas relações reveladas por ela 1 Em conformidade com as linhas gerais do sistema elaborado pe jurista norteamericano Hohfeld1 sugiro aqui uma terminologia cuj conexão interna pode ser simbolizada da maneira seguinte Normas de Conduta 1 dever A BC faculdade BAC X X 2 liberdade ABC nãofaculdade BAC 3 faculdade A B C dever B AC X X 4 nãofaculdade A B C liberdade B A C 1 W N Hohfeld FundamentaLegaConcepts 19231 Direito e Justiça 193 Normas de Competência 5 sujeição A BC potestade BAC X X 6 imunidade A BC impotência BAC 7 potestade A BC sujeição BAC X X 8 impotência A BC imunidade BAC Neste diagrama o sinal indica que as noções que liga são correlativas leiase corresponde a ou é equivalente a A seta de duas pontas indica que as noções que liga são opostas contraditórias um termo é a negação do outro A fórmula dever A B C lêse A tem um dever em relação a B para realizar C A fórmula sujeição A B C lêse A está sujeito às disposições de Adentro da esfera de conduta C Há portanto oito modalidades dever liberdade faculdade não faculdade sujeição imunidade potestade e impotência destaque se o fato de que a expressão ambígua ter direito desapareceu As quatro primeiras e as quatro últimas são logicamente redutíveis entre si Ademais visto que a sujeição de A a B significa que a posição jurídica de A expressa em termos de dever faculdade etc é definida de acordo com as disposições de B as quatro últimas podem ser reduzidas às quatro primeiras Seguese disto conseqüentemente que as oito podem ser reduzidas a termos de dever Se definirmos esta palavra todas as demais estarão definidas O que se diz na seqüência pode concorrer para a explicação dos termos e suas relações mútuas com mais clareza 331 Dever e Faculdade O valor do sistema de modalidades depende de uma definição razoa velmente isenta de ambigüidade do termo dever O mais conveniente seria aplicar o termo dever a situações nas quais uma pessoa pode ser objeto de uma pena ou condenada a realizar certo ato ou ao paga mento de indenização por danos e prejuízos Uma definição desse tipo contudo não seria compatível com a função ideológica tradicional do termo Conseqüentemente se alimentarmos a esperança de influir sobre 194 Alf Ross o uso lingüístico teremos que restringir o emprego do termo àqueles casos em que a reação é experimentada como uma reprovação social e a sentença portanto como um estímulo para o cumprimento do dever É assim que não falaremos de dever por exemplo nos casos de escusável impossibilidade de cumprimento ou responsabilidade objetiva A palavra dever pode ser substituída por prescrição ou por proibi ção segundo as regras que se seguem Afirmar que um ato está prescrito quer dizer que há o dever de realizálo afirmar que um ato está proibido quer dizer que há o dever de não realizálo Assim dever C prescrição C dever não C proibição C do que se segue que prescrição C proibição não C proibição C prescrição não C Ao dever de A corresponde a faculdade de B B possuir uma facul dade relativamente a A quer dizer que pode acionar a maquinaria jurídica para obter uma sentença contra A ou que o fato de B mover um processo é condição necessária para a possibilidade de condena ção de A Se tivermos descrito plenamente a posição jurídica de A a condição que aponta a necessidade de um processo já estará implíci ta e conseqüentemente o enunciado correlativo referente à faculda de de B não acresce nada de novo Normalmente a pessoa que tem poder para instaurar processos será também a pessoa diretamente interessada em que A aja eim conformidade com seu dever Se A prometeu a B 500 B é a parte diretamente interessada e também a pessoa detentora do poder dej instaurar o processo Mas pode suceder que ambas as qualidades não atuem na mesma pessoa A pode por exemplo prometer a Bj que pagará 500 a C Se supormos que B e somente B pode instau rar o processo se adequará melhor ao uso corrente dizer que somen te B tem uma faculdade relativamente a A A definição formulada mais acima foi feita sobre essa base B o titular da faculdade é denominado sujeito do processo C a parte diretamente interessaj da2 sujeito do interesse 2 Podese supor que B também tem interesse que A pague porém seu interesse é indireto isto é é um interesse interesse de C que se o pague Cf Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap VII seç 2 Direito e Justiça 195 Ao dizer pois que B tem uma faculdade contra A meramente exprimimos o fato da demanda de B ser uma condição necessária para a sentença contra A Esta relação também pode ser expressa dizendo que B tem o poder de instaurar um processo contra A o que indica que por meio de um certo ato B é capaz de produzir efeitos jurídicos que deseja produzir Outro problema é se é optativo ou obrigatório para B exercer seu poder de instaurar processos Geralmente B é livre para instaurar processos ou não Sua faculdade está assim combinada com a liberdade de utilizála ou não porque o propósito do direito law derecho ao outorgar a B uma faculdade clalm facuítad é proporcionarlhe um instrumento para a tutela de seus interesses Se B não dispor desta liberdade será duvidoso que se possa falar de faculdade clalm facuítad Cabe perguntar portanto se a liberdade para instaurar processos não deve ser in cluída na definição de faculdade daim Esta questão é importante quando os processos são instaurados pelo Estado sob forma de um ato oficial como é praxe normal nos processos criminais O promotor público não é livre para atuar segundo sua vonta de estando juridicamente obrigado a exercer o poder de acordo com as diretivas estabelecidas pelo direito taW A acusação pública difere tão fundamentalmente da ação privada que prefiro reservar a palavra facul dade daim ao poder de instaurar processos combinado com a liberda de de exercer esse poder em interesse próprio Disto se conclui que aqueles deveres cuja transgressão só dá mar gem à acusação pública que busca a aplicação de uma pena são absolutos isto é não há nenhuma faculdade correspondente aos mesmos não tem faculdade a parte cujo interesse foi lesado nem tampouco o Estado 332 Liberdade e NãoFaculdade Uma conduta não proibida é chamada de permitida permissão C nãoproibição C nãodever não C Uma conduta que não é nem proibida nem prescrita é chamada de livre liberdade C nãoproibição C nãoprescrição C não dever não C nãodever C 196Alf Ross A conduta permitida e a conduta livre têm pois em comum o fato de não estarem proibidas A diferença consiste em o ato permitido poder estar prescrito éme permitido cumprir meu dever enquanto o ato livre não poder estar prescrito Se Cê livre então não Ctambém é livre Ambas as fórmulas enunciam o mesmo a saber que não há dever relativamente a Cou a não C Dizer que um ato é livre é o mesmo que dizer que se acha fora da esfera das normas jurídicas É juridicamente indiferente Nem sua realização nem sua não realização enseja reações jurídicas3 Minha liberdade de ir ao bosque de caminhar pelas ruas de fu mar um cigarro de usar uma gravata vermelha significa portanto que não sou obrigado a fazer essas coisas ou não fazêlas ou que os outros B ou aqueles diante dos quais posso invocar a liberdade não têm nenhum direito sobre mim É impossível enumerar as liberdades de que goza uma pessoa A esfera da liberdade está definida negativamente como tudo aquilo que não é objeto de regramento jurídico Certas liberdades entretanto são freqüentemente designadas com um nome porque se apresentam como exceções ou porque a 3 Das definições dadas concluise que a negação do dever AB C é rigorosamente falando a permissão AB não Cl e não como foi indicado no diagrama das modalidades liberdade A B IC já que temos dever AB C prescrição A B C cuja negação é nãoprescrição AB C nãoproibição A B Inão Cl permissão AB não C Exemplo A tem o dever de pagar 50 a B A negação disto é É permitido a A recusarse a pagar a B 50 Isto é mais restrito que dizer A é livre para pagar a B 50 Pois o último inclui o sentido É permitido a A pagar a B 50 Se apesar disso preferi dizer que a negação do dever C é a liberdade C e não a permissão Inão C isso se baseia no raciocínio de que se C não foi escolhido arbitrariamente tratandose de uma conduta que na prática pode ser conce bida como dever jurídico será necessário descartar nos fatos a possibilidade de que não C seja um dever jurídico A negação do dever AB tC significa portanto não sõ a permissão de não C a favor de A como também a permissão d jj C isto é que A tem a liberdade Cl Em conformidade com isso na prática justificase dizer que a negação do dever d A pagar 50 a B é não sõ que é permitido a A não fazêlo como também A está livre para fazêlo ou não Direito e Justiça 197 liberdade pertence apenas a um indivíduo ou porque pertence a to dos mas aparece como exceção a uma regra geral aceita O primeiro tipo pode se denominado liberdade especial ou privilégicr o outro tipo liberdade geral O dono de uma propriedade tem o privilégio de caminhar por sua terra Desfruta da liberdade de fazêlo e ao mesmo tempo tem uma faculdade de afastar os outros Segundo as normas dinamarquesas referentes à preservação dos lugares da natureza que proporcionam prazer é uma liberdade geral para as pessoas caminhar em proprie dade particular ao longo da costa Outra razão para mencionar liberdades especiais é o fato de que a Constituição garante aos cidadãos diversas liberdades como esferas protegidas diante da intervenção da legislação liberdade religiosa liberdade de imprensa etc Quando como é usual uma liberdade é comum a todos seu valor para o indivíduo pode ser problemático Minha liberdade acima de tudo significa somente que os outros não têm faculdades sobre mim isto é que não podem colocar obstáculos no meu caminho que me impeçam o fruir da liberdade Por outro lado na liberdade não está implícita nenhuma faculdade em relação aos outros de modo a me proporcionarem de fato oportunidade plena para agir como quero Gozo de liberdade para me sentar num banco do Hyde Park porém essa liberdade de nada me serve se o banco estiver ocupado Não tenho decerto a faculdade de que os outros cedam o banco a mim Se a liberdade de um é irreconciliável com a liberdade do outro have rá conflito Todavia uma certa dose de regramento desse conflito e com isso alguma proteção para aquele que ocupou pela primeira vez uma certa posição se segue como reflexo de outras faculdades que limitam os meios para deslocar outrem Se estou sentado num banco por certo não disponho da faculdade de que os outros me deixarão sentar ali entretanto tenho a faculdade de não ser atacado pelos outros o que acarreta o reflexo de que juridicamente não posso ser arrancado do banco à força No mundo dos negócios há uma ampla liberdade de atuação no mercado e de luta por clientes Ninguém goza de uma faculdade segundo a qual os outros não possam interferir com seus clientes Mas aqui também o ordenamento jurídico estabelece limites para os métodos de luta competitiva 198 Alf Ross O liberalismo é a ideologia política que requer um máximo de liber dade para o cidadão e um mínimo de regramento jurídico das questões da vida Em contraposição ao liberalismo há as ideologias totalitárias que desejam que a esfera da liberdade individual se reduza ao mínimo 333 Sujeição e Potestade A potestadeé um caso especial de poder Existe poder quando um pessoa é capaz de produzir certos efeitos jurídicos desejados Um credor tem poder para instaurar uma ação ou para impedir a prescri ção de seu crédito e os pais têm poder para permitir ou não permitir que seus filhos de certa idade contraiam matrimônio A potestade é o poder de disposição e é exercida mediante uma declaração dispositiva isto é Uma declaração que normalmente produz efeitos jurídicos que concordam com seu conteúdo parágrafos 44 e 48 Uma declaração dispositiva é uma diretiva amiúde formulada como um enunciado aparentemente teórico sobre a existência de deveres e faculdades calms facultades As leis os contratos e os testamen tos são exemplos de declarações dispositivas parágrafo 48 O limite entre a potestade e os outros casos de poder é fluido Há uma escala de transição gradual Em alguns casos a disposição con tém uma descrição detalhada das relações jurídicas criadas uma lei um contrato minucioso ou um acordo coletivo Em outros casos a disposição se limita a preencher as lacunas de uma série de efeitos jurídicos que no mais foram estabelecidos pela legislação por exem plo um contrato de venda que se limite a expressar o artigo e o preço enquanto as relações das partes são regidas quanto ao resto pelas normas padrões estabelecidas no Uniform Sales Act Em outros casos a disposição se limita a uma declaração puramente formal que não admite variações individuais e os efeitos são enunciados de for ma exaustiva pelo direito laW por exemplo quando o comprador anuncia que está cancelando o contrato É questão de preferência pessoal optar entre dizer que a notificação do cancelamento do con trato é uma declaração dispositiva que tem efeitos concordantes com seu conteúdo ou dizer que a notificação do cancelamento é um ato que enseja efeitos jurídicos determinados pelo direito law Os efei tos da notificação são padronizados e produzidos automaticamente como se pelo acionamento de um botão Direito e Justiça 199 Como regra principal os indivíduos particulares somente são com petentes detêm potestade para efetuar disposições que obrigam a si mesmos enquanto as autoridades públicas são competentes para obrigar também outras pessoas parágrafo 44 Se um particular tem poder para fazer disposições que obrigam outra pessoa esse poder estará habitualmente fundado numa disposição antecedente feita pela outra pessoa Assim uma oferta confere ao destinatário o poder de obrigar mediante sua aceitação a parte que a fez e a autorização confere ao agente o poder de obrigar o principal A potestade de uma pessoa como tal deve ser distinguida da liberdade que a pessoa tem de exercer seu poder como queira ou se está obrigada do dever de exercêlo segundo certas linhas já determinadas Um agente pode estar obrigado frente ao principal a exercer sua autoridade dentro de certos limites mesmo quando o principal não possa invocar as restrições frente a um terceiro que agiu confiando na autoridade Uma restrição à autoridade ostensiva do agente estabelecida de forma privada e desatendida por este não libera o principal de responsabilidade a menos está claro que sua existência seja conhecida pela outra parte da transação4 Con tudo o exercício do poder em violação às restrições é ilícito frente ao principal Uma regra semelhante se aplica ao poder no direito público O poder não é conferido às autoridades públicas para ser exercido como elas queiram mas para ser exercido de acordo com as regras estabelecidas ou princípios gerais pressupostos Aqui tam bém geralmente é possível distinguir entre a potestade e os deve res relativos ao exercício dessa potestade a transgressão das nor mas não acarreta invalidade mas somente responsabilidade A sujeição é o correlato da potestade Do ponto de vista lingüístico o termo é de uso inadequado porque tem uma conotação adversa mesmo supondose que compreenda também a situação correlativa de disposições favoráveis Os cidadãos estão sujeitos ao poder do legislador os herdeiros ao do testador a parte que faz uma oferta ao do destinatário o sucessor ao do antecessor tudo isso sem que seja relevante que a disposição particular obrigue a parte submetida ou crie faculdades a seu favor 4 G C Cheshire e C H S Fifoot The Law ofContract 2 ed 1949 359 200 Alf Ross 334 Imunidade e Impotência Os comentários a respeito dessas modalidades negativas são aná logos aos que expressamos a respeito de liberdade nãofaculdades Como termos negativos compreendem tudo que não está submetido ao poder jurídico em conseqüência não é possível enumerar e de signar as ímunidades específicas Toda pessoa goza de imunidade frente a qualquer outra pessoa sempre que a outra pessoa não te nha um poder em relação à primeira São reconhecidos todavia di reitos de imunidade específicos porque aparecem como exceções Por exemplo dizse que os embaixadores estrangeiros gozam de imu nidade relativamente à jurisdição dos tribunais e que os cidadãos gozam de imunidade relativamente à legislatura quando a Constitui ção limita a competência desta última 34 DISCUSSÃO Até o presente as modalidades quase não têm sido consideradas importantes como temas de estudo No geral a análise das relações jurídicasconsste simplesmente em dividilas nos conceitos correlativos de dever e direito Esta análise entretanto é insatisfatória Em primeiro lugar não foi percebido que o tema da análise é na realidade a linguagem do direito que as diferentes modalidades re presentam meros veículos lingüísticos para expressar as diretivas con tidas nas regras jurídicas Em lugar disso os deveres e direitos têm sido considerados como substâncias metafísicas criadas por certos fa tos e que por sua vez criam efeitos jurídicos Esta maneira metafísica de ver nos deveres e direitos entidades substanciais prevalece em grande medida no pensamento jurídico da Europa continental e naquele dos países de língua inglesa e tem produzido conseqüências desafortuna das no tratamento dos problemas jurídicos práticos parágrafo 37 Em segundo lugar a divisão deverdireito é demasiadamente super ficial O termo direito right derecho em sentido subjetivo abrange conceitos tão heterogêneos como faculdade facultad caim liberdade poder potestade e imunidade e não se distingue entre dever e as outras modalidades passivas Essa análise incompleta em termos de dever direito dutyright tem causado a confusão que caracteriza a linguagem jurídica tanto na legislação como no estudo doutrinário do direito Direito e Justiça 201 Finalmente é um erro introduzir um direito right como correlato de um dever O conceito de direito right em sentido subjetivo é um conceito sistemático no qual estão unidas muitas regras jurídicas ver cap VI Abarca a idéia de uma coleção de efeitos jurídicos cada um dos quais pode ser expresso nas modalidades comuns O direito de propriedade por exemplo inclui um conjunto de faculdades liber dades potestades e imunidades Um direito tal como a propriedade os diferentes jura in re aliena direito de propriedade intelectual etc não é uma modalidade jurídica por meio da qual se expressa a regra jurídica particular mas uma construção doutrinária para a exposição sistemática do direito vigente Que eu saiba o primeiro a investigar o problema das modalida des jurídicas foi o norteamericano Wesley Newcomb Hohfeld Fun damental Lega Concepts 19235 O que expusemos aqui foi em grande medida inspirado por Hohfeld em especial a idéia de que as modalidades estão ligadas pelas relações lógicas de contradição e correlação Minha postura entretanto difere da sua Hohfeld não procura interpretar as modalidades segundo sua função jurídica e parece não perceber que na realidade elas são apenas ferramen tas da linguagem do direito law 5 Esta obra foi publicada postumamente 0 tratado original apareceu no YaleL J t 23 1913 16 The End Capítulo VI O Conceito de Direito Subjetivo 35 0 CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO COMO UMA FERRAMENTA TÉCNICA DE APRESENTAÇÃO No capítulo anterior foi explicado que os enunciados aparentemente teóricos sobre a criação de deveres direitos etc que aparecem nas normas jurídicas têm que ser interpretados como diretivas ao juiz Uma norma jurídica pode ser reformulada portanto da seguinte maneira D se F então C como uma diretiva para o juiz no sentido de que quando existe F sua sentença deve ser C Se a tarefa da ciência do direito se limitasse a uma simples enu meração das regras jurídicas em vigor todas as pressuposições dou trinárias poderiam ser formuladas de acordo com esse esquema Po derseia então imaginar uma exposição científica que apresentasse como normas vigentes muitas diretivas do seguinte tipo Dx se uma pessoa adquiriu legitimamente uma coisa através de com pra deverá ser prolatada sentença a seu favor ordenando a entrega da coisa contra todas outras pessoas que a retenham em seu poder D2 se uma pessoa herdou uma coisa deverá ditarse sentença de indenização por danos e prejuízos a seu favor contra todas outras pessoas que com dolo ou negligência tenham causado uma de terioração à coisa 204 Alf Ross D3 se uma pessoa adquiriu por prescrição uma coisa e obteve um empréstimo que não é restituído na ocasião oportuna deverá se dar sentença favorável ao credor para lhe permitir obter satisfação a partir da coisa D4 se uma pessoa ocupou uma resnulluse por meio de legado a transmitiu a outra será ditada sentença a favor do legatário contra o testador ordenando a entrega da coisa D5 se uma pessoa adquiriu uma coisa mediante execução como credor e posteriormente outra pessoa se apropria do objeto esta última deverá ser punida por furto E assim por diante tendo em conta é claro que em cada caso a fórmula poderia ser muito mais complicada Entretanto a tarefa da ciência do direito obviamente não pode ser limitada desse modo Uma exposição desse tipo seria tão inadequada a ponto de praticamente carecer de valor A tarefa do pensamento jurídi co consiste em conceitualizar as normas jurídicas de tal modo que sejam reduzidas a um ordenamento sistemático expondo assim o direito vi gente da forma mais simples e conveniente possível Isso pode ser con seguido mediante o concurso da técnica de apresentação que se segue Em meio a um grande número de normas jurídicas do tipo indica do é possível descobrir um certo grupo que pode ser disposto da seguinte maneira Fx Clf F2 Clf F3 C1 Fp Fi C2 F2 C2 F3 C2 Fp C2 Fj C3 F2 3 C j Fp Cj F C F C F C F C 1 n 2 n 3 n p n Leiase o fato condicionante F está ligado à conseqüência jurídica Cj etc 0 que significa que cada fato de uma certa totalidade de fatos condicionantes FjFp está ligado a cada uma das conseqüências de certo grupo de conseqüências jurídicas Cx Cn ou que cada fato F está ligado ao mesmo grupo de conseqüências jurídicas Ct C Cn ou que uma pluralidade acumulativa de conseqüências jurídicas está ligada a uma pluralidade disjuntiva de fatos condicionantes Direito e Justiça 205 Essas normas jurídicas individuais n x p podem ser apresentadas mais simplesmente e sob forma mais manejável na figura na qual P propriedade simplesmente representa a conexão siste mática de que Flt assim como F2 F3 F implicam a totalidade das conseqüências jurídicas Ci C2 C Cn Como técnica de apresenta ção isso se expressa então enunciandose em uma série de regras os fatos que geram propriedade e em outra série as conseqüências jurídicas que a propriedade acarreta Disso fica claro que a propriedade inserida entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicionadas é na realidade uma palavra sem referência semântica alguma que serve somente como ferramenta de apresentação Falamos como se propriedade fosse um nexo causai entre F e C um efeito ocasionado ou geradopor cada F que por sua vez é causa de uma totalidade de conseqüências jurídicas Dizemos por exemplo que 1 Se A comprou licitamente um objeto F2 a propriedade do objeto foi por isso gerada para ele 2 Se A é proprietário de um objeto tem entre outras coisas o direito de que a ele o entreguem CJ Está claro entretanto que 1 2 é somente uma reformulação de uma das normas pressupostas F2 Cj a saber que a compra como fato condicionante acarreta como conseqüência jurídica a pos sibilidade de obter a entrega A idéia de que entre a compra e a possibilidade de obter a entrega gerouse algo que pode ser cha mado de propriedade carece de sentido Nada se gera pelo fato de A e B trocarem umas poucas frases interpretadas juridicamente como contrato de compra e venda Tudo que ocorreu é que agora o juiz 206 Alf Ross tomará esse fato em consideração e pronunciará sentença a favor do comprador mediante uma ação para obter a entrega O que descrevemos aqui é um simples exemplo de redução pela razão a um ordenamento sistemático É por certo tarefa do pensa mento científico empreender esse processo de simplificação não obstante o labor tenha sido numa grande medida antecipado pelo pensamento précientífico Os conceitos fundamentais pertencentes à esfera dos direitos subjetivos por exemplo o conceito de propriedade não foram criados pelos autores de direito mas herdados de idéias geralmente aceitas Embora as pessoas em geral tenham somente as idéias mais confusas sobre os fatos que geram propriedade e os efei tos que são as conseqüências da propriedade fundamentalmente o conceito é construído da mesma maneira que o seria pelo pensamento profissional científico Conecta certos fatos específicos compra heran ça etc e certas experiências de faculdades e ffrdosjurídicos e éticos A função do conceito de direito subjetivo segundo esse esquema pode ser esclarecida em três contextos a saber 1 Na apresentação abstrata do direito vigente sua função é clara mente a descrita acima A expressão direito subjetivoé destituída com pletamente de referência semântica As frases em que aparece podem ser reescritas sem fazer uso da expressão indicando a conexão que nas diretivas jurídicas existe entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicionadas Por exemplo a proposição a propriedade é adquirida por prescrição de acordo com as seguintes regras pode ser reformulada assim a prescrição de acordo com as regras seguintes é um dos fatos que acarreta a totalidade de conseqüências estabelecidas na seqüência no capítulo sobre os efeitos jurídicos da propriedade 2 A função do conceito nas argumentações dos advogados ante os tribunais e nos fundamentos das decisões também pode ser explicada sem dificuldades segundo o mesmo esquema Um advogado por exem plo alegará que por meio de um contrato celebrado em tal e tal dia seu cliente adquiriu a propriedade de um automóvel e que em virtude disso o cliente pode requerer uma sentença para que o vendedor o entre gue Mesmo aqui a propriedade intermediária pode ser omitida O ad vogado na realidade só quer sustentar a que foi celebrado um con trato de compra válido b que este ato implica como conseqüência jurídica que o juiz dite sentença condenando o vendedor à entrega Direito e Justiça 207 30 conceito de direito subjetivo é empregado em enunciados que não parecem expor regras de direito mas descrever fatos puros E o que ocorre por exemplo quando se expressa que A é proprietário de um certo bem ou quando uma regulamentação descreve a pessoa que é obrigada a remover a neve denominandoa proprietária do imóvel O significado de tais enunciados é todavia mais complicado do que o que parece à primeira vista Para compreendêlo lembremos que é usual na descrição de pessoas coisas ou situações enunciar conjunta mente com qualidades puramente fatuais outras que são condiciona das pelo direito Num passaporte por exemplo além da idade do titu lar e da cor de seu cabelo são enunciados também sua nacionalidade e seu estado civil O que se quer dizer ao expressar que uma pessoa é casada O enunciado se refere ao fato da pessoa ter contraído um matrimônio que não foi dissolvido Entretanto contrair matrimônio não é algo puramente fatual Tal como não há nenhum movimento de um objeto no espaço que seja em si um movimento de xadrez não há nenhum evento fatual que constitua per se a celebração de um casa mento Ambos os fenômenos como foi tratado no parágrafo 3 so mente adquirem seu significado específico quando o evento fatual é interpretado em relação a uma ideologia vigente as normas do xadrez ou as normas jurídicas O enunciado de que uma pessoa celebrou matrimônio inclui uma afirmação sobre o direito vigente a saber que o evento aludido é gerador de matrimônio que acarreta um certo com plexo de conseqüências jurídicas Estas conseqüências geralmente não são totalmente conhecidas do leigo não jurista mas ele sabe por exemplo que entre elas existe uma que o proíbe de contrair um segundo matrimônio enquanto perdurar o primeiro O enunciado de que uma pessoa é casada referese assim a duas condições por um lado ao evento puramente fatual da celebração do matrimônio por outro a uma condição jurídica que esse evento segundo o direito vigente acarreta efeitos jurídicos específicos que as pessoas conhe cem em geral apenas de forma bastante vaga O uso em aparência puramente descritivo do conceito de direito subjetivo pode ser compreendido de maneira semelhante O enunciado de que A é proprietário de certo objeto referese não apenas à circuns tância puramente fatual de que A comprou o objeto ou o herdou ou o adquiriu por prescrição etc mas também à circunstância jurídica de que segundo o direito vigente esses eventos acarretam conseqüências jurídicas específicas e portanto se diz que geram propriedade 208 Alf Ross Podemos concluir portanto que em todos os contextos que con sideramos os enunciados referentes a direitos subjetivos cumprem a função de descrever o direito vigente ou sua aplicação a situações específicas concretas Ao mesmo tempo contudo é preciso afirmar que o conceito de direito subjetivo não tem qualquer referência se mântica não designa fenômeno algum de nenhum tipo que esteja inserido entre os fatos condicionantes e as conseqüências condicio nadas é unicamente um meio que toma possível de maneira mais ou menos precisa representar o conteúdo de um conjunto de normas jurídicas a saber aquelas que ligam certa pluralidade disjuntiva de fatos condicionantes a certa pluralidade cumulativa de conseqüências jurídicas Costumase empregar a mesma técnica de apresentação sem a idéia de um direito subjetivo intermediário No direito internacional por exemplo uma série de regras pode expressar qual a área que territorialmente pertence a um determinado Estado Dizer que essa área tem o caráter de território é per se sem sentido Somente há uma expressão com sentido quando esse conjunto de regras é relacio nado com outro conjunto de regras que expressam as conseqüências jurídicas que se imputam ao fato de que uma área tem o caráter de território Neste exemplo seria também possível expressar as rela ções jurídicas sem usar o conceito interpolado território embora tal enunciado fosse inegavelmente muito complicado Às vezes o nexo intermediário não é um direito subjetivo simples mas uma condição jurídica complexa de direitos e deveres Assim quando no direito de família se distingue entre as condições para celebrar matrimônio e os efeitos jurídicos do matrimônio quando no direito constitucional se distingue entre a aquisição da nacionali dade e os efeitos jurídicos da nacionalidade ou no direito adminis trativo entre a criação do status de funcionário e seus efeitos jurídi cos Nestas situações e em situações semelhantes é comum falar da criação de um status o status do casamento o da nacionalidade o da qualidade de funcionário Qualquer que seja a construção a realidade que se encontra por trás dela é em todos os casos a mesma uma técnica detentora de í grande importância se pretendemos conquistar clareza e ordem numa série complicada de normas jurídicas Direito e Justiça 209 36 APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO A SITUAÇÕES TÍPICAS O conceito de direito subjetivo é uma ferramenta na técnica de apresentação contudo isso nada nos diz acerca das situações nas quais é empregado Como vimos é possível também usar a mesma técnica dispensandose esse conceito Nossa tarefa por conseguinte deve ser esclarecer as condições nas quais se aplica o conceito de direito subjetivo Não se trata de decidir quando existe efetivamente um direito subjetivo A expressão direito subjetivo não designa ne nhum fenômeno que exista em certas condições específicas E perfei tamente possível expor o direito vigente dispensandose completa mente o uso do conceito de direito subjetivo Nossa tarefa pois só pode consistir em mostrar o que é que caracteriza aquelas situações jurídicas em que se costuma falar de direitos subjetivos Não é certa mente possível afirmar que o uso comum obedece a um critério de finido Apesar disso caso se pretenda que o conceito seja de alguma utilidade ao estudo do direito é essencial definir mais precisamente sua esfera de aplicação Neste parágrafo examinaremos a aplicação do conceito de direito subjetivo em situações típicas a O ponto de partida de qualquer análise deve ser que o conceito de direito subjetivo é usado para designar aquele aspecto de uma situa ção jurídica que é vantajoso a uma pessoa A mesma situação jurídica que é vantajosa para A pode ser desvantajosa para B ou para outros O conceito de direito subjetivo significa assim que a situação jurídica é contemplada a partir da perspectiva da pessoa a quem favorece É freqüente a palavra direito ser empregada indiscriminadamente em expressões do tipo ter um direito a no sentido de ser permitido algo a alguém para indicar que uma pessoa é livre para realizar um determinado ato Nesse emprego a palavra simplesmente quer dizer que esse ato se acha fora do direito objetivo parágrafo 33 Um tal uso lingüístico não é conveniente Como ferramenta para o estudo do direito o conceito de direito subjetivo tem que indicar um certo con teúdo jurídico As liberdades são aqui diferentes das vantagens resul tantes do regramento jurídico As liberdades portanto estão excluí das do conceito de direito subjetivo b Estando as liberdades excluídas disto se conclui que as vanta gens para uma determinada pessoa à qual concerne o conceito de 210Alf Ross direito subjetivo têm que surgir como conseqüência de um regramento jurídico E dado ter o regramento jurídico sempre um efeito restritivo o direito subjetivo será sempre o correlato de um dever 1 isto é uma res trição ao próximo Os deveres alheios podem significar uma vantagem para A de duas maneiras seja porque outra pessoa está obrigada a uma ação positiva benéfica em relação a A por exemplo pagarlhe uma soma em dinheiro ou executar algum trabalho para ele direitos inpersonam seja porque todas as pessoas exceto A estão obrigadas à abstenção de realizar certos atos por exemplo o uso e gozo de um objeto direitos in rem Neste último caso a liberdade de A se converte num privilégio É assegurada a A uma esfera de ação que lhe é reservada A propriedade é o exemplo típico A propriedade inclui um privilégio para o proprietário um domínio reservado porque se acha em liberdade de usar e usufruir do objeto enquanto ao mesmo tempo os outros estão excluídos Contudo as situações favoráveis como contrapartidas de um de ver nem sempre são consideradas como direitos subjetivos Se B por exemplo prometeu a A pagar uma quantia a C sob condições tais que somente A poderá exigirlhe o pagamento como correlato do dever de B surge uma vantagem para C E no entanto não se diria que um direito foi criado em favor de C c O conceito de direito subjetivo pressupõe portanto que o titu lar do direito dispõe também de uma faculdade relativamente à pes soa obrigada isto é que está aberta para ele a possibilidade de fazer valer seu direito instaurando um processo Pressupõese ao mesmo tempo que nenhuma outra pessoa pode mover processos O poder do proprietário de instaurar processo é tão exclusivo quanto seu uso e gozo do objeto Em outras palavras o titular de um direito tem um poder absoluto de conservar ou abandonar sua posição vantajosa de gozo passi vo Este poder está claro não consiste em nenhuma força mística conferida pelo ordenamento jurídico ao sujeito do direito significan do simplesmente que a maquinaria jurídica é acionada de acordo com a vontade do detentor do direito É como se o titular do direito ao instaurar um processo acionasse um botão que pusesse essa maquinaria em funcionamento 10 uso da palavra dever relativamente a isto é inadequado porque a reprovação social ideologicamente implicada na reação jurídica contra uma transgressão parágrafo 33 carece de importância para a descrição de um direito Se essa palavra é usada é simplesmente porque não há nenhuma outra isenta de ideologia para expressar a mesma coisa Direito e Justiça 211 d Segundo o uso lingüístico jurídico habitual o conceito de direi to subjetivo é empregado indubitavelmente numa quantidade de situações que combinam as características descritas em a c Mas os casos mais típicos tais como os bem desenvolvidos direitos do proprietário são caracterizados além disso por um poder exclusivo potestade para dispor do direito righf o que significa que só o proprietário tem o poder mediante declarações dispositivas em par ticular via declaração de transferência e testamento de provocar o efeito jurídico de que outra pessoa indicada na declaração o suce da no direito e Em resumo podemos dizer que o conceito de direito subjetivo é usado unicamente para indicar uma situação na qual o ordenamento jurídico deseja assegurar a uma pessoa liberdade de poder se com portar no âmbito de uma esfera específica como lhe agrade a fim de proteger seus próprios interesses O conceito de direito subjetivo indica a autoafirmação autônoma do indivíduo Isso é claro não significa um individualismo desenfreado e não é a antítese do caráter social de todo ordenamento jurídico Significa apenas que precisamente por considerações que produzem o bem estar da comunidade julgase desejável claro que dentro de certos limites proporcionar ao indivíduo a possibilidade de liberdade de ação Atualmente chegou a se converter num moto dizer que a pro priedade é uma função social Há algo de verdadeiro nisto porque a liberdade de ação do proprietário está no presente muito mais cir cunscrita por regras sociais do que submetida ao regime do individua lismo extremo que imperou no século XIX Entretanto a frase oculta o fato de que a propriedade mesmo com o seu conteúdo restrito serve ainda à autonomia do indivíduo A autonomia restrita prosse gue sendo autonomia e não uma função social É necessário frisálo porque o conceito de direito subjetivo não de veria incluir liberdades nem poderes para a proteção de interesses so ciais Na vida de uma comunidade é freqüente algumas pessoas serem aquinhoadas com uma liberdade de ação e poder privilegiados para a proteção dos interesses de outros ou de interesses comuns No seio da família por exemplo os pais gozam da liberdade de castigar os filhos menores e poder para conduzir seus atos Na vida pública num grau ainda superior diversas pessoas têm liberdade de ação e poder especiais para estabelecer disposições obrigatórias relativamente a outras 212 Alf Ross Porém nesses casos e em casos semelhantes as liberdades e os poderes não são concedidos a essas pessoas para a proteção autôno ma de seus próprios interesses mas como uma função social Que tais liberdades e poderes sejam concedidos como uma função social e não em interesse da autonomia do titular significa algo mais do que uma faculdade moral Significa também que essas liberdades e pode res estão juridicamente limitados e que o espírito no qual são exerci dos é controlado autoridades de vigilância regras concernentes ao abuso do poder etc Os casos deste tipo devem portanto ser ex cluídos do conceito de direito subjetivo O uso lingüístico corrente é vago mas há todavia uma definida tendência em falar nesses situa ções de autoridade ou poder autoridade dos pais autoridade públi ca e não de direito subjetivo Por uma questão de clareza devemos aderir a esta distinção terminológica2 37 APLICAÇÃO DO CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO A SITUAÇÕES ATÍPICAS Como vimos o conceito de direito subjetivo é apenas uma ferra menta na técnica de apresentação Todavia usualmente nos expres samos como se um direito subjetivo fosse algo que se interpõe entre os fatos e as conseqüências jurídicas algo que é criado e que por sua vez produz conseqüências diversas A compra dizse gera o direito de propriedade a favor do comprador e o direito de proprieda de produz o efeito do comprador poder reclamar a entrega Enquanto formos conscientes da verdadeira natureza do conceito de direito subjetivo o uso lingüístico não causará prejuízos Caso contrário poderá ser enganoso Se o uso lingüístico nos levar a crer que o direito subjetivo ele mesmo é distinto de seus efeitos teremos então um exemplo típico daquilo que em lógica se chama hipóstase isto é uma maneira de pensar em relação à qual por trás de certas correlações funcionais inserese uma nova realidade como o suporte ou causa dessas correlações Este poder da linguagem sobre o pen samento é oriundo possivelmente das idéias mágicas primitivas3 2 A teoria jurídica francesa emprega às vezes a terminologia droits à fin égoiste e droitsfonction Ver por exemplo Jean Dabin Le droit subjectif 1952 217 3 No seu livro Der rümische OMigationsbegriff 1927 Axel Hãgerstrõm mencionou argumentos de peso em apoio d l origem mágica das concepções jurídicas romanas A pesquisa moderna no campo da sociologia e da história dt religião aponta na mesma direção Ver Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap IX 25 Direito e Justiça 213 Do modo como vejo as coisas tem havido uma forte tendência no pensamento dos leigos e dos juristas para conceber o direito subjeti vo como uma substância Dificilmente alguém entre nós pode afastar por completo a idéia de associar ao conceito de direito subjetivo no ções mais ou menos indefiníveis de força sobrenatural uma espécie de poder interno e invisível sobre o objeto do direito subjetivo ou uma qualidade da vontade que lhe concede validade e poder em relação às vontades opostas de outras pessoas Se bem que não se confunde com elas esse poder se manifesta nas medidas de compulsão sentença e execução por meio das quais se realiza o controle fatual e visível que pertence ao titular do direito Mesmo entre as crianças observase a tendência a hipostasiar A criança logo aprende que é dona de certas coisas que chama de suas e percebe que certas vantagens práticas estão associadas a essa propriedade Mas ao mesmo tempo o ser dono em si mesmo inte ressa à criança tanto quanto as vantagens práticas e esse ser dono é concebido por ela como coisa distinta destas últimas Até meus filhos atingirem a idade de dez anos eu pude para nosso beneficio comum chegar a um acordo com eles segundo o qual meus filhos tinham certas flores do jardim enquanto eu me reservava o controle comple to sobre o que poderia ser feito com elas Até mesmo quando o adulto aprende melhor a compreender a função real da propriedade e não pode igualmente ser ludibriado com uma palavra persiste entretanto uma indiscutível tendência a considerar um direito subjetivo como uma realidade independente distinta das funções que cumpre Esta tendência está difundida in clusive no pensamento profissional Idéias metafísicas ocultas se re velam em falsos problemas ficções e falácias que podem ter uma influência desastrosa no tratamento das questões jurídicas práticas A concepção metafísica do direito como uma força espiritual é ca racterizada por duas teses 5que um direito subjetivo é sempre uma entidade simples e indivisa que tem de existir num sujeito específico e b que este sujeito tem que ser um ser humano ou uma organiza ção de seres humanos Ambas as teses podem conduzir ao erro aa idéia de que o direito subjetivo é uma entidade simples e indivisa que tem que existir num sujeito específico não é prejudicial nas situa ções típicas descritas no parágrafo anterior Nestes casos as diversas 214Alf Ross funções que constituem a situação jurídica apontam todas o mesmo objeto Normalmente é a mesma pessoa 1 aquela em cujo benefí cio se acha restrita a liberdade de ação de outra pessoa 2 aquela que pode fazer valer o direito instaurando processos e 3 aquela que tem o poder de alienar o direito A mesma pessoa é sujeito do interesse sujeito dos processos e sujeito da alienação Conseqüen temente não gera problemas pensar nessas diferentes funções como efeitos do próprio direito subjetivo como entidade que encontramos nesse sujeito geral É inteiramente diferente contudo se surgem situações nas quais as várias funções não se relacionam com o mesmo sujeito4 Isto ocorre com muita freqüência A entidade como é concebida no conceito substancialista do direito subjetivo não é de fato encontrada em lugar algum nesses casos a idéia tendo que conduzir inevitavelmen te a pseudo problemas e ficções Por exemplo o menor de idade é beneficiário sujeito do interes se o fideicomissário sujeito da administração sujeito de processos e de alienação A despeito disto costumase considerar que o direito right pertence ao menor isto é ao beneficiário Por outro lado nos contratos a favor de terceiros exigíveis pela pessoa diante da qual se contraiu a obrigação esta última a qual é o sujeito da administra ção é considerada como titular do direito Uma interpretação distinta parece estar condicionada pelo poder atribuído ao sujeito da adminis tração Enquanto no caso dos contratos em favor de terceiros a pes soa diante da qual se contraiu a obrigação pode exercer seu poder de instaurar processos e de alienação como lhe agrade em seu próprio interesse no caso do menor de idade o poder do fideicomissário é uma autoridade exercida por ele sob controle no interesse do menor Em outros casos a divisão entre o interesse do beneficiário e a administração ativa é ainda mais pronunciada Os estatutos das 4 Pelo que sei foi Bekker em Zur Lehre vom Rechtssubjekt Jahrbücher fürdie Dogmatik XII 18731 1 e segs o primeiro a destacar o fato de que as diferentes funções no âmbito de um direito gozo e administração podiam ser separadas e distribuídas entre diferentes mãos Posteriormente René Oemogue em Notions Fondamentales 1911 325 e segs desenvolveu essa idéia e a exposição que incluo aqui é inspirada em particular nesse último autor 0 mesmo ponto de vista é enfatizado por Alexander Nékám em The Personality Concept of the Legal Entity 1938 21 e segs que entretanto reserva a expressão sujeito de um direito è parte interessada e chama a parte administra dora de administradora de um direito Os três autores se opõem também de forma incisiva ao dogma de qu somente os seres humanos podem ocupar a posição de sujeito de direitos Direito e Justiça 215 corporações e fundações podem estabelecer regras de como o qua dro administrativo deve ser composto e como devem ser seleciona dos os sujeitos beneficiários Em conformidade com estas regras os membros individuais de cada grupo mudarão de tempos a tempos Em tais situações a idéia do direito subjetivo como substância que inclui uma diversidade de funções e que pertence a um sujeito es pecífico se revela completamente inadequada Quem é o proprietá rio da Fundação RockefeHer das quadras de tênis do Chicago Games Club ou da Instituição para as Viúvas dos Pedreiros Mestres de Middletown Ninguém é proprietário disto no mesmo sentido que sou proprietário de uma casa A fim de preservar a concepção substancialista é mister recorrer a construções No direito da Euro pa continental costumase imaginar um sujeito simples indiviso onde não existem nenhum A chamada pessoa jurídica5 é introduzida como sujeito do direito No direito inglês empregase amiúde a noção de frzsfideicomisso em casos semelhantes6 Atribuise tanto proprie dade ao trustee fideicomissário o sujeito controlado quanto ao cestui que trust o sujeito beneficiário ao primeiro propriedade jurídica e ao segundo propriedade de acordo com as regras de par ticipação equity Esta dupla propriedade se aproxima mais da ver dade porque indica que cada parte pode num certo sentido ser considerada como sujeito do direito Entretanto em lugar de falar de propriedade dupla seria mais exato dizer que não existe proprie dade no sentido típico aquelas funções que concebemos como com binadas no proprietário típico estão nesse caso divididas entre pessoas diferentes nenhuma das quais portanto ocupando a posi ção de um proprietário típico 5 Existe farta literatura que trata do problema de se a pessoa jurídica é uma realidade isto é um organismo natural dotado de vontade própria uma entidade viva distinta dos indivíduos que participam da vida da coletividade ou se não passa de uma ficção de que se vale o legislador quando guiado por considerações práticas deseja lidar com uma coletividade como se fosse um sujeito individual de direito Mesmo quando esse problema possa ter algum significado quando abordado dentro da estrutura da sociologia é certo que implica um falso problema de metafísica sob o prisma da análise jurídica Para esta o fato decisivo á que as situações jurídicas aqui consideradas não são análogas à situação individual típica dos direitos subjetivos mas que se acham estruturadas de um modo diverso Não se pode lidar com uma coletividade como um sujeito individual de direito Em tais situações simplesmente não existe um sujeito geral e toda discussão no tocante à natureza de tal sujeito não conduz a coisa alguma Uma vez isto admitido nada impede é claro que se continue empregando a terminologia firmemente estabelecida e que se prossiga falando de pessoas jurídicas como sujeitos de direito 6 Há uma transição gradual entre os casos nos quais é utilizada a noção de trust e aqueles nos quais é utilizada a noção de pessoa jurídica Ver Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 1946 cap VIII 6 a 216 Alf Ross Outras situações atípicas se apresentam quando o sujeito do direito é substituído em sua posição O exemplo típico é a transferência de propriedade Quando A transfere um objeto a B surge o problema de saber em que momento B adquire a posição jurídica de proprietário frente aos outros Esta relação frente aos outros pode ser dividida em muitas relações do sucessor com vários grupos de terceiros Não é necessário que o mesmo fato seja decisivo relativamente à posição jurídica de B nessas relações diversas Devido a razões práticas pode ser preferível que os fatos decisivos sejam vários Tanto a análise cien tíficojurídica quanto a políticojurídica têm portanto que ser análises de relações Uma vez esclarecidas as posições jurídicas nas diversas relações o problema de quando o direito de propriedade passa de A para B será apenas um problema terminológico sem conteúdo real Enquanto na doutrina escandinava o problema é tratado de acor do com tais pontos de vista funcionais e relativos em outros sistemas jurídicos o problema é predominantemente colorido pelas pressupo sições metafísicas do conceito substancialista do direito subjetivo Nesses sistemas jurídicos a transferência do direito de propriedade é considerada um fenômeno com substância própria do qual emanam diversos efeitos jurídicos Disso resulta primeiro que a transferência é considerada um fenômeno que ocorre diretamente entre as partes e do qual derivam as relações com terceiros como conseqüências e segundo que a transferência é considerada como absoluta isto é como tendo efeito contra todos os terceiros em virtude do mesmo fato Deste modo fica excluído todo exame relativista da transferên cia da propriedade b O conceito metafísico do direito subjetivo como uma força mo ral e espiritual conduz a um postulado dogmático de que somente seres humanos e pessoas jurídicas podem ser sujeitos de direito7 Na versão inglesa deste livro Margaret Dutton preferiu pender para a literalidade aliás recomendável ao se traduzir textos técnicos entre línguas de estrutura semelhante no caso o dinamarquês e o inglês Assim apesar de noss opção no português por relação frente aos outros é preciso salientar o mérito do inglês relation to the rest of the world por sua maior propriedade filosófica Enquanto analisando a questão do direito subjetivo Ross se posiciona im radical dualidade gnoseológica de sujeito e objeto na qual absolutamente tudo que não é sujeito é objeto de sortt que a relação do sujeito do direito não ê própria e unicamente com a alterídade os outros seres humanos percebidos como objeto na relação o mundo humano mas com toda a realidade todo o mundo todas as coisas WT 7 Este dogma tido pela maioria como uma verdade autoevidente procede aparentemente de uma idéia moral e metafísica do ser humano como centro do universo e fim de todas as coisas É associada com frequência à afirmativa dogmática igualmente insustentável de que todo ser humano é sujeito de direito Ver por exemplo Jean Dabin Le dnH subjectif 1952 116 Para a crítica do dogma ver os autores mencionados na nota 4 Direito e Justiça 217 E indubitável está claro que somente os seres humanos podem atuar como sujeitos de processos ou de disposição Por outro lado nada obriga a que os interesses reconhecidos pelas normas jurídicas como protegidos por um direito subjetivo sejam exclusivamente inte resses humanoS Assim freqüentemente se reconhece que podem ser deixados lega dos em benefício de animais legados que são administrados de acordo com regras idênticas às que regem os legados em benefício de seres humanos É incontestável portanto que nesse caso o animal é o beneficiário e segundo o uso lingüístico comum parágrafo 37 o titu lar do direito subjetivo Incorrese num conceitualismo irrealista e dogmático ao se interpretar o gozo do legado por parte do animal como mero reflexo de um direito do administrador embaraçado por um cargo em benefício do animal extraindose daí conclusões a respeito da situação jurídica em seus diversos aspectos por exemplo no caso de falência do administrador ou no que tange aos impostos8 O mesmo pode ser dito quando se reconhece que os legados po dem ser estabelecidos para a promoção de um propósito objetivo específico por exemplo a conservação de um monumento Uma coi sa é o poder para estabelecer esses legados como o poder para estabelecer outro tipo de legados ser outorgado ao testador para que possa proteger seus próprios interesses mas algo totalmente distinto é na situação jurídica estabelecida como resultado do legado em contraposição ao que ocorre com legados de outro tipo não se poder assinalar nenhum beneficiário Podese dizer se o preferir que nesses casos o propósito objetivo desempenha o papel de beneficiário e se pode caracterizar a propriedade como uma propriedade devota da a um propósito particular Zweckvermõgerí 38 A ESTRUTURA PE UM DIREITO SUBJETIVO O conceito de direito subjetivo é empregado na descrição de uma situação jurídica O conceito contém os seguintes elementos os quais constituem a estrutura de um direito subjetivo 8 Com relação às penas por crueldade com os animais e a freqüente má compreensão destas regras ver Alf Ross Towardsa Reafístic JtírisprudGnce cap VIII 6 b 218 Alf Ross a O sujeito do direito subjetivo Tal como vimos nos dois parágra fos anteriores é mister fazer distinções relativamente à posição do sujeito em relações diversas em particular aquela do sujeito do inte resse dos processos e da alienação Em situações típicas esses sujei tos coincidem num sujeito geral simples Em situações atípicas estão separados b O conteúdo do direito subjetivo Em sentido mais amplo o con teúdo do direito subjetivo inclui tanto a faculdade daim que o titular do direito right dispõe contra outros quanto seu poder para fazer valer essa faculdade mediante a instauração de processos e o poder para alienar o direito Visto que entretanto o poder de instaurar processos e o poder de alienar são acessórios da faculdade principal e portanto elementos constantes que aparecem nos diferentes direitos subjetivos é preferível restringir a idéia do conteúdo à facul dade específica em virtude da qual um direito se distingue do outro O conteúdo específico é pois a restrição da liberdade de ação de outra pessoa ou a correlativa faculdade do titular do direito O con teúdo do direito in personam é pois o dever de cumprimento do devedor ou a faculdade do credor a respeito do cumprimento O conteúdo do direito de propriedade é a faculdade do proprietário de que outros se abstenham de perturbar seu uso e gozo de uma deter minada coisa No campo dos direitos in rem a expressão conteúdo específico de um direito é usada também com menos precisão para designar a liberdade de ação privilegiada do titular do direito que é o resultado econômico fatual visado por sua faculdade legal Dizemos por exemplo que o conteúdo do direito de propriedade consiste na liberdade do proprietário de usar e gozar do objeto como julgar adequado dentro de certos limites c O objeto do direito subjetivo A determinação plena do conteú do de um direito in rem concreto inclui também o objeto físico em relação ao qual o titular do direito tem uma faculdade de gozo exclu sivo Este objeto físico é chamado de objeto do direito subjetivo Quan do um certo tipo de direito subjetivo como a propriedade ou um direito de servidão é considerado de forma abstrata o conteúdo do direito se define com a abstração do objeto A idéia de objeto do direito subjetivo dificilmente se aplica aof direitos in personam Direito e Justiça 219 d A proteção do direito subjetivo Visto que uma faculdade eqüi vale quanto à sua função jurídica à possibilidade de obter uma sen tença contra a pessoa obrigada a proteção processual ou estática de um direito é apenas um outro aspecto do conteúdo do mesmo Uma faculdade nada é sem a tutela do aparato jurídico Ao mesmo tempo a própria faculdade pode receber proteção através de diferen tes reações jurídicas aplicação de uma pena condenação a realizar o ato devido restituição indenização por danos e prejuízos Conse qüentemente podese fazer em abstrato uma distinção entre o con teúdo de um direito e sua proteção processual Distinta da proteção processual ou como prefiro chamála está tica de um direito é sua proteção dinâmica Esta se refere aos proble mas jurídicos que somente surgem quando o direito é transferido ou quando ocorre outra forma de sucessão ou seja se refere à dinâmica dos direitos subjetivos Entretanto é necessário esclarecer que é exa tamente o que quer dizer aqui proteção Quando A vendeu um objeto a B então numa consideração iso lada de fatos e regras jurídicas passa a existir a condição para que B suceda a A na posição deste último Mas se A vendeu também o objeto a C o se D credor de A executa o bem existem analogamente numa consideração isolada de fatos e outras regras jurídicas as condições para que C e D sucedam a A em sua posição Em tais situações falamos de colisão de direitos Esta expressão entretanto é enganosa porque é óbvio que B e C D não podem ambos ser titulares do direito subjetivo e portanto não pode haver colisão de direitos O ordenamento jurídico tem que conter regras adicionais que possam ajustar os dois pontos de vista isolados de tal modo que B ou C D seja o titular do direito ao objeto A situação portanto não apresenta na realidade uma colisão de direitos mas uma colisão de regras isoladas de sucessão De um ponto de vista mais amplo inexiste colisão B ou C D é o único titular Nessas situações portanto o problema da proteção nasce do fato de que as regras do ordenamento jurídico estão formuladas em gru pos que regulam de maneira isolada a transmissão de direitos Esses conjuntos isolados pressupõem regras suplementares e integradoras que regem a colisão entre direitos Estas regras suplementares de finem a proteção dinâmica do sucessor do direito 220 Alf Ross Ficará clara agora a existência de uma importante diferença en tre a proteção estática e a proteção dinâmica A proteção estática se refere às sanções passíveis de serem apli cadas no caso de violação do direito subjetivo Essas sanções podem ser mais ou menos efetivas de acordo com as condições sob as quais a transgressão é punida a magnitude da pena e as condições para que o titular do direito possa obter restituição ou compensação por danos e prejuízos Quanto mais efetivas as sanções maior será a proteção do direito subjetivo isto é maior a probabilidade de que o titular do mesmo obtenha realmente o gozo econômico pacífico dos bens que o ordenamento jurídico deseja proporcionarlhe É claro que esse tipo de proteção jamais pode ser absoluto A proteção dinâmica por outro lado nada tem a ver com sanções As regras da proteção dinâmica regulam a competição entre diversos sucessores em conflito cada um dos quais tem por si mesmo uma expectativa legítima de sucessão A proteção dinâmica assim não é proteção de uma posição jurídica existente mas da expectativa de um sucessor de ser colocado numa posição jurídica Esta proteção conforme as circunstâncias pode ser absoluta porque o ordenamento jurídico sob certas condições torna indiscutível a posição jurídica que resulta de uma sucessão Disso se conclui que a proteção estática se refere à relação entre o direito substantivo e os procedimentos jurídicos enquanto a prote ção dinâmica se refere a problemas internos do direito substantivo É um velho problema aquele de saber se há uma conexão natural ou necessária entre o conteúdo de um direito e sua proteção dinâmi ca Este problema será investigado no próximo capítulo eJOs elementos estruturais indicados nos itens precedentes aa d constituem o fundamento para a divisão dos direitos subjetivos em vários tipos É particularmente importante a divisão fundada no conteúdo Não podemos examinar aqui a sistematização dos direi tos no próximo capítulo nos ocuparemos unicamente de uma im portante classificação Direito e Justiça 221 39 DISCUSSÃO Nas obras do autor francês Léon Duguit9 e do autor sueco A V Lundstedt10 há discussões críticas do conceito de direito subjetivo que se relacionam com os pontos de vista expostos neste livro Es ses autores igualmente denunciam as idéias metafísicas tradicio nais presentes no conceito de direito subjetivo insistem que qual quer idéia que veja no direito subjetivo uma substância uma força espiritual criada por certos fatos carece de sentido e que a única realidade demonstrável nas chamadas situações de direito subjeti vo consiste na função da maquinaria jurídica Dadas certas condi ções uma pessoa pode com relação ao direito vigente instaurar processos e dessa maneira acionar a maquinaria jurídica com o resultado do poder público ser exercido em seu benefício Pode ob ter uma sentença e execução compulsória gerando para si uma posição vantajosa uma possibilidade de ação um benefício econô mico E isto é tudo11 Até aqui é fácil concordar com esses autores Entretanto a partir desse ponto em lugar de prosseguir indagandose o que caracteri za as situações denominadas direito subjetivo e como pode esse conceito ser analisado e utilizado como ferramenta para a descrição daquelas situações tal como procuramos fazer nas páginas que antecedem Duguit e Lundstedt conferem à sua exposição crítica um rumo peculiar afirmam que o direito subjetivo não existe O argumento de Duguit para provar a não existência de direi tos subjetivos é simples Postula primeiramente que a expressão direito subjetivo somente pode significar um poder inerente a uma vontade individual para se afirmar frente a outras vontades isto é uma inerente supremacia de uma vontade relativamente a outras Prossegue afirmando que não há nas vontades tais diferenças imanentes e portanto não há direitos subjetivos 9 Ver especialmente Traité de Droit Constitutionnel I 3a ed 1927 Cl Jean Dabin Le droit subjectif352 5 e segs 10 Ver Die UnwissenschaftUchkeit der Rechtswissenschaft 1932 135 e segs 11 Antes de Duguit e Lundstedt Bentham empreendeu um estudo crítico seguindo linhas similares Ver por exemplo Works publicação de John Bowring 1843 I 248 358 361 e II 497 e segs e em particular The Limits of Jurisprudence Defined publicado primeiramente em 1945 57 e segs 222 Alf Ross E claro que esse raciocínio se baseia na idéia ingênua de que uma palavra tem um significado imanente que não pode ser altera do A prova é produzida por Duguit postulando primeiro que a expressão direito subjetivo só pode significar algo que carece de significado e proclamando depois que esse algo que carece de significado não existe Também Lundstedt crê no significado imanente das palavras Sus tenta que os direitos não existem no sentido conceituai não obstante admitir que há certas realidades por trás do conceito e não vê razões para deixar de usar em prol da brevidade a expressão direito subjeti vo como uma mera designação dessas realidades12 Poderseia pen sar que Lundstedt tenta propor um novo conceito de direito subjetivo definido por essas realidades Contudo ainda que a expressão pu desse ser concebivelmente empregada como designação de certas qualidades estas não podem do ponto de vista lógico ser classifica das sob o conceito de direito subjetivo o que significa necessaria mente que não há direitos subjetivos Além desse ingênuo misticismo das palavras as idéias de Duguit e de Lundstedt padecem do mal de confundir os pontos de vista jurídico e sociológico A vantagem econômica a possibilidade fatual da ação a posição protegida a que se referem esses autores são obviamente a conseqüência prática de uma situação jurídica não a própria situa ção Entretanto como conceito jurídico o conceito de direito subjetivo tem que ser analisado como um instrumento para a descrição de um conteúdo jurídico Esses autores não oferecem uma análise desse pon to de vista Nenhum dos dois percebe o valor do conceito como ferra menta de apresentação nem as diversas relações jurídicas distinguíveis numa situação de direito subjetivo É paradoxal que esses ardorosos denunciadores das idéias metafísicas presentes no conceito de direito subjetivo aceitem sem um exame crítico a idéia do direito subjetivo como uma entidade simples e indivisa idéia que é a concreção mais tangível da metafísica que se declara proscrita Os pioneiros de uma análise mais profunda do conceito de direito subjetivo não foram Duguit e Lundstedt os quais negam a existência de direitos subjetivos mas sim Demogue Nékám e Bekker 13 que n Op cit 119 13 Ver parágrafo 37 nota 4 Direito e Justiça 223 perceberam que esse conceito engloba funções distintas e mutua mente independentes em particular as do gozo e da administração A discussão tradicional em torno do conceito de direito subjetivo se moveu num plano que se correto o ponto de vista aqui defendido tem que ser rejeitado por falta de realismo Considerouse que o mais importante era determinar a essência do direito subjetivo Por um lado há a teoria de Ihering segundo a qual a essência de um direito subjetivo é o interesse juridicamente protegido Em oposição a ela se acha a teoria de Windscheid que sustenta que a essência do direito subjetivo é um poder ou supremacia da vontade14 A polêmica entre estas duas teorias parece ser infindável Contra a teoria do interesse se afirma que em algumas situações o interesse está separado do direito subjetivo por exemplo quando a propriedade se acha embaraçada por encargos em benefício de outros ou nos casos de contratos cele brados em favor de um terceiro mas que só podem ser exigíveis pelo promissário A teoria de Ihering dificulta a distinção entre o próprio direito subjetivo e seus efeitos reflexos em benefício de outros Contra a teoria da vontade por outro lado afirmase que as pessoas que carecem de vontade ou de vontade razoável como as pessoas não nascidas as crianças e os insanos podem todavia ser sujeitos de direito Muitos autores posteriores consideraram que a essência do direito subjetivo é uma combinação de interesse e vontade15 Essa discussão não leva a lugar algum Se é correto dizer que ao conceito de direito subjetivo não corresponde em absoluto uma reali dade que apareça entre os fatos condicionantes e as conseqüências jurídicas não tem sentido discutir se o direito subjetivo em sua es sência é interesse vontade ou alguma terceira coisa Por trás das diversas idéias de uma essência substancial ocultamse diferentes pontos na situação típica de direito subjetivo a vantagem fatual de terminada pela restrição da liberdade alheia o poder de instaurar processos e a competência potestade da alienação As dificuldades com as quais cada uma das teorias tem que pelejar nascem do fato de que as funções que estão integradas nas situações típicas sur gem fragmentadas entre sujeitos diferentes nas situações atípicas 14 A teoria de Ihering está formulada em seu Geisl des rõmischen Rechts III e IV com variações segundo as distintas edições da obra A doutrina de Windscheid é desenvolvida em seu Pandektenrecht I também com variações segun do as distintas edições da obra Ver ademais Alf Ross Towards a Reaiistic Jurisprudence 1946 cap VII 3 e Jean Dabin Le droit subjectiíK 1952 56 e segs 15 Ver Alf Ross op cit 168169 e Jean Dabin Le droit subjectif 1952 72 e segs QUIET PLEASE Were working in your Neighborhood We apologize for any inconvenience Construction Hours MondayFriday 7 am to 7 pm Saturday 9 am to 5 pm Sunday No work scheduled For your safety and the safety of our crews please use caution around construction areas and obey all posted signage Construction Update We are removing and replacing the water main and water service lines from east 5th avenue to east 6th avenue and nora street on 8th avenue Work will include removing the asphalt and curbs and pouring new concrete Updates Questions Text GWS to 468311 or call 5038234874 Whenever construction is underway for your block construction activity begins around 7 AM and continues until 7 PM Monday through Saturday On Sundays no work is scheduled unless an emergency occurs Staff wear distinctive community work uniforms and carry ID badges Affected homes and businesses receive direct communication from the contractor or city ahead of work starting and can expect followup updates as work progresses The City continues to build and move forward on our civil works projects to keep our community safe and vibrant Please bear with us as this construction season continues We appreciate your cooperation and patience To provide feedback please call the city council office at 5038234000 Capítulo VII Direitos In Rem e Direitos In Personam 40 DOUTRINA E PROBLEMAS Desde a antiguidade é usual distinguir no campo do direito patrimonial dois grupos principais de direitos subjetivos direitos in rem e direitos in personam Nos tempos modernos costumase adicio nar um terceiro grupo os chamados direitos de propriedade imaterial A doutrina em torno dessa distinção pode ser desenvolvida de diversas maneiras porém seu cerne inalterável é a conexão essencial entre o conteúdo do direito subjetivo e sua proteção1 Esta doutrina pressupõe que a divisão dos direitos patrimoniais segundo seu con teúdo seja acompanhada de uma correspondente divisão da prote ção Os direitos que segundo seu conteúdo são in rem pelo que se entende usualmente que autorizam um uso e gozo imediatos de uma coisa estão providos de proteção in rem pelo que se entende usual mente que o titular do direito pode obter a entrega ou restituição da coisa diante de quem quer que dela se tenha ilegitimamente apoderado podo retirála do patrimônio do titular anterior que tenha falido e tem prioridade sobre adquirentes posteriores Os direitos que segundo seu L Temse por certo ademais que a distinção á também importante em muitos outros aspectos e por isso é tomada como base para a divisão do direito patrimonial em dois ramos principais o Direito das Coisas Sachenrecht e o Direito das Obrigações Obligationenrecht 226 Alf Ross conteúdo são in personam pelo que se entende usualmente consis tirem eles numa faculdade daim frente a uma pessoa para que esta realize um ato estão providos de proteção in personam pelo que se entende usualmente que só podem ser aplicados contra o devedor o titular do direito não tem direito de obter a restituição da coisa não pode retirála do patrimônio do devedor falido e deve ceder diante de adquirentes posteriores de boa fé A doutrina dos direitos in rem e dos direitos in personam assume um caráter diferente dependendo da distinção quanto ao conteúdo e a diferença na proteção ser definidos de forma mais rigorosa Se por ora ignorarmos isso o conteúdo comum da doutrina dos direitos in reme in personam poderá ser resumido da maneira que se segue 1 O direito in rem é aquele que de conformidade com seu con teúdo é um direito sobre uma coisa e portanto é dotado de prote ção in rem 2 O direito in personam é aquele que de conformidade com seu conteúdo é um direito frente a uma pessoa e portanto é dotado de proteção in personam Essa terminologia todavia não é muito apropriada porque as expressões in reme in personam aludem igualmente ao conteúdo do direito e a sua proteção o que pode dar margem a confusões Será preferível por conseguinte empregar uma expressão para a diferen ça de conteúdo e outra para a diferença de proteção Se para a pri meira introduzirmos as expressões direito de disposição right of disposa2 e direito de faculdade right of daim o cerne da doutrina poderá então ser reformulado como se segue 1 Segundo o conteúdo dos direitos patrimoniais podese distin guir entre direito de disposição e direito de faculdade 2 Segundo os princípios relativos à proteção de um direito pode se distinguir entre proteção in rem e proteção in personam 3 Existe uma conexão necessária ou natural entre essas duas dis tinções de modo que um direito de disposição é normalmente dotado de proteção in rem e um direito de faculdade de proteção in personam 2 Disposição aqui significa disposição fatual e não disposição alienação jurídica o uso e gozo fatual da coisa 1X1 parágrafo 33 e com referência a disposição como competência jurídica Direito e Justiça 227 Esta terminologia será utilizada na análise crítica da seqüência na qual as seguintes questões serão levantadas 1 As distinções correntes entre direito de disposição e direito de faculdade são sustentáveis parágrafo 41 2 As distinções correntes entre proteção in rem e proteção in personam são sustentáveis parágrafo 42 3 É possível atribuir a essas distinções um significado tal que exista uma conexão necessária ou natural entre elas parágrafo 43 Comecemos pela conclusão a análise seguinte procura demons trar que as duas primeiras questões têm que ser respondidas negati vamente e a terceira afirmativamente Isto quer dizer que ainda que as duas distinções e as idéias sobre sua correlação sejam insustentá veis a doutrina tem algo importante a oferecer O delineamento escrito3 a respeito da distinção entre direitos in rem e direitos in personam é o seguinte a A doutrina predominante define a distinção fundamental entre direito de disposição e direito de faculdade expressando que o pri meiro é um direito que se tem de forma imediata sobre um coisa enquanto o segundo é um direito contra uma pessoa O direito de disposição é aquele que sem se achar fundado numa relação jurídica frente a outra pessoa autoriza de forma imediata o titular do direito a um uso e gozo diretos ou a exercer um poder direto sobre uma coisa seja em todos os aspectos propriedade seja em certos aspectos determinados jura in re aliena O direito de faculdade é aquele que se tem contra uma pessoa que nasce de uma relação jurídica entre o titular do direito e uma certa pessoa e que corresponde ao dever desta pessoa em relação ao titular do direito Desse diferença na essência dos direitos deriva uma diferença em seus efeitos jurídicos visto que o direito de disposição é direito sobre a coisa como tal e não contra outra pessoa vale frente a quem quer que seja ou em outras palavras é absoluto valendo tanto relativa mente aos sucessores quanto relativamente aos credores é como dizem os franceses dotado de droit de suite e droit de préférence 3 Ver também um estudo detalhada em Alf Ross Towarda Realistic Jurisprudence 1946 cap IX 228 Alf Ross Uma sentença proferida contra outro partido não se funda em nenhu ma obrigação deste mas simplesmente no fato negativo de que esse outro partido não tem nenhum direito que possa opor ao demandante Esse fato é em si suficientemente poderoso para convalidar a pre tensão de sentença e execução Mesmo quando por vezes se admi te que os terceiros estão obrigados a não perturbar o gozo do direito se enfatiza entretanto que essa obrigação é simplesmente um re sultado do direito de disposição não uma parte de sua essência Inversamente considerandose que o direito de faculdade é um direi to contra uma pessoa que tem a correspondente obrigação vale so mente contra ela e é portanto relativo não tem suite ou préférence Neste caso a sentença contra o devedor se apóia em sua obrigação relativamente ao credor e não simplesmente no direito deste último e na ausência de direito da outra parte b Dirigese uma difundida crítica à maneira na qual a doutrina predominante define o direito de disposição O argumento é de que todo ordenamento jurídico é em última análise um regramento dos atos humanos em relação recíproca e que portanto o direito de disposição não pode ser definido como um poder que se tem de forma imediata sobre um objeto 0 direito por exemplo que a propriedade confere ao proprietário é uma fa culdade daim relativamente a outras pessoas a faculdade de que outras pessoas não lhe perturbem seu gozo fatual do objeto A pro priedade consiste juridicamente apenas nas faculdades que o pro prietário pode fazer valer contra outras pessoas ou nos deveres cor respondentes por parte de outros Em conformidade com isto o direito de disposição é definido como uma obrigação universal e negativa de absterse O direito de disposição assim tanto como o direito de faculdade é a expressão de uma relação jurídica interpessoal A diferença con siste na estrutura e no conteúdo da relação jurídica Num caso a obrigação se aplica unicamente a uma ou mais pessoas determina das e seu conteúdo pode estar definido positiva ou negativamente No outro a obrigação se aplica a todos e seu conteúdo está definido negativamente como um dever de não perturbar o uso e o gozo Do caráter universal do direito de disposição concluise que vale contra todos Direito e Justiça 229 Essa crítica portanto não polemiza a distinção fundamental entre o direito de disposição e o direito de faculdade nem a idéia subjacente de uma conexão íntima entre o conteúdo de um direito e sua prote ção seu objetivo é simplesmente atingir uma formulação jurídico filosófica mais plausível da intenção da doutrina que prevalece 41 DIREITO DE DISPOSIÇÃO E DIREITO DE PRETENSÃO OU FACULDADE A distinção corrente entre o direito de disposição o direito de uso e gozo de uma coisa e o de faculdade o direito contra uma pessoa para que esta dê cumprimento a algo não apresenta dificuldades no caso dos cumprimentos genericamente determinados não é difícil distinguir entre a propriedade de uma vaca e uma faculdade contra B para que pague 500 Mas dificuldades podem muito bem surgir no caso de cumprimentos referentes a coisas individualmente determinadas Por um lado não há razão para que um direito de uso e gozo de uma coisa não possa pressupor cooperação da parte de outra pessoa e deste modo uma faculdade contra ela Tal é o caso por exemplo dos direitos limitados de disposição ou gravames incumbnances porque neste caso o proprietário tem um dever em relação ao titular do direito limitado É irrelevante que o direito de usufruto por exemplo seja definido como o uso e gozo efetivos e imediatos que tem que ser respeitados por todos inclusive o proprietário ou como a faculdade relativamente ao proprie tário para que este ceda o uso e gozo ao usufrutuário Por outro lado não há razão para que uma faculdade contra uma pessoa não obrigue o devedor segundo seu conteúdo a ceder ao credor o uso e gozo de uma coisa ou permitirlhe que continue nele com o que a faculdade aparece nessa medida como um direito de disposição Tra tase da mesma coisa vista da outra face O duplo aspecto acontece tipicamente na compra e venda de bens móveis até que a coisa seja efetivamente entregue É irrelevante dizermos que o direito do compra dor é um direito de disposição interpretando sua pretensão ou faculda de relativa à entrega da coisa como paralela à pretensão ou faculdade do proprietário a respeito da entrega do bem de sua propriedade pela pes soa que o possui apenas em caráter provisório até o momento da entre ga ou dizermos que o direito do comprador é um direito de pretensão ou faculdade contra o vendedor para a entrega da coisa 230 Alf Ross As dificuldades surgem porque a distinção é desfigurada isto é os dois conceitos não estão formados com base no mesmo fundamento de divisão O direito de disposição é um conceito com propensão sociológica define uma situação jurídica em relação ao efeito econômico a utiliza ção real de um benefício como efeito prático de uma posição jurídica O direito de pretensão ou faculdade por outro lado é um conceito puramente jurídico que expressa unicamente a posição jurídica a pretensão do credor o dever do devedor e desconsidera a vantagem econômica resultante da aplicação prática das normas a perspectiva do credor de obter o cumprimento Se o dever do devedor consiste em proporcionar ao credor o uso e gozo de uma coisa os dois conceitos se sobrepõem tornandose por conseguinte impraticável uma distinção entre eles Uma distinção com significado somente pode estar fundada logicamente em a o efeito real buscado ou b as faculdades e deve res jurídicos por meio dos quais esse efeito é realizado a Todo direito subjetivo patrimonial visa em sentido econômico a dar ao titular do direito o uso e gozo de objetos específicos pela simples razão de que só é possível o uso e gozo de objetos específi cos esta vaca estas sacas de milho estas cédulas Assim por exem plo uma faculdade genericamente determinada de receber cem sa cas de milho visa a dar ao credor em algum tempo o uso e gozo de cem sacas de milho específicas que devem ser entregues pelo deve dor O fato da faculdade ser genericamente determinada só quer di zer portanto que ainda não é possível individualizar as cem sacas Disso se conclui que com base num fundamento econômico nãd é possível traçar distinção alguma entre o direito de disposição e o direito de pretensão ou faculdade Do ponto de vista econômico to dos os direitos são direitos de disposição Contudo podese fazer uma distinção entre a Direitos cujos objetos de disposição podem ser imediatamente assinalados e que podem ser aj Direitos de uso e gozo efetivos de um objeto específico por exemplo propriedade usufruto ou Direito e Justiça 231 a2 Direitos a um uso e gozo futuros de um objeto já determina do por exemplo o direito do comprador a uma determinada vaca que tenha comprado p Direitos cujo objeto de disposição não pode ainda ser indicado por exemplo o direito de A quando B prometeulhe entregar no futu ro cem sacas de milho ou pagarlhe 500 Ou mais sumariamente a Direitos sobre ou a um objeto já determinado individualmente P Direitos a um cumprimento determinado por ora apenas sob forma genérica O objeto dos direitos expressos em p não pode ser individualiza do até ocorrerem certos eventos posteriores individualização obriga tória entrega princípio de execução Podemos é claro continuar denominando direito de disposição os expressos em a e direitos de pretensão ou faculdade os expressos em p desde que não esqueçamos que também estes últimos bus cam estabelecer um uso e gozo econômicos Descobriremos então que o direito de faculdade representa uma etapa preliminar do direito de disposição Cedo ou tarde todo direito de pretensão ou faculdade se transforma num direito de disposição Considerado puramente à luz de sua função jurídica todo direi to subjetivo consiste nas faculdades jurídicas que o titular do direito pode fazer valer por meio de processos Falamos da existência de uma faculdade ainda quando não este jam presentes todas as condições necessárias para instaurar um pro cesso civil e obter sentença Dizemos por exemplo que A tem uma faculdade com relação a B quando B prometeu pagar a A 500 no prazo de quatorze dias no prazo no qual por certo A não pode ainda iniciar processos judiciais É possível todavia indicar já desde o começo a conduta que produzirá o poder efetivo de instaurar proces sos a saber que B não pague a dívida dentro dos quatorze dias Devido a isso é também possível conferir um conteúdo definido à faculdade de A e ao dever de B Em outros casos isso não é possível Se dizemos por exemplo que o proprietário tem a faculdade que ou tros não perturbem seu uso e gozo é contudo indefinido quais atos futuros darão origem ao efetivo poder de A de instaurar processos 232 Alf Ross Talvez B se apodere da coisa furtandoa ou C a incendiará ou D a danificará passando por cima dela ou E a tomará emprestada e a perderá ou a coisa chegará acidentalmente às mãos de F que se recusará a restituíla etc Fica claro que a faculdade do proprietário é todavia totalmente indefinida tanto à pessoa contra quem uma ação poderia ser movida quanto ao ato do qual dependerá tal ação A faculdade expressa unicamente uma condição fundamental provisó ria para promover uma ação unicamente os eventos posteriores lhe conferirão um conteúdo definido Sobre essa base podemos traçar uma distinção entre faculdades exigíveis e não exigíveis As primeiras designam situações jurídicas nas quais o titular do direito pode instaurar um processo civil e obter sentença ou pode pelo menos indicar de forma definida a conduta que produzirá isso enquanto as segundas designam as situações jurídicas nas quais está presente uma condição fundamental para os processos judiciais porém até esse momento só é possível indicar de forma indefinida o curso de conduta que produzirá o efetivo poder de instaurar um processo Sobre essa base funcional podemos definir o direito de disposição dizendo que é um direito que consiste exclusivamente em faculdades não exigíveis não vencidas e o direito de pretensão ou faculdade dizendo que é um direito com faculdades exigíveis vencidas Essa definição dos direitos de disposição e dos direitos de preten são ou faculdade não coincide com a definição no sentido econômico dada em aA No sentido econômico por exemplo o direito do com prador de uma coisa específica é um direito de disposição No sentido funcional em contrapartida tratase de uma relação mista Na rela ção direta compradorvendedor há faculdades exigíveis vencidas e daí um direito de faculdade porém na medida em que a compra pode prover um fundamento para faculdades não exigíveis não vencidas contra outros no caso em que a situação jurídica tenha sido perturbada o comprador tem um direito de disposição A confusão que prevalece em casos como os descritos pode ser explicada simplesmente como o resultado de uma distinção distorcida que mescla critérios econômicos e critérios relativos a funções jurídicas 4 É claro que não é conveniente trabalhar com dois conjuntos diversos de definições mas ambas as concepções estão tão estreitamente vinculadas a esses termos que seria dificilmente satisfatório inventar uma nova terminologia Se na seqüência o contexto não o indicar indicaremos de maneira explícita em que sentido os termos são usados Direito e Justiça 233 O exame feito em a e b visa a demonstrar que a distinção entre direitos de disposição e direitos de pretensão ou faculdade em ambos os sentidos está intimamente ligada a algo dinâmico o desenvolvimento no tempo de uma situação jurídica Um direito de pretensão ou faculda de no sentido econômico se transforma num direito de disposição e um direito de disposição no sentido fUncional pode segundo as cir cunstâncias transformarse num direito de pretensão ou faculdade 42 PROTEÇÃO IN REME PROTEÇÃO IN PERSONAM Em geral a proteção in rem sugere I o o poder para obter que qualquer outro que esteja de posse da coisa sem direito a entregue 2o uma posição jurídica superior em relação aos diversos grupos de terceiros em particular os sucessores e credores do antecessor es pecialmente a massa de credores do antecessor falido Essa definição do conceito de proteção in rem oculta vários proble mas jurídicos cada um dos quais é mais amplo do que poderia pare cer à primeira vista De acordo com o que foi afirmado no parágrafo 38 é preciso dis tinguir entre proteção estática e proteção dinâmica A proteção estática é aquela constituída por remédios jurídicos com cujo auxílio o ordenamento jurídico busca influir na conduta dos seres humanos de tal sorte que um efeito econômico perseguido se realize O poder para lograr a entrega é apenas um dos seus remé dios As sanções penais a faculdade de obter compensação por perdas e danos a faculdade de obter compensação por enriqueci mento indevido e as injunções se acham também entre os remédios jurídicos com cujo auxílio o ordenamento jurídico procura assegurar a uma determinada pessoa uma certa posição fatual A proteção dinâmica por outro lado é a resultante das regras que determinam quem dentre dois ou mais sucessores em conflito tem melhor direito A sucessão ocorre sob três formas principais trans missão singular execução pelos credores e herança As condições para a sucessão válida em cada dessas três formas estão expressas em regras relativamente isoladas Se houver diversas sucessões do mesmo tipo ou de tipos diferentes a respeito do mesmo direito 234 Alf Ross então serão necessárias regras superiores para a solução desse con flito a fim de ser decidido qual dos competidores sucederá no direito Estas regras superiores são as regras de proteção dinâmica O problema da proteção dinâmica se refere portanto às relações recíprocas entre diversos sucessores e pode ser considerado não so mente a partir da posição de um sucessor por transmissão singular em relação com outros com credores ou com herdeiros como tam bém a partir da posição de um credor ou de um herdeiro Os problemas da proteção dinâmica surgem não somente no caso da sucessão de direitos de disposição como também naquele dos direitos de pretensão ou faculdade As questões são análogas em ambos os casos A distinção entre proteção in reme proteção in personam é muito mais complexa do que aquilo que se supõe usualmente A proteção qualificada sugerida pela expressão proteção in rerri quer dizer algo substancialmente diferente segundo se contemple a proteção estáti ca ou a dinâmica Os problemas resultantes em ambos os aspectos são mais amplos do que as idéias correntes pareceriam indicar de vendo ser examinados num contexto mais lato Mas há alguma jus tificação para fazer uma distinção E se houver qual é a conexão entre a distinção e o conteúdo do direito subjetivo 43 A CONEXÃO ENTRE CONTEÚDO E PROTEÇÃO a No que concerne à proteção estática podemos razoavelmente nos indagar se há uma conexão necessária ou natural entre o conteú do de um direito e sua proteção porque a proteção nesse sentido pertence ao direito subjetivo individual e é pois concebível que a proteção possa variar com o conteúdo Não há porém razões plausíveis para que os direitos de preten são ou faculdade não contem com proteção estática como contam os direitos de disposição Quando o ordenamento jurídico colima o efeito fatual de que A que tem uma faculdade contra B acabe por obter o cumprimento deste seria apenas metade da batalha se lhe fossem fornecidos somente remédios contra B e não contra outros que com sua conduta pudessem frustrar esse efeito Naturalmente a própria Direito e Justiça 235 faculdade só pode ser invocada contra o devedor O dever de um terceiro jamais pode ser o de exercer o cumprimento mas o de não interferir na relação contratual A necessidade prática de tal salva guarda é percebida com particular clareza naqueles casos em que o terceiro se encontra em situação de extinguir o direito do credor por exemplo transferindo um documento negociável com efeito extintivo ou alegando uma impossibilidade que extinga a obrigação do deve dor Também é percebida quando um terceiro sem extinguir o direito do credor lesa seus interesses fazendo com que a faculdade não possa ser adequadamente satisfeita por exemplo alegando impossi bilidade em circunstâncias tais que o devedor não é liberado A proteção estática é também concedida de fato ao credor em me dida variável nos modernos sistemas jurídicos A antiga doutrina ro mana segundo a qual os direitos de pretensão ou faculdade só podiam ser violados pelo devedor e em conseqüência não gozavam de prote ção contra os demais é uma construção puramente doutrinária deduzida da distinção entre direitos ln personam e direitos in rem5 Os remédios disponíveis contra terceiros podem consistir em es pecial como no caso dos direitos de disposição em penalidades faculdade de obter compensação por perdas e danos ou compensa ção por enriquecimento injusto conjuntamente com as injunções proibitivas ou compulsórias Existe uma faculdade análoga à faculda de de obter a entrega ou a restituição da coisa se o exercício dos direitos de pretensão ou faculdade dos outros conferir ao credor uma ação para recuperar seu crédito desqualificado pela má fé da pessoa que exerce o direito Não há portanto nenhuma conexão necessária e nem na práti ca conexão natural entre o conteúdo de um direito e sua proteção estática porém há boas razões para conferir aos direitos de pretensão ou faculdade proteção contra a interferência de terceiros com base em princípios substancialmente iguais aos princípios aplicáveis aos direitos de disposição b No que toca à proteção dinâmica por outro lado já fica excluída de entrada a possibiiidade de existir alguma conexão entre o conteú do e a proteção de sorte que certos direitos estejam dotados de 5 Ver Alf Ross Towards a ReaBstic Jurisprudence 1946 275276 236 Alf Ross proteção in rem e outros de proteção unicamente in personam Isto se deve ao fato de as regras que regem a proteção dinâmica se refe rirem à colisão entre várias sucessões cada uma das quais é válida quando considerada separadamente disto se conclui que as diferen ças na proteção dinâmica têm que estar condicionadas pelo tipo de colisão não pelo tipo de direito A idéia de que um direito é dotado te um tipo específico de proteção dinâmica é portanto errônea Com isso não queremos dizer que a distinção entre direito de dispo sição e direito de pretensão ou faculdade de um lado e as regras que regem a proteção dinâmica de outro não estão associadas por cone xão alguma Contudo essa conexão tem que ser necessariamente provocada pelos possíveis tipos de colisões Se as duas classes de direi tos forem simbolizadas por a e b então serão possíveis três tipos de colisões a saber a a b b e a b cabendo se perguntar se princípios diferentes são aplicados à proteção dinâmica nesses três casos De fato assim é o que não significa que haja alguma necessidade lógica por trás da correlação nem que as regras sobre proteção dinâ mica sejam as mesmas em todos os sistemas jurídicos Por outro lado podese dizer que em todos os modernos sistemas de direito encontramse certos pontos de vista principais em comum6 que de monstram que esses três tipos de colisões são tratados segundo dife rentes princípios o que é claro não exclui as diferenças dos deta lhes Entretanto a grande similitude no que respeita a essas caracte rísticas fundamentais autoriza que se pense numa conexão natural entre o tipo de colisão e os princípios que regem a proteção dinâmica Sob forma esquemática os princípios podem ser estabelecidos da seguinte maneira7 Colisão a a direito de disposição versus direito de disposição princípio de prioridade Essa colisão é solucionada sobre a base da prioridade O direito criado primeiramente tem preferência sobre o direito criado posterior mente Com base em fundamentos de técnica jurídica o princípio 6 Mencionei pontos que me permitissem mostrar que a distinção entre o cumprimento determinado individualmente e genericamente é uma idéia que aparece universalmente na história jurídica Ibid cap X 4 7 As expressões direito de disposição e direito de pretensão ou faculdade são tomadas em conexão com isso no seu sentido econômico isto é são definidas como direitos sobre ou em relação a um objeto especificado individual mente e direitos a um cumprimento determinado de forma genérica Direito e Justiça 237 sofre modificações através das regras relativas à inscrição ou regis tro à aquisição de boa fé extintiva e outras Colisão b br direito de pretensão ou faculdade versus direito de pretensão ou faculdade princípio de competição Se um devedor cria primeiro um direito de pretensão ou faculda de em benefício de A e depois outro em benefício de B o direito de B pode significar uma diminuição da possibilidade de A obter cumpri mento A presença de vários credores em relação ao mesmo devedor significa pelo menos um colisão potencial de interesses A posição portanto é análoga a da dupla venda e realmente frente a ela não há razão para que não se pudesse chegar a uma solução sobre a base do princípio de prioridade Os sistemas jurídicos modernos contudo apóiamse no princípio de competição Em conformidade com esse princípio os credores têm que com petir visando a obter cumprimento independentemente da data de suas pretensões de créditos Normalmente a competição é livre isto é um credor não tem proteção em relação a outro Cada um deles pode perseguir o devedor sem atender à existência dos ou tros ou de suas prioridades A competição só é restringida quando a colisão de interesses tornouse tão aguda a ponto de ser impos sível satisfazer todos os créditos das pretensões A esta altura as regras da falência são aplicadas isto é regras de competição res trita pelas quais se concede proteção mútua a todos os credores de modo que todos têm de se submeter a uma redução proporcio nal de seus créditos cumprimento de suas pretensões em rela ção ao patrimônio disponível Na prática o ordenamento jurídico altera esse princípio por meio de regras relativas às transações anuláveis no processo de falência dívidas privilegiadas etc Colisão a br direito de disposição versus direito de pretensão ou faculdade princípio de preferência O direito de disposição tem preferência em relação ao direito de pretensão ou faculdade sem que exerça influência a data de cria ção dos direitos Com base em razões técnicas o direito modifica esse princípio mediante as regras relativas à invalidação inscrição ou registro etc 238 Alf Ross Tentei demonstrar que não há dois tipos de proteção dinâmica in rem e in personam atribuídos a dois tipos de direitos mas três tipos de princípios de proteção atribuídos a três tipos de colisões É fácil compreender todavia como surgiu a idéia de dois tipos de proteção Na realidade os dos tipos de direitos não entram nos mesmos tipos de conflito Enquanto o direito de disposição a forma parte ôe a a e a b o direito de pretensão ou faculdade forma parte de b b e a b Um exame superficial poderia sugerir que estão protegidos segundo princípios diferentes diretamente deter minados pelo conteúdo do direito A posição real pode ser mostrada da seguinte maneira Proteção in rem proteção de acordo com o princípio de prioridade na colisão a a o princípio de preferência na colisão a b Proteção in personam proteção de acordo com o princípio de competição na colisão b b o princípio de preferência na colisão a b Nenhum dos dois termos é assim a expressão de um princípio homogêneo mas ambos são em parte a expressão do mesmo prin cípio o princípio de preferência visto de um ângulo diferente Desde que isso seja compreendido com clareza não haverá razão para o abandono da terminologia corrente Capítulo VIII As Divisões Fundamentais do Direito 44 DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO A tarefa da ciência do direito é expor o direito vigente Esta tare fa requer que a exposição possua um sistema que a ordem e a conexão nas quais o material é apresentado sejam dispostos segun do um plano definido O ordenamento sistemático é valioso primeiramente por razões práticas é essencial por questão de clareza a título de meio de en trever o caminho no complexo tema do direito tal como numa biblio teca os livros têm que estar organizados segundo um plano O siste ma também serve de fundamento para uma divisão do estudo do direito que pelo menos na atualidade é indispensável A organização sistemática é valiosa também por razões teóricas Se baseada em critérios relevantes ajuda o estudioso a analisar o material jurídico revela problemas e exibe semelhanças e diferenças ocultas Um esquema racional de sistematização é portanto tarefa óbvia da filosofia do direito O papel predominante desempenhado pelo jurista acadêmico e pela codificação na evolução do direito da Europa 240 Alf Ross continental em contraste com o direito anglonorteamericano explica porque o interesse nos problemas de classificação tem sido maior no continente europeu do que no mundo da língua inglesa O direito inglês diz Salmond não possui nenhum esquema tradicional e autêntico de estruturação ordenada Os expositores deste sistema têm evidenciado no geral muito pouca preocupação pelas divisões apro priadas e pela classificação e uma excessiva tolerância frente ao caos1 A tarefa de classificação entretanto não pode ser empreendida sem prévias concepções A tradição histórica existente constitui um fato de peso Seria inútil empenharse em criar uma classificação sistemática sem raízes na tradição A tarefa da filosofia do direito reduzse a revisar e aprimorar os conceitos tradicionais As tradições contudo são tão diferentes no direito da Europa continental e no direito anglonorteamericano que salvo umas poucas divisões funda mentais é impossível examinar os problemas de organização siste mática comuns a ambos A presente exposição se limita portanto a duas divisões funda mentais que aparecem em ambos os sistemas as distinções entre direito público e direito privado e entre direito substantivo e direito adjetivo Estas duas distinções são comuns a ambos os sistemas porque se fundam em critérios inerentes à própria natureza do di reito Em todo ordenamento jurídico bem desenvolvido é preciso existir uma organização da autoridade pública com a finalidade de estabelecer e aplicar o direito de forma compulsiva e em relação a isto é mister que existam regras para reger o procedimento a ser seguido na administração da justiça Tal organização e tal procedi mento suprem os conceitos de direito público e de direito processual Neste parágrafo examinaremos a distinção entre direito público e direito privado e no seguinte a distinção entre direito substantivo e direito adjetivo Como ordem sócioinstitucional para a aplicação da força pará grafos 7 e 11 o direito pressupõe um conjunto de autoridades públi cas fato que supre a base para uma definição racional do conceito de direito público 1 John Salmond Jurisprudence 10 ed 1947 505 Na terminologia mais adotada no Brasil o direito substantivo também é conhecido como direito material e o direito adjetivo é mais conhecido como direito processual W T Direito e Justiça 241 Autoridade significa competência como função social a competência não é conferida à pessoa competente para a proteção de seus próprios interesses mas para a proteção dos interesses de uma comunidade O propósito social se manifesta através de restrições tanto relativas ao exercício da competência quanto relativas ao seu conteúdo Relativamente ao exercida enquanto a competência privada pode ser exercida livremente conforme agrade ao indivíduo o exercício da competência social é um dever um cargo no sentido mais lato tal como há deveres mais ou menos definidos relativos à maneira na qual se exerce a competência Esses deveres são acompanhados de sanções e de medidas de controle para a correção do exercício incor reto da competência esses deveres e esse controle não devem ser confundidos com o problema da transgressão dos limites da compe tência e a conseqüente anulabilidade parágrafo 16 Relativamente ao conteúda enquanto a competência individual é au tônoma isto é limitada ao poder de obrigar o indivíduo ou outros median te o consentimento destes a autoridade é heterônoma isto é envolve o poder de obrigar outros mesmo sem o consentimento destes Essa diferença entre a competência privada discricionária e au tônoma e a competência social obrigatória e heterônoma pode ser expressa com brevidade dizendo que a primeira é atribuída ao sujeito como indivíduo e a segunda lhe é atribuída como órgão de uma comunidade Dizse que uma autoridade é pública quando serve à comunidade soberana a que denominamos Estado e suas partes subordinadas por exemplo corpos municipais dizse que é privada a autoridade dos pais no seio da família e a dos órgãos nas sociedades privadas e associações diversas O direito público por conseguinte pode ser definido como o direi to concernente à posição jurídica das autoridades públicas sua cons tituição competência e deveres O direito público portanto consiste exclusivamente em normas de competência e em normas de conduta ligadas às mesmas isto é relativas ao exercício da competência Toda norma de competência define um ato jurídico quer dizer indica as condições para o estabelecimento do direito vigente Estas 242 Alf Ross condições podem ser divididas em três grupos os quais determinam I o o órgão competente para realizar o ato jurídico competência pessoal 2o o procedimento competência formal e 3o o conteúdo possível do ato jurídico competência material De acordo com isto o tema principal do direito público é uma exposição 1 da constituição dos órgãos do Estado 2 do procedimento pelo qual se exerce seu poder e 3 dos limites materiais de seu poder Inclui também regras para a revisão judicial se a competência for excedida anulabilidade As normas de competência são acompanhadas de normas de con duta que prescrevem aos órgãos certos deveres relativos ao exercício de sua autoridade pública por exemplo um órgão administrativo pode ser obrigado a consultar certas pessoas antes de tomar uma decisão Se a violação de tal exigência não se traduzir em anulabilidade então não haverá limitação de competência mas unicamente um dever cuja transgressão toma o órgão responsável Além dessas diretivas especiais há um critério geral a saber que toda autoridade pública deve ser exercida com espírito comunitário com base em valorações públicase imparciais o princípio de igualdade a doutrina do abuso do poder Num Estado democrático o direito público deve ser dividido em três categorias principais as quais se referem aos atos legislativos administrativos e judiciais2 A parte geral do direito público poderia versar sobre o que pode ser dito em geral a respeito de pessoas públicas o Estado e os corpos municipais e a respeito dos atos pú blicos como tais O direito relativo às autoridades públicas a organização do poder do Estado constitui um campo bem definido Assim definido o conceito de direito público adquire um claro significado Por outro lado o conceito perde coerência se for estendido a fim de incluir outros domínios do direito direito penal direito administrativo especial e direito processual que tradicionalmente são designados como direito público3 2 Para ter um quadro geral da organização do Estado e das conexões mútuas entre os diversos ramos do poder é sem dúvida conveniente seguir a tradição e reunir as regras fundamentais para a organização do Estado numa disciplina comum o direito constitucional que compreende a descrição minuciosa do ato legislativo enquanto as regras minuciosas referentes ao ato administrativo e ao ato judicial são remetidas ao direito administrativo e ao direito processual 3 As observações que se seguem estão no principal de acordo com o estudo crítico feito por Hans Kelsen em Genen Theory of Law and State 1946 201 e segs Direito e Justiça 243 Principiemos pelos direito penal O direito penal geralmente estabelece normas de conduta dirigidas às pessoas particulares Protege por exemplo a propriedade a honra a vida e a liberdade Esta proteção forma parte essencial das conseqüên cias jurídicas que constituem os correspondentes direitos à propriedade à honra à vida e à liberdade Nessa medida o direito penal é análogo ao direito dos atos ilícitos civis e a ninguém ocorreu entretanto classificar este último como direito público A única circunstância que tipicamente distingue a pena da indenização de danos e prejuízos é o fato de que a acusação por delitos é tipicamente pública isto é é uma função oficial de uma autoridade pública Nas relações jurídicas sancionadas com pe nas está em jogo um interesse público tão grande que o poder para instaurar os processos não pode ficar à discrição da vítima Mas vêse com clareza que o caráter público neste sentido do direito penal é diferente do caráter público das regras que regem a organização do poder do Estado Ademais com esse critério a força do interesse públi co todas as regras de ordem pública as não derrogáveis por acordo de partes teriam que ser consideradas regras de direito público com o que o conceito ficaria despojado de toda coerência e de toda correlação com a classificação usual dos ramos do direito Em segundo lugar existe um grande corpo de direito legislado tido geralmente como direito público e classificado como direito administra tivo especial a saber as leis que regulam o bemestar social o seguro social os impostos o trabalho a agricultura a indústria naval a indús tria pesqueira a alimentação a importação e a exportação os preços o trânsito e as estradas a moradia os serviços do corpo de bombeiros a saúde a moeda a hora oficial o sistema de pesos e medidas etc Diversas considerações confluem para que o direito administrativo es pecial seja classificado como direito público A mais importante delas é a circunstância de que numa grande medida a posição jurídica das pessoas não é aqui determinada de modo imediato pela lei normas jurídicas gerais mas sim através da intervenção de um ato adminis trativo e concreto sob a forma de permissão licença dispensa e auto rização ou proibição É assim que essas questões da vida da comunida de carregam a marca de uma sanção unilateral de direito por parte do Estado concreta e revestida de autoridade em aberta oposição às regras que nascem da autonomia dos particulares A natureza pública dessas esferas jurídicas portanto é completamente distinta da que caracteriza o direito relativo à organização das autoridades públicas 244 Alf Ross Finalmente temos o processo Exceto por aquelas partes do mes mo que concernem à organização e competência do tribunais é difícil perceber como se pode justificar a classificação do direito processual como direito público Grandes setores do direito processual por exem plo as regras relativas às provas são indiferenciáveis daquilo que é considerado direito privado A classificação como direito público do grupo de regras que regem o trâmite de uma ação ante os tribunais parece estar baseada na confusa noção de que através delas se esta belece uma relação jurídica com o Estado A situação real é que o acatamento dessas regras é uma condição adicional além dos fatos jurídicos materiais para obtenção de sentença e execução Essas regras operam de forma conjunta com as regras materiais que regem a relação jurídica subjacente e não há mais razões para classificálas como direito publico tanto quanto não há para classificar assim a relação jurídica subjacente A grande incerteza e confusão que reina nas idéias correntes acer ca do direito público se explica provavelmente pelo fato de que o conceito direito público é interpretado de forma negativa como um repositório para todo o direito qué não seja direito privado O direito privado é então caracterizado implicitamente como o direito cuja observância pode ser assegurada por meio de processos civis entre particulares Entretanto se o direito público for definido daquela ma neira ampla e negativa não constituirá como vimos uma esfera ho mogênea Inversamente se limitarmos o direito público ao direito que rege a organização e exercício da autoridade pública e definir mos o direito privado negativamente em relação a ele o conceito de direito privado perderá toda coerência e significado É possível portanto definir um conceito de direito privado e tam bém um conceito de direito público de maneira tal que cada um deles tenha um significado preciso Entretanto tomados em conjunto não são exaustivos sua relação recíproca pode ser comparada com a dos conceitos canário e elefante dentro de uma classificação zoológica Os domínios do direito designados usualmente como de direito público carecem de homogeneidade e correspondem a um grupo zoo lógico que fosse formado por todos os animais que não são canários Isto é confirmado pelo fato de que não existe e provavelmente não pode ser sequer imaginada nenhuma parte geral de direito público tomado nesse amplo sentido Direito e Justiça 245 Se com o intuito de conferir coerência aos conceitos optarmos por tomar os dois termos em seus significados admissíveis isto é direito público como o direito que se refere ao status das autoridades públicas e direito privado como o direito que pode ser assegurado por processos civis entre pessoas particulares enfrentaremos então a dificuldade de que os termos privado e públco sugerem uma divisão exaustiva que inexiste Se conservamos a terminologia e é difícil não fazêlo temos que frisar que os dois termos não implicam uma divi são fundamental em duas partes da totalidade do material do direito Em consonância com isso todas as tentativas levadas a cabo até o presente para definir a distinção entre direito público e direito privado como uma divisão fundamental têm se demonstrado insustentáveis parágrafo 46 45 O DIREITO SUBSTANTIVO E O DIREITO ADJETIVO Uma norma de competência determina um processo para estabe lecer diretivas jurídicas A norma de competência não é em si mes ma de modo imediato uma diretiva não prescreve um processo como dever É um padrão de ação num sentido diferente das normas de conduta porque se limita a indicar um padrão que tem que ser seguido para criar diretivas válidas A norma de competência não diz que a pessoa competente é obrigada a exercer sua competência As normas de competência portanto não podem ser aplicadas diretamente pelos tribunais Somente as normas de conduta podem ser aplicadas diretamente As normas de competência só podem ad quirir significado de forma indireta numa ação judicial como pressu postos para decidir se existe ou não uma norma válida de conduta Essa introdução visa a enfatizar que o que se segue referese uni camente às normas de conduta4 as únicas aplicáveis de maneira imediata pelos tribunais 4 A distinção explicada nas páginas seguintes entre direito substantivo direito de sanções e direito processual se aplica portanto a normas de conduta no âmbito do direito público e do direita não público No direito público entretanto esta técnica de apresentação não é comumente empregada As regras que regem os deveres dos minis tros sua responsabilidade e as regras processuais concernentes ao julgamento político impeachmend são todas sem exceção regras consideradas como parte do direito constitucional as regras que legem os deveres dos funcionários públicos suas responsabilidades e os regulamentos processuais ligados a uns e outras como parte do direito administrativo 0 que afirmamos portanto nas páginas seguintes visa apenas ao direito não público 246 Alf Ross No parágrafo 7 salientamos que as normas de conduta são na realidade diretivas ao juiz a respeito das condições sob as quais deve ordenar o exercício da força física contra uma pessoa A norma jurídica real por exemplo a contida no parágrafo 62 do Uniform Negotiabie Instruments Act é uma diretiva ao juiz para que ordene o emprego da força contra a pessoa que aceitou uma letra de câm bio e não a paga A aparente diretiva ao aceitante que prescreve pagar a letra no dia do vencimento é apenas um reflexo da diretiva ao juiz combinada a uma exortação ideológica ao sentimento que o cidadão tem em relação ao direito e a justiça O parágrafo 62 todavia é somente um fragmento de uma nor ma de conduta A diretiva completa referente ao emprego da força pelo juiz é na realidade mais complicada do que o que aparece nessa seção Em primeiro lugar as condições para a sentença con tra o aceitante não estão expressas integralmente com a indicação de uma certa conduta por parte dele aceitação mais não pagamen to no dia do vencimento Requerse complementarmente que o beneficiário da letra mova um processo contra o aceitante no curso do qual deverá provar de maneira específica seu título e o fato de que a letra foi apresentada infrutiferamente para pagamento Em segundo lugar são requeridas outras regras que determinem o tipo de medidas de força a serem aplicadas quando as condições são satisfeitas isto é regras específicas adicionais acerca de como deve ser a sentença e como pode ser executada No caso que menciona mos esses problemas são simples Entretanto em outros casos nos quais o direito alude de forma semelhante ao dever de uma pes soa de seguir uma certa conduta são aplicadas regras diferentes no tocante ao conteúdo da sentença e sua execução Isto pode ser observado com maior clareza se alguém comparar os casos nos quais uma pessoa se acha obrigada por exemplo a pagar uma soma em dinheiro a entregar cem sacos de farinha a entregar a vaca Daisy a pintar um retrato a permanecer fiel ao seu cônjuge Segundo as circunstâncias a sentença pode condenar ao cumpri mento da obrigação ou consistir em uma injunção proibitiva ou condenar a uma pena ou ao pagamento indenizatório por danos e prejuízos as regras específicas que regem a execução da sentença variando em conformidade Direito e Justiça 247 Isso mostra com clareza que se tivéssemos que apresentar uma norma de conduta isolada na sua totalidade significaria uma tarefa enormemente complicada Contudo as condições que regem a pro moção de uma ação prova e outras medidas processuais conjun tamente com as regras referentes ao conteúdo da sentença e a sua execução são em larga medida as mesmas para as diversas nor mas de conduta dentro de certos grupos conseqüentemente a norma de conduta completa foi dividida em fragmentos e os frag mentos similares reestruturados para o seu tratamento em discipli nas independentes Isto resulta em grandes vantagens pois repre senta economia na exposição É possível descrever a divisão feita aproximadamente assim numa parte se estabelece o que alguém pode e o que não pode fazer numa segunda parte são enunciadas as sanções jurídicas resultantes se alguém age contrariamente àqueles preceitos e numa terceira parte prescrevese o procedimento a ser seguido pelos tribunais para impor as sanções Nas páginas seguintes descreveremos a divisão com maior precisão Não é realizada de modo idêntico em todos os campos do direito podendo variar segundo as características particulares de cada domínio ou segundo os acasos das tradições Em largas pinceladas eis o esquema que se segue I o Numa parte conhecida como direito substantivo ou primário descrevese uma certa conduta objetiva como condição necessária mas insuficiente para uma sanção Esta condição é enunciada comumente5 de forma indireta caracterizando certa conduta como um dever o que implica que a conduta oposta é condição necessária mas insuficiente de uma sanção Uma regra de direito substantivo é só um fragmento de uma regra de conduta Até agora desconhecemos quais outras condições são exigidas para a sentença e a natureza da sanção aplicável a uma pessoa que se comporta de modo contrário ao direito substantivo A despeito disso a exposição do direito substantivo é importante Em bora não saibamos o que ocorre em caso de transgressão sabemos que quem não transgride essas regras está seguro sua conduta não dará margem a sanções Se a sanção não é experimentada como uma reprovação por parte da sociedade a terminologia que alude a deveres 248 Alf Ross 2o Numa segunda parte que podemos chamar de direito das sanções ou direito secundário são enunciadas a as diversas san ções aplicáveis a uma pessoa que tenha violado o direito substantivo e b as condições mais precisas em acréscimo ao curso objetivo de conduta sob as quais as diversas sanções podem ser aplicadas O direito dos atos ilícitos civis por exemplo supõe principalmente re gras primárias sobre deveres e suas correspondentes transgressões determinadas entre outras coisas pelas regras que regem a distri buição da propriedade e sobre esta base estabelece as condições restantes para responsabilidade culpa capacidade mental etc e as regras complementares que determinam quais são as conseqüên cias do ato ilícito pelo que se responde etc Algo semelhante ocorre em parte no direito penal mensrea etc Essa distinção entre direito substantivo e direito das sanções é todavia flutuante Ademais nem sempre realizada Freqüentemente determinase diretamente isto é sem nenhuma norma antecedente que estabeleça um dever que certas ações acarretarão danos e prejuízos ou a aplicação de uma pena Por exemplo os artigos do Código Penal não são normas acessórias de regras substantivas enun ciadas em outro lugar À exceção das disposições do Código Penal que estabelecem uma pena para o homicídio não há nenhuma regra primária que nos diga que não devemos cometer homicídio A sanção que assume a forma de uma condenação a ser cumprida especificamente ou uma injunção que proíbe fazer algo não é trata da tradicionalmente como parte de um campo do direito onde ocor ram sanções desse tipo como campo paralelo ao domínio da respon sabilidade por atos ilícitos civis ou ao do direito penal mas sim é tratada em associação com o direito dos contratos Em resumo a distinção entre o direito substantivo e o direito das sanções não é respeitada de maneira coerente o que digase de passagem seria na realidade pouco desejável Isto elucida porque é comum não distinguirse entre o direito substantivo e o direito das sanções o direito da responsabilidade por atos ilícitos civis e o direito penal estão incluídos no direito substantivo 3o Numa terceira parte finalmente conhecida como direito proces sual ou terciário são consideradas as condições complementares à parte as circunstâncias que gravitam em torno da pessoa responsável Direito e Justiça 249 a serem satisfeitas para que se possa ditar e executar a sentença Essas condições se referem ao procedimento que precisa ser seguido para determinar a responsabilidade e tornála efetiva cabendo men cionar em especial as regras que regem a instauração de uma ação a prova e o manejo do caso ante os tribunais As regras de processo são consideradas às vezes como subsidiá rias no sentido de que seu propósito é servir de ferramenta ao direito substantivo isto é provocar o efeito latente de que os seres huma nos se comportem de forma lícita e o efeito agudo de que as sanções sejam aplicadas aos transgressores Este modo de ver não é incorre to a menos que seja associado à idéia de que o direito substantivo é primário e independente do direito processual no sentido de que por meio da legislação é possível criar um direito substantivo em harmo nia com os fins sociais desejados e sem levar em conta o direito processual Este ponto de vista não é correto porque ao criar o direito substantivo não se pode ignorar a questão de saber em que medida é tecnicamente possível pôlo em prática mediante processo legal considerações de técnica jurídica A apreciação da política jurídica deve portanto voltarse para a investigação de como mediante sua interação o direito substantivo e o processual podem melhor servir às metas sociais O pensamento políticojurídico corrente está de acor do com essa idéia 46 DISCUSSÃO A despeito da crítica de Hans Kelsen6 a qual corresponde aproxi madamente à opinião exposta no parágrafo 44 a distinção entre di reito público e direito privado é ainda o principal esteio da classifica ção sistemática jurídica mesmo havendo ampla divergência sobre a maneira de realizar a divisão e sobre sua importância As muitas e variadas teorias a respeito do tema podem ser agru padas em duas teorias principais designadas comumente como teo ria dos interesses e teoria dos sujeitos Segundo a teoria dos interesses a diferença maior entre o direito privado e o público tem sua raiz no propósito das normas jurídicas 6 Ver General Theory of Law and State 1946201 e segs 250 Alf Ross vale dizer os interesses humanos que elas visam a proteger O direito público em conformidade com isso é definido como a parte do direi to determinada com considerações de interesse público pelo interes se da comunidade enquanto o direito privado é o direito estabelecido para a proteção dos interesses privados dos indivíduos Esta teoria precisa ser rejeitada Além das dificuldades para definir com precisão o que se quer dizer com interesse privado e público os defensores da teoria retornam aqui aos termos que devem ser defini dos é impossível no direito privado ignorar aqueles interesses que em geral são considerados como públicos ou inversamente no di reito público os interesses privados O direito de propriedade individual sempre foi considerado como eminentemente privado Entretanto todos se dão conta hoje em dia que o direito de propriedade não é conferido ao indivíduo mera mente para a satisfação de seus interesses individuais mas que está submetido em grande medida a condições e restrições impostas com propósitos sociais Todas as normas de ordem pública isto é as nor mas que não podem ser derrogadas por acordo de partes são da mesma maneira a expressão do que se chama de um interesse pú blico Além disso basta pensar nos muitos casos no direito considera do privado em que uma disposição se baseia numa consideração ge ral para o bem da comunidade O conteúdo do ordenamento jurídico como um todo e sua preservação é uma questão pública da mais elevada importância Inversamente quando a legislação social que é classificada como de direito público autoriza a ajuda a certas pes soas não se pode negar que esse preceito foi sancionado primordial mente para satisfazer interesses individuais Em resumo podese dizer que não é possível dividir o direito em duas partes segundo seus propósitos o direito protegendo primordial mente interesses privados ou públicos porque estes não são propó sitos opostos coordenados do direito mas somente duas maneiras diferentes de olhar a mesma coisa Considerada como uma disposi ção geral cada parte do direito tanto as regras referentes à proprie dade como a legislação social está baseada num interesse público Contudo nos seus detalhes toda disposição geral tem que se tradu zir em direitos e deveres individuais Considerada portanto do ponto de vista das conseqüências jurídicas específicas cada parte do direito tanto a legislação social como o direito de propriedade ocupase assim de interesses individuais Direito e Justiça 251 Segundo a teoria dos sujeitos o direito público e o direito privado distinguemse pelos sujeitos das relações jurídicas O direito privado de acordo com essa teoria referese àquelas relações jurídicas nas quais ambas as partes são pessoas privadas o direito público àquelas nas quais pelo menos uma das partes é uma pessoa pública isto é o Estado e suas partes subordinadas Aqui todavia tropeçamos com a dificuldade de que o Estado como a pessoa privada pode celebrar contratos de compra e venda alu guel etc e que estas relações jurídicas são julgadas segundo as regras do direito privado Como resposta a esta objeção os representantes da teoria dos sujeitos definem o direito público como o que se refere unicamente às relações jurídicas nas quais as partes não se encontram num mes mo plano e que são julgadas portanto segundo regras que diferem em princípio das regras do direito privado A idéia entretanto de que o direito público se refere às relações jurídicas entre as autoridades públicas e os cidadãos é insustentável Em que sentido as regras que regem a legislatura referemse a uma relação jurídica com cidadãos E o direito penal em que se diferencia do direito da responsabilidade por atos ilícitos civis unicamente pela acusação pública E as regras relativas à prova e o peso desta Tentei mostrar que em várias partes do chamado direito público seu caráter como tal é na realidade sugerido por diversas características individuais A idéia de uma relação jurídica cesiguatem valor naqueles casos do chamado direito administrativo especial nos quais a posição jurídica concreta dos cidadãos pressupõe um ato administrativo intermediário À parte destes não existem fundamentos razoáveis para essa idéia Gresham Water Service Project Water Main and Water Service Replacement Progress Update Work completed this week included the start of excavation work on 5th Avenue and the replacement of the water main underneath 8th Avenue near Taft Street This work is preparing us for the start of water service line replacement next week connecting properties to the newly installed water main Work hours this week are 7 am to 7 pm At the end of the week the contractor will begin inspecting the existing water services on 8th Avenue between Taft Street and East 6th Avenue This work will require the contractor to dig near the street and sidewalk to access the water service lines Please watch for the locations marked by painted flags andor paint on the sidewalks and street The contractor will provide advance notice before starting this work CAPÍTULO IX Os Fatos Operativos 47 TERMINOLOGIA E DISTINÇÕES Tal como assinalamos no parágrafo 35 uma diretiva jurídica pode ser expressa na fórmula Se F então C nas qual F designa os fatos e C a conseqüência jurídica que indica como deve julgar o juiz Isto significa que toda aplicação do direito tem como fundamento fatos condicionantes cuja existência o juiz considera provada1 O conteúdo das normas jurídicas aplicadas de termina quais são os fatos relevantes para a decisão Os fatos relevantes para a decisão são denominados fatos operativos Em cada caso de administração de justiça há muitos fatos operativos mas alguns deles ocupam uma posição especial Num caso de homicídio não é relevante apenas o ato do homicídio Muitas outras circunstâncias acompanhantes terão que ser consideradas por exemplo possíveis fundamentos especiais para a isenção de respon sabilidade ou para a não aplicação ou redução da pena Do mesmo 1 Não pode haver conseqüências jurídicas sem um fato condicionante não há direitos conferidos diretamente pelas normas do direito objetivo Alguns direitos surgem ex lege diz G W Paton em A Textbook of Jurisprudence 11946 seção 60 no sentido de que são conferidos diretamente pelas normas do direito objetivo como quando uma lei confere ao Sunshine Trust o monopólio da venda de petróleo Isto não é correto 0 fato condicionante neste caso é a existência dessa companhia em particular na ocasião em que a lei entrou em vigência 254 Alf Ross modo quando se trata de fazer cumprir um contrato o fato de se ter celebrado o contrato não é o único importante também é preciso to mar em consideração outras circunstâncias decisivas para a validade da promessa tais como a menoridade o erro o dolo a coação etc Contudo tanto o ato do homicídio como a promessa ocupam uma posição especial São os fatos que fundamentam o efeito jurídico espe cífico em questão enquanto as circunstâncias acompanhantes se limi tam a condicionar modificar ou excluir a aplicação do efeito jurídico Esses exemplos mostram que os fatos operativos podem ser espe cificamente relevantes criadores ou meramente condicionantes Comumente um fato criador não é em si mesmo suficiente para produzir sua conseqüência jurídica e portanto um certo fato criador não pode ser definido como o fato que efetivamente produz um efeito jurídico específico Se por exemplo fôssemos definir uma promessa como uma declaração que obriga o promitente em conformidade com o conteúdo da declaração excluiríamos a possibilidade de promessas inválidas nossa definição confundiria na realidade a própria pro messa e as circunstâncias condicionantes Um fato criador específico deve ser definido como aquele que por regra geral isto é a menos que existam fundamentos especiais de exclusão produz o efeito jurí dico específico O direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias imagináveis sejam fatos operativos sempre que possam ser descri tas em termos da linguagem cotidiana Tentar uma classificação sis temática careceria de significação Mencionaremos aqui apenas algu mas distinções e pontos de vista relevantes Os fatos operativos são definidos usualmente em termos gerais isto é mediante critérios conceituais abstratos Às vezes são definidos em termos individuais isto é pelo nome nomes de pessoas ou de lugares ou mediante algum outro critério de individualização As individualizações pelo lu gar são mais freqüentes neste país em Washington As individualizações pela pessoa são raras Alguns fatos operativos são descritos como condições estado de coisas que incluem qualidades de pessoas ou de coisas enquanto outros são descritos como acontecimentos quer dizer como mudan ças numa condição existente Uma condição pode ser definida em relação a um ponto no tempo por exemplo o estado mental do Direito e Justiça 255 criminoso no momento do crime ou a um período de tempo por exemplo a residência permanente no país ou a posse de um objeto durante muitos anos As referências particulares a uma condição sempre podem ser reduzidas a referências particulares a aconteci mentos isto é ao acontecimento que estabelece a condição e ao acontecimento que lhe dá o desfecho A afirmação de que uma pes soa tem 25 anos pode ser reduzida ao fato de que nasceu há 25 anos mais o fato negativo de que não morreu Estas circunstâncias são importantes para saber se uma lei tem efeito retroativo Alguns fatos operativos são puramente fatuais por exemplo o nascimento a morte um incêndio uma colisão em alto mar outros estão juridicamente condicionados o que significa que são definidos em relação ao direito No parágrafo 35 dissemos que a caracterização de uma pessoa como casada ou como proprietária faz referência a certos fatos celebração de um casamento compra ou outra aquisi ção da propriedade que estão definidos juridicamente como produ tores dos efeitos jurídicos que constituem casamento e propriedade Tecnicamente isto significa que a regra jurídica RI não descreve seus fatos operativos de forma direta mas por referência às circunstâncias que são operativas no tocante a outras regras jurídicas R2 R3 e assim sucessivamente Uma lei tributária por exemplo cuja aplicabilidade do gravame dependesse do contribuinte ser casado poderia em lugar disso mencionar diretamente aqueles fatos que segundo as normas que regem a celebração e a dissolução do casa mento permitem decidir se há ou não casamento Esta técnica de formulação é amplamente usada Aparece em todos aqueles casos em que a linguagem jurídica se vale ao descrever os fatos operativos de termos tais como credor devedor credor hipotecário nacionalida de compra e venda transferência e expressões semelhantes O mes mo ocorre quando um termo faz referência não a uma regra jurídica formal mas a um padrão jurídico Dizer que uma pessoa agiu com negligência por exemplo não é expressar um enunciado puramente fatual mas sim aludir a um padrão pressuposto no que tange à con duta que se pode exigir de um ser humano razoável na situação dada A distinção entre fatos operativos puramente fatuais e fatos operativos jurídicos condicionados é importante para a doutrina dos precedentes e para interpretar a distinção entre fáctume jus na qual a legislação ocasionalmente se apóia 256 Alf Ross No âmbito dos fatos operativos que consistem em ocorrências é importante distinguir entre eventos e atos visto que somente os últimos suscitam os problemas relativos à capacidade mental mens rea culpa e outras circunstâncias psicológicas que condicionam a conseqüência jurídica Dentro da categoria dos atos podese distinguir ademais entre as ações fatuais e os atos jurídicos Estes também denominados disposições consistem em comunicações lingüísticas cujo efeito jurí dico está determinado pelo conteúdo da própria comunicação e que são por isso instrumentos adequados à atividade humana conscien te dirigida para a criação do novo direito Todo ato jurídico disposição emana de uma competência potestade parágrafo 33 Há contudo uma profunda diferença entre a competência potestade das autoridades públicas a qual existe para a proteção dos interesses da comunidade e é baseada na idéia de autoridade e aquela das pessoas particulares a qual existe para a proteção dos interesses privados e é baseada na idéia de autonomia parágrafo 44 De nada serve portanto dispor todos os atos jurídicos numa categoria É necessário distinguir entre o ato ju rídico público e a disposição privada Os atos jurídicos públicos se subdividem em atos legislativos administrativos e judiciais Estes atos por sua vez carecem de elementos em comum suficientes para justi ficar que os tratemos sob um rótulo único e portanto são examina dos nas respectivas partes do direito público É por tudo isso que nos parágrafos 48 e 49 nos restringiremos à disposição privada 48 A DISPOSIÇÃO PRIVADA A disposição privada é tradicionalmente definida com certas varia ções como a declaração de vontade privada que tem efeitos jurídicos em conformidade com seu conteúdo definição que é inadequada em vários aspectos I o No parágrafo anterior afirmouse que por ação das circunstân cias condicionantes nenhum ato específico de criação pode ser defi nido como produtor do efeito jurídico específico Conseqüentemente é preciso modificar a definição afirmando que a declaração produz como regra geral e a menos que existam razões especiais de invalidade o efeito jurídico específico Direito e Justiça 257 2o O efeito jurídico segundo a definição deve preservar a confor midade com o conteúdo da declaração o que pode ser correto por exemplo a respeito de um contrato que rege detalhadamente as rela ções jurídicas das partes porém o é menos com respeito a outras situações A maior parte dos acordos por exemplo os contratos usuais relativos a compras fornecem apenas o esquema ou esqueleto estri tamente necessário da relação jurídica que deve ser suplementado com a matéria contida nas regras jurídicas gerais O conteúdo da dis posição unicamente determina o efeito jurídico quanto a certas carac terísticas básicas O mesmo ocorre e ainda num maior grau com aquelas declarações mais truncadas que têm o caráter de fórmulas estereotipadas cujo efeito jurídico é inteiramente padronizado na le gislação Assim por exemplo com os préavisos ou notificações reci bos certos atos processuais etc Nestes casos o ordenamento jurídico coloca uma espécie de teclado à disposição dos particulares Uma pes soa pode escolher acionar uma tecla ou não Nisto reside a autonomia Entretanto o efeito jurídico produzido é estereotipado e determinado pelo próprio ordenamento jurídico Cabese indagar se tais declara ções truncadas não deveriam ser excluídas do conceito de disposição Todavia visto que funcionam de maneira idêntica às comunicações mais articuladas como instrumentos para a criação autônoma de rela ções jurídicas e visto que juridicamente são em geral julgadas pelas mesmas regras quanto a sua validade e outras questões parece razoá vel incluílas no conceito de disposição Porém então fazse necessá rio mudar a definição O efeito jurídico específico não deve ser definido como um efeito jurídico de conformidade com o conteúdo da declara ção mas como um efeito jurídico tipicamente autônomo isto é um efeito jurídico que o autor da disposição deseja produzir como parte integrante de sua criação autônoma de relações jurídicas 3o O fato operativo que normalmente produz o efeito jurídico específico é definido como declaração de vontade o que é uma ex pressão sumamente obscura Em primeiro lugar não é claro o que se quer dizer nesse contexto com a palavra declaração Pode ser entendida de duas maneiras como comunicação ou informação acerca de um fato neste caso a vontade da pessoa que a faz ou como expressão espontânea direta de um estado de espírito de caráter emocionalvolitivo da pessoa que a faz por exemplo uma exclamação ou uma ordem Nenhum destes dois significados entretanto parece correto em nosso caso 258 Alf Ross A primeira possibilidade claramente tem que ser rejeitada Uma pro messa não é uma comunicação que informa sobre algo A pessoa que promete à outra pagarlhe 500 em Io de janeiro não tem a intenção de informar a respeito de seu real estado de espírito e tampouco pretende fazer uma previsão do que ocorrerá na oportunidade indicada Se esta fosse a intenção seria possível caracterizar a promessa de modo idên tico a toda asserção como verdadeira ou falsa Por outro lado o ordenamento jurídico não lida com as promessas como comunicações A segunda possibilidade tampouco é satisfatória Pode existir por certo expressão direta de emoção se a pessoa que faz a promessa jura ao mesmo tempo com profundo sentimento que cumprirá o prometido Contudo isto não é típico Uma pessoa que compra cin qüenta centavos de cenouras não revela sentimento algum Que se acresça que é obscuro que vontade é essa comunicada na disposição Na promessa esta vontade pode ser razoavelmente entendi da como uma intenção com respeito à conduta futura de seu autor Mas o que dizer de um encargo2 uma disposição que obrigue ao destinatá rio Que significa que é minha vontade outra pessoa agir de uma certa maneira Minhas intenções só podem estar dirigidas à minha própria conduta e às conseqüências causadas por ela Por conseguinte somente posso querer a conduta de outra pessoa na medida em que estou em situação de provocar essa conduta mediante meus próprios atos Agora se o encargo por razões alheias ao meu controle é capaz de motivar a outra pessoa então nessa medida posso querer sua ação tal como posso querer sua morte disparandolhe um tiro com uma pistola Po rém por esta razão o encargo é tanto uma declaração de vontade como o é o disparo de pistola Constitui questão diferente em ambos os casos ser possível inferir de minha conduta que eu tenha querido um resultado específico cumprido por minha própria ação O fato nesta matéria é que nem a vontade nem a declaração de vontade desempenham papel algum numa descrição psicológica do que ocorre quando se faz uma disposição À semelhança da teoria geral de que o direito vigente é a expressão da vontade do Estado3 a teoria da disposição como declaração de vontade se funda em idéias puramente metafísicas que atribuem à vontade um poder criador 2 Ver parágrafo 49 nota 4 3 Cf Karl Olivecrona Law as Fact 19391 22 e segs Direito e Justiça 259 mágico Da mesma maneira que a palavra criou a luz assim a vonta de cria o direito isto é direitos subjetivos e deveres considerados como substâncias espirituais A terminologia em voga não é simplesmente uma relíquia terminológica de épocas passadas Gerou também postulados dogmáticos e teorias equívocas para a solução de problemas jurídicos práticos A doutrina da vontadeá perdeu valor para explicar a força obrigatória da promessa e solucionar o problema do erro Contudo no que respeita ao critério para distinguir entre as declarações obrigatórias e as meras comunicações seguimos lidando com a obstinada idéia de que o fator decisivo é se houve ou não uma expressão de vontade A vontade desempenha certamente um papel na criação das dis posições jurídicas mas o faz de maneira diferente à proposta pela doutrina da disposição como declaração de vontade Como ocorre no caso de outras ações humanas por exemplo o homicídio para decidir o caso é importante saber se o ato foi realizado ou não com vontade e intenção Normalmente uma pessoa que leva a cabo uma disposição por exemplo um acordo o faz com vontade no sentido de que é sua vontade celebrar o acordo e produzir os efeitos estabelecidos pelo ordenamento jurídico Se é insana ou não compreende o conteúdo do ato são suscitados problemas referentes à validade da disposição A vontade da pessoa que realiza a disposição e suas idéias acerca dela se contam certamente entre os fatos operativos condicionantes Mas qual é então o conteúdo e o significado da disposição se não é uma declaração de vontade Tem significado representativo ou expressi vo É uma asserção uma exclamação ou uma diretiva parágrafo 2 Já vimos que a disposição não pode ser interpretada como uma asserção do estado psicológico da pessoa que a formula de sua von tade Claramente tampouco é uma profecia uma previsão do que ocorrerá no futuro E tampouco ainda é uma exclamação É uma diretiva Se estudarmos um contrato completo essa possibi lidade não parecerá excluída Porque aqui encontramos expressas nas modalidades correntes da linguagem jurídica faculdade dever poder sujeição padrões de ação que podem servir de guia quando houver necessidade tanto às partes envolvidas quanto ao juiz O significado de diretiva todavia depende da existência do ordenamento jurídico da regra do direito vigente que confere às disposições privadas sua 260 Alf Ross força obrigatória isto é que motiva o juiz a elegêlas como base para suas decisões Abstraída disto a declaração dispositiva é simples mente uma fórmula diretiva uma declaração de fantasia de natureza idêntica a um projeto de lei ou a sentença que posso escrever sobre um pedaço de papel sem pretender que se trate de uma asserção Se considerarmos por um momento as declarações dispositivas truncadasou a fórmula eu prometo a situação se tornará ainda mais clara Se se convencionou que para ter acesso a um nightcM privado é mister expressar uma palavra sem significado esta palavra em si conti nuará sem significado ainda quando por convenção funcione como uma diretiva ao porteiro A situação é exatamente idêntica ao formular uma promessa Em si mesma abstraída do ordenamento jurídico a expres são eu prometo carece de significado Teria o mesmo efeito dizer abracadabra Entretanto em virtude do efeito que o ordenamento jurídi co vincula à fórmula esta funciona como uma diretiva ao juiz e pode ser usada pelos particulares para o exercício de sua autonomia O conhecimento de que a declaração dispositiva não é em si mes ma a expressão de uma vontade é importante no tratamento dos casos limites entre as disposições obrigatórias e as declarações não obrigatórias É difícil amiúde traçar essa linha Assomam problemas com comunicações diversas sob forma de notificações propostas em particular relativamente à apresentação de uma oferta pedidos negociações que precedem um acordo definitivo rascunhos e esbo ços Em tais casos pode haver dúvidas sobre se a comunicação é uma declaração não obrigatória ou uma disposição obrigatória No tratamento desses problemas tem sido costume perguntarse se a comunicação expressa uma intenção da parte da pessoa que a faz uma vontade ou resolução de obrigarse Isso é colocar a carroça na frente dos bois Uma promessa não é em si mesma a expressão de nenhuma intenção vontade ou resolu ção É somente porque o ordenamento jurídico lhe confere força obri gatória que podemos normalmente supor que uma pessoa que usa esse instrumento o faz porque deseja o efeito jurídico atribuído a uma promessa tal como se pode supor que uma pessoa que dispara um revólver contra outra o faz com a intenção de tirarlhe a vida A situação portanto é a oposta daquela geralmente aceita se uma declaração é convencionalmente considerada obrigatória podemos normalmente supor que indica uma intenção dispositiva Direito e Justiça 261 É necessário portanto traçar a linha de uma maneira razoável se gundo as exigências da conveniência e os pontos de vista convencionais Esta abordagem vêse confirmada pela maneira em que de fato traça se a linha divisória Aceitase por exemplo que as listas de preços am plamente distribuídas só representam um convite a se fazer uma oferta enquanto a exibição numa vitrine de mercadorias com preços é uma oferta de venda de caráter obrigatório Se esta regra não for conhecida será impossível concluir por análise psicológica que uma comunicação se apóia na vontade de obrigar quem a faz e outra não Porém se a regra for adotada e divulgada se concluirá daí que uma exibição de mercadorias com preços pode ser tomada como indicação da vontade de obrigarse enquanto não pode ser assim interpretada a distribuição da lista de preços A situação é a mesma em outros casos limite O ponto de partida é em todos os casos o convencionalismo vigente Se este convencionalismo inexistir ou for variável e incerto então deverá ser adotada uma decisão como ponto de partida para que esse critério convencional seja criado e desenvolvido 4o Definir a disposição como uma declaração de vontade impli ca sustentar que se apresenta sob a forma de uma comunicação lingüística Esse expressão não deve ser tomada num sentido demasiado lite ral Por linguagem não entendemos aqui unicamente as palavras con vencionais ordinárias mas também outros símbolos compreensíveis Fica claro deste modo que um gesto de cabeça pode ser tão criador como a palavra sim Cabe perguntar se avançando mais um passo estamos prontos a incluir certos atos no conceito de disposição embora não sejam co municações lingüísticas Nada impede é claro que o ordenamento jurídico atribua a certos atos os mesmos efeitos jurídicos autônomos típicos atribuídos às declarações dispositivas Numa certa medida isso ocorre Se por exemplo uma pessoa se apropria de um livro que lhe foi enviado para exame ou de uma caixa de charutos que se encontra sobre o balcão de uma loja está obrigada a pagar o preço de venda das coisas e não somente indenização por danos e prejuí zos A apropriação é considerada como uma disposição e não como um ilícito civil extracontratual O mesmo ocorre com a passividade em certos casos especialmente o não registro de um protesto e com certas condutas positivas 262 Alf Ross Pelas mesmas razões expressas ao aludir aos casos limite entre as disposições obrigatórias e as declarações não obrigatórias não é possível determinar quais atos ou omissões devem ser tratados como disposições utilizando como critério que o ato expresse ou não uma intenção dispositiva Por exemplo é puramente convencio nal que a passividade frente à pessoa que fez uma oferta signifique aceitação em relação a ela Se é um fato estabelecido a passividade produzir os mesmos efeitos da disposição então podemos tomar a passividade como indicação de uma intenção correspondente po rém não em caso contrário No entanto como regra geral os atos desse tipo são classificados como quasecontratos semdisposições e colocados fora do concei to de disposição em sentido estrito Visto que exibem peculiaridades próprias essa classificação é a mais conveniente Se combinarmos os pontos de vista expressos de Io a 4o chegare mos à seguinte definição de disposição privada É uma manifestação que em princípio e a menos que existam razões particulares para sua invalidade produz efeitos jurídicos autônomos isto é efeitos jurídicos que o autor da disposição deseja produzir Esses efeitos são determinados de acordo com o conteúdo individual da manifestação até onde o conteúdo alcança Ultrapassado isso são determinados diretamente pelas normas gerais como efeitos padronizados complementadores do conteúdo individual Se a manifestação for uma fórmula verbal sem nenhum conteúdo dispositivo próprio o efeito jurídico será determinado inteiramente pelas normas gerais 49 PROMESSA ENCARGO4 E AUTORIZAÇÃO Colocados em relação com as duas formas principais das modali dades jurídicas o dever e o poder os subgrupos da disposição são indicados na tabela seguinte 4 0 conceito correspondente não foi elaborado na teoria jurídica anglossaxõnica e por isso não há um termo estabe cido para ele Sugerimos o emprego da palavra encargo a qual á definida na seqüência do texto Direito e Justiça 263 D isposições q u e criam para quem realiza a disposição para outros d ever p rom essa encargo p o d er autorização A promessa é a disposição que normalmente obriga a pessoa que a formula o promitente Dizer que está obrigada significa parágrafo 33 que a outra pessoa normalmente o promissário tem o poder de demandar e obter sentença que condene ao cumprimento do prometi do ou ao pagamento de indenização por danos e prejuízos por descumprimento Para falar de uma promessa obrigatória não é essen cial que exista entretanto o poder efetivo de exigir o cumprimento da promessa mediante uma demanda Uma promessa é obrigatória mes mo quando tal poder esteja condicionado por circunstâncias futuras por exemplo descumprimento dentro de um dado prazo desde que o poder não dependa da vontade do promitente A promessa é obrigató ria portanto quando se pode obter o cumprimento compulsório de forma incondicional ou quando esse cumprimento esteja sujeito a con dições independentes Concluise que a promessa não é obrigatória 1 se em razão de circunstâncias especiais ela é inválida nula ou anulá vel o que significa que a possibilidade de exigir seu cumprimento por meio da força está excluída e 2 quando é revogável o que significa que o promitente pode evitar o cumprimento compulsório Assim uma promessa válida é obrigatória a partir do momento que se torna irrevogável Se circunstâncias posteriores impedem os processos por exemplo em certas condições tornase impossível cumprir a promessa ela se torna ineficaz O cumprimento também produz o efeito de tornar a promessa ineficaz Isto pode parecer excessivo mas é simplesmente lógico É precisamente porque a pro messa produziu o efeito econômico desejado que seu efeito jurídico desaparece A promessa não chega a ser eficaz como diretiva ao juiz porque se tornou eficaz como guia para a conduta do promitente A palavra promessa não é geralmente definida tão estritamente Ordinariamente inclui todas as disposições que oneram o promitente Além das disposições pessoalmente obrigatórias já examinadas 264 Alf Ross promessa em sentido estrito o conceito compreende também as transferências isto é as disposições que transferem um direito a outra pessoa e as quitações que extinguem um direito promessas em sentido amplo Convém incluir as transferências e as quitações no conceito de promessa porque em muitos aspectos a elas são apli cadas as mesmas regras que são aplicadas às promessas em sentido estrito Por outro lado as promessas em sentido amplo diferem das promessas propriamente ditas num ponto essencial as promessas em sentido amplo não conduzem ao ato de cumprimento da parte do promitente Em função disso esses casos parecem contrários ao uso ordinário da palavra promessa Afigurase estranho por exemplo fa lar de promessa quando dou uma moeda a um mendigo ou rejeito uma oferta de compra5 Os encargos são disposições que obrigam a pessoa a quem são dirigidos ou a um terceiro ou em sentido mais amplo colocam um gravame sobre ela ao extinguir um direito que lhe fora conferido Em princípio as pessoas particulares não podem obrigar a outras pessoas por meio de encargos Fica claro que um particular não pode em princípio deter esse tipo de poder sobre outros particula res Tal poder normalmente só é conferido às autoridades públicas Um encargo portanto pressupõe um fundamento especial O fun damento do encargo imposto por A a B será amiúde B ter autoriza do a A a imposição de tal encargo A obrigação de B tem suas raízes portanto em sua própria autonomia Por exemplo a oferta do promitente coloca quem a recebe em posição de obrigar o promitente mediante a aceitação o que nessa medida é um encargo Do mes mo modo a autoridade conferida pelo principal ao seu agente é o fundamento do poder do agente de obrigar ao principal mediante disposições com terceiros O fundamento para um encargo pode ser também uma relação jurídica geral de autoridade entre A e B Assim por exemplo dentro de certos limites os pais e as autoridades escolares podem impor um encargo sobre as crianças O mesmo ocorre na relação entre empre gador e empregado 5 Pareceme que diante das razões dadas seria mais prático restringir o conceito de promessa a disposições pessoal mente obrigatõrias Direito e Justiça 265 Finalmente sem estabelecer nenhuma relação geral de autorida de o ordenamento jurídico pode conferir a uma pessoa o poder de comandar outras em certos aspectos o que é menos excepcional do que pode parecer à primeira vista Nos casos nos quais o direito quer criar um privilégio em favor de A não seria irrazoável que em lugar de conferir a A um direito exclusivo e incondicional de disposição lhe outorgasse o privilégio de excluir outras pessoas Este método é em pregado por exemplo no direito da propriedade intelectual enquanto certas reproduções não constituem uma transgressão ao direito do autor a menos que este tenha proibido de forma expressa a repro dução Do mesmo modo poderia não ser irrazoável imaginar que a passagem pela propriedade alheia só seria ilícita se o proprietário o houvesse proibido de maneira expressa Além disso os encargos se apresentam como disposições secun dárias dentro dos limites de uma relação jurídica primária Exemplos disto são o aviso de conclusão ou cancelamento e a declaração de abatimento de uma dívida As autorizações são disposições que conferem à pessoa a quem são dirigidas ou a um terceiro um poder em particular uma potestade A potestade é o poder de fazer disposições Normalmente somen te A pode autorizar a B fazer disposições que obriguem a A O exemplo mais comum é a autorização a um agente Uma trans ferência inclui normalmente a transmissão da potestade para dispor do direito Freqüentemente as disposições têm na prática um caráter com posto Assim a oferta e a transferência são ao mesmo tempo pro messa e autorização a aceitação o aviso de conclusão a declaração de abatimento de uma dívida são tanto promessas como encargos O testamento ocupa uma posição especial É bastante curioso o testamento ter sido tradicionalmente classificado como um encar go embora transfira direitos aos herdeiros e não lhes imponha obri gações exceto os encargos como condição para aquisição do direi to A opinião de que o testamento é um encargo imposto sobre as autoridades públicas ou os herdeiros universais em relação à distri buição da herança é equívoca já que o testamento transmite direta mente o direito por ocasião da morte do testador Em minha opinião o testamento é uma disposição de transferência e por isso segundo a terminologia jurídica corrente uma promessa em sentido amplo à qual se aplicam regras especiais O erro é presumivelmente motivado pelo fato de que o testamento como tal não obriga ao testador duran te sua vida Mas esta circunstância não afeta o caráter de transferên cia da disposição Simplesmente significa que com respeito a essa transferência existe uma regra especial de revogabilidade de modo que a disposição se faz obrigatória somente com a morte do disponente Neste momento obriga o seu patrimônio Em razão da posição especial que o testamento ocupa no direito é conveniente excluílo do conceito de promessa e declarálo uma dis posição sul generís 266 Alf Ross Capítulo X Algumas Características da História Do Direito Naturai1 50 CRENÇAS POPULARES GREGAS HOMERO E HESÍODO2 O nosso propósito neste capítulo não é apresentar uma história do direito natural mas simplesmente destacar algumas características principais necessárias à compreensão do direito natural de nossos dias Posta essa finalidade poderia talvez afigurarse excessivo prin cipiar pelas crenças populares gregas de em torno do ano 700 aC A justificação disto reside no fato de que a oposição entre a filosofia do direito natural e uma teoria realista do direito de fundamento socio lógico não é um contraste entre duas teorias científicas mas entre uma perspectiva em que se combinam a magia a religião e a metafísica e outra de natureza científica Para compreendêlo é necessário vol tar aos primórdios de nossa civilização e mostrar como a doutrina do direito natural através de todas as suas variações conservouse es sencialmente a mesma Sua característica principal é um modo de pensamento que em todas as suas fases mágica religiosa e filosó ficometafísica difere radicalmente do ponto de vista científico Es tendese numa linha ininterrupta desde a crença mágicoanimista do 1 Para uma história do direito natural escrita de um ponto de vista católico ortodoxo ver a obra do tomista Henri Rommen Ledroitnaturet945 Ver também W Friedmann LegalTheory 2 ed 1949 15 e segs e Julius Stone The Province andfunction of Law 194650 209 e segs 2 A exposição que fazemos neste parágrafo baseiase substancialmente no trabalho de C W Westrup Introduction to Eariy Roman Law III 1 1939 1 e segs 268 Alf Ross homem primitivo através da doutrina teológica dos grandes sistemas filosóficometafísicos3 O fator fundamental em todas as manifesta ções dessa linha de pensamento é um temor da existência e dos poderes que dominam o homem e a necessidade de buscar refúgio em algo absoluto algo que esteja acima de toda mudança e que possa oferecer paz e segurança Paz e segurança não somente diante dos poderes cósmicos da existência a incerteza da vida os infortú nios e a morte mas também como uma defesa contra as ansiedades e dúvidas da própria alma humana o temor de ser responsável pelas próprias ações O absoluto tem assim tanto natureza cósmica quanto natureza moral é simultaneamente ordem do mundo e lei moral4 Tal postura ante a vida é tipicamente infantil A história da ciência é a história da liberação do espírito humano dessas pesadas cadeias do temor Entretanto tratase de um processo ainda infindo Se por um lado a visão científica conquistou o domínio no modo de ver a natureza por outro nas questões sociais morais e jurídicas perma necemos encalhados num persistente infantilismo A filosofia do di reito natural constitui um dos seus produtos Podemos estudar melhor esse contraste seguindo o desenvolvi mento do pensamento grego desde as crenças populares primitivas que encontramos nas obras de Homero e de Hesíodo até os grandes sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles Nesse lapso aproximado de 300 anos reside o gérmen de tudo que posteriormente irá se des dobrar de forma mais claramente diferenciada É possível seguir o desenvolvimento que vai desde uma primitiva concepção mágicomítica 3 Após a publicação original deste livro apareceu a obra de Ernst Topitsch Vom Ursprung und Ende der Metaphysik 11958 a qual fundada em amplos estudos de mitologia e filosofia sustenta muito convincentemente a opinião qus proponho aqui a saber que a filosofia do direito natural tem suas raízes numa mitologia cosmológica Desejo destacar o valor dessa notável obra 4 No tocante à filosofia como substitutivo para a religião ver Victor Kraft Einíühning in die Phüosophie 11950 16 e segs Ross como centenas de intelectuais e pensadores atuantes nos meados do século XX alimentava uma visão evolucionista linear do processo do conhecimento segundo a qual este se desenvolveu cronologicamente dentro de estágios mais ou menos precisos de teor quantitativa e qualitativamente heterogêneo ou seja os estágios mágicoreügioso miticoi filosófico metafísico e cientifico Isto foi o resultado natural embora tardio da influência quase hegemônica do positivismo e do racionalismo do século XVIII embora no século XIX figuras pouco benvindas nos círculos científi cos e acadêmicos como Carl Gustav Jung nascido em 1875 passassem a desconfiar da visão racionalista e da onipotência da ciência moderna A partir principalmente da década de 60 do século XX a visão cientificista do mito foi definitivamente abandonada por muitos estudiosos que se dedicaram a uma investigação mais profunda e menos preconceituosa da estrutura dos mitos o que pôs em xeque o simplismo da teoria evolucionista 0 Prof Ari SAIof1 desenvolve atualmente tese apresentando uma nova interpretação em torno deste tema N T Direito e Justiça 269 do direito até uma florescente atitude humanista e científica que teve sua mais notável expressão nos círculos dos sofistas durante o perío do de grandeza de Atenas no século V aC É significativo o fato desse desenvolvimento ter encontrado seu paralelo na transformação da primitiva comunidade clânica em democracia Entretanto assim como a liberdade política não pôde se conservar tampouco perdurou a li berdade de pensamento Os sistemas filosóficos de Platão e Aristóteles significaram uma reação fatal Nestes dois homens todas as forças se uniram para reforçar a crença minguante no absoluto numa ordem cósmica e moral do mundo A magia primitiva e a religião foram subs tituídas pela especulação metafísica porém o espírito foi o mesmo E foi este espírito o que continuou caracterizando a posterior evolução durante um longo tempo A escolástica cristã Tomás de Aquino pôde sem dificuldade interpolar uma nova doutrina religiosa no sistema de Aristóteles Ainda hoje o timbre do tomismo caracteriza a filosofia jurídica católica Embora no mundo protestante o direito natural te nha sido descristianizado e assumido a forma de uma metafísica racionalista filosófica na sua essência permaneceu o mesmo uma crença no eterno numa validade sobrenatural absoluta A comunidade homérica século VIII aC apresentava o quadro usual de um povo agrícola primitivo em seu estágio tribal A popula ção estava dividida em muitas pequenas tribos cada uma comanda da por um chefe ou rei Contudo a autoridade do rei não abarcava tudo Sua função se limitava substancialmente a ser juiz das disputas e chefe na guerra Quanto ao mais a vida na tribo era estritamente regulada pela tradição e o costume encarnados nos tabus As idéias da tribo a respeito do direito eram mágicas e religiosas Acima dos seres humanos reinavam os deuses com Zeus no topo Mas os pró prios deuses estavam submetidos ao poder do destino Este poder cósmico que conferia a cada coisa o seu devido lote dominava igual mente a natureza e os seres humanos sendo mantido mediante cas tigos A noção de leis causais no sentido moderno da expressão não nascera ainda A necessidade que governava o universo não era cau sai mas a necessidade do destino determinada pelas noções de von tade soberana culpa e castigo Do sol se dizia que não ultrapassaria a medida de seu caminho porém se o fizesse as deusas do destino as donzelas da justiça saberiam como encontrálo5 5 Heráclito fragmento 94 em Herman Diels Die Fragmente der Vorsokratiker 5 ed 193437 270 Alf Ross Neste sistema o direito e a justiça não têm caráter moral no senti do que hoje atribuímos a essas palavras6 A decisão justa é simplesmente aquela que dá a cada um o seu devido lote em conformidade com a vontade dos deuses do destino O rei sábio e justo é aquele que recebe as revelações divinas de Zeus themistes e faz delas o fundamento de suas decisões dikê Por esta razão o rei Minos de Creta visitava secretamente Zeus a cada nove anos7 A justiça neste sentido é requisito para o bemestar e a pros peridade de um povo A insubordinação contra a ordem cósmica é objeto de castigo pelos deuses e o destino Zeus é o guardião do direi to sua filha Dlkê se senta ao lado de seu pai e o informa a respeito das transgressões dos homens e o todopoderoso Zeus os castiga Pois sobre a terra generosa que a muitos aiimenta Zeus possui três vezes dez mil vigilantes dos mortais e eles obser vam os julgamentos e as ações atrozes no seu perambular tra jados de névoa por toda a terra Através dessa hoste celestial Zeus distribui a prosperidade e a desdita aos justos e injustos Hesíodo século VII aC descreve os frutos dourados que aguar dam o povo cujo rei observa a lei dos deuses e os desastres que cairão sobre o povo se seu rei cego pela arrogância for contra a vontade dos deuses Quem em contrapartida dá julgamentos corretos aos es trangeiros e aos homens da terra e em nada se apartam do justo a estes lhes prosperam a cidade e nela florescem as pes soas reina a paz no país aquela que alimenta os jovens e Zeus que tudo vê não lhes impõe árdua guerra Nem jamais perseguirá a fome e a desgraça a homens de correta lei mas alegremente cuidarão dos campos que é tudo que lhes preocu pa Para estes produz a terra muito alimento e nas montanhas o carvalho no seu topo gera bolotas e no meio do tronco abelhas suas ovelhas lanudas caminham carregadas de to sões suas mulheres geram filhos semelhantes aos pais conti nuamente florescem em meio aos bens e em embarcações não viajam pois a terra doadora de grãos lhes produz o fruto 6 Cf Westrup Introduction to Eariy Roman Law III 1 11939 65 7 Op cit 50 77 e segs A este respeito ver Platão As Leis Livro I Clássicos Edipro 1999 W T 8 Hesíodo Os Trabalhos e os Oias versos 252 a 255 Direito e Justiça 271 Mas para aqueles que obram violência e crueldade a esses o cronida Zeus que tudo vê impõe o castigo da iei amiúde mesmo uma cidade inteira sofre com um homem mau que co mete faltas e trama atos de soberba e do céu o cronida envia grandes sofrimentos ao povo fome e peste simultaneamente de sorte que os homens perecem e suas mulheres não parem filhos e suas habitações familiares escasseiam por inteligência de Zeus olímpico Ef de novo em outra ocasião o cronida des trói o grande exército deles ou sua muralha ou faz perder seus navios no mar Essa descrição acresce apenas mais um exemplo do fato já bem conhecido na história da religião no estudo da civilização de que o poder dos chefes dos povos primitivos tem origem mágica10 É tarefa do chefe por meio de rituais mágicos em particular cantos danças e sacrifícios fazer com que chova que a terra dê frutos e que os animais se multipliquem11 Se os encantamentos não surtem efeitos e a tribo é assolada por colheitas ruins inundações e outros desastres o rei será condenado por ter perdido seu poder e executado para ser substituído por um rei novo e melhor No mundo de Homero e de Hesíodo entre tanto esses hábitos se tornaram refinados os atos mágicos através dos quais se busca o bemestar da tribo não são mais simples ritos e sacrifícios mágicos mas atos administrativos realizados pelo rei em exercício de seu poder jurisdicional Não é tanto por realizar encanta mentos dirigidos aos deuses mas sim por obedecer à vontade revela da deles por cumprir a lei cósmica que o rei traz benefícios ao seu povo Despojado de idéias metafísicas isso eqüivale simplesmente à crença de que é tarefa do rei julgar de acordo com a moralidade e costume tradicionais e que a felicidade e a prosperidade da tribo de pendem do respeito à tradição e à ordem existente Compreendese facilmente que a crença numa necessidade do des tino e no castigo pela injusta rebelião contra a ordem cósmica assu misse uma nota de ressentimento especialmente veemente e exigis se vingança contra os rebeldes numa época na qual as velhas formas 9 Hesíodo Os Trabalhos e os Dias versos 222 a 248 10 Ver Westrup op cit 31 e segs 11 Ruth Benedict Patterns of Culture Mentor Ed 1946 54 e segs e 131 e segs apresenta uma interessante descrição da magia da chuva e da agricultura entre povos primitivos da atualidade 272 Alf Ross da comunidade tribal começavam a se romper e os conflitos sociais ele vavam outras classes aos postos de direção Uma incipiente ruptura desse naipe teria ocorrido no período que vai de Homero a Hesíodo O reino homérico com seu idílio patriarcal fora substituído por uma aristo cracia de grandes senhores que lutavam entre si para alcançar a supre macia e tentavam submeter os camponeses livres O respeito pela tradi ção herdada justiça em sentido homérico minguava a violência e o perjúrio eram coisas do dia a dia Esta evolução se reflete na diferença entre Homero o trovador da corte e Hesíodo o camponês beócio Para o primeiro Zeus é o protetor e o defensor que preserva uma ordem harmoniosa enquanto para Hesíodo que está repleto de ódio e amar gura pela maldade dos tempos Zeus se tornou o grande juiz que castiga os poderosos e os injustos Enquanto Homero representa o ponto de vista das classes dominantes Hesíodo reflete a desconfiança e a animo sidade dos camponeses que só desejam viver em paz e são testemu nhas da audaz arrogância dos poderosos envolvidos em suas lutas pela supremacia em completo menoscabo pela tradicional ordem das coisas Idêntico pessimismo associado à certeza de que cedo ou tarde o castigo cairá de fato sobre os arrogantes caracteriza a Sólon por volta do ano 600 aC Com demasiada freqüência pode parecer que o homem presunçoso escapa ao seu castigo E assim Sólon enfatiza que Zeus diferentemente dos mortais não se irrita rapidamente dian te de uma ofensa contudo nenhum homem perverso pode escapar de seu olhar vigilante Um homem cumpre sua pena antes outro depois Se o culpado escapa e o destino dos deuses não cai sobre ele e não faz dele sua presa tal destino chegará com toda certeza mais tarde os inocentes são castigados por seu crime seus filhos ou os filhos de seus filhos em gerações posteriores12 Novas sublevações políticas abalaram o período que vai de Sólon a Herádito isto é por volta de 500 aC Com o crescimento das cidades e o desenvolvimento de uma nova economia se produziu o surgimento de uma classe de cidadãos que tentou arrebatar da aristocracia seus anti gos privilégios Neste período de conflito entre a aristocracia e a demo cracia aparecem os tiranos produto da necessidade de um governo forte que combatesse a nobreza proprietária da terra uma situação seme lhante ao período de poder absoluto como vínculo na evolução da aristo cracia à democracia na história política ocidental 12 Transcrito da tradução de Ivan M Linforth em Soon the Athenian 165 Direito e Justiça 273 É presumível que a experiência pessoal das mudanças políticas da época se reflita no princípio de mutação enunciado por Heráclito Até os tempos de Heráclito os filósofos haviam tentado compreender o mundo como uma coleção de coisas e descobrir seus elementos imutáveis Heráclito afirma que tudo se acha num estado de fluxo eterno o mundo é um contínuo processo de eventos não uma coleção de coisas Tudo flui não é possível mergulhar duas vezes no mesmo rio Ao mesmo tempo entretanto tudo a natureza e o homem está submetido a uma ordem do mundo que não foi criada pelos deuses nem pelos homens mas que sempre existiu e sempre existirá um fogo eterno avivado e arrefecido segundo um plano Foi Heráclito quem disse que o sol saberá como não ultrapassar a medida de seu caminho Essa lei cósmica é ao mesmo tempo a lei da justiça e todas as leis humanas se nutrem da única lei divina É aqui que pela primeira vez o tema do direito natural é expresso em termos filosóficos As leis humanas não são meramente arbitrárias São uma emanação de uma lei universal e são nutridas pelo mesmo poder do destino que domina tudo o que existe Tratase de uma filosofia do direito natural aristocráticoconservadora a qual num momento em que tudo que procedia do passado ameaçava desintegrar se busca segurança numa nova formulação filosófica da velha crença na conexão entre as leis humanas e as forças que regem o mundo 51 OS SOFISTAS No século V aC no período compreendido entre as guerras persas 490 a 480479 aC e a derrota de Atenas na guerra do Peloponeso 404 aC a cultura helênica atingiu seu máximo esplendor e ao mesmo tempo a democracia foi implantada com êxito na maior parte das cidadesEstados Esta realização numa época distanciada so mente por uma ou duas gerações do pensamento primitivo mágico animista que ainda predominava em Heráclito sempre causou a maior admiração nas pessoas No domínio da arte da literatura da ciência e da filosofia esse povo pouco expressivo numericamente produziu obras que se constituiriam paradigmas dos séculos vindouros Aqui nos interessa somente um aspecto dessa época culturalmente ex plosiva a abolição das crenças mágicoreligiosas o abandono da crença no absoluto e eterno em matéria de conhecimento e moral a funda mentação de um ponto de vista científico baseado na relatividade de 274 Alf Ross toda apreensão racional e a evolução de uma nova moralidade se gundo amplas linhas humanistas Tudo isto se encontra intimamente conectado entre si Os sofistas13 um grupo de professores entre os quais a figura principal foi Protágoras provocaram a transformação do pensamento vigente Eram profissionais do ensino ou seja ensinavam mediante remuneração e instruíam os cidadãos de boa posição nas habilidades oratórias e forenses importantes para todos que desejassem discur sar nas assembléias públicas ou defender um caso perante os tribu nais Poderseia quase definilos como professores particulares de retórica Logo granjearam a reputação de imorais e intelectualmente desonestos o que ainda hoje se vincula à palavra sofistica o que entretanto é um erro facilmente dissipável se atentarmos para o fato de que nosso conhecimento das doutrinas dos sofistas provém exclu sivamente das descrições dos seus adversários mais cáusticos especi almente Platão Os críticos da moral e das doutrinas absolutistas sem pre foram estigmatizados por seus opositores como imorais e perigo sos para a civilização No que diz respeito a isso os sofistas não tive ram melhor sorte que os adeptos da filosofia empirista de nossos dias os quais têm submetido nossas idéias morais a um exame crítico Protágoras ensinou skepsis skepsis no conhecimento e na moralidade resumida na fórmula o ser humano é a medida de todas as coisas14 Porém é imperioso lembrar que o conhecimento em relação ao qual Protágoras era cético era aquele que até então fora a meta dos filósofos a percepção absoluta do imutável e que a moral em relação à qual era cético era a lei absoluta a validade divina Protágoras se deu conta da inutilidade e fatuidade das ten tativas dos filósofos de conhecer a essência absoluta da existência e das coisas e ensinou que todo conhecimento reside na percepção de nossos sentidos e é por conseguinte necessariamente relativo e in dividual As coisas são tal como as vemos mas os seres humanos as 13 Para uma das melhores descrições e apreciações criticas dos sofistas ver George H Lewes History of Philosoph 3 ed 1867 105 e segs Ver particularmente os diálogos de Platão O Sofista Protágoras Gdrgias Hipias Maior Hipias Menor A República eAsleif estes dois últimos constantes nesta mesma série Clássicos Edipro Para relativa compensação dessa difundida exckisivizaçfe da visão dos sofistas convém ler a obra Lies of the Sophists de Filostrato e Eunápio ver Bibiografia IN TJ 14 Sobre a interpretação desta famosa frase veja Mario Untersteiner The Sophists 41 e segs 0 significado original de aiceiMÇ tskepsis é precisamente percepção sensorial mediante a visão o que corroborl inteiramente o parecer rossiano de que o embrião da ciência empírica se encontra junto aos sofistas N TJ Direito e Justiça 275 vêem de maneiras diferentes Mas o homem cuja mente esteja sã as vê da mesma maneira que outros que se acham na mesma condição Este é substancialmente o ponto de vista da ciência moderna a relatividade de toda ciência e sua dependência da observação através dos sentidos Protagoras é claro não conhecia o método da ciência moderna que mediante a interpretação matemática constrói um con trole intersubjetivo para elevar o conhecimento acima da experiência individual Sua doutrina portanto chegou a ser mais radicalmente cética do que o justificável Por outro lado sua filosofia contém os prolegômenos de uma fun damentação crítica da objetividade da ciência Sua alusão à concor dância entre as percepções de pessoas de mente sã pode ser enten dida como o gérmen de uma teoria da verificação A posição é a mesma no campo da moral e do direito Aqui tam bém é o ser humano a medida das coisas Não há direito universal e eterno e as leis não têm origem divina São única e exclusivamente obras do ser humano baseadas na convenção estabelecida e no po der Isto não significa que todas as leis sejam igualmente boas Aqui também é preciso que o critério seja buscado na concordância entre as pessoas de mente sã Isto conduziu Protágoras é verdade a uma postura convencional de cunho conservador em defesa da ordem existente Os sofistas mais jovens contudo souberam extrair de seu ensino o necessário para efetuar uma crítica contundente das institui ções sociais existentes Perceberam quão vazio e enganoso era atri buir divindade às leis As leis humanas são a corporificação do poder arbitrário dos governantes Todo governante produz leis que lhe são proveitosas e chama de justo aquilo que serve aos seus próprios interesses A doutrina da justiça imanente às leis não passa de uma capa astuciosa que encobre o predomínio da força15 Desta maneira os sofistas nos oferecem a primeira tentativa de formular uma teoria sociológica da relação entre o direito de um lado e o poder e o interesse do outro e do conflito entre grupos sociais16 Mas essa doutrina do caráter convencional das leis consideradas encarnações do poder não quer dizer que os sofistas identificaram em geral o direito com o poder nem quer dizer que reconheceram como 15 Tal é o cerne dos ensinamentos de Trasímaco Cálicles e Crítias Ver Untersteiner op cit 324 e segs 6 Cf K R Popper The Open Society andits Enemies 11945 149 e segs 276 Alf Ross normas para o bem unicamente aquelas que se achavam respaldadas pela força Por trás de sua crítica à ideologia da justiça encontrase uma nova concepção da vida de cunho humanista e cosmopolita unida a exigências revolucionárias extremas em prol de uma reforma da vida social e política17 Hípias ensinava que todos os homens são iguais por natureza e que somente em virtude das leis feitas pelo ser humano foram introduzidas a desigualdade e a escravidão Enquanto os gran des moralistas Platão e Aristóteles defenderam a instituição da escravi dão como fundada na natural desigualdade dos homens foram os imorais sofistas que exigiram sua abolição e ao fazêlo condenaram também a distinção tão profundamente inculcada na mentalidade grega entre gregos e bárbaros Licofronte exigiu a abolição da nobre za18 e Faléias reivindicou uma distribuição igualitária da propriedade e que as oportunidades de educação fossem colocadas à disposição de todos os cidadãos Foi inclusive expressa a idéia de que as mulheres pudessem gozar de igualdade política relativamente aos homens Todas essas reformas foram pleiteadas pelos sofistas como algo que era justo segundo a natureza physié em contraposição àquilo que é justo segundo a lei nomos Disse Antífon Pois as normas das ieis são acidentais enquanto as regras da natureza são necessárias e as normas da iei são criadas por convenção e não produzidas peia natureza as da natureza são ao contrário originárias não suscetíveis de serem convencionadas Um homem portanto que transgride regras convencionais da lei está livre de desonra e punição quando não observado por aque les que fizeram a convenção estando sujeito à desonra e à puni ção somente quando é descoberto É diferente quando se trata da transgressão às leis que são inatas na natureza Se qualquer homem violar qualquer uma dessas leis além do que seja por ela suportável as más conseqüências não serão menores se esca par inteiramente à observação ou maiores se for observado por todos os homens pois a ofensa na qual incorreu não se deve à opinião humana mas aos fatos do caso Apresento reflexões sobre estes pontos porque muito do que é certo de acordo com a lei está em conflito com a natureza e muito do que é dito 17 Op cit p 251 e segs 283 e segs 18 Op cit p 340 Direito e Justiça 277 aqui será tido como discordante com a natureza pois as partes envolvidas por isso se expõem a mais sofrimento pena do que o necessário e desfrutam de menos gozo do que poderiam ter e sofrem quando podiam evitáloP Isso introduz um tema que acompanha o curso de todo o direito natural posterior o contraste entre o direito positivo e as dadas insti tuições históricas e convenções sociais por um lado e por outro o que os filósofos do direito natural chamam de exigências da natureza que não dependem do poder arbitrário humano mas que derivam de leis cósmicas da vontade de Deus ou da natureza humana En tretanto dentro das diversas escolas de direito natural há uma clara diferença na concepção da relação mútua entre as duas esferas uma diferença que reflete a tendência política que se acha por trás da cons trução O ponto de vista predominante é o do direito natural conserva dor tal como foi representado por Heráclito o direito positivo em sua essência é uma emanação ou revelação daquilo que por natureza é eternamente válido o que lhe confere sua força obrigatória e somente isso faz da ordem institucional um ordenamento jurídico como coisa oposta ao império da força Esta escola de direito natural é chamada de conservadora porque sua função prática é suprir uma justificação para as instituições existentes por meio da santidade moral e religiosa Contrastanto com este ponto de vista encontramos a escola de direito natural que como a escola dos sofistas ou a correspondente filosofia liberal do direito natural do século XVIII é revolucionária ou evolucionista Esta escola destaca o conflito entre o direito positivo e o direito natural e é denominada revolucionária porque sua função políti ca é proporcionar uma justificação com a santidade de uma validade mais elevada para uma revolução nas condjções sociais Pode afigurarse uma inversão da postura cética de Protágoras ponto de partida dos sofistas o fato de acabarem por propor um direito natural isto é uma verdade moral E com efeito assim foi Entretanto devemos lembrar e isto por exemplo aparece na cita ção feita de Antífon que a natureza à qual os sofistas recorriam não era concebida em termos de absolutismo religioso ou metafísico Aqui também parece verdadeiro que o ser humano é a medida de to das as coisas que se referiam os sofistas às experiências fatuais 19 Antífon o sofista fragmento 4 278 Alf Ross da humanidade quanto ao prazer e à dor às necessidades fatuais e às valorações humanas Um direito natural deste tipo é essencial mente diferente do direito natural metafísico que posteriormente pre dominou e pode ser facilmente interpretado se para isto estivermos dispostos como uma primeira tentativa de realismo na política jurídica 52 ARISTÓTELES20 A filosofia dos sofistas havia feito grandes progressos para libertar o direito da tradicional concepção mágicoreligiosa Como vimos a doutrina dos sofistas continha ao menos um gérmen de uma sociologia do direito e de realismo em política jurídi ca com base no qual desenvolvimentos posteriores poderiam ter sido realizados conforme o espírito da ciência O tempo entretanto ainda não estava maduro para isso Duas das maiores mentes que a huma nidade conheceu Platão e Aristóteles se empenharam em recons truir os que os sofistas haviam derrubado a crença no absoluto e no eterno21 E foram estes dois homens mais especialmente Aristóteles no que concerne à filosofia do direito que decidiram o caráter de seu desenvolvimento posterior até nossos dias É claro que eles não podiam reviver a crença nos deuses olímpicos e nas leis cósmicas do destino A magia e a mitologia haviam tido seus dias de esplendor e agora pertenciam ao passado O lugar da magia e da religião foi ocupado agora pela metafísica filosófica que tinha essencialmente a mesma origem mas que empregava um maior refinamento Os poemas e os mitos narrativos foram substituí dos por especulações filosóficometafísicas isto é por uma atividade intelectual que em sua construção lógica e sistemática imita o co nhecimento científico rigoroso mas que na realidade é uma nova mitologia Assim é porque sua função como a da mitologia e a da religião consiste em proporcionar paz e fortaleza por meio da cren ça no absoluto E também identicamente àquelas é copiosa com 20 A exposição deste parágrafo é num esquema mais amplo o cerne da interpretação de Aristóteles que desenvolvi mais minuciosamente em Kritik der sogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VI 3 21 A invenção da própria filosofia pode ser interpretada acho como uma reação à ruptura da sociedade fechada e suas crenças mágicas É uma tentativa de substituir a fé mágica perdida por uma fé racional K R Popper The Open Society and its Enemies 1945 I 165 Sobre a filosofia como um substituto para a religião ver também Victor Kraft Einführung in die Phitosophie 1950 16 e segs Direito e Justiça 279 licença poética em asseverações acerca do ser íntimo da existência e das coisas Como isto se acha fora de qualquer controle da observa ção e da experiência todos se encontram livres para sustentar o que bem entendam citando em seu apoio um contato absoluto que se o chame discernimento intelectual intuição experiência de evidência consciência transcendental ou qualquer outra expressão inventada para designar a suposta fonte de conhecimento de verdades eternas Aristóteles fez da animação e personificação da natureza animismo e mitologia que caracterizaram o pensamento grego primitivo um sistema filosófico de idéias Foi mais tarde tratado com grande respei to porque é preciso uma certa bagagem acadêmica para ler seus trabalhos Para descobrir o caráter primitivo de seu raciocínio neces sitase algo mais do que isso Aristóteles tomou como pressuposto que cada coisa individual tem dentro de si uma espécie de alma a que chamou forma da substância que determina a essência das coisas como pertencentes a uma certa categoria Assim por exem plo é a essência úo gato Pussy o que faz dele precisamente um gato Esta essência oculta é a realidade que se encontra por trás de nossos conceitos ordinários como por exemplo o conceito gato A essência não pode ser descoberta por comparação e indução a partir de obser vações externas mas sim por uma intuição intelectual interna É ta refa da ciência determinar a essência das coisas por exemplo o que é o que faz de um gato um gato e enumerar as características da essência numa definição22 A alma ou forma das coisas é também a medida de perfeição que está encerrada nelas e para a qual tendem Esta meta última da tendência de cada coisa está e não está na coisa Enquanto a semente não se desenvolveu na planta a planta não existe como uma realidade mas existe em potência como medida orientadora ou objetivo profundamente alojado no ser da semente Visto que o bem é aquilo para o que tendemos a alma das coisas determina ao mesmo tempo o que é o bem relativamente a cada Esta frase ironicamente elogiosa denota tanta fragilidade crítica por parte de Ross contra Aristóteles que nos surpreende ter sido escrita por ele N TJ 220 oposto deste essencialismo metafísico é o nominalismo metodológico cientifico que considera os conceitos não como imagens da verdadeira natureza das coisas mas como ferramentas lingüisticas para a descrição mais conveniente dos fenômenos e suas correlações invariáveis 0 essencialismo continua se fazendo presente em co nhecidas e inúteis discussões do tipo daquela que versa sobre se o direito internacional é realmente direito Cf Ross Textbook of International Law 1947 seç 5 1 Ver também K R Popper The Open Society and its Enemies 1945 I 25 e segs 280 Alf Ross coisa individual O bom gato é o gato que realiza à perfeição seu ser como gato O mesmo ocorre com os seres humanos Mas qual é a essência de um ser humano aquilo que faz de um ser humano um ser humano E aquela parte da alma que é dotada de razão como algo oposto ao sensual que possuímos em comum com os animais Com isto Aristóteles cinde o ser humano em duas partes e introduz uma distinção que tem sido o fundamento de toda a metafísica espiritualista O ser humano pertence a dois mundos Como ser sen sual é uma parte da natureza como criatura racional pertence ao reino da moral da validade e da liberdade De acordo com isso a tarefa moral do ser humano é levar a cabo guiado pela razão aquilo para o que tende seu ser íntimo em sua natureza racional como algo contraposto à sua natureza sensual Mas o que é isto Quais normas de ação derivam daí Fica claro que essas especulações metafísicas acerca da natureza do bem são como recipi entes vazios que cada um pode encher como o deseje e isto significa realmente que podem ser enchidos com aqueles preconceitos morais dogmáticos aspirações e ideais que se alojaram no ser humano sob a influência de sua época e de seu meio Aristóteles não fez um grande esforço para deduzir sistematicamente o conteúdo da moral mas se conforma em fazer referência ao que os homens bons e sensatos pensam acerca disso Em última instância portanto a consciência moral positiva de Aristóteles e de seus contemporâneos é revestida de valida de absoluta como moral natural pelas construções metafísicas As idéias éticas de Aristóteles são importantes porque as principais foram adotadas pelo direito natural católico Aristóteles não desenvolveu uma teoria do direito com idêntica minúcia Apropriouse da distinção dos sofistas entre direito positivo e direito natural mas deu à filosofia do direito natural um novo viés conservador e metafísico A lei natural é a válida em si mesma e obrigatória para todos É apreendida pela razão E verdade que as leis humanas contêm muito de arbitrário ou que é deter minado pela conveniência prática como por exemplo que o resgate de um cativo seja de uma mina ou que o sacrifício seja de uma cabra e não de duas ovelhas porém deixando de lado taispositividades as leis são baseadas na lei natural e quando são falhas ou ambíguas serão inter pretadas em conformidade com a lei natural23 23 Aristóteles Ética a NicSmaco V x 1134 b Retórica I xv 1375 a A Ética a Nicõmaco consta nesta mesma série Clássicos Edipro N TJ D ir e it o e J u s t i ç a 2 8 1 53 OS ESTÓICOS E O DIREITO ROMANO Entre as escolas e tendências filosóficas gregas posteriores o estoicismo teve especial importância para o desenvolvimento do di reito natural Essa tendência tornouse bastante difundida no domí nio do pensamento antigo e não apenas no mundo antigo como tam bém no moderno Através de seu espírito de humildade e universali dade foi um instrumento de disseminação do cristianismo O estoicismo também vê na razão e na natureza humana a medida para o comportamento do homem sábio Entretanto as complicadas e insípidas idéias de Aristóteles são substituídas por uma interpretação religiosa mais ampla e atraente impregnada de misticismo que serviu para transformar o estoicismo em algo mais do que uma mera filosofia acadêmica transformouse numa filosofia de vida que se difundiu lar gamente entre as pessoas educadas O culto da razão foi combinado à antiga idéia do destino como lei cósmica do mundo A razão não é meramente a razão individual Esta não passa de uma centelha da razão eterna e universal ou razão divina que tudo governa no mundo A exigência de viver em harmonia com a natureza ou de conformidade com a razão o que constitui a mensagem básica do estoicismo adqui re por isso um cunho estranho e ambíguo uma fascinante ambivalência de autoafirmação e humildade independência e sujeição liberdade e dever De um lado a natureza é igual à razão universal ou à vontade divina De acordo com isto a exigência moral é uma exigência de com pleta sujeição e autodestruição ante o divino ante a onipotência que governa o mundo mediante a determinação de identificarse com o universal com Deus Por outro lado a natureza é também a natureza razoável do próprio ser humano e contemplada deste ângulo a moral significa uma exigência de completa liberdade e independência isto é uma vida determinada Unicamente por nossa natureza razoável liber tada completamente das ilusões dos sentidos Somente esta liberdade moral interna é o realmente bom Aquele que vai em busca dos praze res sensuais ilude a si mesmo e é um escravo O homem sábio é um rei tem controle sobre si mesmo e é independente das coisas e das pessoas porque ninguém pode priválo de sua liberdade interior Estas duas perspectivas opostas se fundem numa única precisamente por que o ser humano em sua natureza razoável é ele mesmo uma cen telha do eterno e tem uma parte de si no divino A lei que nos governa é conseqüentemente também lei em nosso ser mais íntimo Somente o ser humano que é escravo de Deus conquistou a liberdade perfeita 282 Alf Ross Os estóicos introduziram o conceito de dever na filosofia moral e jurídica No pensamento grego antigo o destino era um poder externo que obrigava aos seres humanos por meio do castigo mas não em sua consciência Transgredir a regra era por conseguinte vaidade e estultícia hybrís mas não pecado ou desobediência Entre os filósofos o pro blema permanecera sempre dirigido à natureza do bem Foi entre os estóicos presumivelmente sob a influência do despotismo oriental que surgiu pela primeira vez a idéia de que a essência da moral não consistia nos fins externos da vontade mas em sua conformidade com uma lei o que é precisamente o cerne da idéia de dever24 O estoicismo conferiu ao direito natural uma direção religiosa e universal Não a razão individual mas a razão cósmicodivina é a fonte suprema do direito Mas a razão universal nos exige que leve mos uma vida social pacífica enquanto observamos aquelas regras que se encontram em nossa natureza razoável Na interpretação des te pensamento os estóicos com vigor crescente enfatizaram a idéia da igualdade de todos os seres humanos Cada ser humano encerra uma centelha do eterno somos portanto todos iguais diante de Deus A ordem fundamental da razão é respeitar todo outro ser razoá vel como um fim em si mesmo e o ideal da coexistência social é um estado universal no qual todos sejam iguais e vivam em harmonia com os comandos da natureza e da razão Num tal estado não have ria propriedade privada e nem escravidão Entretanto o desatino e a perversidade dos seres humanos resultou em que vivessem aparta dos em estados separados e de acordo com leis humanas que só refletem de maneira imperfeita a justiça natural O estoicismo também se tornou a filosofia de vida dos romanos cultos Cícero popularizou o estoicismo sob uma forma jurídica menos elaborada omitindo o místico e panteístico nele encerrados Em suas mãos a doutrina do direito natural se converteu numa introdução filosófica ao direito e foi comumente aceita pelos grandes juristas do período clássico Distinguiamse três tipos de direito Primeiro o jus clvile que era o direito que se aplicava aos cidadãos romanos e que era determinado pelo sistema romano tradicional de forma e ação Segundo o jus gentíum que era o direito comum aos romanos e ou tros povos e que portanto se aplicava aos estrangeiros e às relações entre Roma e outras potências tal como o jus clvile o jus gentíum é 24 Cf Alf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VII Direito e Justiça 283 direito positivo é um ordenamento baseado na força e administrado pelos pretores romanos para os estrangeiros praetores peregríni Era todavia mais livre na forma e mais flexível que o jus civie Sob a influência do estoicismo foi interpretado como sendo num grau mais alto do que o direito romano específico determinado pela natureza humana comum aos diferentes povos e viuse nele portanto num grau mais elevado do que no jus civile a expressão dos princípios bási cos do direito natural Finalmente havia o próprio jusnaturae basea do na razão inerente ao ser humano idêntica à razão divina que se aplica a todos os seres vivos Mas o jusnaturae não era um ordenamento baseado na força e na realidade era contrário ao pensamento roma no tradicional denominar tal ordenamento com a palavra direito is Isto ocorreu unicamente em virtude do respeito pela autoridade dos filósofos gregos Há contudo uma certa conexão com as idéias roma nas no conceito romano de aequum et bonum As doutrinas sobre a eqüidade aequitas que se desenvolveram no desenrolar do tempo para abrandamento do direito ritual estrito encontraram assim apoio na filosofia do direito natural Disto o exemplo principal foi a evolução favorável à promessa informal e a uma interpretação mais livre dela menos dependente das palavras utilizadas que da intenção 54 O DIREITO NATURAL DOS ESCOLÁSTICOS Tomás de Aquino25 Não foi difícil para os padres da Igreja e para os filósofos escolásticos interpolar as específicas idéias cristãs na tradição clássica do direito natural No lugar do vago conceito panteísta de uma razão divina universal bastoulhes colocar o Deus do cristianismo A distinção aristotélica entre o ser humano como ser sensual e o ser humano como ser racional se ajustava perfeitamente à distinção cristã entre corpo e alma entre este mundo e o reino de Deus Só que se acha va mais no espírito do evangelho ressaltar a pureza de coração a consciência em lugar da razão pensante como o órgão através do qual a voz de Deus fala ao ser humano 25 Pata um estudo mais minucioso e documentado ver Alf Ross Kritikdersogenanntenpraktischen Erkenntnis 19331 cap VI 4 Neste sentido a patrística mais exatamente Agostinho 354430 antecipandose em muitos séculos à escolástica e especialmente ao tomismo executou essa obra com base na metafísica de Platão a dualidade corpoalma e a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível se prestando impecavelmente à estruturação do pensamento cristão N TJ 284 Alf Ross A novidade mais importante ocorreu em dois pontos Em primeiro lugar o direito natural adquiriu um conteúdo mais variado Enquanto os antigos filósofos do direito natural não tinham ido além de impre cisas idéias acerca de uma lex naturae eterna e absoluta sem atri buirlhe um conteúdo sistemático preciso o cristianismo encontrou na Revelação um ponto de vinculação firme e dogmático O cerne de todo o direito natural cristão é a vontade revelada e neste sentido positiva de Deus a lei mosaica e o Evangelho Em segundo lugar a idéia da supremacia do direito natural sobre o direito humano foi então tomada a sério O direito humano somente adquire sua força obrigatória sua validade como direito enquanto em oposição ao poder arbitrário em virtude de sua derivação do divino e nenhum direito humano que esteja em conflito direto com o direito natural tem validade alguma Isto não significava entretanto que os seres humanos estavam livres para recusar obediência a toda lei injus ta por exemplo a uma lei tributária que não distribui eqüitativamente o ônus Em tal caso a lei da natureza exige do ser humano que antepo nha a paz e a ordem acima de seus próprios direitos Porém se o direito positivo prescreve ou permite algo que está em conflito direto com alguma ordem fundamental específica do direito natural tal como este é ensinado e interpretado pela Igreja então será o direito e dever de todos oferecer resistência ao rei e às autoridades porque então o direito não será mais direito mas força bruta e o rei não será mais rei mas tirano Fica claro que a conjunção desses dois pontos significou que de maneira engenhosa fossem combinados um direito natural de tipo conservador com outro moderadamente opositor Em geral o direito e a ordem receberam apoio religioso na medida em que se reservava à Igreja um direito de censura para a defesa de certos princípios elementares em particular em apoio do poder papal no seu conflito com o poder temporal26 Já se pode encontrar num decreto de Graciano do século XII uma teoria nessas linhas Uma vez atenuado o conflito entre o imperador e o papa o direito natural foi se tornando cada vez mais conservador O direito natural católico alcançou sua formulação definitiva em Tomás de Aquino 12261274 que com 26 0 aspecto político do direito natural em particular a doutrina referente à soberania o contrato de governo e o direito de resistência e o papel desempenhado por estas teorias na história política são tratados com maior amplitude em Alf Ross Why Democracy 1952 9 e segs Esta data não é unanimemente aceita Há quem opte por 12251272 N Tí Direito e Justiça 285 admirável energia e capacidade criadora construiu o sistema teológico filosófico medieval em sua poderosa Summa Theotogica cujos ensinamentos sem alterações e acréscimos particulares são aceitos ainda hoje pela filosofia jurídica católica A filosofia moral e jurídica de Aquino segue muito de perto a de Aristóteles a quem ele chama simplesmente de o filósofo está claro com a inserção da concepção cristã de Deus Sua concepção do mundo também é animista O bem é aquilo para o que tendem tudo todos os entes animados ou inanimados segundo sua natureza e destino divinamente criados O bem é a realidade mesma em sua própria perfeição de acordo com a idéia de Deus Tudo tende segun do sua própria natureza para a perfeição em Deus e por isso toda tendência natural é legítima Para o ser humano o bem significa aquilo para o que ele tende em virtude de sua natureza Isto não significa evidentemente que tudo que o ser humano de fato deseja seja bom A retidão interna está vinculada unicamente à nossa autêntica vontade íntima que se en contra por trás da tendência consciente Se a razão se limitasse a seguir a luz natural que Deus colocou em nossos corações nossa vontade consciente estaria também dirigida sempre para o verdadei ro bem Entretanto a razão do ser humano pode se achar corrompida e desafiar a lei natural A vontade se aparta assim de seu caminho e busca aquilo que se afigura bom ainda que não o seja Qual é então a lei que a razão seguirá a fim de guiar a vontade para o verdadeiro bem Em sua perfeição é a lei eterna idêntica à razão soberana de Deus a sabedoria divina que governa todos os seres criados que rege todos os movimentos da natureza e todas as ações As leis restantes extraem sua força dessa lei Porém a lei eterna não pode ser captada em sua perfeição pelo ser humano Na medida em que pode ser apreendida pelo ser humano com o auxílio exclusivo da luz natural razão chamase direito natural Mas isto não é o bastante para capacitar o ser humano a alcançar seu propó sito divino E conseqüentemente Deus por revelação concedeu ao ser humano a título de orientação adicional uma participação na lei eterna tal é a lei divina a lei mosaica e o Evangelho Finalmente há a lei humana estabelecida pelo ser humano com a ajuda da razão e necessária para permitir a concreta aplicação daqueles princípios bá sicos que estão expressos na lei divina e na lei natural 286 Alf Ross Os diversos níveis da lei têm diferentes graus de evidência27 A evidência é naturalmente maior na lei revelada essencialmente a lei mosaica sua segunda tábua contém os mandamentos fundamentais para a vida humana em comunidade cuja transgressão enche todo ser humano de horror natural Diferentemente os princípios captados unicamente pela luz da razão possuem um grau menor de evidência porque a razão pode ser arrastada pelas paixões e pela natureza pe caminosa do ser humano O grau de evidência é mínimo na mais remota aplicação desses princípios às circunstâncias da vida Assim por exemplo concluise do oitavo mandamento Não roubarás que um depósito tem que ser restituído Contudo esta aplicação é unica mente válida como regra geral Pode haver exceções de acordo com as circunstâncias É mister dar ao legislador uma liberdade considerá vel na formulação do direito positivo O direito natural se limita a de terminar um padrão e não basta que o direito positivo seja simples mente justo devendo também ser benéfico isto é tem que servir às necessidades das pessoas Mas as necessidades mudam em função do ritmo das idéias costumes e circunstâncias econômicas na reali dade modificamse com o todo da própria civilização que varia no tempo e no espaço E por isso o direito tem também que mudar Fica claro que embora Aquino tenha dado ao direito natural um conteúdo mais sólido ao incorporar nele os dogmas fundamentais da moralidade cristã por exemplo a indissolubilidade do matrimônio ele está longe de um racionalismo abstrato que busca deduzir por meio da razão uma solução para cada questão específica e concreta Há assim muito espaço em sua construção para uma forma socioló gicorealista de política jurídica O mesmo ocorre com o tomismo de hoje Se deixamos de lado o metafísico e o dogmático portanto há possibilidades favoráveis para um entendimento entre essa tendên cia e um estudo realista do direito 55 RACIONALISMO8 À medida que a influência teológica sobre o pensamento foi declinando gradualmente o direito natural exceto por seu desen volvimento pela tradição católica ortodoxa foi se secularizando 27 Cf Henri Rommen Le droit natoe1945 72 e segs 28 Cf Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap VI 5 Direito e Justiça 287 Os séculos XVII e XVIII foram a era do racionalismo e do iluminismo e ao mesmo tempo o período de esplendor dos grandes sistemas de direito natural O direito natural tornouse a filosofia prática funda mental de toda uma época o pensamento dominante não apenas nos estudos jurídicos e na filosofia moral como também na economia e na política Despojouse de seu traje teológico e adotou a roupa gem da ciência pura auxiliada pelo método matemático dedutivo que constituiu a grande descoberta da época Os fundamentos dessa ten dência foram formulados pelo holandês Hugo Grócio De jure beiiiac pacis Livro III 1625 mas foi somente em meados do século XVII que o direito natural logrou o fastígio de seu desenvolvimento com os grandes sistemas de Baruch Spinoza Samuel Pufendorf Christian Thomasius Jean Barbeyrac Christian WolfT e outros Uma ênfase política particular apareceu no direito natural de Thomas Hobbes o defensor radical do poder absoluto e também na obra de John Locke e JeanJacques Rousseau os dois fundadores da democracia moder na Locke foi o pai ideológico da Revolução norteamericana e Rousseau da Revolução francesa Estas duas revoluções representaram o triunfo da idéia do direito natural relativamente à libertação do indivíduo in vocando os direitos inalienáveis da liberdade e os direitos inalienáveis do homem Estes direitos encontraram expressão na Declaração de Independência norteamericana de 1776 e na França na Declaração dos Direitos do Homem de 1789 adotada como introdução à Consti tuição de 17910 projeto do Código Napoleão iniciouse com a notável frase seguinte a qual contém o credo da revolução em forma abrevi ada I existe un droit universei et immuabie source de toutes ies iois positives iinlest que ia raison natureiie en tant queüe gouverne tous leshommes Existe um direito universal e imutável fonte de todas as leis positivas é a razão natural que governa toda a humanidade O derradeiro grande nome dessa era foi Immanuel Kant Entretan to principalmente a caminho do desfecho do período houve uma proliferação de autores e sistemas menos conhecidos Não constitui ria exagero dizer que se tornou quase obrigatório que todo autor que se respeitasse elaborasse um sistema próprio A característica principal e mais óbvia do novo direito natural foi como já adiantamos sua natureza secular e não teológica Isto se patenteia na famosa afirmação de Grócio de que o direito natural continuaria sendo válido mesmo quando se sustentasse e isto seria 288 Alf Ross um horrível crime que Deus não existe etsl Deus non daretui 0 direito natural desenvolveuse agora sem nenhum apoio na teologia e na revelação e somente com base na natureza humana Isso em si não teria significado muito Os escolásticos haviam também tomado a natureza humana como fundamento e a interi pretação das ordens da natureza não difere muito se a ela se adicionai ou se subtrai a noção de Deus porém o que é novo é precisamente método pelo qual o direito natural é deduzido da natureza humana 0 fator novo e crucial é a orgulhosa confiança de ter descoberto umi método científico incontroverso para substituir o remendo semiteológicoi e semiempírico dos tempos passados Este é o método dedutivo oi geométrico de René Descartes Considerouse que haviam sido des cobertos os meios de elevar a filosofia ao mesmo nível científico das matemáticas Tudo que faltava era encontrar um ponto de partidf seguro numa série de axiomas indubitavelmente verdadeiros evij dentes29 O resto seria só lógica dedução como todas as matemá ticas não são mais do que dedução baseada num sistema de axio mas No âmbito na filosofia jurídica isso significava que partindo de alguns poucos princípios de absoluta clareza e evidência apreendi dos através da meditação sobre a natureza humana seria possívelf deduzir um sistema jurídico completo Este é o orgulhoso e esperanv çoso programa do racionalismo f Foi executado cabalmente Tomando como ponto de partida a leíj da sociabilidade que emana na natureza social do ser humano e qu o leva a unirse com seus semelhantes numa vida comunitária pacífH ca deduziuse um amplo sistema de regras jurídicas com freqüênd englobando até os detalhes mais diminutos30 Este sistema foi divicM do em disciplinas tal como o direito positivo Desta maneira o direitd natural tornouse não só uma mera coleção de algumas idéias impoN tantes ou dogmas mas um sistema jurídico detalhado semelhantej àquele do direito positivo E assim nos sistemas de direito naturafj podemos encontrar regras a respeito dos contratos da aquisição dâj propriedade do matrimônio da herança do governo etc todas ex postas com um cunho explícito e pormenorizado que fazem do direi to natural um sistema que ocupa a mesma escala do direito positivo i3 29 Descartes tomou como seu ponto de partida a célebre proposição cogito ergo sum 1 30 K 0 A Roeder cita como contravenções elementares ao direito natural entrar sem ser convidado fazer viagens probtew ticas os stocks de couro duro usados pelos soldados Ver Grvndzügen des Naturrechts 2 ed 1863 II 829198 Direito e Justiça 289 Outro fator adquiriu uma enorme e funesta importância Enquanto o direito natural foi concebido como composto unicamente por umas poucas máximas abstratas gerais tal como em verdade ocorrera em toda a filosofia anterior não houve perigo de que o direito natu ral e o direito positivo pudessem ser confundidos Ainda quando hou vesse por certo uma conexão entre eles na medida em que o direito positivo extraía sua validade do direito natural ficava claro todavia que este último não se dirigia às mesmas pessoas que o primeiro porque o direito natural continha os princípios morais e jurídicos que obrigavam ao legislador O acatamento deste ao direito natural era condição para que suas ordens constituíssem um comando jurídico verdadeiramente obrigatório e não o simples império da violência O direito possuía também além de seu caráter compulsório uma vali dade moral superior O direito natural estabelecia os princípios supre mos que eram a fonte dessa validade O direito natural tinha assim uma natureza moral ou políticojurídica mesmo quando não se fizes se distinção fundamental entre a moral e o direito porque se assumia que era parte da essência do direito ser também moralmente obriga tório obrigatório em consciência A palavra moral devia ser entendi da conseqüentemente como designadora daquela validade que di reito e moral em sentido restrito possuem em comum em contraposição ao caráter específico do direito como comando com pulsório Por outro lado jamais se considerou o direito natural como um conjunto de regras dirigidas aos cidadãos para regular suas rela ções recíprocas em termos de direitos e deveres Prova disto é que o direito natural foi sempre considerado como direito ou lei lavt natu ral nunca como um conjunto de direitos rights naturais Mas era diferente agora no século XVIII Uma vez iniciado o proces so de deduzir um sistema jurídico completo sobre base jusnaturalista a conseqüência inevitável foi considerarse o direito natural como um conjunto de direitos e deveres que têm uma aplicação válida direta aos cidadãos em suas relações recíprocas tal como ocorre no direito posi tivo O direito natural deixou de ser uma disciplina moral e se transfor mou numa genuína disciplina jurídica isto é em lugar da idéia logicamente não irrazoável de que o direito positivo era submetido a certos princípios morais que eram condição para sua força moralmente obrigatória os seres humanos foram induzidos a admitir uma duplica ção do sistema jurídico por trás ou acima das relações jurídicas fatuais principalmente expressas na categoria direito subjetivo existia outro 290 Alf Ross conjunto de direitos subjetivos rights os direitos rights naturais Em conformidade com esta idéia chegouse a uma distinção nítida en tre o direito e a moral O conceito de direito subjetivo cumpre lembrar está vinculado à experiência do poder exercido mediante a maquinaria estatal de compulsão O conceito de direito subjetivo é um conceito dó direito positivo Contudo como o direito natural era agora também concebido como formado por direitos subjetivos rights a conseqüên cia foi que todo o direito iaW tanto o natural como o positivo con trastando com a moral foi caracterizado pelo poder de compulsão Dessa maneira como conseqüência foi criada uma desafortunada duplicação do sistema jurídico a concepção de um sistema de direb tos subjetivos superiores situado por trás ou acima do sistema der direitos subjetivos positivos Enquanto o direito natural até então fora uma concepção moralfilosófica que os juristas podiam aceitar ou rejeitar sem que isso produzisse efeitos notáveis para a ciência do direito positivo o novo aparato conceituai gerou uma confusão que deixou marcas profundas em todo o pensamento jurídico até a atua lidade parágrafo 61 O conteúdo ideológico das exigências jusnaturalistas de reforma fbf determinado particularmente no século XVIII por reivindicações dd iluminismo a favor da libertação individual frente ao poder governa mental opressivo e frente à tradição feudal com seus grilhões e siste ma de privilégios Para falar em termos de clichê a ideologia do direito natural se fez individualista e liberal O Estado devia interferir o menos possível na vida dos cidadãos Sua ação devia limitarse a preservar 0 paz interna e externa e a garantir a propriedade e a liberdade contratual Os privilégios da nobreza deviam ser abolidos bem como o poder dasj corporações de ofícios guids e outras restrições arbitrárias à Iiberda4 de Esta ideologia encontrou sua expressão mais incisiva em Kant quÇ definiu a liberdade como o direito original do ser humano e exprimiu 5 suprema exigênciado direito natural no famoso enunciado o imperaí tivo categórico Uma conduta será legal se a liberdade de realizála for compatível com a liberdade de todas as demais pessoas de acordo com uma regra geral31 Desconsiderando o fato de que esta proposição não tem significado sua intenção é claramente assegurar um máximo de liberdade restringindoa apenas em seu próprio interesse 31 Cf Ross op cit cap IX 1 56 DIREITO NATURAL DISFARÇADO Direito e Justiça 291 Admitese comumente que com a reação conservadora posterior à Revolução francesa o direito natural pelo menos durante algum tem po desapareceu do cenário intelectual As tendências predominantes na filosofia jurídica e moral assim como na política durante a Restau ração e depois dela parecem confirmar esse ponto de vista Não foram desenvolvidos novos sistemas de direito natural e o próprio conceito parece ter sumido Na Alemanha floresceu uma filosofia da história românticoconser vadora que como reação às especulações abstratas do direito natu ral centrou sua atenção na evolução histórica das instituições sociais Friedrich Carl Von Savigny e Georg Friedrich Puchta fundaram a esco la histórica ou romântica cuja tese básica consistiu em afirmar que o direito não é criado conscientemente por deliberações racionais de senvolvendose sim de forma cega e orgânica como uma expressão do espírito do povo e da consciência jurídica popular O costume e não as leis é portanto a fonte suprema do direito32 Na França Auguste Comte lançou as bases do positivismo33 num programa que pretendia basear a política cientificamente nas leis que regem as comunidades e sua evolução sociologia Além disso os juristas franceses após a aprovação do grande código civil o Código Napoleão de 1804 perderam o interesse nas reivindicações político jurídicas de reforma e com isso no direito natural Seu interesse se concentrou no direito positivo o Código e sua interpretação34 Na Inglaterra finalmente encontramos também tendências histó ricoconservadoras correspondentes Burke Foi contudo Jeremy Bentham o fundador do utilitarismo quem exerceu maior influên cia35 Apesar de sua tendência liberal e de seu método abstrato não histórico que tinha afinidade com a tendência e o método da filosofia do direito natural do século XVIII Bentham foi o opositor mais faná tico do direito natural e quem com zelo e paixão insuperados denun ciou a idéia dos direitos naturais natural rights qualificandoa de 32 Cf Ross Theorie derRechtsquellen cap V 33 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 119331 cap VI 6 34 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap II 3 35 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 cap VI 6 Why Democracy 1952 pp 49 e segs 292 Alf Ross mera ilusão Bentham quis construir uma doutrina moral exclusiva mente com base no princípio da utilidade isto é fundada no critério da maior felicidade prazer para o maior número Através do filósofo do direito John Austin fundador da chamada escola analítica exer ceu uma influência decisiva sobre o pensamento jurídico inglês36 No entanto a idéia de que o direito natural se converteu em coisa do passado é errônea a menos que restrinjamos esse conceito às teorias racionalistas dos séculos XVII e XVIII Se incluirmos sob o rótulo de direito natural como aqui fizemos todas as teoria jurídicas metafísicas que são também políticojurídicas quer dizer que su prem um critério para a retidão ou justiça do direito então o direito natural ainda que com outro nome sobreviveu o prosperou ao longo do século XIX deverseia chamálo realmente de direito natural disfarçado O século XIX entretanto considerouse hostil ao direito natural porque a partir da perspectiva contemporânea o direito na tural era identificado com as tendências que haviam prevalecido nos dois séculos anteriores A reação não foi na realidade contra o direi to natural como tal mas contra o racionalismo o individualismo e o liberalismo que haviam caracterizado a filosofia do direito natural no período imediatamente anterior Tanto o historicismo como o positivismo seguiram linhas de pensamento que eram bem conheci das pelo direito natural mais antigo Não se pode dizer o mesmo com igual justificação a respeito do utilitarismo de Bentham mesmo que este pretendesse derivar a moral da natureza humana de sua ten dência à felicidade ou ao prazer A despeito disto veremos que certas idéias de característica origem jusnaturalista foram enxertadas no utilitarismo durante sua evolução no século XIX O historicismo37 afirma que a história é o critério do bem e do bom Na história da espécie humana aparecem forças que obede cendo a uma necessidade interna conduzem a humanidade avante rumo à sua meta A moral conseqüentemente não pode ser excogitada pelo raciocínio de um indivíduo devendo sim ser encon trada no desenvolvimento histórico das instituições sociais e jurídi cas As coisas existentes são também em sua essência as coisas boas O julgamento da história é também um julgamento moral A história é a passagem de Deus pelo mundo 36 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 119291 cap IV 36 37 Cf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 11933 cap XII Direito e Justiça 293 Comparada ao que afirmamos anteriormente essa linha de pen samento constitui uma variante nova da doutrina aristotélicotomista de que o bem é idêntico à essência das coisas e é determinado pela tendência para uma meta inerente a tudo que existe A única dife rença é que agora em lugar do indivíduo e da natureza humana é a humanidade e sua história que são introduzidas como o sujeito cujo ser e tendência determinam o que é bom Muitas variações em torno dessa idéia foram desenvolvidas po rém nenhuma atingiu tanta absurdidade fantástica quanto a famosa filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel38 Hegel considera que a essência íntima da existência é a razão o espírito absoluto e que a história é uma espécie de operação lógica gigantesca na qual a razão ou Deus se pensam a si mesmos num processo triádico peculiar Pri meiro é formulado um conceito ou tese este origina sua própria con tradição e logo ambos se fundem numa unidade superior o jogo prosseguindo com uma nova tese que se desenvolve da mesma ma neira Hegel afirmou que com esse esquema podia interpretar todo o existente e deduzir os resultados mais surpreendentes39 Em matéria de política sua filosofia conduziu a uma interpretação da história de acordo com a qual o povo alemão é escolhido para realizar o propósi to último de Deus com relação ao existente e o Estado prussiano de 1821 aparece como um modelo do verdadeiro Estado No campo da filosofia moral e jurídica Hegel formulou a sentença tão citada Was vernünftig ist dastst wirktich und was wirküch ist das ist vernünftig O que é racional é real e o que é real é racional Naturalmente com isso Hegel não quis dizer que tudo que fatualmente existe é também válido e bom Sua idéia era que a razão individual humana não pode excogitar o que é moral que isto se revela nas instituições históricas da moral objetiva a família a comunidade civil e o Estado em suas características fundamentais na interpretação que dá Hegel ao seu conceito ou idéia por meio do método dialético A escola jurídica histórica não baseou suas idéias em Hegel mas em Friedrich Wilhelm Schelling40 que retornou à antiga concepção 38 Cf ibid cap XIII 4 e o excelente estudo crítico de Hegel feito por K R Popper em The Open Society andits Enemies 19451 II cap 12 39 Cf Popper op cit II 2526 40 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 11933 cap XII 3 294 Alf Ross da necessidade do destino e interpretou a história como uma gigan tesca tragédia na qual o indivíduo se crê livre mas é conduzido de forma inexorável para uma meta predestinada Dirigido ao domínio do direito isso conduziu à doutrina de que o direito emergiu por necessidade do destino de forças cegas presentes nas profundezas do espírito popular O legislador pode fazer o que faz o bom jardineiro a saber estimular o crescimento natural mas nada mais Qualquer intervenção arbitrária está condenada de antemão ao fracasso Esta é a razão pela qual Savigny no seu afamado tratado questionou e censurou a vocação de legislar não só em seu tempo como também em qualquer outro41 A sociologia de Auguste Comte e a política positiva sobre ela construída aproximamse bastante da filosofia da escola histórica42 As leis que Comte acredita que podem ser estabelecidas para diferen tes etapas da civilização não são causais mas leis do destino consti tuem a expressão de uma necessidade interna determinada por uma meta uma necessidade que simultaneamente determina tanto o real como o valioso Em política o possível é portanto no principal tam bém o necessário O desenvolvimento entretanto não segue total mente a linha reta da necessidade Pode haver desvios menores para um ou outro lado Se e político tiver que cumprir sua missão se a política tiver que consistir em mais do que gestos impotentes deverá dar acabamento às tendências espontâneas de desenvolvimento O único poder possuído pelo ser humano é o de acelerar a necessidade o de remover obstáculos reduzindo desta maneira os desvios da linha reta Muito do que na França e em outras partes circulou mais tarde sob o nome de sociologia não é ciência empírica mas metafísica jusnaturalista de um tipo semelhante ao que descrevemos aqui O livro de John Stuart Mill On Liberty 185943 é um magnífico exemplo de que como idéias puramente jusnaturalistas se incorpora ram apesar do zelo de Bentham às formulações posteriores do utilitarismo O livro visa a desenvolver o princípio que justifica o exer cício da força censura moral ou jurídica pela comunidade ou pelo Estado contra o indivíduo Este princípio exprime que o único propósito Ross se refere como antes ao conceito grego de avayicri anangkêh aproximativamente correspondente ao latino fatum Inecessidade fatalidade destino IN TJ 41 7 Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap V 2 42 Cf Ross Kritik dersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap VI 6 43 Cf op cit p 191 Direito e Justiça 295 que justifica a força é impedir que uma pessoa cause dano a outra Visto que o dano não pode ser identificado com qualquer lesão a interesses é forçoso que o princípio queira dizer que a liberdade de ação é restringida em vista dos direitos opostos dos outros Estes direitos têm já que estamos lidando com um princípio para legisla ção que ser necessariamente direitos naturais e aqui retornamos novamente ao direito natural O mesmo aparece ainda com maior clareza no desenvolvimento evolucionista do utilitarismo feito por Herbert Spencer44 que salien tou quão impossível é calcular todas as conseqüências de uma ação e sua importância para a felicidade humana Em lugar disso se per gunta se a ação obedece às leis da vida aquelas que geralmente decidem a tendência da ação para promover prazer ou dor Mesmo que essas leis tenham que ser extraídas da experiência esta se cris talizou de tal maneira através da evolução da humanidade que as leis se apresentam aos olhos do indivíduo como princípios a priori evidentes a saber os princípios de justiça e igualdade Spencer sem conhecer Kant formulou por conta própria a lei da justiça da forma exatamente igual ao princípio de Kant Cada pessoa diz Spencer tem liberdade para fazer o que queira desde que não viole a igual liberda de dos outros Aqui novamente este princípio só tem sentido na pressuposição de que a liberdade dos demais seja definida em ter mos de direitos naturais De maneira semelhante Rudolf von Ihering enxertou o princípio eterno da justiça em seu utilitarismo social45 Ihering considerava a comunidade como um organismo vivo independente e colocou o bem estar social no lugar da soma das felicidades individuais O propósito mais elevado determinado pela moral e o direito é a garantia das condições de existência da comunidade E estas estão expressas nas exigências de justiça Posto que esta afirmação freqüentemente feita pelos mesmos homens que reprovam a comunidade existente devido à injustiça desta não pode ser deduzida da experiência tem que ser interpretada como uma nova manifestação do antiquíssimo postulado metafísico religioso que vê na justiça uma lei cósmica que garante a vitória dos justos das criaturas de Deus e assegura a felicidade ao homem virtuoso Heráclito 44 Cf op cit cap V 6 45 Cf op cit cap V 7 296 Alf Ross Esses exemplos bastam para mostrar como durante o século XIX continuou florescendo um direito natural metafísico e uma ideologia a priori da justiça encobertos em teorias aparentemente hostis que professavam um empirismo científico O que desapareceu junto com o século XVIII não foi o próprio direito natural mas os sistemas racionalistas do direito natural A ideologia a ele inerente mudou de cor em consonância com a mudança do clima político O individualis mo foi preterido numa medida continuamente crescente por idéias de matiz social Foise percebendo gradativamente que a liberdade sem restrições particularmente no domínio dos contratos não traz consi go apenas bênçãos mas também uma tendência a tornar o poderoso cada vez mais poderoso e o fraco cada vez mais fraco e que portan to regras sociais podem ser necessárias para proteger os membros mais fracos da comunidade 57 O RENASCIMENTO DO DIREITO NATURAL Em vista da situação descrita no parágrafo anterior não é de se surpreender que o direito natural tenha voltado a prosperar em prin cípios do século XX e que tenha desde então se expandido em tal medida que é comum falarse de um renascimento do direito natural Os abalos tremendos da política e da economia que caracterizam este século tem fomentado a ânsia de descobrir algo absoluto num mun do em dissolução e mergulhado no caos Pareceria que a realidade brutal fortaleceu o impulso de afirmar os ideais de justiça A primeira guerra mundial estimulou poderosamente o direito natural absolutis ta O idealismo francês foi colocado em contraposição à doutrina ale mã do poder e as doutrinas jusnaturalistas usadas para justificar os fins bélicos dos aliados e para robustecer a força de resistência da população46 Da mesma maneira as atrocidades de Hitler contribuí ram certamente para promover o crescente desejo de confirmar a crença nos direitos humanos tal como o regime de violência alemão nos países ocupados estimulou a ânsia de afirmar em termos absolu tos a diferença entre o direito e o poder e fundamentar o direito numa idéia absoluta Ou seja o século XX N Tl 46 Cf Alf Ross Theorie derRechtsquellen 1929 cap II 7 Direito e Justiça 297 Contudo o direito natural que hoje predomina na porção majori tária da filosofia jurídica não é uma ressurreição dos sistemas racionalistas do século XVIII mas uma linha de escolasticismo que foi retomada A doutrina de nossos dias e a iluminista diferem tipicamente em dois pontos Em primeiro lugar ninguém pensa mais em deduzir de princípios a priori regras específicas sobre mútuo aluguel penhor etc Tal pre tensão foi deixada de lado postulandose apenas certos princípios fundamentais Admitese que só podem ser complementados adap tandoos às circunstâncias levando em consideração as tradições his tóricas as condições técnicas e econômicas e as necessidades práti cas Tornouse usual falar de um direito natural de conteúdo variá vel Certos princípios superiores ou critérios formais são considera dos como eternos e invariáveis Por vezes a relatividade se estende inclusive a estes de sorte que a doutrina do direito natural se apro xima de um positivismo históricosociológico Em segundo lugar o conteúdo ideológico deu prosseguimento ao desenvolvimento que começou no século XIX afastandose do liberalismo individualista do iluminismo rumo a uma ideologia social e coletivista Quanto à explicação filosóficometafísica do direito natural o sé culo XX não tem produzido construções de particular originalidade talvez porque os temas possíveis estejam esgotados ou porque o talento para a criação de pensamento metafísico está decrescente As tendências seguintes são todas extensões amiúde macerações de elementos bem conhecidos Para começar temos é claro o neotomismo o qual desempenha um papel predominante especialmente na França47 Profundamente arraigada na tradição católica a chamada phiiosophia perennis o tomismo tem subsistido ao longo dos séculos à margem dos capri chos da metafísica mas parece atualmente ter conquistado apoio também fora dos círculos católicos ortodoxos Na Alemanha várias tendências neokantianas têm desempenhado um papel Variam em sua interpretação de Kant ao atribuir importância Não esqueçamos que Ross escreve estas linhas nos primeiros anos da década de 50 IN TJ 47 Com relação à doutrina francesa do direito natural ver também Ross op cit cap II 298 Alf Ross a aspectos diferentes de sua filosofia As distinções são sutis e só po dem ser indicadas com brevidade aqui48 Uma tendência a escola dé Marburgo deu continuidade ao que em Kant se chama de formalismo ou seja a idéia segundo a qual a moral é determinada pelo princípio da autonomia da vontade decisivo apenas é se a máxima segundo a qual alguém age é compatível com a idéia de uma lei universal Esta idéia foi elaborada em função da noção de uma vontade pura determinada unicamente por si mesma e não afetada por nenhum desejo condido nado pelos sentidos Sobre esta base que evidentemente carece de todo conteúdo e que somente por truques de mágico pode possibilitai que se chegue a postulados morais Rudolf Stammler construiu um direito natural de concepção formalista vazio e afetado que não obstante muitos julgaram profundo Seu postulado básico é a idéia de uma comunidade de indivíduos de vontade livre A partir desta idéia desenvolve uma série de proposições básicas sobre direito justo ou correto justorríghtlaw as quais são realmente tautológicas49 Outra tendência Friesianism erige sua construção sobre a idéia de Kant de que a lei moral é dada na consciência como fato de razão Sobre este postulado Leonard Nelson construiu sua teoria da justiça como um equilíbrio de interesses sem consideração das pessoas parágrafo 64 Nelson encontrou adeptos na Escola holandesa que busca extrair a lei fundamental da justiça de uma análise da consciência jurídica fatual50 As tendências jusnaturalistas disfarçadas do século XIX produzi ram novos rebentos no século XX O positivismo sociológico recebeu continuidade por parte do francês Duguit Como Hugo Grócio pará grafo 55 Duguit se empenha em derivar o direito le droit objectif da solidariedade o fato de que o ser humano só pode existir em comunidade com seus semelhantes Embora Duguit se comporte como o inimigo mortal da metafísica e do direito natural é óbvio que sua solidariedade é um ideal disfarçado não um fato e que seu droit objectif não passa de um novo nome para o droit naturel Nas fases posteriores de seu pensamento a metafísica aparece de forma definida a solidariedade é interpretada em harmonia com a escola histórica alemã como consciência jurídica popular 48 Podese encontrar um estudo mais completo em meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 caps X e XI 49 Cf também W Friedmann LegaI Theory 12 ed 1949 93 e segs Julius Stone Province and Function of Law 1946 1950 319 e segs 50 Cf Ross K ritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XI Direito e Justiça 299 Finalmente Duguit se declara de acordo com Tomás de Aquino ao aceitar um conceito de justiça como componente invariável da natu reza humana51 Hegel também teve seus sucessores Por um lado seu historicismo foi convertido numa filosofia da civilização mais relativista na qual a civilização com suas fases cambiantes ocupou o lugar da razão abso luta Josef Kohler Roscoe Pound52 por outro a deiftcação de Hegel do Estado e seu nacionalismo extremo foram a matériaprima ade quada para o desdobramento numa filosofia do direito fascista Julius Binder Giorgio del Vecchio53 Além desses representantes de modalidades de pensamento mais explícito e significativo há também muitos autores que professam o direito natural sobre uma base eclética ou sem se preocuparem de masiadamente com o fundamento filosófico Fornece um exemplo disto o eminente filósofo do direito francês François Gény que combi na elementos de sociologia com reminiscências do direito natural acionalista e inspirações da filosofia mística de Bergson54 Nas suas numerosas obras entretanto Gény trata menos da explicação filosó fica dos fatores racionais e ideais no direito do que da elaboração destes na ciência do direito e administração da justiça 51 Cl Ross op cit cap V 5 e Theorie der Rechtsquellen 1929 cap II 5 52 Cf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis32 cap XIII 6 Com respeito a Kohler ver Julius Stone Province and Function of Law 19461950 cap XIII com respeito a Pound m op cit cap XV 53 Cf Ross Kritikdersogenanntenpraktischen Erkenntnis 1933 cap XII 6 Quanto a Del Vecchio ver W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 100 e segs 54 Cf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 5263 CITY OF GRESHAM CONSTRUCTION WORK NOTICE AIRPORT WAY AT 8TH AVE The City of Gresham will begin pavement and intersection work on Monday September 26 from Airport Way to 8th Avenue Work will take place between 700 am and 700 pm The contractor will be working to reconstruct pavement upgrade ADA ramps and move utilities This work will be located primarily within the curbtocurb paved street area so we expect no permanent impact to pedestrians or bicycles Motorists should expect one lane closure during the work Work will take multiple weeks to complete and traffic will be controlled by flaggers For questions or concerns please call the project hotline at 9712320136 or email greshamgreshamoregongov Visit the website for additional information httpsgreshamoregongovConstructionProjects Airflowasp If you need translation assistance or a flyer in a language other than English please call 9712320136 We appreciate your patience during this important work CITY OF GRESHAM PUBLIC WORKS DEPARTMENT 1333 NW EASTMAN PARKWAY GRESHAM OREGON 97030 5036182520 Capítulo XI Análise e Crítica da Filosofia do Direito Natural 58 PONTOS DE VISTA EPISTEMOLÓGICOS Uma crítica penetrante da filosofia do direito natural conduziria a profundidades que estão além dos limites de um teoria geral do direi to1 Mas talvez um olhar na história do direito natural nos seja mais útil do que a argumentação epistemológica para perceber a arbitrarie dade e imprecisão da especulação metafísica Estritamente falando as asserções metafísicas não admitem refutação precisamente por que se movem numa esfera que ultrapassa o alcance da verificação E preciso aprender simplesmente a ignorálas como algo que não tem função ou espaço legítimo no pensamento científico Provou alguém que não é Zeus ou as deusas do destino que guiam o curso do sol Tudo que podemos dizer é que a astronomia moderna administrou o problema sem essa pressuposição Analogamente o modo mais efi caz de derrotar a metafísica no direito é simplesmente criar uma teo ria jurídica científica cuja autosuficiência relegue as especulações 1 Em meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 tentei mostrar que a própria concepção de um conhecimento prático por exemplo tal como á postulado na filosofia moral e jurídica corrente contém uma contra dição lógica que se reflete por sua vez nas duas categorias nas quais se apresenta o conhecimento prático a saber a idéia do bem e a idéia do dever A filosofia do direito natural está concebida predominantemente segundo a categoria do bem Ver também parágrafo 70 302 Alf Ross metafísicas ao esquecimento junto com outros mitos e lendas da infância da civilização A história do direito natural revela dois pontos marcantes a arbi trariedade dos postulados fundamentais a respeito da natureza da existência e do ser humano e a arbitrariedade das idéias jurídico morais desenvolvidas com base nesse fundamento O direito natural busca o absoluto o eterno que fará do direito algo mais que a obra de seres humanos e livrará o legislador das penas e responsabilida des de uma decisão A fonte da validade transcendente do direito foi buscada numa mágica lei do destino na vontade de Deus ou numa percepção racional absoluta Porém a experiência mostra que as doutrinas que os homens construíram com base nessas fontes longe de ser eternas e imutáveis se alteraram em conformidade com o tempo o espaço e a pessoa O nobre manto do direito natural foi utilizado no decorrer do tempo para defender todo tipo concebível de exigências que surgem evidentemente de uma situação vital espe cífica ou que são determinadas por interesses de classe econômico políticos pela tradição cultural da época por seus preconceitos e aspirações em síntese para defender tudo aquilo que constitui o que se chama geralmente de uma ideologia A natureza exige que os seres humanos sejam entre si como irmãos ou é lei da natureza que o forte impere sobre o fraco e que por isso a escravidão e as diferenças de classe sejam parte do que Deus quis para o mundo Ambas estas proposições têm sido afirmadas com a mesma sustentação e o mesmo direito rig h tporque ninguém poderia optar entre esses absolutos exceto por uma afirmação absoluta acima de toda argumentação racional é assim porque eu sei que é assim A ideologia da igualdade foi pregada pelos sofistas no século V aC e por Rousseau no século XVIII como expressão das aspirações políticas de uma classe também foi sustentada pelos estóicos e pelos cristãos É forçoso que a ojeriza do empirista Alf Ross à metafísica se refira è metafísica tradicional de raizes gregas ciência das causas primeiras no dizer de Aristóteles levada ao clímax por Platão e o Estagirita cristianizada mais tarde principalmente pela patrística e a escolástica e conduzida à sua expressão mais sofisticada consumada e extrema da no sistema de Hegel Por certo Ross não deve se referir à metafísica enquanto tal ou indagação sobre o ser lontologia a não ser que desconhecesse ou propositalmente ignorasse o existencialismo de pensadores ateus como JeanPaul Sartre e Martin Heidegger Sein undZeit foi publicado em 1927 para os quais os conceitos de absoluto e eterno eram totalmente estranhos e inviáveis A propósito quanto ao assunto metafísica no direito é oportuno e proveitoso ler a obra Fenomenoíogia Existencial do Direito Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro de Jeannette Antonios Maman publicada pela Edipro IN TJ Direito e Justiça 303 porém aqui com um fundo religioso sem propósito político Platão por outro lado postulou a inata desigualdade dos seres humanos e advogou a escravidão e uma comunidade rigorosamente dividida em classes Aristóteles o seguiu no relativo à justificação natural da es cravidão e desde então o postulado da natural desigualdade humana tem sido o ponto de partida de muitas doutrinas jusnaturalistas con servadoras e de teorias orgânicas ou totalitárias de governo Carl Ludwig von Haller um professor suíço de direito constitucio nal do início do século XIX sustenta que segundo a lei da natureza o forte deve governar o fraco o marido a mulher o pai o filho o chefe os seus homens e o professor os seus alunos2 De maneira seme lhante Thomas Dew teórico político norteamericano declarou que está ordenado pela natureza e por Deus que o ser que possui a maior capacidade e saber e portanto maior poder deverá comandar e dispor sobre aquele que é inferior Baseado nisto Dew apoiou a instituição da escravidão nos Estados do sul e outros chegaram ao ponto de afirmar que a escravidão assegura os direitos naturais dos escravos A liberdade no seu sentido verdadeiro não é licença Por esta razão a escravidão assegura aos escravos seus direitos naturais e lhes outorga liberdade real na medida em que são capazes de recebê la Se a instituição da escravidão fosse abolida os escravos deixariam de gozar de seus direitos naturais No campo político sabese bem que o direito natural combinado com a doutrina do contrato social tem sido usado com sucesso para justificar todo tipo de governo desde o poder absoluto Hobbes até a democracia absoluta Rousseau O direito natural se pôs também a serviço de quem quis consolidar a ordem existente Heráclito Aristóteles Tomás de Aquino e outros e de quem preferiu advogar a revolução Rousseau Nos campos social e econômico o direito natural do século XVIII pre gou um individualismo e liberalismo extremos A inviolabilidade da pro priedade privada e a ilimitada liberdade contratual foram os dois dogmas que o século XIX herdou do direito natural dogmas que foram afirma dos na prática dos tribunais norteamericanos para invalidar muitas leis de caráter social Ainda em 1922 a Corte Suprema dos Estados Unidos 2 Restauration der Staatswissenschaft 1816 304 Alf Ross no caso Adkin3 declarou a inconstitucionalidade de uma lei do Dis trito de Colúmbia sobre salários mínimos para mulheres apresentan do o fundamento de que essa lei que fora sancionada para assegu rar às mulheres com a pior das remunerações uma condição míni ma de subsistência e livrálas de cair na semiprostituição violava o direito natural dessas mulheres de celebrar contratos livremente Por outro lado o direito natural tem sido utilizado também como funda mento de uma moral da solidariedade Grócio Comte e outros sociologistas e inclusive na interpretação de Duguit para susten tar a negação de todos os direitos individuais e possibilitar um siste ma de serviços sociais O capítulo devotado ao direito de família nos sistemas de direito natural sempre propicia uma leitura divertida por refletir com clareza os preconceitos morais da época Para Tomás de Aquino a indissolubilidade do matrimônio Não cometerás adultério era está claro uma verdade evidente da razão A risível aridez do racionalismo se faz manifesta na definição que Kant dá ao matrimônio como um contrato entre duas pessoas de sexos diferentes para a posse mútua vitalícia de suas potências sexuais as relações sexuais só são permi tidas dentro do matrimônio se um dos cônjuges se entrega a um terceiro o outro cônjuge tem invariavelmente o direito de recobrar a posse do trânsfuga como se tratasse de um objeto material4 Seria fácil continuar mas que eu conclua lembrando a Epístola de São Paulo aos Coríntios Julgai por vós mesmos é honesto uma mulher rezar a Deus descoberta Não vos ensina a própria natureza que é vergonhoso para um homem ter os cabelos compridos Mas se uma mulher tem cabelos compridos é para ela honroso porque seus cabelos lhe foram dados como um véu que a cubra5 Como uma prostituta o direito natural está à disposição de todos Não há ideologia que não possa ser defendida recorrendose à lei natural E na verdade como poderia ser diferente considerandose que o fundamento principal de todo direito natural se encontra numa apreensão particular direta uma contemplação evidente uma intui ção Por que minha intuição não será tão boa quanto a dos outros 31922 261 US 525 4 Kant Metaphysische Anfangsgriinde der Rechtsiehre parágrafo 25 5 1 Coríntios cap 11 1315 Direito e Justiça 305 A evidência como critério de verdade explica o caráter totalmente arbitrário das asserções metafísicas Colocaas acima de toda força de controle intersubjetivo e deixa a porta aberta para a imaginação ilimitada e o dogmatismo A variabilidade histórica do direito natural dá suporte à interpretação de que os postulados metafísicos são meras construções para respaldo de posturas emocionais e satisfação de certas necessidades É mister todavia admitir que a variabilidade não é uma prova decisiva dessa interpretação Podese argumentar que as teorias científicas também mudam e que como dizia Tomás de Aquino a razão pode ser arrastada pelas paixões e que nem tudo que aparece como evidente é necessa riamente evidência genuína Isto contudo suscita o difícil problema de qual é o critério da genuína evidência problema que só pode ser resolvi do por meio de uma evidência à segunda potência e assim adinfínitum Um forte argumento em favor do ponto de vista de que as doutri nas jusnaturalistas são construções arbitrárias e subjetivas é que a evidência não pode ser um critério de verdade O que queremos dizer ao chamar uma proposição de verdadeira é obviamente diferente do fato psicológico de que a asserção da proposição seja acompanha da por um sentimento de certeza A afirmação de que a evidência garante a verdade de uma proposição não pode ser por conseguinte analiticamente verdadeira isto é uma definição do que significa ver dade Tem que ser tomada sinteticamente isto é como afirmando que o sentimento de evidência sempre ocorre associado a um tal estado de coisas que torne a proposição verdadeira Mas qual é a prova de que esses dois fenômenos caminhem sempre juntos Ne nhuma É certo que um sentimento de evidência acompanha muitas asserções verdadeiras porém não há razão alguma para que o mes mo sentimento não esteja também associado a erros e falácias A sólida crença na verdade de uma proposição necessita estar sempre justificada e jamais pode ser sua própria justificação A variabilidade histórica não é em si mesma decisiva O argu mento invocado se aplica independentemente dela Mesmo se admi tíssemos todos uma interpretação idêntica do direito natural e inclu sive ainda que essas idéias prevalecessem em nós com o automatismo de leis da natureza a crítica permaneceria ainda de pé Se sob a influência de alguma droga toda a humanidade tivesse visões estas fantasias não seriam verdadeiras na medida em que por verdade entendemos algo distinto de coerção psicológica 306 Alf Ross 59 PONTOS DE VISTA PSICOLÓGICOS As considerações psicológicas complementam a crítica epistemológica O quadro se faz mais claro se compreendermos não só que as especulações metafísicomorais são vazias e faltas de sentido mas também quais são as razões que fazem com que os seres huma nos persistam nelas A força de atração da metafísica no campo da moral e da reli gião é o temor das vicissitudes da vida da transitoriedade de to das as coisas da inexorabilidade da morte ou inversamente o desejo do absoluto do eternamente imutável que desafia a lei da corrupção Este temor em questões morais está associado ao te mor de ter que escolher e decidir sob circunstâncias que se alte ram e sob nossa própria responsabilidade É por isso que ao bus car justificação para nossas ações em princípios imutáveis que es tão fora de nós tentamos aliviar o peso da responsabilidade Se há uma lei independente de nossas escolhas e arbítrio que nos foi dada como verdade eterna baseada na vontade de Deus ou por meio de uma apreensão a priori da razão e que nos dita o proce dimento correto então ao obedecer essa lei universal não pas samos de peças obedientes de uma ordem cósmica e ficamos libe rados de toda responsabilidade O desejo do absoluto que nos liberte da responsabilidade e nos traga paz tem na vida moral humana as melhores condições para se transfor mar em crenças metafísicas difíceis de serem refutadas pelo pensamen to crítico A razão de tudo isso se encontra no peculiar mecanismo psico lógico do qual emana a consciência moral que se apresenta numa série de impulsos imperativos aparentemente cegos Como estes impulsos se fazem sentir de forma independente de nossas necessidades e desejos conscientes podem muito bem impor a nós a idéia ilusória de que em nossa consciência se manifesta uma voz ou uma lei que nos fala de uma validade ou retidão radicalmente distinta e independente de nossa natureza física de seus instintos e desejos A partir daqui abrese a via para toda sorte de construções metafísicas sobre a natureza da validade moral e o conteúdo da lei moral Mas tal como uma ilusão dos sentidos se desvanece quando observo seu objeto mais claramente assim também a fata Direito e Justiça 307 morgana da consciência moral desaparece ante uma observação psicológica mais intensa Não é possível fazer aqui um exame mais completo do mecanismo psicológico que enseja a consciência moral6 Aqui posso apenas assinalar que a consciência moral com seu pathos místico é como o maná caído do céu para quem tem fome metafísica e que afinal isso não é tão místico que não possa ser explicado cientificamente sobre uma base psicológica 0 que aqui se disse sobre a moral e a consciência moral vale para o direito e a consciência jurídica O direito também é experimentado como validamente obrigatório isto é como algo que obedeço não meramente em razão do temor à compulsão externa a sanção como também em razão do respeito pela autoridade interna validade do direito A consciência jurídica portanto tal como a consciência moral dá origem a interpretações supraempíricas O direito natural e a filo sofia moral estão estreitamente vinculados seja concebendose o direito natural como uma parte da moral seja concebendoo como um domínio independente da ética coordenado à moralidade 60 PONTOS DE VISTA POLÍTICOS Do ponto de vista político o direito natural pode ser conservador evolucionista ou revolucionário É claro que sua orientação política não pode ser invocada como um argumento a favor ou contra a plausibiiidade teórica da doutrina do direito natural porém as opiniões políticas de uma pessoa determinarão sua simpatia ou sua oposição relativamente à doutrina Embora ocorram os três tipos no curso da história o direito natu ral tem cumprido de forma primordial a função conservadora de outorgar ao poder existente um halo de validade O direito natural é primeira e principalmente uma ideologia criada pelos detentores do poder os estadistas os juristas o clero para legitimar e robus tecer sua autoridade7 A figura de linguagem é tomada da saga arturiana A fada Morgana era a irmã hostil do rei Artur Ross alude ao caráter fantasioso ilusório mágico da consciência moral é possível que esteja também de maneira sutil fazendo um significativo e irônico jogo de palavras aproximativo fatum quer dizer fatalidade fado destino IN TJ 6 Para um estudo mais completo ver Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 caps III 8 VII 1 e XIII 1 7 Isto não deve ser tomado ao pé da letra como se a ideologia tivesse sido inventada deliberadamente para esse propósito A relação entre a ideologia e o interesse é mais sutil 308 Alf Ross Um direito natural que em sua origem foi revolucionário transfor mase regularmente em conservador uma vez que tenham prevaleci do as classes sociais cujos interesses sustenta O direito natural indi vidualista e liberal que conduziu à revolução norteamericana é exemplo disso Os princípios referentes à propriedade à liberdade econômica e à liberdade contratual que tornaram possível a tremenda expansão da comunidade norteamericana na primeira parte do século XIX converteramse na última metade deste século num poder reacioná rio que para preservar as vantagens das classes capitalizadas obs truiu a evolução para o nivelamento e o bemestar sociais A Supre ma Corte dos Estados Unidos utilizou seu poder constitucional for çando amiúde sua interpretação da Constituição para invalidar uma série de leis inspiradas pelas necessidades dessa evolução mas que se achavam em conflito com os princípios jusnaturalistas de liberda de8 Isto ocorreu por exemplo com as leis que regulamentavam a jornada de trabalho e fixavam salários mínimos com as leis referen tes ao trabalho do menor nas minas e nas fábricas com as leis que proibiam os empregadores de interferir na afiliação dos empregados aos sindicatos com as leis que restringiam os ilimitados direitos do proprietário etc inclusive uma lei que propunha um modesto im posto de renda foi invalidada pela Corte Suprema 1895 resultando que não se pôde aprovar nenhuma lei desse tipo até que se introdu ziu uma emenda constitucional em 19139 Esta batalha contra os princípios sociais progressistas atingiu um clímax dramático quando depois da grande depressão de 1929 o Presidente Roosevelt iniciou seu New Deal na década de 30 A Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade de diversas leis que visavam a restauração cons trutiva da vida econômica do país e o Presidente percebeu que não podia fazer outra coisa senão quebrar a resistência da Suprema Corte nomeando um número suficiente de novos membros j u i z e s partidá rios do progresso Em 1937 o Presidente submeteu ao Congresso um plano de reforma geral da organização dos tribunais cujo propósito real ainda que velado era possibilitar a nomeação de seis novos 8 Charles Grove Haines The Remai of Natural Law Concepts 1930 apresenta um bom estudo do tema Ver também Julius Stone Province and Function of Law 194650 cap IX W Friedmann Legal Theory 2 ed 1949 cap IX 9 Foi Cordell Hull mais tarde Secretário de Estado dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial que a partir de 1907 lutou a favor da implantação do imposto de renda e finalmente teve Sxito ao conseguir que se introduzisse a necessária emenda constitucional Ver Cordell Hull Memoirs 1948148505861 7071 Direito e Justiça 309 juizes da Suprema Corte O plano suscitou uma violenta oposição e nunca foi levado a cabo Durante algum tempo houvera uma crescen te minoria dentro da Suprema Corte que desejava acompanhar o Governo em sua política econômica Este grupo ganhou ascendência talvez como resultado da ameaça presidencial de aumentar o número de juizes porém não foram adotadas medidas drásticas A partir de aproximadamente 1937 a Corte Suprema dos Estados Unidos acei tou a nova ideologia econômica e limitou o exercício de seu poder de revisão judicial em relação às leis do Congresso Desde então somen te em um caso uma lei do Congresso foi declarada inconstitucional10 61 PONTOS DE VISTA DA TEORIA JURÍDICA Enquanto o direito natural foi simplesmente uma filosofia moral para justificar o direito positivo e para guiar o legislador não pôde causar sérios transtornos ao pensamento jurídico genuíno Seus postulados de que o direito deve estar em conformidade com a natureza humana ou com os princípios de justiça não impediam por si sós um trata mento realista dos problemas de política jurídica parágrafo 54 Em virtude de sua generalidade os princípios supremos não passaram de uma larga capa que dava ao direito uma roupagem moral sem impor tar necessariamente uma restrição à liberdade de pensamento Tal como assinalamos no parágrafo 55 o racionalismo introduziu uma alteração decisiva a essa situação O direito natural que era uma filosofia moral converteuse numa disciplina jurídica O racionalismo duplicou o sistema jurídico porque concebeu o direito natural como um conjunto de direitos naturais acima ou por trás dos direitos subjetivos positivos Diferentemente das meras especulações da filosofia moral essa duplicação do sistema jurídico resultou numa confusão de conceitos e na deterioração definitiva da análise jurídica e do tratamento dos problemas políticojurídicos O cerne do conceito de direito em sentido subjetivo foi sempre a idéia de um poder de coerção A realidade que corresponde a essa idéia é o poder do titular do direito de instaurar processos e por esta via acionar a maquinaria jurídica resultando que o poder político seja 10 United States v Lovett 328 US 303319 1946 cf Bemard Schwartz American ConstitutionaLaw 1955 212 310Alf Ross exercido em seu benefício parágrafos 39 e 33 Quando também o direito natural é concebido segundo a categoria do direito em senti do subjetivo e dessa maneira como um poder de coerção e tal foi a doutrina predominante no século XVIII surge a pergunta a que tipo de coerção nos referimos aqui Obviamente não pode ser a coerção exercida através da maquinaria do Estado porque esta se aplica aos direitos subjetivos do direito positivo Tampouco quere mos dizer que o titular de um direito subjetivo natural está moral mente autorizado a fazer uso da força porque neste caso o direito natural se dissolveria numa doutrina moral É inerente à constru ção que a força que está em jogo só pode ser aqui a que emana de potências espirituais ocultas um domínio invisível além da realida de empírica11 Mesmo que esse misticismo espiritual não tenha jamais recebido uma expressão clara e aberta está implícito na totalidade da linha de pensamento Manifestase numa concepção invertida da relação en tre o direito subjetivo e a sanção que é nosso legado da era do direito natural e que ainda hoje vicia o pensamento de juristas que se consideram positivistas A relação real é que o direito subjetivo nada mais é do que a unidade sobreposta numa totalidade de regras jurídi cas parágrafo 35 porque está vigente um conjunto de regras que me autorizam em virtude de certos fatos a reclamar indenização por danos restituição etc sou proprietário Mas no ponto de vista jusnaturalista a relação é invertida A pretensão de reclamar indeni zação por danos e prejuízos por exemplo se funda no fato de que meu direito foi violado O dano em princípio justifica a pretensão de reclamar reparo Do mesmo modo todas as outras sanções se pres supõem dependentes de violações prévias aos direitos subjetivos ma teriais de outra pessoa Desta maneira tornase impossível um exa me realista da função social do pagamento de indenizações por da nos e prejuízos ou de outras instituições jurídicas Só recentemente em particular na literatura jurídica escandinava foi possível eliminar essa confusão de conceitos Uma boa parte do mérito disto corresponde sem dúvida ao jurista sueco Lundstedt mesmo se con siderando que ao criticar as idéias vigentes tenha incorrido com fre qüência em exageros 11 Cf Alf Ross Towards a Realistic Jurisprudence 11946 cap II p 12 Direito e Justiça 311 Por outro lado a habitual crítica de que o erro do direito natural consistiu em apresentar suas próprias exigências ideais como direito vigente não é correta O direito natural foi tipicamente não revolucio nário Reconheceu expressamente que os cidadãos devem obediên cia às leis do país ainda que não estejam de acordo com o direito natural porque as leis do país são sempre válidas em razão do con trato social e do princípio de pacta sunt servanda12 Isto se achava em perfeita concordância com a teoria política absolutista e com a prática da época As exigências liberais de reforma que foram formu ladas em nome do direito natural tinham o exclusivo propósito de servir de programa para a legislação O direito natural foi reformador evolucionista não revolucionário13 12 Ver por exemplo Pufendorf Le droit de ia nature et desgens tradução de Barbeyrac Livro XIII cap I seções 1 e 2 Segundo Pufendorf 3 relação entre o direito natural e o positivo pode ser descrita mais plenamente da seguinte maneira o direito natural não basta para assegurar a paz em virtude da fraqueza e natureza pecaminosa do ser humano É por isso que por meio do contrato social os seres humanos se submetem a um governo que tem autorida de para sancionar leis e fazer com que sejam cumpridas pela força Em virtude do contrato e do principio de direito natural que prescreve o cumprimento do convencionado as leis positivas adquirem sua validade natural isto é fazemse obrigatórias também aos olhos de Deus Entretanto o que lhes confere plena força ante os tribunais civis é a autoridade do soberano Possuem esta força independentemente de seu conteúdo Somente no caso do direito positivo carecer de um regra é que o direito natural a proporcionará 0 conteúdo do direito positivo direito civil consiste primordialmente nos princípios fundamentais do direito natural de cuja observância depende a vida pacífi ca comunitária entre os seres humanos Mas nas normas do direito positivo códigos civis esses principios surgem mesclados a regras sancionadas para o benefício ou conveniência do estado individual e também com muitas formalidades para a implementação técnica dos princípios 0 direito positivo direito civil compreende portanto o direito natural justiça benefício ou conveniência e positividades nuas e cruas Pufendorf op cit Livro I cap VI seção 12 Livro II cap III seção 11 Livro VII cap I seção 13 Livro VII cap II seção 7 Livro VIII cap I seções 12 Conseqüentemente a política enquanto doutrina acerca do conveniente distinguese nitidamente da moral e do direito como doutrina acerca do válido e do racional Ver Livro I cap II seção 4 13 Isto vale ao menos para o direito natural como doutrina jurídica A posição foi diferente nas teorias especificamente políticas que ao incluir no contrato social cláusulas referentes a certos direitos de liberdade Locke ou ao atribuir ao contrato social uma nova interpretação Rousseau adquiriram um conteúdo revolucionário Assim Locke foi também o pai ideológico da Revolução norteamericana como foi Rousseau o da francesa GRAMMAR Capítulo XII A Idéia de Justiça 62 A JUSTIÇA E 0 DIREITO NATURAL Na filosofia do direito natural a idéia de justiça ocupou sempre um lugar central O direito natural insiste que em nossa consgência resi de uma idéia simples e evidente a idéia de justiça que é o princípio mais elevado do direito em oposição à moral A justiça é a idéia espe cífica do direito Está refletida em maior ou menor grau de clareza ou distorção em todas as leis positivas e é a medida de sua correção Paralelamente a essa idéia em particular na filosofia mais antiga ocorre um outro uso de acordo com o qual justiça significa a virtude suprema que tudo abrange sem distinção entre o direito e a moral1 A justiça segundo esse modo de ver é simplesmente a expressão do amor ao bem e a Deus Neste espírito deve entenderse o Sermão da Montanha Bemaventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão satisfeitos Como princípio do direito a justiça delimita e harmoniza os desejos pretensões e interesses conflitantes na vida social da comunidade Uma vez adotada a idéia de que todos os problemas jurídicos são problemas de distribuição o postulado de justiça eqüivale a uma exigência de igualdade na distribuição ou partilha de vantagens ou cargas A justiça é igualdade Este pensamento foi formulado no século IV aC pelos 1 Ver Giorgio Del Vecchio Die Gerechtigkeit 1940 7 e segs 314Alf Ross pitagóricos que simbolizaram a justiça com o número quadrado no qual o igual está unido ao igual A idéia da justiça como igualdade desde então tem se apresentado sob inumeráveis variantes As vantagens ou cargas a cuja distribuição aludimos aqui podem ser de tipos diversos por exemplo salários impostos propriedade punição prestações individuais e sociais ou direitos e deveres tal como são distribuídos pelo ordenamento jurídico Em todos os casos a idéia de justiça exige uma distribuição igualitária 1 A idéia de justiça parece ser uma idéia clara e simples dotada de uma poderosa força motivadora Em todas as partes parece haver uma compreensão instintiva das exigências de justiça As crianças de tenra idade já apelam para a justiça se uma delas recebe um pedaço de maçã maior que os pedaços das outras Temse afirmado que mesmo os animais possuem o gérmen de um sentimento de justiça2 O poder da justiça é grande Lutar por uma causa justa fortalece e excita uma pessoa Todas as guerras têm sido travadas em nome da justiça e o mesmo se pode dizer dos conflitos políticos entre as clas ses sociais Por outro lado o próprio fato dessa aplicabilidade quase onipresente do princípio de justiça desperta a suspeita de que algo não anda bem com uma idéia que pode ser invocada em apoio de qualquer causa No parágrafo que se segue nos dedicaremos a exa minar mais de perto a idéia de justiça como exigência de igualdade 63 ANÁLISE DA IDÉIA DE JUSTIÇA Se a igualdade é tomada num sentido absoluto significa que todos quaisquer que sejam as circunstâncias deverão encontrarse exatamen te na mesma posição que os demais a cada um o mesmo No entanto fica óbvio que tal uniformidade absoluta não pode ser aquilo que se entende geralmente por justiça Tal feita de reconhecimento de todas as diferenças reais significaria de fato que todos ocupariam uma posição jurídica idêntica sem considerar a idade o estado civil se cometeu um assassinato ou não se celebrou um contrato ou não Está claro que ninguém jamais pretendeu atribuir esse significado àquela idéia3 2 Op cit p 55 com numerosas referências bibliográficas 3 Excepcionalmente justiça significa igualdade absoluta que não faz distinções Assim é quando a morte á por vezes interpretada como o destino igual que a todos alcança sem atender a diferenças mundanas De algum modo esta idéia inspira os quadros medievais da morte nos quais esta aparece dançando com seres humanos de todas as classes com o imperador e o papa com burgueses e mendigos Direito e Justiça 315 Não pode ser visto como injusto tendo ao contrário que ser um dos requisitos da justiça haver distinções de maneira tal que as vanta gens e as cargas os direitos e os deveres sejam distribuídos levando se em conta as circunstâncias condicionantes Os casados e os soltei ros os maiores e os menores os criminosos e os cidadãos respeitadores da lei não podem ter o mesmo status jurídico O requisito de igualdade encerra unicamente a exigência de que ninguém de forma arbitrária e sem razão suficiente para isso seja submetido a um tratamento que difere daquele que se dá a qualquer outra pessoa A exigência de igualdade deve ser compreendida portanto num sentido relativo isto é como uma exigência de que os iguais sejam tratados da mesma maneira Isto significa que como um prérequisi to para a aplicação da norma de igualdade e com independência dela é preciso que haja algum critério para determinar o que será conside rado igual em outras palavras a exigência de igualdade contida na idéia de justiça não é dirigida de forma absoluta a todos e a cada um mas a todos os membros de uma classe determinados por certos critérios relevantes Em conformidade com isso as diversas formula ções de justiça para grupos ou contextos diversos incluem além da idéia de igualdade um padrão de avaliação que deve ser aplicado como um prérequisito à definição da categoria cujos membros de vem ser tratados com igualdade Alguns poucos exemplos servirão para ilustrar este ponto4 A cada um segundo seu mérito Esta fórmula é usada com freqüência quando se alude à justiça nesta vida ou depois da morte O critério é dado pelos méritos morais ou o valor moral de uma pessoa e a idéia é que a justiça exige uma relação proporcionada entre mérito e destino neste mundo ou no outro A cada um segundo sua contribuição Esta fórmula é sustentada freqüentemente na teoria política pelo socialismo marxista por exemplo para cobrir o período de transição que precede a realização plena do comunismo como o princípio em favor da justa remuneração ou participação no produto O padrão de 4 Cf Perelman Dela justice 1945 16 e segs de onde foram extraidos os exemplos citados aqui 316 Alf Ross avaliação é aqui a contribuição que cada pessoa faz à economia social A relação é concebida como um intercâmbio de cumprimentos entre á pessoa e a comunidade A mesma fórmula todavia é utilizada também pelos teóricos que sobre bases individualistas concebem o trabalho e a remuneração como um intercâmbio de cumprimentos entre particulares Esse princípio é aplicado em sua forma mais pura quando a remu neração é fixada por unidades A determinação por unidade de tem po constitui uma adaptação prática baseada na quantidade média de trabalho executado por hora Esta fórmula de justiça é invocada quando atualmente as mulhe res exigem com freqüência uma remuneração igual a dos homens pelo mesmo trabalho Isto expressa precisamente a idéia de que o critério relevante que determina a classe que reclama tratamento igual é a quantidade de trabalho executado Todas as pessoas que pertencem a esta classe tanto as mulheres quanto os homens têm assim o direito de reivindicar a mesma remuneração A cada um segundo suas necessidades Esta é a fórmula de justiça segundo a teoria comunista para a comunidade plenamente socializada Nesta cada um deverá contri buir de acordo com sua capacidade e receber de acordo com suas necessidades O critério relevante não é pois o quantum da contri buição mas sim a necessidade Aquele que é enfermo ou fraco deve receber o que necessita sem se levar em conta o fato de que por essa mesma razão dá uma pequena contribuição ou nenhuma Enquanto a remuneração efetiva na comunidade moderna tanto na socialista quanto na capitalista está baseada principalmente no princípio de pagamento iguaipor trabalho igual o princípio de neces sidade é aplicado de forma crescente em matéria de proteção social O princípio de necessidade é o fundamento da idéia de que o desem pregado o doente o inválido o indivíduo deficiente ou o chefe de família têm direito a que lhes satisfaçam as necessidades que são a conseqüência de sua posição particular Numa certa medida o princí pio de necessidade se aplica também à remuneração por exemplo nas normas a respeito de salário mínimo na diferença de salários entre os homens e as mulheres em matéria de pensões familiares etc O aumento de remuneração do funcionário público de acordo com o maior tempo de serviço poderia também ser considerado como fundado parcialmente numa consideração de necessidade Direito e Justiça 317 A cada qual segundo sua capacidade Este princípio de justiça para a distribuição de cargas é a contrapartida do princípio de necessidade na distribuição de vanta gens Sua aplicação típica é a determinação do imposto de renda por meio de regras referentes a rendas mínimas isentas de imposto es calas progressivas deduções por filhos etc A cada um segundo sua posição e condição Este princípio aristocrático de justiça tem sido sustentado com fre qüência para justificar as distinções de classe social É preciso lem brarmos que o correlato lógico da exigência de igualdade é a exigên cia de tratamento desigual para o que é desigual à luz do padrão pressuposto de avaliação Neste caso o padrão medida é pertencer a uma classe determinada pelo nascimento raça cor credo idioma caráter nacional características étnicas status social etc Com base neste princípio é justo que se faça uma distinção entre o amo e o escravo entre pessoas brancas e pessoas negras entre nobres e camponeses entre raça superior e raça submetida entre nação im perial e nativos entre crentes ortodoxos e hereges entre membros do partido e os que não são Formulações deste tipo se encontram especialmente nas teorias orgânicas ou totalitárias de governo desde Platão até nossos dias as quais ressaltam a desigualdade natural entre os seres humanos e a construção orgânica ou hierárquica da comunidade num certo número de classes cada uma das quais de sempenhando sua função particular dentro do todo5 Indicamos esses exemplos não para discutir qual formulação do princípio de justiça é a correta mas para mostrar que a pura exigên cia formal de igualdade não significa em si muito e que o conteúdo prático da exigência de justiça depende de pressupostos que são Cumpre frisar que na prática ao longo da história das sociedades humanas essas teorias obviamente predominaram especialmente no seio das chamadas sociedades civilizadas seja em regimes políticos francamente totalitaristas absolutistas ou despóticos seja veladamente mas de fato em formas de governo ditas democráticas das quais são exemplos atuais as tantas democracias de direito e de direita mais escassas no tempo de Ross particular mente no bloco fragilizado dos países de terceiro mundo tristes e patéticas hipossuficiências na globalização chamadas segundo o artificioso eufemismo pretensamente otimista dos novos títeres de economias emergen tes Ocioso dizer que a recente hegemonia política e econômica dos EUA no planeta consolidou essa situação na qual o Brasil se destaca como grande coadjuvante Quanto a Platão ver os diálogos A República e As Leis ambos publicados por esta Editora IN T 5 Ver o capítulo Justiça totalitária em K R Popper The Open Society andits Enemies I 74 e segs 318Alf Ross externos ao princípio de igualdade a saber os critérios que determi nam as categorias às quais se deve aplicar a norma de igualdade Não representa muito sustentar que as remunerações e os impostos deverão ser estabelecidos com igualdade São fórmulas vazias a menos que se defina adicionalmente mediante qual critério deverseá de terminar o que se entende por com igualdade Examinaremos agora com maior rigor o papel desempenhado por cada um dos dois elementos contidos nas fórmulas de justiça a exigência formal de igualdade e o critério material para a determina ção da classe a que se aplica a norma de igualdade A exigência formal de igualdade não exclui uma diferenciação en tre pessoas que se acham em circunstâncias distintas O único requi sito é que a diferença deve atender ao fato de que à luz de certos critérios relevantes as pessoas pertencem a classes diferentes O prin cípio puro da igualdade contudo não nos informa quais são os crité rios relevantes Se este ponto permanece sem ser decidido a exigên cia de igualdade se reduz à exigência de que todas as diferenciações dependam de critérios gerais quaisquer que sejam estes critérios Entretanto isto não passa de uma exigência de que o tratamento concreto se apresente sob a forma da aplicação de uma regra geral qualquer que seja esta porque por tal regra entendemos precisa mente uma diretiva que torna contingente uma certa conduta a cir cunstâncias descritas com a ajuda de conceitos o que eqüivale a certas características ou critérios Conseqüentemente o ideal de igualdade por si só significa sim plesmente a correta aplicação de uma regra geral qualquer que seja ela Os conceitos ou características gerais empregados na regra de finem uma certa classe de pessoas ou situações às quais se deverá proporcionar um certo tratamento O tratamento igual de todos os que pertencem a essa classe é portanto conseqüência necessária da correta aplicação da regra Justiça nesse sentido formal como sinônimo da pura exigência de igualdade ou de estar submetido a regras pode também ser expressa como uma exigência de racionalidade no sentido de que o tratamento dado a uma pessoa deve ser prédeterminável por critérios objetivos estabelecidos por regras dadas Isto faz com que a aplicação concreta dentro de certos limites elásticos seja independente do sujeito que uireuo e justiça j i v decide Disto resulta que a justiça acaba por colocarse em oposição à arbitrariedade quer dizer a decisão que surge não determinavelmente da reação espontânea do sujeito que decide à situação concreta e é determinada por suas emoções e atitudes subjetivas Essa exigência formal de regularidade ou racionalidade e nada mais é o que emerge do primeiro dos dois elementos contidos nas fórmulas de justiça ou seja a pura exigência de igualdade6 É evi dente que essa exigência formal não pode jamais justificar a preten são de que uma regra terá que ser preferível a outra Qualquer que seja o conteúdo da regra a exigência de regularidade fica satisfeita As fórmulas correntes de justiça todavia pretendem ser padrões orientativos do legislador em sua escolha da regra correta Segue se disso que na medida em que possuam algum conteúdo este con teúdo não pode ser extraído do princípio de igualdade tendo sim que derivar do outro elemento que aparece nas fórmulas de justiça os critérios materiais pressupostos A relação entre os dois elementos das fórmulas de justiça tem importância primordial A aparente evidência que se pode atribuir à idéia de igualdade e que se sente dar às fórmulas de justiça sua justificação autosuficiente não abarca o elemento essencial nessas fórmulas quer dizer o postulado material de avaliação A idéia de justiça dizse surge de nossa consciência mais íntima com necessi dade imperativa a priori Porém dificílimo afirmar que em nossas mentes se aloja um postulado evidente que diz que o total dos impos tos deve estar relacionado com a capacidade de pagálos ou que a remuneração deve estar relacionada com a quantidade de trabalho executado O valor dessas regras obviamente não está acima de toda discussão elas devem ser justificadas à luz de suas conseqüên cias práticas Apresentálas como uma exigência de justiça fundada numa idéia evidente de igualdade é um hábil método que colima conferir a certos postulados práticos determinados pelo interesse a evidência aparente que pertence à idéia de igualdade As palavras justo e injusto ou retoe não reto têm sentido quan do empregadas para caracterizar a decisão tomada por um juiz ou por qualquer outra pessoa que deve aplicar um conjunto determina do de regras Dizer que a decisão é justa significa que foi elaborada 6 Tampouco há algo mais encerrado na máxima não faças aos outros o que não desejarias que fizessem a ti 320 Alf Ross de uma maneira regular isto é em conformidade com a regra ou sistema de regras vigentes paragrafo 65 menos precisamente es ses termos podem ser aplicados a qualquer outra ação que é julgada à luz de determinadas regras Neste sentido qualquer conduta pode ser denominada reta se estiver em harmonia com regras pressu postas jurídicas ou morais Contudo empregadas para caracterizai uma regra geral ou um ordenamento as palavras justo e injusto ca recem de significado A justiça não é uma orientação para o legisla dor já que na verdade é impossível como vimos extrair da idéia formal de igualdade qualquer tipo de exigência relativa ao conteúdos da regra ou do ordenamento Empregadas nesse sentido as palavras5 não têm nenhum significado descritivo Uma pessoa que sustenta que certa regra ou conjunto de regras por exemplo um sistemas tributário é injusto não indica nenhuma qualidade discernível nas regras não apresenta nenhuma razão para sua atitude Simplesmen te se limita a manifestar uma expressão emocional Tal pessoa diz Sou contra essa regra porque é injusta O que deveria dizer é Esta regra é injusta porque sou contra ela Invocar a justiça é como dar uma pancada numa mesa uma ex pressão emocional que faz da própria exigência um postulado absolu to Não é o modo adequado de obter entendimento mútuo É impos sível ter uma discussão racional com quem apela para a justiça porque nada diz que possa receber argumentação a favor ou contra Suas palavras são persuasão não argumentos parágrafo 72 A ideo logia da justiça conduz à intolerância e ao conflito visto que por um lado incita à crença de que a exigência de alguém não é meramente a expressão de um certo interesse em conflito com interesses opos tos mas sim que possui uma validade superior de caráter absoluto e por outro lado exclui todo argumento e discussão racionais que visem a um acordo A ideologia da justiça é uma atitude militante de tipo biológicoemocional para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e implacável de certos interesses Visto que a idéia formal de igualdade ou justiça como estrela polar para a orientação políticosocial carece de todo significado é possível advogar a favor de qualquer postulado material em nome da justiça Isto explica porque todas as guerras e conflitos sociais como foi dito anteriormente foram travados em nome da exaltada idéia de justiça E é demasiado esperar que isto mude no futuro Apelar para a justiça é Direito e Justiça 321 usar uma arma demasiadamente eficiente e conveniente do ponto de vista ideológico para que alimentemos a esperança de que os estadis tas os políticos e os agitadores mesmo quando percebam a verdade ousem pactuar o desarmamento nesse ponto Ademais a maioria de les são provavelmente vítimas da ilusão É muito fácil crer nas ilusões que excitam as emoções pelo estímulo das glândulas suprarenais 64 ALGUNS EXEMPLOS A análise da idéia de justiça baseada no parágrafo anterior em algumas fórmulas simples tomadas da ideologia política será exemplificada a seguir por teorias mais desenvolvidas tomadas da própria filosofia do direito Pelo que dissemos anteriormente fica patente que os filósofos que tentaram uma exposição mais teórica da idéia de justiça como a nor ma suprema para a criação do direito positivo trabalharam sob a pressão de um dilema Se por um lado caso fosse preciso conservar a ilusão de que a justiça é uma idéia a priori seria necessário conferir ao princípio uma formulação muito abstrata estreitamente vinculada à idéia pura de igualdade Entretanto quanto mais nos aproximamos dessa idéia mais nos evidencia que o princípio carece de conteúdo Se por outro lado fosse preciso dar ao princípio um conteúdo real seria difícil preservar a ilusão da evidência Esse dilema resultou na formulação mais ou menos tautológica ou despojada de significado do princípio enquanto ao mesmo tempo nele são introduzidos por contrabando postulados dogmáticos ocultos de cunho políticojurídi co Desta maneira aquilo que carecia de significado adquiriu um con teúdo aparente e este conteúdo adquiriu uma evidência aparente A fórmula pela qual os juristas romanos expressaram o princípio de direito natural ou justiça foi suum cuique tribuere neminem iaedere honeste vivere Foi amiúde repetida com insistência como se tratasse da quintessência da sabedoria Entretanto tratase de pura ilusão que atinge a aparência de algo óbvio porque não diz absolutamente nada Dar a cada um o seu soa esplêndido Quem ousará questioná lo A única dificuldade é que esta fórmula pressupõe que eu saiba o que é devido a cada pessoa como o seu quer dizer como seu direito A fórmula é assim carente de significado visto que pressu põe a posição jurídica para a qual deveria servir de fundamento 322 Alf Ross Coisa idêntica ocorre com a exigência de não causar dano ao ou tro O que é causar dano Não é possível que signifique agir de tal maneira que prejudique os interesses ou frustre os desejos alheios Neste sentido o credor causa dano ao devedor ao exigirlhe o paga mento de seu crédito um comerciante causa dano a outro quando compete com este e a comunidade causa dano ao criminoso ao punilo Não o significado só pode ser que não devo interferir ilicita mente nos interesses alheios ou que não devo violar seus direitos e aqui também o raciocínio é claramente circular O mesmo ocorre com o mandamento viver honestamente pois aqui honestamente só poder querer dizer como é óbvio que a con duta deve se conformar com a letra e o espírito da lei Uma das formulações mais famosas do princípio supremo do direi to é a de Kant Um procedimento é lícito se a liberdade para realizá lo é compatível com a liberdade de todas as outras pessoas segundo uma regra geral7 A mesma idéia pode ser expressa também como segue a única coisa que pode justificar uma restrição à liberdade de ação é essa restrição ser necessária à liberdade dos demais se a mesma regra for para se aplicar a todos Essa fórmula kantiana expressa o fato de que a exigência de igual dade é idêntica à exigência de uma regra geral Mas se não há outra maneira de saber qual deve ser o conteúdo da regra geral esse crité rio carece de significado É possível imaginar que qualquer ação seja justificada por uma regra geral ou outra que valha para todos Se por exemplo A mata o amante de sua mulher isto pode ser justificado com base numa regra geral que diz que é permitido o homicídio por ciúme A liberdade de A é assim compatível com a liberdade de todos os demais de acordo com a mesma regra geral O fato de que segundo outros fundamentos pensemos que tal regra não seja reco mendável não afeta o princípio de Kant Se é para esse princípio ter algum significado e conteúdo a idéia deve ser que a liberdade é restrita em vista dos direitos alheios e assim novamente o pensa mento volta a se mover de forma circular8 7 Immanuet Kant Metaphysik der Sítten Eineitung in die Rechtstehre par C 8 A Constituição turca de 10 de janeiro de 1945 seção 68 inclui uma regra de conteúdo similar àquele da regra kantiana Todo turco nasce livre e vive livre Goza de liberdade para fazer tudo aquilo que não prejudique os outros I Direito e Justiça 323 Uma concepção muito difundida que indubitavelmente reflete me lhor do que o formalismo de Kant a consciência geral de leigos e juristas sustenta que a justiça significa o igual equilíbrio de todos os interesses afetados por uma certa decisão Ninguém desenvolveu esta idéia de forma mais cabal e penetrante do que o filósofo alemão Leonard Nelson9 Utilizando como pontos de partida a consciência moral geral e a jurídica Nelson sustenta que a suprema norma de ação que determi na o dever humano se caracteriza como segue 1 É restritiva isto é não nos ordena realizar positivamente certos fins mas coloca limites à nossa liberdade de realizar os fins para os quais tendemos por natureza 2 Esse limite restritivo consiste na exigência de que na busca da realização de nossos interesses devemos também levar em conside ração os interesses dos demais 3 Essa consideração se expressa na exigência de que a pessoa que realiza a ação leve em consideração os interesses afetados por sua ação sejam próprios ou alheios Deve pesálos entre si sem aten der às pessoas ou como se fossem todos seus próprios interesses Esses três fatores são então unidos por Nelson na seguinte for mulação da norma de justiça Nunca ajas de tal maneira que não aprovasses tua ação se todos os interesses afetados fossem os teus Esse princípio que praticamente faz do agente o juiz de sua pró pria causa e exige dele uma decisão imparcial com abstração da dife rença entre seus próprios interesses e os alheios é inegavelmente muito atraente e se harmoniza com a concepção que muitos juristas têm da tarefa de encontrar a solução jurídica correta para um conflito de interesses A fórmula de Nelson requer um exame crítico Procurei realizálo num dos meus trabalhos anteriores10 Não caberia aqui re produzir a argumentação detalhadamente Apenas mencionarei al guns dos pontos principais 0 direito natural do indivíduo è liberdade é limitado pelas liberdades das quais gozam os seus concidadãos Estes limites são estabelecidos exclusivamente pela lei 0 absoluto vazio de tal fórmula assegurado de maneira comple mentar pela última frase á precisamente o que a torna adequada em elevado grau a servir fins ideológicos 9 leonard Nelson Kritik derpraktischen Vernunft 1917 Para um estudo documentado em detalhe da doutrina de Nelson ver meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XI 2 10 Ver nota anterior 324Alf Ross O conteúdo da lei de Nelson pode ser analisado em dois elemen tos Primeiro Nelson exige que realizemos um experimento no pen samento imaginar que todos os interesses afetados por uma ação são próprios do sujeito agente Segundo devemos investigar se com esse pressuposto o agente aprovaria a ação Se esta condição é cum prida a ação é legítima O caráter impraticável do experimento que Nelson nos solicita exe cutar deveria evidenciarse por si mesmo Enquanto facilmente posso imaginarme usando o chapéu de outrem com plena consciência de que pertence a outrem o mesmo não é possível no caso de um inte resse Não posso ter um interesse e ao mesmo tempo considerálo não como meu mas como de outra pessoa Uma análise acurada demonstrará que seja qual for o significado mais preciso que nos empenhemos em atribuir ao experimento do pensamento de Nelson conduzirá a um resultado absurdo e é irrealizável Somos obrigados portanto a dispensar o experimento e formular a exigência dizendo que o agente tem que ponderar todos os interes ses segundo o peso de cada um em si sem distinguir entre os seus e os de outras pessoas Diante disso se colocam duas objeções definitivas Primeiro e isto é definitivo independentemente da rejeição do experimento do pensamento o princípio de Nelson se apóia no pres suposto de que é possível numa dada situação analisar um certo número de interesses de conteúdo preciso determinável De outra maneira não teria sentido em se falar de ponderálos Esse pressu posto parece ser confirmado pela experiência ordinária Se por exem plo um banco quebra é possível distinguir pelo menos os seguin tes interesses o interesse dos clientes em recuperar seus depósitos o interesse dos credores pela cobrança de seus créditos e o interesse dos acionistas em proteger o capital Mas se por interesse de A em algo entendemos simplesmente sem pressupostos que a existência desse ago seria vantajosa e satisfatória para A à luz dos desejos necessidades e inclinações que a natureza nele colocou então não há razão para limitar os interesses da maneira assinalada Isto por que certamente seria vantajoso e satisfatório para os depositantes ob ter não só a restituição de seus depósitos como também o pagamento do dobro ou décuplo do montante dos mesmos e nesta medida Direito e Justiça 325 podese dizer que têm interesse nisso Não haveria então limites para o interesse de alguém podendose sim dizer que todos estão ilimi tadamente interessados em tudo que pode ser vantajoso para eles Isto pode parecer exagerado e ninguém pensaria em invocar o inte resse dos depositantes em obter mais do que seus depósitos sim plesmente porque o conceito de interesse que efetivamente maneja mos nos raciocínios jurídicomorais não é o conceito sugerido A nin guém ocorreria defender o interesse dos clientes em obter mais do que seus depósitos já que tal pretensão pareceria totalmente injustificada Mas isto significa que o próprio conceito de interesse está juridicamente qualificado não abarca todos os desejos ou preten sões imagináveis mas apenas aqueles que estão justificados E isto significa ademais que o conceito de interesse pressupõe a existência de um ordenamento jurídico e que a ponderação dos interesses não pode ser um princípio do qual deriva tal ordenamento jurídico Assim Nelson se equivoca quando pensa que pode extrair a su prema norma de ação ou o princípio de todo direito de uma pondera ção de interesses dados de um conteúdo preciso determinável A de terminação dos interesses dentro de um limite definido pressupõe ne cessariamente um ordenamento jurídico já existente para distinguir entre interesses que estão justificados e aqueles que não estão Esse ordenamento jurídico só pode ser o direito natural que se manifesta num conjunto de direitos rlghts subjetivos naturais O interesse justi ficado é o que surge de um direito subjetivo natural E assim também o princípio de justiça de Nelson se resolve numa tautologia a justiça consiste em satisfazer aqueles interesses que estão justificados A segunda objeção se refere à ponderação dos interesses justifi cados Como assinalamos devemos descartar a técnica de disfarçar essa ponderação imaginando que todos os interesses afetados são próprios do sujeitoagente e se perguntando se com base em tal suposição ele agiria da mesma maneira Por trás dessa ficção se oculta a idéia de que os interesses em jogo devem ser ponderados de forma objetiva isto é sejam quais forem os sujeitos desses interes ses e seja qual for sua força motivadora efetiva O próprio Nelson fala do interesse genuíno ou bem entendido determinado pelo valor objetivo dos benefícios correspondentes A ponderação se transfor ma assim na realidade não numa prova de força entre as forças motivadoras de interesses diferentes mas numa ponderação de be nefícios relativa a um padrão objetivo de valores predeterminados 326 Alf Ross Tomadas conjuntamente estas duas objeções deixam manifesto que a evidência que pode reclamar o princípio de igual ponderação de interesses de Nelson é um engano O conteúdo real do princípio não consiste na igual ponderação mas sim nas pressuposições ocultas referentes à justificação dos interesses e ao peso de seu valor objeti vo isto é nos postulados materiais que por seu caráter pertencem ao direito natural e à filosofia dos valores O caráter desses postula dos fica oculto sob a aparente evidência da idéia de igualdade A idéia de justiça dificilmente poderia encenar seu baile de máscaras de maneira mais eficaz 65 A IDÉIA DE JUSTIÇA E O DIREITO POSITIVO Precisamente como vimos a idéia de justiça se resolve na exigên cia de que uma decisão seja o resultado da aplicação de uma regra geral A justiça é a aplicação correta de uma norma como coisa opos ta à arbitrariedade A justiça portanto não pode ser um padrão jurídicopolítico ou um critério último para julgar uma norma Afirmar que uma norma é injusta como vimos não passa da expressão emocional de uma rea ção desfavorável frente a ela A declaração de que uma norma é injusta não contém característica real alguma nenhuma referência a algum critério nenhuma argumentação A ideologia da justiça não cabe pois num exame racional do valor das normas Isso não quer dizer que não haja conexão entre o direito vigente e a idéia de justiça Dentro desta idéia podese distinguir dois pontos primeiro a exigência de que haja uma norma como fundamento de uma decisão segundo a exigência de que a decisão seja uma aplica ção correta de uma norma E por isso o problema pode ser formula do de duas maneiras a saber a Podemos nos indagar que papel desempenha a idéia de justi ça na formaçãodo direito positivo na medida em que é entendida como uma exigência de racionalidade isto é uma exigência de que as normas jurídicas sejam formuladas com a ajuda de critérios obje tivos de tal maneira que a decisão concreta tenha a máxima inde pendência possível diante das reações subjetivas do juiz e seja por isso previsível Direito e Justiça 327 Tal exigência é resultado do direito ser uma ordem social e institucional diferentemente dos fenômenos morais individuais pa rágrafo 11 Sem um mínimo de racionalidade previsibilidade regu laridade seria impossível falar de uma ordem jurídica Isto pressu põe que é possível interpretar as ações humanas como um todo coerente de significados e motivações e dentro de certos limites prevêlas capítulo I Nesta medida a idéia de justiça no sentido de racionalidade e regularidade pode ser qualificada como constitutiva do conceito do direito A racionalidade formal objetiva porém é também um ideal do direito no sentido de que é desejável um máximo de racionalidade em harmonia com certas valorações que pelo menos na civilização oci dental estão presentes quando se cria o direito A regularidade objetiva como coisa oposta à arbitrariedade subje tiva é experimentada como um valor em si mesma Esta idéia se expressa na velha máxima inglesa de que a comunidade deverá ba searse no governo da lei não no governo dos homens O juiz não deve ser como o rei homérico que recebia seu themistes diretamente de Zeus ou como o cádi oriental que retira sua decisão de uma sabe doria esotérica A idéia da supremacia do direito nos faz reagir contra a tendência dos Estados totalitários autorizar o juiz a decidir deixan do de lado todas as regras estabelecidas para decidir segundo a sã consciência jurídica do povo ou os interesses do proletariado Ve mos nisto uma negação da própria idéia do direito Tal valoração por sua vez é provavelmente baseada nos efeitos sociais do império do direito Do ponto de vista dos cidadãos o impé rio do direito é a condição de segurança e possibilidade de cálculo nos assuntos da vida comunitária Do ponto de vista das autoridades é uma condição para o controle do comportamento dos cidadãos a lon go prazo isto é que ultrapassa o caso específico inculcando neles padrões fixos de conduta A regularidade objetiva ou racionalidade formal é uma idéia funda mental em todo direito mas não é a única Estabelecidas em catego rias determinadas por critérios objetivos as normas se apresentam como valorações formalizadas da tradição cultural Entretanto a regra jurídica formalizada nunca pode expressar exaustivamente todas as considerações e circunstâncias relevantes Inevitavelmente quando se 328 Alf Ross aplica ao caso individual é possível que a norma conduza a resulta dos que não podem ser aprovados pela consciência jurídica como a expressão espontânea não articulada daquelas valorações funda mentais Todo direito e toda administração de justiça portanto estão determinados em aspectos formais por um conflito dialético entre duas tendências opostas Por um lado a tendência à generalização e à decisão em conformidade com critérios objetivos e por outro lado a tendência à individualização e à decisão à luz das valorações e apreciações subjetivas da consciência jurídica ou mais sumaria mente por um lado a tendência para a justiça formal por outro a tendência para a eqüidade concreta Ambas as tendências fazem sentir seu influxo no direito em ação em todas as circunstâncias porém seu peso mútuo relativo pode variar com o tempo e com o lugar e de uma esfera do direito para outra Na administração de justiça o contraste se expressa na diferença entre o estilo restrito e o estilo livre de interpretação parágrafo 29 Na legislação o contraste aparece no grau de liberdade que as regras em sua formulação deixam a critério do juiz O legislador pode manter a ilusão de haver estabelecido uma regra mas expressá la em termos tão vagos por exemplo referindose à opinião moral dominante que o resultado seja uma larga liberdade para que o juiz ou o funcionário administrativo possam exercer seus critérios Este método de formular a lei é denominado método dos padrões jurídi cos11 ou o legislador autoriza francamente o juiz possivelmente dentro de certos limites a tomar uma decisão segundo seu critério Historicamente tanto na legislação como na administração de jus tiça o formalismo estrito desenvolveuse no sentido de proporcionar um espaço cada vez maior à sentença individualizadora O desacordo entre o direito formalizado e as exigências de eqüida de se torna mais aparente quando ocorre um desenvolvimento social sem que a legislação proceda a um ajuste das normas às novas con dições Sentese então uma particular necessidade de decisões con trárias ao direito formal A princípio tais decisões terão o caráter de eqüidade precisamente porque não acatam regras dadas surgindo 11 Ver por exemplo Mareei Stati Le Standardjuridique 1927 Direito e Justiça 329 sim de uma apreciação intuitiva da situação concreta Porém no decorrer do tempo lograrseá novamente a racionalidade formal Atra vés da prática dos tribunais surgirá uma nova doutrina e as decisões posteriores se fundarão nela perdendo seu caráter de eqüidade Cons titui circunstância histórica peculiar essa atividade de ajuste algumas vezes não ser exercida pelos tribunais ordinários mas sim por tribu nais especiais Em tais casos o novo direito assim desenvolvido pas sou a ser interpretado como um sistema jurídico especial um direito de eqüidade com o qual se visava a complementar o direito ordinário Um bom exemplo disso é o desenvolvimento da eqüidade no direito inglês12 A rigidez da common law tradicional e sua evidente falta de razoabilidade frente às novas condições sociais deu lugar num certo período à prática de recorrer ao rei contra decisões que não estavam de acordo com as exigências da consciência jurídica a administração de justiça era considerada uma prerrogativa do rei O rei nestes ca sos exercia seu poder através do chanceler que era considerado o guardião da consciência do rei O chanceler era por certo formalmen te obrigado a seguir a common law mas na realidade desempenha va sob a pressão dos fatos uma considerável atividade discrecional criadora de novo direito baseado em suas concepções de eqüidade No desenrolar do tempo a chancelaria CourtofChancer tornouse uma instituição permanente e as originais decisões de eqüidade discrecional foram substituídas por uma administração regular de justiça em con formidade com as doutrinas que foram se desenvolvendo através da prática da chancelaria As decisões de eqüidade do chanceler suscita ram em seu tempo muitas críticas Numa metáfora grotesca diziase que a eqüidade segundo a consciência do chanceler não era melhor que a eqüidade segundo o tamanho do seu pé Um chanceler tem pé grande outro pé pequeno um terceiro pé mediano o mesmo se passa com a consciência do chanceler Esta crítica perdeu logo sua validade e Lord Eldon um dos mais famosos chanceleres ingleses pôde proferir numa resolução Não posso concordar que as doutrinas deste tribunal sejam mudadas cada vez que muda o juiz Nada me causaria maior pesar ao deixar este cargo que a lembrança de ter justificado em alguma medida a reprovação de que a eqüidade deste tribunal varia como varia o tamanho do pé do chanceler13 12 Ver também C K Allen L m in theMaking 4 ed 1946 322 e segs e Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 11929 123 e segs com referências 13 Gee versus Pritchard 2 Swanst 414 T ranscrito de Holland Elements of Jurisprudence 74 330 Alf Ross Na Europa continental não se faz uma distinção correspondente à distinção entre direito em sentido estrito jus strictum e eqüidade Isto se deve em parte ao maior papel desempenhado pela legislação na atualização do direito e em parte à maior liberdade de interpretação exercida pelos juizes Para um juiz da Europa continental o direito e a eqüidade não se opõem sendo sim a eqüidade uma parte do direito b Podese perguntar então que papel desempenha a idéia de justiça na administração de justiça na medida em que essa idéia é entendida como uma exigência de que a decisão do caso individual aplique corretamente o direito vigente Esse papel sem dúvida alguma é importante A justiça concebida desta maneira como um ideal para o juiz para todo aquele que tem que aplicar um conjunto determinado de regras ou padrões é uma idéia poderosa na vida social Representa o que se espera de um bom juiz e é aceita pelo próprio juiz como padrão profissional supremo No que toca a isto a idéia de justiça faz sentido Referese a fatos observáveis Qualifi car uma decisão de injusta quer dizer que não foi realizada de acordo com o direito e que atende a um erro injusta em sentido objetivo ou a um desvio consciente da lei injusta em sentido subjetivo Dizer que um juiz cometeu uma injustiça subjetivamente significa que se deixou guiar por interesses pessoais pela amizade em relação a uma das par tes pelo desejo de agradar aos que estão no poder ou por outros moti vos que o afastam do acatamento do que ordena a lei Todavia é difícil uma delimitação mais precisa da palavra injustiça Quando uma decisão aplica corretamente a lei Tal como se de monstrou no estudo da interpretação capítulo IV nenhuma situa ção concreta enseja uma aplicação única da lei Isto é verdade inclu sive naqueles casos nos quais existe uma regra definida expressa em termos relativamente fixos e é verdade certamente num grau ainda maior quando o caso é julgado de acordo com padrões jurídi cos ou sob forma discrecional Há sempre uma margem de extensão variável e quando uma decisão cai dentro dessa margem ninguém a chamaria de injusta nem sequer em sentido objetivo Poderseia qualificála de equívoca no sentido de que quem emite a opinião teria aplicado a lei sob forma diversa Mas como determinarse essa margem Quais são os princípios de interpretação corretos E que liberdade de interpretação se deve Direito e Justiça 331 proporcionar ao juiz Não é de grande utilidade fazer referência a motivações especificamente jurídicas como coisa oposta a conside rações de poder ou de interesse porque não existe uma valoração especificamente jurídica O direito surge das mesmas atitudes práti cas interesses fatores de poder e componentes ideológicos que se apresentam na comunidade em esferas que são externas à vida do direito Talvez a única maneira de responder a questão seja por meio de uma referência ao típico e normana aplicação efetiva da lei Decidir com objetividade é fazêlo da forma típica normal decidir subjetivamente é incorrer em desvios excepcionais A decisão é obje tiva justa em sentido objetivo quando cabe dentro de princípios de interpretação ou valorações que são correntes na prática É subjetiva injusta em sentido objetivo quando se afasta disso As palavras subjetividade ou injustiça expressam precisamente o sentimento de que a decisão emana da individualidade ou subjetividade de um juiz particular em contraste com o que é típico dos juizes em conjunto As decisões pronunciadas pelo famoso juiz francês Magnaud iebon juge não eram portanto meramente errôneas tantas outras decisões afinal o são mas arbitrárias ou injustas em sentido objetivo O fato todavia de não dizermos que esse homem foi um juiz injusto em sentido subjetivo se deve a ele indubitavelmente ter atuado de acordo com suas convicções fundadas numa concepção do direi to caracterizada por profunda moralidade15 66 A EXIGÊNCIA DE IGUALDADE NO DIREITO VIGENTE Está claro pois que uma exigência geral indiscriminada de que todos sejam tratados de igual maneira só significa que o tratamento dado a cada pessoa deve seguir regras gerais Se tal exigência é auto rizada pelo direito tornase uma questão de interpretação determinar se é o caso de se fazer caso omisso dela como uma formulação mera mente ideológica juridicamente vazia ou se é possível conferirlhe sig nificado específico com base num fundamento histórico Se tal exigên cia aparece na doutrina é tarefa da crítica demonstrar sua vacuidade e averiguar o que se quis possivelmente dizer com ela 14 Como Otto Brusiin Über die Objektivitãt der fíechtssprechung 1949 2526 15 H Leyret LesJugementsduPrésident Magnaud1900 ver também François Gény Méthodedinterpretation 1919 II 278 e segs 332 Alf Ross A situação é distinta se a exigência recebe um conteúdo especial por exemplo igualdade a despeito das diferenças de sexo e raça Tal exigência tem um significado Proíbe que as leis que regem a posição jurídica de uma pessoa empreguem critérios determinados pelo sexo ou raça dela Neste caso segundo as circunstâncias podem surgir problemas de interpretação referentes ao exato alcance da proibição Alguns poucos exemplos podem ilustrar isso a Algumas Constituições expressam de forma específica que to dos os cidadãos são iguais perante a lei16 Tais cláusulas parecem estar desprovidas de significado específico Pareceria que somente podem significar uma das duas coisas seguintes 1 que a lei segundo seu conteúdo deve ser aplicada sem refe rência às pessoas isto se compreende por si e se encontra já no conceito de norma 2 que a lei não deve se basear em distinções ou características que sejam consideradas irrelevantes ou injustas Mas tal proibição de leis injustas não tem significado preciso já que injustiça nesse con texto é uma expressão emocionalmente tendenciosa que não pode ser definida por critérios objetivos É presumível que as cláusulas desse tipo possam ser explicadas histórica e ideologicamente como uma reação a um direito anterior no qual certos grupos da população por exemplo a nobreza ti nham privilégios em particular privilégios diante da possibilidade de ser demandados17 É possível compreendêlas segundo as circuns tâncias com fundamento histórico sobre uma base histórica como uma proibição contra a reimplantação de tais privilégios Se a exigência de igualdade é qualificada mediante uma referên cia a critérios definidos que não podem ser usados para introduzir discriminações então ao contrário a cláusula tem um significado tangível18 Exclui a presença de tais critérios em legislação ordinária 16 Por exemplo a Constituição da Irlanda 1 de julho de 1937 seção 40 Todos os cidadãos são como seres humanos iguais aos olhos da lei a Constituição da Checoslováquia 9 de maio de 1948 claúsula especial seção 1 Todos os cidadãos são iguais perante a lei a Constituição da Turquia 10 de janeiro de 1945 seção 69 Todos os turcos são iguais perante a lei Entre as Constituições dos paises nórdicos somente a da Finlândia 17 de julho de 1919 contém uma norma geral de igualdade a saber no parágrafo 5 Os cidadãos finlandeses são iguais perante a lei 17 A emenda XIV da Constituição dos Estados Unidos que garante a todos proteção igual das leis e que foi aprovada em 1868 depois da Guerra Civil colimou historicamente colocar os negros em igualdade de posição com os brancos 18 Por exemplo a Constituição da Itália 27 de dezembro de 1947 seção 3 Todos os cidadãos são iguais perante a lei sem consideração de seu sexo raça língua religião convicções políticas e posição social e pessoal Direito e Justiça 333 b Por vezes se estabelece um princípio abstrato de igualdade a título de orientação para a administração no exercício de sua discri ção O que foi dito em a vale no que lhe é pertinente também aqui Em princípio não contém nenhuma norma material para o exercício da discrição expressando sim unicamente uma exigência formal a saber que a decisão seja efetivada com base em valorações e consi derações gerais e não de forma caprichosa ou arbitrária Um exemplo de um princípio qualificado de igualdade é a lei dina marquesa n 100 de março de 1921 a qual com exceções isoladas estabelece que os homens e as mulheres são igualmente elegíveis para todos os cargos no governo e na administração pública e lhes impõe dever idêntico de aceitar encargos públicos c Na doutrina do direito internacional a igualdade abstrata dos Estados se apresenta amiúde como um dos chamados direitos rights fundamentais dos Estados19 Uma exigência de formulação tão abs trata carece de significado porém por trás dela está oculta por um lado a proibição de fazer discriminação com base no tamanho dos Estados e por outro certas regras que nada têm a ver com a igualda de ou a desigualdade o princípio de unanimidade e a regra sobre a imunidade dos Estados d Na doutrina da expropriação se sustenta que a linha que separa a expropriação das restrições ao domínio sem compensação é em princípio determinada por um critério de igualdade as restrições não conferirão direito de obter compensação se afetarem todas as proprie dades do mesmo tipo Fica claro contudo que o princípio de igualdade é aqui tão carente de significado como em outras partes Toda cláusula que descreve o objeto da restrição por meio de conceitos ou caracterís ticas gerais se refere igualmente a todas as propriedades do mesmo tipo A mão da natureza não determina quais objetos são do mesmo tipo isto depende unicamente da inclusão desses objetos na mesma categoria conceituai seja qual for a forma pela qual esta seja definida A palavra fazenda define um grupo de objetos do mesmo tipo Entre tanto isso ocorre também com qualquer outra definição conceituai por exemplo fazendas com uma população animal de mais de cem cabeças granjas com uma população anima de mais de cem cabeças e de uma extensão superior a cinqüenta acres fazendas localizadas 19 Alf Ross Textbook o f International Law 1947 parágrafo 34 334 Alf Ross em Ohio com uma população animal de mais de cem cabeças e uma extensão superiora cinqüenta acres cujo proprietário tenha estado de posse da fazenda durante mais de vinte e cinco anos e que esteja gravada com uma hipoteca de mais de US5000 Isto sem considerar se há sequer uma fazenda que satisfaça as condições dadas Se dizse que a exigência de igualdade não deve ser tomada em sentido formal mas que o fato decisivo é se a limitação ocorre de acordo com características distintivas que estejam bem fundadas que sejam razoáveis ou justas isto quer dizer que a idéia de igualdade desvanece para ser substituída por uma referência ao que se consi dera justo segundo uma opinião subjetiva e emocional Tal princípio não é um princípio autêntico mas o abandono de toda tentativa de análise racional Capítulo XIII O Utilitarismo e a Quimera do BemEstar Social 67 A RELAÇÃO ENTRE 0 UTILITARISMO E 0 DIREITO NATURAL1 A idéia central do direito natural foi que a retidão do direito positi vo depende de sua concordância com um padrão ou um ideal que se encontra na natureza ou na razão do ser humano O direito positivo não é julgado pelos efeitos que produz na comunidade As considera ções de utilidade não são destituídas de importância mas não se confundem com a exigência de justiça O direito tem sua meta dentro de si mesmo realizar o ideal de justiça Isso entretanto não deve ser interpretado no sentido de que a cada norma corresponde seu padrão ideal na razão Nossa razão se limita a um pequeno número de princípios básicos e evidentes e a retidão da norma particular depende de poder ser considerada como deduzida daqueles princípios básicos Já vimos que de um ponto de vista epistemológico a filosofia do direito natural se apóia numa intuição intelectual ou num sentimento de evidência que se supõe garante a retidão dos princípios básicos mas na realidade não passa de uma expressão dogmática e patética 1 Para um estudo mais detalhado e documentado ver meu livro Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis I1933 cap IV 1 336 Alf Ross da consciência moral e jurídica da época Não se investiga a origem dessa consciência ela não é considerada do ponto de vista histórico e psicológico como um produto de fatores combinados entre os quais o ordem social e jurídica vigente Tal consciência moral e jurídica não é criticada à luz de suas conseqüências sociais mas é aceita com reverência como um oráculo que revela ao ser humano a verdade moral a lei de Deus ou da razão válida por si mesma para o governo de suas ações O utilitarismo de Bentham significou uma nova abordagem a qual ele considerou uma revolução na história do pensamento moral Se guindo a filosofia empírica de Locke Bentham desejava erradicar todas as concepções de idéias inatas ou verdades a priori A consciência moral não é revelação de verdades eternas segundo Bentham mas simplesmente um catálogo de opiniões tradicionais e preconceitos difí ceis de ser abolidos porque foram inculcados nas mentes das pessoas desde sua mais tenra infância Em lugar de elevar de forma dogmática os sentimentos morais ao nível da validade absoluta uma teoria pro gressista da moral deve atingir o princípio racional que se encontra por trás do sentimento moral e dirigilo diz Bentham Este princípio não é percebido com clareza mas atua inconsciente e instintivamente Só quando é trazido à plena consciência é possível proporcionar um fun damento racional para a moral e criticar e corrigir o sentimento moral se houver risco de que este se torne retrógrado ou pervertido Bentham pensou que podia estabelecer esse princípio sobre uma base empírica considerando a natureza humana2 Todo esforço huma no é um esforço em busca da felicidade A felicidade portanto é a coisa que é boa em si mesma e o princípio moral do comportamento deve apontar para a ação que produz a maior soma possível de felici dade no mundo O valor de uma ação depende por isso dos efeitos que produz medido em termos de prazer felicidade ou dor humanos A ruptura de Bentham com o passado não foi entretanto tão profunda como ele julgava Derivar a moral do esforço natural do ser humano é uma idéia herdada do rejeitado direito natural uma idéia 2 Bentham começa sua principal obra An Introduction to the Principies of Morais and Legislation impressa em 1780 e publicada em 1789 com as seguintes palavras A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois amos soberanos a dor e o prazer Cabe a eles somente indicar o que devemos fazer bem como determinar o que faremos Por um lado o padrão do certo e do errado por outro a cadeia de causas e efeitos estão presos ao seu trono Direito e Justiça 337 que por exemplo encontrou significativa expressão em Tomás de Aquino Ademais fica claro que a crença de Bentham na possibilidade de construir uma doutrina moral sobre um fundamento puramente empírico é necessariamente uma ilusão Com base numa observação psicológicoempírica genuína jamais seria possível ir além de uma descrição de como os seres humanos se comportam de fato ou como se comportariam de fato em determinadas circunstâncias3 mas não chegar a uma moral padrões de conduta correta e incorreta isto é a como devemos nos comportar5 Se prosseguirmos em nossa refle xão se fará também claro que o princípio de Bentham da maior quan tidade possível de prazer não pode ser derivado de tal experiência sendo sim a expressão de um postulado metafísicointuitivo O ponto de partida de Bentham é que todo esforço humano é um esforço em busca do prazer Isto não significa contudo que os seres humanos agem sempre de forma egoísta no sentido habitual isto é buscando sua própria vantagem sem se preocuparem com os inte resses dos outros Bentham de modo algum negaria que o ser hu mano é capaz de ações altruístas de autosacrifício ou de ações he róicas impulsionado por sentimentos de simpatia para o próximo Só quer dizer que no fundo tais ações estão condicionadas pelo empe nho do ser humano na busca de seu próprio prazer a saber o prazer de satisfazer seu sentimento de simpatia pelos outros Um outro pon to é que tal como diz Bentham quando fala do princípio de autopreferência os sentimentos de simpatia são no ser humano geralmente fracos e impotentes no conflito com as forças egoístas no sentido usual desta última expressão Na prática são estas quase exclusivamente as que determinam o curso das ações na conduta Portanto o prazer que os seres humanos buscam é na maioria das vezes seu próprio prazer no sentido mais estrito6 Sobre esse pano de fundo consideremos agora o princípio supre mo de ação de Bentham Tal princípio me ordena agir de tal maneira que a soma total de felicidade no mundo seja a maior possível Exige me que ao julgar uma ação não leve em conta se o prazer que causa 3 Particularmente se tivessem uma concepção mais correta da realidade 4 Ver a citação da nota 2 5 Este ponto de vista foi mais tarde energicamente enfatizado por Moore Ver Ross op cit p 78 6 Ver também op cit cap V 2 338 Alf Ross a mim o causa a mim ou a outros O mesmo peso tem que ser atribuído ao prazer dos demais tanto quanto ao meu próprio e uma ação que é vantajosa para os outros deve ser preferida a uma ação que é vanta josa para mim mas apenas em menor grau É evidente que tal princípio não pode ser extraído do axioma socioló gico do prazer mas se opõe diametralmente à afirmação de que em seu conjunto as pessoas se comportam de forma egoísta Como outros prin cípios éticos possui o caráter de uma exigência suprema ou de uma validade específica em conflito com os impulsos de nossos sentidos Tal como os postulados do direito natural deve buscar seu fundamento na natureza razoável do ser humano e sua justificação numa intuição inte lectual Na realidade se aproxima muito da formulação de Nelson do princípio de justiça parágrafo 64 Ordename vencer minhas inclina ções egoístas e agir sem consideração das pessoas ou da maneira que agiria se todos os interesses afetados por minha ação fossem meus Entretanto não se deve desprezar a diferença que existe entre o utilitarismo e o direito natural A crítica de Bentham da consciência moral e jurídica e sua exigência de que uma ação seja julgada se gundo os seus efeitos de fato constituem passos de valor perma nente para uma teoria realista Bentham se equivoca ao crer que a consciência moral e jurídica é dirigida por um único princípio racional de acordo com o qual o julgamento dos efeitos de uma ação pode ser reduzido a um simples cômputo de máximos relativos a somas quantitativamente iguais 68 O PRINCÍPIO DA MAXIMIZAÇÃO E SUAS DISCORDÂNCIAS COM NOSSA ESCOLHA EFETIVA Como mostramos no parágrafo anterior o princípio utilitarista não pode ser derivado da experiência mas sim à semelhança de outros princípios éticos é um postulado metafísico baseado na intuição Mas ainda assim pode é claro revelar algo sobre a maneira como de fato raciocinamos a respeito de problemas morais e políticos E assim ocorre decerto com respeito ao ponto de vista básico de que as ações devem ser julgadas segundo suas conseqüências Não ocorre o mesmo em contrapartida com respeito à forma como segundo se crê tem lugar esse julgamento Direito e Justiça 339 O princípio do utilitarismo no seu último aspecto se apóia na pressuposição de que em toda situação prática nossa escolha pode ser reduzida a uma escolha racional entre montantes quantitativos medidos em termos de prazer Se se adota a premissa de que o pra zer é o intrinsecamente bom e que se deve dedicar a mesma conside ração ao prazer dos outros e ao próprio a escolha se reduz a um cômputo puramente racional Essa pressuposição contudo não é verdadeira Originase de uma falsa psicologia Nossas necessidades e desejos diferem qualitativa mente e são mutuamente incomensuráveis Os seres humanos têm as necessidades mais variadas por exemplo a de alimento de repouso e sono de ocupação de atividade sexual de cultura e conhecimento de experiência artística e recreação de amor e respeito de poder e pres tígio social Se todas minhas necessidades não podem ser satisfeitas e me encontro diante de uma escolha por exemplo entre ouvir uma sinfonia e saborear uma boa comida essa escolha não pode ser descri ta como uma alternativa racional entre duas quantidades comensuráveis de prazer Qual é a medida para o prazer que experimento numa situa ção ou em outra Qual deverá ser a unidade de medida O único crité rio concebível para chamar um bem de maior do que outro é obvia mente o fato de que na realidade eu o prefiro Mas neste caso a afirmação de que numa escolha prefiro o maior entre dois bens perde sentido e chamado de maior precisamente porque o prefiro A pressuposição utilitarista é uma enorme distorção racionalista da vida mental7 Reduz o fundamento irracional de nossas ações à valoração única de que o prazer é preferido à dor e transforma tudo o mais num cômputo racional de quantidades de prazer e de dor A situação verdadeira é que somos movidos por muitas necessidades e considerações diferentes que se confrontam e lutam num processo irracional de motivação Estamos submetidos à influência de uma di versidade de padrões de valoração e preferência que se desenvolvem e se estabelecem individual e socialmente Se considerarmos por exemplo as deliberações que têm lugar numa assembléia legislativa num conselho local numa diretoria numa comissão em suma em qualquer lugar em que sejam discutidos assuntos públicos e privados para determinar uma linha de orientação o que ocorrerá é que são 7 Esta distorção se baseia na afirmação empiricamente desprovida de sentido de que todo esforço é um esforço em busca do prazer Cf Ross op cit cap V 2 340 Alf Ross enunciadas e pesadas diversas considerações cada uma das quais possui uma certa força motivadora em relação a certos desejos e valorações No final essas considerações são integradas numa deci são que expressa a importância ou preferência atribuída às várias considerações Esta decisão é o que chamamos de uma resolução um ato irracional do espírito no qual todas as forças que foram mobi lizadas durante a fase da deliberação lutam entre si até que reajamos com um resultado a decisão Isto é algo bastante distinto de uma escolha racional entre quantidades quantitativamente definidas Expressandose isso numa breve fórmula podemos dizer a incomensurabilidade das necessidades não permite uma maximização quantitativa Por isso o princípio utilitarista é inaplicável em situações de conduta nas quais haja competição de muitas necessidades inte resses considerações qualitativamente diferentes Os problemas morais e políticos em sua grande maioria se referem a situações desse caráter Assim não ocorre necessariamente em ques tões econômicas Visto que todos os interesses econômicos podem ser expressos pelo menos aproximadamente em termos de dinheiro está aqui presente aquela comensurabilidade que torna possível a aplicação do princípio de maximização8 O princípio de maximização certamente reflete também algo fundamental da maneira pela qual são feitas as escolhas econômicas quando estão somente em jogo os interesses de um só indivíduo O homem de negócios por exemplo apreciará as diferentes possibilidades de investimento de acordo com o benefício calculado medido em termos de dinheiro e escolherá entre essas pos sibilidades a que lhe promete o maior lucro o que é um claro cálculo de maximização O princípio não se ajusta como medida por outro lado para problemas econômicosociais os problemas que se relacionam com indivíduos que mutuamente competem Ao atribuir importância exclusiva à soma total e não à sua distribuição todos os conflitos de interesses ficam ignorados desde o começo e se torna impossível atri buir à distribuição qualquer significado independente9 Porém a maior parte dos problemas econômicos de importância social são problemas 8 Isto explica o colossal papel que desempenhou o utilitarismo na teoria econômica durante o século XIX e até os nossos dias 9 Através da teoria da utilidade marginal já desenvolvida com completa clareza em Bentham e que mais tarde tornou se parte principal da doutrina econômica do valor a distribuição adquiriu uma certa importância derivada Segundo essa teoria a distribuição igual dos bens produzirá a maior soma de prazer Mas ainda de acordo com essa elabora ção da teoria a distribuição do próprio prazer continua sendo algo sem importância Cf Ross op cit 136 Direito e Justiça 341 de distribuição ou em todo o caso problemas que detêm um aspecto distributivo O problema da renda nacional por exemplo não é sim plesmente uma questão do seu montante como também de sua dis tribuição É possível que um sistema econômico que produza uma soma total menor mas com uma melhor distribuição da mesma seja preferido a outro com uma maior soma total mas com uma distribui ção mais desigual O mesmo ocorre com os problemas referentes ao abastecimento de certas mercadorias ao número de casas disponí veis para a população e muitas outras questões Nesses casos e outros semelhantes10 isto é quando somente por via de exceção podese considerar possível uma maximização quanti tativa podemos dizer que a desarmonia mútua dos interesses faz com que o princípio de maximização seja inadequado para a solução de problemas sociais de distribuição 69 A QUIMERA DO BEMESTAR SOCIAL Nos tempos modernos11 tornouse hábito falar de bemestar social das necessidades da comunidade etc em lugar da soma total do prazer dos indivíduos A introdução do conceito de sociedade como um sujeito único cujo bemestar deve ser promovido na maior medida pos sível permitiu contornar mas não superar os dois defeitos fundamen tais do utilitarism o assinalados no parágrafo anterior a incomensurabilidade das necessidades e a desarmonia dos interesses A idéia de que a comunidade é uma entidade independente com necessidades e interesses próprios deve ser rejeitada como ilusória Todas as necessidades humanas são experimentadas pelo indivíduo e o bemestar da comunidade é o mesmo que o de seus membros de sorte que retornamos às mesmas dificuldades anteriores De que modo a invocação do bemestarsociai nos ajuda a superar a incomensurabilidade qualitativa das necessidades Como escolher entre fomentar as artes e as ciências ou a construção de moradias 10 Também fora da esfera da economia é possivel que surjam problemas que podem ser formulados em termos de um cálculo de quantidades homogêneas 11 A exposição precedente se ateve ao utilitarismo sob sua forma original formulada por Bentham Em Bentham as linhas de pensamento aparecem com maior clareza já que no desenvolvimento ulterior do utilitarismo se produziu uma fusão dos elementos puros do utilitarismo com elementos do direito natural e do idealismo Cf Ross op cit cap V 58 342 Alf Ross Como somar liberdade alimentação moradia e boa música Mas sem esta soma preliminar não é possível decidir o que é que na maior extensão possível promove o bemestar social O mesmo ocorre com a desarmonia de interesses Dizse que to dos as pessoas em geral alguém desejam boas casas para morar Portanto pensase a diretiva de uma boa política de habitação deve consistir na melhor satisfação possível dessa necessidade comum A falácia reside nos termos gerais utilizados Alguém não vive em ca sas quem o faz é A Be C As pessoas não desejam obter boas casas mas sim A deseja obter uma boa casa para A deseja obter uma boa casa para B etc Se as circunstâncias não permitem a satisfação de todos os desejos esses interesses passam a ser competitivos O inte resse da comunidade o bemestar social é a falácia que contorna essa desarmonia e fabrica um interesse único harmônico e um cor respondente benefício único O utilitarismo e o princípio do bemestar social como a filosofia do direito natural são o resultado da necessidade que a consciência tem de um princípio de ação absoluto que possa libertar a humanidade da angústia da decisão Nesta variante da metafísica moral podese dis tinguir dois componentes um é o postulado de que os interesses dos outros devem ter o mesmo peso que os próprios Este apelo aos sentimentos de simpatia constitui a idéia econômica e politicamente ativa no utilitarismo Tornase óbvio que esse postulado é uma nova dogmatização da consciência moral e jurídica que só pode buscar seu fundamento numa intuição intelectual mesmo quando o próprio utilitarismo pretende se basear na experiência O segundo componente é a doutrina de que quando se aceita o postulado nossas escolhas podem ser descritas como uma decisão racional entre quantidades mensuráveis o que é uma falácia que se choca com dois fatos fundamentais a incomensurabilidade qualitati va das necessidades e a mútua desarmonia dos interesses Capítulo XIV Ciência e Política 70 CONHECIMENTO E AÇÃO1 O pressuposto das concepções jusnaturalista e utilitarista exami nadas no capítulos anteriores é que cabe à política jurídica descobrir o direito correto e válido em si mesmo e que este é um problema que pode ser resolvido cognoscitiva mente pelo menos na medida em que se pode estabelecer certos princípios gerais na qualidade de diretri zes para apreciar a retidão do direito positivo Não faz sentido indagar ademais porque o direito deve ser reto correto isto é porque deve satisfazer as exigências da idéia de justiça ou o cômputo do prazer Essas exigências são absolutas e categóricas surgem de uma apreensão a priorie não podem se fun dar em argumentos racionais O princípio de política jurídica a idéia de justiça ou o princípio da felicidade social segundo esse modo de ver é simultaneamente um conhecimento compreensivo insighl e uma exigência É um conhe cimento por apreensão dos princípios válidos que o direito tem que satisfazer para ser reto correto um conhecimento que tal como qualquer outro conhecimento tem a pretensão da verdade assim é e não de outra maneira É uma exigência porque reclama do legislador que aja de conformidade com esses princípios A esperança de que o 1 Ver Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnís 1933 cap I 344 Alf Ross legislador se comportará efetivamente assim se baseia tãosó num cha mado a sua razão ou consciência Como os outros seres humanos o legislador pode apreender ainda que seja de forma imperfeita o que é válido Constitui tarefa do conhecimento clarificar essa apreensão e tornála plenamente consciente na esperança de que o legislador in terpretará as ordens da razão e da consciência de acordo com isso O conceito de retidão rightness é um conceito a priori Não pode ser deduzido da experiência dos sentidos sendo sim captado numa intuição intelectual Do mesmo modo o conhecimento que nos facultará apreender o válido não é uma ciência em sentido empírico mas pressupõe uma fonte de conhecimento distinta da experiência dos sentidos Essa fonte de conhecimento é precisa mente a visão espiritual mediante a qual livres de amarras sensoriais apreendemos diretamente a natureza essencial da existência e a lei que governa nossas ações Um conhecimento deste tipo se denomi na metafísico Conseqüentemente toda filosofia jurídica e moral que tem que estabelecer normas válidas por si mesmas para a ação de seres humanos é metafísica Se tomarmos como ponto de partida a idéia de que toda metafísica é quimera e só há um conhecimento a saber o empírico parágrafo 58 poderemos nos perguntar como é possível atingir sobre essa base a política jurídica isto é o enunciar de alguma orientação para o legis lador Se não existe apreensão a priori de uma retidão rightness ab soluta no que fundar as normas de ação Se não há validadeabsoluXa com que direito right se pode formular diretivas para a ação humana Se o legislador não está metafisicamente obrigado pelas ordens a priori da razão que força motivadora podem possuir tais diretivas Se todo conhecimento científico é por sua natureza apreensão de fatos empíricos e de suas correlações funcionais invariáveis como é possível com fundamento científico enunciar algo que não se limite a simples declarações a respeito de fatos empíricos Esses problemas não são peculiares à política jurídica Existem problemas correspondentes em todas as ciências que pretendem ins truir como devemos nos comportar Será conveniente portanto divi dir a resposta em duas partes tratar primeiro em geral da relação entre conhecimento ciência e ação política e investigar em segui da os problemas particulares da política jurídica A primeira parte é ventilada neste capítulo e a segunda no seguinte uireito e justiça j d Imaginemos por um momento se for possível2 um ser semelhan te ao ser humano dotado de inteligência porém desprovido de sen timentos e paixões de qualquer espécie despojado de qualquer for ma de impulso empenho amor ódio etc Tal ser seria absolutamen te apático em relação a tudo que o circundasse e se conservaria mediante alimentação artificial Devido à sua inteligência poderia apre ender e compreender a realidade Entretanto mesmo que imagine mos esse ser dotado do mais amplo conhecimento de fatos do mais profundo discernimento das leis e correlações da existência nenhu ma quantidade de conhecimento seria capaz de despertar seu ser para a atividade Todo conhecimento carece de interesse prático para uma pessoa que não está interessada em nada O conhecimento de que um perigo ameaça minha vida a menos que me mova do lugar em que me encontro me deixará frio sem interesse e passivo se não alimento o desejo de preservar minha vida O conhecimento de como alcançar todas as glórias e bens do mundo carece de força motivadora para a pessoa que não deseja essas coisas Esse experimento serve para ilustrar a absoluta diferença que existe entre os atos de apreensão da consciência conceituais ou cognoscitivos e aqueles que constituem uma atitude3 Estes últimos são caracterizados por sua polaridade que se evidencia em pares de palavras tais como atraçãorepulsão amoródio aprovaçãorepro vação desejoaversão Como termo geral para fazer alusão a esses atos em que nos decidimos com base em uma atitude termo que abrange igualmente as atitudes com sinal de mais ou menos podese empregar a palavra Interesse ainda que no uso lingüístico ordinário essa palavra signifique principalmente uma atitude positi va Se bem que os atos de apreensão e aqueles nos quais nos deci dimos com base numa atitude ou como podemos também dizer as crenças e as atitudes ocorrem estreitamente conectados em interação mútua designam formas primárias irreduzíveis de consciência Toda atividade consciente está necessariamente enraizada numa atitude A mera apreensão como tal a pura apreensão ou conhecimento ca rece de toda força motivadora 20 experimento de pensamento somente é possfvel como uma abstração Na realidade o funcionamento da inteligência é em si uma atividade baseada em emoções 3 CtFranz Bretano Psychofogie 19251 II Bretano faz dessa distinção a divisão fundamental dos fenômenos psíquicos 346 Alf Ross Isso de modo algum significa que nossas crenças não influem em nossa atividade mas apenas que essa influência é exercida sempre por via de um interesse atitude Se de uma atitude surge um motivo para a ação a atividade resultante é guiada por nossa inteligente concepção dos fatos e circunstâncias Se tenho interesse em não me molhar meu conhecimento da condição do tempo determinará a rou pa que ponho Se tenho interesse em fazer negócios que visam ao lucro meus atos nesse terreno serão determinados por meu conheci mento de onde posso comprar em melhores condições de qual será a tendência dos preços etc A função do conhecimento na esfera da ação pode em conformi dade com isso ser definida da seguinte maneira o conhecimento jamais pode motivar uma ação porém pressupondo um dado motivo interesse atitude ele pode dirigira atividade Disso se conclui que o papel do conhecimento ciência na esfera da ação nunca pode consistir em estabelecer normas categóricas ou válidas em si mesmas isto é normas de um tipo cuja força motivadora consista no próprio conhecimento e sejam assim independentes de toda atitude ou interesse subjetivos Todo motivo para a ação e igualmente todo convite à ação surgem por necessidade de fatores irracionais interes ses atitudes A função do conhecimento só pode consistir em proporcio nar diretivas que têm somente uma força hipotética com o pressuposto de um motivo irracional determinado interesse atitude E assim a idéia de um conhecimento prático em sentido ético a idéia de um conhecimento que é em si um motivo ou a expressão de uma exigência categórica é uma impossibilidade São por isso ilusórias as muitas teorias formuladas no decorrer do tempo sobre a dedução de normas absolutamente válidas a partir de fatos empíricos o fato da solidariedade por exemplo ou da na tureza metafísica da existência ou da natureza humana Absoluta mente nada pode ser deduzido sobre a ação humana a partir de fatos como tais Os fatos são em si mesmos indiferentes Só ganham relevância ao serem colocados em relação com um interesse ou atitu de que é independente deles Isso vale inclusive quando somos capazes contrariamente ao que penso de apreender uma qualidade específica em certos fatos que pode ser denominada seu valor ou bondade Tal conhecimento Direito e Justiça 347 não tem tampouco força motivadora independente e só possui sig nificado prático se tenho interesse no valioso ou no bom É presumível que todas essas teorias relativas a normas de ação absolutas derivadas diretamente da realidade ou dadas diretamente em nosso conhecimento tenham como dissemos no parágrafo 59 uma explicação psicológica a saber que os seres humanos para escapar à responsabilidade da decisão e à agonia da escolha buscam ocultar a circunstância de que todas as decisões dependem em últi ma análise de nossas próprias atitudes 71 A INTERAÇÃO MÚTUA ENTRE CRENÇA E ATITUDE Se limitarmos o termo ação aos atos conscientes que são tema de deliberação e discussão poderemos dizer que toda ação está condicio nada por dois fatores as crenças do agente e suas atitudes Por crença entendo toda idéia sobre a natureza da realidade que o sujeito da crença julga verdadeira ou pelo menos provável Pode referirse a fatos simples e a correlações invariáveis a fenômenos cotidianos e a teorias científicas a circunstâncias passadas presen tes e futuras em síntese a tudo aquilo com respeito ao que os seres humanos fazem suposições mais ou menos bem fundadas Por atitude entendo aqueles fenômenos de consciência volitivos e emocionais que são a fonte motivo de toda atividade consciente Visam a um objeto que se apresenta ao sujeito O objeto pode ser uma coisa uma pessoa um evento um estado de coisas Tais fenô menos de consciência ocorrem em dois tipos polares básicos que se mostram em termos tais como os pares atraçãorepulsão desejo aversão aprovaçãoreprovação amoródio As atitudes podem ser experimentadas de diversas maneiras se gundo sua posição num contexto psicológico mais amplo O que têm de comum é que expressam uma certa tendência à ação A tendência pode ser mais incondicional definida e atual ou mais condicional indefinida e potencial Ocorre o primeiro caso com aquelas atitu des nas quais predomina um elemento voluntário como é o caso na Aparentemente Ross utiliza aqui estes termos no estrito sentido aristotélico de evepyeta energéia ato e ôuvouÇ Idynamis potência INTJ 348 Alf Ross consciência de um propósito clarificado por deliberação e decisão também nos estados emocionais mais transitórios com uma tendência definida de desafogo ódio medo ânsia desejo Nestas atitudes a tendência à ação é caracterizada por uma clara disposição à ação O segundo caso ocorre com aquelas atitudes nas quais predomina um elemento emocional Aqui pode também darse o caso de atitudes relativamente clarificadas e estáveis de amor e ódio por coisas ou pes soas ou de atitudes mais transitórias e volúveis de saudade esperan ça e desejo dirigidas a um evento ou circunstância Mesmo quando nessas atitudes preponderantemente emocionais a tendência à ação é menos acentuada elas contêm uma inclinação a atuar de uma ma neira definida se a ocasião se apresenta Aquele que sente amor por um objeto deseja seu bem aquele que deseja algo quer também atuar para que o que deseja se realize Porém visto que freqüentemente não se sabe se surgirá alguma oportunidade para a ação e qual será seu conteúdo preciso a tendência à ação adquire aqui como disse mos um caráter mais indefinido e latente Num grupo especial se en contram aquelas atitudes nas quais tendo que escolher preferimos um bem a outro Estas se chamam atitudes de preferência A crença e a atitude designam duas formas básicas de fenômenos de consciência a teórica e a prática Ocorrem freqüentemente em fusão íntima de sorte que só por abstração podese distinguir os dois componentes Muitos termos lingüísticos expressam ambas as formas ao mesmo tempo São tanto descritivos quando definitórios de atitu des têm podemos dizer um significado teórico e emocional volitivo Não é raro que duas palavras ou expressões sejam usadas para des crever praticamente o mesmo objeto mas com carga emocional dife rente exemplos líder ditador heróico temerário fazer respeitar o princípio de autoridade oprimir paladino da liberdade e dos direitos humanos rebelde política realista maquiavelismo Inversamente as mesmas palavras dotadas de forte carga emocional são usadas para designar fenômenos que diferem agudamente Na linguagem de Hitler sua ditadura era a verdadeira democracia seu Estado policial o ver dadeiro Estado constitucional sua economia capitalista o verdadeiro socialismo e sua regimentação a verdadeira liberdade Da mesma maneira Stalin não estava disposto a perder o capital de boa vontade ou valorchave que representa a palavra democracia Chamava a Cons tituição soviética de a única Constituição perfeitamente democrática do mundo admitindo ao mesmo tempo que estabelecia o regime da Direito e Justiça 349 ditadura do proletariado Os órgãos da imprensa comunista usam re gularmente uma expressão com uma forte carga emocional a vonta de do povo para designar a opinião de uma reduzida minoria que representa uma porcentagem mínima da população4 Esses fatos e outros similares explicam porque os estudos lingüísticos da carga emocional das palavras se contam entre os métodos empre gados para descobrir as atitudes predominantes de um grupo5 Num nível superior as atitudes e as crenças se fundem não sim plesmente nas palavras como também na criação de teorias de am plo alcance tais como ideologias e programas políticos sistemas re ligiosos e filosofias de vida Tal como já enunciado a atitude prática é um fenômeno espiritual irreduzível no sentido de que a partir de uma crença não se pode deduzir uma vontade para a ação ou uma exigência de ação para um ser desprovido de sentimento e vontade todo o conhecimento do mundo carece de força motivadora Assim é impossível provar por argumento racional recorrendose aos fatos e aplicandose a lógica a retidão de uma atitude Uma coisa completamente distinta o que é importante para os problemas que estamos investigando é que psicológica e causalmen te uma íntima interação mútua ocorre entre as crenças e as atitudes Nossas crenças a respeito do mundo em que vivemos não se for mam sucessivamente à medida que acumulamos gradualmente pro vas suficientes da verdade de certas suposições Pelo contrário a exigência de documentação e exame crítico aparece apenas de forma tardia no desenvolvimento espiritual O ponto de partida é que as crenças achamse apenas num ínfimo grau sob o controle da experi ência e da crítica evoluindo sim sob o impulso do temor da espe rança e dos desejos Todos nós temos uma forte tendência a conside rar como verdadeira qualquer coisa que possa acalmar nosso temor estimular nossas esperanças afagar nossos desejos Nos povos pri mitivos a livre fantasia estimulada pelas emoções quase não conhece limites Entretanto mesmo as comunidades que progrediram no sen tido de adquirir capacidade para o pensamento crítico mesmo os 4 Para as chamadas definições persuasivas ver Charles L Stevenson Ethics and Language 11945 206 e segs 5 Ver também Stuart Chase The Tyranny of Words 1938 350 Alf Ross cientistas para quem essa capacidade deveria ser uma virtude pro fissional exibem uma inequívoca tendência para que sua concepção da realidade se forme e se colora sob a pressão de fatores irracionais Estamos sempre dispostos a ver o que desejamos ver e a fechar os olhos para o que não queremos ver Nelson não foi o único a tentar o truque de colocar o telescópio num olho cego Basta que sondemos nossos corações para saber quão necessário é por mais honestas que sejam nossas intenções estar continuamente alertas contra a cegueira o preconceito o engano de si mesmo ou a adulteração O perigo do pensamento pleno de desejo ou do preconceito pessoal é particularmente grande relativamente às crenças sobre as condições sociais em parte porque nossa emoções concentramse nos assuntos de nossos semelhantes em maior grau do que na natureza e em parte porque a oportunidade para o conhecimento exato e a investigação efe tiva é muito inferior no âmbito social do que no âmbito da natureza De maneira inversa também nossas atitudes são influenciadas pelas crenças que alimentamos Todos nós queremos apoiar nossas atitudes em crenças Por exemplo eu baseio minha aversão às dita duras na crença de que a ditadura conduz à supressão da liberdade intelectual e pessoal à suspensão da segurança legal e a um empre go difundido da violência Mas não existe nenhuma conexão lógica entre essa crença e minha atitude prática posto que a lógica só se refere à relação entre o valor de verdade de diversas asserções Uma atitude não possui valor de verdade é um fato Analogamente A pensa que os banhos frios são bons porque crê que fortalecem o sistema nervoso ou Bé vegetariano porque consi dera a carne má para a saúde As crenças e as atitudes estão portanto em interação mútua e com freqüência é impossível decidir qual entre as duas é primária e qual secundária As razões boas que as pessoas vinculam às suas atitudes não são sempre as verdadeiras Quando não o são falamos de raciona lização Pode muito bem ocorrer por exemplo que a carne realmente não agrade ao vegetariano e sua crença de que a carne faz mal para a saúde seja a expressão de um preconceito pessoal nascido dessa atitu de Certamente não é fácil decidir se o povo dos Estados do sul dos Estados Unidos odeia os negros porque os julgam mentirosos estúpidos e sexualmente depravados ou se sustentam essas crenças porque os odeia Direito e Justiça 351 É possível que se aceite que em última instância as atitudes como os reflexos têm seu fundamento na natureza biológica do organismo mas que no curso do crescimento e desenvolvimento da pessoa elas são elaboradas e se tornam um conjunto ramificado condicionado pe las crenças a que estão vinculadas da mesma maneira que os reflexos condicionados de desenvolvem a partir dos incondicionados Por analo gia podemos falar assim de atitudes incondicionadas e condicionadas As atitudes condicionadas podem ser classificadas sob outras ati tudes mais elevadas ou mais gerais de acordo com as crenças que as condicionam Se por exemplo sou partidário dos banhos frios porque acredito que são benéficos para a saúde e sou vegetariano também por motivos de saúde ambas as atitudes podem ser consi deradas como derivadas de ou subordinadas a uma atitude positiva mais geral com respeito à saúde sua conservação e promoção Ao enunciar as razões de nossas atitudes podemos dessa maneira ten tar sistematizálas ou harmonizálas e superar aquelas que nos en caixam no sistema O impulso nessa direção é próprio sem dúvida do crescimento para o que chamamos de caráter e personalidade E mister frisar todavia que esse ajuste não é uma sistematização lógi ca mas uma harmonização prática e que a harmonia entre nossas atitudes é um ideal que como regra realizase apenas em modesto grau Na realidade as atitudes de uma pessoa são um conglomerado discordante numa medida bem maior do que tal pessoa queira admi tir Temos que nos pôr em guarda contra atitudes declaradas referen tes a princípios gerais Existe o perigo de que elas não passem de verbalismos aos quais não corresponde uma realidade psicológica Com demasiada freqüência vemos que as pessoas se declaram sustentadoras do princípio de oportunidade igual para todos mas no entanto se opõem a admitir que os negros tenham acesso à educa ção superior ou dizem que apóiam o princípio da livre competição e ao mesmo tempo se opõem às medidas tomadas para preserválo Quanto mais ascendemos nos níveis de generalização mais duvi doso se torna que os ideais declarados correspondam às atitudes reais Se um homem diz que não pode suportar seu vizinho pele vermelha que detesta carne bovina com cebolas ou que é contra a limitação das importações não há razão em princípio para suspeitar que está enganando a si mesmo Mas não podemos ouvir suas ob servações com igual confiança se se declara defensor da democracia ou a favor das reformas sociais para benefício da massa populacional 352 Alf Ross 0 acme das construções irreais é atingido nas numerosas tenta tivas que se tem feito no domínio da filosofia para sistematizar todas as atitudes numa atitude suprema expressa na idéia do bem absoluto Assim por exemplo quando o utilitarismo decide que o prazer é o intrinsecamente bom e que a maior soma de prazer é o objetivo de todos os esforços A afirmação de uma atitude funda mental como esta da qual se diz derivam todas as outras condicio nadas pelo cálculo hedonístico é um verbalismo que não tem apoio na realidade psíquica Por essa razão se para compreender prever ou influir na ação humana interessa conhecer as atitudes das pessoas temos que ten tar uma análise das atitudes concretas e efetivas e não das formula ções verbais que contêm princípios expressos 72 DESACORDOS PRÁTICOS ARGUMENTO E PERSUASÃO Suponhamos que numa certa situação A está agindo e B o obser va interessado Suponhamos também que haja um desacordo en tre eles se B tivesse que tomar a decisão agiria de maneira diferen te Com base nessas premissas perguntamos ao que faz com que A e B ajam de maneira distinta numa situação idêntica e ô j o que pode fazer B para convencer A de seu ponto de vista para transfor mar o desacordo em acordo a Segundo a análise anterior o ponto de vista de uma pessoa é ditado pela ação conjunta de suas crenças e atitudes Seguese daí que os desacordos práticos podem ser reduzidos a uma das três situa ções seguintes 1 Desacordo de crença acordo de atitude Exemplos A e B estão de acordo em seu desejo de manter a Dinamarca fora dos horrores de uma guerra A acredita que a participação da Dina marca nt Tratado do Atlântico Norte servirá a esse propósito B crê no contrario Estão portanto em desacordo prático a respeito de seus pontos de vista sobre a participação da Dinamarca no Tratado do Atlântico Norte Direito e Justiça 353 A e B estão de acordo no desejo de adotar medidas contra o perigo da inflação e o risco do desemprego A crê que para isso seria eficaz uma restrição ao crédito mas B pensa que se bem que a restrição ao crédito terá um efeito antiinflacionário gerará ao mesmo tempo de semprego Conseqüentemente B não aprova a linha política de A 2 Desacordo conflito de atitude acordo de crença Exemplos A é antisemita B não é Ambos estão de acordo que a discrimina ção contra os judeus prejudica o próspero desenvolvimento deles Con seqüentemente A apóia as medidas de discriminação enquanto B não Por razões de cunho religioso A se opõe à prática do aborto A atitude de B é que a mulher deve gozar da liberdade de decidir o que fará com seu corpo Ambos estão de acordo na crença de que o teor de um projeto de lei é permitir a prática do aborto Conseqüentemente um considera o projeto indesejável o outro precisamente o contrário 3 Desacordo divergência de atitude Exemplo A e B fazem uma viagem juntos A se interessa por arte e não por esporte B o contrário Um e outro desejam fazer coisas distintas durante a viagem Nesse caso há divergência de atitudes entre A e B um não parti lha da atitude do outro Entretanto não há entre eles conflito de atitudes relativamente ao mesmo objeto Na mesma situação A e B estão submetidos a interesses divergentes As crenças que são rele vantes para A que os museus estejam abertos o que é exibido nos teatros etc são por isso irrelevantes para B e viceversa Aqui não podemos falar portanto de acordo nem de desacordo de crença Todavia os casos desse tipo podem facilmente se transformar em casos do tipo 2 Se A e B estiverem interessados ambos tanto em esporte quanto em arte mas se suas predileções são diferentes existe um conflito de atitudes de preferência Este conflito é típico em polí tica na qual os partidos estão de acordo nas considerações relevan tes mas divergem quanto ao peso delas Assim ocorre por exemplo quando dois partidos concordam em que tanto a segurança militar quanto o bemestar social são objetivos desejáveis mas atribuem peso diverso a cada um deles e em virtude disto adotam pontos de vista diferentes a respeito do orçamento para a defesa 354 Alf Ross b Devemos examinar agora a questão das possibilidades que tem B de converter A ao seu ponto de vista Não se trata de um processo lógico cujo objetivo seja provar a verdade de uma asserção O ponto de vista de A não é uma asserção mas um fato psíquico Os fatos como tais diferentemente das asserções acerca dos fatos não são verdadeiros nem falsos não são corretos nem incorretos não são passíveis de serem provados ou refutados Contudo os fatos podem mudar e podem ser alterados por ação do empenho humano Toda a atividade técnica visa a modificar os fatos da ma neira desejada Mas a relação entre a intervenção técnica e o resul tado obtido é uma relação fatual de causa e efeito uma relação causai e não uma relação lógica entre premissas e conclusão Seguese daí portanto que todos os métodos para lograr acordos práticos são intervenções técnicas que se propõem a influir de forma causai sobre a outra parte visando a alterar seu ponto de vista Isto vale inclusive se empregar argumentos racionais porque o objeti vo e a intenção destes argumentos não são provar per se a verdade de uma asserção mas sim exercer influência sobre os fatos psíquicos nos quais consiste a crença sustentada por A O ponto de vsita de A numa dada situação é determinada como vimos pela ação conjunta de certas atitudes e certas crenças rele vantes para a decisão que encara Podemos chamar essas crenças que desempenham um papel na formação da ponto de vista de A de crenças operativas A tarefa de B segundo as circunstâncias pode consistir em influenciar nas crenças operativas de A tipo 1 ou em suas atitudes tipo 2 ou em ambas tipo 3 Entretanto seja qual for o caso a intervenção direta não tem que ser necessariamente aplica da ao ponto no qual o resultado deverá ser atingido Assim é em virtude da interação íntima já examinada que ocorre entre as cren ças e as atitudes de uma pessoa Se A por exemplo se opõe a que os negros tenham acesso à edu cação superior porque crê que a inteligência destes não é adequada B pode é claro atacar essa crença operativa diretamente mencionando as estatísticas a respeito de inteligência e outros fatos E possível tam bém que a crença de A seja um preconceito ou tendenciosidade de pendente emocionalmente de uma atitude de aversão geral aos ne gros Neste caso B pode lograr o mesmo resultado e inclusive um resultado melhor se tentar conseguir que A mude de atitude Direito e Justiça 355 Se ao contrário o problema como no tipo 2 é mudar a atitude de A isto pode ser logrado não só por influência direta como também através das crenças condicionantes as crenças que sem ser operativas na situação dada condicionaram em geral a atitude de A Assim seja qual for o tipo de desacordo a intervenção pode ser dirigida de forma imediata em razão da conexão íntima entre cren ças e atitudes seja ao conjunto de crenças de A seja ao conjunto de suas atitudes Daqui procede uma distinção fundamental entre os métodos utili záveis para lograr o acordo prático I os métodos racionais que bus cam influir diretamente sobre o conjunto das crenças de A e desta maneira de forma indireta talvez também sobre o conjunto de suas atitudes e II os métodos irracionais que buscam influir diretamente sobre o conjunto de atitudes de A e desta maneira de forma indire ta talvez também sobre o conjunto de suas crenças I Na prática os métodos racionais assumem a forma da argu mentação aduzindo asserções para fundamentar um ponto de vista a palavra fundamentar não é usada aqui em seu significado lógico A função do argumento não é convencer o oponente de que o ponto de vista é correto tal conceito carece de significado mas convertê lo alterando suas crenças operativas ou suas atitudes condicionadas Sobre esta base é impossível distinguir entre argumentos válidos e inválidos Os argumentos numa dada situação são simplesmente efi cazes ou não eficazes e não é possível decidir de antemão quais deles são e quais não são É preciso arriscar uma suposição quanto às crenças que de fato determinam a posição adversária A eficácia de um argumento não depende da verdade da asserção mas sim do fato desta contar com a crença do oponente Sabese de sobejo por mais lamentável que isto seja que muita propaganda eficaz emprega asserções mendazes Se por exemplo se deseja sus citar ou fortalecer uma atitude de antipatia em relação aos judeus talvez não baste dar expressão emocional a tal atitude Podese obter um efeito muito mais vigoroso se simultaneamente a propaganda emocional for reforçada pela menção de qualidades perniciosas e de sagradáveis dos judeus por exemplo que devoram crianças em suas A edição inglesa registra a atitude de Bv não a atitude de A equívoco corrigido na tradução espanhola de Genaro Carrió e nesta à luz do original e da coerência NTI 356 Alf Ross cerimônias religiosas que são a causa dos desastres que assolam o país que estão sempre prontos a ludibriar todo homem honesto etc Se existir já um certo preconceito contra os judeus tais afirmações se difundirão facilmente e serão eficazes a despeito de sua falsidade É claro que a pessoa que utiliza argumentos mendazes corre o risco de ver sua mentira ser revelada pelos outros O valor de verdade do argumento como tal está obviamente sujeito à crítica e ao exame usuais mediante a documentação dos fatos o recurso à experiência e a prova científica Nos assuntos públicos a discussão em função disso desempenha um grande papel ao contestar e neutralizar a agitação baseada na mentira Quando a informação não sofre restri ção e há liberdade de expressão a verdade a longo prazo prevalece As coisas são diferentes nos países nos quais o Governo controla os meios de informação e comunicação É marca trágica e funesta de nosso tempo que em tais condições virtualmente não há limites para a mendacidade com o que a propaganda pode ser disseminada objetivando envenenar os espíritos dos seres humanos e transformá los em instrumentos dóceis da política do poder A argumentação pode seguir diversas táticas segundo as linhas seguintes a Com relação à função da crença dentro do ponto de vista do oponente a argumentação pode dirigir seu ataque contra as cren ças que supomos que atuam de forma operativa ou contra as cren ças que supomos ter uma influência condicionante sobre as atitudes do oponente Na primeira alternativa buscase uma mudança de opinião capaz de influir diretamente no ponto de vista do oponente As crenças operativas podem sêlo com respeito a atitudes que já se fizeram ma nifestas no ponto de vista de A ver mais adiante o exemplo 1 ou Na sua dependência de alusão a fatos históricos este texto de Ross é atingido por um anacronismo compreensível e inevitável do ponto de vista do leitor contemporâneo que adentra o século XXI Não esqueçamos que Ross escreve estas linhas na Europa do pósguerra ainda assombrada pelo fantasma do totalitarismo nazifascista para cujo cresci mento muito contribuiu o Ministério da Propaganda do Terceiro Reich Fosse Ross ainda vivo ficaria por certo pasmo diante dos sofisticadíssimos recursos tecnológicos de que o poder hoje faz uso para manipular mentes humanas de cidadãos relativamente instruídos das classes médias anestesiadamente destituídos de qualquer agudeza de senso critico e para condenar à imbecilização contínua colossais contingentes de mentes propositalmente excluídas da educação básica e do mais ínfimo estímulo à possibilidade do exercício intelectual Ocioso dizer que não me refiro exclusivamente a regimes totalitaristas mas também e principalmente às democracias capitalistas IN Tl Direito e Justiça 357 também com respeito às atitudes que B supõe que são latentes em A exs 2 e 3 o que tem muita importância na argumentação corrente Com freqüência não temos consciência de todas as nossas atitudes nas deliberações que nos levam a adotar um ponto de vista Na discus são nosso oponente ao trazer à baila novas considerações tenta ape lar para atitudes latentes que não tiveram oportunidade de produzir efeito Em um ou outro caso as asserções argumentativas podem bus car lançar luz sobre o conteúdo direto da medida em discussão ex 2 ou também sobre os efeitos que a medida pode acarretar exs 1 e 3 Na segunda alternativa isto é quando o argumento se dirige às crenças condicionantes buscase uma mudança de opinião capaz de influir diretamente no ponto de vista do oponente mediante uma al teração em suas atitudes exs 4 5 e 6 ôJCom respeito ao meios empregados para alterar as crenças do oponente a argumentação pode procurar provar diretamente a ver dade teórica das crenças que deseja que o oponente aceite buscan do apoio no testemunho da experiência nas conclusões científicas e nas exigências da lógica ex 1 ou então pode tentar indiretamente suscitar uma dúvida no espírito do oponente abrindo os seus olhos para a possibilidade de que as crenças que sustenta podem ser explicadas psicologicamente como preconceitos ditados por certas atitudes ex 6 Desta maneira o oponente pode ser levado a uma reflexão crítica que por sua vez o conduza a uma revisão de suas crenças e com isso se suas crenças operativas ou condicionantes estiverem em jogo a uma mudança de seu ponto de vista c Finalmente as táticas de argumentação podem variar segundo o propósito de destruir determinadas crenças ou suprir crenças no vas ou ambos Na seqüência são dados alguns exemplos em parte inspirados por Stevenson 1 A Oponhome à participação da Dinamarca no Tratado do Atlân tico Norte Esta participação aumenta o risco da Dinamarca ser arras tada para um conflito entre as grandes potências B Isto não é verdade O tratado pelo contrário diminuirá esse risco e logo B expressa a usual argumentação teórica em suporte de sua asserção 358 Alf Ross Nesse caso B ataca as crenças operativas de A acerca dos efeitos de uma certa medida Não só deseja destruir as crenças de A como também proporcionarlhe crenças novas 2 A Sou a favor da projetada reforma tributária É preferível que haja aumento dos impostos do que o governo continuar a levantar mais empréstimos B Isto pode ser verdade Mas você considerou que o projeto tribu ta importantes artigos de primeira necessidade e reduz a renda isen ta de imposto a um mínimo A Não havia me dado conta disso Tenho que estudar melhor o projeto Nessa argumentação B ataca a posição de A lançando mais luz sobre o conteúdo direto da medida em questão Sua afirmação se propõe a fornecer a A crenças operativas que visam a despertar atitu des latentes nele 3 A Penso que é bom restringir o crédito na situação atual o que afastará o perigo da inflação B É possível mas por outro lado as restrições ao crédito produ zirão desemprego A Ah Isso mostra outro aspecto do problema Aqui B quer fazer A ver alguns efeitos que a medida pode acarre tar com a esperança de que isso despertará uma atitude latente 4 A As relações sexuais fora do casamento são pecaminosas e inadmissíveis B Pense por um momento qual foi a origem de sua atitude Trata se de uma tradição que você herdou de outras pessoas que por sua vez a herdaram de outras surgiu da necessidade de dar um status social seguro às crianças Naqueles tempos não se conheciam métodos de controle da natalidade dignos de confiança Utilizandose os meios disponíveis hoje em dia já não existe a mesma conexão entre as rela ções sexuais fora do casamento e a prole ilegítima Devemos nos liber tar do jugo da tradição e olhar o problema à luz de uma nova moral A argumentação de B é em parte do mesmo tipo que em 1 e 3 na medida em que quer lançar luz sobre as conseqüências da ques tão examinada A novidade está em que além disso se empenha em Direito e Justiça 359 enfraquecer o ponto de vista de A conscientizandoo da origem psi cológica e sociológica de sua atitude na esperança de que uma com preensão disso como crença condicionante debilitará sua fé na vali dade absoluta de seu ponto de vista Aqueles que nunca considera ram seriamente como suas atitudes morais se acham condicionadas pela história estão inclinados a interpretálas em termos religioso metafísicos é a voz de Deus ou a lei da natureza que lhes fala por meio de sua consciência Um ataque direto às suas crenças religioso metafísicas amiúde será em vão para isto bastando que a argumen tação epistemológica necessária seja tão complicada que poucos pu dessem captála Melhores resultados serão obtidos assim deixando de um lado a posição metafísica e pondo a descoberto a origem his tórica da moral Embora isso não conteste logicamente a asserção metafísica pode abalar a crença nela como fato psicológico No capí tulo anterior parágrafo 59 eu mesmo usei essas táticas em minha crítica ao direito natural e terei oportunidade de usálas novamente ao examinar a consciência jurídica6 5 A Sou a favor de leis que estabeleçam um controle mais rigoro so dos preços Reduzirão os exorbitantes aumentos de preço pratica dos no comércio B Penso que sua opinião sobre os homens de negócios é errada Eles desempenham uma importante função social e na maioria dos casos são pessoas que vivem modestamente A Bem talvez eu esteja equivocado a respeito deles Nessa argumentação B não toca nas crenças operativas de A refe rentes ao controle de preços e seus efeitos mas sim dirige sua artilha ria às crenças de A que presumivelmente condicionam sua suposta atitude de geral antipatia em relação aos homens de negócios 6 A Em minha opinião um imposto para os aparelhos de rádio é uma tolice Não é o rádio por acaso um meio de difusão da cultura B Digame você não é detentor de uma grande quantidade de ações de uma fábrica de aparelhos de rádio A Sou 6 Gostaria de acrescentar que neste livro e em outros formulei também uma critica epistemológica da metafísica moral Entendase por homens de negócios preferivelmente comerciantes IN Tl 360 Alf Ross B Ah agora posso entender melhor seu ponto de vista Esse exemplo mostra como B ao evidenciar os interesses de A e ao sugerir que influem no ponto de vista de A tenta levar 4 aum autoexame crítico que poderá talvez se traduzir numa mudança de ponto de vista Mesmo que não tenha êxito a argumentação de B num debate público será suficiente para desacreditar o ponto de vista de A aos olhos dos outros II Os métodos irracionais podem ser considerados como a contrapartida dos métodos racionais Abrangem todas as técnicas para converter um oponente exceto a argumentação enunciado de asserções É quase impossível encontrar um termo aceito para de signar o oposto de argumentação Prefiro usar a palavra persuasão A técnica de persuasão se baseia no fato psicológico fundamental de que as emoções atitudes emotivas e volitivas podem ser transmi tidas tal como as crenças Mas enquanto a comunicação das crenças pensamentos depende sempre do uso de uma linguagem7 a trans missão das emoções se vale de outros meios gestos conduta mímica humor etc e quando são usados termos lingüísticos estes funcionam de maneira diferente do uso na comunicação de pensamentos não tendo então a função de símbolos não se referindo a um objeto mas sendo sim expoentes diretos das emoções experimentadas Têm podemos também dizêlo carga emocional e não significado descritivo No parágrafo 2 ressaltamos que a linguagem é usada para outras coisas além da expressão de crenças asserções As exclamações e as ordens não têm significado descritivo mas expressam uma emo ção e mediante persuasão sugestiva provocam emoções corres pondentes nos outros Exemplos uma concentração de pessoas prorrompe em gritos ou exclama Viva o rei Alguém brada Abaixo para um orador Um homem exclama Olhe Uma mãe diz Você não deve fazer isso Vai em frente então etc Grito Ai quando me queimo Exclamo Que bonito Espero que ele venha etc A função emotiva da linguagem não se restringe a frases que como as mencionadas estão gramaticalmente no modo imperativo ou desiderativo Muitas frases que estão gramaticalmente no modo 7 Linguagem ordinária linguagem de signos matemáticos sinais ou algum outro sistema com função de símbolo Direito e Justiça 361 indicativo carecem de conteúdo descritivo e têm exclusivamente uma carga emocional Isto ocorre obviamente quando em tom de ordem digo a uma criança Agora vai comer o seu jantar Mas o mesmo se aplica aos enunciados morais mesmo que sejam tomados por muitas pessoas como asserções verdadeiras de uma validade ou retidão morais Cé seu dever é injusto é imoral Mas temos que ir além A função emotiva da linguagem não se limita às expressões que não têm significado descritivo Tal como ressaltamos anteriormente no parágrafo 71 muitas palavras têm ao mesmo tempo significado descritivo e carga emocional Isto é parti cularmente importante porque essa fusão abre caminho para a per suasão insinuada sob a roupagem de uma argumentação aparente mente racional Nestes casos a carga emocional será contudo ins tável e dependerá em grande medida da ênfase disposição e de outros fatores independentes da própria palavra Algumas palavras ou expressões reluzem como jóias Nossa augusta pátria e outras cheiram mal o monopólio plutocrático capitalista Há palavras que apresentam muitos graus distintos de calor e frio e que exibem sutis diferenças nas nuanças de valor quando se trata de elogiar e de censurar de expressar respeito e desprezo aprovação e reprovação admiração e desdém amor e ódio Adeqüamse muito bem para servirem de meios de persuasão e com freqüência são especialmente úteis precisamente porque a função de persuasão está associada à função descritiva Tais palavras são aceitas mais facilmen te sem que o ouvinte chegue a descobrir que foi objeto de persuasão As metáforas desempenham um papel importante Em virtude de seu significado descritivo fluído mas muito insinuante são eminente mente adequadas para a persuasão sugestiva 0a massa cinzenta do povo o rebanho da Igreja os lacaios do capitalismopadre como maneira de designar um sacerdote Toda a poesia lírica se vale de metáforas e a função prática de persuasão que cumprem é particu larmente clara nos hinos e nos cantos patrióticos A metáfora a me lodia e a magnitude do coro se combinam aqui para produzir um poderoso estimulante nacional enquanto o conteúdo descritivo das palavras é completamente esquecido 8 The Fine Art of Propaganda 1939 Cf Charles L Stevenson Ethics and Language 1944 249 e segs 362 Alf Ross É uma tarefa divertida e gratificante analisar um texto relativa mente à função persuasiva das palavras8 tal como fizeram Albert e Elisabeth Lee com as falas de rádio do padre Coughlin Os discursos religiosos patrióticos e políticos é claro são apropriadíssimos para essa análise Seria um erro entretanto crer que a função da persua são se limita unicamente a esses casos Sempre que usamos a lin guagem no nosso cotidiano ordinário utilizamos consciente ou in conscientemente os valores emocionais das palavras A persuasão através da linguagem tem especial interesse para nossos problemas em virtude de sua similitude externa que pode ser maior ou menor com uma argumentação racional Acresçase a isso que como salientamos há também formas de persuasão que não estão ligadas à linguagem O grito fogo num teatro gera pânico não só pela própria exclamação como também pelo tom e o gesto e pela excitação que sucede ao grito Uma mar cha de protesto uma procissão fúnebre o tremular de bandeiras o hastear de uma bandeira o aplauso o repicar de sinos o pranto de uma mulher etc todos estes e muitos outros fenômenos não lingüísticos cumprem cada um a sua maneira sua função própria de transmitir emoção que pode ser utilizada com fins de persuasão A integração religiosa e política de uma comunidade é obtida em gran de medida por meio de cerimônias cuja função é fortalecer e esti mular a unidade emocional do grupo Algo similar ocorre nos diversos tipos de fraternidades O efeito ideológico ligado a um sistema de sanções efetivamente aplicado o ordenamento jurídico constitui uma forma particularmente importante de persuasão Embora esses métodos não lingüísticos de persuasão sejam em si muito interessantes não me estenderei mais acerca deles porque seu estudo não tem importância para nossos problemas 73 CIÊNCIA E PRODUÇÃO POLÍTICA Após esse exame dos métodos de superação dos desacordos prá ticos voltamos agora ao problema do papel que cabe atribuir à ciên cia em relação a isso Tratase do mesmo problema que surge quan do nos perguntamos se a ciência pode dirigir a atividade humana ou Direito e Justiça 363 quando tentamos averiguar que relação há entre a ciência e a políti ca no sentido mais amplo desta última expressão Nosso ponto de partida é que a tarefa da ciência consiste unica mente em estar a serviço da argumentação racional suprindolhe asserções cientificamente sustentáveis e excluindo mediante discri minação crítica as que não são capazes de resistir a um teste cientí fico A persuasão se coloca necessariamente fora do âmbito da ciên cia seja por ocorrer de forma ostensiva ao decidir com base numa atitude e darlhe expressão seja por ocorrer ocultamente ao utilizar a carga emocional das palavras Visto que a palavra tarefa tem simultaneamente um significado descritivo e um significado emotivo esse enunciado sobre a tarefa da ciência requer uma explicação mais rigorosa e uma definição mais precisa Em primeiro lugar o enunciado é uma asserção teórica de caráter semântico Significa que se por ciência entendemos algo assim como um conhecimento sistematicamente desenvolvido e metodicamente comprovado as atitudes emocionais e sua expressão ficam claramente fora do âmbito da ciência Mas essa asserção semântica está claro não diz que os cientistas não podem ou que lhes é vedado expressar atitudes práticas Simplesmente quer dizer que esse aspecto de sua atividade não pode ser descrito como ciência na medida em que usa mos esta palavra com o significado que indicamos há pouco Em segundo lugar o enunciado é formulado também com a inten ção de expressar uma atitude moral uma ética profissional para cien tistas a idéia da objetividade ou pureza da ciência o que significa uma exigência dirigida em nome da honestidade aos cientistas para que se adentram o campo das atitudes e de sua expressão desta quem com a maior clareza possível9 os limites que separam aquela parte de sua atividade que pode reclamar a autoridade e a validade objetiva da ciência e da verdade e aquela outra parte que não pode pretendêlo10 Se não se fizer essa distinção o homem de ciência usurpará em benefício de suas atitudes subjetivas uma autoridade No sentido do inglês policy INTI 9 Os limites nunca podem ser traçados com absoluta precisão 10 Ao enfatizar que estou expressando uma atitude creio que neste caso satisfiz a exigência moral 364 Alf Ross que estas não têm o direito de reivindicar Não se trata simplesmente de um ato desonesto em si mesmo a longo prazo o prestígio e a autoridade da ciência se ressentirão11 Com base na mesma atitude a asserção semântica mencionada se eleva à posição de uma exigência moral aquela parte do labor do cientista que não é de natureza teórica não deveria ser designada com o nome de ciência porque isto contribui para suprimir o limite Por outro lado não se deve entender o enunciado como se pres supusesse uma atitude moral geral contrária ao uso de métodos irracionais com o propósito da persuasão Não podemos imaginar uma comunidade humana que não conheça a persuasão Toda a edu cação e a preparação moral se valem dela e a eficiência do direito depende em alto grau de seu poder ideologicamente sugestivo Jul gados à luz dos ideais humanistas os métodos racionais não são em si melhores nem piores que os irracionais Ambos podem ser empre gados igualmente a serviço do bem e do mal Qualquer apreciação a respeito deles deve levar em conta o espírito no qual são usados e as circunstâncias nas quais são postos em prática Propagandaé o nome odioso que recebe uma argumentação feita sem respeitar a verdade isto é que emprega mentiras ou distorções ou ocultando porções da verdade e recorrendo àquelas emoções que de um ponto de vista humanista são menos admiráveis ambição pelo poder ódio temor inveja vaidade Regimentação é o nome odioso que recebe a persu asão que não respeita a autonomia moral do ser humano Por outro lado informação é a denominação elogiosa que recebe uma argu mentação que respeita a verdade e educação a designação de uma persuasão emocional em harmonia com os ideais humanistas À parte aquelas tendências metafísicofilosóficas que ainda crêem na capacidade da ciência de captar uma retidão rightness a priori podemos afirmar que o princípio da pureza da ciência é hoje geralmen te reconhecido Se contudo continua ensejando polêmicas é porque a em parte a despeito da adesão ao princípio com freqüência ele é objeto de contradição na prática e bem parte há divergências quanto às conclusões metodológicas que são extraídas do princípio a Em relação ao primeiro ponto é um fato que a exigência de pureza é muito mais difícil de observar nas ciências sociais do que nas 11 A última frase do parágrafo expressa uma asserção que condiciona minha atitude Direito e Justiça 365 ciências naturais Isto se deve à circunstância de que o cientista do social numa medida muito superior que o cientista da natureza está comprometido emocionalmente com respeito ao tema de seu trabalho Nossa emoções mais fortes são aquelas que estão dirigidas às circuns tâncias de nossos semelhantes Uma pessoa cujo trabalho se refere a isso é ela mesma parte do tema que se ocupa numa medida muito maior do que uma pessoa dedicada ao estudo dos fenômenos naturais Por esta razão é muito mais difícil libertar as ciências sociais do pensa mento pleno de desejo e da ideologia Se alguns matemáticos experi mentaram uma incisiva preferência pelos círculos e outros pelos qua drados ou se alguns físicos a experimentaram pela luz e outros pelo som é concebível que nesses campos se faria sentir também uma inclinação semelhante ao preconceito ideológico Essas circunstâncias explicam o fato de que as ciências sociais foram e majoritariamente ainda são uma mescla infeliz de ciência e política No domínio do direito constitucional Hans Kelsen demons trou com infatigável empenho de que modo grandes setores dele foram escritos para defender os interesses de um regime existente De maneira magistral ele pôs a nu as manipulações e as imposturas que as atitudes políticas empregam consciente ou inconscientemen te para se disfarçar de ciência tentando se atribuir assim de forma enganosa a autoridade que o nome de ciência confere Em relação à economia Gunnar Myrdal em sua obra já clássica The PoliticalElement in the Development of Economic Theory mostrou numa brilhante análise como as atitudes políticas afetam secretamente os conceitos fundamentais e a elaboração da teoria econômica No conceito de valor na teoria dos preços e do juro nas idéias de bemestar público harmonia de interesses proporção equilíbrio estabilidade nas idéias de funcionamento natural liberdade administração econômica e em muitas outras partes elementares da teoria econômica deslizam ocul tos componentes de atitude que conferem à doutrina um direcionamento político ao mesmo tempo que essa doutrina é ofere cida como uma descrição objetiva e científica da realidade Numa obra posterior Myrdal demonstrou que na sociologia as coisas ocor rem de maneira semelhante12 b É um bom sinal uma prova de maior entendimento epistemológico e de um respeito mais vivo ao ideal de uma ciência 12 Gunnar Myrdal An American DUemma 194411045 e segs 366 Alf Ross pura o fato de recentemente terse experimentado em muitas áreas das ciências sociais uma poderosa reação contra a retrógrada influ ência da política sobre a teoria Max Weber foi o pioneiro e muitos outros seguiram seus passos Esta mesma reação entretanto explica talvez porque muitos estudiosos têm tirado conclusões metodológicas excessivas da idéia de pureza da ciência Na obra de Kelsen em alguns jovens juristas suecos e em muitos proeminentes sociólogos norteame ricanos por exemplo encontramos a exigência metodológica de que a ciência se atenha estritamente aos fatos e à sua explicação teórica e se abstenha de toda tentativa de converter o conhecimento teórico em diretriz para os esforços práticos este aspecto deve ser deixado aos políticos O lema é a ciência é uma coisa a política outra13 Myrdal demonstrou brilhantemente que esse idealismo em busca da objetividade que se afigura tão atraente excedese em suas pre tensões14 Em primeiro lugar a exigência ideal não pode realizar seu propósito Em segundo lugar na medida em que pudesse realizálo impediria toda cooperação frutífera entre a teoria e a prática No tocante ao primeiro ponto Myrdal mostra que o perigo ideoló gico não consiste tanto na formulação ostensiva de conclusões práti cas extraídas da teoria como nas atitudes ocultas que estão implíci tas nos conceitos empregados A maior parte da terminologia é toma da de empréstimo da linguagem cotidiana e tem uma carga emocio nal É na realidade impossível que o cientista social se eleve acima do meio social em que vive e liberte seu espírito de toda inclinação emocional A idéia de aterse aos fatos a todo custo é por conse guinte uma ilusão e tampouco necessária à pureza da ciência Essa exigência é satisfeita uma vez as atitudes ocultas são trazidas à luz do dia como pressupostos explícitos As conclusões adquirem então um caráter hipotéticoobjetivo são sustentadas sob a condição de que se aceite um determinado conjunto de atitudes A outra objeção de Myrdal tem talvez um peso ainda maior Se a ciência realmente tivesse de se abster de toda formulação prática de seus resultados poderíamos então imaginar uma compilação de todo o conhecimento teórico da qual o político teria que extrair por si mesmo o que necessitasse Com freqüência porém simplesmente 13 Cf Myrdal op cit p 1041 e segs 14 Loc cit Direito e Justiça 367 não o encontraria O conhecimento especial que é necessário para a solução de problemas práticos específicos só é alcançado em vista desses precisos problemas Para produzir o conhecimento técnico re querido a investigação teórica tem que ser organizada planejada e levada a cabo sob o norteamento dos problemas práticos Podese juntar a fim de complementar a linha de pensamento de Myrdal que esse estado de coisas já é bem conhecido nas ciências naturais As ciências técnicas ou aplicadas as ciências da medicina agricultura construção de pontes etc não consistem tãosó em uma adequada seleção e coordenação dos resultados das ciências básicas são ramos específicos da ciência cuja investigação é organi zada em vista de objetivos práticos específicos Seria inconcebível que um médico obtivesse sua instrução de uma seleção adequada das ciências básicas química biologia fisiologia etc A medicina é uma ciência específica no sentido de que à luz do conhecimento geral das ciências básicas investiga por iniciativa própria fatos e leis científicos segundo sua relevância operativa para uma atitude funda mental a saber que é importante preservar e promover a vida e a saúde do ser humano Do mesmo modo a física nuclear é organizada em relação com a atitude de que é desejável utilizar a energia atômi ca para a construção entre outras coisas de bombas Não ocorrerá a ninguém questionar por essas razões a pureza científica das ciências naturais aplicadas O dentista não decide por si mesmo a atitude a premissa valorativa que rege sua investigação não é sua O cientista nuclear não afirma o valor de produzir bombas atômicas como tampouco o estudante de ciências médicas afirma o valor de preservar e salvar a vida humana Sua ciência é puramente objetiva e hipotética tomados estes fins como dados o conhecimen to resultante é operativo com respeito a eles A premissa hipotética afeta a pureza da ciência tanto como a afeta a escolha que o es tudioso sempre tem que fazer antes de pôrse a trabalhar num ramo da ciência em lugar de fazêlo em outro Alberto de Santos Dumont teria se consumido em angústia quando soube que o aeropiano começava a ser utilizado com fins bélicos para destruir obras e vidas humanas Essa tradicional postura de isenção do cientista exato quanto aos tipos de uso que se farão do fruto de suas pesquisas e de seus inventos quando não encomendados e esse amoralismo tão útil e segundo muitos até necessário à objetividade e elevada eficiência do labor cientifico neutro e independente de ideologias valoração moral e autoreflexão tudo em nome de uma pureza da ciência deixando a classe científica pairando nas alturas comodamente apartada do moral ou seja da responsabilidade pelas conseqüências de suas obras dispensada de emitir juízos de valor sobre a pragmaticidade de suas criações sempre atraíram para os cientistas 368 Alf Ross A escolha da premissa é determinada pelo desejo de que os resulta dos da ciência aplicada tenham um valor operativo em relação com atitudes práticas O estudioso portanto só aceita de forma hipotética os objetivos vigentes A ciência da agricultura é motivada pelo fato de que as pessoas trabalham na agricultura e querem obter o maior pro veito econômico possível A ciência da engenharia é motivada pelo desejo de ser capaz de resolver problemas técnicos diversos É claro que nada impede o desenvolvimento de uma ciência aplicada referente à construção de pirâmides de vidro É evidente que se ela não se de senvolveu até hoje é porque não se experimentou um desejo prático correspondente Tal ciência seria desprovida de relevância operativa Cabenos agora indagar se é possível aplicar às ciências sociais pontos de vista metodológicos semelhantes Isto significaria que o cientista social aceita hipoteticamente da mesma maneira impessoal as atitudes políticas vigentes nos círculos que detêm o poder na co munidade ou seja que tal como seus colegas das ciências naturais aplicadas põe seu conhecimento à disposição de objetivos dados sem adotar por si nenhuma atitude com relação a eles Em princípio essa indagação pode ser respondida na afirmativa embora hajam algumas diferenças vitais que fazem com que o sonho corrente de que as ciências sociais cheguem algum dia a constituir uma enge nharia sociai tenha que continuar sendo um sonho Uma dessas diferenças é que enquanto é possível fixar as discipli nas das ciências naturais aplicadas em objetivos relativamente unívocos15 eficiência na agricultura na fabricação de bombas atômicas na cons trução de pontes não ocorre o mesmo com as ciências sociais aplica das Não existe um objetivo correspondente relativamente simples das ciências ditas exatas e com justiça a acusação de que essencialmente e em ultima instância não passam de serviçais do poder político e do poder econômico A propósito já há muito aprendemos a desconfiar da palavra pureza A afirmação de Ross de que ciência é uma coisa política outra a despeito de ser conceitualmente óbvia não tem nenhuma aplicação legítima na prática a menos que a relação entre cientistas exatos e poder político não fosse de subordinação dos primeiros ao segundo 0 possível argumento de que não compete ao cientista das ciências naturais aplicadas opinar a respeito do tipo de emprego da sua obra faz dele um gênio alienado e manipulado além de inevitavel mente nos lembrar da fábula trágica do Victor Franskenstein de Mary Shelley IN TJ 15 0 contraste não é absoluto Também as ciências naturais aplicadas operam em alguma medida com objetivos incomensuráveis Um receptor de rádio não pode possuir simultaneamente um máximo de seletividade e um máxi mo de qualidade de reprodução um motor não pode ter ao mesmo tempo um máximo de velocidade e um máximo de potência 0 contraste é entretanto significativo A inevitável escolha entre diversas possibilidades técnicas indispensáveis numa situação específica geralmente não terá caráter político e será aceita pelo interessado como uma solução técnica para suas necessidades Direito e Justiça 369 em política As tentativas de elaborar um sob a forma de bemestar da comunidade saúde sociai e coisas semelhantes são ilusórias A tarefa política terá sempre como referência uma multiplicidade de ati tudes que não constituem um sistema mas sim um conglomerado Analisando uma situação específica descobriremos uma grande varie dade de componentes de desejo que não refletem simplesmente os interesses de diferentes grupos sociais mas também uma diversida de de desejos e necessidades dentro do mesmo grupo Não há uma simples necessidade poiítica um simples objetivo político que pos sam ser definidos e isolados como o são os objetivos técnicos A tarefa política é sempre uma tarefa de integração um ajuste de con siderações incomensuráveis Há problemas de maximização e proble mas de distribuição considerações de economia de política partidá ria e de estratégia militar considerações sobre emprego e desempre go inflação balança comercial considerações a curto e longo prazo ideais culturais e sociais o desejo de segurança em matéria de políti ca exterior etc Tudo isso reflete uma multiplicidade de atitudes que têm que ser pesadas e ajustadas A decisão política portanto tem sempre o caráter de uma resolução não de uma solução como a solução de um problema técnico Ademais as atividades políticas com freqüência não apresentam clareza São incertas e nebulosas Nossas atitudes são condicionadas por nossas crenças Se estas últimas são incertas e nebulosas como o são por certo com respeito a conexões sociais enormemente com plicadas também o serão as atitudes Não possuímos conhecimento suficiente dos fatos sociais e de sua correlação para saber aquilo que queremos Ninguém pensou no pleno emprego como objetivo en quanto as crises econômicas foram consideradas fenômenos naturais inevitáveis Por isso o papel da teoria não é puramente técnico Deve nos orientar também no que tange ao próprio objetivo deve escla recer e precisar as atitudes políticas corrigindo e complementando as crenças condicionantes ou indicar os objetivos que proporiam aque les que detêm o poder se tivessem uma concepção mais adequada da realidade do que a que realmente têm16 As diferenças que ressaltamos explicam porque a ciência social apli cada tem que começar e terminar distintamente das ciências naturais 160 contraste tampouco é absoluto neste ponto 0 desejo de construir automóveis não surge enquanto não existe um certo conhecimento de tecnologia 370 Alf Ross Tem que começar de outra maneira porque não encontra suas premissas no mesmo estado de elaboração e clarificação que as ciên cias naturais O primeiro passo portanto deverá ser estudar e tabular as atitudes políticas fatuais tal como se expressam nos interesses simpatias aspirações e ideologias dos distintos grupos influentes Mas isto não passa de matériaprima a ser elaborada É preciso investigar se os diversos objetivos são compatíveis entre si ou exigem um contrabalanceamento recíproco é preciso examinar se estão condicio nados por uma inadequada concepção da realidade que reclama ser corrigida à luz de um conhecimento melhor e mais completo Só depois disto o cientista do social alcança o ponto no qual pode formular suas premissas hipotéticas a lista de considerações e objetivos políticos que haverão de determinar a direção de suas investigações e de suas con clusões práticas Mesmo quando o problema assim descrito possa ser em princípio colocado e resolvido como um problema objetivo cientí fico estará circundado entretanto por tantas dificuldades e incertezas que na prática as opiniões e preferências pessoais participarão inevi tavelmente da elaboração da lista de objetivos Na ciência social aplica da as pressuposições emocionais não podem ser objetivadas na mes ma medida que nas ciências naturais Dificilmente o cientista social deixará de ser em algum grau também um reformador social Talvez ainda mais importante seja frisar que a ciência social aplica da deve terminar também de outra maneira jamais pode ser racional mente concludente como o é a ciência natural isto é dar uma solução inequívoca aos problemas da ação Neste contexto não aludimos a defeitos nas crenças operativas que se devem aos presentes hiatos hoje existentes nas ciências sociais Referimonos aqui a uma questão de princípio que continuaria sendo válida ainda quando conhecêsse mos cabalmente os fatos e mecanismos da vida de uma comunidade O fator decisivo é o fato das considerações múltiplas Nunca será pos sível elaborar diretivas técnicas sobre o pleno emprego do mesmo modo que se pode suprir diretivas para a fabricação de bombas atômicas O problema prático do emprego e desemprego não pode ser isolado do contexto social Os métodos de intervenção variam com o contexto e devem ser avaliados com base na totalidade das considerações e não meramente por sua eficácia no combate do desemprego Mesmo após haver feito a mais exaustiva coleta de todos os fatos e suas correla ções sempre haverá um salto a ser dado o que significa que todas as Direito e Justiça 371 considerações são levadas em conta e pesadas numa resolução isto é num ato irracional A ciência social jamais pode pretender uma solu ção quer dizer uma diretiva que brote inequivocamente do objetivo dado em conexão com o conhecimento técnico Relativamente a isso apresentase um especial problema metodológico a saber se o cientista social deve empreender por si mesmo esse salto se deve realizar essa ponderação de considera ções que se traduz numa resolução ou se deve limitarse a dispor as considerações sobre a mesa e deixar que os homens de ação retirem as conclusões práticas o problema é agudo no atual debate sobre metodologia jurídica ver parágrafo 79 É óbvio que a atividade de que estamos falando não é de natureza científica Todavia da idéia de pureza da ciência não podemos inferir que tal atividade não deva ser efetivada por um cientista É mister simplesmente enfatizar que o cientista não atuaria ali como represen tante da ciência Ademais o teórico goza de melhor posição que o prático para empreender a ponderação visto ser ele o detentor de conhecimento direto e amplo dos fatos relevantes e de suas implica ções Mesmo que forneça esta informação ao prático esta não pro porcionará a este último a mesma compreensão das diversas consi derações e possibilidades Pensemos na relação paralela entre um médico e seu paciente Por exemplo um médico pode dar a um paciente um conselho preciso sobre cirurgia e sua opinião pode ser considera da obrigatória pelo paciente pois este entende que o médico está em melhor posição para apreciar as possibilidades à luz dos interesses do próprio enfermo Mas a ponderação das considerações pode ser tão pouco decisiva que o médico prefira informar ao paciente com maior amplitude para que este decida Acho portanto que é compatível com a idéia da pureza da ciência e que é inclusive conveniente que seja o teórico quem empreenda o salto irracional e faça conhecer o resultado sob forma de instruções ao prático As instruções do teórico certamente jamais podem eximir o prático da resolução final e da responsabilidade final Para esclarecer isto voltemos ao exemplo das instruções do médico ao paciente O conselho do médico se baseia na atitude geral referente à preservação da vida e da saúde em conexão com seu conhecimento profissional Mas para o paciente podem haver outras considerações que são também determinativas Do mesmo modo as diretivas que fornece a 372 Alf Ross economia aplicada estão determinadas com base no conhecimento do economista das condições econômicas enquanto é perfeitamente con cebível que o político responsável necessite aplicar também outros cri térios por exemplo aqueles que se referem à estratégia militar e a tática da luta partidária É sem dúvida desejável uma racionalização do comércio varejista com base em critérios puramente econômicos Todavia muitos políticos se opõem a essa idéia porque por funda mentos ideológicos ou em função de táticas partidárias julgam van tajoso continuar tendo uma classe de pequenos comerciantes inde pendentes Apesar dos bons argumentos econômicos Bismarck era contrário à liberdade industrial porque via um perigo para o Estado no crescimento de uma indústria em grande escala A socialização do comércio na Rússia foi levada a cabo não tanto por razões econômi cas como por razões políticas para desenvolver o movimento coope rativo na agricultura e com isso a coerência do novo Estado Esses exemplos podem ser generalizados da maneira seguinte o prático responsável situado no meio de uma situação real de ação deve levar em conta todas as atitudes e considerações que possam se originar das circunstâncias operativas Sua política é integral O teórico nunca se acha igualmente in médias res Suas premissas hipotéticas de atitude são estilizadas e simplificadas As condições operativas e as considerações condicionadas por elas que invoca estão restritas ao campo de visão próprio de sua profissão particular Suas observações são abstratas suas conclusões políticas diferenciais Isso explica porque todos os especialistas do mundo jamais torna rão o político desnecessário A tarefa irredutível que cabe a este é a integração das políticas diferenciais de todo o conjunto de especialis tas O especialista vê as coisas profissionalmente com um único olho Ross comete aqui uma impropriedade cultural visto que a figura e conceito do governantesábio ou govemantefilósofo ariston o possuidor da maior soma de virtudes ou excelências sabedoria senso de justiça temperança coragem e riqueza moderada não correspondem suficientemente ao conceito moderno de cientista mesmo se considerarmos o conceito intercambiável de sábio o francês sage evoluindo para savant e o inglês scholar 0 sábio platonicamente falando nesse contexto não é apenas aquele que tem conhecimento para fazer o intelectualmente capal mas sim o mais conjuntamente virtuoso 0 ariston como acima indicado é muito mais do que o máximo detentor de conhe cimento intelectual habilidades correlatas e carisma qualidades tão comuns nos políticos Se assim fosse os indiscutíveis governantes soberanos e líderes políticos de todos os tempos de Alexandre e Napoleão a Bill Clinton teriam sido capazes de assegurar efetivo bemestar em todos os aspectos a todos os súditos ou cidadãos das comunidades que governaram ou governa sem uma única exceção mesmo do mais humilde dos membros da sociedade Ademais a distinção estrutural e funcional entre sábio e político tão perceptível e flagrante na realidade moderna era bastante vaga no mundo grego e certamente ausente no platonismo Ver A República e As Leis de Platão constantes nesta mesma série Clássicos Edipro IN TJ Direito e Justiça 373 O político devia ter também olhos na nuca A idéia platônica de que os cientistas são os convocados para governar o Estado se funda na falsa idéia intelectualista de que para realizar a ação correta basta possuir o conhecimento correto Nos Estados Unidos de hoje essa idéia perdura no sonho de que as ciências sociais alcançarão um dia tal fastígio de perfeição que os cientistas sociais os técnicos sociais e os mecânicos sociais tornarão os políticos supérfluos e controlarão o Estado com a mesma eficiência prática que exibem seus colegas das ciências naturais quando constróem uma fábrica de automóveis17 Do lado oposto Hans J Morgenthau Scientifíc Man v Power Politics 1946 apresentou uma crítica aguda à crença racionalista na capaci dade da ciência para resolver problemas sociais e exercer controle da vida social por engenharia social Concordo com este ponto de vista mas não com a argumentação do autor pois Morgenthau começa por ressaltar a visão de que as ciências sociais não são capazes de prever com certeza o curso da vida social estando limitadas a um cálculo de tendências prováveis op cit126 e segs 151 Mesmo que isto fosse verdadeiro dificilmente seria decisivo O ponto relativo de incerteza não explica a diferença fundamental que distingue os problemas soci ais dos problemas das ciências naturais aplicadas Como é explicado no texto a diferença decisiva deve ser buscada nas pressuposições emo cionais O que é especificamente político é a integração de múltiplas considerações Cada uma destas pode ser baseada em conhecimento científico mas a integração em si é um ato irracional além do domínio da ciência causai procura produzir acordos práticos influindo sobre o ponto de vista de um oponente por meio da argumentação e da per suasão Dentro dessa estrutura desempenham um papel as asserções racionais argumentativas baseadas na experiência comum ou nò co nhecimento científico Mas sua função não é provar uma verdade mas convencer um oponente isto é convertêlo ao ponto de vista próprio 74 DISCUSSÃO Durante séculos a teoria política tem marchado sob o estandarte do absolutismo filosófico e do racionalismo O problema da ação po 17 Com relação ao problema do papel do jurista como técnico social os representantes típicos e mais influentes de um racionalismo vigoroso são Harold D Lasswell e Myres S McDougall Ver seu trabalho conjunto Legal Education and Public Policy em Lasswell TheAnalysis of PoliticalBehaviour 1947121 e segs e Myres S McDougall The Law School of the Future YaleL J 1947 1345 374 Alf Ross lítica tem sido considerado um problema relacionado com a discussão política como uma maneira de determinar à luz de princípios racionais qual é a ação correta Este absolutismo e racionalismo caracterizaram não só a teoria como também a prática não só filósofos como tam bém os políticos juristas e os leigos As ideologias políticas têm sido proclamadas e aceitas como verdades racionais e a argumentação de política jurídica tem assumido a forma de deduções a partir das verdades eternas da justiça e do direito natural Provavelmente sob essa roupagem metafísica sempre estiveram ocultos pensamentos mais ou menos imperfeitos baseados numa con cepção operativa da realidade sobre uma base empírica Somente nos tempos modernos nas últimas gerações tentouse seriamente dar à discussão política uma base científica Entretanto a essas ten tativas faltou suporte metódico numa teoria básica da natureza da argumentação prática de sua função e de sua mecânica Pareceme que a teoria delineada neste capítulo constitui uma primeira tentativa fragmentária nessa direção Baseiase no ponto de vista fundamental de que a discussão política não se dá no plano da lógica não se trata de provar verdades ela se dá no plano psicológicotécnico Nada há de novo sob o sol No que se relaciona a Morgenthau a tese aqui sustentada significa o reconhecimento de uma disciplina que desempenhou um papel considerável na antigüidade clássica mas que desde os dias de Descartes foi totalmente esquecida a retórica Para os gregos a retórica era diferente do estudo da oratória e mais impor tante que esta Tal como se depreende dos Tópicos e da Retórica de Aristóteles era um estudo amplo da técnica que se deve empregar para obterse o apoio dos outros mediante uma ação adequada sobre seus pensamentos e espíritos E este é o objetivo do político prático e político teórico Isto contrariamente ao que os racionalistas apresen tam nada tem a ver com o cinismo Essa técnica só se torna cínica se for exercida sem o respeito à verdade e os idçais humanistas de nossa civilização A tarefa da ciência é precisamente fomentar a argumenta ção política com o maior respeito possível pela verdade Charles L Stevenson e Ch Perelman18 entre outros contribuíram para a fundamentação de uma nova retórica 18 Ver Charles L Stevenson Ethics and Language 1944 Ch Perelman Réflexions sur Ia justice Revue de 1lnstitut de Sociologie n 21951 Bruxelas Raison éternelle raison historique Actes du VI Congrès des Sociélés de Philosophie de Langue Française 11952 347 Ch Perelman e L OlbrechtsT yteca Rhétorique etPhiosophie 1952 Capítulo XV O Domínio e a Tarefa da Política Jurídica 75 DELIMITAÇÃO ENTRE A POLÍTICA JURÍDICA E AS OUTRAS POLÍTICAS Se partirmos de uma teoria idealista do direito não será difícil esta belecer qual é a tarefa específica da política jurídica que é o que a distingue das outras políticas O direito tem o seu objetivo em si mes mo aperfeiçoar a idéia de justiça a ele inerente A política jurídica é a doutrina que ensina como atingir esse objetivo o qual distingue a po lítica jurídica da política do bemestar da política cultural e da política do poder que são determinadas com base em objetivos diferentes econômicos culturais e políticos É possível também adotar o ponto de vista de que a política jurídica é um ramo específico da política cultural aquele ramo que está encerrado na idéia cultural específica do direito Se rejeitarmos em contrapartida tal como fizemos a concepção de uma idéia específica do direito que confere a este um valor abso luto por si mesmo e em lugar disso considerarmos o direito positivo como uma técnica social ou como um instrumento para atingir obje tivos sociais de qualquer tipo econômicos culturais e políticos en tão a questão se tornará mais complexa Parece portanto que o ponto de partida será que a política jurídi ca não é determinada por um objetivo específico mas por uma técni ca específica abarca todos os problemas práticos que surgem do 376 Alf Ross uso para o atingimento de objetivos sociais da técnica do direito em particular da legislação Assim definida entretanto a política jurídica ocuparia um domínio muito maior do que aquele que em geral se considera como legítimo campo de ação do jurista Um orçamento do Estado impostos taxas e empréstimos gover namentais são fixados impostos e aumentados mediante sanção legislativa A despeito disso os problemas que se enquadram nesses rubros não são considerados próprios da política jurídica mas ques tões que pertencem à política financeira e à esfera da competência dos economistas Do mesmo modo os problemas do regramento das relações entre as classes sociais em particular o regramento das condições de trabalho da previdência social e do apoio aos necessita dos pertencem à política social por mais que tais medidas sejam levadas a cabo por meio da legislação os problemas de câmbio e das restrições à importação e à exportação pertencem à política comercial os problemas de preços produção e distribuição à política industrial e da produção os problemas educativos religiosos etc à política cultural os tratados à política exterior as questões militares à polí tica de defesa nacional e assim sucessivamente Deixando de lado questões puramente lingüísticas de formulação a orientação exclusiva nestes e noutros problemas políticos tem que ser proporcionada naturalmente pelos especialistas nos respectivos campos economistas educadores militares e especialistas em políti ca exterior e não pelos juristas Qual é então o lugar reservado à específica política jurídica como esfera de competência dos juristas Talvez pudéssemos pensar que tal esfera compreende por exemplo os contratos a responsabilidade extracontratual seguros registros casamento a maioridade a he rança a legislação penal e outros temas que por tradição constituem o território principal dos juristas Quando se aceita todavia que tampouco nessas esferas o direito existe por si mesmo mas que tem que ser valorado segundo sua função em relação a objetivos e atitu des que se acham fora do direito parece então que inclusive esses problemas de política devem competir aos diversos especialistas não jurídicos Por exemplo não está por acaso a regulamentação da res ponsabilidade extracontratual e a dos seguros estreitamente ligadas Direito e Justiça 377 aos problemas econômicos Ou se pode opinar acerca de uma lei de regulamentação das compras por cotas sem considerar a importân cia desse sistema para a produção e o investimento Dessas reflexões concluise que a natureza da política jurídica não pode ser buscada num objetivo específico tal como por exemplo a ciência da medicina a ciência da agricultura ou a ciência da constru ção de pontes estão organizadas em relação a um objetivo específi co Se é para a política jurídica ser uma disciplina com conteúdo pró prio a posição terá que ser a inversa Sua natureza particular tem que se achar condicionada por um corpo particular de conhecimen tos que é relevante logo que a técnica do direito seja empregada para a solução de problemas sociais independentemente do objetivo destes Este corpo especial de conhecimentos só pode ser buscado no conhecimento sociológicojurídico que versa sobre a conexão cau sai entre a função normativa do direito e a conduta humana ou tam bém poderíamos dizer que versa sobre as possibilidades de influir na ação humana mediante o aparato das sanções jurídicas A política jurídica é sociologia jurídica aplicada ou técnica jurídica Creio que esse ponto de vista pode lançar luz sobre as questões que colocamos Não há problemas de legislação que sejam especifi camente problemas políticojurídicos ainda que todo problema de legislação tenha um aspecto políticojurídico Entretanto em situa ções diferentes esse aspecto políticojurídico pode desempenhar pa péis muito diversos com o resultado de às vezes passar ele desper cebido e às vezes ser considerado o único aspecto do problema Se por exemplo é necessário que sejam aprovadas medidas polí ticofinanceiras tais como um novo imposto o estabelecimento de poupança obrigatória ou o aumento de certas taxas o interesse não se centra no problema técnicojurídico isto é o primeiro elo da cor rente causai a saber entre a aprovação da norma e seu cumprimen to mas nos efeitos ulteriores vinculados à inflação à balança comer cial ao emprego e o desemprego etc Os problemas políticojurídicos têm importância secundária permanecem no fundo ou são passados por alto porque apontam objetivos temporários e em transformação o que é usualmente entendido por política no sentido mais estrito Ao contrário os problemas técnicojurídicos são predominantes quando são consideradas instituições profundamente enraizadas na 378 Alf Ross estrutura econômica e ideologia relativamente permanentes da co munidade tais como a propriedade os contratos e o casamento Precisamente porque as atitudes ideológicas e os objetivos que se encontram por trás dessas instituições são experimentados pela tra dição como uma coisa quase óbvia e não problemática situada muito acima do político em sentido estrito tais atitudes e objetivos não atraem a atenção Não são discutidos e dificilmente são experimenta dos de forma consciente Todo o esforço espiritual se concentra nas questões técnicojurídicas como devem ser formuladas as normas jurídicas para estimular aquela conduta que melhor se harmonize com as atitudes e objetivos pressupostos O jurista e o especialista em política jurídica encontram aqui sua tarefa A questão se torna políticojurídica na medida em que não é política em sentido estrito O contraste não é absoluto É uma questão de graus de diferença e estados de transição Ainda assim a intervenção política mais efêmera tem seu aspecto políticojurídico Em torno da cambiante legislação tributária e seus problemas puramente políticofinanceiros com o desenrolar do tempo se acumula todo um conjunto de proble mas técnicojurídicos que focalizam a direta relação sociológicojurí dica entre norma e conduta Desenvolvese um direito tributário De maneira similar desenvolvese um direito administrativo um direito social etc Por outro lado mesmo as instituições mais centrais não são colocadas acima da transformação política e da reconsideração com critério político Juntamente com a evolução dinâmica de uma comunidade se produz também uma transformação em seu funda mento ideológico O direito dos contratos e da propriedade experi mentou variações fundamentais no período transcorrido entre o zêni te do liberalismo e a atual legislação social Essa evolução trouxe seus próprios problemas e conflitos os quais ultrapassam o campo técni cojurídico até atingir os efeitos sociais de amplo alcance da legisla ção apreciados em relação com os interesses encontrados dos diver sos grupos dentro da comunidade Tampouco se deve entender que o contraste significa que o jurista deve limitarse estritamente aos problemas técnicojurídicos à ver dadeira política jurídica deixando todas as demais questões aos ou tros especialistas Ocorre freqüentemente o jurista dedicado a pro blemas de iege ferenda numa esfera que tem caráter predominante mente técnico se ocupar do grupo de problemas como um todo quer Direito e Justiça 379 dizer também daqueles aspectos que pressupõem familiaridade com temas econômicos ou outros que não são de caráter sociológicojurí dico Um relatório sobre um projeto de modificação da regulamenta ção das compras por cotas preparado por um jurista incluirá por exemplo uma investigação das funções econômicas desse método comercial e da estrutura econômica e hábitos do comércio varejista Nessa medida o jurista não se apresenta como especialista a título próprio mas toma em empréstimo o seu conhecimento alhures Nada há de mau nisto desde que o faça com discernimento e tato Entre tanto o perigo de diletantismo é óbvio se o jurista em lugar de confiar em outros especialistas se atribuir capacidade para ter domí nio sobre problemas que estão fora de seu campo profissional Os diferentes papéis que desempenha o conhecimento jurídico especialista se refletem na composição das comissões que se costu ma nomear para produzir relatórios sobre reformas legislativas O papel do jurista em tais situações é com freqüência duplo Por um lado é um especialista em seu campo específico o da sociologia jurídica por outro lado ele é quem amiúde depois que os especia listas fizeram conhecer sua opinião pesa e estima todas as conside rações e alcança a formulação que integra de melhor maneira todos os componentes motivadores Tal como se disse anteriormente essa atividade não é de natureza teórica mas prática A política jurídica nessa medida é uma arte uma habilidade prática na qual o valor do resultado é medido por ser de fato aceito pelos outros particular mente por aqueles que detêm o poder como a decisão que melhor harmoniza todas as atitudes dominantes e as crenças operativas O jurista está profissionalmente treinado nessa arte e em tal medida sua tarefa consiste em ser árbitro dos especialistas Isto é demons trado na prática pelo fato de que se costuma confiar a advogados a presidência de comissões integradas por diversos especialistas Conseqüentemente a política jurídica abrange na prática os se guintes elementos 1 os problemas especificamente técnicojurídi cos de natureza sociológicojurídica política jurídica em sentido pró prio 2 os outros problemas políticos estreitamente ligados àqueles na prática que por sua índole pertencem na realidade ao campo profissional de outros especialistas e a respeito dos quais o jurista aparece portanto como um especialista de segunda mão 3 a ati vidade de pesar considerações e decidir como árbitro dos especialistas 380 Alf Ross e 4 a formulação lingüística da decisão a qual que se diga de pas sagem dificilmente pode ser separada da própria decisão numa linguagem jurídica aceitável e que se harmoniza com o corpo de nor mas existente1 76 POLÍTICA JURÍDICA DE LEGE FERENDA E DE SENTE NUA FERENDA Até agora a política jurídica foi principalmente considerada como política legislativa Entretanto o direito não é criado unicamente pelo legislador Vimos capítulo IV que toda administração da justiça con tém um ponto de decisão que transcende a atividade intelectual A decisão judicial contudo é menos livre do que a decisão legislativa A autoridade que administra o direito em particular o juiz se sente obrigada pelas palavras da lei e as outras fontes do direito Todavia estas sempre deixam espaço para a interpretação e a norma jurídica concreta na qual se traduz a decisão é sempre criação no sentido de que não é uma mera derivação lógica de regras dadas Com base nesses fundamentos a política jurídica não só cumpre o papel de guia para o legislador como também o de guia para as autoridades que administram o direito em particular os juizes Essa forma de política jurídica é a que aparece na contribuição que a doutrina faz à interpretação Demonstrouse antes de que maneira especial as considerações jurídicas teóricas se confundem com as considerações jurídicas políticas De acordo com as premissas de atitude adotadas a interpretação doutrinária pode ser uma asserção teóricojurídica sobre a maneira como terão que reagir os tribunais com toda probabilidade ou um conselho jurídicopolítico que indica ao juiz como este deve reagir 77 O FUNDAMENTO TEÓRICO DA POLÍTICA JURÍDICA Toda política poHc cientificamente fundamentada tecnologia é teoria aplicada e em função disto assoma a questão qual conheci mento teórico é o que encontra aplicação na política jurídica 1 No parágrafo 83 in fine é mencionado um possível quinto campo para a política jurídica Direito e Justiça 381 No que tange à política jurídica em sentido estrito o conhecimento que encontra aplicação aqui é o conhecimento sociológicojurídico da conexão causai entre a aprovação das normas e a conduta humana ou o conhecimento de como é possível influir na conduta humana por meio da maquinaria jurídica a qual é por sua vez determinada pelas normas O conhecimento relevante para a política jurídica em sentido estrito lida com problemas tais como por exemplo os seguintes que influência tem a formulação de normas relativas a danos e prejuízos sobre a cautela que as pessoas observam em várias situações Que papel desempenham em relação a isso as facilidades para obtenção de um seguro que cubra esse risco de responsabilidade Que impor tância têm as normas que regram as hipotecas e outras instituições de garantia com respeito ao crédito e o comércio Qual é a influência do sistema compraaluguel sobre as disponibilidades financeiras das pes soas e em que medida constitui uma tentação para atos criminosos Em princípio a resposta para perguntas desse tipo é teoricamente baseada na sociologia jurídica Entretanto hoje em dia não existe uma sociologia jurídica que seja uma ciência sistemática apoiada em investigações metódicas em todo caso tal disciplina está apenas engatinhando O jurista opera com conhecimentos obtidos da experi ência comum da vida complementados por dados estatísticos mais ou menos fortuitos Isso explica porque no raciocínio políticojurídico a conjetura e o cálculo vago substituem o conhecimento exato O enunciado que se segue tomado de um relatório sobre a responsabilidade por danos é um exemplo típico da imprecisão que com freqüência temos de acei tar inclusive em problemas de fundamental importância no âmbito da sociologia jurídica É multo provável que a adoção de uma regra jurídica no sentido de que a indenização por danos seja paga pela pessoa que os causou com sua conduta irresponsável contribuirá para manter a atitude gerai de que é mister proceder com cuidado em relação aos outros Ademais é concebível que a medida um seguro geral de respon sabilidade se traduzirá num perigoso relaxamento do cuidado ordi nário Mesmo no atual estado do direito no quai o seguro de respon sabilidade é normalmente voluntário e portanto nem todos o contra tam muitas pessoas opinam que o seguro resultou num relaxamento 382 Alf Ross da cautela Outros contudo sustentam que o seguro só influi sobre o cautela numa medida bastante modesta e não é fácil descobrir quem tem razão2 Com freqüência o político jurídico não exibe tanta honestidade e circunspecção atribuindo sim a suposições imprecisas uma certeza que estas não têm o direito de reclamar Construir uma sociologia jurídica científica é uma tarefa urgente e difícil Teria que ser formada primeiramente por uma parte básica geral que a partir de um sistema jurídico particular e de um meio social específico estudasse a mecânica geral de motivos por meio dos quais o direito influi na conduta dos seres humanos e em seguida por uma parte técnica ou aplicada que tendo em vista problemas práticos es tudasse correlações concretas Algumas tentativas nessa direção fo ram realizadas particularmente nos Estados Unidos Enquanto esta tarefa não for cumprida o político jurídico terá que seguir com um conhecimento nebuloso e parcial derivado da experiência ordinária e da familiaridade profissional com os fenômenos do direito em ação Quanto à política jurídica em sentido amplo é ocioso salientar que para obter o conhecimento indispensável o jurista tem que recorrer aos ramos da ciência particularmente a economia que são relevantes aos fins do cálculo dos efeitos de maior alcance de certas medidas legislativas Em geral será conveniente que consulte especialistas do campo particular posto que é perigoso informarse apenas em livros num campo profissional no qual não é especializado Finalmente a atividade de ponderar considerações e formular a decisão não se baseia em conhecimentos teóricos mas sim numa habilidade que precisa ser desenvolvida via treinamento e para a qual a familiaridade com a tradição jurídica e a substância do direito são é claro importantes 78 A TAREFA DA POLÍTICA JURÍDICA ENUNCIAÇÃO DAS PREMISSAS Tal como se disse no capítulo anterior o princípio de pureza da ciência requer que toda diretiva política expresse os objetivos e atitu des que são aceitos como as premissas hipotéticas que guiam as 2 Transcrito a partir de um relatório dinamarquês referente à responsabilidade por danos 1950 Direito e Justiça 383 investigações teóricas e as conclusões práticas Além disso se a diretiva política tiver que ser aceita por aqueles a quem aponta essas premis sas emocionais deverão ser eleitas com objetividade Devem ser es colhidas não em razão de que o próprio investigador partilha dessas atitudes mas porque são realmente entretidas ou com melhor co nhecimento seriam entretidas por aqueles que têm o poder para agir Somente desta maneira pode a objetividade da ciência política ser preservada Suas proposições assumirão em princípio a seguinte forma se se pressupõem tais e tais objetivos e atitudes tais e tais crenças sobre os fatos e sua correlação são operativos e conduzem a tais e tais instruções práticas A primeira tarefa da política jurídica será portanto estudar os objetivos e atitudes que de fato predominam nos grupos sociais influentes e determinantes para os órgãos legislativos Como já sali entamos ao aludir a esses objetivos e atitudes não nos referimos a generalidades tais como o bemestar da comunidade ou o bem co mum mas aos resultados concretos efetivos da ideologia e interes ses comuns predominantes ou ao interesse resultante dos interesses encontrados dos diversos grupos Cabe perguntar se é possível chegar por essa via a uma série de premissas de atitude que sejam em alguma medida inequívocas Não há afinal tantos conjuntos de atitudes quanto indivíduos atitudes que variam segundo a estrutura mental de cada pessoa seu credo e seus interesses particulares A resposta é que uma comunidade não seria uma comunidade não seria concebível como tal se não houvesse um amplo corpo de credo e vontade compartilhados de ideologia e inte resses comuns É este corpo que chamamos de unidade de uma cultu ra e de uma nação É claro que essa unidade não é absoluta Dentro de sua estrutura existem muitas divergências práticas As exigências dos diversos grupos sociais são conflitantes As ideologias opostas se cho cam entre si Mas numa grande medida esses conflitos obedecem a concepções divergentes de realidade parágrafo 72 e não exteriorizam nenhum desacordo com respeito a atitudes fundamentais Se o desa cordo for mais profundo as pessoas não se sentirão parte de uma nação minorias nacionais religiosas políticas A exigência programática estabelecida aqui tem que ser encarada com reservas Os fatos psicológicos sociais não são mecanicamente tan gíveis Não podem ser coletados descritos e catalogados da mesma 384 Alf Ross maneira que a flora e a fauna de um país Em alguma medida serão sempre fluídos Certa interpretação e estilização são inevitáveis e com isso certa subjetividade Nos problemas de política no sentido mais estrito devese estudar as diversas ideologias e plataformas políticas e se analisar os interesses dos diversos grupos sociais Em algumas situações surgirá um conjun to de objetivos que se pode dizer tem o apoio preponderante das forças que dominam o poder político e portanto são aceitáveis como premissas de atitude Em outras situações o quadro será menos claro podendo ser mais prudente operar com premissas alternativas Em questões de política jurídica em sentido estrito é preciso bus car as premissas em nível mais elevado na tradição cultural no corpo de idéias compartilhadas relativamente permanentes Uma das for mas mais importantes de se revelar essa tradição é a legislação pré via e a tradição política como um todo Entretanto essa tradição pode ter se tornado retrógrada relativamente às mudanças culturais pode haver um atraso cultural O problema da política jurídica é um proble ma de ajuste Aponta para uma mudança nas condições existentes nunca para uma reformulação radical do direito a partir de seus fun damentos em direção do espaço vazio sem fundo histórico A exigência programática deve também ser qualificada no sentido de que nenhuma investigação políticojurídica pode ser requerida co meçando por um resumo completo de todas as atitudes hipotetica mente aceitas As atitudes e considerações relevantes para um pro blema legislativo se revelaram com freqüência somente por meio da investigação dos efeitos causais de uma lei proposta O que se deno mina consideração é precisamente a combinação orgânica de uma crença operativa e uma atitude de valoração A consideração por exemplo da segurança comercial expressa ao mesmo tempo a crença operativa de que a medida judicial em pauta tem efeitos nessa dire ção e que a segurança comercial é digna de proteção O espírito com que se empreende a investigação é decisivo que o investigador seja consciente de que suas diretivas políticojurídicas devem ser necessariamente baseadas não só em fatos como tam bém em atitudes pressupostas que seja consciente de que essas premissas emocionais devem ser eleitas de forma objetiva não como a expressão de seu próprio credo e vontade Quanto mais estiver Direito e Justiça 385 imbuído desse espírito mais será natural para ele dar conta plena mente do fundamento de atitude de sua política Mas mesmo considerada com essas reservas não se pode em ge ral dizer que a literatura atual satisfaça a exigência metodológica En tretanto encontramos às vezes representantes do ponto de vista in gênuo segundo o qual é cientificamente possível descobrir diretamen te a partir da natureza do caso a solução mais vantajosa isto é aquela que produz as melhores relações entre os homens ou os efeitos mais benéficos para a humanidade Este ponto de vista não percebe que toda política tem necessariamente suas raízes em atitudes que ultra passam o conhecimento A idéia que talvez predomina é que o jurista dedicado à política jurídica sem se deter na reflexão sobre o método valora espontaneamente o direito com base nas atitudes sociais que inspiram o próprio jurista sentindo ao mesmo tempo de forma mais ou menos consciente que ele é que tem autoridade para expressar a cul tura jurídica da nação Às vezes essa idéia se combina com uma forte crença no valor da consciência e da tradição jurídicas O resultado é uma crença romântica na função oracular do jurista como portavoz da consciência jurídica da nação A intuição ocupa o lugar da análise Usu almente o jurista não compreende que a consciência jurídica popular não é absoluta mas sim o produto de um conjunto de atitudes interes ses e objetivos variáveis Ou ainda o jurista pode indagar sob a consci ência jurídica mas sem atingir tão profundamente as atitudes sociais concretas e efetivas Em lugar disso se prenderá ao conceito vazio de bemestar ou felicidade social como a única idéia norteadora suprema O jurista pode então sob a aparência de uma cautelosa objetividade preencher essa casca vazia com suas próprias aspirações pessoais de reforma social Tanto num caso como no outro o resultado é uma forma de política jurídica que é sermão e não ciência O jurista se apresenta como um sumo sacerdote ou reformador social e não como um técnico social As atitudes motivadoras não são introduzidas como hipótese mas como postulados destituídos de qualquer secondicionante 79 A TAREFA DA POLÍTICA JURÍDICA FORMULAÇÃO DE CONCLUSÕES Tendo examinado as premissas emocionais o próximo passo numa investigação políticojurídica é descrever os fatos sociais e definir as 386 Alf Ross correlações causais sociais que são operativas em relação às premis sas Esta parte da investigação é puramente teórica e não dá origem a problemas específicos de método políticojurídico Tal como se fez notar esse segundo passo se confunde amiúde com o primeiro O terceiro e último elo da investigação políticojurídica é a formu lação de conclusões sob forma de diretivas ao legislador ou ao juiz A palavra conclusão não deve nos conduzir a malentendidos Enfatizouse antes parágrafos 71 e 73 que a relação entre os argumen tos crenças operativas e a atitude tal como a relação entre ambos e a decisão resultante ou ação não é lógica mas exclusivamente fatual É uma relação de causalidade psíquica As diretivas práticas significam em princípio uma indicação sobre a maneira na qual se pode supor que o legislador ou o juiz atuará com base em suas atitudes sob a suposição de que aceite as crenças operativas colocadas diante dele mister lem brar aqui que isso pode incluir também o efeito de que os argumentos formulados podem alterar algumas das atitudes prévias do legislador que tenham estado condicionadas por crenças insustentáveis Dado que a relação entre os argumentos e a conclusão não tem caráter lógico o terceiro nexo ou nexo final na política jurídica não tem caráter científico ou teórico sendo a expressão de uma reação pessoal Tem o caráter de uma decisão Esse salto alógico distingue se ademais pelo fato de que a decisão tem geralmente como causa o peso de considerações diferentes mutuamente incomensuráveis Aqui surge a questão não exigirá o princípio da pureza da ciência que o homem político jurídico se abstenha de dar esse salto e se limite a exibir sua argumentação diante do legislador e do juiz dei xando a estes a tarefa de tirar suas conclusão práticas Já me ocupei desta questão em termos gerais parágrafo 73 e afirmei que o prin cípio da pureza da ciência não é violado desde que se evidencie que essa parte da política jurídica não é de natureza científica Na prática isto significa que as diretivas devem ser apresentadas não como con clusões científicas revestidas de autoridade como leis cientificamen te descobertas mas como um conselho uma recomendação Deve se entender que sempre existe a possibilidade de que outra pessoa ainda quando aceite os argumentos formulados e não invoque con traargumentos possa atuar de maneira distinta da recomendada sem que isso justifique que se diga que tal pessoa agiu equivocamente Direito e Justiça 387 Simplesmente deu o salto irreduzível de forma distinta pesou as con siderações relevantes de maneira diferente Diante disso toda argu mentação cessa A única coisa que se pode fazer é reformular os próprios argumentos e verificar se o oponente os entendeu bem Se tal parece ser o caso nada resta a fazer Além disso argumentei a favor da idéia de que também é desejável que o teórico complete a investigação por si mesmo extraindo as conclusões práticas e formu landoas como recomendações Veremos agora que caminhos tem trilhado esse problema geral na discussão do método científico A partir do princípio da pureza da ciência particularmente da ciên cia do direito Kelsen concluiu que a interpretação doutrinária deve se abster de valorar escolher e decidir isto é deve absterse de todo tipo de consideração pragmática sobre o propósito das normas jurídicas ou seus fundamentos sociológicos3 É certo diz Kelsen que a interpreta ção autêntica entendendo por isso a interpretação do juiz ou de outra autoridade capacitada a ditar decisões obrigatórias é motivada por considerações pragmáticas A tarefa do juristaescritor contudo con siste unicamente em descobrir por meio da análise lingüística e lógica as diversas interpretações possíveis e evidenciar suas conseqüências práticas Compete então ao juiz e não ao autor de direito que se pretende científico escolher entre essas diferentes possibilidades Desta maneira e somente assim o estudo do direito pode preservar sua pureza A interpretação doutrinária prepara o caminho para a decisão da política prática ao expor os resultados de sua análise mas não adota por si mesma uma posição política De outro modo a interpreta ção doutrinária degenera num dogmatismo no qual os postulados po líticos são mascarados por uma falsa objetividade científica A isso devemos responder em primeiro lugar como foi explicado ple namente ao estudarmos a doutrina da interpretação capítulo IV que a idéia de uma interpretação puramente lógica isenta de todo pragmatismo é uma ilusão4 em segundo lugar que tal como vimos nas páginas pre cedentes a idéia da pureza das ciências não é prejudicada desde que se indique com clareza o limite entre a ciência e a política 3 Ver por exemplo Hans Kelsen The Law of the United Nations WSbO prefácio 4 Num exame de Kelsen op cit Uus Gentíum II 1950250 e segs mencionei exemplos a fim de mostrar como Kelsen em sua interpretação do Charter das Nações Unidas não consegue deixar de cair nas pressuposições pragmáticas ocultas 388 Alf Ross A doutrina de Kelsen sobre a interpretação é um bom exemplo da afirmação de Myrdal não é possível realizar a idéia de pureza da ciência por meio da eliminação metodológica de todas as decisões valorativas e de todas as atitudes emocionais A solução está em ser consciente acerca delas e apresentálas como pressupostos explíci tos e podemos acrescentar que as conclusões práticas sejam ex pressas como recomendações e não como postulados Finalmente desejaria confessar que não foi confortavelmente que assumi essa posição contrária a Kelsen A idéia da pureza da ciência é a pedra fundamental do ethos profissional do homem de ciência Creio nela com a maior firmeza e me sinto satisfeito toda vez que alguém a defende atacando a corrupção da ciência resultante da não adesão a essa idéia Contudo não posso fechar os olhos diante do erro das exigências metodológicas que Kelsen e outros dela extraem O erro repousa podese dizer numa confusão entre o que é verdade para a ciência como idéia e o que é verdade para a ciência como profissão Não se pratica nenhuma violência contra a idéia se a profissão for em busca da ciência e da política de forma conjunta desde que o limite ideal entre elas seja mantido com clareza Capítulo XVI Possibilidade da Política Jurídica Entre o Destino e a Utopia 80 OS PROFETAS DO DESTINO NEGAM A POSSIBILIDADE DA POLÍTICA JURÍDICA Antes de desenvolver razoavelmente uma política jurídica que sir va de guia ao legislador e antes de poder formular exigências e dar conselhos aos outros é mister satisfazer certos requisitos São Fran cisco pregava aos pássaros mas é provável que a maioria das pesso as julguem isso destituído de sentido As comunidades primitivas crê em que suas palavras têm poder sobre o vento as condições atmos féricas sobre as colheitas a vida e a morte magia A maioria dos seres humanos hoje ainda crê que é possível influir no curso dos eventos terrenos por meio de invocações verbais dirigidas à divinda de oração Além de empregar as ferramentas supridas pelas supre mas conquistas técnicas da ciência os exércitos modernos ainda pra ticam extensivamente a oração Ross é um indivíduo e um cidadão que como intelectual expressa o sentimento geral que as pessoas do seu tempo final da primeira metade do século XX experimentavam diante das ciências naturais e exatas na alvorada da tecnologia o que resultou num movimento exacerbado a que convencionamos chamar posteriormente de tientificismo Embo ra paradoxal a despeito do colossal avanço efetivado por essas ciências na segunda metade do século XX brindan do a humanidade principalmente as camadas economicamente favorecidas das sociedades com proezas tecnológicas Ilaser fibra óptica o chip a monumental revolução da informática robótica telefonia celular clonagem etc etc a ciência não é mais objeto de culto e deslumbramento por parte da maioria das pessoas de algum senso critico 390 Alf Ross De um ponto de vista científico esses exemplos testemunham um gigantesco exagero do poder e alcance das palavras e da argumenta ção Mas o desacordo se refere mais à essência da natureza do que às condições nas quais as invocações verbais podem ser eficazes As práticas mágicas e religiosas apóiamse no pressuposto de que a na tureza é animada e governada por um ser dotado de razão e vontade A ciência prescindiu desse pressuposto Parece haver unanimidade geral de que as invocações emocionais e a argumentação raciocinada só têm sentido diante de seres dotados de razão e vontade não diante de coisas Mas é preciso explicar o que se quer dizer com vontade relativamente a isso A filosofia tradicional metafísicoreligiosa que também se encon tra por trás da teoria jurídica idealista vincula a questão à liberdade metafísica da vontade sua independência com respeito à iei da cau salidade indeterminismo A esta independência se deve o absoluto abismo que há entre a natureza ou necessidade e a moral ou liberda de Não tem sentido fazer exigências a uma pessoa cuja vontade não é livre Se as ações dos seres humanos são determinadas pela neces sidade é inútil nos dirigir a eles e tentar fazêlos agir de maneira diferente da maneira que de fato agem e têm que agir Esse ponto de vista mostra uma incompreensão do significado da causalidade ou das correlações invariáveis Confunde determinismo com fatalismo ou predestinação Insere no determinismo uma neces sidade fatal que é estranha ao pensamento científico O determinismo nada tem a ver com o inevitável como se pode apreciar melhor se refletirmos que o propósito de todas as ciências naturais aplicadas é precisamente mudar o curso dos eventos naturais por meio de uma adequada intervenção em conformidade com objetivos desejados A necessidade da natureza depende sempre de circunstâncias condicionantes Alterandose estas alterase o curso da natureza Esse curso só é inevitável se as circunstâncias condicionantes estive rem fora do alcance da influência humana Assim por exemplo um Por outro lado especialmente em função do maloQro das ciências humanas a ciência social no dizer de Ross na obten ção de métodos e técnicas para a solução ou minimização de problemas sociais crônicos pobreza extrema analfa betismo doenças medievais prostituição infantojuveníl drogas etc a marginalização já convertida em exclusão social no terceiro mundo e da inação ou ação medíocre e insensível das classes políticas encarregadas da execu ção e implantação de tais métodos e técnicas hoje ciência e religião e mesmo ciência e magia não são mais considerados pólos antagônicos e mutuamente excludentes de uma dicotomia inescapável N TJ Direito e Justiça 391 eclipse do sol pode ser previsto sem reservas Mas quanto ao mais o curso da natureza só pode ser objeto de previsão sob a condição de que não haja interferências com as circunstâncias condicionantes Por isso o determinismo na natureza não impede a intervenção guiada por um propósito sendo ao contrário condição necessária para ela1 O mesmo vale para a técnica social isto é a possibilidade de inter venção orientada por um propósito para influir no curso da ação social O determinismo como tal não impede isso sendo ao contrário condição disso O pressuposto essencial da política considerada como uma técnica para influir na comunidade com a ajuda de métodos racionais não é portanto a existência de uma vontade livre mas a hipótese de que a deliberação racional e a argumentação estão entre os fatores determinantes das ações dos seres humanos Com especial referência à política jurídica e à sua possibilidade a questão decisiva portanto é se o direito é criado e em que medida pela vontade do legislador entendida não como uma vontade metafísica livre mas como a expressão de uma atividade consciente determinada por deliberação racional e argumentação ou se o direito é criado e em que medida por um processo independente dessa vontade Acerca deste assunto foram sustentados os mais variados pontos de vista ao longo das diversas épocas Uma concepção que desempenhou e prossegue desempenhando um papel importante o historicismo se baseia em visões metafísicas Sua idéia fundamental é que o curso da história é determinado por uma necessidade fatal ou destino A idéia da fatalidade é a velha concepção metafísicoreligiosa de que os eventos caminham para uma meta prédeterminada com soberano desprezo pelos objetivos dos próprios sujeitosagentes Seu efeito contundente no drama trágico consiste no contraste entre a boa vontade e a necessidade inexorável nas mãos da qual o ser humano é um joguete A profecia dizia que Édipo mataria seu pai e desposaria sua mãe Isto foi o que ocorreu apesar de tudo o que se fez para evitálo O destino a vontade dos deuses não admitem interferências A necessidade fatal nada tem a ver com o determinismo Ela é inevitável A necessidade determinista pelo contrário é fundamento 1 Este último enunciado não é de todo correto Ver K R Popper The Open Society andits Enemies 1945 II 81 392 Alf Ross da intervenção orientadora da ciência aplicada Falando metaforica mente podemos dizer que enquanto as causas impulsionam os efei tos o destino faz com que a meta futura predeterminada atraia os eventos Mas como pode estar determinada a meta futura da evolu ção e como pode ela por sua vez determinar o presente a menos que se encontre estabelecida por uma vontade divina que também guia o curso dos eventos rumo a essa meta A idéia do destino é assim a expressão de uma metafísica religiosa que está em conflito com a con formidade da natureza com as leis causais da ciência natural Tal é o caráter essencialmente diferente das previsões feitas com base num fundamento científico e daquelas que se fundam na crença de uma necessidade fatal ou destino As previsões da ciência normal mente se fazem com a reserva de que ocorram certas circunstâncias condicionantes Têm a forma de uma hipótese Se existe esta ou aquela situação como ponto de partida então esta ou aquela situa ção será a conseqüência Apenas naqueles casos em que os fatores condicionantes estão fora do alcance do ser humano a previsão pode assumir o caráter incondicional de uma profecia Podemos prever que dentro de dois mil anos haverá um eclipse do sol mas não como evoluirá amanhã uma enfermidade Isto porque esta última depende também de nossa intervenção nos fatores condicionantes As previsões do historitismo pelo contrário têm sempre caráter profético isto é previsões do curso da história sem considerar os esforços humanos e a despeito destes A necessidade divina torna ine ficaz toda deliberação plano e propósito humanos ou seja toda políti ca Nossa crença de que podemos fazer algo é um sonho vão Enquan to sonhamos esse sonho somos arrastados rumo a uma meta inevitá vel por forças sobre as quais não exercemos controle Não passamos de marionetes Um poder superior move os fios O homem sábio que o compreendeu julga melhor submeterse ao inevitável Desta maneira pode minorar as dores que provoca o parto do futuro pelo presente Pode auxiliar a evolução evitando inúteis atritos entre a vontade divina e a própria De todas as maneiras tanto o tolo como o sábio deterão seu esforço atingirão o repouso no ponto estabelecido A influência prática que essa crença no destino tem sobre o curso da conduta humana é notoriamente equívoca Teoricamente conduz à negação de toda política à passividade completa ou o que se de nomina quietismo Na prática é diferente A meta postulada é claro Direito e Justiça 393 nasceu psicologicamente de certas atitudes sob forma de exigências objetivos aspirações A crença de que esse objetivo será inevitavel mente alcançado cria em seus adeptos uma certeza da vitória e um fanatismo que não conhece concessões estimulandoos a uma luta implacável A argumentação e o compromisso são deixados de lado como inúteis A inevitabilidade da meta justifica todos os meios Este é o segredo da absoluta intolerância que mostra o comunismo ante qualquer outro sistema2 A filosofia romântica alemã dos primeiros anos do século XIX se afas tou do racionalismo da era precedente e se entregou a interpretações vagamente proféticas da natureza e da história como uma revelação de forças espirituais que evoluem e se movem para uma meta predetermi nada Só havia desprezo dirigido às ciências naturais objetivas e mecâni cas construídas sobre fundamentos empíricos e se desejava em contrapartida compreender a natureza de dentro como um jogo de forças ou princípios que se desenvolvem em etapas sucessivas para for mas cada vez mais elevadas de revelação da alma do universo3 2 Porque o comunismo se apóia na filosofia econômica fatalista de Marx Cf parágrafo 82 Após distinguir com invulgar acuidade e rigor a necessidade fatala avayictj dos gregos em Platão por exemplo e o maktub dos árabes da necessidade determinista melhor determinismo histórico Ross nem sempre se preocupa em exprimir certos conceitos com precisão o autor perpetra um erro incompreensível ao considerar fatafista o pensamento de Marx que ele chama de fíosofia econômica Confunde manifestações particulares e concretas no tempo e no espaço o comunismo de Lenine de Trotsky ou especialmente de Stalin na Rússia o comunismo de Mao T setung na China etc baseadas em interpretações do materialismo histórico com o próprio ou seja a filosofia da praxis de Karl Marx Ora o determinismo para Marx está compreendido numa dimensão rigorosamente humana sendo o conjunto de efeitos produzido necessariamente na história a partir das ações humanas empreendidas na arena econômica e no mundo político e material das relações conflitantes das classes sociais onde no seio do sistema capitalista analisado por Marx ocorrem fenômenos concretos e carnais conceituados por ele como deten ção dos meios de produção alienação mais valia etc É forçoso lembrar que antes de fixar os fundamentos de sua teoria materialista Marx alijou radical e sumariamente todo o cortejo de conceitos da metafísica tradicional acom panhado do entulho teológico produzido a partir dela isto á de Platio a Hegel passando pela patristica e a escolástica o qual serviu de respaldo ideológico da exploração do homem pelo homem desde os tempos da escravatura oficial da antigüidade atá o capitalismo industrial do século XIX com sua escravidão velada do proletariado ver por exemplo A Ideologia Alemã 0 futuro do homem é determinado historicamente pelo próprio homem Isto não tem nada a ver de modo algum e muito pelo contrário com o fatalismo religioso ou metafísico IN TJ 3 Schelling por exemplo ao explicar os diversos níveis de natureza inorgânica e orgânica supunha que a natureza ordenadora ou invisível compreende três forças primárias gravidade luz e a faixa ou principio da vida A gravidade a mais baixa das forças não significa gravidade física mas o principio de corporeidade o principio que no mundo visível cria a matéria em seus diferentes compostos Quando a luz não a luz física mas o princípio da alma se une à matéria atingese uma novo nível no mundo inorgânico o processo dinâmico a matéria animada Numa potência crescente essa união se desenvolve como magnetismo eletricidade e processos químicos 0 mundo orgânico emer ge acima do anterior através do acréscimo da terceira força o principio ou faixa da vida Neste mundo o principio de gravidade se revela como reprodução isto é alimento crescimento e propagação da espécie o nível das plantas e das mulheres Ao princípio da luz corresponde a irritabilidade o nível dos animais e dos homens Através do principio 394 Alf Ross A história também foi considerada como uma revelação do abso luto Schelling em sua filosofia da história retoma a idéia do destino O indivíduo crê que tem liberdade de ação e todavia a necessidade governa a história Entretanto esta necessidade não é de tipo mecâ nico segundo leis causais mas providência destino A história é o progresso de Deus através do mundo Nela a raça humana evolui rumo ao seu destino Schelling compara também a história com um drama no qual cada ator individual desempenha seu papel com intei ra liberdade mas no qual a despeito disso emerge um resultado razoável da confusão porque há um espírito que tudo inspira4 Hegel conduziu estas idéias ainda mais além A essência íntima da existên cia é a razão um espírito absoluto e a história é uma espécie de operação lógica gigantesca na qual Deus ou a razão pensa o seu caminho através de um processo dialético5 Esse absurdo há muito foi esquecido no que se refere à ciência natural Quem interpretaria hoje o átomo como a revelação de um princípio espiritual Todavia esse absurdo deixou marcas permanen tes na ciência social e particularmente na filosofia do direito Do ro mantismo alemão partem duas linhas de pensamento as quais cada uma a sua maneira se apóiam na idéia da necessidade fatal da histó ria e na impotência do legislador Uma é a chamada escola histórica na ciência do direito fundada por Savigny e Puchta que manteve a metafísica espiritual tradicional A outra é a filosofia materialista da história de Marx que pôs Hegel de cabeça para baixo e deu ao abso luto uma interpretação materialista 81 A ESCOLA HISTÓRICA A escola histórica foi uma reação contra o jusnaturalismo racionalista e sua crença no poder do legislador para reformar a comunidade e o direito de acordo com a razão6 Como parte do despertar nacional da vida finalmente surge o fenômeno natural supremo a sensibilidade ou o estágio do ser humano Assim imagina Schelling o conjunto da natureza sobre vários níveis de desenvolvimento construído por forças internas e invisíveis que em sua unidade constituem a alma do universo Ver Schelling Ideen w einer Philosophie der Natur 17971 Erster Entwurf eines Systems der Naturphilosophie Allgemeine Deduktion des dynamischen Prozesses oder der Kategorien der Physik Zeitschrift fürspekulative Physik 1800 Von der Weltseele 1800 4 Para um estudo mais detalhado e documentado da filosofia da história de Schelling ver Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 1929 cap V 10 e Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 1933 cap XII 3 5 Ver Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 933 cap XII 4 6 Cf Alf Ross Theorie der Rechtsquellen 19291 cap V 2 Direito e Justiça 395 em 1804 surgiu o desejo de um Código alemão que seria uma réplica do Código francês e um símbolo da unidade da nação Tal tendência encontrou expressão num panfleto intitulado Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgeriichen Rechts für Deutschland escrito com grande fervor pelo jurista de Heidelberg A F J Thibaut Em resposta a isso nesse mesmo ano Friedrich Carl von Savigny publicou seu famoso trabalho Vom BerufunsererZeitfürGesetzgebung und Rechtswissenschaft no qual frisou o crescimento históricoor gânico do direito e sua dependência da consciência éticojurídica es pontânea que prevalece na comunidade Como a linguagem o direito é um produto de forças anônimas e obscuras e não é criado por delibe ração e por decisão arbitrária A consciência éticojurídica comum po pular é a verdadeira fonte de todo direito Num primeiro nível de de senvolvimento ele se expressa diretamente no costume Mais tarde juntamente com um desenvolvimento cultural superior surge uma classe especial os juristas profissionais cujo dever é interpretar e elaborar tecnicamente a consciência éticojurídica do povo A ciência do direito ocupa então o lugar do costume como a forma mais importante de revelação do costume O legislador não pode criar direito por meio de poder e ordens arbitrárias Tal como um jardineiro que cuida do cresci mento de uma planta assim o legislador com o auxílio dos estudos científicos pode favorecer ao desenvolvimento natural do direito mas não interferir nele Se o legislador interpreta mal sua missão e tenta interferir arbitrariamente seus esforços serão vãos e serão esmagados pelas forças do desenvolvimento Uma codificação requer se pretender constituir uma versão correta do direito vivo um conhecimento jurídico altamente evoluído que considerava Savigny seus contemporâneos não possuíam Ademais se pretende ser definitiva toda codificação se choca com o crescimento orgânico do direito e só pode ser justificada em períodos de decadência cultural Essa idéia básica foi depois elaborada mais profundamente e sis tematizada por Puchta Das Gewohnheitsrecht 18281837 Foi ele quem introduziu o termo Voiksgeistcomo designação de uma subs tância espiritual que se desenvolve num povo e que é o fundamento primário de todo direito Sobre a necessidade de um Direito Civil geral para a Alemanha NT Da Vocação do nosso Tempo para a Legislação e a Ciência do Direito INTI 396 Alf Ross Um estudo superficial pode nos conduzir à opinião de que a idéia fundamental da escola histórica é uma teoria empírica sociológico jurídica da subordinação do direito à comunidade isto é uma teoria que talvez sob forma um tanto exagerada ressalta as restrições que pesam sobre a capacidade do legislador de criar direito As referências de Savigny ao crescimento orgânico do direito poderiam ser entendidas como alusivas a correlações causais observáveis e o conceito de Puchta sobre o espírito do povo como uma expressão abreviada para um complexo causai isto é a expressão de uma soma total de características sóciopsicológicas observáveis influ enciadas por circunstâncias condicionantes clima raça tradição história e que influem por sua vez na criação do direito Entretanto como tentei demonstrar alhures7 com provas con cretas tal interpretação não é correta A escola histórica deve ser entendida em função do clima espiritual de seu tempo é filha do romantismo alemão O orgânico nada tem a ver com a causalidade da natureza Para o romantismo orgânico era sempre uma palavra com carga emocional que se usava para designar as forças obscuras que animam todas as coisas vivas e tendem para uma meta algo absoluto e irredutível a primária e obscura força da vida que é lei em si mesma e está acima da mecânica da causalidade Do mesmo modo o espírito do povo nada tem a ver com 1esprit des tois de Montesquieu e não é a designação de um complexo causai É um princípio espiritual uma essência espiritual absoluta e irredutível que se revela na vida de um povo inclusive em sua vida jurídica e que se desenvolve de conformidade com leis próprias rumo a uma meta imanente como expressão do significado e missão divinos desse povo Da mesma maneira finalmente a necessidade que tra va a liberdade do legislador para criar direito não é a força das leis da natureza às quais deve se submeter todo técnico mas sim uma necessidade fatal ou destino que expressa a dinâmica soberana do espírito do povo e do direito A evolução do direito não é determi nada mas predestinada Só assim podemos compreender Savigny quando ele alude à missão histórica do legislador e à impotência deste se pretender deixar de cumprila 7 Ross op cit cap V Volksgeist N TJ Direito e Justiça 397 É importante considerar que a escola histórica não foi simples mente uma doutrina sobre a criação fatual do direito Foi ao mes mo tempo uma forma oculta de direito natural parágrafo 56 Historicismo não é apenas história Sua idéia fundamental é que a história é também o critério do bem O objetivo ou tendência imanente da realidade é também o supremo valor O princípio ab soluto que se manifesta na história é também o bem absoluto Estas idéias que encontrarão a maturidade com Hegel também se evi denciam na escola histórica Diferem de Hegel em que o absoluto não é concebido como razão universal mas um espírito nacional A consciência éticojurídica popular não se limita a ser a fonte da qual de fato surge o direito mas é também a fonte da retidão ou valida de do direito A realidade é ao mesmo tempo validade absoluta pois sua essência íntima é espírito8 A escola histórica portanto representa não só uma filosofia jurídica fatalista como também uma filosofia jusnaturalista Por trás de seu cunho aparentemente apolítico se oculta uma atitude política que dá auspícios aos juristas para que sejam os condutores de um desenvolvi mento cuidadosamente reformador do direito com base histórica A consciência éticojurídica popular é a fonte suprema do direito mas os juristas especialmente os professores são seus intérpretes genuínos e portavozes os guardiões da cultura jurídica da nação O espírito do povo é o absoluto e o professor de direito seu profeta No decorrer do tempo essa tendência foi se tornando cada vez mais conservadora Através de sua crença no valor especial da tradição jurídica a escola histórica se direcionou para o pedantismo históricofilológico e para o formalismo da jurisprudência de conceitos 82 O HISTORICISMO ECONÔMICO DE MARX Marx foi aluno de Hegel Entretanto como é dito com freqüência colocou o sistema de Hegel de cabeça para baixo fez das forças econômicas o absoluto na evolução e dos fenômenos espirituais um produto derivado O socialismo de Marx é um programa de ação Possui profundas raízes emocionais em impulsos humanistas na sua simpatia pelos 8 Para documentação ver Ross op cit cap V 12 398 Alf Ross oprimidos e na sua indignação diante das lamentáveis condições da classe operária na Inglaterra durante o primeiro período do industrialismo9 O programa não se reduz a um conjunto técnico de instruções sobre o modo de alcançar o poder e adquirir vantagens para que os papéis das classes se invertam O socialismo é também uma luta pela justiça O gozo capitalista da mais valia é considerado uma exploração do trabalhador Depois do triunfo da revolução social não haverá uma nova exploração em substituição à anterior mas sobrevirá a sociedade sem classes com liberdade e igualdade de oportunidades para todos Ao mesmo tempo Marx atacou desdenhosamente toda moralização Julgava que sua missão era liberar o socialismo de seu fundo senti mental e filantrópico e distanciálo assim da utopia visando a aproximálo da ciência Marx nutria o maior desprezo pelas frases e ilusões recebidas da grande revolução e pelos métodos bem intencio nados que os socialistas idealistas haviam concebido para a reforma da sociedade10 DieArbeiterklassehatkeineIdeaiezuerfüllen11 O socialismo científico tem que se basear na análise das correlações cau sais sociais e em previsões fundadas nas leis invariáveis do desenvol vimento da sociedade Esses são os elementos típicos do historicismo12 Como Hegel a escola histórica e Comte Marx se volta contra a razão subjetiva e suas idéias a priori O razoável a norma política devem ser buscados na própria realidade objetiva em sua tendência imanente de desen volvimento A partir daqui ele avança para uma filosofia da história que interpreta a história como um curso de eventos encaminhados para uma meta predeterminada O socialismo de Marx é científico no mesmo sentido em que Comte chama sua política de positiva Nem aquele nem esta têm nada a ver com a ciência Marx não pensa como um cientista social que usa o conhecimento científico como fundamento de uma intervenção orien tada por um propósito Marx pensa como um profeta social que prevê o inevitável que é também o bem Sua necessidade não é científica e 9 Ver em 0 Capital a seção relativa ao efeito do progresso na posição da classe trabalhadora 10 Karl Marx e Friedrich Engels O Manifesto Comunista 1848 O Manifesto Comunista consta nesta mesma série Clássicos Edipro IN T 11 Karl Marx Der Biirgerkrieg in Frankreich 3 ed 50 Em alemão no original A classe trabalhadora não tem nenhum ideal para satisfazer IN TI Direito e Justiça 399 determinista mas inevitável e fatal Confunde determinismo com predestinação Crê erroneamente que a possibilidade da previsão ci entífica se funda no pressuposto de que o futuro existe como gérmen no passado como se houvesse neste uma imagem remota daquele E por essa razão a atitude de Marx em relação à política em rela ção à intervenção humana orientada por um propósito é também típica do historicismo a política é impotente não passa de uma ilusão O curso da história está predeterminado Tudo quanto o ser humano pode fazer é eliminar do caminho da evolução seus piores obstáculos Mesmo quando uma sociedade tenha descoberto escreve Marx em O Capitara lei natural que determina seu movimento não pode sal tar as fases naturais de sua evolução nem afastálas do mundo por um traço da caneta Porém pode fazer isto abreviar e diminuir as dores do parto13 Comparese com a analogia de Savigny entre o legislador e o jardineiro que pode ajudar o crescimento orgânico da planta14 e com a doutrina de Auguste Comte de que o político é capaz de eliminar pequenos desvios na curva da evolução15 12 Cf a brilhante análise de Marx que faz K R Popper em The Open Society andits Enemies 11945 especialmente nos caps XIII XV e XXII As forças econômicas que determinam de forma inexorável a história são forças artificiais de modo algum forças naturais ou transcendentes ou seja geradas pelo homem 0 caráter e o conteúdo dessas forças são constituídos por ações humanas livres e independentes de qualquer poder ou fator extrahumanos São ações concretas no tempo e no espaço relativas e contingentes A tentativa reducionista do autor de classificálas como nova roupagem do absoluto nos parece infundada Quanto à importante distinção entre determinismo e predestinação entendemos que o único destino concebível no âmbito do pensamente de Marx é o destino para a sociedade humana determinado pelas forças econômicas promovidas e construídas pelo próprio homem A necessidade ou inexorabilidade está no fato de ser impossível para o homem voltar atrás nas suas ações retomando no tempo Essencialmente tratase do próprio princípio da causalidade das ciências exatas aplicado aos fenômenos sócioeconômicos toda ação gera necessariamente um efeito que é irreversível pois é impossível desfazer a ação só restando a possibilidade de proceder a novas ações se disparo um tiro à queimaroupa contra o coração nada impedirá o efeito fatal ou necessário dessa ação que será a minha morte É esta inflexibilidade que Marx v i nas forças econômicas Finalmen te quanto à atividade política e a produção do direito Marx não encara a primeira como ilusão mas como amarrada e subordinada à economia o que aliás ó patente na atualidade nas democracias neo liberais ou de centro direita quanto à segunda concordamos com o autor de que não há a rigor criação de direito para o marxismo sendo o sistema jurídico mera expressão constitucionalizada dos interesses e anseios da classe dominante N TJ 13 Karl Marx O Capital 1864 Transcrito de Popper op cit II 82 Embora seja impossível negar o aspecto profético e futurológico presente no marxismo o único absoluto aspas obrigatórias que nele existe é o império inexorável das forças econômicas como causas determinantes dos fatos sociais 0 marxismo é uma forma muito peculiar de humanismo mas não deixa de ser humanismo vigoroso À citação que Ross faz de Marx acresço a seguinte encontrada em A Sagrada Família a critica da critica crítica Se o homem é um produto das circunstâncias humanizemos as circunstâncias 14 Friedrich Carl von Savigny System des heutigen rõmischen fíechts 1840 40 15 Auguste Comte Opuscules dephilosophie sociaíe 18191822 1883 127 Cf Cours dephilosophiepositive IV2 edk 1864 247285 292 400 Alf Ross O historicismo interpreta tipicamente a história como se procedes se através de uma série de fases rumo a uma meta que por estranho que pareça pensouse que seria alcançada no século XIX ou muito pouco depois A interpretação da história de Marx é a mesma Desde a era dourada do comunismo primitivo a evolução passou através de uma série de guerras de classes nas quais uma classe exploradora ia deslocando outra Atingiuse agora o ponto no qual a classe explora da o proletariado já não pode se libertar da classe exploradora a burguesia sem libertar ao mesmo tempo e de forma definitiva a sociedade inteira da exploração opressão e luta de classes16 Agora ou num futuro próximo quando a revolução social final tiver sido cum prida surgirá a sociedade sem classes o Estado desaparecerá e a verdadeira natureza humana será liberada e partejada17 A história prévia da humanidade chega ao seu fim a queda do ser humano superada o milênio se torna realidade Este não é o lugar para aprofundar nas teorias que Marx utiliza como fundamento de sua filosofia da história e de sua profecia A título de esboço esquemático podemos distinguir três níveis na ela boração de seu pensamento 1 A concepção econômica da história Esta doutrina sustenta que a chave da história inclusive da histó ria das idéias deve ser buscada na relação do ser humano com o mundo material nas condições nas quais ocorre a produção econômi ca isto é na vida econômica e não na vida espiritual do ser humano As condições da produção e seu desenvolvimento constituem o abso luto na história tudo o mais daqui deriva 2 A história como luta de casses Esta é a doutrina da mecânica pela qual as condições de produção determinam a história Como as ações humanas que constituem a história são diretamente motivadas por interesses e ideologia é mis ter explicar como esses motivos provêm das condições de produção 16 Ver o prefácio de Friedrich Engels à edição alemã do Manifesto Comunista 1883 Ver também este prefácio de Friedrich Engels à edição alemã do Manifesto Comunista 18831 na edição histórica comemorativa dos 150 anos do Manifesto Edipro Bauru SP 1998 NE 17 Numa passagem bastante citada de Engels é declarado A peculiar união dos seres humanos para a vida em comunidade que antes se apresentava como algo imposto a eles se toma agora sua própria e livre realização Dá assim a humanidade o salto do reino da necessidade ao reino da liberdade Direito e Justiça 401 O lugar que o indivíduo ocupa no processo de produção determina o seu pertencer a uma classe Cada classe tem interesses econômicos que conflituam com os interesses de outras classes Os interesses econômicos por sua vez determinam a ideologia aceita pela classe A moral e o direito as verdades eternas da filosofia e da religião não passam de uma superestrutura ideológica variável de acordo com a estrutura econômica As diferenças de classe econômica e ideológi cas levam à guerra entre as classes As armas mais importantes nes ta luta são o Estado e a revolução O Estado é o instrumento pelo meio do qual a classe governante mantém seu domínio sobre as clas ses oprimidas A revolução é a rebelião das classes oprimidas para conquistar por meio da força o poder do governo 3 A revolução do proletariado e o estabelecimento da sociedade sem classes do socialismo Esta é a doutrina do progresso da luta de classes A luta de classes progride segundo um esquema dialético rumo a uma meta definitiva O capitalismo conduz por um lado a uma contínua acumulação de riquezas e por outro a um empobrecimento sempre crescente do proletariado Desse modo e de forma gradual as classes se reduzi rão a duas uma pequena burguesia dominante e um enorme prole tariado empobrecido Quando esta evolução atingir um limite a cres cente tensão entre as duas classes encontrará um escape na insurrei ção do proletariado uma revolução social que terminará com a vitória dos muitos Após um curto período de transição a ditadura do prole tariado como correlato dialético da ditadura da burguesia a socieda de sem classes surgirá como a síntese final das diferenças superadas Uma vez cessados o conflito e a guerra das classes o Estado não terá mais razão de ser e desaparecerá A humanidade viverá em liberdade e feliz A história terá alcançado a sua meta A atitude de Marx frente ao problema do condicionamento social do direito e a possibilidade de uma política jurídica é fundamental mente igual à da escola histórica o direito não é criado arbitraria mente o direito é um produto necessário da evolução O legislador é na realidade impotente é meramente o portavoz da necessidade Esta concordância entre o marxismo e a escola histórica é o simples resultado do fato de que as duas ideologias são subramificações do mesmo ramo uma filosofia do destino historicista e romântica Toda via no que toca à interpretação das forças que dirigem a evolução 402 Alf Ross necessária do direito as duas doutrinas apresentam enormes dife renças Para a escola histórica essa forças são espirituais o espírito do povo ativo na consciência jurídica da nação é a fonte de todo direito Para o marxismo ao contrário as idéia do direito e institui ções jurídicas são meras superestruturas ideológicas de interesses econômicos Não existe uma consciência jurídica nacional O que se intitula assim é a ideologia da classe dominante que reflete seus interesses econômicos As idéias eternas do direito e da justiça são ilusões Todo o direito é um instrumento de poder nas mãos da classe governante para a exploração econômica das classes oprimidas 83 LIMITAÇÕES DA POLÍTICA JURÍDICA E ESTUDO DAS TENDÊNCIAS Temos que rejeitar a negativa categórica que os filósofos do desti no fazem com relação à possibilidade de uma política jurídica Tal negativa é baseada em concepções metafísicas sobre predestinação que nada têm a ver com o determinismo científico A experiência não abona a tese de que as deliberações a razão e a vontade humanas não estão entre os fatores que determinam o curso da evolução A filosofia do destino não é simplesmente falsa Fomenta uma atitude conflitante com os ideais humanistas A crença de que os poderes superiores sejam espirituais ou econômicos guiam o curso da evolução conduz à passividade ou ao fanatismo que justifica todo crime para que se cumpra o inevitável Aniquila a responsabilidade moral cujo fundamento é a consciência de que somos os senhores de nosso destino Conduz quando foram eliminadas a razão e a vonta de à veneração do poder interpretado seja em forma conservadora como expressão da sociedade existente e suas instituições tradicio nais Hegel Savigny seja em forma revolucionária como a expres são da luta de classes e a rebelião que haverá de conduzir o proleta riado à vitória Marx As teorias que estudamos são produtos típicos da atitude metafísica e antiracionalista do romantismo alemão Ademais foram condiciona das negativamente pelo Estado liberal contemporâneo e suas oportu nidades reais de controle e intervenção efetivos são bastante escassas Frente às poderosas forças econômicas desencadeadas pela revolução Direito e Justiça 403 industrial e a ruptura do feudalismo a política do íalssezfaire foi mais uma necessidade do que uma virtude ou se fez dela uma virtude por necessidade As experiências das poucas gerações passadas no senti do de uma intervenção legislativa orientada por um propósito demons traram a notória falsidade da afirmação da impotência do legislador e da política Tornouse óbvio que embora o aparato do governo não seja a lâmpada de Aladim quem controla esse aparato domina forças pode rosas capazes para o bem ou para o mal de dirigir decisivamente a vida material e espiritual do povo para uma meta planificada Ninguém dirá hoje que o poder político é impotente Os próprios governantes que herdaram a doutrina de Marx e a elevaram à posição de religião de Estado têm demonstrado com mais vigor do que ninguém os usos que podem ser dados ao poder político No que concerne à consciência jurídica e cultural de um povo vi mos como a propaganda eficiente Alemanha nazista ou a propa ganda combinada com uma reconstrução radical das condições de produção Rússia soviética foram capazes de produzir alterações pro fundas na vida jurídica e cultural que não podem ser explicadas pelo normal crescimento do espírito do povo No que tange à relação entre a política e a economia não é possível restar mais nenhuma dúvida de que o poder político é o fundamental Em última instância o poder político condiciona o poder econômico e não o contrário A crença de Marx de que a propriedade do capital é a base fundamental de todo poder é a expressão de um respeito não crítico que tem quase um sabor jusnaturalista frente à propriedade como poder preestatal absolutamente válido Marx não compreendeu que o poder do proprietário é só um reflexo da proteção que o Estado lhe concede por meio da polícia e dos tribunais e por isso algo que deriva do poder político ou que mediante leis é possível regular e controlar o poder efetivo do proprietário até reduzilo ao papel de um funcionário público mais ou menos bem remunerado De todo modo Savigny e Marx nos ensinaram algo de que não devemos nos esquecer Se essas teorias forem despojadas de seu traje absoluto dogmático e metafísico aparecerá uma verdade rela tiva a subordinação relativa do legislador diante de forças sociais que limitam seu podér formal soberano Se se diz que o Parlamento britâ nico pode fazer tudo menos transformar um homem em uma mulher 404 Alf Ross isto pode ser verdadeiro se for tomado como expressão de uma ideolo gia jurídica porém é falso se lhe conferirmos uma interpretação so ciológicojurídica 0 legislador não é como um Deus cuja palavra cria um mundo a partir do nada A tarefa do legislador é motivar os seres humanos a certo comportamento desejado A fonte de seu poder con siste na ideologia ou mito políticos que lhe conferem autoridade jurídi ca Mas ao lado desse acato formal à autoridade legítima atuam mui tas outras forças no espírito humano entre elas tanto as forças cegas e irracionais que brotam da tradição o costume e a consciência jurídica material como as forças racionais norteadas por um propósito que surgem dos interesses econômicos e das relações de poder18 0 poder político é portanto apenas um dos muitos componentes de força que estão entretecidos em dependência mútua numa rede de centros e de relações de poder A liderança política é uma tentativa de integração que permite certa tensão entre o poder político e outras forças sociais Entretanto se a tensão for excessiva a tentativa fracassará O valor desses pontos de vista sociológicojurídicos se faz claro se os contrapomos ao racionalismo abstrato não histórico da época pre cedente do qual um dos representantes típicos é Bentham Se o romantismo reverenciou as forças obscuras instintivas e irra cionais a Bentham faltou toda a compreensão desse aspecto da na tureza humana que se acha fora da razão19 Seu grande sonho foi um pannomium uma clara e exaustiva codificação racional do direito20 18 Cf R M Maclver The Web of Government 1948 19 Afirma Leslie Stephen um dos maiores especialistas em Bentham Seria impossível traçar um quadro mais vivido do abstrato raciocinador cujos cálculos sobre os motivos humanos omitem toda referência à paixão e que imagina que todos os preconceitos podem ser conjurados mediante uns poucos atos de lógica The Engfish UtiStarians I 1900 199 20 0 entusiasmo de Bentham pela codificação deve ser examinado considerandose as condições do direito então predominantes A common law inglesa que se desenvolvera lentamente com base nas decisões judiciais exibia ainda concepções medievofeudais 0 excesso de distinções escolásticas e de ficções ininteligíveis para o senso comum havia convertido o direito inglês da época de Bentham num perfeito tojal um labirinto apropriado em alto grau para degradar o direito e fazer da administração de justiça um proveitoso negócio para Juizes e Cia Ver Leslie Stephen op cit pg 278 e John Stuart Mill Dissertations andDiscussions I 1859 368 e segs 0 direito sucessório inglês por exemplo é descrito por Bentham da seguinte maneira É tão complicado no que se refere è herança dos bens admite distinções tão singulares as prévias decisões que servem para regrálo são tão sutis que não apenas é impossível o simples bom senso presumilas como também difícil entendêlas É um estudo tão profundo como o das ciências mais abstratas só têm acesso a ele um pequeno número de privilegiados e inclusive estes tiveram que se subdividir pois nenhum jurista conhece o todo Tal foi o fruto de um respeito excessivamente supersticioso a antigüidade E quanto a common law em geral ele escreve São os juizes como vimos que produzem a common law Sabeis como a fazem Pois bem tal como um homem elabora regras para seu cão Quando vosso cão faz algo que vós não quereis que ele continue fazendo esperais que o faça e depois o castigais por têlo feito Assim á como elaborais regras para vosso cão e assim é como os juizes fazem regras para vós e para mim Ver Bentham Works publicação de John Bowring 11843 1323324 e V 235 el V 442 e IX 8 Direito e Justiça 405 que pusesse fim a todos os costumes21 e à toda interpretação22 Bentham nunca refletiu sobre a possibilidade de incorporar tal cons trução verbal à tradição cultural de um povo aos seus costumes e preconceitos existentes Ele mesmo elaborou o projeto de muitas gran des codificações que englobam o direito civil o direito penal o direito processual e o direito constitucional e confiava que os legisladores dos jovens Estados sulamericanos levassem aquela obra à prática23 Executou também o planejamento de codificações para a Rússia a Espanha Marrocos e a Baviera24 Dizia que poderia legislar para o Hindustão e sua própria paróquia com igual facilidade25 Atualmente tudo isso nos parece ingênuo e inteiramente utópico já que sabemos que o direito depende de condições históricas e nacio nais Tal é o cerne da doutrina de Savigny Marx deu uma passo adiante Ensinounos a olhar por trás da ideologia da consciência jurídica a não considerála dogmaticamente como uma revelação de idéias eternamente váli das mas sim a perguntar quais forças a condicionam e dirigem Nesta medida Marx estava de acordo com Bentham parágrafo 67 Mas enquanto o último veria a consciência jurídica e moral como produtos de um único princípio evidente Marx considera que as forças diretrizes são os interesses econômicos das classes sociais A questão não é na realidade tão simples Entretanto se generalizarmos a idéia de Marx e dissermos que a consciência ju rídica deriva dos interesses que se encontram por trás dela prova velmente estaremos no caminho certo 21 Ver Bentham op cit I 320 Se o obscuro sistema chamado direito consuetudinário deixasse de ser tolerado e desaparecesse e todo o direito fosse formulado por escrito se as leis referentes a todos os indivíduos fossem reunidas num volume e as concernentes a certas classes formassem parte de coleções separadas toda desvio delas seria perceptível todo cidadão seria seu guardião não haveria mistério para encobrilas não haveria monopó lio no que diz respeito à sua explicação não haveria fraude ou chicana para eludilas Cf III 211 V 439 IV 503 e alhures 22 Como outros adeptos racionalistas da codificação Bentham concluiu desta idéia que doravante não se deveria permitir aos juizes interpretar o direito legislado Ver Bentham op cit I 325 Comparese com isto Alf Ross Theorie der Rechtsquellen cap III 1 sobre Montesquieu e a codificação francesa 23 No que concerne aos planos de Bentham de legislar para o México e a Venezuela ver Bentham op cit X 433457 458 cf Stephen op cit p 220 24 Stephen op cit 1300 A respeito da correspondência de Bentham com o rei da Baviera a quem enviou o projeto de uma Constituição ver Bentham op cit X 578 e segs 25 Bentham op cit X 292 406 Alf Ross É possível sintetizar o exposto como segue a política é possível por que o legislador não é impotente As possibilidades da política jurídica são limitadas porque o legislador tampouco é todopoderoso Ele se defronta com forças sociais em particular a consciência jurídica os inte resses econômicos e as relações de poder que não podem ser exorciza das com meras palavras Por outro lado não há tampouco uma barrei ra permanente e infranqueável A consciência jurídica e as forças econô micas são em si mesmas numa certa medida produtos da evolução do direito da evolução da legislação contemplada em sua continuidade his tórica As diversas forças sociais a ideologia política a consciência jurí dica e os fatores econômicos operam juntos em interação mútua As barreiras portanto não devem ser consideradas como diques perma nentes que fecham um canal Representam um ponto de inércia na interação recíproca e podem ser comparadas com as margens de um rio as quais estão determinadas pela erosão da corrente e seus depósitos e ao mesmo tempo determinam o curso da água Essa conclusão concorda que o legislador é um técnico social que através da mecânica do direito procura moldar a evolução social A engenharia social se acha por sua subordinação fundamentalmente na mesma posição das demais engenharias O engenheiro técnico tampouco dispõe de uma lâmpada de Aladim Também ele está limita do pela resistência da matéria pelas forças que sobre ela atuam Cabe indagar se a sociologia pode iluminar o legislador acerca das limitações da política jurídica numa dada situação Segundo o que vimos tal esclarecimento no melhor dos casos pode indicar limitações mais elásticas determinadas pela plasticidade do material social e não barreiras permanentes e infranqueáveis Adquire aqui importância o estudo sociológico de tendências em evolução O curso da história não está predestinado não pode ser objeto de previsões que sejam independentes da intervenção deter minada pelo conhecimento e a vontade do ser humano Tampouco pode ser objeto de previsões científicas mediante a inclusão dessas intervenções no cálculo As crenças futuras e as doutrinas científi cas em todos os casos não podem ser calculadas de antemão porque se pudessem sêlo já existiriam por exemplo a teoria da relatividade de Einstein teria existido como uma previsão antes que Einstein a tivesse elaborado E como nossas crenças condicionam Direito e Justiça 407 nossos objetivos e outras atitudes estas tampouco podem de an temão ser calculadas26 Por outro lado há continuidade nas transformações operadas no conhecimento e nas atitudes dos seres humanos donde que partin do de dados determinados e projetandose para um futuro próximo é possível calcular tendências em evolução Tais cálculos contudo não são mais que probabilidades baseadas na pressuposição de que não ocorrerão mudanças substanciais nos conhecimentos e atitudes dados A determinação das tendências não deve ser confundida com a extrapolação mecânica de uma curva A circunstância de que os preços durante um certo tempo foram baixando não constitui em si27 funda mento pare estabelecer uma tendência de baixa dos preços do mesmo modo que a circunstância de ter chovido durante um certo tempo não constitui em si28 justificação para suporse que continuará chovendo O pensamento popular amiúde não vai além de tal extrapolação Um es tudo científico de tendências pressupõe uma análise profunda dos da dos em conexão com um conhecimento das correlações invariáveis que determinam a evolução É possível portanto que um economista que conheça a teoria dos ciclos de negócios possa prever com base na que da dos preços durante períodos de tempo bastante longos uma tendên cia de alta Este exemplo ilustra também que qualquer determinação de tendências depende do conhecimento sociológico da época e varia com um aumento desse conhecimento Até recentemente há poucos anos os economistas consideravam que os ciclos econômicos eram inevitáveis e portanto previam uma tendência a movimentos contínuos para cima e para baixo Atualmente graças a economistas como Myrdal e Keynes possuímos o conhecimento necessário para conter tais movimentos de maneira eficiente por meio do equilíbrio do orçamento e outras medidas A tendência cíclica com que se contara sempre anteriormente e que ainda parece ser um pressuposto dogmático na política da Rússia sovié tica frente aos Estados Unidos já não é considerada do mesmo modo devido ao nosso melhor conhecimento 26 A fundamental imprevisibilidáíle da história deriva ademais do fato de que a própria previsão é um fator que influi sobre o curso da evolução Ver parágrafo 9 27 Embora possa sêlo em conexão com uma teoria do comércio 28 Embora possa sêlo em conexão com uma teoria meteorológica no sentido de que o tempo as condições atmosféri cas tem caráter periódico 408 Alf Ross O estudo de tendências não deve ser confundido tampouco com a filosofia do destino O estudo de tendências é relativo e empírico enquanto a filosofia do destino é absoluta e metafísica O primeiro não se atribui significado normativo quanto à legislação e a política Simplesmente esclarece o legislador acerca das condições nas quais deverá atuar define sua tarefa e estabelece certos limites para a política possível A missão do legislador é acomodar as tendências em consonância com seus propósitos Os limites consistem na continui dade da evolução e em seu momentumde inércia Não nos propomos dizer em que medida na etapa presente do desenvolvimento das ciências sociais somos capazes de levar a cabo um estudo de tendências que possa nortear o legislador As tentati vas de um argumento raciocinado nessa direção as quais aparecem nos relatórios legislativos se baseiam mais em impressões vagas do que no conhecimento científico Nosso propósito foi indicar simples mente uma tarefa científica que é fundamentalmente possível e que na medida em que é suscetível de realização acrescentará outro do mínio ao âmbito do trabalho da política jurídica tal como delineado no parágrafo 75 Capítulo XVII O Papel da Consciência Jurídica na Política Jurídica 84 ATITUDES BASEADAS EM NECESSIDADES INTERESSES A palavra interesse pode ser tomada em sentido amplo e em sen tido estrito O sentido amplo abrange todo estado de consciência que encerra uma atitude Neste sentido estamos interessados em tudo aquilo a respeito do que experimentamos uma atitude positiva ou negativa Por outro lado quando dizemos que uma ação nasce dos interesses de uma pessoa a palavra é tomada em sentido estrito Com a palavra interesse se designa então uma classe particular de atitudes conhecida em psicologia como atitudes fundadas em neces sidades Sua contrapartida são as atitudes baseadas em sugestões Entre estas as atitudes morais têm importância especial para a polí tica jurídica Ainda que a divisão não seja exaustiva nas páginas seguintes me referirei aos interesses atitudes baseadas em necessi dades e às atitudes morais como se fossem conceitos opostos As necessidades têm suas raízes num mecanismo biológico de autorregulação necessidade em sentido biológico Diversos estados biológicos que em relação à função norma do organismo podem ser denominados estados de carência estimulam o organismo a uma 410 Alf Ross atividade que pelo menos em conexão com certas experiências é apropriada para fazer cessar o estado de carência com cujo desapare cimento cessa também a atividade Por exemplo a carência de alimen tos para um mecanismo biológico no qual desempenham um papel o estômago vazio e os sucos gástricos estimula uma infatigável ativida de de busca até que o animal encontre e consuma objetos adequados à alimentação Os alimentos extinguem o estímulo biológico ativador e sobrevêm um estado de repouso Após algum tempo o processo re começa Os objetos apropriados para extinguir o impulso coisas materiais ou formas de energia por exemplo alimentos ar calor luz e atividades ou funções por exemplo movimentos ou reações de excreção corporal são conhecidos em psicologia como satisfazedores Fenomenologicamente as necessidades aparecem no ser humano como experiências de necessidade descontentamento anseio relati vamente a algo necessidades em sentido psicológico A atividade estimulada pela necessidade é experimentada como um esforço e a extinção do impulso que resulta da atividade como uma satisfação É improvável que o ser humano tenha uma consciência inata de quais são os objetos adequados à satisfação de uma determinada necessidade A premência ou anseio é originariamente cega um es forço desprovido de meta Um bebê está intranqüilo e chora porque necessita de alguma coisa alimentos fraldas limpas ser aquecido ou refrescado Entretanto seus impulsos não têm uma direção particu lar e não há razão para supor que um bebê tenha alguma idéia do que é que necessita Graças à ajuda de outros seres humanos suas diversas necessidades são satisfeitas e à medida que sua consciência do que o cerca aumenta gradualmente melhora sua capacidade para reconhecer os diversos satisfazedores que em situações distintas lhe foram fornecidos Já não experimenta então a necessidade pura e simplesmente como descontentamento como anseio cego mas como uma premência ou anseio para este ou aquele objeto definido sua mãe sua mamadeira seu chocalho Seu esforço impulsivo não é mais desprovido de direção mas um esforço orientado por um propósito um esforço que aponta satisfazedores específicos Assim as experi ências do indivíduo a respeito do que é que satisfaz suas necessida des fazem com que seu anseio não seja mais cego e transformam sua ação impulsiva sem direção num esforço orientado por um propósi to que busca um fim específico Direito e Justiça 411 Se uma pessoa é consciente do objeto de sua necessidade sua experiência dela em suas diversas fases anseio esforço satisfação possui o caráter de uma atitude para esse objeto Esta atitude é usualmente denominada interesse em sentido estrito E comum distinguirse entre necessidades corporais e espirituais Ao primeiro grupo pertencem a necessidade de respirar de abrigo de água e de alimentos de excreção de higiene de atividade sexual e de descanso O segundo grupo inclui a necessidade de estímulo ou distração de expressão de produção de companhia de amor ou cuidado de se gurança a necessidade de possuir e juntar de ajudar também a necessidade de destruição de autoafirmação de autorespeito de justificação de conhecimento de harmonia etc Os interesses não são necessariamente egoístas interesses pró prios O interesse baseado na necessidade de ajudar é dirigido à satisfação de necessidades alheias Nasce de um impulso de ajudar outros que estão necessitados e se funda em sentimentos de simpa tia em relação a eles O interesse altruísta tem caráter indireto se remete a um interesse direto de outro ou seja a um interesse que é experimentado por alguém que não é a própria pessoa como um interesse direto ou um interesse próprio Quando no campo do direito ou da moral falamos de um equilíbrio de interesses queremos dizer interesses próprios autointeresses 841 Interesses individuais e coletivos Os interesses são experimentados por pessoas não conhecemos outros centros de experiência e neste sentido são individuais Falar de interesses coletivos ou comunitários no sentido de que é o grupo ou a comunidade que experimenta ou tem o interesse carece de sentido Devemos procurar outra maneira de atribuir a essas palavras um significado aceitável Imaginemos dois indivíduos A e B prisioneiros de uma mesma cela Ambos querem fugir Os dois têm cada um de sua parte inte resse em sair da prisão Neste medida podese afirmar que seus inte resses coincidem Suponhamos além disso que a fuga requer neces sariamente a cooperação dos dois Cada um deles portanto tem f interesse em ajudar o outro não por razões altruístas mas porque a fuga de cada um depende de uma cooperação que possibilita tam bém a do outro Nessa medida podese dizer que seus interesses estão ligados Finalmente podemos imaginar que cada um sente tal impulso altruísta de ajudar o outro a ponto de levar a ambos a pensar na fuga não como a fuga de A ou a de B mas como a fuga comum a fuga de A B Temos que tentar fugir dizem Em tal medida podemos dizer que seus interesses são comuns Fica claro que o fato dos interesses coincidentes estarem também ligados depende unicamente de circunstâncias externas no caso uma situação fatual de solidariedade que move A na direção de B e reci procamente como instrumentos necessários para a satisfação de seus interesses egoístas Que A e B sejam também conscientes da cone xão mútua de interesses depende unicamente portanto de um co nhecimento racional do estado fatual de solidariedade Por outro lado que os interesses coincidentes sejam experimenta dos também como um interesse comum depende de algo subjetivo a saber que cada uma das partes se identifique de tal maneira com as outras ou com o todo que nasça em cada uma delas uma consci ência de grupo Isto significa que cada uma sente como se não esti vesse agindo em seu próprio nome e em seu próprio interesse mas como um órgão de um todo de uma comunidade Não é A quem planeja a fuga de A nem B quem planeja a de B mas A B planeja a fuga de A B Parece natural então falar de um interesse em escapar que não é atribuído singularmente a A nem a B mas ao todo A B É preciso ter presente todavia que a expressão o interesse de A B em fugir é uma frase que não deve ser interpretada com base na analogia com a expressão o interesse de A em fugir Isto porque não designa um interesse único experimentado por um sujei to comum A B mas uma constelação de interesses individuais experimentados sob pressupostos emocionais dados Atribuir o inte resse a um todo supraindividual um sujeito coletivo uma comuni dade é usar uma expressão metafórica para a experiência individual de coparticipação de interesses Cabe perguntar se A pode experimentar a situação como uma coparticipação de interesses sem que B o faça É verdade por certo que A pode sentir simpatia por B e um impulso altruísta para ajudálo 412 Alf Ross Direito e Justiça 413 sem que haja reciprocidade de sentimentos da parte de B Por outro lado a experiência de identificação e coparticipação pressupõe quase com certeza certa reciprocidade da parte do outro indivíduo A conexão de interesses solidariedade fatual já o dissemos não é idêntica à comunidade de interesses solidariedade emocional É coisa distinta se poder considerar que o conhecimento da dependên cia mútua condiciona a atitude de coparticipação Os interesses conectados talvez sejam experimentados mais facilmente como co muns do que os interesses coincidentes O que acabamos de indicar a respeito da situação de A e B na prisão pode ser generalizado e se aplicar à comunidade da vida humana na luta contra a natureza À medida que a técnica de produção se trans forma num aparato altamente organizado e ramificado fazse mais claro que todos dependem de todos numa solidariedade fatual Nin guém se basta a si mesmo O capital depende do trabalho e o trabalho do capital A prosperidade da agricultura é condição para o bemestar das indústrias urbanas e viceversa Uma crise de produção nos Esta dos Unidos seria ruinosa para a economia européia e reciprocamente os Estados Unidos se beneficiam com uma Europa florescente Os inte resses humanos se acham extensivamente ligados e se traduzem numa cooperação que por sua vez aumenta a dependência mútua Em cer ta medida são experimentados como interesses comuns atribuídos a uma coletividade As formas correspondentes de vida social podem ser denominadas sociedade e comunidade1 A distinção entre elas se baseia num sentimento de simpatia e de pertencer ao grupo que faz com que o indivíduo se identifique com o grupo O limite portanto é fluído Com esta disposição podese di zer que as empresas comerciais e outras associações técnicofinancei ras e a cooperação entre Estados são exemplos de formas de vida social que têm de modo predominante caráter de sociedade a na ção a família os clubes e as comunidades religiosas são exemplos de grupos que têm de modo predominante caráter de comunidade Mostrar o fato da solidariedade isto é indicar em que medida os interesses humanos estão mutuamente ligados é uma tarefa teórica Falar de interesses comuns ou interesses comunitários é algo mais 1 0 sociólogo alemão F Tõnnies foi quem cunhou estes termos quê são contudo usados aqui num sentido um tanto diferente daquele que lhes atribuiu Tõnnies 414Alf Ross não é simplesmente uma asserção sobre a conexão fatual de interes ses mas também um meio de persuasão uma forma de expressar uma atitude de sentimentos comuns que apela aos mesmos senti mentos em outras pessoas Se digo por exemplo que numa dada situação a poupança é de interesse comum ou de interesse da comu nidade não só estou indicando certas relações econômicas que ligam nossos interesses como também estou fazendo um chamado ao sen so comunitário ou ao sentimento comunitário Isto significa apelar aos sentimentos de pertencer ao grupo identidade solidariedade e aos interesses altruístas a eles Ngados que lutam com os interesses egoístas que impulsionam o indivíduo a buscar sua própria vantagem às expensas do todo1 Devese observar que nem todos os interesses de um indivíduo estão ligados aos interesses dos outros Tampouco se pode dizer em geral que alguns interesses estão isolados e outros ligados Em lugar disso cada interesse tem um aspecto que está individualmente isola do e outro que está socialmente ligado3 Se por exemplo pensamos no interesse de um indivíduo na posse de objetos materiais este interesse se choca com os interesses conflitantes de outras pessoas Esses interesses são coincidentes e ligados em um só aspecto todos estão interessados que haja um ordenamento geral da propriedade que garanta a cada um segurança em certa posse limitada Assim a propriedade de A considerada individualmente quer dizer como seu interesse em dispor de certa fração de terra é um interesse mera mente individual porém seu interesse e o interesse de cada um dos outros num ordenamento da propriedade que dê segurança à posse é um interesse social4 Introduzimos este termo para designar os inte resses geralmente coincidentes e ligados dentro de um grupo no qual haja uma certa ordem social Fazer uma hipóstase adicional dos inte resses sociais em que haja um ordenamento da propriedade sustenta dos por A B C etc e falar de um interesse supraindividual atribuído à comunidade o ordenamento ou regulamentação da propriedade como 2 A tentativa de Duguit de derivar o direita objetivo natural do fato da solidariedade se baseia podemos dizêlo com brevidade na errônea concepção de que a solidariedade como atitude emocional e ideal é substituída pela solida riedade como fato Cf parágrafo 57 3 Há por certo algumas necessidades tais como a necessidade de ar e de excreção corporal que não têm aspecto social isto é sua satisfação não depende da cooperação com os outros 4 0 uso do singular não indica que o interesse é atribuído a uma única parte interessada a comunidade mas que muitas partes interessadas têm um interesse de mesmo conteúdo Direito e Justiça 415 um interesse comunitário5 é como já vimos fazer uma metáfora cuja função consiste em apelar ao sentimento de simpatia e ao interesse altruísta através do qual o indivíduo se identifica com o todo Isso deixa claro que toda tentativa de formular um catálogo de interesses individuais e sociais conflitantes e independentes está fa dada ao fracasso Tratase de dois aspectos da mesma coisa o espe cífico e o geral Se por exemplo incluímos entre os interesses indivi duais o interesse de A em possuir objetos materiais em gozar de integridade pessoal em casarse e formar uma família em celebrar acordos obrigatórios etc então a eles corresponderão os interesses sociais num ordenamento ou regulamentação geral da propriedade da paz do casamento e da família dos contratos etc Pela mesma razão é também impossível distinguir entre as esferas da vida dominadas por interesses individuais e esferas dominadas por interesses sociais6 842 Interesses privados e públicos7 Essa distinção deriva logicamente da distinção entre os interesses individuais e sociais Se o poder político da comunidade protege um interesse social por meio da legislação se diz que esse interesse é público O interesse individual em contrapartida é denominado pri vado Os interesses públicos podese dizer também são interesses sociais protegidos pelo Estado como expressão dos órgãos politica mente organizados do poder da comunidade Assim os interesses sociais num ordenamento ou regulamentação da propriedade da paz do casamento da defesa do país etc são interesses públicos A expressão se usa também para designar os interesses específicos indi viduais derivados detidos pelas autoridades públicas em conexão com a proteção dos interesses públicos no sentido geral Por exemplo se as 5 0 uso do singular aqui é para mostrar que o interesse metaforicamente é atribuído a uma única parte interessada a comunidade 6 Concluise daqui que com esta base é impossível distinguir entre direito público e direito privado Considerado como um ordenamento geral todo sistema jurídico protege interesses sociais aqueles que nessa medida são chamados de interesses públicos cf o texto que se segue na imediata seqüência Considerado do ponto de vista da relação jurídica específica todo sistema jurídico protege interesses individuais Cf parágrafo 46 7 0 problema dos interesses individuais sociais privados e públicos foi discutido principalmente por Ihering e Roscoe Pound ver Julius Stone The Promce and Function of Law 1950 cap XI parágrs 3 e 7 cap XX parágrs 15 cf cap XXI e XXII mas em minha opinião sem uma clarificação dos termos 416 Alf Ross forças armadas como parte de seu trabalho em prol da defesa nacio nal querem instalar uma linha de tiro numa certa área este interesse individual também é denominado interesse público Seria todavia conveniente por razões de clareza reservar a expressão interesse público para os interesses sociais gerais em nosso exemplo a defe sa nacional e chamar os interesses individuais derivados instalar uma linha de tiro de interesses do Estado 85 ATITUDES MORAIS Nem todas as ações humanas são interessadas motivadas por uma necessidade Isto se aplica não só aos reflexos piscar espir ro que ocorrem sem conhecimento e vontade como também às formas de ação superiores e organizadas as quais são conhecidas como atos de volição Entre as ações desinteressadas as mais importantes são as ações sugeridas ou persuadidas É um fato psicológico que sob certas cir cunstâncias meios adequados de persuasão podem transmitir atitu des e impulsos de ação a outras pessoas Tal como vimos mais exten sivamente anteriormente parágrafo 72 os meios de persuasão po dem ser lingüísticos ordens petições convites e outras exortações verbais ou seja palavras com uma carga emocional ou não lingüísticos o tom de voz a expressão facial o gesto Comumente ambos os tipos são utilizados de forma simultânea Quando os pais em tom imperativo dizem a uma criança Não mexa ou quando o sargento dá aos seus homens a voz de comando Marchem estas ordens desencadeiam impulsos espontâneos de não agir ou agir de uma maneira específica Tais impulsos não nascem de uma necessidade e não expressam nenhum interesse da parte da pessoa que os obede ce Outra coisa é que a disposição de obediência da criança e do soldado pode ser cultivada pois essa disposição tem suas raízes numa relação de dependência ou de poder entre as partes que condicionam originariamente no dependente ou no subordinado um interesse de obedecer Uma vez estabelecida a disposição quando o poder se transformou em autoridade podese omitir o apelo a um motivo de interesse resultando a obediência do mesmo modo não por temor mas de forma espontânea O impulso à ação surge automaticamente e com força compulsiva ainda quando seja conflitante com fortes Direito e Justiça 417 interesses O propósito dos exercícios militares com sua eterna repe tição de ordens aparentemente sem sentido é cultivar tal disposição permanente à obediência cega que quando surgir a necessidade de combater bastará uma ordem para que os soldados reajam esponta neamente como autômatos em conflito com os poderosos motivos do instinto de autopreservação e do medo Os impulsos e atitudes particulares que são experimentados como morais têm também um caráter desinteressado isto é não baseado em necessidades Isto se constata com clareza quando a moral é experimentada e interpretada como dever8 O que é característico da experiência do dever é precisamente que apreendemos nela um impulso para a ação que se apresenta como uma exigência indepen dente de tudo que nossos desejos inclinações e interesses nos suge rem O imperativo do dever não busca sua justificação em nenhuma utilidade ou vantagem não apela a nenhum interesse apresentan dose com absoluta independência Não é necessário que o dever esteja em conflito com nossas inclinações naturais mas assume sua forma mais clara quando isso ocorre É experimentado então se cumprimos com o nosso dever como uma censura à nossa natureza sensual nos sentimos impelidos por um motivo que nada tem a ver com nossas necessidades e interesses por um motivo desinteressa do o puro sentido do dever As atitudes morais têm origem social são inculcadas na pessoa pela persuasão sugestiva de seu meio A peculiaridade da persuasão que cria a moralidade é que acontece nos primeiros anos da vida Desde a infância a criança cresce num meio social representado primeiro pelos pais irmãos e irmãs mais tarde pelos colegas da esco la e os professores Neste meio a criança é constantemente submeti da a um bombardeio de persuasões consoantes com a tradição cultu ral comum do grupo social com a herança social As persuasões con sistem primeiramente em exortações verbais Não minta Mante nha a palavra Não jure Não seja egoísta É covardia bater em alguém menor que você Estas exortações são logo apoiadas por outros meios de persuasão que expressam aprovação e reprovação 8 0 mesmo ocorre também quando a moral é interpretada como consciência do valor ou do bem Ver Alf Ross Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis 19331 cap III 8 Uma análise mais profunda da experiência do dever será encontrada na op cit cap VII 1 e 2 418 Alf Ross elogio censura castigo isolamento do grupo privação de afeto e simpatia etc Desta maneira a criança cresce no interior de uma ampla rede de regras convencionais que abrangem os aspectos mais variados da vida regras de linguagem de jogo de intercâmbio social de urbanidade e de moralidade em sentido estrito Estas regras são sentidas como morais isto é obrigatórias na medida em que são suscetíveis de se chocar com o prazer e as inclinações pessoais9 Assim por exemplo as regras da gramática são experimentadas como puramente convencionais enquanto o imperativo de não jurar adqui re um tom moral10 As exigências de higiene e de urbanidade são experimentadas originalmente pela criança como exigências morais mas pouco a pouco a conduta correspondente é inculcada até atingir um grau tal de automatismo que já não se deseja agir de maneira distinta As regras perdem assim seu caráter moral11 Com o tempo o fator de sugestão admoestação dos pais pode desaparecer A atitude moral será então acoplada diretamente à situação e à regra moral correspondente O adulto ou o adolescente não lembra como os impulsos morais foram nele implantados Apesar disso vive estes impulsos plena e espontaneamente como uma força que reprime suas inclinações Esta circunstância explica a inexplicabilidade que caracteriza a moral Enquanto parece bastante natural satisfazer nossas necessidades há algo estranho no fato de que cumprimos nosso dever inclusive contra nossos interesses Não parece que o dever possa ser atribuído à nossa natureza Afigurase óbvio conseqüentemente interpretar o impulso moral como expres são de uma específica validade sobrenatural que tem sua fonte em Deus ou na natureza racional suprasensível do ser humano que nos fala através de nossa consciência12 9 Cf Ross op cit p 422 e segs À distinção entre normas convencionais e morais corresponde uma diferença na reação social frente às transgressões A transgressão de uma norma convencional tipica provoca assombro ridículo e reserva Uma pessoa que se apresenta vestida de forma imprópria cai no ridículo e não faz parte da boa sociedade A transgressão a uma norma moral típica é recebida ao contrário com protestos de reprovação que podem atingir a ira a indignação e o horror 10 Se alguém sentisse o desejo de conjugar mal um veibo a norma gramatical presumivelmente teria para ele um tom moral 11 As normas comuns referentes ao decoro no vestir são geralmente sentidas portanto como meramente convencio nais Só naqueles casos excepcionais nos quais a exigência é experimentada como uma carga em conflito com as preferências pessoais por exemplo a exigência de usar traje acadêmico em certas cerimônias da universidade ela adquire o caráter de um dever moral 12 Na filosofia metafísica esta interpretação deu origem ao dualismo entre o ser humano como ser natural sujeito à lei universal da causalidade e o ser humano como ser dotado de razão uma pessoa moral cuja vontade é livre Jamais fui capaz de compreender como essas concepções opostas entre as quais oscila a filosofia prática de Kant podem ser conciliadas Direito e Justiça 419 A distinção entre atitudes e impulsos interessados e desinteressa dos entre interesse e moral não se confunde com a distinção entre egoísmo e altruísmo O interesse como vimos também pode ser altruísta A diferença decisiva na medida do que concerne a atitudes para uma regra de ação ou uma ordem social é a diferença entre racionalidade e irrracionalidade Na sua forma original e não qualifica da o interesse é uma atitude frente a um satlsfazedor repulsor isto é um objeto cuja aquisição eliminação satisfaz a uma necessidade A atitude interessada frente a uma regra de ação ou uma ordem social é uma atitude derivada e condicionada pela crença de que a regra ou ordem pode satisfazer certas necessidades O ponto de vista fundado no interesse está pois condicionado por certas crenças e em tal medi da pode ser justificado por argumentação racional A atitude moral senso moral ao contrário é uma atitude direta e absoluta frente a uma norma de ação ou ordem social É irracional no sentido de que expressa uma emoção e é inacessível à justificação e à argumentação A força motivadora desses dois tipos de atitude varia de uma pes soa para outra segundo certas crenças condicionantes sobre a natu reza e a origem do senso moral De acordo com a maneira na qual o indivíduo reage ao senso moral podemos distinguir dois tipos princi pais a atitude moral dogmática e a atitude morai cética Uma atitude moral dogmática é caracterizada por um sentimento de reverência diante da voz que vem de nossos corações Ninguém expri miu com maior beleza do que Kant o sentimento de profundo temor ante a majestade sublime da lei moral Kant escreveu as famosas palavras Zwei Dinge erfüiien das Gemüt m it immer neuer und zunehmender Bewunderung und Ehrfurcht je õfter und anhaitender sich das Nachdenken damit beschãftigt der bestimte Himmei über mir und das moraiische Gesetz in mirP Duas coisas locupletam meu coração com renovada e crescente admiração e temor quanto mais nelas medito o céu estrelado acima de mim e a lei moral no meu interior Esta atitude se baseava decerto em crenças religiosas ou filosóficometafísicas so bre a natureza e origem da consciência14 A voz que provém de nossos corações é interpretada como revelação de uma validade absoluta a priori que é atribuída a Deus ou à natureza racional suprasensível do ser humano que o coloca acima do mundo da necessidade 13 Immanuel Kant Kritik der praktischen Vernunft 1788 seção final Beschluss 14 Kant negou que a consciência moral pudesse ser explicada em termos de história e psicologia 420 Alf Ross A atitude moral cética em contrapartida desconfia das atitudes emocionais que confrontam diretamente certas normas de ação e exige que estejam justificadas pelo interesse Este atitude se baseia na crença de que o senso moral é um fenômeno empírico e psíquico como os demais A consciência em meu coração não é incompreensí vel e sublime Não me fala da vontade de Deus ou das leis categóri cas da razão mas simplesmente dos preconceitos que foram inculca dos em mim desde o berçário Tais preconceitos são por sua vez o produto de tradições sociais herdadas As atitudes morais têm origi nariamente sua raízes em necessidades sociais Entretanto estas se respaldam em parte em concepções mágicas religiosas e outras concepções falhas acerca da realidade física e social e em parte em condições que imperam na comunidade que podem ter se altera do posteriormente de modo que a moralidade herdada já não serve mais aos interesses que a originaram Por estas razões o senso mo ral não pode ter pretensão a um respeito cego No melhor dos casos pode ser considerado como uma indicação prima fàcie de que uma certa conduta serve a determinados interesse sociais É imperioso que seja nossa tarefa se for possível que seja levada a cabo15 exa minar essa hipótese e racionalizar nossa atitude emocional por meio de uma análise do problema da ação à luz de nossos interesses e de uma adequada concepção da realidade Como sucede nos problemas práticos não é possível provar a re tidão da atitude que se adota a não ser discutindo unicamente as crenças que a condicionam O cético moral pode em apoio de sua atitude denunciar a interpretação metafísica da consciência moral por considerála tão insustentável arbitrária e fantástica como todas as outras metafísicas parágrafo 58 pode apresentar uma explica ção psicológica da razão porque o impulso metafísico é tão poderoso na esfera da moral parágrafo 59 e pode fazer referência às obras modernas que explicaram a origem e a evolução do senso moral em termos de sociologia história e psicologia16 Se esses argumentos são aceitos e se é dispersada assim a névoa metafísica o resultado psicológico será indubitavelmente a demolição da cega reverência do dogmatismo moral frente à consciência moral 15Cf parágrafo 87 16 Ver por exemplo Edward Westermarck The Origin and Oevebpment of the Moral ldeasM 1924261 Direito e Justiça 421 Não posso conceber que seja possível aceitar uma versão científica isto é relativista histórica e psicológica do senso moral como um fenôme no empírico entre outros e ao mesmo tempo manter uma atitude de respeito submisso e obediência absoluta aos seus comandos 86 O PAPEL DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA NA POLÍTICA JURÍDICA TRÊS POSTULADOS FUNDAMENTAIS As observações feitas nos dois parágrafos anteriores sobre o inte resse e o senso moral podem ser aplicadas às considerações práticas e à consciência jurídica como fatores da política jurídica As considerações práticas considerações de interesse considera ções de utilidade são a expressão de uma valoração das regras jurí dicas com base em argumentos racionais acerca da relevância das regras para interesses pressupostos A consciência jurídica como o senso moral é uma atitude desin teressada de aprovação ou reprovação frente a uma norma social Difere do senso moral em que distintamente deste não aponta a relação direta entre ser humano e ser humano mas sim o regramento social organizado da vida da comunidade A consciência jurídica se dirige à ordem social Decide com base em atitudes em questões do tipo das seguintes se os criminosos devem ser punidos em relação a sua culpa se o aborto deve ser permitido se as mulheres devem ter o mesmo status jurídico dos homens se os trabalhadores devem ter direito de se reunirem em sindicatos se o casamento pode se dissolvi do pelo divórcio e sob que condições etc Em certa medida a consci ência jurídica é determinada pelo próprio ordenamento jurídico exis tente e por sua vez exerce influência sobre este último Podemos enunciar agora os três seguintes postulados fundamen tais relativos ao papel que cabe atribuir à consciência jurídica em questões legislativas competitivamente às considerações práticas lk consciência jurídica do próprio homem político jurídico não deve ser considerada como a medida da retidão correção de uma norma Este postulado praticamente dispensa justificação adicional Fica claro que qualquer idéia que conceba a consciência jurídica como 422 Alf Ross revelação de princípios de validade absoluta sobre a retidão do direito nos traz de volta às concepções metafísicas que temos rejeitado de maneira reiterada 2 A consciência jurídica que de fato predomina nos círculos dos governos não deve fazer parte dos pressupostos impessoais de atitu de do homem político Nos parágrafos 73 e 78 se estabelece como uma exigência metodológica que resulta do princípio de pureza da ciência que o investigador social à semelhança do técnico das ciên cias naturais deve aceitar como hipótese as atitudes políticas de fato existentes nos círculos predominantes da comunidade Pareceria in ferirse disso que deve aceitar também as atitudes especiais expres sas na consciência jurídica É mister lembrar todavia que as atitudes existentes são apenas a matériaprima que deverá ser elaborada Em particular será necessá rio averiguar se as atitudes estão condicionadas por uma concepção inadequada da realidade e necessitam por isso correção à luz de um conhecimento científico mais adequado Isto vale em especial para a consciência jurídica Os pontos de vista aqui aplicáveis são análogos aos que se referem ao dogmatismo moral e ao ceticismo moral pará grafo 85 Quando se percebe que a consciência jurídica não é uma revelação de uma validade sobrenatural de princípios eternos de justi ça ou da vontade de Deus mas simplesmente um fato psíquico entre outros quando se vê que é um produto da história resultante de um jogo de forças que inclui poderosos interesses de grupo instintos pri mitivos e idéias tradicionais mágicas e religiosas quando se comprova que se bem que tal consciência jurídica muda com as condições em mutação da comunidade parágrafo 87 com freqüência se retarda por trás da evolução da comunidade em virtude da inércia da tradição quando compreendemos tudo isto com clareza a consciência jurídica perde sua força motivadora Não se pode então deixar de se indagar por que ao nos ocuparmos dos problemas sociais permitimos que nos domine essa emoção que de forma irracional nos ata ao passado Queremos desafiar a consciência jurídica e averiguar se pode ser justificada como uma soma total da experiência de gerações sobre o que está a serviço de certos interesses sociais A consciência jurídica só deve ser reconhecida como indicação prima facie de necessidades so ciais É imperioso que se exija que sua atitude irracional seja subs tituída na maior medida possível por uma análise racional com base Direito e Justiça 423 de determinados interesses e por um conhecimento racional dos efei tos das medidas legislativas em discussão Poderseia dizer aqui novamente que essa atitude cética diante da consciência jurídica expressa um ponto de vista não uma verdade científica mas um ponto de vista que se nos impõe uma vez que compreendamos e aceitemos as crenças sobre a natureza da consci ência jurídica Estas crenças podem ser defendidas e justificadas como verdades objetivas Além disso independentemente dessa atitude cética ser comparti lhada ou não o apelo à consciência jurídica está fora do âmbito da política jurídica científica A tarefa desta como sustentamos anterior mente parágrafo 73 deve consistir em orientar a argumentação racional suprindoa com asserções cientificamente sustentáveis Mas o apelo à consciência jurídica se o considerarmos como uma atitude motivadora e não como uma circunstância fatual ver terceiro postula do na seqüência não é um argumento mas um meio direto de per suasão O apelo à consciência jurídica faz cessar toda argumentação racional e só pode ser neutralizado por meio da expressão emocional de uma consciência jurídica divergente Há lugar somente para uma argumentação racional quando a consciência jurídica deixa de ser acei ta como motivação em si mesma e se exige que seja posta à prova e justificada à luz de considerações práticas interesses A justaposição de considerações práticas e consciência jurídica comum na argumentação de política jurídica é uma mistura metodi camente impossível de argumentação racional e persuasão irracio nal17 O caráter absurdo desta mistura permanece oculto porque uma mão invisível parece governála com tal sabedoria que o apelo à cons ciência jurídica sempre concorda com a argumentação prática Mas qual seria a posição se as duas abordagens levassem a resultados conflitantes Só haveria duas possibilidades ambas inaceitáveis ou bem se faz necessário preferir uma abordagem à outra a consciência jurídica às considerações práticas ou viceversa em cujo caso é ab initio inútil invocar ambos os pontos de vista se um deles tem que ser deixado necessariamente de lado quando contradiz o outro ou bem se faz necessário efetuar uma ponderação e ajuste semelhantes aos que 17 As coisas são diferentes quando a consciência jurídica é considerada como circunstância fatual Cf o terceiro postulado e o parágrafo seguinte 424 Alf Ross precisam ser realizados quando diversas considerações práticas são ponderadas umas em relação às outras Porém tal ponderação ou balanceamento tem que resultar inaceitável a partir de cada um dos pontos de enfoque o racional e o irracional já que ambos recla mam validade soberana Se se aceita a consciência jurídica toda consideração de interesses deve ser rejeitada Se uma conduta é emocionalmente reprovada como má em si mesma não há ponto de vista racional fundado em interesses que tenha peso algum Inver samente caso se tenha decidido com base numa valoração racional de interesses não haverá aprovação ou reprovação emocional que tenha qualquer peso 3 A consciência jurídica predominante na comunidade só pode ser levada em consideração como um fator espiritual de que depende a viabilidade prática de uma reforma jurídica São essencialmente aplicáveis a essa questão os comentários fei tos no capítulo sobre as possibilidades da política jurídica O legisla dor não pode moldar a evolução arbitrariamente suas possibilidades estão limitadas entre outras coisas pela consciência jurídica predo minante na comunidade Essa restrição aos esforços do legislador na direção da conduta dos seres humanos deve ser levada em conta por este em seu cálculo jurídicosociológico do efeito fatual de um projeto de lei Tal é o cerne da doutrina da escola histórica A consciência jurídica segundo essa idéia é considerada como uma circunstância fatual e não como um motivo isto é figura entre as crenças operativas que descrevem fatos e correlações sociológico jurídicos e não entre as premissas de atitude motivadora Em conso nância com isto não se leva em conta a consciência jurídica em si mesma mas sim seus efeitos quer dizer a conduta que ela presumivelmente condiciona Ainda quando uma consciência jurídica popular existente não te nha talvez força suficiente para frustrar uma medida legislativa pro posta pode fundar um argumento contra o projeto pois não se deve esquecer que uma lei adotada que seja contrária à consciência jurídi ca popular provavelmente causará má vontade insatisfação e atrito e isto pode ter um efeito indesejável sobre o acatamento geral à lei Tais pontos de vista são importantes para decidir acerca de atos que sem chegar a lesar interesses alheios são contrários à crença Direito e Justiça 425 moral predominante e por isso são geralmente censurados Particu larmente em épocas anteriores mas também ainda hoje tem sido freqüente punir atos por considerálos pecaminosos por exemplo di versas formas de relações sexuais homossexuais extraconjugais re lações sexuais entre parentes distantes ou entre parentes afins defini dos pelos casamentos adultério práticas antinaturais heresia e ou tros atos condenados pela Igreja18 Para uma atitude moral dogmática o senso moral é em si mesmo razão suficiente para o castigo de tais atos É inútil discutir tal ponto de vista A punibilidade pode ser justificada por considerações práticas de interesses mas somente com base na idéia de que se deve proteger o sentimento de indignação dos cida dãos e satisfazer o seu desejo de castigar aqueles que provocaram a indignação Como sempre ocorre com as valorações práticas a decisão tem que se apoiar num equilíbrio das considerações em conflito no exemplo que examinamos se apoiará num equilíbrio do sentimento de indignação e da liberdade de pensamento e de ação do próximo De minha parte penso que a indignação moral não merece proteção quando se opõe aos interesses dos outros Em geral recomendaria que não se proibisse nenhum ato cuja única interferência com os interesses dos outros consiste em que os condenam por razões morais Para dizêlo mais simplesmente os seres humanos devem ser livres para realizar aqueles atos que não dizem respeito aos outros mesmo que os outros os considerem pecaminosos Tratase da essência do princípio da tolerância A evolução na cultura ocidental passou por duras lutas em seu avanço rumo a um triunfo desse princípio A emancipação do jugo da intolerância reli giosa e moral expressa no desaparecimento de um grande número de anteriores proibições e castigos é em minha opinião um passo vital adiante para a felicidade humana Esta tendência deve receber nossa adesão para quê o princípio da tolerância adquira vigência plena no âmbito do direito e nas outras esferas da vida comunitária do ser humano 18 Os atos aos quais aludimos aqui que se caracterizam pelo fato de que a própria ação isto é com independSncia de sua condenação moral não diz respeito aos outros não devem ser confundidos com os casos nos quais a ação em si mesma é uma ofensa contra a vida emocional de outras pessoas As ofensas contra o pudor público os insultos às crenças religiosas blasfêmia as injúrias e calúnias e outros delitos não devem portanto ser aqui incluídos Aqui Ross do nosso ponto de vista atual mais uma vez incorre num anacronismo inevitável em função da realidade que observava na década de 50 do século XX mas ao mesmo tempo demonstra uma lucidez de homem de vanguarda para sua época o que é reforçado na posição assumida nas palavras que profere na imediata seqüência NT 426 Alf Ross 87 0 PAPEL DA CONSCIÊNCIA JURÍDICA QUANDO FALTAM CONSIDERAÇÕES PRÁTICAS Em nosso terceiro postulado se estabeleceu que a consciência ju rídica entendida como aquela que prevalece na comunidade só pode ser considerada como circunstância fatual não como um moti vo em si mesma Vimos que a consciência jurídica pode constituir às vezes uma resistência ou mesmo uma barreira às exigências de política jurídica em prol de reformas fundadas em considerações práticas A consciência jurídica pode chegar a desempenhar um papel mais decisivo ainda em certas circunstâncias a saber quando as conside rações práticas estão ausentes Visto que qualquer reforma jurídica é em si uma intervenção que acarreta inconveniências próprias a toda mudança deve provar que é justificada Se não existirem considera ções práticas que a justifiquem será preciso remeterse à tradição arraigada na consciência jurídica popular Os argumentos práticos podem faltar seja porque numa determi nada questão o ordenamento jurídico é indiferente às considerações práticas determinadas pelo interesse seja porque nosso atual conhe cimento das relações sociais não nos permite formar opiniões bem fundadas a respeito das conseqüências sociais das possíveis solu ções e não estamos por isso em situação de realizar uma escolha racionalmente justificada entre essas soluções Não há uma linha demarcatória precisa que separe esses dois casos Podem ocorrer situações desse tipo tanto com relação a normas particulares dentro de nossas instituições jurídicas como em relação às próprias instituições em seus componentes fundamentais O primei ro caso é bem conhecido O segundo tem sido percebido raramente É fácil encontrar justificações práticas para a regulamentação do trânsito a liberdade irrestrita conduziria ao caos Por outro lado é muito difícil invocar fundamentos práticos para se decidir entre ado tar nessa regulamentação o tráfego pela direita ou pela esquerda Nesta situação o habitual podemos dizer também a consciência jurídica é o decisivo O mesmo ocorre com outros aspectos da regulamentação do trânsito Mesmo quando talvez se possam in Direito e Justiça 427 vocar certas considerações práticas qualquer mudança nos hábitos do trânsito firmemente estabelecidos traz inconvenientes que têm uma forte carga de prova contra si Em outras áreas jurídicas nos deparamos com situações análogas É importante que haja regras claras e estabelecidas firmemente quanto ao termo da prescrição prazo de resgate e demais termos ainda que freqüentemente seja difícil argumentar racionalmente a favor de um prazo desta ou aquela duração Coisa idêntica sucede com as regras que determinam quando se atinge a maioridade e as que fixam a idade mínima para contrair matrimônio para votar etc No mundo dos negó cios e em outras esferas da vida nas quais a clareza e a certeza têm valor preponderante sói ser mais importante dispor de uma regra pre cisa do que a preferência de um conteúdo relativamente a outro Em tais casos é freqüente se falar da positividade pura do direito aludindo com isto à arbitrariedade como coisa oposta à racionalidade Existe uma situação semelhante com relação às instituições jurídi cas fundamentais nas suas características básicas A regulamentação da propriedade é tão necessária quanto a regu lamentação do trânsito Quando entretanto levantase a questão de se o ordenamento da propriedade deve ser baseado no capitalismo ou no socialismo não sabemos como a produção o comércio as relações humanas etc se verão afetadas por cada um desses siste mas e por isso não podemos formar uma opinião comparativa bem fundada quanto a que sistema é preferível Embora existam diferen tes crenças sobre o assunto nenhuma conta com suficiente apoio na ciência ou na experiência que as façam merecer outro nome senão aquele de ideologias O mesmo ocorre talvez com mais clareza com relação ao nosso regramento do casamento Da maneira como vejo a questão não é possível apresentar um argumento racional sustentável do porque a monogamia é preferível à poligamia e a outras formas fundamentais de matrimônio que são conhecidas em outras culturas As condições para celebrar um casamento e em particular para dissolvêlo têm variado extensivamente através dos tempos e ainda hoje em dia dife rem consideravelmente de um país para outro Embora essas varia ções correspondam em alguma medida a variações dos interesses e necessidades das diversas comunidades é difícil aceitar que toda a 428 Alf Ross explicação se resuma nisso Não parece possível demonstrar racio nalmente qual é o regramento do matrimônio que serve melhor aos interesses sociais específicos O que realmente sabemos sobre as conseqüências para o indivíduo ou para a comunidade das regras matrimoniais rígidas ou das elásticas Antes se pensava que uma maior elasticidade em relação a questões matrimoniais favoreceria a decadência moral da comunidade A experiência não tem confirmado isto Entretanto estamos em condição de fornecer uma interpretação mais sustentável da questão As instituições jurídicas fundamentais não parecem permitir um argumento racional Os problemas que colocam são amplos demais para possibilitarem um juízo comparativo de suas conseqüências so ciais Podemos ser capazes de calcular aproximadamente os efeitos de medidas particulares dentro da instituição a importância da exis tência de registros para um sistema creditício sólido a importância da desapropriação para o planejamento urbano e outros empreendimen tos sociais etc As próprias instituições fundamentais todavia de vem ser aceitas pelo que parece como fatos culturais Nas diversas culturas as instituições assumem diferentes formas Uma vez molda das por causas que não podemos compreender as instituições são preservadas por uma tradição cultural e sustentadas por uma consci ência jurídica que reflete essa tradição A tradição e este sentimento contudo não são imutáveis mudando com o tempo É tentador su por com a escola histórica que vivem sua própria vida orgânica De fato todavia é mister aceitar que mudam sob a pressão da experiên cia e das necessidades mas de uma maneira que não podemos con trolar As instituições fundamentais mudam conjuntamente com a evolução da comunidade e inclusive podem mudar por ação das revoluções mas se encontram fora do âmbito da política racional Esses fatos explicam o caráter fictício das razões que em diferentes épocas foram apresentadas em apoio das instituições jurídicas funda mentais sob a forma que se desenvolveram no tempo e no espaço Essas supostas razões ostentam claramente o timbre de criações adhoc Têm caráter ideológico isto é são construções teóricas nascidas da necessi dade de justificar uma atitude prática ou um programa de ação Quando faltam os argumentos racionais ou têm eles escassa força diretiva a consciência jurídica se apossa do papel diretor Isto signifi ca que por falta de argumentos em favor de algo distinto lançase Direito e Justiça 429 mão da tradição jurídica e cultural herdada Isto não é exatamente o mesmo que o conservadorismo absoluto Pela evoluçãoda comunida de e pelas alterações na moralidade se faz necessário um ajuste con tínuo do direito em parte condicionado pelos desenvolvimentos téc nicos e em parte pelas mudanças nas concepções da realidade rele vantes para as atitudes morais O debate público pelo menos numa democracia é um processo contínuo através do qual novas impressões novos eventos e novos conhecimentos são absorvidos incessantemente e transformados em opinião pública a qual por sua vez se cristaliza no senso moral geral e na consciência jurídica do momento Tomemos por exemplo o pro blema racial norteamericano Como se forma a opinião pública sobre esse tema Em parte depende das condições de produção a posição do negro nas áreas industriais do norte foi sempre distinta da posição do negro nos Estados agrícolas do sul em parte se desenvolve lenta mente mediante o debate contínuo19 A força que move esse debate é em última análise o esclarecimento dos fatos um melhor conhecimen to da natureza do negro das condições em que vive do papel que desempenha na comunidade norteamericana etc Os fatos de gran de ou pequena importância experimentados reiteradamente fazem sua própria narrativa Popularizamse verdades científicas e estatísti cas Enquanto se encontravam nas forças armadas durante a guerra muitos brancos aprenderam mais acerca das pessoas de cor de pele diferente do que o que haviam aprendido a vida toda O esclarecimen to pode ter que travar uma árdua luta contra as mentiras da propagan da porém a longo prazo a verdade triunfa Ao mesmo tempo os apelos às atitudes latentes em favor da liberdade e igualdade de opor tunidades para todos que constituem uma parte central do credo nor teamericano surtem seus efeitos Desta maneira as concepções fal sas e os preconceitos são lentamente destruídos pois os preconceitos são atitudes condicionadas por concepções falsas A tarefa da política jurídica nesses campos consiste em lograr um suave ajuste do direito às condições técnicas e ideológicas modificadas com a consciência jurídica como estrela polar É mister preservar a con tinuidade na tradição jurídica e tentar ao mesmo tempo satisfazer 19 Isto significa que as idéias não são simplesmente uma superestrutura das condições de produção Marx Possuem também um impulso próprio Cf Gunnar Myrdal An American Diiemma 1944 1032 e segs 430 Alf Ross novas aspirações É claro a configuração mais detalhada da consciência jurídica em regras de direito manejáveis tem que atender a considera ções técnicas fundadas em conhecimentos sociológicos ou em cálculos O respeito à tradição e à consciência jurídica explicam porque o ponto de vista dos advogados é profissionalmente conservador Este ponto de vista se justificava particularmente outrora já que conside rações ideológicas fundadas no direito natural ou em conceitos histó ricos reinavam de forma quase suprema O papel do jurista como homem político jurídico é atuar na medi da do possível como um técnico racional neste papel ele não é nem conservador nem progressista Como outros técnicos simplesmente coloca seu conhecimento e habilidade à disposição de outros em seu caso aqueles que seguram as rédeas do poder político 0 que sempre ensejou e justificou o questionamento da própria atividade jurídica em relação ao poder político Deverá ela inserirse no poder como já ocorreu e tem ocorrido em vários sistemas políticos e formas de governo inclusive nas democracias de fato contemporâneas EUA Alemanha por exemplo e até nas democracias meramente de direito vide Brasil fundindose à atividade política e participando ativamente do poder não há apenas juristas no poder judiciário há inúmeros advogados no legislativo ou deverá ser independente exceto pelo poder judiciário das decisões políticas do poder domínio ideológico como diria Ross limitandose à lídima e precipua busca da justiça e isenção que lhe permitirá a nobre e efetiva postura crítica do governo ao lado da sociedade civil Esta á a indagação fundamental que permanece há muito carente de uma resposta satisfatória por parte da classe jurídica Enquanto não for respondida devidamente a despeito dos brios feridos de certos juristas e da indignação ou indife rença pedante de certos representantes do mundo jurídico os juristas e o direito serão tidos por muitos como meros instrumentos funcionais do poder político ou na expressão pejorativa já notória lacaios do poder IN TJ Bibliografia Esta Bibliografia não constante na obra original de Ross é uma sugestão editorial com obras sobre o tema em geral e não somente dos livros citados ou sugeridos pelo Autor muitos dos quais não constam aqui inclusive em função de sua indisponibilidade AQUINO Tomás de Suma Teoogca EspasaCalpe Espanha 1996 ARISTÓTELES A Política Clássicos Edipro Bauru São Paulo 1995 trad Nestor Silveira Chaves ARISTÓTELES Ética a Nicômacos UnB Brasília 1996 trad Mário da Gama Kury BENTHAM Jeremy Uma Introdução aos Princípios da Morai e da Legislação Os Pensadores Ed Nova Cultural São Paulo 1984 trad Luiz João Baraúna CHAUÍ Marilena S Introdução à História da Filosofia Brasiliense São Paulo vol 1 1995 COHEN F S El Método Funcional en el Derecho AbeledoPerrot Buenos Aires 1962 trad Genaro R Carrió COSSIO C Ciência del Derecho y Sociologia Jurídica Rev de Ia Facultad de Derecho y Cs Sociales Buenos Aires 1960 COSSIO C Teoria Egológica y Teoria Pura Rev Jur Argentina La Ley Buenos Aires 1949 DABIN Jean El Derecho Subjetivo Revista de Derecho Privado Madri 1955 trad Francisco Jovier Osset DEL VECCFIIO Giorgio La Justicia Depalma Buenos Aires 1952 trad Francisco Laplaza DUGUIT Leon Las Transformaciones del Derecho Privado desde el Código de Napoleón Francisco Beltrán Madri 1912 DUGUIT Leon Las Transformaciones del Derecho Publico Francisco Beltrán Madri 1923 trad Adolfo Posada e Ramón Jaen DURKHEIM Émile Da Divisão do Trabalho Social Martins Fontes SP 2a ed 1999 GÉNY F Método de Interpretación y Fuentes del Derecho Positivo Reus Madri 1925 GURVITCH G Sociologia Jurídica Ed Rosário Rosário 1945 trad Ângela Romero Vera HEGEL G Wilhelm Friedrich Fenomenologia do Espírito Vozes SP 1993 HESÍODO A Teogonia Iluminuras São Paulo 1995 trad de Mary de Camargo Neves Lafer Os Trabalhos e os Dias Iluminuras São Paulo 1996 trad Mary de Camargo Neves Lafer HOLMES 0 W La Senda Dei Derecho Perrot Buenos Aires 1959 trad Carlos A Garber HOMERO Odisséia EDUSP São Paulo 1996 trad de Manuel Odorico Mendes Iiíada Melhoramentos 13a ed 1998 trad Gilberto Domingos do Nascimento HUSSERL E Problemas Fundamentaes de Ia Fenomenologia Alianza Editorial KANT Immanuel Doutrina do Direito ícone São Paulo 1993 trad Edson Bini Metafísica de los Costumbres Espasa Calpe 1946 trad Manuel Garcia Morente KELSEN Hans Teoria Geraldo Direito e do Estado Martins Fontes São Paulo Teoria Pura do Direito Martins Fontes São Paulo 6a ed 1998 LOCKE John Ensaio acerca do Entendimento Humano Os Pensadores Ed Nova Cultural São Paulo 1983 trad Anoar Aiex 432 Alf Ross MAINE H B Derecho Antigo Biblioteca Jurídica de Autores Contemporâneos Madri 1873 trad A Guerra MAMAN Jeannette Antonios Fenomenologia Existencial do Direito Crítica do Pensamento Jurídico Brasileiro Edipro BauruSP 2000 MARX Karl e ENGELS Friedrich O Capital edição condensada Clássicos Edipro BauruSP 1998 trad de Gabriel Deville MARX Karl The German Ideology Progress Publishers Moscou 1968 MILL J S La Libertad Fernando Fe Madri 1890 MONTESQUIEU Charles Louis de Secondat Do Espírito das Leis Clássicos Edipro Edipro BauruSP 2000 trad Edson Bini OGDEN C K e RICHARDS I A El Significado del Significado Paidós Buenos Aires 1954 trad Eduardo Prieto OLIVECRONA Karl El Derecho como Hecho Depalma Buenos Aires 1959 trad Jerónimo Cortes Funes PFIILOSTRATOS and EUNAPIOS Lives of the Sophists Harvard University Press The Loeb Ciassical Library Cambridge trad Wilmer Cave Wright PLATÃO A República Clássicos Edipro BauruSP 1994 trad Albertino Pinheiro PLATÃO As Leis Clássicos Edipro BauruSP 1999 trad Edson Bini POPPER K R La SociedadAbierta y SusEnemigos Paidós Buenos Aires 1957 trad Eduardo Loedel RADBRUCH Gustav Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal AbeledoPerrot Buenos Aires 1962 trad Maria Isabel Azaretto de Vázquez ROSS Alf A Textbook of International Law General Part Longmans Londres 1947 Constitutionofthe UnitedNations analysis ofstructure andfunction E Munksgaard Copenha gue 1950 Constitución de Ias Naciones Unidas Madri 1954 trad Atrias Parga De Forenede Nationer Fred og Fremskrídt Copenhague 1963 Directives and Norms Routledge Kegan Paul Londres 1968 Directivesand Norms Humanities Press Nova York 1968 Kritik der sogenannten praktischen Erkenntnis zugeich Prolegomena zu einer Kritik der Rechtswissenschaft Levin 8i Munksgaard Copenhague Feliz Meiner Leipzig 1933 Laerebog i Folkeret E Munksgaard Copenhague 1946 Lehrbuch des Vôlkerrechts W Kohlhammer Stuttgart Colônia 1951 On Guilt Responsibility and Punishment University of Califórnia Press Berkeley 1975 The United Nations peace and progress Bedminster Press Totowa Nova York 1966 Theorie der Rechtsquellen ein Beitrag zur Theorie des positiven Rechts auf Grundlagi dogmenhistorischerUntersuchungen Leipzig F Deuticke Viena 1929 Towards a Realistic Jurisprudence a Criticism of the Dualism in Law Munksgaarc Copenhague 1946 Hacia una Ciência del Derecho Critica del 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positivas ainda que nem sempre de forma perfeita página 314 Além disso é destacada como a virtude maior transcendendo a divisão entre direito e moral com raízes profundas na ética universal Um exemplo disso está no Sermão da Montanha que afirma Bem aventurados os que têm fome e sede de justiça porque serão satisfeitos página 314 Ross também relaciona a justiça ao acesso igualitário a direitos e instrumentos jurídicos Sem acesso efetivo à justiça o ideal de igualdade se torna apenas uma abstração perdendo sua eficácia prática página 321 Slide 2 Justiça e Igualdade no Acesso O princípio da igualdade é essencial para a ideia de justiça Conforme descrito por Ross a igualdade não exige um tratamento idêntico para todos mas sim o reconhecimento das particularidades de cada indivíduo ou grupo A justiça requer que iguais sejam tratados igualmente e que diferenças relevantes sejam levadas em consideração como idade estado civil ou condições sociais página 315 Ross aponta que as vantagens e obrigações devem ser distribuídas de forma equitativa utilizando critérios objetivos para garantir que nenhum grupo seja arbitrariamente privilegiado ou prejudicado página 315 No que diz respeito ao acesso à justiça garantir igualdade implica criar condições para que todas as pessoas possam usufruir plenamente de seus direitos independentemente de sua situação social ou econômica Políticas públicas como defensorias e assistência jurídica gratuita desempenham um papel crucial nesse processo página 321 Slide 3 Modelos de Justiça e Inclusão Ross apresenta diferentes princípios de justiça que influenciam a forma como os direitos são reconhecidos e distribuídos Um exemplo é o princípio a cada um segundo seu mérito que valoriza a contribuição individual recompensando esforços ou méritos morais Já o princípio a cada um segundo suas necessidades prioriza os mais vulneráveis sendo uma base essencial para políticas sociais inclusivas páginas 316317 Outros modelos incluem a cada um segundo sua capacidade aplicado à distribuição de encargos como impostos progressivos Essas diferentes abordagens mostram que a justiça deve considerar o contexto social e econômico para ser efetiva página 317 Esses princípios se refletem no acesso à justiça quando são implementadas políticas que promovem a inclusão de grupos vulneráveis Exemplos incluem a atuação da Defensoria Pública e a criação de centros de mediação gratuitos que garantem suporte jurídico a quem mais precisa página 317 Slide 4 Justiça como Previsibilidade e Segurança Um aspecto fundamental da justiça é a previsibilidade que Alf Ross associa à aplicação de normas gerais de forma consistente e racional Essa abordagem evita decisões arbitrárias e fortalece a segurança jurídica página 326 A previsibilidade das normas jurídicas é essencial para que as pessoas possam compreender o sistema de justiça e planejar suas ações de acordo com regras claras e compreensíveis Isso cria um ambiente de estabilidade e confiança social páginas 327328 Ross também destaca que a previsibilidade é um dos pilares da democracia pois assegura que decisões judiciais sejam fundamentadas em regras objetivas e transparentes promovendo um sistema acessível e confiável página 328 Slide 5 Justiça Conflitos e Acesso Segundo Ross a justiça é frequentemente utilizada como um ideal universal para justificar interesses em disputa Contudo a ideia de justiça nem sempre é consensual podendo ser utilizada tanto para emancipação quanto para opressão página 321 O autor ressalta que a justiça exige ponderação de interesses evitando arbitrariedades e promovendo decisões baseadas em critérios objetivos Isso é fundamental para impedir que o direito seja instrumentalizado por grupos privilegiados página 321 No contexto do acesso à justiça é essencial criar mecanismos que conciliem interesses divergentes e ofereçam soluções equitativas Métodos alternativos como mediação e arbitragem são destacados como formas práticas de aliviar a sobrecarga dos tribunais e ampliar o acesso à justiça página 327 Slide 6 Conclusão e Reflexões A ideia de justiça segundo Ross deve orientar a construção de sistemas jurídicos que promovam a inclusão de todas as pessoas Ele reforça que o direito deve equilibrar justiça formal e equidade concreta garantindo que cada indivíduo tenha acesso pleno a seus direitos páginas 327328 Apesar disso Ross aponta que ainda existem desafios significativos para alcançar o acesso universal à justiça especialmente em contextos de desigualdade estrutural É necessário avançar em políticas públicas inclusivas e fortalecer instituições que promovam um sistema jurídico acessível e imparcial páginas 329330 Conforme descrito a justiça deve ser mais do que um ideal teórico ela precisa ser concretizada em decisões normas e práticas que garantam proteção efetiva aos direitos de todos os cidadãos página 330 Slide 1 Introdução à Ideia de Justiça Definição de Justiça no Direito Natural A justiça ocupa um papel central na filosofia do direito natural sendo vista como o princípio supremo que orienta a relação entre normas jurídicas e valores morais Representa um ideal de equilíbrio harmonia e correção refletido nas leis positivas ainda que nem sempre de forma clara ou perfeita A justiça é entendida como a virtude maior transcendendo a divisão entre direito e moral com raízes profundas na ética universal Relação com o Acesso à Justiça A ideia de justiça está intrinsecamente ligada ao acesso igualitário a instrumentos e direitos que garantam proteção jurídica para todos Sem acesso efetivo à justiça o ideal de igualdade perde significado prático A justiça deve ser um princípio que se manifesta de forma concreta no dia a dia garantindo que todos possam buscar a resolução de conflitos com igualdade de condições Slide 2 Justiça e Igualdade no Acesso Princípio da Igualdade O princípio da igualdade essencial à ideia de justiça exige que todos sejam tratados com respeito às suas particularidades Isso significa que a igualdade não é apenas formal mas também material reconhecendo e adaptando as normas às diferentes necessidades e condições das pessoas A justiça requer que as vantagens e obrigações sejam distribuídas de maneira equitativa levando em conta critérios objetivos e relevantes Por exemplo um tratamento jurídico diferenciado pode ser necessário para equilibrar desigualdades sociais preexistentes Impactos no Acesso à Justiça Garantir igualdade no acesso à justiça significa criar condições para que todas as pessoas independentemente de sua condição social ou econômica possam usufruir plenamente de seus direitos Políticas públicas como a criação de defensorias públicas e serviços jurídicos gratuitos são fundamentais para combater barreiras estruturais que limitam o acesso de populações vulneráveis ao sistema de justiça Slide 3 Modelos de Justiça e Inclusão Formulações de Justiça Diferentes princípios de justiça influenciam a maneira como os direitos são reconhecidos e distribuídos A cada um segundo seu mérito Este princípio valoriza a contribuição pessoal recompensando aqueles que se destacam por esforço ou mérito moral frequentemente aplicado no reconhecimento profissional ou acadêmico A cada um segundo suas necessidades Fundamental em teorias como o comunismo este princípio prioriza a alocação de recursos para os mais necessitados destacando a solidariedade como base da justiça Aplicações no Acesso à Justiça O princípio das necessidades é central para políticas sociais que garantem o acesso universal à justiça permitindo que pessoas em situação de vulnerabilidade tenham os mesmos direitos que outras mesmo com recursos limitados Exemplos práticos incluem a atuação da Defensoria Pública e a criação de centros de mediação gratuitos que promovem a inclusão de quem mais precisa de assistência jurídica Slide 4 Justiça como Previsibilidade e Segurança Racionalidade e Regras Gerais A justiça requer a aplicação de normas gerais com previsibilidade e regularidade para evitar decisões arbitrárias ou baseadas em critérios subjetivos Isso fortalece a segurança jurídica que é essencial para que as pessoas compreendam e confiem no sistema de justiça Essa aplicação objetiva permite que os indivíduos planejem suas ações com base em regras claras e compreensíveis aumentando a confiança no poder judiciário Segurança Jurídica e Acesso à Justiça O acesso à justiça está intimamente relacionado à previsibilidade das decisões judiciais Um sistema jurídico caótico ou arbitrário torna impossível para os cidadãos compreenderem e acessarem seus direitos A previsibilidade também é um pilar da democracia assegurando que decisões judiciais sejam fundamentadas em regras claras e transparentes fortalecendo a confiança social na justiça Slide 5 Justiça Conflitos e Acesso Conflitos e Ideologia da Justiça A justiça é frequentemente utilizada como um ideal universal para justificar interesses em disputa No entanto a ideia de justiça nem sempre é consensual e pode servir a interesses conflitantes resultando em debates ideológicos e sociais Historicamente muitos conflitos políticos sociais e econômicos foram justificados em nome da justiça evidenciando como ela pode ser utilizada tanto como ferramenta de emancipação quanto de opressão Relevância para o Acesso à Justiça A justiça deve ser um instrumento de mediação de conflitos garantindo que todas as partes envolvidas tenham voz e condições igualitárias para apresentar seus argumentos Isso se traduz na promoção de métodos alternativos de resolução de conflitos como mediação e arbitragem que oferecem caminhos mais rápidos e acessíveis para a solução de disputas aliviando a sobrecarga dos tribunais Slide 6 Justiça e Acesso Universal A ideia de justiça deve orientar a construção de sistemas jurídicos que assegurem a inclusão de todas as pessoas independentemente de sua origem condição social ou econômica O acesso à justiça é um dos pilares de uma sociedade democrática e inclusiva garantindo que direitos sejam efetivamente protegidos e que injustiças sejam corrigidas Desafios Atuais As desigualdades estruturais continuam a limitar o acesso de muitas pessoas à justiça especialmente em países com grande desigualdade social O futuro da justiça depende do fortalecimento de instituições que promovam o acesso universal da educação em direitos e da ampliação de políticas públicas que combatam as barreiras sociais e econômicas que ainda persistem