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Gilles Deleuze Félix Guattari O QUE É A FILOSOFIA Tradução Bento Prado Jr e Alberto Alonso Munoz Coleção TRANS Editora 34 Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia tardiamente quando chega a velhice e a hora de falar concretamente De fato a bibliografia é muito magra Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta à meianoite quando nada mais resta a perguntar Antigamente nós a formulávamos não deixávamos de formulála mas de maneira muito indireta ou oblíqua demasiadamente artificial abstrata demais expúnhamos a questão mas dominandoa pela rama sem deixarnos engolir por ela Não estávamos suficientemente sóbrios Tínhamos muita vontade de fazer filosofia não nos perguntávamos o que ela era salvo por exercício de estilo não tínhamos atingido este ponto de nãoestilo em que se pode dizer enfim mas o que é isso que fiz toda a minha vida Há casos em que a velhice dá não uma eterna juventude mas ao contrário uma soberana liberdade uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras Gilles Deleuze e Félix Guattari Podese falar hoje de um profundo malestar na filosofia Um pouco por toda parte encontramos a expressão de uma espécie de desencanto como se a filosofia passasse como um todo por um processo de banalização Processo que não é indiferente à hegemonia crescente da filosofia escolar ou universitária à civilização do papel que fustigavam nela identificando sintoma de decadência pensadores tão diferentes como Wittgenstein e MerleauPonty Por contraste tanto maior é o prazer cada vez mais raro de ler um belo livro de filosofia como é o caso desta obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari A qualidade do livro transparece já na originalidade de seu estilo alegre A gravidade da questão que não é uma questão preliminar ou retórica não exclui o humor antes o exige Nem poderia ser de outra maneira quando abandonamos a esfera técnica da análise conceituai para mergulhar na tarefa propriamente filosófica da construção conceituai Já no primeiro capítulo o leitor tem acesso ao ponto de vista crítico que está na raiz da virulência desta concepção e desta prática da filosofia Arrisquemos uma fórmula não há nenhum solo préfilosófico susceptível de determinação positiva seja a linguagem comum seja o Lebenswelt que possa servir de pano de fundo ou de guia para a análise conceituai A invenção ou a produção dos conceitos remete à instauração de um plano de imanência que podendo embora ser caracterizado como préfilosófico não deixa de ser contemporâneo e indissociável dessa invenção e dessa produção De alguma maneira e inesperadamente a esfera do préfilosófico se revela como posífilosófica O chão se abre sob nossos pés e experimentamos a vertigem do pensamento Mas sobretudo essa radiografia da filosofia através das noções básicas de conceito plano de imanência e personagem conceituai ganha vida nos inúmeros exemplos que se sucedem O trabalho do filósofo é aqui amparado pelo do historiador da filosofia mesmo breves são particularmente iluminadoras as análises da instituição da filosofia nas obras de Platão Descartes Kant etc O que este livro nos oferece é a compreensão do que há de vertiginoso na filosofia mas também e seguindo o mesmo movimento de pensamento do que há de vertiginoso na ciência e na arte Filosofia ciência e arte são planos irredutíveis mas podem ser explorados segundo uma mesma estratégia às três instâncias da instauração filosófica corresponderão instâncias simétricas da instauração artística e científica plano de imanência da filosofia plano de composição da arte plano de referência ou de coordenação da ciência forma do conceito força da sensação função de conhecimento conceitos e personagens conceituais sensações e figuras estéticas funções e observadores parciais Ao abrir este livro caro leitor você poderá descobrir com alegria que a filosofia está viva e não consiste apenas em objeto de interesse filológico Bento Prado Jr O QUE É A FILOSOFIA Introdução Assim Pois a Questão 7 I FILOSOFIA O que é um Conceito 25 O Plano de Imanência 49 Os Personagens Conceituais 81 Geofilosofia 111 II FILOSOFIA CIÊNCIA LÓGICA E ARTE Functivos e Conceitos 151 Prospectos e Conceitos 175 Percepto Afecto e Conceito 211 Conclusão Do Caos ao Cérebro 257 Introdução Assim Pois a Questão Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia tardiamente quando chega a velhice e a hora de falar concretamriile I e lato a bibliografia e muito magra Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta à meianoite quando nada mais resta a perguntar Antigamente nós a formulávamos não deixávamos de formulála mas de maneira muito indireta ou oblíqua demasiadamente artificial abstrata demais expúnhamos a questão mas dominandoa pela rama sem deixarnos engolir por ela Não estávamos suficientemente sóbrios Tínhamos muita vontade de fazer filosofia não nos perguntávamos o que ela era salvo por exercício de estilo não tínhamos atingido este ponto de nãoestilo em que se pode dizer enfim mas o que é isso que fiz toda a minha vida Há casos em que a velhice dá não uma eterna juventude mas ao contrário uma soberana liberdade uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras Ticiano Turner Monet1 Velho Turner adquiriu ou conquistou o direito de conduzir a pintura por um caminho deserto e sem retorno que não se distingue mais de uma última questão Talvez a Vie de Rance marque ao mesmo tempo a velhice de Chateaubriand e o início da literatura moderna2 O cinema também nos oferece por vezes seus dons da terceira idade onde Ivens por exemplo mistura seu riso com o da bruxa no vento solto O mesmo ocorre na filosofia a Crítica do juízo de Kant é uma obra de velhice uma obra desatada atrás da qual não cessarão de correr 1 Cf Uoeuvre ultime de Cézanne à Dubuffet Fondation Maeght prefácio de JeanLouis Prat 2 Barbéris Chateaubriand Ed Larousse Rance livro sobre a velhice como valor impossível é um livro escrito contra a velhice no poder é um livro de ruínas universais em que só se afirma o poder da escrita 9 seus descendentes toilis is faculdades do espírito ultrapassam seus limites estes mesmos limites que Kant tinha fixado tão cuidadosamente em seus livros de maturidade Nós não podemos aspirar a um tal estatuto Simplesmente chegou a hora para nós de perguntar o que é a filosofia Nunca havíamos deixado de fazêlo e já tínhamos a resposta que não variou a filosofia é a arte de formar de inventar de fabricar conceitos Mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão seria necessário também que determinasse uma hora uma ocasião circunstâncias paisagens e personagens condições e incógnitas da questão Seria preciso formulála entre amigos como uma confidencia ou uma confiança ou então face ao inimigo como um desafio e ao mesmo tempo atingir esta hora entre o cão e o lobo em que se desconfia mesmo do amigo É a hora em que se diz era isso mas eu não sei se eu disse bem nem se fui assaz convincente E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente já que de qualquer maneira é nossa questão agora Os conceitos como veremos têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição Amigo é um desses personagens do qual se diz mesmo que ele testemunha a favor de uma origem grega da filosofia as outras civilizações tinham Sábios mas os gregos apresentam esses amigos que não são simplesmente sábios mais modestos Seriam os gregos que teriam sancionado a morte do Sábio e o teriam substituído pelos filósofos os amigos da sabedoria aqueles que procuram a sabedoria mas não a possuem formalmente3 Mas não haveria somente diferença de grau como numa escala entre o filósofo e o sábio o velho sábio vindo do Oriente pensa talvez por Figura en 3 Kojève Tyrannie et sagesse p 235 in Léo Strauss De Ia tyrannie Gallimard 10 quanto o filósofo inventa e pensa o Conceito A sabedoria mudou muito lauto mais difícil tornouse saber o que significa amigo mesmo e sobretudo entre os gregos Amigo designaria uma certa intimidade competente uma espécie de gosto material e uma potencialidade como aquela do marceneiro com a madeira o bom marceneiro é em potência madeira ele é o amigo da madeira A questão é importante uma vez que o amigo tal como ele aparece na filosofia não designa mais um personagem extrínseco um exemplo ou uma circunstância empírica mas uma presença intrínseca ao pensamento uma condição de possibilidade do próprio pensamento uma categoria viva um vivido transcendental Com a filosofia os gregos submetem a uma violência o amigo que não está mais em relação com um outro mas com uma Entidade uma Objetividade uma Essência Amigo de Platão mas mais ainda da sabedoria do verdadeiro ou do conceito Filaleto e Teófilo O filósofo é bom em conceitos e em falta de conceitos ele sabe quais são inviáveis arbitrários ou inconsistentes não resistem um instante e quais ao contrário são bem feitos e testemunham uma criação mesmo se inquietante ou perigosa Que quer dizer amigo quando ele se torna personagem conceituai ou condição para o exercício do pensamento Ou então amante não seria antes amante E o amigo não vai reintroduzir até no pensamento uma relação vital com o Outro que se tinha acreditado excluir do pensamento puro Ou então ainda não se trata de alguém diferente do amigo ou do amante Pois se o filósofo é o amigo ou o amante da sabedoria não é porque ele aspira a ela nela se empenhando em potência mais do que a possuindo em ato O amigo seria pois também o pretendente e aquele de que ele se diria o amigo seria a Coisa que é alvo da pretensão mas não o terceiro que se tornaria ao contrário um rival A amizade comportaria tanto desconfiança competitiva com 11 relação ao rival quanto tensão amorosa em direção ilo ob jeto do desejo Quando a amizade se voltasse para a consciência os dois amigos seriam como o pretendente e o rival mas o que os distinguiria É sob este primeiro traço que a filosofia parece uma coisa grega e coincide com a contribuição das cidades ter formado sociedades de amigos ou de iguais mas também ter promovido entre elas e em cada uma relações de rivalidade opondo pretendentes em todos os domínios no amor nos jogos nos tribunais nas magistraturas na política e até no pensamento que não encontraria sua condição somente no amigo mas no pretendente e no rival a dialética que Platão define pela amphisbetesis A rivalidade dos homens livres um atletismo generalizado o agôn4 É próprio da amizade conciliar a integridade da essência e a rivalidade dos pretendentes Não é uma tarefa grande demais O amigo o amante o pretendente o rival são determinações transcendentais que não perdem por isso sua existência intensa e animada num mesmo personagem ou em diversos E quando hoje Maurice Blanchot que faz parte dos raros pensadores que pensam o sentido da palavra amigo em filosofia retoma esta questão interior das condições do pensamento como tal não são novos personagens conceituais que ele introduz no seio do mais puro Pensado personagens pouco gregos desta vez vindos de outra parte como se tivessem passado por uma catástrofe que os arrasta na direção de novas relações vivas promovidas ao estado de caracteres a priori um desvio um certo desamparo uma certa destreza entre amigos que converte a própria amizade ao pensamento do conceito como desconfiança e paciência infini 4 Por exemplo Xenofonte República dos lacedemônios IV 5 Detienne e Vernant analisaram particularmente estes aspectos da cidade 12 tas5 A lista dos personagens conceituais não está jamais In huli c por isso desempenha um papel importante na evolução ou nas mutações da filosofia sua diversidade deve ser compreendida sem ser reduzida à unidade já complexa do filósofo grego O filósofo é o amigo do conceito ele é conceito em potência Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar de inventar ou de fabricar conceitos pois os conceitos não são necessariamente formas achados ou produtos A filosofia mais rigorosamente é a disciplina que consiste em criar conceitos O amigo seria o amigo de suas próprias criações Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo na unidade do criador e de seu duplo Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência ou que tem sua potência e sua competência Não se pode objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes já que a arte faz existir entidades espirituais e já que os conceitos filosóficos são também sensibilia Para falar a verdade as ciências as artes as filosofias são igualmente criadoras mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos como corpos celestes Não há céu para os conceitos Eles devem ser inventados fabricados ou antes criados e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu os filósofos não devem mais contentarse em aceitar os conceitos que lhes são dados para somente limpálos e fazêlos reluzir mas é necessário que eles comecem por fabricálos criálos afirmálos persuadindo 5 Sobre a relação da amizade com a possibilidade de pensar no mundo moderno cf Blanchot Uamitié e Uentretien infini o diálogo dos dois cansados Gallimard E Mascolo Autour dun effort de mémoire Ed Nadeau 13 os homens a utilizálos Até o presente momento tudo somado cada um tinha confiança em seus conceitos como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso mas é necessário substituir a confiança pela desconfiança e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais desde que ele mesmo não os criou Platão sabia isso bem apesar de ter ensinado o contrário6 Platão dizia que é necessário contemplar as Idéias mas tinha sido necessário antes que ele criasse o conceito de Idéia Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer ele não criou um conceito ele não criou seus conceitos Vemos ao menos o que a filosofia não é ela não é contemplação nem reflexão nem comunicação mesmo se ela pôde acreditar ser ora uma ora outra coisa em razão da capacidade que toda disciplina tem de engendrar suas próprias ilusões e de se esconder atrás de uma névoa que ela emite especialmente Ela não é contemplação pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos Ela não é reflexão porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja acreditase dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão mas retirase tudo dela pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática nem os artistas sobre a pintura ou a música dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto já que sua reflexão pertence a sua criação respectiva E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação que não trabalha em potência a não ser de opiniões para criar o consenso e não o conceito A idéia de uma conversação democrática ocidental entre amigos não produziu nunca o menor conceito ela vem 6 Nietzsche Posthumes 18841885 Oeuvres philosophiques XI Gallimard pp 215216 sobre a arte da desconfiança 14 talvez dos gregos mas estes dela desconfiavam de tal maneira e a faziam sofrer um tratamento tão rude que o conceito era antes como o pássarosolilóquioirônico que sobrevoava o campo de batalha das opiniões rivais aniquiladas os convidados bêbados do banquete A filosofia não contempla não reflete não comunica se bem que ela tenha de criar conceitos para estas ações ou paixões A contemplação a reflexão a comunicação não são disciplinas mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas Os Universais de contemplação e em seguida de reflexão são como duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho de dominar as outras disciplinas idealismo objetivo e idealismo subjetivo e a filosofia não se engrandece mais apresentandose como uma nova Atenas e se desviando sobre Universais da comunicação que forneceriam as regras de um domínio imaginário dos mercados e da mídia idealismo intersubjetivo Toda criação é singular e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada eles próprios devem ser explicados Conhecerse a si mesmo aprender a pensar fazer como se nada fosse evidente espantarse estranhar que o ente seja estas determinações da filosofia e muitas outras formam atitudes interessantes se bem que fatigantes a longo prazo mas não constituem uma ocupação bem definida uma atividade precisa mesmo de um ponto de vista pedagógico Podese considerar como decisiva ao contrário a definição da filosofia conhecimento por puros conceitos Mas não há lugar para opor o conhecimento por conceitos e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição Pois segundo o veredito nietzscheano você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado isto é construído numa intuição que lhes é própria um campo um plano um solo que não se confunde com 15 eles mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam O construtivismo exige que toda criação seja unia construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma Criar conceitos ao menos é fazer algo A questão do uso ou da utilidade da filosofia ou mesmo de sua nocividade a quem ela prejudica é assim modificada Muitos problemas urgem sob os olhos alucinados de um velho que veria confrontaremse todas as espécies de conceitos filosóficos e de personagens conceituais E de início os conceitos são e permanecem assinados substância de Aristóteles cogito de Descartes mônada de Leibniz condição de Kant potência de Schelling duração de Bergson Mas também alguns exigem uma palavra extraordinária às vezes bárbara ou chocante que deve designálos ao passo que outros se contentam com uma palavra corrente muito comum que se enche de harmônicos tão longínquos que podem passar despercebidos a um ouvido não filosófico Alguns solicitam arcaísmos outros neologismos atravessados por exercícios etimológicos quase loucos a etimologia como atletismo propriamente filosófico Deve haver em cada caso uma estranha necessidade destas palavras e de sua escolha como elemento do estilo O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação e que constitui na língua uma língua da filosofia não somente um vocabulário mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza Ora apesar de datados assinados e batizados os conceitos têm sua maneira de não morrer e todavia são submetidos a exigências de renovação de substituição de mutação que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas das quais cada momento cada lugar se conservam mas no tempo e passam mas fora do tempo Se os conceitos não param de mudar podemos perguntar qual unidade resta para as filosofias É a mesma coisa para as ciências para as artes que 16 não procedem por conceitos E quanto à história dessas três disciplinas Se a filosofia é essa criação contínua de conceitos perguntarseá evidentemente o que é um conceito como Idéia filosófica mas também em que consistem as outras Idéias criadoras que não são conceitos que pertencem às ciências e às artes que têm sua própria história e seu próprio devir e suas próprias relações variáveis entre elas e com a filosofia A exclusividade da criação de conceitos assegura à filosofia uma função mas não lhe dá nenhuma proeminência nenhum privilégio pois há outras maneiras de pensar e de criar outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos como o pensamento científico E retornaremos sempre à questão de saber para que serve esta atividade de criar conceitos em sua diferença em relação às atividades científica ou artística por que é necessário criar conceitos e sempre novos conceitos por qual necessidade para qual uso Para fazer o quê A resposta segundo a qual a grandeza da filosofia estaria justamente em não servir para nada é um coquetismo que não tem graça nem mesmo para os jovens Em todo caso não tivemos jamais um problema concernente à morte da metafísica ou à superação da filosofia são disparates inúteis e penosos Falase hoje da falência dos sistemas quando é apenas o conceito de sistema que mudou Se há lugar e tempo para a criação dos conceitos a essa operação de criação sempre se chamará filosofia ou não se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um outro nome Sabemos todavia que o amigo ou o amante como pretendente não existe sem rivais Se a filosofia tem uma origem grega como é certo dizêlo é porque a cidade ao contrário dos impérios ou dos Estados inventa o agôn como regra de uma sociedade de amigos a comunidade dos homens livres enquanto rivais cidadãos É a situação constante que descreve Platão se cada cidadão aspira a alguma coisa ele encontra necessariamente rivais de modo que é neces 17 sário poder julgar acerca do bemfundado das pretensões O marceneiro aspira à madeira mas se choca com o guardaflorestal com o lenhador com o carpinteiro que dizem sou eu sou eu o amigo da madeira Se se trata de cuidar dos homens há muitos pretendentes que se apresentam como o amigo do homem o camponês que o alimenta o tecelão que o veste o médico que dele cuida o guerreiro que o protege7 E se em todos estes casos a seleção se faz apesar de tudo em um círculo algo restrito o mesmo não acontece na política onde quem quer que seja pode aspirar ao que quer que seja na democracia ateniense tal como a vê Platão De onde a necessidade para Platão de uma reordenação na qual se criem as instâncias que permitam julgar acerca do bemfundado das pretensões são as Idéias como conceitos filosóficos Mas mesmo aí não se vai reencontrar todas as espécies de pretendentes para dizer o verdadeiro filósofo sou eu sou eu o amigo da Sabedoria ou do BemFundado A rivalidade culmina naquela entre o filósofo c o sofista que disputam os despojos do velho sábio mas como distinguir o falso amigo do verdadeiro e o conceito do simulacro O simulador e o amigo é todo um teatro platônico que faz proliferar os personagens conceituais dotandoos das potências do cômico e do trágico Mais recentemente a filosofia cruzou com muitos novos rivais Eram a princípio as ciências do homem e notadamente a sociologia que desejavam substituíla Mas como a filosofia tinha cada vez mais desprezado sua vocação de criar conceitos para se refugiar nos Universais não se sabia mais muito bem qual era a questão Tratavase de renunciar a toda criação do conceito em proveito de uma ciência estrita do homem ou ao contrário de transformar a natureza dos conceitos transformandoos ora em representações 7 Platão Político 268a 279a 18 c iletivas ora em concepções do mundo criadas pelos povos suas forças vitais históricas e espirituais Depois foi a voga da epistemologia da lingüística ou mesmo da psicanálise e da análise lógica De provação em provação a filosofia enfrentaria seus rivais cada vez mais insolentes cada vez mais calamitosos que Platão ele mesmo não teria imaginado em seus momentos mais cômicos Enfim o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática o marketing o design a publicidade todas as disciplinas da comunicação apoderaramse da própria palavra conceito e disseram é nosso negócio somos nós os criativos nós somos os conceituadoresl Somos nós os amigos do conceito nós os colocamos em computadores Informação e criatividade conceito e empresa uma abundante bibliografia já O marketing reteve a idéia de uma certa relação entre o conceito e o acontecimento mas eis que o conceito se tornou o conjunto das apresentações de um produto histórico científico artístico sexual pragmático e o acontecimento a exposição que põe em cena apresentações diversas e a troca de idéias à qual supostamente dá lugar Os únicos acontecimentos são as exposições e os únicos conceitos produtos que se pode vender O movimento geral que substituiu a Crítica pela promoção comercial não deixou de afetar a filosofia O simulacro a simulação de um pacote de macarrão tornouse o verdadeiro conceito e o apresentadorexpositor do produto mercadoria ou obra de arte tornouse o filósofo o personagem conceituai ou o artista Como a filosofia essa velha senhora poderia alinharse com os jovens executivos numa corrida aos universais da comunicação para determinar uma forma mercantil do conceito MERZ Certamente é doloroso descobrir que Conceito designa uma sociedade de serviços e de engenharia informática Porém quanto mais a filosofia tropeça em rivais imprudentes e simplórios mais ela os encontra em seu próprio seio pois ela se sente preparada 19 para realizar a tarefa criar conceitos que são antes metro ritos que mercadorias Ela tem ataques de riso que a levam às lágrimas Assim pois a questão da filosofia é o ponto sin guiar onde o conceito e a criação se remetem um ao outro Os filósofos não se ocuparam o bastante com a natureza do conceito como realidade filosófica Eles preferiram considerálo como um conhecimento ou uma representação dados que se explicam por faculdades capazes de formálo abstração ou generalização ou de utilizálos juízo Mas o conceito não é dado é criado está por criar não é forma do ele próprio se põe em si mesmo autoposição As duas coisas se implicam já que o que é verdadeiramente criado do ser vivo à obra de arte desfruta por isso mesmo de uma autoposição de si ou de um caráter autopoiético pelo qual ele é reconhecido Tanto mais o conceito é criado tanto mais ele se põe O que depende de uma atividade criadora livre é também o que se põe em si mesmo independentemente e necessariamente o mais subjetivo será o mais objetivo Foram os pós kantianos que mais deram atenção neste sentido ao conceito como realidade filosófica notadamente Schelling e Hegel Hegel definiu poderosamente o conceito pelas Figuras de sua criação e os Momentos de sua autoposição as figuras tornaramse pertenças do conceito porque constituem o lado sob o qual o conceito é criado por e na consciência por meio da sucessão de espíritos enquanto os momentos erigem o outro lado pelo qual o conceito se põe a si mesmo e reúne os espíritos no absoluto do Si Hegel mostrava assim que o conceito nada tem a ver com uma idéia geral ou abstrata nem tampouco com uma Sabedoria incriada que não dependeria da própria filosofia Mas era ao preço de uma extensão indeterminada da filosofia que não deixava subsistir o movimento independente das ciências e das artes porque reconstituía universais com seus próprios momentos e só tratava os personagens de sua própria cria 20 cão como figurantes fantasmas Os póskantianos giravam cm torno de uma enciclopédia universal do conceito que remeteria sua criação a uma pura subjetividade em lugar de propor uma tarefa mais modesta uma pedagogia do conceito que deveria analisar as condições de criação como fatores de momentos que permanecem singulares8 Se as três idades do conceito são a enciclopédia a pedagogia e a formação profissional comercial só a segunda pode nos impedir de cair dos picos do primeiro no desastre absoluto do terceiro desastre absoluto para o pensamento quaisquer que sejambem entendido os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal 8 Sob uma forma voluntariamente escolar Frédéric Cossutta propôs uma pedagogia do conceito muito interessante Eléments pour Ia lecture des textes philosophiques Ed Bordas 21 I FILOSOFIA O que é um Conceito Não há conceito simples Todo conceito tem componentes e se define por eles Tem portanto uma cifra É uma multiplicidade embora nem toda multiplicidade seja conceituai Não há conceito de um só componente mesmo o primeiro conceito aquele pelo qual uma filosofia começa possui vários componentes já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que se ela determina um deve acrescentarlhe um ponto de vista ou uma razão Descartes Hegel Feuerhach não somente não começam pelo mesmo conceito como não têm o mesmo conceito de começo Todo conceito é ao menos duplo ou triplo etc Também não há conceito que tenha todos os componentes já que seria um puro e simples caos mesmo os pretensos universais como conceitos últimos devem sair do caos circunscrevendo um universo que os explica contemplação reflexão comunicação Todo conceito tem um contorno irregular definido pela cifra de seus componentes É por isso que de Platão a Bergson encontramos a idéia de que o conceito é questão de articulação corte e superposição É um todo porque totaliza seus componentes mas um todo fragmentário É apenas sob essa condição que pode sair do caos mental que não cessa de espreitálo de aderir a ele para reabsorvêlo Sob quais condições um conceito é primeiro não absolutamente mas com relação a um outro Por exemplo outrem é necessariamente segundo em relação a um eu Se ele o é é na medida em que seu conceito é aquele de um outro sujeito que se apresenta como um objeto especial com relação ao eu são dois componentes Com efeito se nós o identificarmos a um objeto especial outrem já não é outra coisa senão o outro sujeito tal como ele aparece para mim e se nós o identificarmos a um outro sujeito sou eu que sou outrem tal como eu lhe apareço Todo conceito remete a um problema a problemas sem os quais não teria sentido e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua 27 solução estamos aqui diante de um problema concernente à pluralidade dos sujeitos sua relação sua apresentação recíproca Mas tudo muda evidentemente se acreditamos descobrir um outro problema em que consiste a posição de outrem que o outro sujeito vem somente ocupar quando ele me aparece como objeto especial e que eu venho por minha vez ocupar como objeto especial quando eu lhe apareço Deste ponto de vista outrem não é ninguém nem sujeito nem objeto Há vários sujeitos porque há outrem não o inverso Outrem exige então um conceito a priori de que devem derivar o objeto especial o outro sujeito e o eu não o contrário A ordem mudou do mesmo modo que a natureza dos conceitos ou que os problemas aos quais se supõe que eles respondam Deixamos de lado a questão de saber que diferença há entre um problema na ciência e na filosofia Mas mesmo na filosofia não se cria conceitos a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados pedagogia do conceito Procedamos sumariamente consideremos um campo de experiência tomado como mundo real não mais com relação a um eu mas com relação a um simples há Há nesse momento um mundo calmo e repousante Surge de repente um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo Outrem não aparece aqui como um sujeito nem como um objeto mas o que é muito diferente como um mundo possível como a possibilidade de um mundo assustador Esse mundo possível não é real ou não o é ainda e todavia não deixa de existir é um expressado que só existe em sua expressão o rosto ou um equivalente do rosto Outrem é antes de mais nada esta existência de um mundo possível E este mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo enquanto possível basta que aquele que exprime fale e diga tenho medo para dar uma realidade ao possível enquanto tal mesmo se suas palavras são mentirosas 28 O eu como índice lingüístico não tem outro sentido E mais ainda não é indispensável a China é um mundo possível mas assume realidade logo que se fale chinês ou que se fale da China num campo de experiência dado É muito diferente do caso em que a China se realiza tornandose o próprio campo de experiência Eis pois um conceito de outrem que não pressupõe nada além da determinação de um mundo sensível como condição Outrem surge neste caso como a expressão de um possível Outrem é um mundo possível tal como existe num rosto que o exprime e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade Neste sentido é um conceito com três componentes inseparáveis mundo possível rosto existente linguagem real ou fala Evidentemente todo conceito tem uma história Este conceito de outrem remete a Leibniz aos mundos possíveis de Leibniz e à mônada como expressão de mundo mas não é o mesmo problema porque os possíveis de Leibniz não existem no mundo real Remete também à lógica modal das proposições mas estas não conferem aos mundos possíveis a realidade correspondente a suas condições de verdade mesmo quando Wittgenstein encara as proposições de medo ou de dor não vê nelas modalidades exprimíveis numa posição de outrem porque deixa outrem oscilar entre um outro sujeito e um objeto especial Os mundos possíveis têm uma longa história1 Numa palavra dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma história embora a história se desdobre em ziguezague embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes Num conceito há no mais das vezes pedaços ou componentes vindos de outros conceitos 1 Esta história que não começa com Leibniz passa por episódios tão diversos quanto a proposição de outrem como tema constante em Wittgenstein ele está com dor de dente e a posição de outrem como teoria do mundo possível em Michel Tournier Vendredi ou les limbes du Pacifique Gallimard 29 que respondiam a outros problemas e supunham outros planos Não pode ser diferente já que cada conceito opera um novo corte assume novos contornos deve ser reativado ou recortado Mas por outro lado um conceito possui um devir que concerne desta vez a sua relação com conceitos situados no mesmo plano Aqui os conceitos se acomodam uns aos outros superpõemse uns aos outros coordenam seus contornos compõem seus respectivos problemas pertencem à mesma filosofia mesmo se têm histórias diferentes Com efeito todo conceito tendo um número finito de componentes bifurcará sobre outros conceitos compostos de outra maneira mas que constituem outras regiões do mesmo plano que respondem a problemas conectáveis participam de uma cocriação Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes No caso do conceito de Outrem como expressão de um mundo possível num campo perceptivo somos levados a considerar de uma nova maneira os componentes deste campo por si mesmo outrem não mais sendo nem um sujeito de campo nem um objeto no campo vai ser a condição sob a qual se redistribuem não somente o objeto e o sujeito mas a figura e o fundo as margens e o centro o móvel e o ponto de referência o transitivo e o substancial o comprimento e a profundidade Outrem é sempre percebido como um outro mas em seu conceito ele é a condição de toda percepção para os outros como para nós É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro Outrem faz o mundo passar e o eu nada designa senão um mundo passado eu estava tranqüilo Por exemplo Outrem basta para fazer de todo comprimento uma profundidade possível no espaço e inversamente a tal ponto que se este conceito não funcionasse no campo perceptivo as transições e as inversões se 30 tornariam incompreensíveis e não cessaríamos de nos chocar contra as coisas o possível tendo desaparecido Ou ao menos filosoficamente seria necessário encontrar uma outra razão pela qual nós não nos chocamos É assim que a partir de um plano determinável se passa de um conceito a um outro por uma espécie de ponte a criação de um conceito de Outrem com tais componentes vai levar à criação de um novo conceito de espaço perceptivo com outros componentes a determinar não se chocar ou não se chocar demais fará parte de seus componentes Partimos de um exemplo bastante complexo Como fazer de outra maneira já que não há conceito simples O leitor pode partir de qualquer exemplo a seu gosto Nós acreditamos que dele decorrerão as mesmas conseqüências concernentes à natureza do conceito ou ao conceito de conceito Em primeiro lugar cada conceito remete a outros conceitos não somente em sua história mas em seu devir ou suas conexões presentes Cada conceito tem componentes que podem ser por sua vez tomados como conceitos assim Outrem tem o rosto entre seus componentes mas o Rosto ele mesmo será considerado como conceito tendo também componentes Os conceitos vão pois ao infinito e sendo criados não são jamais criados do nada Em segundo lugar é próprio do conceito tornar os componentes inseparáveis nele distintos heterogêneos e todavia não separáveis tal é o estatuto dos componentes ou o que define a consistência do conceito sua endoconsistência É que cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com um outro por exemplo no conceito de outrem o mundo possível não existe fora do rosto que o exprime embora se distinga dele como o expressado e a expressão e o rosto por sua vez é a proximidade das palavras de que já é o portavoz Os componentes permanecem distintos mas algo passa de um 31 a outro algo de indecidível entre os dois há um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b em que a e b se tornam indiscerníveis São estas zonas limites ou devires esta inseparabilidade que definem a consistência interior do conceito Mas este tem igualmente uma exoconsistência com outros conceitos quando sua criação implica a construção de uma ponte sobre o mesmo plano As zonas e as pontes são as junturas do conceito Em terceiro lugar cada conceito será pois considerado como o ponto de coincidência de condensação ou de acumulação de seus próprios componentes O ponto conceituai não deixa de percorrer seus componentes de subir e de descer neles Cada componente neste sentido é um traço intensivo uma ordenada intensiva que não deve ser apreendida nem como geral nem como particular mas como uma pura e simples singularidade um mundo possível um rosto certas palavras que se particulariza ou se generaliza segundo se lhe atribui valores variáveis ou se lhe designa uma função constante Mas contrariamente ao que se passa na ciência não há nem constante nem variável no conceito e não se distinguirão nem espécies variáveis para um gênero constante nem espécie constante para indivíduos variáveis As relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão mas somente de ordenação e os componentes do conceito não são nem constantes nem variáveis mas puras e simples variações ordenadas segundo sua vizinhança Elas são processuais modulares O conceito de um pássaro não está em seu gênero ou sua espécie mas na composição de suas posturas de suas cores e de seus cantos algo de indiscernível que é menos uma sinestesia que uma sineidesia Um conceito é uma heterogênese isto é uma ordenação de seus componentes por zonas de vizinhança É ordinal é uma intensão presente em todos os traços que o compõem Não cessando de percorrêlos segundo uma or 32 dem sem distância o conceito está em estado de sobrevôo com relação a seus componentes Ele é imediatamente copresente sem nenhuma distância de todos os seus componentes ou variações passa e repassa por eles é um ritornelo um opus com sua cifra O conceito é um incorporai embora se encarne ou se efetue nos corpos Mas justamente não se confunde com o estado de coisas no qual se efetua Não tem coordenadas espaçotemporais mas apenas ordenadas intensivas Não tem energia mas somente intensidades é anergético a energia não é a intensidade mas a maneira como esta se desenrola e se anula num estado de coisas extensivo O conceito diz o acontecimento não a essência ou a coisa É um Acontecimento puro uma becceidade uma entidade o acontecimento de Outrem ou o acontecimento do rosto quando o rosto por sua vez é tomado como conceito Ou o pássaro como acontecimento O conceito definese pela inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevôo absoluto à velocidade infinita Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos formas que não têm outro objeto senão a inseparabilidade de variações distintas2 O sobrevôo é o estado do conceito ou sua infinitude própria embora sejam os infinitos maiores ou menores segundo a cifra dos componentes dos limites e das pontes O conceito é bem ato de pensamento neste sentido o pensamento operando em velocidade infinita embora maior ou menor O conceito é portanto ao mesmo tempo absoluto e relativo relativo a seus próprios componentes aos outros conceitos ao plano a partir do qual se delimita aos problemas que se supõe deva resolver mas absoluto pela conden 2 Sobre o sobrevôo e as superfícies ou volumes absolutos como seres reais cf Raymond Ruyer Néo finalisme PUF cap IXXI 33 sação que opera pelo lugar que ocupa sobre o plano pelas condições que impõe ao problema É absoluto como todo mas relativo enquanto fragmentário É infinito por seu sobrevôo ou sua velocidade mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes Um filósofo não pára de remanejar seus conceitos e mesmo de mudálos basta às vezes um ponto de detalhe que se avoluma e produz uma nova condensação acrescenta ou retira componentes O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que faz dele quase um doente Nietzsche diz Jaspers corrigia ele mesmo suas idéias para constituir novas sem confessálo explicitamente em seus estados de alteração esquecia as conclusões às quais tinha chegado anteriormente Ou Leibniz eu acreditava entrar no porto mas fui jogado novamente em pleno mar3 O que porém permanece absoluto é a maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e com outros A relatividade e a absolutidade do conceito são como sua pedagogia e sua ontologia sua criação e sua autoposição sua idealidade e sua realidade Real sem ser atual ideal sem ser abstrato O conceito define se por sua consistência endoconsistência e exoconsistência mas não tem referência ele é autoreferencial põese a si mesmo e põe seu objeto ao mesmo tempo que é criado O construtivismo une o relativo e o absoluto Enfim o conceito não é discursivo e a filosofia não é uma formação discursiva porque não encadeia proposições É a confusão do conceito com a proposição que faz acreditar na existência de conceitos científicos e que considera a proposição como uma verdadeira intensão o que a frase exprime então o conceito filosófico só aparece quase sempre como uma proposição despida de sentido Esta confusão reina na lógica e explica a idéia infantil que ela tem da 3 Leibniz Système nouveau de Ia Nature 12 34 filosofia Medemse os conceitos por uma gramática filosófica que os substitui por proposições extraídas das frases onde eles aparecem somos restringidos sempre a alternativas entre proposições sem ver que o conceito já foi projetado no terceiro excluído O conceito não é de forma alguma uma proposição não é proposicional e a proposição não é nunca uma intensão As proposições definemse por sua referência e à referência não concerne ao Acontecimento mas a uma relação com o estado de coisas ou de corpos bem como às condições desta relação Longe de constituir uma intensão estas condições são todas extensionais implicam sucessivas operações de enquadramento em abcissas ou de linearização que fazem os dados intensivos entrar em coordenadas espaçotemporais e energéticas em operações de correspondência entre conjuntos assim delimitados São essas sucessões e essas correspondências que definem a discursividade nos sistemas extensivos e a independência das variáveis nas proposições opõese à inseparabilidade das variações no conceito Os conceitos que só têm consistência ou ordenadas intensivas fora de coordenadas entram livremente em relações de ressonância não discursiva seja porque os componentes de um se tornam conceitos com outros componentes sempre heterogêneos seja porque não apresentam entre si nenhuma diferença de escala em nenhum nível Os conceitos são centros de vibrações cada um em si mesmo e uns em relação aos outros É por isso que tudo ressoa em lugar de se seguir ou de se corresponder Não há nenhuma razão para que os conceitos se sigam Os conceitos como totalidades fragmentárias não são sequer os pedaços de um quebracabeça pois seus contornos irregulares não se correspondem Eles formam um muro mas é um muro de pedras secas e se tudo é tomado conjuntamente é por caminhos divergentes Mesmo as pontes de um conceito a um outro são ainda encruzilhadas ou desvios que não circuns 35 crevem nenhum conjunto discursivo São pontes moventes Desse ponto de vista não é errado considerar que a filosofia está em estado de perpétua digressão ou digressividade Daí decorrem grandes diferenças entre a enunciação filosófica dos conceitos fragmentários e a enunciação científica das proposições parciais Sob um primeiro aspecto toda enunciação é enunciação de posição mas ela permanece exterior à proposição porque tem por objeto um estado de coisas como referente e por condições as referências que constituem valores de verdade mesmo se estas condições em si mesmas são interiores ao objeto Ao contrário a enunciação de posição é estritamente imanente ao conceito já que este não tem outro objeto senão a inseparabilidade dos componentes pelos quais ele próprio passa e repassa e que constitui sua consistência Quanto ao outro aspecto enunciação de criação ou de assinatura é certo que as proposições científicas e seus correlatos não são menos assinadas ou criadas que os conceitos filosóficos falamos de teorema de Pitágoras de coordenadas cartesianas de número hamiltoniano de função de Lagrange tanto quanto de Idéia platônica ou de cogito de Descartes etc Mas os nomes próprios aos quais se vincula assim a enunciação malgrado serem históricos e atestados como tais são máscaras para outros devires servem somente de pseudônimos a entidades singulares mais secretas No caso das proposições tratase de observadores parciais extrínsecos cientificamente definíveis com relação a tal ou tais eixos de referência ao passo que para os conceitos são personagens conceituais intrínsecos que impregnam tal ou tal plano de consistência Não se dirá somente que os nomes próprios têm usos muito diferentes nas filosofias ciências e artes o mesmo acontece para os elementos sintáticos e notadamente as preposições as conjunções ou pois A filosofia procede por frases mas não são sempre proposições que se extraem das frases em geral 36 Por enquanto dispomos apenas de uma hipótese muito ampla das frases ou de um equivalente a filosofia tira conceitos que não se confundem com idéias gerais ou abstratas enquanto que a ciência tira prospectos proposições que não se confundem com juízos e a arte tira perceptos e afectos que também não se confundem com percepções ou sentimentos Em cada caso a linguagem é submetida a provas e usos incomparáveis mas que não definem a diferença entre as disciplinas sem constituir também seus cruzamentos perpétuos EXEMPLO I É necessário de início confirmar as análises precedentes tomando o exemplo de um conceito filosófico assinado dentre os mais conhecidos ou seja o cogito cartesiano o Eu de Descartes um conceito de eu Este conceito tem três componentes duvidar pensar ser não se concluirá daí que todo conceito seja triplo O enunciado total do conceito enquanto multiplicidade é eu penso logo eu sou ou mais completamente eu que duvido eu penso eu sou eu sou uma coisa que pensa É o acontecimento sempre renovado do pensamento tal como o vê Descartes O conceito condensase no ponto E que passa por todos os componentes e onde coincidem E duvidar E pensar E ser Os componentes como ordenadas intensivas se ordenam nas zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade que fazem passar de uma à outra e que constituem sua inseparabilidade uma primeira zona está entre duvidar e pensar eu que duvido não posso duvidar que penso e a segunda está entre pensar e ser para pensar é necessário ser Os componentes apresentamse aqui como verbos mas isto não é uma regra basta que sejam va 37 riações Com efeito a dúvida comporta momentos que não são as espécies de um gênero mas as fases de uma variação dúvida sensível científica obsessiva Todo conceito tem portanto um espaço de fases ainda que seja de uma maneira diferente daquela da ciência O mesmo vale para os modos do pensamento sentir imaginar ter idéias O mesmo vale para os tipos de ser coisa ou substância o ser infinito o ser pensante finito o ser extenso É de se observar que neste último caso o conceito do eu não retém senão a segunda fase do ser e deixa fora o resto da variação Mas esse é precisamente o sinal de que o conceito se fecha como totalidade fragmentária com eu sou uma coisa pensante não se passará às outras fases do ser senão por pontesencruzilhadas que levam a outros conceitos Assim entre minhas idéias eu tenho a idéia de infinito é a ponte que conduz do conceito de eu àquele de Deus este novo conceito tendo ele mesmo três componentes que formam 38 as provas da existência de Deus como acontecimento infinito a terceira prova ontológica assegurando o fechamento do conceito mas também lançando por sua vez uma ponte ou uma bifurcação na direção de um conceito de extensão porquanto garante o valor objetivo de verdade das outras idéias claras e distintas de que dispomos Quando nos perguntamos há precursores do cogito queremos dizer há conceitos assinados por filósofos anteriores que teriam componentes semelhantes ou quase idênticos mas onde faltaria um ou então que acrescentariam outros de tal maneira que um cogito não chegaria a cristalizarse os componentes não coincidindo ainda em um eu Tudo parecia pronto e todavia algo faltava O conceito anterior remetia talvez a um outro problema diferente daquele do cogito é preciso uma mutação de problema para que o cogito cartesiano apareça ou mesmo se desenrolava sobre um outro plano O plano cartesiano consiste em recusar todo pressuposto objetivo explícito em que cada conceito remeteria a outros conceitos por exemplo o homem animalracional Ele exige somente uma compreensão préfilosófica isto é pressupostos implícitos e subjetivos todo mundo sabe o que quer dizer pensar ser eu sabese fazendoo sendo ou dizendoo É uma distinção muito nova Esse plano exige um conceito primeiro que não deve pressupor nada de objetivo De modo que o problema é qual é o primeiro conceito sobre este plano ou por qual começar para determinar a verdade como certeza subjetiva absolutamente pura Tal é o cogito Os outros conceitos poderão conquistar a objetividade mas com a condição de serem ligados por pontes ao primeiro conceito de responderem a problemas sujeitos às mesmas condições e de permanecerem sobre o 39 mesmo plano será a objetividade que adquire um conhecimento certo e não a objetividade que supõe uma verdade reconhecida como preexistente ou já lá É inútil perguntar se Descartes tinha ou não razão Pressupostos subjetivos e implícitos valem mais que pressupostos objetivos explícitos É necessário começar e no caso positivo é necessário começar do ponto de vista de uma certeza subjetiva O pensamento pode sob essa condição ser o verbo de um Eu Não há resposta direta Os conceitos cartesianos não podem ser avaliados a não ser em função dos problemas aos quais eles respondem e do plano sobre o qual eles ocorrem Em geral se os conceitos anteriores puderam preparar um conceito sem por isso constituílo é que seu problema estava ainda enlaçado com outros e o plano não tinha ainda a curvatura ou os movimentos indispensáveis E se conceitos podem ser substituídos por outros é sob a condição de novos problemas e de um outro plano com relação aos quais por exemplo Eu perde todo sentido o começo perde toda necessidade os pressupostos toda diferença ou assumem outras Um conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função das condições de sua criação Há um plano melhor que todos os outros e problemas que se impõem contra os outros Justamente não se pode dizer nada a este respeito Os planos é necessário fazêlos e os problemas colocálos como é necessário criar os conceitos O filósofo faz o que pode mas tem muito a fazer para saber se é o melhor ou mesmo se interessar por esta questão Certamente os novos conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos com nossa história e sobretudo com nossos devires Mas que significam os conceitos de nosso tempo ou de um tempo qualquer Os conceitos não são eternos mas são por isso temporais Qual é a forma filosófica dos problemas deste tempo Se um concei 40 to é melhor que o precedente é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas opera recortes insólitos suscita um Acontecimento que nos sobrevoa Mas não é já o que fazia o precedente E se podemos continuar sendo platônicos cartesianos ou kantianos hoje é porque temos direito de pensar que seus conceitos podem ser reativados em nossos problemas e inspirar os conceitos que é necessário criar É qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos repetir o que eles disseram ou então fazer o que eles fizeram isto é criar conceitos para problemas que mudam necessariamente É por isso que o filósofo tem muito pouco prazer em discutir Todo filósofo foge quando ouve a frase vamos discutir um pouco As discussões são boas para as mesas redondas mas é sobre uma outra mesa que a filosofia joga seus dados cifrados As discussões o mínimo que se pode dizer é que elas não fariam avançar o trabalho já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa Que alguém tenha tal opinião e pense antes isto que aquilo o que isso pode importar para a filosofia na medida em que os problemas em jogo não são enunciados E quando são enunciados não se trata mais de discutir mas de criar indiscutíveis conceitos para o problema que nós nos atribuímos A comunicação vem sempre cedo demais ou tarde demais e a conversação está sempre em excesso com relação a criar Fazemos às vezes da filosofia a idéia de uma perpétua discussão como racionalidade comunicativa ou como conversação democrática universal Nada é menos exato e quando um filósofo critica um outro é a partir de problemas e de um plano que não eram aqueles do outro e que fazem fundir os antigos conceitos como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas Não estamos nunca sobre o mesmo plano Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece perde seus componentes ou adquire outros 41 novos que o transformam quando é mergulhado em um novo meio Mas aqueles que criticam sem criar aqueles que se contentam em defender o que se esvanesceu sem saber darlhe forças para retornar à vida eles são a chaga da filosofia São animados pelo ressentimento todos esses discutidores esses comunicadores Eles não falam senão deles mesmos confrontando generalidades vazias A filosofia tem horror a discussões Ela tem mais que fazer O debate lhe é insuportável não porque ela é segura demais de si mesma ao contrário são suas incertezas que a arrastam para outras vias mais solitárias Contudo Sócrates não fazia da filosofia uma livre discussão entre amigos Não é o auge da sociabilidade grega como conversação de homens livres De fato Sócrates tornou toda discussão impossível tanto sob a forma curta de um agôn de questões e respostas quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos Ele fez do amigo o amigo exclusivo do conceito e do conceito o impiedoso monólogo que elimina um após o outro todos os rivais EXEMPLO II O Parmênides mostra quanto Platão é mestre do conceito O Uno tem dois componentes o ser e o nãoser fases de componentes o Uno superior ao ser igual ao ser inferior ao ser o Uno superior ao não ser igual ao nãoser zonas de indiscernibilidade com relação a si com relação aos outros E um modelo de conceito Mas o Uno não precede todo conceito É aí que Platão ensina o contrário daquilo que faz ele cria os conceitos mas precisa colocálos como representando o incriado que os precede Ele põe o tempo no conceito mas este tempo deve ser o Anterior Ele constrói o conceito mas como testemunha da preexistência de uma objetidade sob a forma de uma diferença de tempo 44 capaz de medir o distanciamento ou a proximidade do construtor eventual É que no plano platônico a verdade se põe como pressuposta como já estando lá Tal é a Idéia No conceito platônico de Idéia primeiro toma um sentido muito preciso muito diferente daquele que terá em Descartes é o que possui objetivamente uma qualidade pura ou o que não é outra coisa senão o que ele é Só a Justiça é justa a Coragem é corajosa tais são as Idéias e há Idéia de mãe se há uma mãe que não é outra coisa senão mãe que não teria sido filha por sua vez ou pêlo que não é outra coisa senão pêlo e não cilicium também Está entendido que as coisas ao contrário são sempre diferentes daquilo que elas são no melhor dos casos elas não possuem portanto a qualidade senão secundariamente não podem senão aspirar à qualidade e somente na medida em que elas participam da Idéia Então o conceito de Idéia tem os seguintes componentes a qualidade possuída ou por possuir a Idéia que possui primordialmente como imparticipável o que aspira à qualidade e não pode possuíla a não ser secundariamente terciariamente quaternáriamente a Idéia participada que julga as pretensões Dirseia o Pai um pai duplo a filha e os pretendentes São as ordenadas intensivas da Idéia uma pretensão não estará fundada a não ser por uma vizinhança uma maior ou menor proximidade que se teve com relação à Idéia no sobrevôo de um tempo sempre anterior necessariamente anterior O tempo sob esta forma de anterioridade pertence ao conceito ele é como que sua zona Seguramente não é neste plano grego sobre este solo platônico que o cogito pode eclodir Enquanto subsistir a preexistência da Idéia mesmo à maneira cristã dos arquétipos no entendimento de Deus o cogito poderá ser preparado mas não levado a cabo Para que 43 Descartes crie este conceito será necessário que primeiro mude singularmente de sentido tome um sentido subjetivo e que toda diferença de tempo se anule entre a idéia e a alma que a forma enquanto sujeito donde a importância da observação de Descartes contra a reminiscência quando diz que as idéias inatas não são antes mas ao mesmo tempo que a alma Será necessário que se chegue a uma instantaneidade do conceito e que Deus crie até as verdades Será necessário que a pretensão mude de natureza o pretendente cessa de receber a filha das mãos de um pai para devêla apenas a suas próprias proezas cavalheirescas a seu próprio método A questão de saber se Malebranche pode reativar componentes platônicos num plano autenticamente cartesiano e a que preço deveria ser analisada deste ponto de vista Mas queríamos apenas mostrar que um conceito tem sempre componentes que podem impedir a aparição de um outro conceito ou ao contrário que só podem aparecer ao preço do esvanecimento de outros conceitos Entretanto nunca um conceito vale por aquilo que ele impede ele só vale por sua posição incomparável e sua criação própria Suponhamos que se acrescente um componente a um conceito é provável que ele estoure ou apresente uma mutação completa implicando talvez um outro plano em todo caso outros problemas É o caso do cogito kantiano Sem dúvida Kant construiu um plano transcendental que torna a dúvida inútil e muda também a natureza dos pressupostos Mas é em virtude desse plano que ele pode declarar que se eu penso é uma determinação que implica a este título uma existência indeterminada eu sou nem por isso sabemos como este indeterminado se torna determinável nem portanto sob qual forma ele aparece como determina 44 do Kant critica pois Descartes por ter dito eu sou uma substância pensante já que nada funda uma tal pretensão do Eu Kant exige a introdução de um novo componente no cogito aquele que Descartes tinha recusado precisamente o tempo pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se torna determinável Mas eu não sou determinado no tempo a não ser como eu passivo e fenomenal sempre afetável modificável variável Eis que o cogito apresenta agora quatro componentes eu penso e por isso sou ativo eu tenho uma existência portanto esta existência não é determinável senão no tempo como aquela de um eu passivo eu sou pois determinado como um eu passivo que se representa necessariamente sua própria atividade pensante como um Outro que o afeta Não é um outro sujeito é antes o sujeito que se torna um outro É a via de uma conversão do eu em outrem Uma preparação do Eu é um outro É uma nova sintaxe com outras ordenadas outras zonas de indiscernibilidade asseguradas pelo esquema depois pela afecção de si por si que tornam inseparáveis o Eu Je e o Mim Moi Que Kant critique Descartes significa somente que traçou um plano e construiu um problema que não podem ser ocupados ou efetuados pelo cogito cartesiano Descartes tinha criado o cogito como conceito mas expulsando o tempo como forma de anterioridade para fazer dele um simples modo de sucessão que remete à criação contínua Kant reintroduz o tempo no cogito mas um tempo inteiramente diferente daquele da anterioridade platônica Criação de conceito Ele faz do tempo um componente de um novo cogito mas sob a condição de fornecer por sua vez um novo conceito do tempo o tempo tornase forma de inferioridade com três componentes sucessão mas também simultaneidade e 45 permanência O que implica ainda um novo conceito de espaço que não pode mais ser definido pela simples simultaneidade e se torna forma de exterioridade É uma revolução considerável Espaço tempo Eu penso três conceitos originais ligados por pontes que são outras tantas encruzilhadas Uma saraivada de novos conceitos A história da filosofia não implica somente que se avalie a novidade histórica dos conceitos criados por um filósofo mas a potência de seu devir quando eles passam uns pelos outros Em toda parte reencontramos o mesmo estatuto pedagógico do conceito uma multiplicidade uma superfície ou um volume absolutos autoreferentes compostos de um certo número de variações intensivas inseparáveis segundo uma ordem de vizinhança e percorridos por um ponto em estado de sobrevôo O conceito é o contorno a configuração a constelação de um acontecimento por vir Os conceitos neste sentido pertencem de pleno direito à filosofia porque é ela que os cria e não cessa de criálos O conceito é evidentemente conhecimento mas conhecimento de si e o que ele conhece é o puro acontecimento que não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos entidades Erigir o novo evento das coisas e dos seres darlhes sempre um novo acontecimento o espaço o tempo a matéria o pensamento o possível como acontecimentos É inútil atribuir conceitos à ciência mesmo quando ela se ocupa dos mesmos objetos não é sob o aspecto do conceito não é criando conceitos Dirseá que é uma questão de palavras mas é raro que as palavras não impliquem intenções e armadilhas Seria uma pura questão de palavras se decidíssemos reservar o conceito à ciência sob condição 46 ilc se encontrar outra palavra para designar o negócio da filosofia Mas o mais das vezes procedemos de outra maneira Começamos por atribuir o poder do conceito à ciência definimos o conceito pelos procedimentos criativos da ciência medimolo pela ciência depois perguntamos se não resta uma possibilidade para que a filosofia forme por sua vez conceitos de segunda zona que suprem sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido Assim Gilles GastonGranger começa por definir o conceito como uma proposição ou uma função científicas depois concede que pode até mesmo haver conceitos filosóficos que substituam a referência ao objeto pelo correlato de uma totalidade do vivido4 Mas de fato ou a filosofia ignora tudo a respeito do conceito ou ela o conhece de pleno direito e de primeira mão a ponto de nada dele deixar para a ciência que aliás não tem nenhuma necessidade dele e que só se ocupa de estados de coisas e de suas condições As proposições ou funções bastam para a ciência ao passo que a filosofia não tem necessidade por seu lado de invocar um vivido que só daria uma vida fantasmática e extrínseca a conceitos secundários por si mesmos exangues O conceito filosófico não se refere ao vivido por compensação mas consiste por sua própria criação em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido bem como qualquer estado de coisas Cada conceito corta o acontecimento o recorta a sua maneira A grandeza de uma filosofia avaliase pela natureza dos acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam ou que ela nos torna capazes de depurar em conceitos Portanto é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único exclusivo dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence 4 GillesGaston Granger Pour Ia connaissance philosophique Ed Odile Jacob cap VI 47 O Plano de Imanência Os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras já que suas bordas não coincidem Eles nascem de lances de dados não compõem um quebracabeças E todavia eles ressoam e a filosofia que os cria apresenta sempre um Todo poderoso não fragmentado mesmo se permanece aberto UnoTodo ilimitado omnitudo que os compreende a todos num só e mesmo plano É uma mesa um platô uma taça É um plano de consistência ou mais exatamente o plano de imanência dos conceitos o planômeno Os conceitos e o plano são estritamente correlativos mas nem por isso devem ser confundidos O plano de imanência não é um conceito nem o conceito de todos os conceitos Se estes fossem confundíveis nada impediria os conceitos de se unificarem ou de tornaremse universais e de perderem sua singularidade mas também nada impediria o plano de perder sua abertura A filosofia é um construtivismo e o construtivismo tem dois aspectos complementares que diferem em natureza criar conceitos e traçar um plano Os conceitos são como as vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos que percorrem cada vez somente seus próprios componentes De Epicuro a Espinosa o prodigioso livro V de Espinosa a Michaux o problema do pensamento é a velocidade infinita mas esta precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente o plano o vazio o horizonte É necessário a elasticidade do conceito mas também a fluidez do meio1 É necessário os dois para compor os seres lentos que nós somos 1 Sobre a elasticidade do conceito Hubert Damisch Prefácio a Prospectus de Dubuffet Gallimard I pp 1819 51 Os conceitos são o arquipélago ou a ossatura antes uma coluna vertebral que um crânio enquanto o plano é a respiração que banha essas tribos isoladas Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos disformes e fragmentários enquanto o plano é o absoluto ilimitado informe nem superfície nem volume mas sempre fractal Os conceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina mas o plano é a máquina abstrata cujos agenciamentos são as peças Os conceitos são acontecimentos mas o plano é o horizonte dos acontecimentos o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais não o horizonte relativo que funciona como um limite muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis mas o horizonte absoluto independente de todo observador e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria2 Os conceitos ladrilham ocupam ou povoam o plano pedaço por pedaço enquanto o próprio plano é o meio indivisível em que os conceitos se distribuem sem romperlhe a integridade a continuidade eles ocupam sem contar a cifra do conceito não é um número ou se distribuem sem dividir O plano é como um deserto que os conceitos povoam sem partilhar São os conceitos mesmos que são as únicas regiões do plano mas é o plano que é o único suporte dos conceitos O 2 JeanPierre Luminet distingue os horizontes relativos como o horizonte terrestre centrado sobre um observador e se deslocando com ele e o horizonte absoluto horizonte dos acontecimentos independente de todo observador e que separa os acontecimentos em duas categorias vistos e nãovistos comunicáveis e nãocomunicáveis le trou noir et linfini in Les dimensions de 1infini Instituto Cultural Italiano de Paris Nós nos reportaremos também ao texto zen do monge japonês Dôgen que invoca o horizonte ou a reserva dos acontecimentos Shôbogenzo Ed de Ia Différence tradução e comentários de René de Ceccaty e Nakamura 52 plano não tem outras regiões senão as tribos que o povoam e nele se deslocam É o plano que assegura o ajuste dos conceitos com conexões sempre crescentes e são os conceitos que asseguram o povoamento do plano sobre uma curvatura renovada sempre variável O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável mas a imagem do pensamento a imagem que ele se dá do que significa pensar fazer uso do pensamento se orientar no pensamento Não é um método pois todo método concerne eventualmente aos conceitos e supõe uma tal imagem Não é nem mesmo um estado de conhecimento sobre o cérebro e seu funcionamento já que o pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como ao estado de coisas cientificamente determinável em que ele se limita a efetuarse quaisquer que sejam seu uso e sua orientação Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento de suas formas de seus fins e seus meios a tal ou tal momento A imagem do pensamento implica uma severa repartição do fato e do direito o que concerne ao pensamento como tal deve ser separado dos acidentes que remetem ao cérebro ou às opiniões históricas Quid júris Por exemplo perder a memória ou estar louco isto pode pertencer ao pensamento como tal ou são somente acidentes do cérebro que devem ser considerados como simples fatos E contemplar refletir comunicar são outra coisa senão opiniões que se faz sobre o pensamento a tal época e em tal civilização A imagem do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito O pensamento reivindica somente o movimento que pode ser levado ao infinito O que o pensamento reivindica de direito o que ele seleciona é o movimento infinito ou o movimento do infinito E ele que constitui a imagem do pensamento O movimento do infinito não remete a coordenadas espaçotemporais que definiriam as posições sucessivas de um 53 móvel e os pontos fixos de referência com relação aos quais estas variam Orientarse no pensamento não implica nem num ponto de referência objetivo nem num móvel que se experimentasse como sujeito e que por isso desejaria o infinito ou teria necessidade dele O movimento tomou tudo e não há lugar nenhum para um sujeito e um objeto que não podem ser senão conceitos O que está em movimento é o próprio horizonte o horizonte relativo se distancia quando o sujeito avança mas o horizonte absoluto nós estamos nele sempre e já no plano de imanência O que define o movimento infinito é uma ida e volta porque ele não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si a agulha sendo também o pólo Se voltarse para é o movimento do pensamento na direção do verdadeiro como o verdadeiro não se voltaria também na direção do pensamento E como não se afastaria o próprio verdadeiro do pensamento quando o pensamento dele se afasta Não é uma fusão entretanto é uma reversibilidade uma troca imediata perpétua instantânea um clarão O movimento infinito é duplo e não há senão uma dobra de um a outro É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa Ou antes o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser Quando salta o pensamento de Tales é como água que o pensamento retorna Quando o pensamento de Heráclito se faz polémos é o fogo que retorna sobre ele É uma mesma velocidade de um lado e do outro o átomo vai tão rápido quanto o pensamento3 O plano de imanência tem duas faces como Pensamento e como Natureza como Physis e como Noüs É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos presos uns nos outros dobrados uns nos outros na medida em que o retorno de um relança um outro instantaneamente de tal maneira que o pla 3 Epicuro Carta a Heródoto 6162 54 no de imanência não pára de se tecer gigantesco tear Voltarsepara não implica somente se desviar mas enfrentar voltarse retornar perderse apagarse4 Mesmo o negativo produz movimentos infinitos cair no erro bem como evitar o falso deixarse dominar pelas paixões bem como superálas Diversos movimentos do infinito são de tal maneira misturados uns com os outros que longe de romper o UnoTodo do plano de imanência constituem sua curvatura variável as concavidades e as convexidades a natureza fractal de alguma maneira É esta natureza fractal que faz do planômeno um infinito sempre diferente de toda superfície ou volume determinável como conceito Cada movimento percorre todo o plano fazendo um retorno imediato sobre si mesmo cada um se dobrando mas também dobrando outros ou deixandose dobrar engendrando retroações conexões proliferações na fractalização desta infinidade infinitamente redobrada curvatura variável do plano Mas se é verdade que o plano de imanência é sempre único sendo ele mesmo variação pura tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanência variados distintos que se sucedem ou rivalizam na história precisamente segundo os movimentos infinitos retidos selecionados O plano não é certamente o mesmo nos gregos no século XVII hoje e ainda estes termos são vagos e gerais não é nem a mesma imagem do pensamento nem a mesma matéria do ser O plano é pois o objeto de uma especificação infinita que faz com que ele não pareça ser o UnoTodo senão em cada caso especificado pela seleção do movimento Esta dificuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode ser resolvida progressivamente É essencial não confundir o plano de imanência e os conceitos que o ocupam E todavia os mesmos elementos 4 Sobre estes dinamismos cf Michel Courthial Le visage no prelo 55 podem aparecer duas vezes sobre o plano e no conceito mas jamais sob os mesmos traços mesmo quando se exprimem nos mesmos verbos e nas mesmas palavras já o vimos quanto ao ser ao pensamento ao Uno eles entram em componentes de conceito e são eles mesmos conceitos mas de uma maneira tão diferente que não pertencem ao plano como imagem ou matéria Inversamente o verdadeiro sobre o plano não pode ser definido senão por um voltarse na direção de ou aquilo em cuja direção o pensamento se volta mas não dispomos assim de nenhum conceito de verdade Se o próprio erro é um elemento de direito que faz parte do plano ele consiste somente em tomar o falso pelo verdadeiro cair mas só recebe um conceito se são determinados seus componentes por exemplo segundo Descartes os dois componentes de um entendimento finito e de uma vontade infinita Os movimentos ou elementos do plano não parecerão pois senão definições nominais com relação aos conceitos enquanto negligenciarmos a diferença de natureza Mas na realidade os elementos do plano são traços diagramáticos enquanto os conceitos são traços intensivos Os primeiros são movimentos do infinito enquanto os segundos são as ordenadas intensivas desses movimentos como cortes originais ou posições diferenciais movimentos finitos cujo infinito só é de velocidade e que constituem cada vez uma superfície ou um volume um contorno irregular marcando uma parada no grau de proliferação Os primeiros são direções absolutas de natureza fractal ao passo que os segundos são dimensões absolutas superfícies ou volumes sempre fragmentários definidos intensivamente Os primeiros são intuições os segundos intensões Que toda filosofia dependa de uma intuição que seus conceitos não cessam de desenvolver até o limite das diferenças de intensidade esta grandiosa perspectiva leibniziana ou bergsoniana está fundada se consideramos a intuição como o envolvimento dos mo 56 vimentos infinitos do pensamento que percorrem sem cessar um plano de imanência Não se concluirá daí que os conceitos se deduzam do plano para tanto é necessário uma construção especial distinta daquela do plano e é por isso que os conceitos devem ser criados do mesmo modo que o plano deve ser erigido Jamais os traços intensivos são a conseqüência dos traços diagramáticos nem as ordenadas intensivas se deduzem dos movimentos ou direções A correspondência entre os dois excede mesmo as simples ressonâncias e faz intervir instâncias adjuntas à criação dos conceitos a saber os personagens conceituais Se a filosofia começa com a criação de conceitos o plano de imanência deve ser considerado como préfilosófico Ele está pressuposto não da maneira pela qual um conceito pode remeter a outros mas pela qual os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão nãoconceitual Esta compreensão intuitiva varia ainda segundo a maneira pela qual o plano está traçado Em Descartes tratarseia de uma compreensão subjetiva e implícita suposta pelo Eu penso como primeiro conceito em Platão era a imagem virtual de um jápensado que redobraria todo conceito atual Heidegger invoca uma compreensão pré ontológica do Ser uma compreensão préconceitual que parece bem implicar a captação de uma matéria do ser em relação com uma disposição do pensamento De qualquer maneira a filosofia coloca como pré filosófica ou mesmo nãofilosófica a potência de um UnoTodo como um deserto movente que os conceitos vêm a povoar Préfilosófica não significa nada que preexista mas algo que não existe fora da filosofia embora esta o suponha São suas condições internas O nãofilosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia e significa que a filosofia não pode contentarse em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceituai mas que ela se endereça também em sua essência aos não filó 57 sofos5 Veremos que esta remissão constante à nãofilosofia assume aspectos variados de acordo com este primeiro aspecto a filosofia definida como criação de conceitos implica uma pressuposição que dela se distingue e que todavia dela é inseparável A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceito e instauração do plano O conceito é o começo da filosofia mas o plano é sua instauração6 O plano não consiste evidentemente num programa num projeto num fim ou num meio é um plano de imanência que constitui o solo absoluto da filosofia sua Terra ou sua desterritorialização sua fundação sobre os quais ela cria seus conceitos Ambos são necessários criar os conceitos e instaurar o plano como duas asas ou duas nadadeiras Pensar suscita a indiferença geral E todavia não é falso dizer que é um exercício perigoso É somente quando os perigos se tornam evidentes que a indiferença cessa mas eles permanecem freqüentemente escondidos pouco perceptíveis inerentes à empresa Precisamente porque o plano de imanência é pré filosófico e já não opera com conceitos ele implica uma espécie de experimentação tateante e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis pouco racionais e razoáveis São meios da ordem do sonho dos processos patológicos das experiências esotéricas da embriaguez ou do excesso Corremos em direção ao horizonte sobre o plano de imanência retornamos dele com olhos vermelhos mes 5 François Laruelle desenvolve uma das tentativas mais interessantes da filosofia contemporânea invoca um UnoTodo que qualifica de nãofilosófico e estranhamente de científico sobre o qual se enraíza a decisão filosófica Este UnoTodo parece próximo de Espinosa Cf Philosophie et nonphilosopbie Ed Mardaga 6 Etienne Souriau publicou em 1939 Uinstauration pbilosophique Ed Alcan sensível à atividade criadora em filosofia ele invoca uma espécie de plano de instauração como solo desta criação ou filosofema animado de dinamismos pp 6263 58 mo se são os olhos do espírito Mesmo Descartes tem seu sonho Pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa Por exemplo o plano de imanência de Michaux com seus movimentos e suas velocidades infinitas furiosas O mais das vezes esses meios não aparecem no resultado que deve ser tomado em si mesmo e calmamente Mas então perigo toma um outro sentido tratase de conseqüências evidentes quando a imanência pura suscita na opinião uma forte reprovação instintiva e a natureza dos conceitos criados ainda vem redobrar a reprovação É que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa algo que não pensa um bicho um vegetal uma molécula uma partícula que retornam sobre o pensamento e o relançam O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo O que caracteriza o caos com efeito é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam não é um movimento de uma a outra mas ao contrário a impossibilidade de uma relação entre duas determinações já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço O caos não é um estado inerte ou estacionado não é uma mistura ao acaso O caos caotiza e desfaz no infinito toda consistência O problema da filosofia é de adquirir uma consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha o caos deste ponto de vista tem uma existência tanto mental como física Dar consistência sem nada perder do infinito é muito diferente do problema da ciência que procura dar referências ao caos sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos e de operar desde início uma limitação de velocidade o que é primeiro na ciência é a luz ou o horizonte relativo A filosofia ao contrário procede supondo ou instaurando o plano de imanência é ele cujas curvaturas variáveis conservam os mo 59 vimentos infinitos que retornam sobre si na troca incessante mas também não cessam de liberar outras que se conservam Então resta aos conceitos traçar as ordenadas intensivas destes movimentos infinitos como movimentos eles mesmos finitos que formam em velocidade infinita contornos variáveis inscritos sobre o plano Operando um corte do caos o plano de imanência faz apelo a uma criação de conceitos À questão a filosofia pode ou deve ser considerada como grega uma primeira resposta pareceu ser que a cidade grega com efeito se apresenta como a nova sociedade dos amigos com todas as ambigüidades desta palavra JeanPierre Vernant acrescenta uma segunda resposta os gregos seriam os primeiros a ter concebido uma imanência estrita da Ordem a um meio cósmico que corta o caos à maneira de um plano Se se chama de Logos um tal planocrivo grande é a distância entre o Logos e a simples razão como quando se diz que o mundo é racional A razão é apenas um conceito e um conceito bem pobre para definir o plano e os movimentos infinitos que o percorrem Numa palavra os primeiros filósofos são aqueles que instauram um plano de imanência como um crivo estendido sobre o caos Eles se opõem neste sentido aos Sábios que são personagens da religião sacerdotes porque concebem a instauração de uma ordem sempre transcendente imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos outros inspirado por Eris na seqüência de guerras que ultrapassam todo agôn e de ódios que recusam desde o início as provas da rivalidade7 Há religião cada vez que há transcendência Ser vertical Estado imperial no céu ou sobre a terra e há Filosofia cada vez que houver imanência mesmo se ela serve de arena ao agôn e à rivalidade os tiranos gregos não seriam uma objeção porque eles estão plenamente 7 Cf JeanPierre Vernant Les origines de Ia pensée grecque PUF pp 105125 62 do lado da sociedade dos amigos tal como ela se apresenta através de suas rivalidades mais loucas mais violentas E estas duas determinações eventuais da filosofia como grega estão talvez profundamente ligadas Só os amigos podem estender um plano de imanência como um solo que se esquiva dos ídolos Em Empédocles é Filia que o traça mesmo se ela não retorna sobre mim sem dobrar o Ódio como o movimento tornado negativo que testemunha uma subtranscendência do caos o vulcão e uma sobretranscendência de um deus Pode ser que os primeiros filósofos e sobretudo Empédocles tenham ainda o ar de sacerdotes ou mesmo de reis Eles se apropriam da máscara do sábio e como diz Nietzsche como a filosofia não se disfarçaria em seus primórdios E mesmo poderá ela jamais prescindir dos disfarces Se a instauração da filosofia se confunde com a suposição de um plano préfilosófico como a filosofia não tiraria proveito disso para pôr uma máscara Resta que os primeiros filósofos traçam um plano que movimentos ilimitados não cessam de percorrer sobre duas faces das quais uma é determinável como Physis na medida em que dá uma matéria ao Ser e a outra como Noüs enquanto dá uma imagem ao pensamento É Anaximandro que leva ao maior rigor a distinção das duas faces combinando o movimento das qualidades com a potência de um horizonte absoluto o Apeiron ou o Ilimitado mas sempre sobre o mesmo plano O filósofo opera um vasto seqüestro da sabedoria ele a põe a serviço da imanência pura Ele substitui a genealogia por uma geologia EXEMPLO III Podese apresentar toda a história da filosofia do ponto de vista da instauração de um plano de imanência Distinguirseiam então os fisicalistas que insistem sobre a matéria do Ser e os noologistas sobre a ima 61 gem do pensamento Mas um risco de confusão surge muito rápido em vez de o plano de imanência ele mesmo constituir esta matéria do Ser ou esta imagem do pensamento é a imanência que seria remetida a algo que seria como um dativo Matéria ou Espírito É o que se torna evidente com Platão e seus sucessores Em vez de um plano de imanência constituir o UnoTodo a imanência está no Uno de tal modo que um outro Uno desta vez transcendente se superpõe àquele no qual a imanência se estende ou ao qual ela se atribui sempre um Uno para além do Uno será a fórmula dos neoplatônicos Cada vez que se interpreta a imanência como a algo produzse uma confusão do plano com o conceito de modo que o conceito se torna um universal transcendente e o plano um atributo no conceito Assim mal entendido o plano de imanência relança o transcendente é um simples campo de fenômenos que só possui secundariamente o que se atribui de início à unidade transcendente Com a filosofia cristã a situação piora A posição de imanência continua sendo a instauração filosófica pura mas ao mesmo tempo ela só é suportada em doses muito pequenas ela é severamente controlada e enquadrada pelas exigências de uma transcendência emanativa e sobretudo criativa Cada filósofo deve demonstrar com o risco de sua obra e por vezes de sua vida que a dose de imanência que ele injeta no mundo e no espírito não compromete a transcendência de um Deus ao qual a imanência não deve ser atribuída senão secundariamente Nicolau de Cusa Eckhart Bruno A autoridade religiosa quer que a imanência não seja sustentada senão localmente ou num nível intermediário um pouco como numa fonte em cascata na qual a água pode brevemente manar sobre cada plataforma mas sob a 62 condição de vir de uma fonte mais alta e descer mais baixo transascendência e transdescendência como dizia Wahl Da imanência podese estimar que ela seja a pedra de toque incandescente de toda a filosofia porque toma para si todos os perigos que esta deve enfrentar todas as condenações perseguições e denegações que ela sofre Isso demonstra ao menos que o problema da imanência não é abstrato ou somente teórico À primeira vista não se vê por que a imanência é tão perigosa mas é assim Ela engole os sábios e os deuses A parte da imanência ou a parte do fogo é por ela que se reconhece o filósofo A imanência só é imanente a si mesma e então toma tudo absorve o TodoUno e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente Em todo caso cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo podese estar certo que este Algo reintroduz o transcendente A partir de Descartes e com Kant e Husserl o cogito torna possível tratar o plano de imanência como um campo de consciência É que a imanência é suposta ser imanente a uma consciência pura a um sujeito pensante Este sujeito Kant o nomeará transcendental e não transcendente precisamente porque é o sujeito do campo de imanência de toda experiência possível ao qual nada escapa o exterior bem como o interior Kant recusa todo uso transcendente da síntese mas remete a imanência ao sujeito da síntese como nova unidade unidade subjetiva Ele pode até mesmo darse ao luxo de denunciar as Idéias transcendentes para fazer delas o horizonte do campo imanente ao sujeito8 Mas 8 Kant Crítica da Razão pura o espaço como forma da exterioridade não está menos em nós que o tempo como forma da interioridade Crítica do quarto paralogismo E sobre a Idéia como horizonte cf Apêndice à dialética transcendental 63 fazendo isso Kant encontra a maneira moderna de salvar a transcendência não é mais a transcendência de um Algo ou de um Uno superior a toda coisa contemplação mas a de um Sujeito ao qual o campo de imanência é atribuído por pertencer a um eu que se representa necessariamente um tal sujeito reflexão O mundo grego que não pertencia a ninguém se torna cada vez mais a propriedade de uma consciência cristã Mais um passo ainda quando a imanência se torna imanente a uma subjetividade transcendental é no seio de seu próprio campo que deve aparecer a marca ou a cifra de uma transcendência como ato que remete agora a um outro eu a uma outra consciência comunicação É o que se passa com Husserl e com muitos de seus sucessores que descobrem no Outro ou na Carne o trabalho de toupeira do transcendente na própria imanência Husserl concebe a imanência como a de um fluxo do vivido na subjetividade mas como todo este vivido puro e mesmo selvagem não pertence inteiramente ao eu que a representa para si é nas regiões de nãopertença que se restabelece no horizonte algo de transcendente uma vez sob a forma de uma transcendência imanente ou primordial de um mundo povoado de objetos intencionais uma outra vez como transcendência privilegiada de um mundo intersubjetivo povoado de outros eus uma terceira vez como transcendência objetiva de um mundo ideal povoado de formações culturais e pela comunidade dos homens Neste momento moderno não nos contentamos mais em pensar a imanência a um transcendente querse pensar a transcendência no interior do imanente e é da imanência que se espera uma ruptura Assim em Jaspers o plano de imanência receberá a mais profunda determinação como Englobante mas este englobante não 64 será mais que uma bacia para as erupções de transcendência A palavra judaicocristã substitui o logos grego não nos contentamos em atribuir a imanência fazemos com que ela em toda parte faça transbordar o transcendente Não basta mais conduzir a imanência ao transcendente querse que ela remeta a ele e o reproduza que ela mesma o fabrique Para falar a verdade isto não é difícil basta parar o movimento9 Desde que se pare o movimento do infinito a transcendência desce ela disso se aproveita para ressurgir erguerse novamente reassumir todo o seu relevo As três espécies de Universais contemplação reflexão comunicação são como três idades da filosofia a Eidética a Crítica e a Fenomenologia que não se separam da história de uma longa ilusão Era necessário ir até aí na inversão dos valores fazernos acreditar que a imanência é uma prisão solipsismo de que o Transcendente pode salvarnos A suposição de Sartre de um campo transcendental impessoal devolve à imanência seus direitos10 É quando a imanência não mais é imanente a outra coisa senão a si que se pode falar de um plano de imanência Um tal plano é talvez um empirismo radical ele não apresenta um fluxo do vivido imanente a um sujeito e que se individualiza no que pertence a um eu Ele não apresenta senão acontecimentos isto é mundos possíveis enquanto conceitos e outrem como expressões de mundos possíveis ou personagens conceituais O acontecimento não remete o vivido a um sujeito transcen 9 Raymond Bellour Uentreimages Ed de Ia Différence p 132 sobre a ligação da transcendência com a interrupção de movimento ou a imagem congelada 10 Sartre La transcendence de lEgo Ed Vrin invocação de Espinosa p 23 65 dente Eu mas remete ao contrário ao sobrevôo imanente de um campo sem sujeito Outrem não devolve a transcendência a um outro eu mas traz todo outro eu à imanência do campo sobrevoado O empirismo não conhece senão acontecimentos e outrem pois ele é grande criador de conceitos Sua força começa a partir do momento em que define o sujeito um habitus um hábito apenas um hábito num campo de imanência o hábito de dizer Eu Quem sabia plenamente que a imanência não pertencia senão a si mesma e assim que ela era um plano percorrido pelos movimentos do infinito preenchido pelas ordenadas intensivas era Espinosa Assim ele é o príncipe dos filósofos Talvez o único a não ter aceitado nenhum compromisso com a transcendência a têla expulsado de todos os lugares Ele fez o movimento do infinito e deu ao pensamento velocidades infinitas no terceiro gênero do conhecimento no último livro da Ética Ele aí atinge velocidades inauditas atalhos tão fulgurantes que não se pode mais falar senão de música de tornado de vento e de cordas Ele encontrou a liberdade tãosomente na imanência Ele finalizou a filosofia porque preencheu sua suposição préfilosófica Não é a imanência que se remete à substância e aos modos espinosistas é o contrário são os conceitos espinosistas de substância e de modos que se remetem ao plano de imanência como a seu pressuposto Este plano nos mostra suas duas faces a extensão e o pensamento ou mais exatamente suas duas potências potência de ser e potência de pensar Espinosa é a vertigem da imanência da qual tantos filósofos tentam em vão escapar Chegaremos a estar maduros para uma inspiração espinosista Aconteceu com Bergson uma vez o princípio de Matière et mémoire traça um plano que corta o caos ao mesmo tem 66 po movimento infinito de uma matéria que não pára de se propagar e a imagem de um pensamento que não pára de fazer proliferar por toda parte uma pura consciência de direito não é a imanência que é imanência à consciência mas o inverso Ilusões envolvem o plano Não são contrasensos abstratos nem somente pressões de fora mas miragens do pensamento Explicamse pelo peso de nosso cérebro pela circulação estereotipada das opiniões dominantes e porque não podemos suportar estes movimentos infinitos nem dominar estas velocidades infinitas que nos destruiriam então devemos parar o movimento fazermonos novamente prisioneiros de um horizonte relativo E todavia somos nós que corremos sobre o plano de imanência que estamos no horizonte absoluto É necessário em parte ao menos que as ilusões se ergam do próprio plano como os vapores de um pântano como as exalações présocráticas que se desprendem da transformação dos elementos sempre em obra sobre o plano Artaud dizia o plano de consciência ou o plano de imanência ilimitado o que os indianos chamam de Ciguri engendra também alucinações percepções errôneas sentimentos maus11 Seria necessário fazer a lista dessas ilusões tomarlhes a medida como Nietzsche depois de Espinosa fazia a lista dos quatro grandes erros Mas a lista é infinita Há de início a ilusão de transcendência que talvez preceda todas as outras sob um duplo aspecto tornar a imanência imanente a algo e reencontrar uma transcendência na própria imanência Depois a ilusão dos universais quando se confundem os conceitos com o plano mas esta confusão se faz quando se coloca uma imanência em algo já que este algo é necessariamente conceito crêse que 11 Artaud Les Tarabumaras Obras completas Gallimard IX 67 o universal explique enquanto é ele que deve ser explicado e caise numa tripla ilusão a da contemplação ou da reflexão ou da comunicação Depois ainda a ilusão do eterno quando esquecemos que os conceitos devem ser criados Depois a ilusão da discursividade quando confundimos as proposições com os conceitos Precisamente não convém acreditar que todas estas ilusões se encadeiem logicamente como proposições elas ressoam ou reverberam e formam uma névoa espessa em torno do plano O plano de imanência toma do caos determinações com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traços diagramáticos Podese devese então supor uma multiplicidade de planos já que nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair e que todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos Se a história da filosofia apresenta tantos planos muito distintos não é somente por causa das ilusões da variedade das ilusões não é somente porque cada um tem sua maneira sempre recomeçada de relançar a transcendência é também mais profundamente em sua maneira de fazer a imanência Cada plano opera uma seleção do que cabe de direito ao pensamento mas é esta seleção que varia de um para outro Cada plano de imanência é UnoTodo não é parcial como um conjunto científico nem fragmentário como os conceitos mas distributivo é um cada um O plano de imanência é folhado É sem dúvida difícil estimar em cada caso comparado se há um só e mesmo plano ou vários diferentes os présocráticos têm uma imagem comum do pensamento malgrado as diferenças entre Heráclito e Parmênides Podese falar de um plano de imanência ou de uma imagem do pensamento dita clássica que se manteria de Platão a Descartes O que varia não são somente os planos mas a maneira de distribuílos Há somente pontos de vista mais ou menos longínquos ou aproximados que permitem agrupar as folhas diferentes sobre um período bas 68 tante longo ou ao contrário separar folhas sobre um plano que pareceria comum e de onde viriam estes pontos de vista malgrado o horizonte absoluto Podemos contentarnos aqui com um historicismo um relativismo generalizado Com relação a tudo isto a questão do uno ou do múltiplo tornase novamente a mais importante ao introduzirse no plano No limite não é todo grande filósofo que traça um novo plano de imanência que traz uma nova matéria do ser e erige uma nova imagem do pensamento de modo que não haveria dois grandes filósofos sobre o mesmo plano É verdade que nós não imaginamos um grande filósofo do qual não se pudesse dizer ele mudou o que significa pensar pensou de outra maneira segundo a fórmula de Foucault E quando se distinguem várias filosofias num mesmo autor não é porque ele próprio tinha mudado de plano encontrado mais uma nova imagem Não se pode ser insensível à queixa de Biran próximo da morte eu me sinto um pouco velho para recomeçar a construção12 Em contrapartida não são filósofos aqueles funcionários que não renovam a imagem do pensamento e não têm sequer consciência do problema na beatitude de um pensamento inteiramente pronto que ignoram até o labor daqueles que pretendem tomar por modelos Mas então como se entender em filosofia se há todas estas folhas que ora se juntam e ora se separam Não estamos condenados a tentar traçar nosso próprio plano sem saber quais ele vai superpor Não é reconstituir uma espécie de caos E esta é a razão pela qual cada plano não é somente folhado mas esburacado deixando passar essas névoas que o envolvem e nas quais o filósofo que o traçou arriscase freqüentemente a ser o primeiro a se perder Que haja tantas névoas que sobem nós o explicamos pois de duas 12 Biran Sa vie et ses pensées Ed Naville ano 1823 p 357 69 maneiras Antes de mais nada porque o pensamento não pode impedirse de interpretar a imanência como imanente a algo grande Objeto da contemplação Sujeito da reflexão Outro sujeito da comunicação é fatal então que a transcendência seja introduzida E se não se pode escapar a isso é porque cada plano de imanência ao que parece não pode pretender ser único ser O plano senão reconstituindo o caos que devia conjurar você tem a escolha entre a transcendência e o caos EXEMPLO IV Quando o plano seleciona o que cabe de direito ao pensamento para fazer dele seus traços intuições direções ou movimentos diagramáticos ele remete outras determinações ao estado de simples fatos caracteres de estados de coisas conteúdos vividos E certamente a filosofia poderá tirar conceitos destes estados de coisas desde que ela deles extraia o acontecimento Mas não é essa a questão O que pertence de direito ao pensamento o que está retido como traço diagramático em si rejeita outras determinações rivais mesmo se estas são destinadas a receber um conceito Assim Descartes faz do erro o traço ou a direção que exprime de direito o negativo do pensamento Não é o primeiro a fazêlo e podemos considerar o erro como um dos traços principais da imagem clássica do pensamento Não se ignora numa tal imagem que há muitas outras coisas que ameaçam o pensar a burrice a amnésia a afasia o delírio a loucura mas todas estas determinações serão consideradas como fatos que não possuem senão um único efeito imanente de direito no pensamento o erro sempre o erro O erro é o movimento infinito que recolhe todo o negativo Podese fazer remon 70 tar este traço até Sócrates para quem o mau de fato é de direito alguém que se engana Mas se é verdade que o Teeteto é uma fundação do erro não resguarda Platão os direitos de outras determinações rivais como o delírio do Fedro a tal ponto que a imagem do pensamento em Platão nos parece também traçar outras tantas vias Ocorre uma grande mudança não somente nos conceitos mas na imagem do pensamento quando a ignorância e a superstição vão substituir o erro e o preconceito para exprimir de direito o negativo do pensamento Fontenelle desempenha aqui um grande papel e o que muda é ao mesmo tempo os movimentos infinitos nos quais o pensamento se perde e se conquista Mais ainda quando Kant marcar que o pensamento está ameaçado não tanto pelo erro mas por ilusões inevitáveis que vêm de dentro da razão como de uma zona ártica interior onde a agulha de qualquer bússola enlouquece é uma reorientação de todo o pensamento que se torna necessária ao mesmo tempo que nele se insinua um certo delírio de direito Ele não está mais ameaçado no plano de imanência por buracos ou sulcos de um caminho que segue mas pelas névoas nórdicas que recobrem tudo A própria questão orientarse no pensamento muda de sentido Um traço não é isolável Com efeito o movimento afetado por um signo negativo vêse ele mesmo dobrado em outros movimentos em signos positivos ou ambíguos Na imagem clássica o erro não exprime de direito o que pode acontecer de pior ao pensamento sem que o pensamento se apresente ele mesmo como desejando o verdadeiro orientado na direção do verdadeiro voltado para o verdadeiro o que está suposto é que todo o mundo sabe o que quer dizer pensar portanto é ca 71 paz de direito de pensar É esta confiança que não exclui o humor que anima a imagem clássica uma remissão à verdade que constitui o movimento infinito do conhecimento como traço diagramático O que manifesta ao contrário a mutação da luz no século XVIII da luz natural em Luzes é a substituição do conhecimento pela crença isto é um novo movimento infinito que implica uma outra imagem do pensamento não se trata mais de se voltar em direção de mas de seguir a pista de inferir mais do que captar ou ser captado Sob quais condições uma inferência é legítima Sob quais condições uma crença tornada profana pode ser legítima Esta questão só encontrará suas respostas com a criação dos grandes conceitos empiristas associação relação hábito probabilidade convenção mas inversamente estes conceitos entre eles aquele de que a própria crença recebe pressupõem os traços diagramáticos que fazem da crença um movimento infinito independente da religião percorrendo o novo plano de imanência e é a crença religiosa ao contrário que se tornará um caso conceitualizável do qual se poderá medir segundo a ordem do infinito a legitimidade ou a ilegitimidade Certamente encontraremos em Kant muitos desses traços herdados de Hume mas ao preço de uma profunda mutação num novo plano ou segundo uma outra imagem São sempre grandes audácias O que muda de um plano de imanência a um outro quando muda a repartição do que cabe de direito ao pensamento não são somente os traços positivos ou negativos mas os traços ambíguos que se tornam eventualmente cada vez mais numerosos e que não se contentam mais em dobrar segundo uma oposição vetorial de movimentos Se tentamos também sumariamente traçar as linhas de uma imagem moderna do pensamento não é 72 de uma maneira triunfante mesmo que seja no horror Nenhuma imagem do pensamento pode contentarse em selecionar determinações calmas e todas encontram algo de abominável de direito seja o erro no qual o pensamento não cessa de cair seja a ilusão na qual não cessa de girar seja a burrice na qual não cessa de se afundar seja o delírio no qual não cessa de se desviar de si mesmo ou de um deus Já a imagem grega do pensamento invocava a loucura do desvio duplo que jogava o pensamento na errância infinita mais do que no erro Jamais a relação do pensamento com o verdadeiro foi um negócio simples ainda menos constante nas ambigüidades do movimento infinito É por isso que é vão invocar uma tal relação para definir a filosofia O primeiro caráter da imagem moderna do pensamento é talvez o de renunciar completamente a esta relação para considerar que a verdade é somente o que o pensamento cria tendose em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto e todos os traços deste plano negativos tanto quanto positivos tornados indiscerníveis pensamento é criação não vontade de verdade como Nietzsche soube mostrar Mas se não há vontade de verdade contrariamente ao que aparecia na imagem clássica é que o pensamento constitui uma simples possibilidade de pensar sem definir ainda um pensador que seria capaz disso e poderia dizer Eu que violência se deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar violência de um movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu Textos célebres de Heidegger e de Blanchot expõem este segundo caráter Mas como terceiro caráter se há assim um Impoder do pensamento que reside em seu coração quando adquire a capacidade determinável como criação eis que um conjunto de signos ambíguos 73 se ergue que se tornam traços diagramáticos ou movimentos infinitos que assumem um valor de direito enquanto não passavam de simples fatos derrisórios rejeitados sem seleção em outras imagens do pensamento como o sugere Kleist ou Artaud é o pensamento enquanto tal que se põe a ter ríctus rangidos gaguejos glossolalias gritos que o levam a criar ou a ensaiar13 E se o pensamento procura é menos à maneira de um homem que disporia de um método que à maneira de um cão que pula desordenadamente Não há por que envaidecerse por uma tal imagem do pensamento que comporta muitos sofrimentos sem glória e que indica quanto o pensar tornouse cada vez mais difícil a imanência A história da filosofia é comparável à arte do retrato Não se trata de fazer parecido isto é de repetir o que o filósofo disse mas de produzir a semelhança desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou São retratos mentais noéticos maquínicos E embora sejam feitos ordinariamente com meios filosóficos podese também produzilos esteticamente É assim que Tinguely apresentou recentemente monumentais retratos maquínicos de filósofos operando poderosos movimentos infinitos conjuntos ou alternativos redobráveis e desdobráveis com sons clarões matérias de ser e imagens de pensamento segundo planos curvos complexos14 E todavia se é permitido apresentar uma crítica a um ar 13 Cf Kleist De 1élaboration progressive des idées dans le discours Anedoctes et petits écrits Ed Payot p 77 E Artaud Correspondance avec Rivière Obras completas I 14 Tinguely catálogo Beaubourg 1989 74 tista tão grandioso parece que a tentativa não está ainda no ponto Nada dança no Nietzsche enquanto que Tinguely soube tão bem em outro lugar fazer dançar as máquinas O Schopenhauer nada nos revela de decisivo quando as quatro Raízes o véu de Maya parecem inteiramente prontos para ocupar o plano bifacial do Mundo como vontade e como representação O Heidegger não retém nenhum velamentodesvelamento sobre o plano de um pensamento que não pensa ainda Talvez tivesse sido necessário prestar mais atenção ao plano de imanência traçado como máquina abstrata e aos conceitos criados como peças da máquina Poderseia imaginar neste sentido um retrato maquínico de Kant ilusões compreendidas ver esquema acima 75 1 O Eu penso com cabeça de boi sonorizado que não cessa de repetir Eu Eu 2 As categorias como conceitos universais quatro grandes títulos fios extensíveis e retrácteis seguindo o movimento circular de 3 3 A roda móvel dos esquemas 4 O pouco profundo riacho o tempo como forma da interioridade na qual mergulha e emerge a roda dos esquemas 5 O Espaço como forma da exterioridade margens e fundo 6 O eu passivo no fundo do riacho e como junção das duas formas 7 Os princípios dos juízos sintéticos que percorrem o espaçotempo 8 O campo transcendental da experiência possível imanente ao Eu plano de imanência 9 As três idéias ou ilusões de transcendência círculos girando no horizonte absoluto Alma Mundo e Deus Muitos são os problemas que concernem tanto à filosofia quanto à história da filosofia As folhas do plano de imanência ora se separam até se oporem umas às outras e convirem cada uma a tal ou tal filósofo ora ao contrário se reúnem para cobrir ao menos períodos bastante longos Além disso entre a instauração de um plano préfilosófico e a criação de conceitos filosóficos as relações são elas próprias complexas Num longo período filósofos podem criar conceitos novos permanecendo no mesmo plano e supondo a mesma imagem que um filósofo precedente que eles reivindicarão como mestre Platão e os neoplatônicos Kant e os neokantianos ou mesmo a maneira como Kant ele mesmo reativa certos segmentos do platonismo Em todo caso não será todavia sem prolongar o plano primitivo afetandoo com novas curvaturas a ponto de que uma dúvida subsiste não é um outro plano que foi tecido nas malhas do primeiro A questão de saber em quais casos os filósofos são discípulos de um outro e até que ponto em quais casos 76 ao contrário fazem enrica a ele mudando de plano traçando uma outra imagem implica pois avaliações tanto mais complexas e relativas quanto jamais os conceitos que ocupam um plano podem ser simplesmente deduzidos Os conceitos que vêm povoar um mesmo plano mesmo em datas muito diferentes e sob acomodações especiais serão chamados conceitos do mesmo grupo não serão assim chamados aqueles que remetem a planos diferentes A correspondência de conceitos criados e de plano instaurado é rigorosa mas fazse sob relações indiretas que restam por determinar Podese dizer que um plano é melhor que um outro ou ao menos que ele responde ou não às exigências da época Que quer dizer responder às exigências e que relação há entre os movimentos ou traços diagramáticos de uma imagem do pensamento e os movimentos ou traços sóciohistóricos de uma época Estas questões só podem avançar se renunciamos ao ponto de vista estreitamente histórico do antes e do depois para considerar o tempo da filosofia em detrimento da história da filosofia E um tempo estratigráfico onde o antes e o depois não indicam mais que uma ordem de superposições Certos caminhos movimentos não tomam sentido e direção senão como os atalhos ou os desvios de caminhos apagados uma curvatura variável não pode aparecer senão como a transformação de uma ou várias outras uma camada ou uma folha do plano de imanência estará necessariamente em cima ou por baixo em relação a uma outra e as imagens do pensamento não podem surgir em qualquer ordem já que implicam mudanças de orientação que só podem ser situadas diretamente sobre a imagem anterior e mesmo para o conceito o ponto de condensação que o determina supõe ora a explosão de um ponto ora a aglomeração de pontos precedentes As paisagens mentais não mudam de qualquer maneira através das eras foi necessário que uma montanha se erguesse aqui ou que um rio passasse por 77 ali ainda recentemente para que o solo agora seco e plano tivesse tal aspecto tal textura É verdade que camadas muito antigas podem ressurgir abrir um caminho através das formações que as tinham recoberto e aflorar diretamente sobre a camada atual à qual elas comunicam uma nova curvatura Mais ainda segundo as regiões consideradas as superposições não são forçosamente as mesmas e não têm a mesma ordem O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência que não exclui o antes e o depois mas os superpõe numa ordem estratigráfica É um devir infinito da filosofia que atravessa sua história mas não se confunde com ela A vida dos filósofos e o mais exterior de sua obra obedece a leis de sucessão ordinária mas seus nomes próprios coexistem e brilham seja como pontos luminosos que nos fazem repassar pelos componentes de um conceito seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha que não deixam de visitarnos como estrelas mortas cuja luz é mais viva que nunca A filosofia é devir não história ela é coexistência de planos não sucessão de sistemas É por isso que os planos podem ora se separar ora se reunir na verdade tanto para o melhor quanto para o pior Eles têm em comum restaurar a transcendência e a ilusão não podem evitálo mas também combatêla com vigor e cada um também tem sua maneira particular de fazer uma e outra coisa Há um plano melhor que não entrega a imanência a Algo x e que não simula mais nada de transcendente Dirseia que O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado Ele seria o nãopensado no pensamento É a base de todos os planos imanente a cada plano pensável que não chega a pensálo É o mais íntimo no pensamento e todavia o fora absoluto Um fora mais longínquo que todo mundo exterior porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior é a imanência a intimidade como Fora o 78 exterior tornado intrusão que sufoca e a inversão de um e de outro15 A idaevolta incessante do plano o movimento infinito Talvez seja o gesto supremo da filosofia não tanto pensar O plano de imanência mas mostrar que ele está lá não pensado em cada plano O pensar desta maneira como o fora e o dentro do pensamento o fora não exterior ou o dentro não interior O que não pode ser pensado e todavia deve ser pensado isto foi pensado uma vez como o Cristo encarnouse uma vez para mostrar desta vez a possibilidade do impossível Assim Espinosa é o Cristo dos filósofos e os maiores filósofos não mais são do que apóstolos que se afastam ou se aproximam deste mistério Espinosa o tornarsefilósofo infinito Ele mostrou erigiu pensou o melhor plano de imanência isto é o mais puro aquele que não se dá ao transcendente nem propicia o transcendente aquele que inspira menos ilusões maus sentimentos e percepções errôneas 15 Blanchot Uentretien infini Gallimard p 65 Sobre o impensado no pensamento Foucault Les mots et les cboses pp 333339 E o longínquo interior de Michaux 79 Os Personagens Conceituais EXEMPLO V O cogito de Descartes é criado como conceito mas tem pressupostos Não como um conceito supõe outros por exemplo homem supõe animal e racional Aqui os pressupostos são implícitos subjetivos préconceituais e formam uma imagem do pensamento todo mundo sabe o que significa pensar Todo mundo tem a possibilidade de pensar todo mundo quer o verdadeiro Há outra coisa além destes dois elementos o conceito e o plano de imanência ou imagem do pensamento que vai ser ocupada por conceitos de mesmo grupo o cogito e os conceitos que a ele se ligam Há outra coisa no caso de Descartes além do cogito criado e da imagem pressuposta do pensamento Há efetivamente outra coisa um pouco misteriosa que aparece em certos momentos ou que transparece e que parece ter uma existência fluida intermediária entre o conceito e o plano préconceitual indo de um a outro No momento é o Idiota é ele que diz Eu é ele que lança o cogito mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que traça o plano O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público o escolástico o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados o homemanimal racional enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta eu penso Eis um tipo muito estranho de personagem aquele que quer pensar e que pensa por si mesmo pela luz natural O idiota é um personagem conceituai Podemos dar mais precisão à questão há precursores do cogito De onde vem o personagem do idiota como ele apareceu seria numa atmosfera cristã mas em reação contra a organização escolástica do cristianismo contra a or 83 ganização autoritária da Igreja Encontramse traços dele já em santo Agostinho É Nicolau de Cusa quem lhe dá pleno valor de personagem conceituai É a razão pela qual este filósofo estaria próximo do cogito mas sem poder ainda fazêlo cristalizar como conceito1 Em todo caso a história da filosofia deve passar pelo estudo desses personagens de suas mutações segundo os planos de sua variedade segundo os conceitos E a filosofia não pára de fazer viver personagens conceituais de lhes dar vida O idiota reaparecerá numa outra época num outro contexto ainda cristão mas russo Tornandose eslavo o idiota permaneceu o singular ou o pensador privado mas mudou de singularidade É Chestov que encontra em Dostoievski a potência de uma nova oposição do pensador privado e do professor público2 O antigo idiota queria evidências às quais ele chegaria por si mesmo nessa expectativa duvidaria de tudo mesmo de 3 2 5 colocaria em dúvida todas as verdades da Natureza O novo idiota não quer de maneira alguma evidências não se resignará jamais a que 3 2 5 ele quer o absurdo não é a mesma imagem do pensamento O antigo idiota queria o verdadeiro mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamen 1 Sobre o Idiota o profano o privado ou o particular por oposição ao técnico e ao sábio em suas relações com o pensamento Nicolau de Cusa Idiota Obras Escolhidas por M de Gandillac Ed Aubier Descartes reconstitui os três personagens sob o nome de Eudoxo o idiota Poliandro o técnico e Epistemon o sábio público La recherche de Ia vérité par Ia lumière naturelle Oeuvres Philosophiques Ed Alquié Garnier II Sobre as razões pelas quais Nicolau de Cusa não chega a um cogito cf Gandillac p 26 2 É primeiro de Kierkegaard que Chestov empresta a nova oposição Kierkegaard et Ia philosophie existentielle Ed Vrin 84 to isto é criar O antigo idiota queria não prestar contas senão à razão mas o novo idiota mais próximo de Jó que de Sócrates quer que se lhe preste contas de cada vítima da história esses não são os mesmos conceitos Ele não aceitará jamais as verdades da História O antigo idiota queria darse conta por si mesmo do que era compreensível ou não razoável ou não perdido ou salvo mas o novo idiota quer que lhe devolvam o perdido o incompreensível o absurdo Seguramente não é o mesmo personagem houve uma mutação E todavia um fio tênue une os dois idiotas como se fosse necessário que o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro tinha perdido a princípio ganhandoa Descartes na Rússia tornouse louco Pode acontecer que o personagem conceituai apareça por si mesmo muito raramente ou por alusão Todavia ele está lá e mesmo não nomeado subterrâneo deve sempre ser reconstituído pelo leitor Por vezes quando aparece tem um nome próprio Sócrates é o principal personagem conceituai do platonismo Muitos filósofos escreveram diálogos mas há perigo de confundir os personagens de diálogo e os personagens conceituais eles só coincidem nominalmente e não têm o mesmo papel O personagem de diálogo expõe conceitos no caso mais simples um entre eles simpático é o representante do autor enquanto que os outros mais ou menos antipáticos remetem a outras filosofias das quais expõem os conceitos de maneira a preparálos para as críticas ou as modificações que o autor lhes vai impor Os personagens conceituais em contrapartida operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor e intervém na própria criação de seus conceitos Assim mesmo quando são antipáticos pertencem plenamente ao plano que o filósofo considerado traça e aos conceitos que cria eles 85 marcam então os perigos próprios a este plano as más percepções os maus sentimentos ou mesmo os movimentos negativos que dele derivam e vão eles mesmos inspirar conceitos originais cujo caráter repulsivo permanece uma propriedade constituinte desta filosofia O mesmo vale com mais forte razão para os movimentos positivos do plano os conceitos atrativos e os personagens simpáticos toda uma Einfühlung filosófica E freqüentemente entre uns e outros há grandes ambigüidades O personagem conceitual não é o representante do filósofo é mesmo o contrário o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceituai e de todos os outros que são os intercessores os verdadeiros sujeitos de sua filosofia Os personagens conceituais são os heterônimos do filósofo e o nome do filósofo o simples pseudônimo de seus personagens Eu não sou mais eu mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata um símbolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filósofo é de transformarse em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo que estes personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que são historicamente mitologicamente ou comumente o Sócrates de Platão o Dioniso de Nietzsche o Idiota de Cusa O personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia que vale para o filósofo de tal modo que Cusa ou mesmo Descartes deveriam assinar o Idiota como Nietzsche assinou o Anticristo ou Dioniso crucificado Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilização enquanto presidente da república eu te falo enquanto pai Igualmente o dêictico filosófico é um ato de 86 tala em terceira pessoa em que é sempre um personagem conceituai que diz Eu eu penso enquanto Idiota eu quero enquanto Zaratustra eu danço enquanto Dioniso eu aspiro enquanto Amante Mesmo a duração bergsoniana precisa de um corredor Na enunciação filosófica não se faz algo di zendoo mas fazse o movimento pensandoo por intermédio de um personagem conceituai Assim os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação Quem é Eu é sempre uma terceira pessoa Invocaremos Nietzsche porque poucos filósofos operaram tanto com personagens conceituais simpáticos Dioniso Zaratustra ou antipáticos Cristo o Sacerdote os Homens superiores o próprio Sócrates tornado antipático Poderíamos acreditar que Nietzsche renuncia aos conceitos Todavia ele cria imensos e intensos conceitos forças valor devir vida e conceitos repulsivos como ressentimento má consciência bem como traça um novo plano de imanência movimentos infinitos da vontade de potência e do eterno retorno que subvertem a imagem do pensamento crítica da vontade de verdade Mas jamais nele os personagens conceituais implicados permanecem subentendidos É verdade que sua manifestação por si mesma suscita uma ambigüidade que faz com que muitos leitores considerem Nietzsche como um poeta um taumaturgo ou um criador de mitos Mas os personagens conceituais em Nietzsche e alhures não são personificações míticas nem mesmo pessoas históricas nem sequer heróis literários ou romanescos Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche como não é o Sócrates da História que está em Platão Devir não é ser e Dioniso se torna filósofo ao mesmo tempo que Nietzsche se torna Dioniso Aí ainda é Platão quem começou ele se torna Sócrates ao mesmo tempo que faz Sócrates tornarse filósofo A diferença entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte uns são potências de 87 conceitos os outros potências de afectos e de perceptos Uns operam sobre um plano de imanência que é uma imagem de PensamentoSer número os outros sobre um plano de composição como imagem do Universo fenômeno As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance mas também da pintura da escultura e da música produzem afectos que transbordam as afecções e percepções ordinárias do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes Melville dizia que um romance comporta uma infinidade de caracteres interessantes mas uma única Figura original como o único sol de uma constelação do universo como começo das coisas ou como um farol que tira da sombra um universo escondido assim o capitão Ahab ou Bartleby3 O universo de Kleist é percorrido por afectos que o atravessam como flechas ou que se petrificam subitamente lá onde se erguem a figura de Homburg ou aquela de Pentesiléia As figuras não têm nada a ver com a semelhança nem com a retórica mas são a condição sob a qual as artes produzem afectos de pedra e de metal de cordas e de ventos de linhas e de cores sobre um plano de composição do universo A arte e a filosofia recortam o caos e o enfrentam mas não é o mesmo plano de corte não é a mesma maneira de povoálo aqui constelação de universo ou afectos e perceptos lá complexões de imanência ou conceitos A arte não pensa menos que a filosofia mas pensa por afectos e perceptos Isto não impede que as duas entidades passem freqüentemente uma pela outra num devir que as leva a ambas numa intensidade que as codetermina A figura teatral e musical de Don Juan se torna personagem conceituai com Kierkegaard e o personagem de Zaratustra em Nietzsche já é uma grande figura de música e de teatro É como se de uns aos outros não somente alianças mas bifurcações e substi 3 Melville Le grana escroc Ed de Minuit cap 44 88 tuições se produzissem No pensamento contemporâneo Michel Guérin é um daqueles que descobrem mais profundamente a existência de personagens conceituais no coração da filosofia mas ele os define num logodrama ou numa figurologia que põe o afecto no pensamento4 É que o conceito como tal pode ser conceito de afecto tanto quanto o afecto afecto de conceito O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro Em cada caso com efeito o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas relativamente heterogêneas Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar traçar uma nova imagem do pensamento instaurar um novo plano de imanência mas em lugar de criar novos conceitos que o ocupam ele o povoa com outras instâncias outras entidades poéticas romanescas ou mesmo pictóricas ou musicais E o inverso também Igitur é precisamente um desses casos personagem conceituai transportado sobre o plano de composição figura estética transportada sobre um plano de imanência seu nome próprio é uma conjunção Esses pensadores são filósofos pela metade mas são também bem mais que filósofos embora não sejam sábios Que força nestas obras com pés desequilibrados Hõlderlin Kleist Rimbaud Mallarmé Kafka Michaux Pessoa Artaud muitos romancistas ingleses e americanos de Melville a Lawrence ou Miller nos quais o leitor descobre com admiração que escreveram o romance do espinosismo Certamente eles não fazem uma síntese de arte e de filosofia Eles bifurcam e não param de bifurcar São gênios híbridos que não apagam a diferença de natureza nem a ultrapassam mas ao contrário empenham todos os recursos de seu atletismo para ins 4 Michel Guérin La terreur et Ia pitié Ed Actes Sud 89 talarse na própria diferença acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo Com mais forte razão os personagens conceituais como as figuras estéticas são irredutíveis a tipos psicossociais embora haja ainda aqui penetrações incessantes Simmel e depois Goffman levaram muito longe o estudo destes tipos que parecem freqüentemente instáveis nos enclaves ou nas margens de uma sociedade o estrangeiro o excluído o migrante o passante o autóctone aquele que retorna a seu país5 Não é por gosto de anedota Parecenos que um campo social comporta estruturas e funções mas nem por isso nos informa diretamente sobre certos movimentos que afetam o Socius Já nos animais sabemos da importância dessas atividades que consistem em formar territórios em abandonálos ou em sair deles e mesmo em refazer território sobre algo de uma outra natureza o etólogo diz que o parceiro ou o amigo de um animal eqüivale a um lar ou que a família é um território móvel Com mais forte razão o hominídeo desde seu registro de nascimento ele desterritorializa sua pata anterior ele a arranca da terra para fazer dela uma mão e a reterritorializa sobre galhos e utensílios Um bastão por sua vez é um galho desterritorializado É necessário ver como cada um em toda idade nas menores coisas como nas maiores provações procura um território para si suporta ou carrega desterritorializações e se reterritorializa quase sobre qualquer coisa lembrança fetiche ou sonho Os ritornelos exprimem esses dinamismos poderosos minha cabana no Canadá adeus eu estou partindo sim sou eu era necessário que eu retornasse Não se pode mesmo dizer o que é primeiro e todo território supõe talvez uma desterritorialização prévia ou então tudo ocorre ao mes 5 Cf as análises de Isaac Joseph que invoca Simmel e Goffman Le passant considérable Librairie des Méridiens 90 mo tempo Os campos sociais são nós inextrincáveis em que os três movimentos se misturam é necessário pois para desmisturálos diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens O comerciante compra num território mas desterritorializa os produtos em mercadorias e se reterritorializa sobre os circuitos comerciais No capitalismo o capital ou a propriedade se desterritorializam cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre meios de produção ao passo que o trabalho por sua vez se torna trabalho abstrato reterritorializado no salário é por isso que Marx não fala somente do capital do trabalho mas sente a necessidade de traçar verdadeiros tipos psicossociais antipáticos ou simpáticos O capitalista O proletário Se se procura a originalidade do mundo grego será necessário perguntar que espécie de território os gregos instauram como se desterritorializam sobre o que se reterritorializam e para isso isolar tipos propriamente gregos por exemplo o Amigo Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado numa sociedade dada assim o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tcheu figura do Excluído do qual o sinólogo Tõkei fez o retrato detalhado Acreditamos que os tipos psicossociais têm precisamente este sentido nas circunstâncias mais insignificantes ou mais importantes tornar perceptíveis as formações de territórios os vetores de desterritorialização o processo de reterritorialização Mas não há também territórios e desterritorializações que não são somente físicas e mentais mas espirituais não somente relativas mas absolutas num sentido a determinar mais tarde Qual é a Pátria ou o Chão Natal invocados pelo pensador filósofo ou artista A filosofia é inseparável de um Chão Natal do qual dão testemunho também o a priori o inato ou a reminiscência Mas por que esta pátria desconhecida perdida esquecida fazendo do pensador um Exilado O que é que vai lhe devolver um equi 91 valente de território como valendo um lar Quais serão os ritornelos filosóficos Qual é a relação do pensamento com a Terra Sócrates o Ateniense que não gosta de viajar é guiado por Parmênides de Eléia quando é jovem substituído pelo Estrangeiro quando envelheceu como se o platonismo tivesse necessidade de dois personagens conceituais pelo menos6 Que espécie de estrangeiro há no filósofo com seu ar de retornar do país dos mortos Os personagens conceituais têm este papel manifestar os territórios desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento Os personagens conceituais são pensadores unicamente pensadores e seus traços personalísticos se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos dos conceitos Tal ou tal personagem conceituai pensa em nós e talvez não nos preexistia Por exemplo se dizemos que um personagem conceituai gagueja não é mais um tipo que gagueja numa língua mas um pensador que faz gaguejar toda a linguagem e que faz da gagueira o traço do próprio pensamento enquanto linguagem o interessante é então qual é este pensamento que só pode gaguejar Por exemplo ainda se dizemos que um personagem conceituai é o Amigo ou então que é o Juiz o Legislador não se trata mais de estados privados públicos ou jurídicos mas do que cabe de direito ao pensamento e somente ao pensamento Gago amigo juiz não perdem sua existência concreta ao contrário assumem uma nova existência como condições interiores do pensamento para seu exercício real com tal ou tal personagem conceituai Não são dois amigos que se exercem em pensar é o pensamento que exige que o pensador seja um amigo para que o pensamento seja partilhado em si mesmo e possa 6 Sobre o personagem do estrangeiro em Platão JF Mattéi Létranger et le simulacre PUF 92 se exercer É o pensamento mesmo que exige esta partilha de pensamento entre amigos Não são mais determinações empíricas psicológicas e sociais ainda menos abstrações mas intercessores cristais ou germes do pensamento Mesmo se a palavra absoluto se revela exata não diremos que as desterritorializações e reterritorializações do pensamento transcendem as psicossociais mas tampouco que se reduzem a elas ou são delas uma abstração uma expressão ideológica É antes uma conjunção um sistema de remissões ou de substituições perpétuas Os traços dos personagens conceituais têm com a época e o meio históricos em que aparecem relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar Mas inversamente os movimentos físicos e mentais dos tipos psicossociais seus sintomas patológicos suas atitudes relacionais seus modos existenciais seus estatutos jurídicos se tornam suscetíveis de uma determinação puramente pensante e pensada que os arranca dos estados de coisas históricos de uma sociedade como do vivido dos indivíduos para fazer deles traços de personagens conceituais ou acontecimentos do pensamento sobre o plano que ele traça ou sob os conceitos que ele cria Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro e se conjugam sem jamais se confundir Nenhuma lista de traços dos personagens conceituais pode ser exaustiva já que dela nascem constantemente e que variam com os planos de imanência E sobre um plano dado diferentes gêneros de traços se misturam para compor um personagem Presumimos que haja traços páticos pathiques o Idiota aquele que quer pensar por si mesmo e é um personagem que pode mudar tomar um outro sentido Mas também um Louco uma espécie de louco pensador cataléptico ou múmia que descobre no pensamento uma impotência para pensar Ou então um grande maníaco um delirante que procura o que precede o pensamento um JáAí mas no seio do próprio pensamento Temse freqüentemente 93 aproximado a filosofia e a esquizofrenia mas num caso o esquizofrênico é um personagem conceituai que vive intensamente no pensador e o força a pensar no outro é um tipo psicossocial que reprime o vivo e lhe rouba seu pensamento E os dois por vezes se conjugam se enlaçam como se a um acontecimento forte demais respondesse um estado vivido por demais difícil de suportar Há traços relacionais o Amigo mas um amigo que só tem relação com seu amigo através de uma coisa amada portadora de rivalidade São o Pretendente e o Rival que disputam a coisa ou o conceito mas o conceito precisa de um corpo sensível inconsciente adormecido o Jovem que se acrescenta aos personagens conceituais Não estamos já sobre um outro plano pois o amor é como a violência que força a pensar Sócrates amante ao passo que a amizade pediria somente um pouco de boa vontade E como impedir uma Noiva de assumir por sua vez o papel de personagem conceituai com o risco de perdêla mas não sem que o próprio filósofo se torne mulher Como diz Kierkegaard ou Kleist ou Proust não vale uma mulher mais do que o amigo competente E que acontece se a própria mulher se torna filósofa ou então um casal que seria interior ao pensamento e faria de Sócrates casado o personagem conceituai A menos que sejamos reconduzidos ao Amigo mas depois de uma provação forte demais uma catástrofe indizível portanto em mais um novo sentido num mútuo desamparo numa mútua fadiga que formam um novo direito do pensamento Sócrates tornado judeu Não dois amigos que comunicam e se relembram conjuntamente mas passam ao contrário por uma amnésia ou uma afasia capazes de fender o pensamento de dividilo em si mesmo Os personagens proliferam e bifurcam se chocam se substituem7 7 Não se busque aqui senão alusões sumárias à ligação de Eros e da philia nos gregos ao papel da Noiva e do Sedutor em Kierkegaard à função noética do Casal segundo Klossowski Les lois de 1hospitalité Gallimard à constituição da mulherfilósofa segundo Michelle Le Doeuff Uétude et le rouet Ed du Seuil ao novo personagem do Amigo em Blanchot 94 Há traços dinâmicos se avançar trepar descer são dinamismos de personagens conceituais saltar à maneira de Kierkegaard dançar como Nietzsche mergulhar como Melville são outros para atletas filosóficos irredutíveis uns aos outros E se nossos esportes hoje estão em plena mutação se as velhas atividades produtoras de energia dão lugar a exercícios que se inserem ao contrário sobre feixes energéticos existentes não é somente uma mutação no tipo são outros traços dinâmicos ainda que se introduzem num pensamento que desliza com novas matérias de ser vaga ou neve que fazem do pensador uma espécie de surfista como personagem conceituai renunciamos então ao valor energético do tipo esportivo para sublinhar a diferença dinâmica pura que se exprime num novo personagem conceituai Há traços jurídicos na medida em que o pensamento não cessa de exigir o que lhe cabe de direito e de enfrentar a Justiça desde os présocráticos mas seria o poder do Pretendente ou mesmo do Queixoso tal como a filosofia o retira do tribunal trágico grego E não será por muito tempo proibido ao filósofo ser Juiz ele que no máximo será doutor recrutado a serviço da justiça de Deus enquanto ele próprio não for acusado Surge um novo personagem conceituai quando Leibniz faz do filósofo o Advogado de um deus ameaçado em toda a parte E os empiristas o estranho personagem que lançam com o Inquiridor É Kant que faz enfim do filósofo um Juiz ao mesmo tempo que a razão forma um tribunal mas é o poder legislativo de um juiz determinante ou o poder judiciário a jurisprudência de um juiz reflexionante Dois personagens conceituais muito diferen 95 tes A menos que o pensamento não inverta tudo juizes advogados queixosos acusadores e acusados como Alice sobre um plano de imanência em que a Justiça se iguala à Inocência em que o Inocente se torna o personagem conceituai que não tem mais de se justificar uma espécie de criançajogador contra a qual não se pode mais nada um Espinosa que não deixou subsistir nenhuma ilusão de transcendência Não é necessário que o juiz e o inocente se confundam isto é que os seres sejam julgados de dentro de maneira alguma em nome da Lei ou dos Valores nem mesmo em virtude de sua consciência mas pelos critérios puramente imanentes de sua existência para além do Bem e do Mal isto ao menos não quer dizer para além do bom e do mau Há com efeito traços existenciais Nietzsche dizia que a filosofia inventa modos de existência ou possibilidades de vida É por isso que bastam algumas anedotas vitais para fazer o retrato de uma filosofia como Diógenes Laércio soube fazêlo escrevendo o livro de cabeceira ou a lenda dourada dos filósofos Empédocles e seu vulcão Diógenes e seu tonei Objetarseá a vida muito burguesa da maioria dos filósofos modernos mas a liga das meias de Kant não é uma anedota vital adequada ao sistema da Razão8 E o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas deriva do fato de que reproduzem de maneira pura relações de modos no sistema da Ética entendida como etologia superior E que estas anedotas não remetem simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo o príncipe Empédocles ou o escravo Diógenes elas manifestam antes os personagens conceituais que o habitam As possibilidades de vida ou os modos de existência não podem inventarse senão sobre um plano de imanência que desenvolve a potência de per 8 Sobre este aparelho complexo cf Thomas de Quincey Les derniers jours dEmmanuel Kant Ed Ombres 96 sonagens conceituais O rosto e o corpo dos filósofos abrigam estes personagens que lhes dão freqüentemente um ar estranho sobretudo no olhar como se algum outro visse através de seus olhos As anedotas vitais contam a relação de um personagem conceituai com animais plantas ou rochedos relação segundo a qual o próprio filósofo se torna algo de inesperado e adquire uma amplitude trágica e cômica que ele não teria sozinho Nós filósofos é por nossos personagens que nos tornamos sempre outra coisa e que renascemos como jardim público ou zoológico EXEMPLO VI Mesmo as ilusões de transcendência nos servem e fornecem anedotas vitais Pois quando nós nos vangloriamos de encontrar o transcendente na imanência nada fazemos senão recarregar o plano de imanência com a própria imanência Kierkegaard salta fora do plano mas o que lhe é restituído nesta suspensão nesta parada de movimento é a noiva ou o filho perdidos é a existência sobre o plano de imanência9 Kierkegaard não hesita em dizêlo no que concerne à transcendência um pouco de resignação bastaria mas é necessário além disso que a imanência seja devolvida Pascal aposta na existência transcendente de Deus mas o que se aposta aquilo sobre o que se aposta é a existência imanente daquele que crê que Deus exista Só esta existência é capaz de cobrir o plano de imanência de adquirir um movimento infinito de produzir e de reproduzir intensidades ao passo que a existência daquele que crê que Deus não existe cai no negativo Aqui mesmo se poderia dizer o que François Jullien diz do pen 9 Kierkegaard Crainte et tremblement Ed Aubier p 68 97 samento chinês a transcendência é nele relativa e não representa mais do que uma absolutização da ima nência10 Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam os selecionariam e decidiriam que um é melhor que o outro Ao contrário não há critérios senão imanentes e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria sobre um plano de imanência é rejeitado o que não traça nem cria Um modo de existência é bom ou mau nobre ou vulgar cheio ou vazio independente do Bem e do Mal e de todo valor transcendente não há nunca outro critério senão o teor da existência a intensificação da vida É o que Pascal e Kierkegaard sabem bem eles que são bons em movimentos infinitos e que tiram do Antigo Testamento novos personagens conceituais capazes de fazer frente a Sócrates O cavaleiro da fé de Kierkegaard aquele que salta ou o apostador de Pascal aquele que lança os dados são os homens de uma transcendência ou de uma fé Mas não cessam de recarregar a imanência são filósofos ou antes os intercessores os personagens conceituais que valem por estes dois filósofos e que não se preocupam mais com a existência transcendente de Deus mas somente com possibilidades imanentes infinitas que traz a existência daquele que crê que Deus existe O problema mudaria se fosse um outro plano de imanência Não que aquele que crê que Deus não existe pudesse então ser vencedor já que ele pertence ainda ao antigo plano como movimento negativo Mas sobre o novo plano poderia acontecer que o problema dis 10 François Jullien Procès ou création Ed du Seuil pp 18 117 98 sesse respeito agora à existência daquele que crê no mundo não propriamente na existência do mundo mas em suas possibilidades em movimentos e em intensidades para fazer nascer ainda novos modos de existência mais próximos dos animais e dos rochedos Pode ocorrer que acreditar neste mundo nesta vida se tenha tornado nossa tarefa mais difícil ou a tarefa de um modo de existência por descobrir hoje sobre nosso plano de imanência É a conversão empirista temos tantas razões de não crer no mundo dos homens perdemos o mundo pior que uma noiva um filho ou um deus Sim o problema mudou O personagem conceituai e o plano de imanência estão em pressuposição recíproca Ora o personagem parece preceder o plano ora seguilo É que ele aparece duas vezes intervém duas vezes Por um lado ele mergulha no caos tira daí determinações das quais vai fazer os traços diagramáticos de um plano de imanência é como se ele se apoderasse de um punhado de dados no acasocaos para lançálos sobre uma mesa Por outro lado para cada dado que cai faz corresponder os traços intensivos de um conceito que vem ocupar tal ou tal região da mesa como se esta se fendesse segundo os resultados Com seus traços personalísticos o personagem conceituai intervém pois entre o caos e os traços diagramáticos do plano de imanência mas também entre o plano e os traços intensivos dos conceitos que vêm povoálo Igitur Os personagens conceituais constituem os pontos de vista segundo os quais planos de imanência se distinguem ou se aproximam mas também as condições sob as quais cada plano se vê preenchido por conceitos do mesmo grupo Todo pensamento é um Fiat emite um lance de dados construtivismo Mas é um jogo muito complexo porque o ato de lançar é feito de movimentos infinitos reversí 99 veis e dobrados uns sobre os outros de modo que a queda só ocorre em velocidade infinita criando as formas finitas que correspondem às ordenadas intensivas destes movimentos todo conceito é uma cifra que não preexistia Os conceitos não se deduzem do plano é necessário o personagem conceituai para criálos sobre o plano como para traçar o próprio plano mas as duas operações não se confundem no personagem que se apresenta ele mesmo como um operador distinto Os planos são inumeráveis cada um com curvatura variável e se agrupam ou se separam segundo os pontos de vista constituídos pelos personagens Cada personagem tem vários traços que podem dar lugar a outros personagens sobre o mesmo plano ou sobre um outro há uma proliferação de personagens conceituais Há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano eles ressoam ligamse através de pontes móveis mas é impossível prever o jeito que assumem em função das variações de curvatura Eles se criam por saraivadas e não cessam de bifurcar O jogo é tanto mais complexo quanto os movimentos negativos infinitos são envolvidos nos positivos sobre cada plano exprimindo os riscos e perigos que o pensamento enfrenta as falsas percepções e os maus sentimentos que o envolvem há também personagens conceituais antipáticos que colam estreitamente nos simpáticos e dos quais estes não chegam a se desgrudar não é somente Zaratustra que está impregnado por seu macaco ou seu bufão Dioniso que não se separa do Cristo mas Sócrates que não chega a se distinguir de seu sofista o filósofo crítico que não pára de conjurar seus maus duplos há enfim conceitos repulsivos enlaçados nos atrativos mas que desenham sobre o plano regiões de intensidade baixa ou vazia e que não cessam de se isolar de desconjuntar de romper as conexões a transcendência ela mesma não tem seus conceitos Mas mais ainda que uma distribuição 100 vetorial os signos de planos de personagens e de conceitos são ambíguos porque se dobram uns nos outros se enlaçam ou se avizinham É por isso que a filosofia opera sempre lance por lance A filosofia apresenta três elementos cada um dos quais responde aos dois outros mas deve ser considerada em si mesma o plano préfilosófico que ela deve traçar imanência o ou os personagens pró filosóficos que ela deve inventar e fazer viver insistência os conceitos filosóficos que ela deve criar consistência Traçar inventar criar esta é a trindade filosófica Traços diagramáticos personalísticos e intensivos Há grupos de conceitos caso eles ressoem ou lancem pontes móveis cobrindo um mesmo plano de imanência que os une uns aos outros Há famílias de planos caso os movimentos infinitos se dobrem uns nos outros e componham variações de curvatura ou ao contrário selecionem variedades não componíveis Há tipos de personagens segundo suas possibilidades de encontro mesmo hostil sobre um mesmo plano e num grupo Mas é freqüentemente difícil determinar se é o mesmo grupo o mesmo tipo a mesma família Para isso é necessário todo um gosto Como nenhum dos elementos se deduz dos outros é necessário uma coadaptação dos três Chama se gosto esta faculdade filosófica de coadaptação e que regra a criação de conceitos Se se chama Razão ao traçado do plano Imaginação à invenção dos personagens Entendimento à criação de conceitos o gosto aparece como a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado do personagem ainda nos limbos do plano ainda transparente É por isso que é necessário criar inventar traçar mas o gosto é como que a regra de correspondência das três instâncias que diferem em natureza Não é certamente uma faculdade de medida Não se encontrará nenhuma medida nestes movimentos infinitos que compõem o plano de imanência estas linhas aceleradas sem 101 contorno estes declives e curvaturas nem nestes personagens sempre excessivos por vezes antipáticos ou nestes conceitos de formas irregulares de intensidades estridentes de cores tão vivas e bárbaras que podem inspirar uma espécie de desgosto notadamente nos conceitos repulsivos Todavia o que aparece em todos os casos como gosto filosófico é o amor do conceito bem feito chamando bem feito não a uma moderação do conceito mas a uma espécie de novo lance de modulação em que a atividade conceituai não tem limite nela mesma mas somente nas duas outras atividades sem limites Se os conceitos preexistissem já prontos teriam limites a observar mas mesmo o plano préfilosófico só é assim nomeado porque se o traça como pressuposto e não porque ele existiria antes de ser traçado As três atividades são estritamente simultâneas e não têm relações senão incomensuráveis A criação de conceitos não tem outro limite senão o plano que eles vêm povoar mas o próprio plano é ilimitado e seu traçado só se confunde com os conceitos por criar que deve juntar ou com os personagens por inventar que deve entreter É como em pintura mesmo para os monstros e os anões há um gosto segundo o qual eles devem ser bem feitos o que não quer dizer neutralizados mas que seus contornos irregulares devem ser postos em relação com uma textura da pele ou um fundo da Terra como matéria germinal com a qual eles parecem brincar Há um gosto pela cor que não vem moderar a criação de cores num grande pintor mas ao contrário conduz a criação até o ponto em que as cores desposam suas figuras feitas de contornos e seu plano feito de fundos uniformes curvaturas arabescos Van Gogh só conduz o amarelo até o ilimitado inventando o homemgirassol e traçando o plano das pequenas vírgulas infinitas O gosto pelas cores testemunha ao mes No original aplat N dos T 102 mo tempo o respeito necessário a sua aproximação a longa espera pela qual é necessário passar mas também a criação sem limite que as faz existir O mesmo ocorre com o gosto dos conceitos o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com temor e respeito hesita muito em se lançar mas só pode determinar o conceito criandoo sem medida um plano de imanência tendo como única regra que traça e como único compasso os personagens estranhos que ele faz viver O gosto filosófico não substitui a criação de conceitos nem a modera é ao contrário a criação de conceitos que faz apelo a um gosto que a modula A livre criação de conceitos determinados precisa de um gosto do conceito indeterminado O gosto é esta potência este serempotência do conceito não é certamente por razões racionais ou razoáveis que tal conceito é criado tais componentes escolhidos Nietzsche pressentiu esta relação da criação de conceitos com um gosto propriamente filosófico e se o filósofo é aquele que cria conceitos é graças a uma faculdade de gosto como um sapere instintivo quase animal um Fiat ou um Fatum que dá a cada filósofo o direito de aceder a certos problemas como um sinete marcado sobre seu nome como uma afinidade da qual suas obras promanam11 Um conceito está privado de sentido enquanto não concorda com outros conceitos e não está associado a um problema que resolve ou contribui para resolver Mas importa distinguir os problemas filosóficos e os problemas científicos Não se ganharia grande coisa dizendo que a filosofia coloca questões já que as questões são somente uma palavra para designar problemas irredutíveis aos da ciência 11 Nietzsche MusarionAusgabe XVI p 35 Nietzsche invoca freqüentemente um gosto filosófico e faz derivar o sábio de sapere sapiens o degustador sisyphos o homem de gosto extremamente sutil La naissance de Ia philosophie Gallimard p 46 103 Como os conceitos não são proposicionais eles não podem remeter a problemas que concerniriam às condições extensionais de proposições assimiláveis às da ciência Se insistimos de qualquer modo em traduzir o conceito filosófico em proposições só podemos fazêlo na forma de opiniões mais ou menos verossímeis e sem valor científico Mas topamos assim com uma dificuldade que os gregos já enfrentavam É mesmo o terceiro caráter pelo qual a filosofia passa por uma coisa grega a cidade grega promoveu o amigo ou o rival como relação social ela traça um plano de imanência mas também faz reinar a livre opinião doxa A filosofia deve então extrair das opiniões um saber que as transforma e que também se distingue da ciência O problema filosófico consiste em encontrar em cada caso a instância capaz de medir um valor de verdade das opiniões oponíveis seja selecionando umas como mais sábias que as outras seja fixando a parte que cabe a cada uma Tal foi sempre o sentido do que se chama dialética e que reduz a filosofia à discussão interminável12 Vemolo em Platão no qual os universais de contemplação supostamente medem o valor respectivo das opiniões rivais para eleválas ao saber é verdade que as contradições subsistentes em Platão nos diálogos ditos aporéticos forçam já Aristóteles a orientar a pesquisa dialética dos problemas na direção dos universais de comunicação os tópicos Em Kant ainda o problema consistirá na seleção ou na partilha das opiniões opostas mas graças a universais de reflexão até que Hegel tenha a idéia de se servir da contradição das opiniões rivais para delas extrair proposições supracientíficas capazes de se mover de se contemplar se refletir se comunicar em si mesmas e no absoluto proposição especulativa em que as opiniões se tornam 12 Cf Bréhier La notion de problème en philosophie Études de philosophie antique PUF 104 os momentos do conceito Mas sob as mais altas ambições da dialética e qualquer que seja o gênio dos grandes dialéticos recaímos na mais miserável condição a que Nietzsche diagnosticava como a arte da plebe ou o mau gosto em filosofia a redução do conceito a proposições como simples opiniões a submersão do plano de imanência nas falsas percepções e nos maus sentimentos ilusões da transcendência ou dos universais o modelo de um saber que constitui apenas uma opinião pretensamente superior Urdoxa a substituição dos personagens conceituais por professores ou chefes de escola A dialética pretende encontrar uma discursividade propriamente filosófica mas só pode fazêlo encadeando as opiniões umas às outras Ela pode ultrapassar a opinião na direção do saber a opinião ressurge e persiste em ressurgir Mesmo com os recursos de uma Urdoxa a filosofia permanece uma doxografia É sempre a mesma melancolia que se eleva das Questões disputadas e dos Quodlibets da Idade Média em que se aprende o que cada doutor pensou sem saber porque ele o pensou o Acontecimento e que se encontra em muitas histórias da filosofia nas quais se passa em revista as soluções sem jamais saber qual é o problema a substância em Aristóteles em Descartes em Leibniz já que o problema é somente decalcado das proposições que lhe servem de resposta Se a filosofia é paradoxal por natureza não é porque toma o partido das opiniões menos verossímeis nem porque mantém as opiniões contraditórias mas porque se serve das frases de uma língua standard para exprimir algo que não é da ordem da opinião nem mesmo da proposição O conceito é bem uma solução mas o problema ao qual ele responde reside em suas condições de consistência intensional e não como na ciência nas condições de referência das proposições extensionais Se o conceito é uma solução as condições do problema filosófico estão sobre o plano de imanência 105 que ele supõe a que movimento infinito ele remete na imagem do pensamento e as incógnitas do problema estão nos personagens conceituais que ele mobiliza que personagem precisamente Um conceito como o de conhecimento só tem sentido com relação a uma imagem do pensamento a que ele remete e a um personagem conceituai de que precisa uma outra imagem um outro personagem exigem outros conceitos a crença por exemplo e o Inquiridor Uma solução não tem sentido independentemente de um problema a determinar em suas condições e em suas incógnitas mas estas não mais têm sentido independentemente das soluções determináveis como conceitos As três instâncias estão umas nas outras mas não são de mesma natureza coexistem e subsistem sem desaparecer uma na outra Bergson que contribuiu tanto para a compreensão do que é um problema filosófico dizia que um problema bem colocado era um problema resolvido Mas isso não quer dizer que um problema é somente a sombra ou o epifenômeno de suas soluções nem que a solução é apenas a redundância ou a conseqüência analítica do problema Significa antes que as três atividades que compõem o construcionismo não cessam de se alternar de se recortar uma precedendo a outra e logo o inverso uma que consiste em criar conceitos como caso de solução outra em traçar um plano e um movimento sobre o plano como condições de um problema outra em inventar um personagem como a incógnita do problema O conjunto do problema de que a própria solução faz parte consiste sempre em construir as duas outras quando a terceira está em curso Nós vimos como de Platão a Kant o pensamento o primeiro o tempo recebiam conceitos diferentes capazes de determinar soluções mas em função de pressupostos que determinavam problemas diferentes pois os mesmos termos podem aparecer duas vezes e mesmo três vezes uma vez nas soluções como conceitos outra vez nos problemas pressupostos 106 uma outra vez num personagem como intermediário intercessor mas a cada vez sob uma forma específica irredutível Nenhuma regra e sobretudo nenhuma discussão dirão a princípio se é o bom plano o bom personagem o bom conceito pois é cada um deles que decide se os dois outros deram certo ou não mas cada um deles deve ser construído por sua conta um criado o outro inventado o outro traçado Constroem se problemas e soluções dos quais se pode dizer Deu certo Não deu certo mas somente na medida de e segundo suas coadaptações O construtivismo desqualifica toda discussão que retardaria as construções necessárias como denuncia todos os universais a contemplação a reflexão a comunicação como fontes do que se chama de falsos problemas que emanam das ilusões que envolvem o plano É tudo o que se pode dizer de antemão Pode acontecer que acreditemos ter encontrado uma solução mas uma nova curvatura do plano que não tínhamos visto de início vem relançar o conjunto e colocar novos problemas uma nova série de problemas operando por empuxos sucessivos e solicitando conceitos futuros por criar nós nem mesmo sabemos se não é antes um novo plano que se destaca do precedente Inversamente pode acontecer que um novo conceito venha insinuarse como uma cunha entre dois conceitos que acreditávamos vizinhos solicitando por sua vez sobre a mesa de imanência a determinação de um problema que surge como uma espécie de ponte A filosofia vive assim numa crise permanente O plano opera por abalos e os conceitos procedem por saraivadas os personagens por solavancos O que é problemático por natureza é a relação das três instâncias Não se pode dizer de antemão se um problema está bem colocado se uma solução convém se é bem o caso se um personagem é viável É que cada uma das atividades filosóficas não encontra critério senão nas outras duas é por 107 isso que a filosofia se desenvolve no paradoxo A filosofia não consiste em saber e não é a verdade que inspira a filosofia mas categorias como as do Interessante do Notável ou do Importante que decidem sobre o sucesso ou o fracasso Ora não se pode sabêlo antes de ter construído De muitos livros de filosofia não se dirá que são falsos pois isso não é dizer nada mas que são sem importância nem interesse justamente porque não criam nenhum conceito nem trazem uma imagem do pensamento ou engendram um personagem que valha a pena Só os professores podem pôr errado à margem e mas os leitores podem ter ainda assim dúvidas sobre a importância e o interesse isto é a novidade do que se lhes dá para ler São categorias do Espírito Um grande personagem romanesco deve ser um Original um Único dizia Melville um personagem conceituai também Mesmo antipático ele deve ser notável mesmo repulsivo um conceito deve ser interessante Quando Nietzsche construía o conceito de má consciência podia ver nele o que há de mais asqueroso no mundo nem por isso gritava menos é aí que o homem começa a se tornar interessante e considerava com efeito que acabava de criar um novo conceito para o homem que convinha ao homem em relação com o novo personagem conceituai o sacerdote e com uma nova imagem do pensamento a vontade de potência apreendida sob o traço negativo do niilismo13 A crítica implica novos conceitos da coisa criticada tanto quanto a criação mais positiva Os conceitos devem ter contornos irregulares moldados sobre sua matéria viva Que é desinteressante por natureza Os conceitos inconsistentes o que Nietzsche chamava de os informes e fluidos borrões de conceitos ou então ao contrário os conceitos por demais regulares petrificados reduzidos a uma ossa 13 Nietzsche Généalogie de Ia morale I 6 108 tura Os conceitos mais universais os que são apresentados como formas ou valores eternos são deste ponto de vista os mais esqueléticos os menos interessantes Não fazemos nada de positivo mas também nada no domínio da crítica ou da história quando nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação sem ver que os antigos filósofos de que são emprestados faziam já o que se queria impedir os modernos de fazer eles criavam seus conceitos e não se contentavam em limpar em raspar os ossos como o crítico ou o historiador de nossa época Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido a relançálo numa nova cena mesmo a preço de voltálo contra ele mesmo 109 Geofilosofia O sujeito e o objeto oferecem uma má aproximação do pensamento Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto nem uma revolução de um em torno do outro Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra Kant é menos prisioneiro que se acredita das categorias de objeto e de sujeito já que sua idéia de revolução copernicana põe diretamente o pensamento em relação com a terra Husserl exige um solo para o pensamento que seria como a terra na medida em que não se move nem está em repouso como intuição originária Vimos todavia que a terra não cessa de operar um movimento de desterritorialização in loco pelo qual ultrapassa todo território ela é desterrítorializante e desterritorializada Ela se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu território lagostas que se põem a andar em fila no fundo da água peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste A terra não é um elemento entre os outros ela reúne todos os elementos num mesmo abraço mas se serve de um ou de outro para desterritorializar o território Os movimentos de desterritorialização não são separáveis dos territórios que se abrem sobre um alhures e os processos de reterritorialização não são separáveis da terra que restitui territórios São dois componentes o território e a terra com duas zonas de indiscernibilidade a desterritorialização do território à terra e a reterritorialização da terra ao território Não se pode dizer qual é primeiro Perguntase em que sentido a Grécia é o território do filósofo ou a terra da filosofia Os Estados e as Cidades têm freqüentemente sido definidos como territoriais substituindo o princípio das linhagens pelo princípio territorial Mas não é exato os grupos de linhagens podem mudar de território só se determinam efetivamente desposando um território ou uma residência numa linhagem local O Estado e a Cidade ao contrário operam uma desterritorialização porque um justapõe e com 113 para os territórios agrícolas remetendoos a uma Unidade superior aritmética e o outro adapta o território a uma extensão geométrica prolongável em circuitos comerciais O Spatium imperiale do Estado ou a extensio política da cidade é menos um princípio territorial que uma desterritorialização que captamos ao vivo quando o Estado se apropria do território dos grupos locais ou então quando a cidade ignora sua hinterlândia a reterritorialização se faz num caso sobre o palácio e seus estoques no outro sobre a agora e as rotas mercantis Nos Estados imperiais a desterritorialização é de transcendência ela tende a se fazer em altura verticalmente segundo um componente celeste da terra O território tornouse terra deserta mas um Estrangeiro celeste vem refundar o território ou reterritorializar a terra Na cidade ao contrário a desterritorialização é de imanência ela libera um Autóctone isto é uma potência da terra que segue um componente marítimo que passa por sob as águas para refundar o território o Erecteion templo de Atena e de Poseidon É verdade que as coisas são mais complicadas porque o Estrangeiro imperial tem ele próprio necessidade de autóctones sobreviventes e que o Autóctone cidadão apela a estrangeiros em fuga mas justamente não são de modo algum os mesmos tipos psicossociais do mesmo modo que o politeísmo de império e o politeísmo da cidade não são as mesmas figuras religiosas1 Dirseia que a Grécia tem uma estrutura fractal tão próximo do mar está cada ponto da península e tão grande é o comprimento das costas Os povos egeus as cidades da 1 Mareei Detienne renovou profundamente estes problemas sobre a oposição do Estrangeiro fundador e do Autóctone sobre as misturas complexas entre estes dois pólos sobre Erectéia cf Questce quun site in Traces de fondation Ed Peeters Cf também Giulia Sissa e Mareei Detienne La vie quotidienne des dieux grees Hachette sobre Erectéia cap XIV e sobre a diferença dos dois politeísmos cap X 114 Grécia antiga e sobretudo Atenas a autóctone não são as primeiras cidades comerciantes Mas são as primeiras a ser ao mesmo tempo bastante próximas e bastante distantes dos impérios arcaicos orientais para poderem aproveitarse deles sem seguir seu modelo em lugar de se estabelecer em seus poros elas banham num novo componente fazem valer um modo particular de desterritorialização que procede por imanência formam um meio de imanência É como um mercado internacional nas bordas do Oriente que se organiza entre uma multiplicidade de cidades independentes ou de sociedades distintas mas ligadas umas às outras onde os artesãos e os mercadores encontram uma liberdade uma mobilidade que os impérios lhes recusam2 Esses tipos vêm da borda do mundo grego estrangeiros em fuga em ruptura com o império e colonizados por Apoio Não somente os artesãos e mercadores mas os filósofos como diz Faye é preciso um século para que o nome filósofo sem dúvida inventado por Heráclito de Éfeso encontre seu correlato na palavra filosofia sem dúvida inventada por Platão o Ateniense Ásia Itália África são as fases odisseanas do percurso que religa o philósophos à filosofia3 Os filósofos são estrangeiros mas a filosofia é grega O que é que estes emi 2 Childe UEurope préhistorique Ed Payot pp 110115 3 JeanPierre Faye La raison narrative Ed Balland pp 1518 Cf Clémence Ramnoux in Histoire de Ia philosophie Gallimard I pp 408409 a filosofia présocrática nasce e cresce na borda da área helênica tal como a colonização tinha conseguido definila por volta do fim do século VII e do início do século VI e precisamente lá onde os gregos enfrentaram em relação de comércio e de guerra os reinos e os impérios do Oriente depois ganha o extremo oeste as colônias da Sicília e da Itália graças a migrações provocadas pelas invasões iranianas e as revoluções políticas Nietzsche Lanaissance de Ia philosophie Gallimard p 131 Imagine que a filosofia seja um emigrado chegado entre os gregos ocorre assim com os Pré Platônicos São de alguma maneira estrangeiros despatriados 115 grados encontram no meio grego Três coisas ao menos que são as condições de fato da filosofia uma pura sociabilidade como meio de imanência natureza intrínseca da associação que se opõe à soberania imperial e que não implica nenhum interesse prévio já que os interesses rivais ao contrário a supõem um certo prazer de se associar que constitui a amizade mas também de romper a associação que constitui a rivalidade não havia já sociedades de amigos formadas pelos emigrados tais como os Pitagóricos mas sociedades ainda um pouco secretas que encontrariam sua abertura na Grécia um gosto pela opinião inconcebível num império um gosto pela troca de opiniões pela conversação4 Imanência amizade opinião nós encontramos sempre estes três traços gregos Não se verá aí um mundo mais doce tantas são as crueldades que a sociabilidade implica as rivalidades da amizade os antagonismos e as reviravoltas sangrentas da opinião O milagre grego é Salamina onde a Grécia escapa ao Império persa e onde o povo autóctone que perdeu seu território o carrega para o mar reterritorializandose sobre o mar A liga de Delos é como que a fractalização da Grécia O liame mais profundo durante um período muito curto existiu entre a cidade democrática a colonização o mar e um novo imperialismo que não via mais no mar um limite de seu território ou um obstáculo a sua empresa mas um banho de imanência ampliada Tudo isso e principalmente o liame da filosofia com a Grécia parece fora de dúvida mas marcado por desvios e por contingência Física psicológica ou social a desterritorialização é relativa na medida em que concerne à relação histórica da terra 4 Sobre esta sociabilidade pura aquém e além do conteúdo particular e a democracia a conversação cf Simmel Sociologie et épistémologie PUF cap III 116 com os territórios que nela se desenham ou se apagam sua relação geológica com eras e catástrofes sua relação astronômica com o cosmos e o sistema estelar do qual faz parte Mas a desterritorialização é absoluta quando a terra entra no puro plano de imanência de um pensamento Ser de um pensamento Natureza com movimentos diagramáticos infinitos Pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra ou antes a adsorve A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização mas a afirma como a criação de uma nova terra por vir Resta que a desterritorialização absoluta só pode ser pensada segundo certas relações por determinar com as desterritorializações relativas não somente cósmicas mas geográficas históricas e psicossociais Há sempre uma maneira pela qual a desterritorialização absoluta sobre o plano de imanência toma o lugar de uma desterritorialização relativa num campo dado É aí que uma grande diferença intervém se a desterritorialização relativa é ela própria de imanência ou de transcendência Quando ela é transcendente vertical celeste operada pela unidade imperial o elemento transcendente deve inclinarse ou sofrer uma espécie de rotação para se inscrever sobre o plano do pensamentoNatureza sempre imanente é segundo uma espiral que a vertical celeste pousa sobre a horizontal do plano do pensamento Pensar implica aqui uma projeção do transcendente sobre o plano de imanência A transcendência pode ser inteiramente vazia em si mesma ela se preenche à medida que se inclina e atravessa diferentes níveis hierárquicos que se projetam em conjunto sobre uma região do plano isto é sobre um aspecto correspondente a um movimento infinito E quando a transcendência invade o absoluto ou quando um monoteísmo substitui a unidade imperial ocorre o mesmo o Deus transcendente permanecerá vazio ou ao menos absconditus se não se proje 117 tar sobre um plano de imanência da criação em que traça as etapas de sua teofania Em todos estes casos unidade imperial ou império espiritual a transcendência que se projeta sobre o plano de imanência o ladrilha ou o povoa de Figuras É uma sabedoria ou uma religião pouco importa É somente deste ponto de vista que se pode aproximar os hexagramas chineses as mandalas hindus as sefirot judaicas os imaginais islâmicos os ícones cristãos pensar por figuras Os hexagramas são combinações de traços contínuos e descontínuos derivando uns dos outros segundo os níveis de uma espiral que figura o conjunto dos momentos sob os quais o transcendente se inclina A mandala é uma projeção sobre uma superfície que faz corresponder os níveis divino cósmico político arquitetural orgânico como valores de uma mesma transcendência É por isso que a figura tem uma referência e uma referência por natureza plurívoca e circular Ela certamente não se define por uma semelhança exterior que permanece proibida mas por uma tensão interna que a remete ao transcendente sobre o plano de imanência do pensamento Numa palavra a figura é essencialmente paradigmática projetiva hierárquica referencial as artes e as ciências também erigem poderosas figuras mas o que as distingue de toda religião não é aspirar à semelhança proibida é emancipar tal ou tal nível para dele fazer novos planos do pensamento sobre os quais as referências e projeções como veremos mudam de natureza Precedentemente para ir rápido dizíamos que os gregos tinham inventado um plano de imanência absoluto Mas a originalidade dos gregos é preciso antes procurála na relação entre o relativo e o absoluto Quando a desterritorialização relativa é ela mesma horizontal imanente ela se conjuga com a desterritorialização absoluta do plano de imanência que leva ao infinito que leva ao absoluto os movimentos da primeira transformandoos o meio o amigo a 118 opinião A imanência é redobrada É aí que se pensa não mais por figuras mas por conceitos É o conceito que vem povoar o plano de imanência Não há mais projeção numa figura mas conexão no conceito É por isso que o conceito ele mesmo abandona toda referência para não reter senão conjugações e conexões que constituem sua consistência O conceito não tem outra regra senão a da vizinhança interna ou externa Sua vizinhança ou consistência interna está assegurada pela conexão de seus componentes em zonas de indiscernibilidade sua vizinhança externa ou exoconsistência está assegurada por pontes que vão de um conceito a um outro quando os componentes de um estão saturados E é bem o que significa a criação de conceitos conectar componentes interiores inseparáveis até o fechamento ou a saturação de modo que não se pode mais acrescentar ou retirar um deles sem mudar o conceito conectar o conceito com um outro de tal maneira que outras conexões mudariam sua natureza A plurivocidade do conceito depende unicamente da vizinhança um conceito pode ter muitos outros conceitos vizinhos Os conceitos são fundos uniformes sem níveis ordenadas sem hierarquia Donde a importância das questões na filosofia que meter num conceito e com que coinserilo Que conceito é preciso inserir ao lado deste e que componentes em cada um São as questões da criação de conceitos Os présocráticos tratam os elementos físicos como conceitos eles os tomam por si mesmos independentemente de toda referência e procuram somente as boas regras de vizinhança entre eles e em seus componentes eventuais Se variam em suas respostas é porque não compõem esses conceitos elementares da mesma maneira por dentro e por fora O conceito não é paradigmático mas sintagmático não é projetivo mas conectivo não é hierárquico mas vicinal não é referente mas consistente É forçoso daí que a filosofia a ciência e a arte não se organizem mais como os níveis de uma 119 mesma projeção e mesmo que não se diferenciem a partir de uma matriz comum mas se coloquem ou se reconstituam imediatamente numa independência respectiva uma divisão do trabalho que suscita entre elas relações de conexão É preciso concluir daí por uma oposição radical entre as figuras e os conceitos A maior parte das tentativas de determinar suas diferenças exprimem somente juízos de humor que se contentam em desvalorizar um dos dois termos ora se dá aos conceitos o prestígio da razão enquanto as figuras são remetidas à noite do irracional e a seus símbolos ora se dá às figuras os privilégios da vida espiritual enquanto que os conceitos são remetidos aos movimentos artificiais de um entendimento morto E todavia inquietantes afinidades aparecem sobre um plano de imanência que parece comum5 O pensamento chinês inscreve sobre o plano numa espécie de ir e vir os movimentos diagramáticos de um pensamento Natureza yin e yang e os hexagramas são os cortes do plano as ordenadas intensivas destes movimentos infinitos com seus componentes em traços contínuos e descontínuos Mas tais correspondências não excluem uma fronteira mesmo que difícil de discernir É que as figuras são projeções sobre o plano que implicam algo de vertical ou de transcen 5 Certos autores retomam hoje sobre novas bases a questão propriamente filosófica liberandose dos estereótipos hegelianos ou heideggerianos sobre uma filosofia judaica os trabalhos de Lévinas e em torno de Lévinas Les cahiers de Ia nuit surveillée n 3 1984 sobre uma filosofia islâmica em função dos trabalhos de Corbin cf Jambet La logique des Orientaux Ed du Seuil e Lardreau Discours philosophique et discours spirituel Ed du Seuil sobre uma filosofia hindu em função de MassonOursel cf a aproximação de RogerPol Droit Uoubli de 1Inde PUF sobre uma filosofia chinesa os estudos de François Cheng Vide et plein Ed du Seuil e de François Jullien Procès ou création Ed du Seuil sobre uma filosofia japonesa cf René de Ceccaty e Nakamura Mille ans de littérature japonaise e a tradução comentada do monge Dôgen Ed de Ia Différence 120 dente os conceitos em contrapartida só implicam vizinhanças e conjugações sobre o horizonte Certamente o transcendente produz por projeção uma absolutização da imanência como François Jullien já o mostrou quanto ao pensamento chinês Mas inteiramente diferente é a imanência do absoluto que a filosofia reivindica Tudo o que podemos dizer é que as figuras tendem para conceitos a ponto de se aproximar infinitamente deles O cristianismo dos séculos XV ao XVII faz da impresa o invólucro de um conceito mas o conceito não tomou ainda consistência e depende da maneira pela qual é figurado ou mesmo dissimulado A questão que retorna periodicamente há uma filosofia cristã significa o cristianismo é capaz de criar conceitos próprios A crença a angústia o pecado a liberdade Nós o vimos em Pascal e Kierkegaard talvez a crença não se torne um verdadeiro conceito senão quando ela se faz crença neste mundo e se conecta em lugar de se projetar Talvez o pensamento cristão não produza conceito senão por seu ateísmo pelo ateísmo que ele secreta mais que qualquer outra religião Para os filósofos o ateísmo não é um problema a morte de Deus menos ainda os problemas só começam a seguir quando se atingiu o ateísmo do conceito Estranhase que tantos filósofos ainda assumam como trágica a morte de Deus O ateísmo não é um drama ele é a serenidade do filósofo e a conquista da filosofia Há sempre um ateísmo por extrair de uma religião Já era verdade para o pensamento judaico ele empurra suas figuras até o conceito mas só o atinge com Espinosa o ateu E se as figuras tendem assim para os conceitos o inverso é igualmente verdadeiro e os conceitos filosóficos reproduzem figuras toda vez que a imanência é atribuída a algo objetidade de contemplação sujeito de reflexão intersubjetividade de comunicação as três figuras da filosofia É preciso ainda constatar que as religiões não atingem o conceito sem se renegar tal como as filosofias não atin 121 gem a figura sem se trair Entre as figuras e os conceitos há diferença de natureza mas também todas as diferenças de grau possíveis Podese falar de uma filosofia chinesa hindu judaica islâmica Sim na medida em que o pensar ocorre sobre um plano de imanência que pode ser povoado de figuras tanto quanto de conceitos Este plano de imanência todavia não é exatamente filosófico mas préfilosófico Ele é afetado pelo que o povoa e que reage sobre ele de modo que só se torna filosófico sob o efeito do conceito suposto pela filosofia ele não é menos instaurado por ela e se desdobra numa relação filosófica com a nãofilosofia No caso das figuras ao contrário o préfilosófico mostra que o próprio plano de imanência não tinha por destinação inevitável uma criação de conceito ou uma formação filosófica mas podia se desdobrar em sabedorias e religiões segundo uma bifurcação que conjurava previamente a filosofia do ponto de vista de sua própria possibilidade O que negamos é que a filosofia apresente uma necessidade interna seja em si mesma seja nos gregos e a idéia de um milagre grego não seria senão um outro aspecto dessa pseudonecessidade E no entanto a filosofia foi uma coisa grega embora trazida por migrantes Para que a filosofia nascesse foi preciso um encontro entre o meio grego e o plano de imanência do pensamento Foi preciso a conjunção de dois movimentos de desterritorialização muito diferentes o relativo e o absoluto o primeiro operando já na imanência Foi preciso que a desterritorialização absoluta do plano de pensamento se ajustasse ou se conectasse diretamente com a desterritorialização relativa da sociedade grega Foi preciso o encontro do amigo e do pensamento Numa palavra há de fato uma razão para a filosofia mas uma razão sintética e contingente um encontro uma conjunção Ela não é insuficiente por si mesma mas contingente em si mesma Mesmo no conceito a razão 122 depende de uma conexão dos componentes que poderia ter sido outra com outras vizinhanças O princípio de razão tal como aparece na filosofia é um princípio de razão contingente e se anuncia não há boa razão senão contingente não há história universal senão da contingência EXEMPLO VII E vão procurar como Hegel ou Heidegger uma razão analítica e necessária que uniria a filosofia à Grécia Porque os gregos são homens livres são os primeiros a captar o Objeto numa relação com o sujeito tal seria o conceito segundo Hegel Mas já que o objeto permanece contemplado como belo sem que sua relação com o sujeito seja ainda determinada é preciso esperar os estágios seguintes para que esta relação seja ela mesma refletida depois posta em movimento ou comunicada Não deixa de ser verdade que os gregos inventaram o primeiro estágio a partir do qual tudo se desenvolve interiormente ao conceito O Oriente pensava sem dúvida mas pensava o objeto em si como abstração pura a universalidade vazia idêntica à simples particularidade faltavalhe a relação com o sujeito como universalidade concreta ou como individualidade universal O Oriente ignora o conceito porque se contenta em fazer coexistir o vazio mais abstrato e o ente mais trivial sem nenhuma mediação Todavia não se vê muito bem o que distingue o estágio antefilosófico do Oriente e o estágio filosófico da Grécia já que o pensamento grego não é consciente da relação com o sujeito que supõe sem saber refletilo ainda Também Heidegger desloca o problema e situa o conceito na diferença entre o Ser e o ente antes que naquela do sujeito e do objeto Ele considera o grego como 123 autóctone antes que como livre cidadão e toda a reflexão de Heidegger sobre o Ser e o ente se aproxima da Terra e do território como testemunham os temas do construir do habitar o próprio do grego é habitar o Ser e dispor da palavra Ser Desterritorializado o grego se reterritorializa sobre sua própria língua e seu tesouro lingüístico o verbo ser Assim o Oriente não está antes da filosofia mas ao lado porque ele pensa mas não pensa o Ser6 E a filosofia mesma passa menos por graus do sujeito e do objeto evolui menos do que habita uma estrutura do Ser Os gregos de Heidegger não chegam a articular sua relação com o Ser os de Hegel não chegam a refletir sua relação com o Sujeito Mas em Heidegger não se trata de ir mais longe que os gregos basta retomar seu movimento numa repetição recomeçante iniciante É que o Ser em virtude de sua estrutura não cessa de se desviar quando se volta e a história do Ser ouda Terra é a de seu desvio de sua desterritorialização no desenvolvimento técnicomundial da civilização ocidental iniciada pelos gregos e reterritorializada sobre o nacionalsocialismo O que permanece comum a Heidegger e a Hegel é terem concebido a relação da Grécia com a filosofia como uma origem e assim como o ponto de partida de uma história interior ao Ocidente de modo que a filosofia se confunde necessariamente com sua própria história Por mais fortemente que se tenha dele aproximado Heidegger trai o movimento da desterritorialização porque o cristaliza de uma vez por todas entre o ser e o ente entre o território grego e a Terra ocidental que os gregos teriam nomeado Ser 6 Cf Jean Beaufret A fonte está em toda parte indeterminada tanto chinesa árabe quanto indiana Mas eis há o episódio grego os gregos tiveram o estranho privilégio de nomear a fonte ser Ethernité n 11985 124 Hegel e Heidegger permanecem historicistas na medida em que tomam a história como uma forma de interioridade na qual o conceito desenvolve ou desvela necessariamente seu destino A necessidade repousa sobre a abstração do elemento histórico tornado circular Compreendese mal então a imprevisível criação dos conceitos A filosofia é uma geofilosofia exatamente como a história é uma geohistória do ponto de vista de Braudel Por que a filosofia na Grécia em tal momento Ocorre o mesmo que para o capitalismo segundo Braudel por que o capitalismo em tais lugares e em tais momentos por que não na China em tal outro momento já que tantos componentes já estavam presentes lá A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para a forma histórica Ela não é somente física e humana mas mental como a paisagem Ela arranca a história do culto da necessidade para fazer valer a irredutibilidade da contingência Ela a arranca do culto das origens para afirmar a potência de um meio o que a filosofia encontra entre os gregos dizia Nietzsche não é uma origem mas um meio um ambiente uma atmosfera ambiente o filósofo deixa de ser um cometa Ela a arranca das estruturas para traçar as linhas de fuga que passam pelo mundo grego através do Mediterrâneo Enfim ela arranca a história de si mesma para descobrir os devires que não são a história mesmo quando nela recaem a história da filosofia na Grécia não deve esconder que os gregos sempre tiveram primeiro que se tornar filósofos do mesmo modo que os filósofos tiveram que se tornar gregos O devir não é história hoje ainda a história designa somente o conjunto das condições por mais recentes que sejam das quais nos desviamos para um devir isto é para criarmos algo de novo Os gregos o fizeram mas não há desvio que valha de uma vez por todas Não se pode reduzir a filosofia a sua própria história porque a filosofia não cessa de se arrancar dessa história para criar novos con 125 ceitos que recaem na história mas não provêm dela Como algo viria da história Sem a história o devir permaneceria indeterminado incondicionado mas o devir não é histórico Os tipos psicossociais são da história mas os personagens conceituais são do devir O próprio acontecimento tem necessidade do devir como de um elemento nãohistórico O elemento nãohistórico diz Nietzsche assemelhase a uma atmosfera ambiente sem a qual a vida não pode engendrarse vida que desaparece de novo quando essa atmosfera se aniquila É como um momento de graça e onde há atos que o homem foi capaz de realizar sem se ter antes envolvido por esta nuvem nãohistórica7 Se a filosofia aparece na Grécia é em função de uma contingência mais do que de uma necessidade de um ambiente ou de um meio mais do que de uma origem de um devir mais do que de uma história de uma geografia mais do que de uma historiografia de uma graça mais do que de uma natureza Por que a filosofia sobrevive à Grécia Não se pode dizer que o capitalismo através da Idade Média seja a continuação da cidade grega mesmo as formas comerciais são pouco comparáveis Mas por razões sempre contingentes o capitalismo arrasta a Europa numa fantástica desterritorialização relativa que remete de início a vilascidades e que procede ela também por imanência As produções territoriais se reportam a uma forma comum imanente capaz de percorrer os mares a riqueza em geral o trabalho simplesmente e o encontro entre os dois como mercadoria Marx constrói exatamente um conceito de capitalismo determinando os dois componentes principais trabalho nu e riqueza pura com sua zona de indiscernibilidade quando a riqueza compra o 7 Nietzsche Considérations intempestives De Putilité et des inconvénients des études historiques 1 Sobre o filósofocometa e o meio que ele encontra na Grécia La naissance de Ia philosophie Gallimard p 37 126 trabalho Por que o capitalismo no Ocidente e não na China do século III ou mesmo no século VIII8 É que o Ocidente monta e ajusta lentamente estes componentes ao passo que o Oriente os impede de vir a termo Só o Ocidente estende e propaga seus focos de imanência O campo social não remete mais como nos impérios a um limite exterior que o limita de cima mas a limites interiores imanentes que não cessam de se deslocar alargando o sistema e que se reconstituem deslocandose9 Os obstáculos exteriores são apenas tecnológicos e só subsistem as rivalidades internas Mercado mundial que se estende até os confins da terra antes de passar para a galáxia mesmo os ares se tornam horizontais Não é uma continuação da tentativa grega mas uma retomada numa escala anteriormente desconhecida sob uma outra forma e com outros meios que relança todavia a combinação da qual os gregos tiveram a iniciativa o imperialismo democrático a democracia colonizadora O europeu pode pois se considerar não como um tipo psicossocial entre os outros mas como o Homem por excelência assim como o grego já o fizera mas com muito mais força expansiva e vontade missionária que o grego Husserl dizia que os povos mesmo em sua hostilidade se agrupam em tipos que têm um lar territorial e um parentesco familiar tal como os povos da índia mas só a Europa malgrado a rivalidade de suas nações proporia a si mesma e aos outros povos uma incitação a se europeizar cada vez mais de modo que é a humanidade inteira que se aparenta a si neste Ocidente como o fizera ou 8 Cf Balazs La bureaucratie celeste Gallimard cap XIII 9 Marx O Capital III 3 conclusões A produção capitalista tende sem cessar a ultrapassar estes limites que lhe são imanentes mas ela não chega a isso senão empregando meios que novamente e numa escala mais imponente erguem ante ela as mesmas barreiras A verdadeira barreira da produção capitalista é o capital ele mesmo 127 trora na Grécia10 Todavia é difícil acreditar que seja a ascensão da filosofia e das ciências coinclusas o que explica este privilégio de um sujeito transcendental propriamente europeu É preciso que o movimento infinito do pensamento o que Husserl chama de Telos entre em conjunção com o grande movimento relativo do capital que não cessa de se desterritorializar para assegurar o poder da Europa sobre todos os outros povos e sua reterritorialização sobre a Europa O liame da filosofia moderna com o capitalismo é pois do mesmo gênero que o da filosofia antiga com a Grécia a conexão de um plano de imanência absoluto com um meio social relativo que procede também por imanência Não é uma continuidade necessária que vai da Grécia à Europa do ponto de vista do desenvolvimento da filosofia por intermédio do cristianismo é o recomeço contingente de um mesmo processo contingente com outros dados A imensa desterritorialização relativa do capitalismo mundial precisa se reterritorializar sobre o Estado nacional moderno que culmina na democracia nova sociedade de irmãos versão capitalista da sociedade dos amigos Como mostra Braudel o capitalismo partiu das vilascidades mas estas levaram tão longe a desterritorialização que foi necessário que os Estados modernos imanentes moderassem a loucura delas as recuperassem e as investissem para operar as reterritorializações necessárias como novos limites internos11 O capitalismo reativa o mundo grego sobre estas bases econômicas políticas e sociais É a nova Atenas O homem do capitalismo não é Robinson mas Ulisses o plebeu astucioso o homem médio qualquer habitante das gran 10 Husserl ha crise des sáences européennes Gallimard pp 353355 cf os comentários de RP Droit Uoubli de lInde pp 203204 11 Braudel Civilisation tnatérielle et capitalistne Ed Armand Colin I pp 391400 128 des cidades Proletário autóctone ou Migrante estrangeiro que se lançam no movimento infinito a revolução Não é um grito mas dois gritos que atravessam o capitalismo e vão ao encalço da mesma decepção Emigrados de todos os países univos Proletários de todos os países Nos dois pólos do Ocidente a América e a Rússia o pragmatismo e o socialismo representam o retorno de Ulisses a nova sociedade de irmãos ou de camaradas que retoma o sonho grego e reconstitui a dignidade democrática Com efeito a conexão da filosofia antiga com a cidade grega a conexão da filosofia moderna com o capitalismo não são ideológicos e não se contentam em levar ao infinito determinações históricas e sociais para extrair daí figuras espirituais Certamente pode ser tentador ver na filosofia um comércio agradável do espírito que encontraria no conceito sua mercadoria própria ou antes seu valor de troca do ponto de vista de uma sociabilidade desinteressada nutrida pela conversação democrática ocidental capaz de engendrar um consenso de opinião e de fornecer uma ética para a comunicação como a arte lhe forneceria uma estética Se é isso que se chama filosofia compreendese que o marketing se apodere do conceito e que o publicitário se apresente como o conceituador por excelência poeta e pensador o deplorável não está nesta apropriação desavergonhada mas antes de mais nada na concepção da filosofia que a tornou possível Guardadas todas as proporções os gregos tinham passado por vergonhas semelhantes com certos sofistas Mas para o bem da filosofia moderna esta não é mais amiga do capitalismo do que a filosofia antiga era da cidade A filosofia leva ao absoluto a desterritorialização relativa do capital ela o faz passar sobre o plano de imanência como movimento do infinito e o suprime enquanto limite interior voltandoo contra si para chamálo a uma nova terra a um novo povo Mas assim ela atinge a forma não proposicional do conceito em 129 que se aniquilam a comunicação a troca o consenso e a opinião Está pois mais próximo daquilo que Adorno chamava de dialética negativa e do que a escola de Frankfurt designava como utopia Com efeito é a utopia que faz a junção da filosofia com sua época capitalismo europeu mas já também cidade grega É sempre com a utopia que a filosofia se torna política e leva ao mais alto ponto a crítica de sua época A utopia não se separa do movimento infinito ela designa etimologicamente a desterritorialização absoluta mas sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente e sobretudo com as forças abafadas neste meio A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler Erewhon não remete somente a NoWhere ou a parteNenhuma mas a NowHere aquiagora O que conta não é a pretensa distinção de um socialismo utópico e de um socialismo científico são antes os diversos tipos de utopia dentre os quais a revolução Há sempre na utopia como na filosofia o risco de uma restauração da transcendência e por vezes sua orgulhosa afirmação de modo que é preciso distinguir as utopias autoritárias ou de transcendência e as utopias libertárias revolucionárias imanentes12 Mas justamente dizer que a revolução é ela mesma utopia de imanência não é dizer que é um sonho algo que não se realiza ou que só se realiza traindose Pelo contrário é colocar a revolução como plano de imanência movimento infinito sobrevôo absoluto mas enquanto estes traços se conectam com o que há de real aqui e agora na luta contra o capitalismo e relançam novas lutas sempre que a precedente é traída A palavra utopia designa portanto esta conjunção da filosofia ou do conceito com o meio presente filosofia políti 12 Sobre estes tipos de utopias cf Ernst Bloch Le príncipe esperance Gallimard II E os comentários de René Schérer sobre a utopia de Fourier em suas relações com o movimento Pari sur 1impossible Presses Universitaires de Vincennes 130 ca embora talvez a utopia não seja a melhor palavra em raão do sentido mutilado que a opinião lhe deu Não é falso dizer que a revolução é culpa dos filósofos embora não sejam os filósofos que a conduzam Que as duas grandes revoluções modernas a americana e a soviética tenham dado no que deram não impede o conceito de prosseguir sua via imanente Como mostrava Kant o conceito de revolução não está na maneira pela qual esta pode ser conduzida num campo social necessariamente relativo mas no entusiasmo com o qual ela é pensada sobre um plano de imanência absoluto como uma apresentação do infinito no aquiagora que não comporta nada de racional ou mesmo de razoável13 O conceito libera a imanência de todos os limites que o capital lhe impunha ainda ou que ela se impunha a si mesma sob a forma do capital aparecendo como algo de transcendente Neste entusiasmo tratase todavia menos de uma separação entre o espectador e o ator que de uma distinção na ação mesma entre os fatores históricos e a névoa nãohistórica entre o estado de coisas e o acontecimento A título de conceito e como acontecimento a revolução é autoreferencial ou goza de uma autoposição que se deixa apreender num entusiasmo imanente sem que nada nos estados de coisas ou no vivido possa atenuála sequer as decepções da razão A revolução é desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova terra ao novo povo A desterritorialização absoluta não existe sem reterritorialização A filosofia se reterritorializa sobre o conceito O conceito não é objeto mas território Não há Objeto mas um território Precisamente por isso ele tem uma forma passada presente e talvez por vir A filosofia moderna se reter 13 Kant Le conflit des facultes II 6 este texto reencontrou toda a sua importância hoje pelos comentários muito diferentes de Foucault 131 ritorializa sobre a Grécia como forma de seu próprio passado São os filósofos alemães sobretudo que viveram a relação com a Grécia como uma relação pessoal Mas justamente eles se viviam a si mesmos como o avesso ou o contrário dos gregos o simétrico inverso os gregos mantinham bem o plano de imanência que eles construíam no entusiasmo e na embriaguez mas eles precisavam procurar com quais conceitos preenchêlo para não recair nas figuras do Oriente enquanto que nós nós temos conceitos nós acreditamos têlos depois de tantos séculos de pensamento ocidental mas não sabemos de modo algum onde colocálos porque carecemos de um verdadeiro plano desviados que somos pela transcendência cristã Numa palavra sob sua forma passada o conceito é o que não era ainda Nós hoje temos os conceitos mas os gregos não tinham ainda eles tinham o plano que nós não temos mais É por isso que os gregos de Platão contemplam o conceito como algo que está ainda muito longe e acima enquanto que nós nós temos o conceito nós o temos no espírito de uma maneira inata basta refletir É o que Hõlderlin exprimia tão profundamente o chão natal dos gregos é nosso estrangeiro o que nós devemos adquirir enquanto os gregos ao contrário tinham de adquirir nosso chão natal como seu estrangeiro14 Ou então Schelling os gregos viviam e pensavam na Natureza 14 Hõlderlin os gregos possuem o grande Plano pânico que eles partilhavam com o Oriente mas eles devem adquirir o conceito ou a composição orgânica ocidental entre nós é o contrário carta a Bõlhendorf 4 de dezembro de 1801 e os comentários de Jean Beaufret in Hòlderlin Remarques sur Oedipe Ed UGE Col 1018 pp 811 cf também Philippe LacoueLabarthe Uimitation des modernes Ed Galilée Mesmo o texto célebre de Renan sobre o milagre grego tem um movimento complexo análogo o que os gregos tinham por natureza nós não podemos reencontrálo senão pela reflexão confrontando um esquecimento e um tédio fundamentais nós não somos mais gregos nós somos bretões Souvenirs denfance et de jeunesse 132 mas deixavam o Espírito nos mistérios enquanto que nós nós vivemos sentimos e pensamos no Espírito na reflexão mas deixamos a Natureza num profundo mistério alquímico que não cessamos de profanar O autóctone e o estrangeiro não se separam mais como dois personagens distintos mas se distribuem como um só e mesmo personagem duplo que se desdobra por sua vez em duas versões presente e passada o que era estrangeiro se torna autóctone Hõlderlin conclama com todas as suas forças uma sociedade de amigos como condição do pensamento mas é como se esta sociedade tivesse atravessado uma catástrofe que muda a natureza da amizade Nós nos reterritorializamos entre os gregos mas em função do que eles não tinham e não eram ainda de modo que nós os reterritorializamos sobre nós mesmos A reterritoríalização filosófica tem pois também uma forma presente Podese dizer que a filosofia se reterritorializa sobre o Estado democrático moderno e os direitos do homem Mas como não há Estado democrático universal este movimento implica a particularidade de um Estado de um direito ou o espírito de um povo capaz de exprimir os direitos do homem em seu Estado e de desenhar a moderna sociedade de amigos Com efeito não é somente o filósofo que tem uma nação enquanto homem é a filosofia que se reterritorializa sobre o Estado nacional e o espírito do povo o mais freqüentemente aqueles do filósofo mas nem sempre Assim Nietzsche fundou a geofilosofia procurando determinar os caracteres nacionais da filosofia francesa inglesa e alemã Mas por que três países somente foram coletivamente capazes de produzir filosofia no mundo capitalista Por que não a Espanha por que não a Itália A Itália notadamente apresentava um conjunto de cidades desterritorializadas e uma potência marítima capazes de renovar as condições de um milagre e marcou o começo de uma filosofia inigualável mas que abortou e cuja herança passa antes para a Alema 133 nha com Leibniz e Schelling Talvez a Espanha fosse por demais submissa à Igreja e a Itália por demais próxima da Santa Sé o que salvou espiritualmente a Inglaterra e a Alemanha foi talvez a ruptura com o catolicismo e a França o galicanismo À Itália e à Espanha faltava um meio para a filosofia de modo que seus pensadores permaneceram cometas e elas estavam dispostas a queimar seus cometas A Itália e a Espanha foram os dois países ocidentais capazes de desenvolver poderosamente o conceitismo isto é o compromisso católico do conceito e da figura que tinha um grande valor estético mas mascarava a filosofia desviava a filosofia para uma retórica e impedia uma plena posse do conceito A forma presente se enuncia assim nós temos os conceitos Enquanto que os gregos não os tinham ainda e os contemplavam de longe ou os pressentiam daí decorre a diferença entre a reminiscência platônica e o inatismo cartesiano ou o a priori kantiano Mas a posse do conceito não parece coincidir com a revolução o Estado democrático e os direitos do homem Se é verdade que na América a empresa filosófica do pragmatismo tão subestimada na França está em continuidade com a revolução democrática e a nova sociedade de irmãos não ocorre o mesmo com a idade de ouro da filosofia francesa no século XVII nem com a Inglaterra no século XVIII nem com a Alemanha no século XIX Mas isto significa somente que a história dos homens e a história da filosofia não têm o mesmo ritmo E a filosofia francesa já exige uma república de espíritos e uma capacidade de pensar como a coisa melhor partilhada que terminará por se exprimir num cogito revolucionário a Inglaterra não cessará de refletir sobre sua experiência revolucionária e será a primeira a perguntar por que as revoluções dão errado nos fatos quando tanto prometem em espírito A Inglaterra a América e a França vivem a si mesmas como as três terras dos direitos do homem Quanto à Alemanha 134 ela não cessa de sua parte de refletir sobre a revolução francesa como aquilo que ela não pode fazer faltamlhe cidades suficientemente desterritorializadas ela sofre o peso de uma hinterlândia o Land Mas o que ela não pode fazer ela se dá por tarefa pensar É sempre em conformidade com o espírito de um povo e sua concepção do direito que a filosofia se reterritorializa no mundo moderno A história da filosofia é pois marcada por caracteres nacionais ou antes nacionalitários que são como opiniões filosóficas EXEMPLO VIII Se é verdade que nós homens modernos temos o conceito mas perdemos de vista o plano de imanência o caráter francês em filosofia tem a tendência a se aproveitar desta situação sustentando os conceitos por uma simples ordem do conhecimento reflexivo uma ordem de razões uma epistemologia É como o recenseamento das terras habitáveis civilizáveis conhecíveis ou conhecidas que se medem por uma tomada de consciência ou cogito mesmo se o cogito deve tornarse préreflexivo e esta consciência nãotética para cultivar as terras mais ingratas Os franceses são como proprietários rurais cuja renda é o cogito Eles são sempre reterritorializados sobre a consciência A Alemanha pelo contrário não renuncia ao absoluto ela se serve da consciência mas como de um meio de desterritorialização Ela quer reconquistar o plano de imanência grego a terra desconhecida que ela sente agora como sua própria barbárie sua própria anarquia deixada aos nômades depois da desaparição dos gregos15 Também 15 Devemonos remeter às primeiras linhas do prefácio da primeira edição da Crítica da Razão pura O terreno onde se travam os combates se chama a Metafísica No início sob o reino dos dogmáticos seu poder era despótico Mas como sua legislação levava ainda a marca da antiga barbárie esta metafísica cai pouco a pouco em conseqüência de guerras intestinas numa completa anarquia e os céticos espécies de nômades que têm horror de se estabelecer definitivamente sobre uma terra rompiam de tempos em tempos o liame social Todavia como não eram felizmente senão um pequeno número eles não puderam impedir seus adversários de tentar sempre novamente mas de resto sem nenhum plano entre eles previamente concertado restabelecer este liame quebrado E sobre a ilha da fundação o grande texto da Analítica dos princípios no começo do capítulo III As Críticas não compõem somente uma história mas sobretudo uma geografia da Razão segundo a qual se distingue um campo um território e um domínio do conceito Crítica do juízo introdução 2 JeanClet Martin fez uma bela análise desta geografia da Razão pura em Kant Variations no prelo 135 lhe é necessário sem cessar limpar e consolidar este solo isto é fundar Uma mania de fundar de conquistar inspira esta filosofia o que os gregos tinham por autoctonia ela o terá por conquista e fundação de modo que ela tornará a imanência imanente a algo a seu próprio Ato de filosofar a sua própria subjetividade filosofante o cogito toma pois um sentido inteiramente diferente já que ele conquista e fixa o solo Deste ponto de vista a Inglaterra é á obsessão da Alemanha pois os ingleses são precisamente esses nômades que tratam o plano de imanência como um solo móvel e movente um campo de experiência radical um mundo em arquipélago onde eles se contentam em plantar suas tendas de ilha em ilha e sobre o mar Os ingleses nomadizam sobre a velha terra grega fraturada fractalizada estendida a todo o universo Não se pode sequer dizer que eles tenham os conceitos como os franceses ou os alemães mas eles os adquirem não crêem senão no adquirido Não porque tudo viria dos sentidos mas porque se adquire um conceito habitan 136 do plantando sua tenda contraindo um hábito Na trindade FundarConstruirHabitar são os franceses que constróem e os alemães que fundam mas os ingleses habitam Bastalhes uma tenda Eles forjam para si uma concepção extraordinária do hábito adquirimos hábitos contemplando e contraindo o que contemplamos O hábito é criador A planta contempla a água a terra o azoto o carbono os cloros e os sulfatos e os contrai para adquirir seu próprio conceito e se sacia com ele enjoyment O conceito é um hábito adquirido contemplando os elementos dos quais se procede de onde a grecidade muito especial da filosofia inglesa seu neoplatonismo empírico Nós somos todos contemplações portanto hábitos Eu é um hábito Há conceito em toda a parte onde há hábito e os hábitos se fundam e se desfazem sobre o plano de imanência da experiência radical são convenções16 É por isso que a filosofia inglesa é uma livre e selvagem criação de conceitos Uma proposição sendo dada a qual convenção remete ela qual é o hábito que constitui seu conceito É a questão do pragmatismo O direito inglês é de costume ou de convenção como o francês de contrato sistema dedutivo e o alemão de instituição totalidade orgânica Quando a filosofia se reterritorializa sobre o Estado de direito o filósofo se torna professor de filosofia mas o alemão o é por instituição e fundamento o francês o é por contrato o inglês não o é senão por convenção Se não há Estado democrático universal malgrado o sonho de fundação da filosofia alemã é porque a única coi 16 Hume Traitéde Ia nature humaine Ed Aubier II p 608 Dois homens que manejam os remos de um barco fazemno segundo um acordo ou uma convenção embora jamais tenham feito promessas 137 sa que é universal no capitalismo é o mercado Por oposição aos impérios arcaicos que operavam sobrecodificações transcendentes o capitalismo funciona como uma axiomática imanente de fluxos decodificados fluxo de dinheiro de trabalho de produtos Os Estados nacionais não são mais paradigmas de sobrecodificação mas constituem os modelos de realização dessa axiomática imanente Numa axiomática os modelos não remetem a uma transcendência ao contrário É como se a desterritorialização dos Estados moderasse a do capital e fornecesse a este as reterritorializações compensatórias Ora os modelos de realização podem ser muito diversos democráticos ditatoriais totalitários podem ser realmente heterogêneos não são menos isomorfos em relação ao mercado mundial enquanto este não supõe somente mas produz desigualdades de desenvolvimento determinantes É por isso que como se observou freqüentemente os Estados democráticos são ligados de tal maneira e comprometidos com os Estados ditatoriais que a defesa dos direitos do homem deve necessariamente passar pela crítica interna de toda democracia Todo democrata é também o outro Tartufo de Beaumarchais o Tartufo humanitário como dizia Péguy Certamente não há razão para acreditar que não podemos mais pensar depois de Auschwitz e que somos todos responsáveis pelo nazismo numa culpabilidade malsã que aliás só afetaria as vítimas Primo Levi diz não nos obrigarão a tomar as vítimas por algozes Mas o que o nazismo e os campos nos inspiram diz ele é bem mais ou bem menos a vergonha de ser um homem porque mesmo os sobreviventes precisaram compactuar se comprometer17 Não são 17 É um sentimento composto que Primo Levi descreve assim vergonha que homens tenham podido fazer isso vergonha que nós não tenhamos podido impedilo vergonha de ter sobrevivido a isto vergonha de ter sido envilecido ou diminuído Cf Les naufragés et les rescapés Gallimard e sobre a zona cinza de contornos mal definidos que se 138 somente nossos Estados é cada um de nós cada democrata que se acha não responsável pelo nazismo mas maculado por ele Há catástrofe mas a catástrofe consiste em que a sociedade de irmãos ou de amigos passou por uma tal prova que eles não podem mais se olhar um ao outro ou cada um a si mesmo sem uma fadiga talvez uma desconfiança que se tornam movimentos infinitos do pensamento que não suprimem a amizade mas lhe dão sua cor moderna e substituem a simples rivalidade dos gregos Não somos mais gregos e a amizade não é mais a mesma Blanchot Mascolo viram a importância desta mutação para o próprio pensamento Os direitos do homem são axiomas eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas especialmente na segurança da propriedade que os ignoram ou ainda os suspendem mais do que os contradizem a impura mistura ou o impuro lado a lado dizia Nietzsche Quem pode manter e gerar a miséria e a desterritorializaçãoreterritorialização das favelas salvo polícias e exércitos poderosos que coexistem com as democracias Que socialdemocracia não dá a ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto Os direitos não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sobre o Estado democrático Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo E é preciso muita inocência ou safadeza a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou mesmo de sábios formando uma opinião universal como consenso capaz de moralizar as nações os Estados e o mercado18 para e liga ao mesmo tempo os dois campos de senhores e de escravos P 42 18 Sobre a crítica da opinião democrática seu modelo americano e as mistificações dos direitos do homem ou do Estado de direito internacional uma das mais fortes análises é a de Michel Butel UAutre journal n 10 março de 1991 pp 2125 139 Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos E a vergonha de ser um homem nós não a experimentamos somente nas situações extremas descritas por Primo Levi mas nas condições insignificantes ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam as democracias ante a propagação desses modos de existência e de pensamentoparao mercado ante os valores os ideais e as opiniões de nossa época A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparecem de dentro Não nos sentimos fora de nossa época ao contrário não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia Não somos responsáveis pelas vítimas mas diante das vítimas E não há outro meio senão fazer como o animal rosnar escavar o chão nitrir convulsionarse para escapar ao ignóbil o pensamento mesmo está por vezes mais próximo de um animal que morre do que de um homem vivo mesmo democrata Se a filosofia se reterritorializa sobre o conceito ela não encontra sua condição na forma presente do Estado democrático ou num cogito de comunicação mais duvidoso ainda que o cogito da reflexão Não nos falta comunicação ao contrário nós temos comunicação demais faltanos criação Falta nos resistência ao presente A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda A europeização não constitui um devir constitui somente a história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados A arte e a filosofia juntamse neste ponto a constituição de uma terra e de um povo ausentes como correlato da criação Não são autores populistas mas os mais aristocráticos que exigem esse porvir Esse povo e essa terra não serão reencontrados em nossas democracias As democracias são maiorias mas um devir é por natureza o que se subtrai sempre à maio 140 ria É uma posição complexa ambígua a de muitos autores com relação à democracia O caso Heidegger veio complicar as coisas foi necessário que um grande filósofo se reterritorializasse efetivamente sobre o nazismo para que os comentários mais estranhos se cruzassem ora para pôr em causa sua filosofia ora para absolvêla em nome de argumentos tão complicados e alambicados que nos deixam perturbados Nem sempre é fácil ser heideggeriano Terseia compreendido melhor que um grande pintor um grande músico caíssem assim na vergonha mas justamente eles não o fizeram Precisou ter sido um filósofo como se a vergonha devesse entrar na própria filosofia Ele quis reencontrar os gregos pelos alemães no pior momento de sua história que há de pior dizia Nietzsche do que se encontrar ante um alemão quando se esperava um grego Como os conceitos de Heidegger não seriam intrinsecamente maculados por uma reterritorialização abjeta A menos que todos os conceitos comportem esta zona cinza e de indiscernibilidade onde os lutadores se confundem um instante sobre o solo e onde o olho cansado do pensador toma um pelo outro não somente o alemão por um grego mas o fascista por um criador de existência e de liberdade Heidegger se perdeu nos caminhos da reterritorialização pois são caminhos sem baliza nem parapeito Talvez este rigoroso professor fosse mais louco do que parecia Ele se enganou de povo de terra de sangue Pois a raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura mas uma raça oprimida bastarda inferior anárquica nômade irremediavelmente menor aqueles que Kant excluía das vias da nova Crítica Artaud dizia escrever para os analfabetos falar para os afásicos pensar para os acéfalos Mas que significa para Não é com vistas a Nem mesmo em lugar de É diante É uma questão de devir O pensador não é acéfalo afásico ou analfabeto mas se torna Tornase índio não 141 pára de se tornar talvez para que o índio que é índio se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia Pensamos e escrevemos para os animais Tornamonos animal para que o animal também se torne outra coisa A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento não por piedade mas como a zona de troca entre o homem e o animal em que algo de um passa ao outro É a relação constitutiva da filosofia com a nãofilosofia O devir é sempre duplo e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova terra O filósofo deve tornarse nãofilósofo para que a nãofilosofia se torne a terra e o povo da filosofia Mesmo um filósofo tão bem considerado como o bispo Berkeley não pára de dizer nós os irlandeses o populacho O povo é interior ao pensador porque é um devirpovo na medida em que o pensador é interior ao povo como devir não menos ilimitado O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo só podem invocálo com todas as suas forças Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo Eles têm em comum resistir resistir à morte à servidão ao intolerável à vergonha ao presente A desterritorialização e a reterritorialização se cruzam no duplo devir Não se pode mais distinguir o autóctone e o estrangeiro porque o estrangeiro se torna autóctone no outro que não o é ao mesmo tempo que o autóctone se torna estrangeiro a si mesmo a sua própria classe a sua própria nação a sua própria língua nós falamos a mesma língua e todavia eu não entendo você Tornarse estrangeiro a si mesmo e a sua própria língua e nação não é próprio do filósofo e da filosofia seu estilo o que se chama um galimatias filosófico Em resumo a filosofia se reterritorializa 142 três vezes uma vez no passado sobre os gregos uma vez no presente sobre o Estado democrático uma vez no porvir sobre o novo povo e a nova terra Os gregos e os democratas se deformam singularmente neste espelho do porvir A utopia não é um bom conceito porque mesmo quando se opõe à História referese a ela ainda e se inscreve nela como um ideal ou como uma motivação Mas o devir é o próprio conceito Nasce na História e nela recaí mas não pertence a ela Não tem em si mesmo nem início nem fim mas somente um meio Assim é mais geográfico que histórico Tais são as revoluções e as sociedades de amigos sociedades de resistência pois criar é resistir puros devires puros acontecimentos sobre um plano de imanência O que a História capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisas ou no vivido mas o acontecimento em seu devir em sua consistência própria em sua autoposição como conceito escapa à História Os tipos psicossociais são históricos mas os personagens conceituais são acontecimentos Ora envelhecemos segundo a História e com ela ora nos tornamos velhos num acontecimento muito discreto talvez o mesmo acontecimento que permite colocar o problema o que é a filosofia E é a mesma coisa para os que morrem jovens há muitas maneiras de morrer assim Pensar é experimentar mas a experimentação é sempre o que se está fazendo o novo o notável o interessante que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela O que se está fazendo não é o que acaba mas menos ainda o que começa A história não é experimentação ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história Sem história a experimentação permaneceria indeterminada incondicionada mas a experimentação não é histórica ela é filosófica 143 EXEMPLO IX É num grande livro de filosofia que Péguy explica que há duas maneiras de considerar o acontecimento uma que consiste em passar ao longo do acontecimento em recolher sua efetuação na história o condicionamento e o apodrecimento na história mas a outra em remontar ao acontecimento em instalarse nele como num devir em rejuvenescer e em envelhecer nele de uma só vez em passar por todos os seus componentes ou singularidades Pode ser que nada mude ou pareça mudar na história mas tudo muda no acontecimento e nós mudamos no acontecimento Não houve nada E um problema do qual não se via o fim um problema sem saída de repente não existe mais e perguntamos de que falávamos ele passou a outros problemas nada houve e estávamos num novo povo num novo mundo num novo homem19 Não é mais o histórico nem é o eterno diz Péguy é o Internai Eis um nome que Péguy precisou criar para designar um novo conceito e os componentes as intensidades deste conceito E não é algo de semelhante que um pensador distante de Péguy tinha designado pelo nome Intempestivo ou Inatual a névoa nãohistórica que nada tem a ver com o eterno o devir sem o qual nada se faria na história mas não se confunde com ela Por sob os gregos e os Estados ele lança um povo uma terra como a flecha e o disco de um novo mundo que não acaba sempre se fazendo agir contra o tempo e assim sobre o tempo em favor eu espero de um tempo por vir Agir contra o passado e assim sobre o presente em favor eu espero de um porvir mas o porvir não é um futuro da histó 19 Péguy Clio Gallimard p 266269 144 ria mesmo utópico é o infinito Agora o Nún que Platão já distinguia de todo presente o Intensivo ou o Intempestivo não um instante mas um devir Não é ainda o que Foucault chamava de Atual Mas como o conceito receberia agora o nome de atual enquanto Nietzsche o chamava de inatual É que para Foucault o que conta é a diferença do presente e do atual O novo o interessante é o atual O atual não é o que somos mas antes o que nos tornamos o que estamos nos tornando isto é o Outro nosso deviroutro O presente ao contrário é o que somos e por isso mesmo o que já deixamos de ser Devemos distinguir não somente a parte do passado e a do presente mas mais profundamente a do presente e a do atual20 Não que o atual seja a prefiguração mesmo utópica de um porvir de nossa história mas ele é o agora de nosso devir Quando Foucault admira Kant por ter colocado o problema da filosofia não remetendo ao eterno mas remetendo ao Agora ele quer dizer que a filosofia não tem como objeto contemplar o eterno nem refletir a história mas diagnosticar nossos devires atuais um devirrevolucionário que segundo p próprio Kant não se confunde com o passado o presente nem o porvir das revoluções Um devirdemocrático que não se confunde com o que são os Estados de direito ou mesmo um devirgrego que não se confunde com o que foram os gregos Diagnosticar os devires em cada presente que passa é o que Nietzsche atribuía ao filósofo como médico médico da civilização ou inventor de novos modos de existência imanentes A filosofia eterna mas também a história da filosofia cedem lugar a um devirfilosófíco Que devires nos atravessam hoje que recaem na história mas 20 Foucault Archéologie du savoir Gallimard p 172 145 que dela não provêm ou antes que só vêm dela para dela sair O Internai o Intempestivo o Atual eis exemplos de conceitos em filosofia conceitos exemplares E se um chama Atual o que o outro chamava de Inatual é somente em virtude de uma cifra do conceito em virtude de suas proximidades e componentes cujos ligeiros deslocamentos podem engendrar como dizia Péguy a modificação de um problema o TemporalmenteEterno em Péguy a Eternidade do devir segundo Nietzsche o ForaInterior com Foucault 146 II FILOSOFIA CIÊNCIA LÓGICA E ARTE Functivos e Conceitos A ciência não tem por objeto conceitos mas funções que se apresentam como proposições nos sistemas discursivos Os elementos das funções se chamam functivos Uma noção científica é determinada não por conceitos mas por funções ou proposições É uma idéia muito variada muito complexa como se pode ver já no uso que dela fazem respectivamente a matemática e a biologia porém é essa idéia de função que permite às ciências refletir e comunicar A ciência não tem nenhuma necessidade da filosofia para essas tarefas Em contrapartida quando um objeto é cientificamente construído por funções por exemplo um espaço geométrico resta buscar seu conceito filosófico que não é de maneira alguma dado na função Mais ainda um conceito pode tomar por componentes os functivos de toda função possível sem por isso ter o menor valor científico mas com a finalidade de marcar as diferenças de natureza entre conceitos e funções Sob estas condições a primeira diferença está na atitude respectiva da ciência e da filosofia com relação ao caos Definese o caos menos por sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça É um vazio que não é um nada mas um virtual contendo todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida sem consistência nem referência sem conseqüência1 E uma velocidade infinita de nascimento e de esvanescimento Ora a filosofia pergunta como guardar as velocidades infinitas ganhando ao mesmo tempo consistência dando uma consistência própria ao virtual O crivo filosófico como plano 1 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers Entre le temps et 1éternité EdFayard pp 162163 os autores tomam o exemplo da cristalização de um líquido superfundido líquido a uma temperatura inferior a sua temperatura de cristalização Num tal líquido formamse pequenos germes de cristais mas estes germes aparecem e depois se dissolvem sem gerar conseqüências 153 de imanência que recorta o caos seleciona movimentos infinitos do pensamento e se mobilia com conceitos formados como partículas consistentes que se movimentam tão rápido como o pensamento A ciência tem uma maneira inteiramente diferente de abordar o caos quase inversa ela renuncia ao infinito à velocidade infinita para ganhar uma referência capaz de atualizar o virtual Guardando o infinito a filosofia dá uma consistência ao virtual por conceitos renunciando ao infinito a ciência dá ao virtual uma referência que o atualiza por funções A filosofia procede por um plano de imanência ou de consistência a ciência por um plano de referência No caso da ciência é como uma parada da imagem É uma fantástica desaceleração e é por desaceleração que a matéria se atualiza como também o pensamento científico capaz de penetrála por proposições Uma função é uma Desacelerada Certamente a ciência não cessa de promover acelerações não somente nas catalises mas nos aceleradores de partículas nas expansões que distanciam as galáxias Estes fenômenos contudo não encontram na desaceleração primordial um instantezero com o qual rompem mas antes uma condição coextensiva a seu desenvolvimento integral Desacelerar é colocar um limite no caos sob o qual todas as velocidades passam de modo que formam uma variável determinada como abcissa ao mesmo tempo que o limite forma uma constante universal que não se pode ultrapassar por exemplo um máximo de contração Os primeiros functivos são pois o limite e a variável e a referência é uma relação entre valores da variável ou mais profundamente a relação da variável como abcissa das velocidades com o limite Acontece que a constantelimite aparece ela própria como uma relação no conjunto do universo ao qual todas as partes são submetidas sob uma condição finita quantidade No original ralentissement N dos T 154 de movimento de força de energia Ainda é preciso que sistemas de coordenadas existam aos quais remetem os termos da relação é pois um segundo sentido do limite um enquadramento externo ou uma exoreferência Pois os protolimites fora de todas as coordenadas geram de início abcissas de velocidades sobre as quais se erguerão os eixos coordenáveis Uma partícula terá uma posição uma energia uma massa um valor de spin mas sob a condição de receber uma existência ou uma atualidade física ou de aterrissar nas trajetórias que os sistemas de coordenadas poderão captar São esses limites primeiros que constituem a desaceleração no caos ou o limiar de suspensão do infinito que servem de endoreferência e operam uma contagem não são relações mas números e toda a teoria das funções depende de números Invocarseáa velocidade da luz o zero absoluto o quantum de ação o Big Bang o zero absoluto das temperaturas é de 27315 graus a velocidade da luz 299796 kms lá onde os comprimentos se contraem a zero e onde os relógios param Tais limites só valem pelo valor empírico que eles assumem apenas no sistema de coordenadas agem de início como a condição de desaceleração primordial que se estende com relação ao infinito sobre toda a escala das velocidades correspondentes sobre suas acelerações ou desacelerações condicionadas E não é somente a diversidade desses limites que autoriza duvidar da vocação unitária da ciência é cada um com efeito que gera por sua conta sistemas de coordenadas heterogêneas irredutíveis e impõe limiares de descontinuidade segundo a proximidade ou o distanciamento da variável por exemplo o distanciamento das galáxias A ciência não é impregnada por sua própria unidade mas pelo plano de referência constituído por todos os limites ou bordas sob as quais ela enfrenta o caos São estas bordas que dão ao plano suas referências quanto aos sistemas de coordenadas eles povoam ou mobiliam o próprio plano de referência 155 EXEMPLO X É difícil compreender como o limite corrói imediatamente o infinito o ilimitado E todavia não é a coisa limitada que impõe um limite ao infinito é o limite que torna possível uma coisa limitada Pitágoras Anaximandro Platão mesmo o pensaram um corpoacorpo do limite com o infinito de onde sairão as coisas Todo limite é ilusório e toda determinação é negação se a determinação não está numa relação imediata com o indeterminado A teoria da ciência e das funções depende disso Mais tarde é Cantor quem dá à teoria suas fórmulas matemáticas de um duplo ponto de vista intrínseco e extrínseco Segundo o primeiro um conjunto é dito infinito se apresenta uma correspondência termo a termo com uma de suas partes ou subconjuntos o conjunto e o subconjunto tendo a mesma potência ou o mesmo número de elementos designáveis por alef 0 assim ocorre com o conjunto dos números inteiros De acordo com a segunda determinação o conjunto dos subconjuntos de um conjunto dado é necessariamente maior que o conjunto de partida o conjunto dos alef 0 subconjuntos remete pois a um outro número transfinito alef 1 que possui a potência do contínuo ou corresponde ao conjunto dos números reais continuase em seguida com alef 2 etc Ora é estranho que se tenha tão freqüentemente visto nesta concepção uma reintrodução do infinito na matemática é antes a extrema conseqüência da definição do limite por um número este sendo o primeiro número inteiro que segue todos os números inteiros finitos dos quais nenhum é máximo O que a teoria dos conjuntos faz é inscrever o limite no infinito mesmo sem o que não haveria jamais limite em sua 156 severa hierarquização ela instaura uma desaceleração ou antes como diz o próprio Cantor uma parada um princípio de parada segundo o qual só se cria um novo número inteiro se a reunião de todos os números precedentes tem a potência de uma classe de números definida já dada em toda a sua extensão2 Sem este princípio de parada ou de desaceleração haveria um conjunto de todos os conjuntos que Cantor já recusa e que não poderia ser senão o caos como o mostra Russell A teoria dos conjuntos é a constituição de um plano de referência que não comporta somente uma endoreferência determinação intrínseca de um conjunto infinito mas já uma exoreferência determinação extrínseca Malgrado o esforço explícito de Cantor para reunir o conceito filosófico e a função científica a diferença característica subsiste já que um se desenvolve sobre um plano de imanência ou de consistência sem referência mas a outra sobre um plano de referência desprovido de consistência Gõdel Quando o limite gera pela desaceleração uma abcissa das velocidades as formas virtuais do caos tendem a se atualizar segundo uma ordenada E certamente o plano de referência opera já uma préseleção que emparelha as formas aos limites ou mesmo às regiões de abcissas consideradas Mas as formas não deixam de constituir variáveis independentes daquelas que se deslocam na abcissa É muito diferente do conceito filosófico as ordenadas intensivas não designam mais componentes inseparáveis aglomerados no conceito enquanto sobrevôo absoluto variações mas determinações distintas 2 Cantor Fondements dune théorie générale des ensembles Cahiers pour 1analyse n 10 Desde o começo do texto Cantor invoca o Limite platônico 157 que devem emparelharse numa formação discursiva com outras determinações tomadas em extensão variáveis As ordenadas intensivas de formas devem se coordenar às abcissas extensivas de velocidade de tal maneira que as velocidades de desenvolvimento e a atualização das formas se remetam umas às outras como determinações distintas extrínsecas3 É sob este segundo aspecto que o limite é agora a origem de um sistema de coordenadas composto de duas variáveis independentes ao menos mas estas entram numa relação da qual depende uma terceira variável a título de estado de coisas ou de matéria formada no sistema tais estados de coisas podem ser matemáticos físicos biológicos É bem o novo sentido da referência como forma da proposição a relação de um estado de coisas ao sistema O estado de coisas é uma função é uma variável complexa que depende de uma relação entre duas variáveis independentes ao menos A independência respectiva das variáveis aparece na matemática quando uma está numa potência mais elevada que a primeira É por isso que Hegel mostra que a variabilidade na função não se contenta com valores que se pode mudar 23 e 46 nem com que se os deixe indeterminados a2b mas exige que uma das variáveis esteja numa potência superior y2xP Pois é então que uma relação pode ser diretamente determinada como relação diferencial dydx sob a qual o valor das variáveis não tem mais outra determinação senão evanescerse ou nascer embora ele seja extraído das velocidades infinitas De uma tal relação depende um estado de coisas ou uma função derivada fezse uma ope 3 Sobre a instauração das coordenadas por Nicolau Oresmo as ordenadas intensivas e seu relacionamento com linhas extensivas cf Duhem Le système du monde Ed Hermann VII cap 6 E Gilles Châtelet La toile le spectre le pendule Les enjeux du mobile no prelo sobre a associação de um espectro contínuo e de uma seqüência discreta e os diagramas de Oresmo 158 ração de despotenciação que permite comparar potências distintas a partir das quais poderão mesmo desenvolverse uma coisa ou um corpo integração4 Em geral um estado de coisas não atualiza um virtual caótico sem lhe emprestar um potencial que se distribui no sistema de coordenadas Ele recolhe no virtual que atualiza um potencial de que se apropria O sistema mais fechado tem ainda um fio que sobe até o virtual e de onde desce a aranha Mas a questão de saber se o potencial pode ser recriado no atual se pode ser renovado e alargado permite distinguir mais estritamente os estados de coisas as coisas e os corpos Quando passamos do estado de coisas para a coisa mesma vemos que uma coisa se relaciona sempre ao mesmo tempo a muitos eixos segundo variáveis que são funções umas das outras mesmo se a unidade interna permanece indeterminada Mas quando a coisa passa ela mesma por mudanças de coordenadas ela se torna falando propriamente um corpo e a função não toma por referência o limite e a variável mas antes um invariante e um grupo de transformações o corpo euclidiano da geometria por exemplo será constituído por invariantes em relação ao grupo dos movimentos O corpo com efeito não é aqui uma especialidade biológica e encontra uma determinação matemática á partir de um mínimo absoluto representado pelos números racionais operando extensões independentes deste corpo de base que limitam cada vez mais as substituições possíveis até uma perfeita individuação A diferença entre o corpo e o estado das coisas ou da coisa diz respeito à individuação do corpo que procede por uma cascata de atualizações Com os corpos a relação entre variáveis independentes completa suficientemente sua razão 4 Hegel Science de Ia logique Ed Aubier II p 277 e sobre as operações de despotenciação e de potenciação da função segundo Lagrange 159 sob a condição de se prover de um potencial ou de uma potência que lhe renova a individuação Notadamente quando o corpo é um vivente que procede por diferenciação e não mais por extensão ou adjunção é ainda um novo tipo de variáveis que surge variáveis internas determinando funções propriamente biológicas em relação com meios interiores endoreferência mas também entrando em funções probabilísticas com as variáveis externas do meio exterior exoreferência5 Encontramonos pois ante uma nova seqüência de functivos sistemas de coordenadas potenciais estados de coisas coisas corpos Os estados de coisas são misturas ordenadas de tipos muito diversos que podem mesmo não concernir senão a trajetórias Mas as coisas são interações e os corpos comunicações Os estados de coisas remetem às coordenadas geométricas de sistemas supostos como fechados as coisas às coordenadas energéticas de sistemas acoplados os corpos às coordenadas informáticas de sistemas separados não ligados A história das ciências é inseparável da construção de eixos de sua natureza de suas dimensões de sua proliferação A ciência não opera nenhuma unificação do Referente mas todas as espécies de bifurcações sobre um plano de referência que não preexiste a seus desvios ou a seu traçado E como se a bifurcação fosse procurar no infinito caos do virtual novas formas por atualizar operando uma espécie de potenciação da matéria o carbono introduz na tabela de Mendeleiev uma bifurcação que faz dele por suas propriedades plásticas o estado de uma matéria orgânica O problema da unidade ou da multiplicidade da ciência não deve pois ser colocado em função de 5 Pierre Vendryès Déterntinisme et autonomie Ed Armand Colin O interesse dos trabalhos de Vendryès não reside numa matematizaçao da biologia mas antes numa homogeneização da função matemática e da função biológica 160 um sistema de coordenadas eventualmente único num momento dado como para o plano de imanência em filosofia é preciso perguntar qual estatuto tomam o antes e o depois simultaneamente sobre um plano de referência de dimensão e evolução temporais Há um só ou vários planos de referência A resposta só será a mesma para o plano de imanência filosófico suas camadas ou suas folhas superpostas É que a referência implicando uma renúncia ao infinito só pode montar cadeias de functivos que se quebram necessariamente em certo momento As bifurcações as desacelerações e acelerações produzem buracos cortes e rupturas que remetem a outras variáveis outras relações e outras referências Segundo exemplos sumários dizse que o número fracionário rompe com o número inteiro o número irracional com os racionais a geometria riemanniana com a euclidiana Mas noutro sentido simultâneo do depois ao antes o número inteiro aparece como um caso particular de número fracionário ou o racional um caso particular de corte num conjunto linear de pontos É verdade que este processo unificante que opera no sentido retroativo faz intervir necessariamente outras referências cujas variáveis são submetidas não somente a condições de restrição para dar o caso particular mas em si mesmas a novas rupturas e bifurcações que mudarão suas próprias referências É o que acontece quando se deriva Newton de Einstein ou então os números reais da ruptura ou a geometria euclidiana de uma geometria métrica abstrata O que é o mesmo que dizer com Kuhn que a ciência é paradigmática enquanto que a filosofia é sintagmática Como a filosofia a ciência não se satisfaz com uma sucessão temporal linear Mas em lugar de um tempo estratigráfico que exprime o antes e o depois numa ordem de superposições a ciência desdobra um tempo propriamente serial ramificado em que o antes o precedente designa sem 161 pre bifurcações e rupturas por vir e depois reencadeamentos retroativos de onde um ritmo inteiramente diferente do progresso científico E os nomes próprios dos cientistas se escrevem neste outro tempo este outro elemento marcando os pontos de ruptura e os pontos de reencadeamento Certamente é sempre possível e por vezes frutífero interpretar a história da filosofia segundo este ritmo científico Mas dizer que Kant rompe com Descartes e que o cogito cartesiano se torna um caso particular do cogito kantiano não é plenamente satisfatório já que precisamente é fazer da filosofia uma ciência Inversamente não seria mais satisfatório estabelecer entre Newton e Einstein uma ordem de superposição Longe de nos fazer repassar pelos mesmos componentes o nome próprio do cientista tem por função evitar que façamos isso e persuadirnos de que não se trata de percorrer novamente um trajeto já percorrido não passamos por uma equação nomeada servimonos dela Longe de distribuir pontos cardeais que organizam os sintagmas sobre um plano de imanência o nome próprio do cientista edifica paradigmas que se projetam nos sistemas de referências necessariamente orientados Finalmente o que é problemático é menos a relação da ciência com a filosofia do que a relação ainda mais passional da ciência com a religião como se vê em todas as tentativas de uniformização e de universalização científicas à procura de uma lei única de uma força única de uma única interação O que aproxima a ciência da religião é que os functivos não são conceitos mas figuras que se definem por uma tensão espiritual mais que por uma intuição espacial Há algo de figurai nos functivos que forma uma ideografia própria à ciência e que faz já da visão uma leitura Mas o que não cessa de reafirmar a oposição da ciência a toda religião e ao mesmo tempo de tornar felizmente impossível a unificação da ciência é a substituição de toda transcendência pela referência é a correspondência 162 funcional do paradigma com um sistema de referência que proíbe todo uso infinito religioso da figura determinando uma maneira exclusivamente científica pela qual esta deve ser construída vista e lida por functivos6 A primeira diferença entre a filosofia e a ciência reside no pressuposto respectivo do conceito e da função aqui um plano de imanência ou de consistência lá um plano de referência O plano de referência é ao mesmo tempo uno e múltiplo mas de uma maneira diferente da do plano de imanência A segunda diferença concerne mais diretamente ao conceito e à função a inseparabilidade das variações é o próprio do conceito incondicionado ao passo que a independência das variáveis em relações condicionáveis pertence à função Num caso temos um conjunto de variações inseparáveis sob uma razão contingente que constitui o conceito de variações no outro caso um conjunto de variáveis independentes sob uma razão necessária que constitui a função das variáveis É por isso que deste último ponto de vista a teoria das funções apresenta dois pólos no caso de n variáveis serem dadas uma talvez considerada como função de n1 variáveis independentes com n1 derivadas parciais e uma diferencial total da função ou no caso de n1 grandezas serem ao contrário funções de uma mesma variável independente sem diferencial total da função composta Da mesma forma o problema das tangentes diferenciação mobiliza tantas variáveis quantas curvas há e a derivada para cada uma é a tangente qualquer num ponto qualquer mas o problema inverso das tangentes integração não 6 Sobre o sentido que toma a palavra figura ou imagem Bild numa teoria das funções cf a análise de Vuillemin a propósito de Riemann na projeção de uma função complexa a figura dá a ver o curso da função e suas diferentes afecções faz ver imediatamente a correspondência funcional da variável e da função La philosophie de 1algèbre PUF pp 320326 163 considera mais que uma variável única que é a própria curva tangente a todas as curvas de mesma ordenada sob a condição de uma mudança de coordenadas7 Uma dualidade análoga concerne à descrição dinâmica de um sistema de n partículas independentes o estado instantâneo pode ser representado por n pontos e n vetores de velocidade num espaço de três dimensões mas também por um único ponto num espaço de fases Dirseia que a ciência e a filosofia seguem duas vias opostas porque os conceitos filosóficos têm por consistência acontecimentos ao passo que as funções científicas têm por referência estados de coisas ou misturas a filosofia não pára de extrair por conceitos do estado de coisas um acontecimento consistente de algum modo um sorriso sem gato ao passo que a ciência não cessa de atualizar por funções o acontecimento num estado de coisas uma coisa ou um corpo referíveis Deste ponto de vista os Pré Socráticos detinham já o essencial de uma determinação da ciência válida até nossos dias quando faziam da física uma teoria das misturas e de seus diferentes tipos8 E os Estóicos levarão ao mais alto ponto a distinção fundamental entre os estados de coisas ou misturas de corpos nas quais se atualiza o aconteci 7 Leibniz Dune ligne issue de lignes e Nouvelle application du calcul trad fr Oeuvre concernant le calcul infinitésimal Ed Blanchard Estes textos de Leibniz são considerados como bases da teoria das funções 8 Tendo descrito a mistura íntima das trajetórias de tipos diferentes em toda região do espaço de fases de um sistema de estabilidade fraca Prigogine e Stengers concluem Podese pensar numa situação familiar a dos números sobre o eixo em que cada racional está cercado de irracionais e cada irracional de racionais Podese igualmente pensar na maneira pela qual Anaxágoras mostra como toda coisa contém em todas as suas partes até as mais ínfimas uma multiplicidade infinita de germes qualitativamente diferentes intimamente misturados La nouvelle alliance Gallimard p 241 164 mento e os acontecimentos incorporais que se elevam como uma fumaça dos próprios estados de coisas É pois por duas características ligadas que o conceito filosófico e a função científica se distinguem variações inseparáveis variáveis independentes acontecimentos sobre um plano de imanência estados de coisas num sistema de referência disso decorre o estatuto das ordenadas intensivas diferentes nos dois casos já que são os componentes interiores do conceito mas são somente coordenadas às abcissas extensivas nas funções quando a variação não é mais que um estado de variável Os conceitos e as funções se apresentam assim como dois tipos de multiplicidades ou variedades que diferem em natureza E embora os tipos de multiplicidades científicos tenham por si mesmos uma grande diversidade eles deixam de fora as multiplicidades propriamente filosóficas para as quais Bergson exigia um estatuto particular definido pela duração multiplicidade de fusão que exprimia a inseparabilidade das variações por oposição às multiplicidades de espaço número e tempo que ordenavam misturas e remetiam à variável ou às variáveis independentes9 É verdade que esta oposição mesma entre as multiplicidades científicas e filosóficas discursivas e intuitivas extensionais e intensivas está apta a julgar também a correspondência entre a ciência e a filosofia sua eventual colaboração sua mútua inspiração Há enfim uma terceira grande diferença que não concerne mais ao pressuposto respectivo nem ao elemento como 9 A teoria das duas espécies de multiplicidades aparece em Bergson desde Les données itntnédiates cap II as multiplicidades de consciência se definem pela fusão a penetração termos que se encontra igualmente em Husserl desde a Filosofia da aritmética A semelhança entre os dois autores é extrema com relação a isto Bergson não cessará de definir o objeto da ciência por mistos de espaçotempo e seu ato principal pela tendência a tomar o tempo como variável independente ao passo que a duração no outro pólo passa por todas as variações 165 conceito ou como função mas ao modo de enundação Com certeza há tanta experimentação como experiência do pensamento em filosofia quanto na ciência e nos dois casos a experiência pode ser perturbadora estando próxima do caos Mas também há tanta criação em ciência quanto na filosofia ou nas artes Nenhuma criação existe sem experiência Quaisquer que sejam as diferenças entre a linguagem científica a linguagem filosófica e suas relações com as línguas ditas naturais os functivos entre eles os eixos de coordenadas não preexistem inteiramente prontos não mais que os conceitos Granger pôde mostrar que estilos que remetem a nomes próprios estavam presentes nos sistemas científicos não como determinação extrínseca mas pelo menos como dimensão de sua criação e mesmo em contato com uma experiência ou um vivido10 As coordenadas as funções e equações as leis os fenômenos ou efeitos permanecem ligados a nomes próprios como uma doença permanece designada pelo nome do médico que soube isolála agrupar ou reagrupar os signos variáveis Ver ver o que se passa teve sempre uma importância essencial maior que as demonstrações mesmo na matemática pura que pode ser dita visual figurai independentemente de suas aplicações muitos matemáticos pensam hoje que um computador é mais precioso que uma axiomática e o estudo das funções nãolineares passa por demoras e acelerações em séries de números observáveis Que a ciência seja discursiva não significa de maneira alguma que ela seja dedutiva Ao contrário em suas bifurcações ela passa por muitas catástrofes rupturas e reencadeamentos marcados por nomes próprios Se a ciência guarda com a filosofia uma diferença impossível de apagar é que os nomes próprios marcam num caso uma jus 10 GG Granger Essai dune philosophie du style Ed Odile Jacob pp 1011 102105 166 taposição de referência e no outro uma superposição de folhas elas se opõem por todas as características das referencias e da consistência Mas a filosofia e a ciência comportam dois lados como a arte ela mesma com seu terceiro lado um eu não sei tornado positivo e criador condição da criação mesma e que consiste em determinar pelo que não se sabe como dizia Gálois indicar a marcha dos cálculos e prever os resultados sem jamais poder efetuálos11 É que nós nos remetemos a um outro aspecto da enunciação que não se endereça mais ao nome próprio de um cientista ou de um filósofo mas a seus intercessores ideais interiores aos domínios considerados vimos precedentemente o papel filosófico dos personagens conceituais com relação aos conceitos fragmentários sobre um plano de imanência mas agora a ciência faz aparecer observadores parciais com relação às funções nos sistemas de referência Que não haja observador total como seria o demônio de Laplace capaz de calcular o porvir e o passado a partir de um estado de coisas dado significa somente que Deus não é nem um observador científico nem um personagem filosófico Mas o nome de demônio permanece excelente em filosofia como também na ciência para indicar não algo que ultrapassaria nossas possibilidades mas um gênero comum desses intercessores necessários como sujeitos de enunciação respectivos o amigo filosófico o pretendente o idiota o superhomem são demônios não menos que o demônio de Maxwell o observador de Einstein ou de Heisenberg A questão não é de saber o que eles podem fazer ou não mas a maneira pela qual são perfeitamente positivos do ponto de vista do conceito ou da função mesmo no que não sabem ou não podem Em cada um desses dois casos a va 11 Cf os grandes textos de Galois sobre a enunciação matemática André Dalmas Evariste Galois Ed Fasquelle pp 117132 167 riedade é imensa mas não a ponto de fazer esquecer a diferença de natureza entre os dois grandes tipos Para compreender o que são os observadores parciais que proliferam em todas as ciências e todos os sistemas de referência é preciso evitar darlhes o papel de um limite do conhecimento ou de uma subjetividade da enunciação Pôdese observar que as coordenadas cartesianas privilegiavam os pontos situados perto da origem ao passo que as da geometria projetiva davam uma imagem finita de todos os valores da variável e da função Mas a perspectiva liga um observador parcial como um olho ao vértice de um cone e assim capta contornos sem captar os relevos ou a qualidade da superfície que remetem a uma outra posição do observador Como regra geral o observador não é nem insuficiente nem subjetivo mesmo na física quântica o demônio de Heisenberg não exprime a impossibilidade de medir ao mesmo tempo a velocidade e a posição de uma partícula sob pretexto de uma interferência subjetiva da medida com o mensurado mas mede exatamente um estado de coisas objetivo que deixa fora do campo de sua atualização a posição respectiva de duas de suas partículas o número de variáveis independentes sendo reduzido e os valores das coordenadas tendo a mesma probabilidade As interpretações subjetivistas da termodinâmica da relatividade da física quântica testemunham as mesmas insuficiências O perspectivismo ou relativismo científico não é mais relativo a um sujeito ele não constitui uma relatividade do verdadeiro mas ao contrário uma verdade do relativo isto é das variáveis das quais ele ordena os casos segundo os valores que revela em seu sistema de coordenadas como a ordem das cônicas segundo as secções do cone cujo vértice é ocupado pelo olho E com certeza um observador bem definido revela tudo o que ele pode revelar tudo o que pode ser revelado no sistema correspondente Numa palavra o papel de um observador parcial é 168 de perceber e de experimentar embora essas percepções o afecções não sejam as de um homem no sentido correntemente admitido mas pertençam às coisas que ele estuda O homem não deixa de sentir o efeito dessas percepções e afecções que matemático não experimenta plenamente o efeito de uma secção de uma ablação de uma adjunção mas só recebe este efeito do observador ideal que ele mesmo instalou como um golem no sistema de referência Esses observadores parciais estão na vizinhança das singularidades de uma curva de um sistema físico de um organismo vivo e mesmo o animismo está menos longe da ciência biológica do que se diz quando multiplica as pequenas almas imanentes aos órgãos e às funções com a condição de lhes retirar qualquer papel ativo ou eficiente para fazer deles somente focos de percepção e de afecção moleculares os corpos são assim povoados de uma infinidade de pequenas mônadas Chamarseá sítio à região de um estado de coisas ou de um corpo apreendido por um observador parcial Os observadores parciais são forças mas a força não é o que age é como sabiam Leibniz e Nietzsche o que percebe e experimenta Há observadores em toda parte em que aparecem propriedades puramente funcionais de reconhecimento ou de seleção sem ação direta assim ocorre em toda a biologia molecular em imunologia ou com as enzimas alostéricas12 Já Maxwell supunha um demônio capaz de distinguir numa mistura moléculas rápidas e lentas de alta e de baixa energia É verdade que num sistema em estado de equilíbrio o demônio de Maxwell associado ao gás seria necessariamen 12 J Monod Le hasard et Ia necessite Ed du Seuil p 91 As interações alostéricas são indiretas devidas exclusivamente às propriedades diferenciais de reconhecimento estereoespecífico da proteína nos dois ou mais estados que lhe são acessíveis Um processo de reconhecimento molecular pode fazer intervir mecanismos limites sítios e observadores muito diferentes como no reconhecimento machofêmea nas plantas 169 te tomado por uma afecção de atordoamento ele pode todavia passar muito tempo num estado metaestável próximo de uma enzima A física das partículas precisa de inúmeros observadores infinitamente sutis Pode se conceber observadores cujo sítio é tanto menor quanto o estado de coisas atravessar mudanças de coordenadas Finalmente os observadores parciais ideais são as percepções ou afecções sensíveis dos próprios functivos Mesmo as figuras geométricas têm afecções e percepções paternas e sintomas dizia Proclus sem os quais os problemas mais simples permaneceriam ininteligíveis Os observadores parciais são sensibilia que duplicam os functivos Ao invés de opor conhecimento sensível e conhecimento científico é preciso revelar estes sensibilia que povoam os sistemas de coordenadas e que são próprios à ciência Russell não fazia outra coisa quando evocava essas qualidades despidas de toda subjetividade dados sensoriais distintos de toda sensação sítios estabelecidos nos estados de coisas perspectivas vazias pertencendo às coisas mesmas pedaços contraídos de espaçotempo que correspondem ao conjunto ou às partes de uma função Ele os compara a aparelhos e instrumentos interferômetro de Michaelson ou mais simplesmente placa fotográfica câmera espelho que captam o que ninguém está lá para ver e fazem flamejar estes sensibilia nãosentidos13 Mas longe destes sensibilia se definirem pelos instrumentos já que estes estão à espera de um observador real que poderá ver são os instrumentos que supõem o observador parcial ideal situado num bom ponto de vista nas coisas o observador nãosubjetivo é precisamente o sensível que qualifica por vezes por milhares um estado de coisas uma coisa ou um corpo cientificamente determinados 13 Russell Misticism and logic The relation of sensedata to physics Penguin Books 170 Por seu turno os personagens conceituais são os sensibilia filosóficos as percepções e afecções dos conceitos fragmentários eles mesmos por eles os conceitos não são somente pensados mas percebidos e sentidos Não podemos todavia contentarnos em dizer que eles se distinguem dos observadores científicos como os conceitos se distinguem dos functivos já que não trariam então nenhuma determinação suplementar os dois agentes de enunciação devem distinguirse não somente pelo percebido mas pelo modo de percepção nãonatural nos dois casos Não basta com Bergson assimilar o observador científico por exemplo o viajante cósmico da relatividade a um simples símbolo que marcaria estados de variáveis ao passo que o personagem filosófico teria o privilégio do vivido um ser que dura porque ele passaria pelas variações elas mesmas14 Um não é vivido como o outro não é simbólico Há nos dois casos percepção e afecção ideais mas muito diferentes Os personagens conceituais estão sempre e já no horizonte e operam sobre fundo de velocidade infinita as diferenças anergéticas entre o rápido e o lento vindo somente das superfícies que eles sobrevoam ou dos componentes pelos quais passam num só instante a percepção não transmite assim informação mas circunscreve um afeto simpático ou antipático Os observadores científicos ao contrário são pontos de vista nas coisas mesmas que supõem um escalonamento de horizontes e uma sucessão de enquadramentos sobre fundo de desacelerações e de acelerações os afetos aí se tornam relações energéticas e a própria percepção uma quantidade de informação Não podemos de modo algum desenvolver estas determinações porque o estatuto de perceptos e de afectos 14 Em toda a sua obra Bergson opõe o observador científico ao personagem filosófico que passa pela duração e sobretudo tenta mostrar que o primeiro supõe o segundo não somente na física newtoniana Don nées immédiates cap III mas na Relatividade Durée et simultanéité 171 puros ainda nos escapa remetendo à existência das artes Mas justamente que haja percepções e funções propriamente filosóficas e propriamente científicas numa palavra sensibilia de conceito e de função indica já o fundamento de uma relação entre a ciência e a filosofia de um lado a arte de outro de tal maneira que se pode dizer de uma função que ela é bela de um conceito que ele é belo Tanto as percepções quanto as afecções especiais da filosofia ou da ciência se ligarão necessariamente aos perceptos e afectos da arte Quanto à confrontação direta da ciência e da filosofia ela se faz sob três instâncias de oposição principais que agrupam as séries de functivos de um lado e as pertenças de conceitos de outro É primeiro o sistema de referência e o plano de imanência em seguida as variáveis independentes e as variações inseparáveis enfim os observadores parciais e os personagens conceituais São dois tipos de multiplicidade Uma função pode ser dada sem que o conceito seja ele mesmo dado embora possa e deva sêlo uma função do espaço pode ser dada sem que seja ainda dado o conceito deste espaço A função na ciência determina um estado de coisas uma coisa ou um corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas o conceito na filosofia exprime um acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de imanência e numa forma ordenada O campo de criação respectivo se encontra pois balizado por entidades muito diferentes nos dois casos mas que não deixam de apresentar uma certa analogia em suas tarefas um problema em ciência ou em filosofia não consiste em responder a uma questão mas em adaptar coadaptar com um gosto superior como faculdade problemática os elementos correspondentes em curso de determinação por exemplo para a ciência escolher boas variáveis independentes instalar o observador parcial eficaz sobre um tal percurso construir as melhores coordenadas 172 de uma equação ou de uma função Esta analogia impõe duas tarefas ainda Como conceber as passagens práticas entre as duas espécies de problemas Mas sobretudo teoricamente as instâncias de oposição impedem qualquer uniformização e mesmo qualquer redução de conceitos aos functivos ou o inverso E se toda redução é impossível como pensar um conjunto de relações positivas entre as duas 173 Prospectos e Conceitos A lógica é reducionista não por acidente mas por essência e necessariamente ela quer fazer do conceito uma função segundo a via traçada por Frege e Russell Mas para tanto é necessário de início que a função não se defina somente numa proposição matemática ou científica mas caracterize uma ordem mais geral de proposição como o exprimido das frases de uma língua natural E preciso pois inventar um novo tipo de função propriamente lógica A função proposicional x é humano marca bem a posição de uma variável independente que não pertence à função como tal mas sem a qual a função está incompleta A função completa é feita de um ou vários pares ordenados É uma relação de dependência ou de correspondência razão necessária que define a função tal que ser humano não é mesmo a função mas o valor de fa para uma variável x Pouco importa que a maior parte das proposições tenha várias variáveis independentes e mesmo que a noção de variável enquanto ligada a um número indeterminado seja substituída pela do argumento que implica numa suposição disjuntiva nos limites ou um intervalo A referência à variável ou ao argumento independente da função proposicional define a referência da proposição ou o valordeverdade verdadeiro e falso da função para o argumento João é um homem mas Bill é um gato O conjunto dos valores de verdade de uma função que determinam proposições afirmativas verdadeiras constitui a extensão de um conceito os objetos do conceito ocupam o lugar das variáveis ou argumentos da função proposicional para as quais a proposição é verdadeira ou sua referência preenchida O conceito ele mesmo é assim função para o conjunto dos objetos que constituem sua extensão Todo conceito completo é um conjunto neste sentido e tem um número determinado os objetos do conceito são os elementos do conjunto1 1 Cf Russell Príncipes de Ia mathématique PUF sobretudo apêndice A e Frege Les fondements de 1arithmétique Ed du Seuil 48 e 177 É preciso ainda fixar condições da referência que dêem os limites ou intervalos nos quais uma variável entra numa proposição verdadeira X é um homem João é um homem porque ele fez isto porque ele se apresenta assim Tais condições de referências constituem não a compreensão mas a intensão do conceito São apresentações ou descrições lógicas intervalos potenciais ou mundos possíveis como dizem os lógicos eixos de coordenadas estados de coisas ou situações subconjuntos do conceito a estrela da tarde e a estrela da manhã Por exemplo um conceito de um só elemento o conceito de Napoleão I tem por intensão o vencedor de Iena o vencido de Waterloo Vêse bem que nenhuma diferença de natureza separa aqui a intensão da extensão já que ambas dizem respeito à referência a intensão sendo somente condição de referência e constituindo uma endoreferência da proposição a extensão constituindo a exoreferência Não se sai da referência elevandose até sua condição permanecese na extensionalidade A questão é antes a de saber como se chega através destas apresentações intencionais a uma determinação unívoca dos objetos ou elementos do conceito variáveis proposicionais argumentos da função do ponto de vista da exo referência ou da representação é o problema do nome próprio e a tarefa de uma identificação ou individuação lógica que nos faz passar dos estados de coisas à coisa ou ao corpo objeto por operações de quantificação que permitem tanto atribuir os predicados essenciais da coisa como o que constitui enfim a compreensão do conceito Vênus a estrela da tarde e a estrela da manhã é um planeta cujo tempo de revolução é inferior ao da terra Vencedor de Iena é uma descrição ou apresenta 54 Ecrits logiques et philosopbiques sobretudo Fonction et concept Concept et objet e para a crítica da variável Questce quune fonction Cf os comentários de Claude Imbert nestes dois livros e Philippe de Rouilhan Frege les paradoxes de Ia représentation Ed de Minuit 178 ção ao passo que general é um predicado de Bonaparte imperador um predicado de Napoleão embora ser nomeado general ou sagrado imperador sejam descrições O conceito proposicional evolui pois inteiramente no círculo da referência na medida em que opera uma logicização dos functivos que se tornam assim os prospectos de uma proposição passagem da proposição científica à proposição lógica As frases não têm autoreferência como o mostra o paradoxo do eu minto Mesmo os performativos não são autoreferenciais mas implicam numa exoreferência da proposição a ação que lhe está ligada por convenção e que realizamos enunciando a proposição e uma endoreferência o título ou o estado de coisas sob o qual se é habilitado a formular o enunciado por exemplo a intensão do conceito no enunciado eu juro é testemunho no tribunal criança à qual se censura algo enamorado que se declara etc2 Em contrapartida se emprestamos à frase uma autoconsistência esta só pode residir na nãocontradição formal da proposição ou das proposições entre si Mas quer dizer que as proposições não gozam materialmente de qualquer endoconsistência nem de exoconsistência Na medida em que um número cardinal pertence ao conceito proposicional a lógica das proposições precisa de uma demostração científica da consistência da aritmética dos números inteiros a partir de axiomas ora segundo os dois aspectos do teorema de Gõdel a demonstração de consistência da aritmética não pode ser representada no interior do sistema não há endo consistência e o sistema se choca necessariamente com enunciados verdadeiros que não são todavia demonstráveis que permanecem indecidíveis não há exoconsistência ou o sistema consis 2 Oswald Ducrot criticou o caráter autoreferencial que se empresta aos enunciados performativos o que se faz dizendo eu juro eu prometo eu ordeno Dire et ne pas dire Ed Hermann p 72 e ss 179 tente não pode ser completo Em resumo tornandose proposicional o conceito perde todos os caráteres que possuía como conceito filosófico sua autoreferência sua endoconsistência e sua exoconsistência É que um regime de independência substituiu o da inseparabilidade independência das variáveis dos axiomas e das proposições indecidíveis Mesmo os mundos possíveis como condições de referência são cortados do conceito de Outrem que lhes daria consistência de modo que a lógica se acha estranhamente desarmada diante do solipsismo O conceito em geral não tem mais uma cifra mas um número aritmético o indecidível não marca mais a inseparabilidade dos componentes intencionais zona de indiscernibilidade mas ao contrário a necessidade de distinguilos segundo a exigência da referência que torna toda consistência a autoconsistência incerta O próprio número marca um princípio geral de separação o conceito letra da palavra Zabl separa Z de a a de h etc As funções tiram toda sua potência da referência seja a estados de coisas seja a coisas seja a outras proposições é fatal que a redução do conceito à função o prive de todos seus caráteres próprios que remetem a uma outra dimensão Os atos de referência são movimentos finitos do pensamento pelos quais a ciência constitui ou modifica estados de coisas e de corpos Podese dizer também que o homem histórico opera tais modificações mas em condições que são as do vivido em que os functivos são substituídos por percepções afecções e ações Não ocorre o mesmo com a lógica como ela considera a referência vazia nela mesma como simples valor de verdade só pode aplicála a estados de coisas ou a corpos já constituídos seja nas proposições adquiridas da ciência seja nas proposições de fato Napoleão é o vencido de Waterloo seja em simples opiniões X acredita que Todos esses tipos de proposições são prospectos com valor de informação A lógica tem pois um paradigma 180 ela é mesmo o terceiro caso de paradigma que não é mais o da religião nem da ciência e que é como que a recognição do verdadeiro nos prospectos ou nas proposições informativas A expressão técnica metamatemática mostra bem a passagem do enunciado científico à proposição lógica sob uma forma de recognição É a projeção deste paradigma que faz que os conceitos lógicos não sejam por sua vez senão figuras e que a lógica seja uma ideografia A lógica das proposições precisa de um método de projeção e o próprio teorema de Gõdel inventa um modelo projetivo3 É como uma deformação regrada oblíqua da referência com relação a seu estatuto científico A lógica tem o ar de se debater eternamente na questão complexa de sua diferença com a psicologia todavia élhe concedido facilmente que ela erige em modelo uma imagem de direito do pensamento que não é de maneira alguma psicológica sem por isso ser normativa A questão reside antes no valor desta imagem de direito e no que ela pretende nos ensinar sobre os mecanismos de um pensamento puro De todos os movimentos mesmo finitos do pensamento a forma da recognição é certamente a que vai o menos longe a mais pobre e a mais infantil Em todos os tempos a filosofia correu este perigo que consiste em medir o pensamento com ocorrências tão desinteressantes quanto dizer bom dia Teodoro quando é Teeteto que passa a imagem clássica do pensamento não está ao abrigo destas aventuras que se devem à recognição do verdadeiro Terseá dificuldade em acreditar que os problemas do pensamento tanto em ciência como em filosofia tenham a ver com tais casos um problema enquanto criação de pensamento nada tem a ver com uma interrogação que não é senão uma proposi 3 Sobre a projeção e o método de Gõdel Nagel e Newman Le théoreme de Gòdel Ed du Seuil p 6169 181 ção suspensa o pálido duplo de uma afirmativa que se supõe servirlhe de resposta qual é o autor de Waverley Scott é o autor de Waverley A lógica é sempre vencida por si mesma isto é pela insignificância dos casos de que se alimenta Em seu desejo de suplantar a filosofia a lógica desliga a proposição de todas suas dimensões psicológicas mas não deixa de conservar o conjunto dos postulados que limitava e submetia o pensamento às coerções de uma recognição do verdadeiro na proposição4 E quando a lógica se aventura num cálculo de problemas é decalcando o cálculo de proposições em isomorfismo com ele Dirseia menos um jogo de xadrez ou de linguagem que um jogo de questões para programas de televisão Mas os problemas não são jamais proposicionais Ao invés de um encadeamento de proposições valeria mais a pena revelar o fluxo do monólogo interior ou as estranhas bifurcações da conversação mais ordinária desligandoas também elas de suas aderências psicológicas e sociológicas para poder mostrar como o pensamento como tal produz algo de interessante quando acede ao movimento infinito que o libera do verdadeiro como paradigma suposto e reconquista um poder imanente de criação Mas para isto seria necessário que o pensamento fosse até o interior dos estados de coisas ou dos corpos científicos em vias de constituição a fim de penetrar na consistência isto é na esfera do virtual que nada faz senão atualizarse neles Seria preciso subir de novo o caminho que a ciência desce e em baixo do qual a lógica instala seus campos O mesmo vale para a História em que é preciso atingir a névoa nãohistó 4 Sobre a concepção da proposição interrogativa por Frege Recherches logiques Ecrits logiques et philosophiques p 175 O mesmo vale para os três elementos a captação do pensamento ou o ato de pensar a recognição da verdade de um pensamento ou o juízo a manifestação do juízo ou a afirmação E Russell Príncipes de Ia mathématique 477 182 rica que ultrapassa os fatores atuais em proveito de uma criação de novidade Mas esta esfera do virtual este PensamentoNatureza é o que a lógica só é capaz de mostrar segundo uma frase famosa sem poder jamais apreendêlo em suas proposições nem remetêlo a uma referência Então a lógica se cala e ela só é interessante quando se cala Paradigma por paradigma ela se identifica então com uma espécie de budismo zen Confundindo os conceitos com funções a lógica faz como se a ciência se ocupasse já com conceitos ou formasse conceitos de primeira zona Mas ela própria deve dobrar as funções científicas com funções lógicas que se supõe formam uma nova classe de conceitos puramente lógicos ou de segunda zona É um verdadeiro ódio que anima a lógica na sua rivalidade ou sua vontade de suplantar a filosofia Ela mata o conceito duas vezes Todavia o conceito renasce porque não é uma função científica e porque não é uma proposição lógica ele não pertence a nenhum sistema discursivo não tem referência O conceito se mostra e nada mais faz que se mostrar Os conceitos são monstros que renascem de seus pedaços A própria lógica deixa por vezes renascer os conceitos filosóficos mas sob que forma e em que estado Como os conceitos em geral encontraram um estatuto pseudorigoroso nas funções científicas e lógicas a filosofia herda conceitos de terceira zona que escapam ao número e não constituem mais conjuntos bem definidos bem recortados relacionáveis a misturas determináveis como estados de coisas físicomatemáticos São antes conjuntos vagos ou confusos simples agregados de percepções e de afecções que se formam no vivido como imanente a um sujeito a uma consciência São multiplicidades qualitativas ou intensivas tal como o vermelho o calvo em que não se pode decidir se certos elementos pertencem ou não ao conjunto Esses 183 conjuntos vividos exprimemse numa terceira espécie de prospectos não mais de enunciados científicos ou de proposições lógicas mas de puras e simples opiniões do sujeito avaliações subjetivas ou juízos de gosto já é vermelho está quase calvo Entretanto mesmo para um inimigo da filosofia não é nesses juízos empíricos que se encontra imediatamente o refúgio dos conceitos filosóficos É preciso descobrir funções de que esses conjuntos confusos esses conteúdos vividos são somente variáveis E neste ponto encontramo nos ante uma alternativa ou se chegará a reconstituir para estas variáveis funções científicas ou lógicas que tornarão definitivamente inútil o apelo a conceitos filosóficos5 ou então deveremos inventar um novo tipo de função propriamente filosófica terceira zona em que tudo parece inverterse bizarramente já que ela será encarregada de suportar as duas outras Se o mundo do vivido é como a terra que deve fundar ou suportar a ciência e a lógica dos estados de coisas é claro que conceitos aparentemente filosóficos são requeridos para operar essa fundação primeira O conceito filosófico requer então uma pertença a um sujeito e não mais uma pertença a um conjunto Não que o conceito filosófico se confunda com o simples vivido mesmo definido como uma multiplicidade de fusão ou como imanência de um fluxo ao sujeito o vivido só fornece variáveis ao passo que os 5 Por exemplo introduzse graus de verdade entre o verdadeiro e o falso 1 e 0 que não são probabilidades mas operam uma espécie de fractalização das cristas de verdade e dos baixios de falsidade de modo que os conjuntos confusos tornemse novamente numéricos mas sob um número fracionário entre 0 e 1 A condição todavia é que o conjunto confuso seja o subconjunto de um conjunto normal remetendo a uma função regular Cf Arnold Kaufmann Introduction à Ia théorie des sousensembles flous Ed Masson E Pascal Engel La norme du vrai Gallimard que consagra um capítulo ao vago 184 conceitos devem ainda definir verdadeiras funções Essas funções terão somente referência ao vivido como as funções científicas aos estados de coisas Os conceitos filosóficos serão funções do vivido como os conceitos científicos são funções de estados de coisas mas agora a ordem ou a derivação mudam de sentido já que essas funções do vivido se tornam primeiras É uma lógica transcendental podese chamála também de dialética que esposa a terra e tudo o que ela carrega e que serve de solo primordial para a lógica formal e para as ciências regionais derivadas Será preciso que no seio mesmo da imanência do vivido a um sujeito se descubram atos de transcendência do sujeito capazes de constituir as novas funções de variáveis ou as referências conceituais o sujeito neste sentido não é mais solipsista e empírico mas transcendental Vimos que Kant tinha começado a realizar essa tarefa mostrando como os conceitos filosóficos remetiam necessariamente à experiência vivida por proposições ou juízo a priori como funções de um todo da experiência possível Mas é Husserl que vai até o fim descobrindo nas multiplicidades não numéricas ou nos conjuntos fusionais imanentes perceptivoafetivos a tríplice raiz dos atos de transcendência pensamento pelos quais o sujeito constitui de início um mundo sensível povoado de objetos depois um mundo intersubjetivo povoado de outrem enfim um mundo ideal comum que as formações científicas matemáticas e lógicas povoarão Os numerosos conceitos fenomenológicos ou filosóficos tais como o ser no mundo a carne a idealidade etc serão a expressão desses atos Não são somente vividos imanentes ao sujeito solipsista mas as referências do sujeito transcendental ao vivido não são variáveis perceptivoafetivas mas as grandes funções que encontram nestas variáveis seu percurso respectivo de verdade Não são conjuntos vagos ou confusos subconjuntos mas totalizações que excedem toda po 185 tência dos conjuntos Não são somente juízos ou opiniões empíricas mas protocrenças Urdoxa opiniões originárias como proposições6 Não são os conteúdos sucessivos do fluxo de imanência mas os atos de transcendência que o atravessam e o carregam determinando as significações da totalidade potencial do vivido O conceito como significação é tudo isso ao mesmo tempo imanência do vivido ao sujeito ato de transcendência do sujeito com relação às variações do vivido totalização do vivido ou função destes atos Dirseia que os conceitos filosóficos só se salvam ao aceitar tornaremse funções especiais e desnaturalizando a imanência de que ainda carecem como a imanência não é mais que a do vivido ela é forçosamente imanência a um sujeito cujos atos funções serão os conceitos relativos a este vivido como vimos seguindo a longa desnaturação do plano de imanência Embora seja perigoso para a filosofia depender da generosidade dos lógicos ou de seus remorsos podemos perguntar se não podemos encontrar um equilíbrio precário entre os conceitos científicológicos e os conceitos fenomenológicofilosóficos GillesGaston Granger pôde propor uma repartição em que o conceito sendo de início determinado como função científica e lógica deixa todavia um lugar de terceira zona mas autônomo a funções filosóficas funções ou significações do vivido como totalidade virtual os conjuntos confusos parecem desempenhar um papel de eixo articulador entre as duas formas de conceitos7 A ciência ar 6 Sobre as três transcendências que aparecem no campo de imanência a primordial a intersubjetiva e a objetiva cf Husserl Méditations cartésiennes Ed Vrin notadamente 5556 Sobre a Urdoxa Idées directrices pour une phénoménologie Gallimard notadamente 103104 Expérience et jugement PUF 7 GG Granger Pour Ia connaissance philosophique cap VI e VII O conhecimento do conceito filosófico reduzse à referência ao vivido na medida em que esta o constitui como totalidade virtual o que implica um sujeito transcendental e Granger não parece dar ao virtual outro sentido senão o sentido kantiano de um todo da experiência possível p 174175 Observarseá o papel hipotético que Granger atribui aos conceitos confusos na passagem dos conceitos científicos aos conceitos filosóficos 186 rogou o conceito a si mesma mas há também conceitos nãocientíficos que suportamos em doses homeopáticas isto é fenomenológicas Donde os mais estranhos híbridos que se vê nascer hoje do frege husserlianismo ou mesmo de wittgensteinheideggerianismo Não era já há muito tempo a situação da filosofia na América com um grande departamento de lógica e um minúsculo de fenomenologia embora os dois partidos estivessem quase sempre em guerra É como patê de cotovia mas a parte da cotovia fenomenológica nem sequer é a mais refinada é a que o cavalo lógico concede às vezes à filosofia É antes como o rinoceronte e o pássaro que vive de seus parasitas É uma longa série de malentendidos sobre o conceito É verdade que o conceito é confuso vago mas não porque não tem contorno é porque ele é vagabundo nãodiscursivo em deslocamento sobre um plano de imanência É intencional ou modular não porque tem condições de referência mas porque é composto de variações inseparáveis que passam por zonas de indiscernibilidade e lhe mudam o contorno Não há de maneira nenhuma referência nem ao vivido nem aos estados de coisas mas uma consistência definida por seus componentes internos nem denotação de estado de coisas nem significação do vivido o conceito é o acontecimento como puro sentido que percorre imediatamente os componentes Não há número inteiro nem fracionário para contar as coisas que apresentam suas propriedades mas uma cifra que as condensa lhes acumula os componentes percorridos e sobrevoados O conceito é uma forma ou uma for 187 ça jamais uma função em qualquer sentido possível Em resumo não há conceito senão filosófico sobre o plano de imanência e as funções científicas ou as proposições lógicas não são conceitos Prospectos designam de início os elementos da proposição função proposicional variáveis valor de verdade mas também os diversos tipos de proposições ou modalidades do juízo Se o conceito filosófico é confundido com uma função ou uma proposição não será sob uma espécie científica ou mesmo lógica mas por analogia como uma função do vivido ou uma proposição de opinião terceiro tipo Assim devese produzir um conceito que dê conta desta situação o que a opinião propõe é uma certa relação entre uma percepção exterior como estado de um sujeito e uma afecção interior como passagem de um estado a um outro exo e endoreferência Nós destacamos uma qualidade suposta comum a vários objetos que percebemos e uma afecção suposta comum a vários sujeitos que a experimentam e apreendem conosco esta qualidade A opinião é á regra de correspondência de uma a outra é uma função ou uma proposição cujos argumentos são percepções e afecções e nesse sentido função do vivido Por exemplo apreendemos uma qualidade perceptiva comum aos gatos ou aos cães e um certo sentimento que nos faz amar ou odiar uns ou outros para um grupo de objetos podese extrair muitas qualidades diversas e formar muitos grupos de sujeitos muito diferentes atrativos ou repulsivos sociedade dos que amam os gatos ou dos que os detestam de modo que as opiniões são essencialmente o objeto de uma luta ou de uma troca É a concepção popular democrática ocidental da filosofia onde esta se propõe a oferecer agradáveis ou agressivas conversações de jantar com M Rorthy Opiniões rivalizam na mesa do banquete não é a Atenas eterna nossa maneira de ser ainda gregos As três características que remetiam a filosofia à 188 cidade grega eram precisamente a sociedade de amigos a mesa da imanência e as opiniões que se enfrentavam Objetarseá que os filósofos gregos não cessaram de denunciar a doxa e de lhe opor uma episteme como único saber adequado à filosofia Mas é um negócio complicado e os filósofos sendo amigos e não sábios têm bastante dificuldade em abandonar a doxa A doxa é um tipo de proposição que se apresenta da seguinte maneira sendo dada uma situação vivida perceptivaafetiva por exemplo trazse queijo à mesa do banquete alguém extrai dele uma qualidade pura por exemplo mau cheiro mas ao mesmo tempo que abstrai a qualidade ele mesmo se identifica com um sujeito genérico experimentando uma afecção comum a sociedade daqueles que detestam o queijo rivalizando assim com aqueles que o adoram o mais das vezes em função de uma outra qualidade A discussão versa pois sobre a escolha da qualidade perceptiva abstrata e sobre a potência do sujeito genérico afetado Por exemplo detestar o queijo é privarse de ser um bon vivantí Mas bon vivant é uma afecção genericamente invejável Não é necessário dizer que os que adoram o queijo e todos os bons vivants eles mesmos cheiram mal A menos que sejam os inimigos do queijo que cheiram mal É como a história que contava Hegel a vendedora a quem se disse Seus ovos estão podres velha e que responde Podre é você sua mãe sua avó a opinião é um pensamento abstrato e a injúria desempenha um papel eficaz nesta abstração porque a opinião exprime funções gerais de estados particulares8 A opinião retira da percepção uma qualidade abstrata e da afecção uma potência geral toda opinião já é política neste sentido É por isso que tantas discus 8 Sobre o pensamento abstrato e o juízo popular cf o texto curto de Hegel Quem pensa abstrato Sámtliche Werke XX p 445450 189 soes podem se enunciar assim eu enquanto homem considero que todas as mulheres são infiéis eu enquanto mulher penso que todos os homens são mentirosos A opinião é um pensamento que se molda estreitamente sobre a forma da recognição recognição de uma qualidade na percepção contemplação recognição de um grupo na afecção reflexão recognição de um rival na possibilidade de outros grupos e outras qualidades comunicação Ela dá à recognição do verdadeiro uma extensão e critérios que são por natureza os de uma ortodoxia será verdadeira uma opinião que coincida com a do grupo ao qual se pertencerá ao enunciála Vêse bem isso em certos concursos você deve dizer sua opinião mas você ganha você disse a verdade se você disse a mesma coisa que a maioria dos que participam desse concurso A opinião em sua essência é vontade de maioria e já fala em nome de uma maioria Mesmo o homem do paradoxo só se exprime com tantas piscadelas e tanta bobagem segura de si porque pretende exprimir a opinião secreta de todo mundo e ser o portavoz do que os outros não ousam dizer Mas este é apenas o primeiro passo no reino da opinião esta triunfa quando a qualidade retida deixa de ser a condição da constituição de um grupo quando não é mais do que a imagem ou a marca do grupo constituído que determina ele mesmo o modelo perceptivo e afetivo a qualidade e a afecção que cada um deve adquirir Então o marketing aparece como o próprio conceito nós os conceituadores Estamos na idade da comunicação mas qualquer alma bem nascida foge e se esquiva cada vez que lhe é proposta uma pequena discussão um colóquio uma simples conversa Em toda conversa é sempre do destino da filosofia que se trata e muitas discussões filosóficas enquanto tais não vão mais longe do que aquela sobre o queijo com suas injúrias e confrontos de concepções do mundo A filosofia da comunicação se 190 esgota na procura de uma opinião universal liberal como consenso sob o qual encontramos as percepções e afecções cínicas do capitalista em pessoa EXEMPLO XI Em que esta situação concerne aos gregos Dizse freqüentemente que desde Platão os gregos opõem a filosofia como um saber que compreende ainda as ciências e a opiniãodoxa que remetem aos sofistas e retores Mas descobrimos que não era uma oposição simples tão clara Como os filósofos possuiriam o saber eles que não podem nem querem restaurar o saber dos sábios e são apenas amigos E como a opinião seria inteiramente o negócio dos sofistas já que ela recebe um valordeverdade9 Mais ainda parece que os gregos se faziam da ciência uma idéia bastante clara que não se confundia com a filosofia era um conhecimento da causa da definição uma espécie de função já Então todo o problema era como podese chegar às definições a estas premissas do silogismo científico ou lógico Era graças à dialética uma pesquisa que tendia sobre um termo dado a determinar entre as opiniões aquelas que eram mais verossímeis pela qualidade que extraíam as mais sábias pelos sujeitos que as proferiam Mesmo em Aristóteles a dialética das opiniões era necessária para determinar as proposições científicas possíveis e em Platão a opinião verdadeira era o requisito do saber e 9 Mareei Detienne mostra que os filósofos se arrogam a um saber que não se confunde com a velha sabedoria e a uma opinião que não se confunde com a dos sofistas Les maitres de vérité dans Ia Grèce archdique Ed Maspero cap VI p 131 e segs 191 das ciências Já Parmênides não colocava o saber e a opinião como duas vias disjuntivas10 Democratas ou não os gregos opunham menos o saber e a opinião do que se debatiam entre as opiniões e se opunham uns aos outros rivalizavam uns com os outros no elemento da opinião pura O que os filósofos criticavam nos sofistas não era o fato de se ater à doxa mas de escolher mal a qualidade a extrair das percepções e o sujeito genérico a depurar das afecções de modo que os sofistas não podiam atingir o que havia de verdadeiro numa opinião permaneciam prisioneiros das variações do vivido Os filósofos criticavam os sofistas por se aterem a não importa que qualidade sensível com relação a um homem individual ou com relação ao gênero humano ou com relação ao nomos da cidade três interpretações do Homem como potência ou medida de todas as coisas Mas eles os filósofos platônicos tinham uma extraordinária resposta que lhes permitia pensavam eles selecionar opiniões Era preciso escolher a qualidade que era como o desdobramento do Belo em tal situação vivida e tomar por sujeito genérico o Homem inspirado pelo Bem Era preciso que as coisas se desdobrassem no belo e que seus utilizadores se inspirassem no bem para que a opinião atingisse o Verdadeiro Não era fácil em cada caso É o belo na Natureza e o bem nos espíritos que definiria a filosofia como função da vida variável Assim a filosofia grega é o momento do belo o belo e o bem são as funções das quais opinião é o valor de verdade Era preciso levar a percepção até a beleza do percebido dokounta e a afecção até a prova do bem dokimôs para atingir a opinião verdadeira esta não se 10 Cf a análise célebre de Heidegger e de Beaufret Le poètne de Parménide PUF p 3134 192 ria mais a opinião mutável e arbitrária mas uma opinião originária uma protoopinião que nos recolocaria na pátria esquecida do conceito como na grande trilogia platônica o amor do Banquete o delírio do Fedro a morte do Fédon Pelo contrário lá onde o sensível se apresenta sem beleza reduzido à ilusão e o espírito sem o bem deixado ao simples prazer a opinião permanece sofistica e falsa o queijo talvez a lama o pelo Todavia esta pesquisa apaixonada da opinião verdadeira não conduz os Platônicos a uma aporia a mesma que se exprime no mais surpreendente diálogo o Teeteto É preciso que o saber seja transcendente que ele se acrescente à opinião e se distinga dela para tornála verdadeira mas é preciso que ele seja imanente para que ela seja verdadeira como opinião A filosofia grega permanece ainda atada a esta velha Sabedoria inteiramente disposta a redesdobrar novamente sua transcendência embora não tenha mais senão sua amizade a afecção É preciso a imanência é também preciso que ela seja imanente a algo de transcendente a idealidade O belo e o bem não cessam de nos reconduzir à transcendência É como se a opinião verdadeira exigisse ainda um saber que ela todavia destituiu A fenomenologia não recomeça uma tentativa análoga Pois ela também parte à procura das opiniões originárias que nos ligam ao mundo como a nossa pátria Terra E ela precisa do belo e do bem para que elas não se confundam com a opinião empírica variável e que a percepção e a afecção atinjam seu valor de verdade tratase desta vez do belo na arte e da constituição da humanidade na história A fenomenologia precisa da arte como a lógica da ciência Erwin Strauss MerleauPonty ou Maldiney precisam de Cézanne ou da pintura chinesa O vivido não faz do conceito outra 193 coisa senão uma opinião empírica como tipo psicossociológico É preciso pois que a imanência do vivido a um sujeito transcendental faça da opinião uma protoopinião na constituição da qual entram a arte e a cultura e que se exprime como um ato de transcendência deste sujeito no vivido comunicação de modo a formar uma comunidade de amigos Mas o sujeito transcendental husserliano não esconde o homem europeu cujo privilégio é de europeizar sem cessar como o grego grecizava isto é de ultrapassar os limites das outras culturas mantidas como tipos psicossociais Não somos então reconduzidos à simples opinião do Capitalista médio o grande Maior o Ulisses moderno cujas percepções são clichês e cujas afecções são marcas num mundo de comunicação tornado marketing do qual mesmo Cézanne ou Van Gogh não podiam escapar A distinção do originário e do derivado não basta por si mesma para nos fazer sair do simples domínio da opinião e a Urdoxa não nos eleva até o conceito Como na aporia platônica a fenomenologia não teve jamais tanta necessidade de uma sabedoria superior de uma ciência rigorosa quanto no momento em que no entanto nos convidava a renunciar a ela A fenomenologia queria renovar nossos conceitos dandonos percepções e afecções que nos fariam nascer no mundo não como bebês ou como hominídeos mas como seres de direito cujas protoopiniões seriam as fundações deste mundo Mas não se luta contra os clichês perceptivos e afetivos se não se luta também contra a máquina que os produz Invocando o vivido primordial fazendo da imanência uma imanência num sujeito a fenomenologia não podia impedir o sujeito de formar somente opiniões que já reproduziriam o clichê das novas percepções e afecções prometidas Nós continuaríamos a evo 194 luir na forma da recognição nós invocaríamos a arte mas sem atingir os conceitos capazes de enfrentar o afecto e o percepto artísticos Os gregos com suas cidades a fenomenologia com nossas sociedades ocidentais tem certamente razão de supor a opinião como uma das condições da filosofia Mas a filosofia encontrará a via que conduz ao conceito invocando a arte como o meio de aprofundar a opinião e de descobrir opiniões originárias ou ao contrário é preciso com a arte subverter a opinião elevála ao movimento infinito que a substitui precisamente pelo conceito A confusão do conceito com a função é ruinosa sob vários aspectos para o conceito filosófico Ela faz da ciência o conceito por excelência que se exprime na proposição científica o primeiro prospecto Ela substitui o conceito filosófico por um conceito lógico que se exprime nas proposições de fato segundo prospecto Ela deixa ao conceito filosófico uma parte reduzida ou degenerada que ela se reserva no domínio da opinião terceiro prospecto servindose de sua amizade por uma sabedoria superior ou uma ciência rigorosa Mas o conceito não tem seu lugar em nenhum destes três sistemas discursivos O conceito não é uma função do vivido nem uma função científica ou lógica A irredutibilidade dos conceitos às funções só se descobre se ao invés de confrontálas de maneira indeterminada se compara o que constitui a referência de umas e o que faz a consistência das outras Os estados de coisas os objetos ou corpos os estados vividos formam as referências de função ao passo que os acontecimentos são a consistência de conceito São esses termos que é preciso considerar do ponto de vista de uma redução possível 195 EXEMPLO XII Uma tal comparação parece corresponder à empresa de Badiou particularmente interessante no pensamento contemporâneo Ele se propõe a escalonar sobre uma linha ascendente uma série de fatores que vão das funções aos conceitos Ele se dá uma base neutralizada com relação aos conceitos tanto quanto às funções uma multiplicidade qualquer apresentada como Conjunto elevável ao infinito A primeira instância é a situação quando o conjunto é remetido a elementos que são sem dúvida multiplicidades mas que são submetidos a um regime do contar por um corpos ou objetos unidades da situação Em segundo lugar os estados de situação são os subconjuntos sempre em excesso sobre os elementos do conjunto ou os objetos da situação mas este excesso do estado não se deixa mais hierarquizar como em Cantor ele é indeterminável numa linha de errância conforme ao desenvolvimento da teoria dos conjuntos Resta que ele deve ser representado na situação desta vez como indiscernível ao mesmo tempo que a situação se torna quase completa a linha de errância forma aqui quatro figuras quatro laços como funções genéricas científica artística política ou dóxica amorosa ou vivida às quais correspondem produções de verdades Mas atingese talvez então uma conversão de imanência da situação conversão do excesso ao vazio que vai reintroduzir o transcendente é o sítio acontecimental que se mantém à borda do vazio na situação e não comporta mais unidades mas singularidades como elementos que dependem das funções precedentes Enfim o acontecimento ele mesmo aparece ou desaparece menos como uma singularidade que como um ponto aleatório sepa 196 rado que se acrescenta ou se subtrai ao sítio na transcendência do vazio ou A verdade como vazio sem que se possa decidir sobre a pertença do acontecimento à situação na qual se encontra seu sítio o indecidível Talvez em contrapartida haja uma intervenção como um lance de dados sobre o sítio que qualifica o acontecimento e o faz entrar na situação uma potência de fazer o acontecimento É que o acontecimento é o conceito ou a filosofia como conceito que se distingue das quatro funções precedentes embora receba delas condições e lhes imponha por sua vez que a arte seja fundamentalmente poema e a ciência conjuntista que o amor seja o inconsciente de Lacan e que a política escape à opiniãodoxa11 Falando de uma base neutralizada o conjunto que marca uma multiplicidade qualquer Badiou traça uma linha única embora muito complexa sobre a qual as funções e o conceito vão escalonarse este sobre aquelas a filosofia parece pois flutuar numa transcendência vazia conceito incondicionado que encontra nas funções a totalidade de suas condições genéricas ciência poesia política e amor Não é sob a aparência do múltiplo o retorno a uma velha concepção da filosofia superior Parecenos que a teoria das multiplicidades não suporta a hipótese de uma multiplicidade qualquer mesmo as matemáticas estão fartas do conjuntismo As multiplicidades é preciso pelo menos duas dois tipos desde o início Não que o dualismo valha mais que a unidade mas a multiplicidade é precisamente o que se passa entre os dois Assim os dois tipos não esta 11 Alain Badiou Uêtre et 1événement e Manifeste pour Ia philosopbie Ed du Seuil A teoria de Badiou é muito complexa tememos terlhe feito sofrer simplificações excessivas 197 rão certamente um acima do outro mas um ao lado do outro um contra o outro face a face ou costas contra costas As funções e os conceitos os estados de coisas atuais e os acontecimentos virtuais são dois tipos de multiplicidades que não se distribuem numa linha de errância mas se reportam a dois vetores que se cruzam um segundo o qual os estados de coisas atualizam os acontecimentos o outro segundo o qual os acontecimentos absorvem ou antes adsorvem os estados de coisas Os estados de coisas saem do caos virtual sob condições constituídas pelo limite referência são atualidades embora não sejam ainda corpos nem mesmo coisas unidades ou conjuntos São massas de variáveis independentes partículastrajetórias ou signosvelocidades São misturas Essas variáveis determinam singularidades na medida em que entram em coordenadas e são tomadas em relações segundo as quais uma dentre elas depende de um grande número de outras ou inversamente muitas dentre elas dependem de uma A um tal estado de coisas encontrase associado um potencial ou uma potência a importância da fórmula leibniziana mv2 vem de que ela introduz um potencial no estado de coisas É que o estado de coisas atualiza uma virtualidade caótica carregando consigo um espaço que sem dúvida deixou de ser virtual mas mostra ainda sua origem e serve de correlato propriamente indispensável ao estado Por exemplo na atualidade do núcleo atômico o núcleon está ainda próximo do caos e se encontra cercado por uma nuvem de partículas virtuais constantemente emitidas e reabsorvidas mas num nível mais avançado da atualização o elétron está em relação com um fóton potencial que interage com o núcleon para dar um novo estado da matéria nuclear Não se pode separar um estado de coisas do potencial através do qual ele opera e sem o qual não haveria ativida 198 de ou evolução por exemplo catalise É através desse potencial que ele pode enfrentar acidentes adjunções ablações ou mesmo projeções como já se vê nas figuras geométricas ou então perder e ganhar variáveis estender singularidades até a vizinhança de novas ou seguir bifurcações que o transformam ou passar por um espaço de fases cujo número de dimensões aumenta com as variáveis suplementares ou sobretudo individuar corpos no campo que ele forma com o potencial Nenhuma destas operações se faz por si mesma todas elas constituem problemas O privilégio do ser vivo é reproduzir de dentro o potencial associado no qual atualiza seu estado e individualiza seu corpo Mas em qualquer domínio a passagem de um estado de coisas ao corpo por intermédio de um potencial ou de uma potência ou antes a divisão dos corpos individuados no estado de coisas subsistente representa um momento essencial Passase aqui da mistura à interação E enfim as interações dos corpos condicionam uma sensibilidade uma proto perceptibilidade e uma protoafetividade que se exprimem já nos observadores parciais ligados ao estado de coisas embora só completem sua atualização no ser vivo O que se chama percepção não é mais um estado de coisas mas um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo e afecção é a passagem deste estado a um outro como aumento ou diminuição do potencialpotência sob a ação de outros corpos nenhum é passivo mas tudo é interação mesmo o peso Era a definição que Espinosa dava da affectio e do affectus para os corpos tomados num estado de coisas e que Whitehead reencontrava quando fazia de cada coisa uma preensão de outras e da passagem de uma preensão a uma outra um feeling positivo ou negativo A interação se torna comunicação O estado de coisas público era a mistura dos dados atualizados pelo mundo em seu estado anterior ao passo que os corpos são novas atualizações cujos estados 199 privados reproduzem estados de coisas para novos corpos12 Mesmo nãoviventes ou antes não orgânicas as coisas têm um vivido porque são percepções e afecções Quando a filosofia se compara com a ciência ocorre que proponha uma imagem simples demais da ciência que faz os cientistas rirem Todavia mesmo se a filosofia tem o direito de apresentar da ciência uma imagem despida de valor científico por conceitos não tem nada a ganhar impondolhe limites que os cientistas não param de ultrapassar nos procedimentos mais elementares Assim quando a filosofia remete a ciência ao já pronto e guarda para si o fazendose como Bergson ou como a fenomenologia notada mente em Erwin Straus não se corre somente o perigo de aproximar a filosofia de um simpes vivido mas se oferece da ciência uma má caricatura Paul Klee tem certamente uma visão mais correta quando diz que consagrandose ao funcional a matemática e a física tomam por objeto a própria formação e não a forma acabada13 Muito mais quando se comparam as multiplicidades filosóficas e as multiplicidades científicas as multiplicidades conceituais e as multiplicidades funcionais pode ser sumário demais definir estas últimas por conjuntos Os conjuntos já vimos só têm interesse como atualização do limite eles dependem das funções e não o contrário e a função é o verdadeiro objeto da ciência Em primeiro lugar as funções são funções de estados de coisas e constituem então proposições científicas como primeiro tipo de prospectos seus argumentos são variáveis independentes sobre as quais se exercem operações de coordenação e potencializações que determinam suas relações necessárias Em segundo lugar as funções são funções de coisas objetos ou corpos individuados que constituem pro 12 Cf Whitehead Process and Reality Free Press p 2226 13 Klee Théorie de lart moderne Ed Gonthier p 4849 200 posições lógicas seus argumentos são termos singulares tomados como átomos lógicos independentes sobre os quais se exercem descrições estado de coisas lógico que determinam seus predicados Em terceiro lugar as funções de vivido têm como argumentos percepções e afecções e constituem opiniões doxa como terceiro tipo de prospecto temos opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos afeta a ponto de as ciências do homem poderem ser consideradas como uma vasta doxologia mas as coisas mesmas são opiniões genéricas na medida em que têm percepções e afecções moleculares no sentido em que o organismo mais elementar tem uma protoopinião sobre a água o carbono e os sais de que dependem seu estado e sua potência Essa é a via que desce do virtual aos estados de coisas e às outras atualidades não encontramos conceito nesta via mas funções A ciência desce da virtualidade caótica aos estados de coisas e corpos que a atualizam todavia ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar num sistema atual ordenado do que por um desejo de não se afastar demais do caos de escavar os potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna o segredo do caos por detrás dela a pressão do virtual14 Ora se remontamos a linha na direção contrária se vamos dos estados de coisas ao virtual não se trata da mesma linha porque não é o mesmo virtual podemos pois também descêla sem que ela se confunda com a precedente O virtual não mais é a virtualidade caótica mas a virtualidade tornada consistente entidade que se forma sobre um plano de imanência que corta o caos É o que se chama o Acontecimento ou a parte do que escapa à sua própria atualização 14 A ciência não sente somente a necessidade de ordenar o caos mas de vêlo de tocálo de fazêlo cf James Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel Gilles Châtelet mostra como a matemática e a física tentam reter algo de uma esfera do virtual Les enjeux du mobile a sair 201 privados reproduzem estados de coisas para novos corpos12 Mesmo nãoviventes ou antes não orgânicas as coisas têm um vivido porque são percepções e afecções Quando a filosofia se compara com a ciência ocorre que proponha uma imagem simples demais da ciência que faz os cientistas rirem Todavia mesmo se a filosofia tem o direito de apresentar da ciência uma imagem despida de valor científico por conceitos não tem nada a ganhar impondolhe limites que os cientistas não param de ultrapassar nos procedimentos mais elementares Assim quando a filosofia remete a ciência ao já pronto e guarda para si o fazendose como Bergson ou como a fenomenologia notada mente em Erwin Straus não se corre somente o perigo de aproximar a filosofia de um simpes vivido mas se oferece da ciência uma má caricatura Paul Klee tem certamente uma visão mais correta quando diz que consagrandose ao funcional a matemática e a física tomam por objeto a própria formação e não a forma acabada13 Muito mais quando se comparam as multiplicidades filosóficas e as multiplicidades científicas as multiplicidades conceituais e as multiplicidades funcionais pode ser sumário demais definir estas últimas por conjuntos Os conjuntos já vimos só têm interesse como atualização do limite eles dependem das funções e não o contrário e a função é o verdadeiro objeto da ciência Em primeiro lugar as funções são funções de estados de coisas e constituem então proposições científicas como primeiro tipo de prospectos seus argumentos são variáveis independentes sobre as quais se exercem operações de coordenação e potencializações que determinam suas relações necessárias Em segundo lugar as funções são funções de coisas objetos ou corpos individuados que constituem pro 12 Cf Whitehead Process and Reality Free Press p 2226 13 Klee Théorie de lart moderne Ed Gonthier p 4849 202 posições lógicas seus argumentos são termos singulares tomados como átomos lógicos independentes sobre os quais se exercem descrições estado de coisas lógico que determinam seus predicados Em terceiro lugar as funções de vivido têm como argumentos percepções e afecções e constituem opiniões doxa como terceiro tipo de prospecto temos opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos afeta a ponto de as ciências do homem poderem ser consideradas como uma vasta doxologia mas as coisas mesmas são opiniões genéricas na medida em que têm percepções e afecções moleculares no sentido em que o organismo mais elementar tem uma protoopinião sobre a água o carbono e os sais de que dependem seu estado e sua potência Essa é a via que desce do virtual aos estados de coisas e às outras atualidades não encontramos conceito nesta via mas funções A ciência desce da virtualidade caótica aos estados de coisas e corpos que a atualizam todavia ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar num sistema atual ordenado do que por um desejo de não se afastar demais do caos de escavar os potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna o segredo do caos por detrás dela a pressão do virtual14 Ora se remontamos a linha na direção contrária se vamos dos estados de coisas ao virtual não se trata da mesma linha porque não é o mesmo virtual podemos pois também descêla sem que ela se confunda com a precedente O virtual não mais é a virtualidade caótica mas a virtualidade tornada consistente entidade que se forma sobre um plano de imanência que corta o caos É o que se chama o Acontecimento ou a parte do que escapa à sua própria atualização 14 A ciência não sente somente a necessidade de ordenar o caos mas de vêlo de tocálo de fazêlo cf James Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel Gilles Châtelet mostra como a matemática e a física tentam reter algo de uma esfera do virtual Les enjeux du mobile a sair 203 tempo é devir O entretempo o acontecimento é sempre um tempo morto lá onde nada se passa uma espera infinita que já passou infinitamente espera e reserva Este tempo morto não sucede ao que acontece coexiste com o instante ou o tempo do acidente mas como a imensidade do tempo vazio em que o vemos ainda por vir e já chegado na estranha indiferença de uma intuição intelectual Todos os entretempos se superpõem enquanto que os tempos se sucedem Em cada acontecimento há muitos componentes heterogêneos sempre simultâneos já que são cada um um entretempo todos no entretempo que os faz comunicar por zonas de indiscernibilidade de indecidibilidade são variações modulações intermezzi singularidades de uma nova ordem infinita Cada componente de acontecimento se atualiza ou se efetua num instante e o acontecimento no tempo que passa entre estes instantes mas nada se passa na virtualidade que só tem entretempos como componentes e um acontecimento como devir composto Nada se passa aí mas tudo se torna de tal maneira que o acontecimento tem o privilégio de recomeçar quando o tempo passou17 Nada se passa e todavia tudo muda porque o devir não pára de repassar por seus componentes e de conduzir o acontecimento que se atualiza alhures a um outro momento Quando o tempo passa e leva o instante há sempre um entretempo para trazer o acontecimento É um conceito que apreende o acontecimento seu devir suas variações inseparáveis ao passo que uma função apreende um estado de coisas um tempo e variáveis com suas relações segundo o tempo O conceito tem uma potência de repetição que se distingue da potência discursiva da função 17 Sobre o entretempo conferir a um artigo muito intenso de Groethuysen De quelques aspects du temps Recberches philosophiques V 19351936 Todo acontecimento está por assim dizer no tempo em que nada se passa Toda a obra romanesca de LernetHolonia se passa em entretempos 204 Em sua produção e sua reprodução o conceito tem a realidade de um virtual de um incorporai de um impassível contrariamente às funções de estado atual às funções de corpo e de vivido Erigir um conceito não é a mesma coisa que traçar uma função embora haja movimento dos dois lados embora haja transformações e criações num caso como no outro os dois tipos de multiplicidades se entrecruzam Sem dúvida o acontecimento não é feito somente de variações inseparáveis ele mesmo é inseparável do estado de coisas dos corpos e do vivido nos quais se atualiza ou se efetua Mas diremos o inverso também o estado de coisas também não é separável do acontecimento que transborda contudo sua atualização por toda parte É preciso ascender de novo até o acontecimento que dá sua consistência virtual ao conceito bem como descer até o estado de coisas atual que dá suas referências à função De tudo o que um sujeito pode viver do corpo que lhe pertence dos corpos e objetos que se distinguem do seu e do estado de coisas ou do campo físicomatemático que os determinam erguese um vapor que não se assemelha a eles e que investe o campo de batalha a batalha e o ferimento como componentes ou variações de um acontecimento puro onde subsiste somente uma alusão ao que diz respeito aos nossos estados A filosofia como gigantesca alusão Atualizamos ou efetuamos o acontecimento todas as vezes que o investimos de bom ou mau grado num estado de coisas mas o contraefetuamos cada vez que o abstraímos dos estados de coisas para liberar seu conceito Há como que uma dignidade do acontecimento que foi sempre inseparável da filosofia como amor fati igualarse ao acontecimento ou tornarse o filho de seus próprios acontecimentos meu ferimento existia antes de mim nasci para encarnálo18 Nasci para encarnálo 18 Joe Bousquet Les Capitules Le Cercle du livre p 103 205 como acontecimento porque soube desencarnálo como estado de coisas ou situação vivida Não há ética diferente daquela do amor fati da filosofia A filosofia é sempre entretempo Aquele que contraefetua o acontecimento Mallarmé o chama de o Mímico porque ele esquiva o estado de coisas e se limita a uma alusão perpétua sem quebrar o gelo19 Um mímico como este não reproduz o estado de coisas como também não imita o vivido não dá uma imagem mas constrói um conceito Ele não procura a função do que acontece mas extrai o acontecimento ou a parte do que não se deixa atualizar a realidade do conceito Não querer o que acontece com esta falsa vontade que se queixa e se defende e se perde em mímica mas levar a queixa e o furor ao ponto em que eles se voltam contra o que acontece para erigir o acontecimento depurálo extraílo no conceito vivo A filosofia não tem outro objetivo além de tornarse digna do acontecimento e aquele que contraefetua o acontecimento é precisamente o personagem conceituai Mímico é um nome ambíguo Ele é o personagem conceituai que opera o movimento infinito Querer a guerra contra as guerras por vir e passadas a agonia contra todas as mortes e o ferimento contra todas as cicatrizes em nome do devir e não do eterno é neste sentido somente que o conceito reúne Descemos dos virtuais aos estados de coisas atuais subimos dos estados de coisas aos virtuais sem podermos isolálos uns dos outros Mas não é a mesma linha que subimos e que descemos assim a atualização e a contraefetuação não são dois segmentos da mesma linha mas linhas diferentes Se nos ativermos às funções científicas de estados de coisas diremos que elas não se deixam isolar de um virtual que atualizam este virtual se apresenta de início como uma névoa ou uma neblina ou mesmo como um caos uma virtualidade 19 Mallarmé Mimique Oeuvres La Pléiade p 310 206 caótica mais do que como a realidade de um acontecimento ordenado no conceito É por isso que a filosofia freqüentemente parece para a ciência recobrir um simples caos que faz com que esta diga você só tem escolha entre o caos e eu a ciência A linha de atualidade traça um plano de referência que recorta o caos retira dele estados de coisas que certamente atualizam também em suas coordenadas os acontecimentos virtuais mas só retêm dele potenciais já em vias de atualização fazendo parte das funções Inversamente se consideramos os conceitos filosóficos de acontecimentos sua virtualidade remete ao caos mas sobre um plano de imanência que o recobre por sua vez e só dele extrai a consistência ou realidade do virtual Quanto aos estados de coisas densos demais são sem dúvida adsorvidos contraefetuados pelo acontecimento mas a eles só encontramos alusões sobre o plano de imanência e no acontecimento As duas linhas são pois inseparáveis mas independentes cada uma completa em si mesma como os invólucros dos dois planos tão diversos A filosofia só pode falar da ciência por alusão e a ciência só pode falar da filosofia como de uma nuvem Se as duas linhas são inseparáveis é em sua suficiência respectiva e os conceitos filosóficos não intervém mais na constituição das funções científicas do que as funções na dos conceitos É em sua plena maturidade e não no processo de sua constituição que os conceitos e as funções se cruzam necessariamente cada um só sendo criado por seus meios próprios em cada caso um plano elementos agentes É por isso que é sempre desagradável que os cientistas façam filosofia sem meio realmente filosófico ou que os filósofos façam ciência sem meio efetivamente científico e nós não pretendemos fazê lo O conceito não reflete sobre a função nem a função se aplica ao conceito Conceito e função devem se cruzar cada um seguindo sua linha As funções riemannianas de espaço 207 por exemplo não nos dizem nada de um conceito de espaço riemanniano próprio à filosofia é na medida em que a filosofia está apta a criálo que temos o conceito de uma função O número irracional igualmente definese por uma função como limite comum de duas séries de racionais das quais uma não tem máximo ou a outra não tem mínimo o conceito em contrapartida não remete a séries de números mas a seqüências de idéias que se reencadeiam por sobre uma lacuna em lugar de se encadear por prolongamento A morte pode ser assimilada a um estado de coisas cientificamente determinável como função de variáveis independentes ou mesmo como função do estado vivido mas aparece também como um acontecimento puro cujas variações são coextensivas à vida os dois aspectos muito diferentes se encontram em Bichat Goethe construiu um grandioso conceito de cor com as variações inseparáveis de luz e de sombra as zonas de indiscernibilidade os processos de intensificação que mostram até que ponto também em filosofia há experimentações enquanto que Newton tinha contruído a função de variáveis independentes ou a freqüência Se a filosofia precisa fundamentalmente da ciência que lhe é contemporânea é porque a ciência cruza sem cessar a possibilidade de conceitos e porque os conceitos comportam necessariamente alusões à ciência que não são nem exemplos nem aplicações nem mesmo reflexões Há inversamente funções de conceitos funções propriamente científicas E o mesmo que perguntar se a ciência como acreditamos precisa igual e intensamente da filosofia Mas só os cientistas estão aptos a responder a esta questão 208 Percepto Afecto e Conceito O jovem sorri na tela enquanto ela dura O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher e o vento agita um ramo um grupo de homens se apressa em partir Num romance ou num filme o jovem deixa de sorrir mas começará outra vez se voltarmos a tal página ou a tal momento A arte conserva e é a única coisa no mundo que se conserva Conserva e se conserva em si quid júris embora de fato não dure mais que seu suporte e seus materiais quidfacti pedra tela cor química etc A moça guarda a pose que tinha há cinco mil anos gesto que não depende mais daquela que o fez O ar guarda a agitação o sopro e a luz que tinha tal dia do ano passado e não depende mais de quem o respirava naquela manhã Se a arte conserva não é à maneira da indústria que acrescenta uma substância para fazer durar a coisa A coisa tornouse desde o início independente de seu modelo mas ela é independente também de outros personagens eventuais que são eles próprios coisasartistas personagens de pintura respirando este ar de pintura E ela não é dependente do espectador ou do auditor atuais que se limitam a experimentála num segundo momento se têm força suficiente E o criador então Ela é independente do criador pela auto posição do criado que se conserva em si O que se conserva a coisa ou a obra de arte é um bloco de sensações isto é um composto de perceptos e afectos Os perceptos não mais são percepções são independentes do estado daqueles que os experimentam os afectos não são mais sentimentos ou afecções transbordam a força daqueles que são atravessados por eles As sensações perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido Existem na ausência do homem podemos dizer porque o homem tal como ele é fixado na pedra sobre a tela ou ao longo das palavras é ele próprio um composto de perceptos e de afectos A obra de arte é um ser de sensação e nada mais ela existe em si 213 Os acordes são afectos Consoantes e dissonantes os acordes de tons ou de cores são os afectos de música ou de pintura Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto O artista cria blocos de perceptos e de afectos mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho O mais difícil é que o artista o faça manterse de pé sozinho Para isso é preciso por vezes muita inverossimilhança geométrica imperfeição física anomalia orgânica do ponto de vista de um modelo suposto do ponto de vista das percepções e afecções vividas mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte se são os meios interiores de manter de pé ou sentado ou deitado Há uma possibilidade pictural que nada tem a ver com a possibilidade física e que dá às posturas mais acrobáticas a força da verticalidade Em contrapartida tantas obras que aspiram à arte não se mantêm de pé um só instante Manterse de pé sozinho não é ter um alto e um baixo não é ser reto pois mesmo as casas são bêbadas e tortas é somente o ato pelo qual o composto de sensações criado se conserva em si mesmo Um monumento mas o monumento pode sustentarse em alguns traços ou em algumas linhas como um poema de Emily Dickinson Do croqui de um velho burro exausto que maravilha é feito com dois traços mas postos sobre bases imutáveis onde a sensação melhor testemunha anos de trabalho persistente tenaz desdenhoso1 O modo menor em música é uma prova tanto mais essencial quanto lança ao músico o desafio de roubálo a suas combinações efêmeras para tornálo sólido e durável autoconservante mesmo em posições acrobáticas O som deve tanto ser mantido em sua extinção quanto 1 Edith Wharton Les metteurs en scène Ed 1018 p 263 Tratase de um pintor acadêmico e mundano que renuncia a pintar depois de ter descoberto um pequeno quadro de um contemporâneo desconhecido E eu eu não tinha criado nenhuma de minhas obras eu as tinha simplesmente adotado 214 em sua produção e seu desenvolvimento Através de sua admiração por Pissaro por Monet o que Cézanne criticava nos impressionistas era que a mistura óptica das cores não bastava para fazer um composto suficientemente sólido e durável como a arte dos museus como a perpetuldade do sangue em Rubens2 É uma maneira de falar porque Cézanne não acrescenta algo que conservaria o impressionismo ele procura uma outra solidez outras bases e outros blocos A questão de saber se as drogas ajudam o artista a criar esses seres de sensação se fazem parte dos meios interiores se nos conduzem realmente às portas da percepção se nos entregam aos perceptos e aos afectos recebe uma resposta geral na medida em que o que foi composto sob efeito de droga é o mais das vezes extraordinariamente friável incapaz de se conservar por si mesmo desfazendose ao mesmo tempo que se faz ou que o olhamos Podemos também admirar os desenhos de crianças ou antes comovermonos com eles é raro que se mantenham de pé e só parecem com coisa de Klee ou de Miro se não os olhamos muito tempo As pinturas dos loucos ao contrário sustentamse quase sempre mas sob a condição de serem saturadas e de não deixarem subsistir vazio Todavia os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio pois mesmo o vazio é uma sensação toda sensação se compõe com o vazio compondose consigo tudo se mantém sobre a terra e no ar e conserva o vazio se conserva no vazio conservandose a si mesmo Uma tela pode ser inteiramente preenchida a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela mas algo só é uma obra de arte se como diz o pintor chinês guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos quando mais não seja pela variedade de planos3 2 Conversations avec Cézanne Ed Macula Gasquet p 121 3 Cf François Cheng Vide et plein Ed du Seuil p 63 citação do pintor Huang PinHung 215 Pintamos esculpimos compomos escrevemos com sensações Pintamos esculpimos compomos escrevemos sensações As sensações como perceptos não são percepções que remeteriam a um objeto referência se se assemelham a algo é uma semelhança produzida por seus próprios meios e o sorriso sobre a tela é somente feito de cores de traços de sombra e de luz Se a semelhança pode impregnar a obra de arte é porque a sensação só remete a seu material ela é o percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de óleo o gesto de terra cozida o élan de metal o acocorado da pedra romana e o elevado da pedra gótica E o material é tão diverso em cada caso o suporte da tela o agente do pincel ou da brocha a cor no tubo que é difícil dizer onde acaba e onde começa a sensação de fato a preparação da tela o traço do pêlo do pincel fazem evidentemente parte da sensação e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a sensação poderia conservarse sem um material capaz de durar e por mais curto que seja o tempo este tempo é considerado como uma duração veremos como o plano do material sobe irresistivelmente e invade o plano de composição das sensações mesmas até fazer parte dele ou ser dele indiscernível Dizse neste sentido que o pintor é pintor e nada além de um pintor com a cor captada como sai fora do tubo com a marca um depois do outro dos pêlos do pincel com este azul que não é um azul de água mas um azul de pintura líquida E todavia a sensação não é idêntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direito não é o material que constitui somente a condição de fato mas enquanto é preenchida esta condição enquanto a tela a cor ou a pedra não virem pó o que se conserva em si é o percepto ou o afecto Mesmo se o material só durasse alguns segundos daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si na eternidade que coexiste com esta curta duração Enquanto dura o material é de uma eternidade que 216 a sensação desfruta nesses mesmos momentos A sensação não se realiza no material sem que o material entre inteiramente na sensação no percepto ou no afecto Toda a matéria se torna expressiva É o afecto que é metálico cristalino pétreo etc e a sensação não é colorida ela é colorante como diz Cézanne É por isso que quem só é pintor é também mais que pintor porque ele faz vir diante de nós na frente da tela fixa não a semelhança mas a pura sensação da flor torturada da paisagem cortada sulcada e comprida devolvendo a água da pintura à natureza4 Só passamos de um material a outro como do violão ao piano do pincel à brocha do óleo ao pastel se o composto de sensações o exigir E por mais fortemente que um artista se interesse pela ciência jamais um composto de sensações se confundirá com as misturas do material que a ciência determina em estados de coisas como mostra eminentemente a mistura óptica dos impressionistas O objetivo da arte com os meios do material é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente arrancar o afecto das afecções como passagem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensações um puro ser de sensações Para isso é preciso um método que varie com cada autor e que faça parte da obra basta comparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensação como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores 4 Artaud Van Gogh le suicide de Ia société Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senão pintor Van Gogh dominou os meios da pura pintura e não os ultrapassou mas o maravilhoso é que este pintor que só é pintor é também de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura 5 José Gil consagra um capítulo aos procedimentos pelos quais Pés soa extrai o percepto a partir de percepções vividas notadamente em Ode marítima Fernando Pessoa ou Ia métaphysique des sensations Ed De Ia Différence cap II 217 quanto a isto não estão numa situação diferente da dos pintores dos músicos dos arquitetos O material particular dos escritores são as palavras e a sintaxe a sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação Para sair das percepções vividas não basta evidentemente memória que convoque somente antigas percepções nem uma memória involuntária que acrescente a reminiscência como fator conservante do presente A memória intervém pouco na arte mesmo e sobretudo em Proust É verdade que toda a obra de arte é um monumento mas o monumento não é aqui o que comemora um passado é um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação e dão ao acontecimento o composto que o celebra O ato do monumento não é a memória mas a fabulação Não se escreve com lembranças de infância mas por blocos de infância que são devirescriança do presente A música está cheia disso Para tanto é preciso não memória mas um material complexo que não se encontra na memória mas nas palavras nos sons Memória eu te odeio Só se atinge o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes que não devem mais nada àqueles que os experimentam ou os experimentaram Combray como jamais foi vivido como não é nem será vivido Combray como catedral ou monumento E se os métodos são muito diferentes não somente segundo as artes mas segundo cada autor podese no entanto caracterizar grandes tipos monumentais ou variedades de compostos de sensação a vibração que caracteriza a sensação simples mas ela já é durável ou composta porque ela sobe ou desce implica uma diferença de nível constitutiva segue uma corda invisível mais nervosa que cerebral o enlace ou o corpoacorpo quando duas sensações ressoam uma na outra esposandose tão estreitamente num corpoacorpo que é puramente energético o recuo a divisão a distensão quando duas sensações se separam ao contrá 218 rio se distanciam mas para só serem reunidas pela luz o ar ou o vazio que se inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tão densa e tão leve que se estende em todos os sentidos à medida que a distância cresce e forma um bloco que não tem mais necessidade de qualquer base Vibrar a sensação acoplar a sensação abrir ou fender esvaziar a sensação A escultura apresenta esses tipos quase em estado puro com suas sensações de pedra de mármore ou de metal que vibram segundo a ordem dos tempos fortes e dos tempos fracos das saliências ou das reentrâncias seus poderosos corpoa corpo que os entrelaçam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde não mais se sabe se é a luz se é o ar que esculpe ou é esculpido O romance se elevou freqüentemente ao percepto não a percepção da charneca mas a charneca como percepto em Hardy os perceptos oceânicos de Melville os perceptos urbanos ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vê Em geral qual o grande escritor que não soube criar esses seres de sensação que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento as colinas de Faulkner a estepe de Tolstoi ou a de Tchekov O percepto é a paisagem anterior ao homem na ausência do homem Mas em todos estes casos por que dizer isso já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos personagens e por seu intermédio das percepções e lembranças do autor E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele o espelho sem a velha que nele se reflete mesmo se ela não se mira nele É o enigma freqüentemente comentado de Cézanne o homem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens não podem existir e o autor só pode criálos porque eles não percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmos parte do composto de sensações É Ahab que tem as percepções do mar mas só as tem porque entrou numa relação com 219 Moby Dick que o faz tornarsebaleia e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais Oceano É Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou na cidade como uma lâmina através de tudo e se tornou ela mesma imperceptível Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem como os perceptos entre eles a cidade são as paisagens não humanas da natureza Há um minuto do mundo que passa não o conservaremos sem nos transformarmos nele diz Cézanne6 Não estamos no mundo tornamonos com o mundo nós nos tornamos contemplandoo Tudo é visão devir Tornamonos universo Devires animal vegetal molecular devir zero Kleist é sem dúvida quem mais escreveu por afectos servindose deles como pedras ou armas apreendendoos em devires de petrificação brusca ou de aceleração infinita no devircadela de Pentesiléia e seus perceptos alucinados Isto é verdadeiro para todas as artes que estranhos devires desencadeiam a música através de suas paisagens melódicas e seus personagens rítmicos como diz Messiaen compondo num mesmo ser de sensação o molecular e o cósmico as estrelas os átomos e os pássaros Que terror invade a cabeça de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre é preciso o estilo a sintaxe de um escritor os modos e ritmos de um músico os traços e as cores de um pintor para 6 Cézanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sens Ed Millon p 519 as grandes paisagens têm todas elas um caráter visionário A visão é o que do invisível se torna visível a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos mais nela nos perdemos Para chegar à paisagem devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal espacial objetiva mas este abandono não atinge somente o objetivo ele afeta a nós mesmos na mesma medida Na paisagem deixamos de ser seres históricos isto é seres eles mesmos objetiváveis Não temos memória para a paisagem não temos memória nem mesmo para nós na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos É o sentir 220 se elevar das percepções vividas ao percepto de afecções vividas ao afecto Insistimos sobre a arte do romance porque é a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções suas lembranças ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus filhos e seus pais os personagens interessantes que pôde encontrar e sobretudo o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo quem não o é enfim suas opiniões para soldar o todo Invocamse para tanto grandes autores que só teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obtémse geralmente obras compostas em que alguém se agita muito mas na procura de um pai que só poderia encontrar em si mesmo o romance do jornalista Nada nos poupam na ausência de qualquer trabalho realmente artístico Não precisamos alterar muito a crueldade do que se pôde ver nem o desespero pelo qual se passou para produzir mais uma vez a opinião que se tira geralmente das dificuldades de comunicação Rossellini viu nisso uma razão para renunciar à arte a arte deixouse invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade tornandose simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisfeita de modo que era melhor renunciar7 O mais interessante é que Rossellini via a mesma invasão na pintura Mas é antes de mais nada a literatura que não parou de manter este equívoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observação e muita imaginação é possível escrever com percepções afecções e opiniões Mesmo nos romances menos autobiográficos vemos confrontaremse cruzaremse opiniões de uma multidão de personagens cada opinião sendo função das percepções e afecções de cada um segundo sua situação social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa vasta corrente que seria a opinião do autor que se divide para 7 Rosselini Le cinema révélé Ed de lEtoile p 8082 221 recair sobre os personagens ou se esconder para que o autor possa formar a sua é assim mesmo que começa a grande teoria do romance de Bakhtin felizmente ele não fica aí justamente na base paródica do romance A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada nem com um fantasma Com efeito o artista entre eles o romancista excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido É um vidente alguém que se torna Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina já que é uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intolerável também e a luta da vida com o que a ameaça de modo que o pedaço de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens acedem a uma visão que compõe através deles perceptos desta vida deste momento fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo de simultanismo de luz crua ou de crepúsculo de púrpura ou de azul que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos Chamase de estilos dizia Giacometti essas visões paradas no tempo e no espaço Tratase sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira ou de tentar fazêlo num combate incerto A morte do porcoespinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka são atos de romancista quase insuportáveis e por vezes é preciso deitar na terra como faz o pintor para localizar o motivo isto é o percepto Os perceptos podem ser telescópicos ou microscópicos dão aos personagens e às paisagens dimensões de gigantes como se estivessem repletos de uma vida à qual nenhuma percepção vivida pode atingir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personagens sejam medíocres ou não eles se tornam gigantes como Bouvard e Pécuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que são É por força da mediocridade mesmo de besteira ou de infâmia que podem tornarse não simples jamais são simples mas gigantescos Mesmo os anões 222 ou os inválidos podem fazêlo toda fabulação é fabricação de gigantes8 Medíocres ou grandiosos são demasiadamente vivos para serem vivíveis ou vividos Thomas Wolfe extrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha através de suas opiniões imbecis e sua mania de discussão o que faz é erigir o monumento secreto de sua solidão de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criar também oh homens de Yoknapatawpha Dizse que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e é verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas há aproximadamente a mesma relação que entre o cãoanimal que late e o Cão constelação celeste Como tornar um momento do mundo durável ou fazêlo existir por si Virginia Woolf dá uma resposta que vale para a pintura ou a música tanto quanto para a escrita Saturar cada átomo Eliminar tudo o que é resto morte e superfluidade tudo o que gruda em nossas percepções correntes e vividas tudo o que alimenta o romancista medíocre só guardar a saturação que nos dá um percepto Incluir no momento o absurdo os fatos o sórdido mas tratados em transparência Colocar aí tudo e contudo saturar9 Por ter atingido o percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancista ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o fôlego cur 8 No capítulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulação como uma faculdade visionária muito diferente da imaginação que consiste em criar deuses e gigantes potências semipessoais ou presenças eficazes Ela se exerce inicialmente nas religiões mas desenvolvese livremente na arte e na literatura 9 Virginia Woolf Journal dun écrivain Ed 10181 p 230 223 to São atletas não atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores não tenham resistido a ver nos esportes um meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeão de jejum ou grande Nadador que não sabia nadar Um Atletismo que não é orgânico ou muscular mas um atletismo afetivo que seria o duplo inorgânico do outro um atletismo do devir que revela somente forças que não são as suas espectro plástico10 Desse ponto de vista os artistas são como os filósofos têm freqüentemente uma saudezinha frágil mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um de grande demais para eles e que pôs neles a marca discreta da morte Mas esse algo é também a fonte ou o fôlego que os fazem viver através das doenças do vivido o que Nietzsche chama de saúde Um dia saberemos talvez que não havia arte mas somente medicina11 O afecto não ultrapassa menos as afecções que o percepto as percepções O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro mas o devir não humano do homem Ahab não imita Moby Dick e Pentesiléia não se comporta como a cadela não é uma imitação uma simpatia vivida nem mesmo uma identificação imaginária Não é a semelhança embora haja semelhança Mas justamente é apenas uma semelhança produzida É antes uma extrema contigüidade num enlaçamento entre duas sensações sem semelhança ou ao contrário no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo André Dhôtel soube colocar seus per 10 Artaud Le théâtre et son double Oeuvres completes Gallimard IV p 154 11 Le Clézio HAl Ed Flammarion p 7 sou um índio embora não saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga Num texto célebre Michaux falava da saúde própria à arte posfácio a Mes propriétés La nuit remmue Gallimard p 193 224 sonagens em estranhos deviresvegetais tornarse árvore ou tornarse áster não é diz ele que um se transforme no outro mas algo passa de um ao outro12 Este algo só pode ser precisado como sensação É uma zona de indeterminação de indiscernibilidade como se coisas animais e pessoas Ahab e Moby Dick Pentesiléia e a cadela tivessem atingido em cada caso este ponto todavia no infinito que precede imediatamente sua diferenciação natural É o que se chama um afecto Em Pierre ou les ambiguités Pierre ganha a zona em que ele não pode mais distinguirse de sua meiairmã Isabelle e tornase mulher Só a vida cria tais zonas em que turbilhonam os vivos e só a arte pode atingila e penetrála em sua empresa de co criação É que a própria arte vive dessas zonas de indeterminação quando o material entra na sensação como numa escultura de Rodin São blocos A pintura precisa de uma coisa diferente da habilidade do desenhista que marcaria a semelhança entre formas humanas e animais e nos faria assistir à sua metamorfose é preciso ao contrário a potência de um fundo capaz de dissolver as formas e de impor a existência de uma tal zona em que não se sabe mais quem é animal e quem é humano porque algo se levanta como o triunfo ou o monumento de sua indistinção assim Goya ou mesmo Daumier Redon É preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos necessários a uma empresa tão grande que recria por toda a parte os pântanos primitivos da vida a utilização da águaforte e da aguatinta por Goya O afecto não opera certamente um retorno às origens como se se reencontrasse em termos de semelhança a persistência de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado É nos meios temperados de nossa civilização que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam à diferenciação dos gê 12 André Dhôtel Terres de mémoire Ed Universitaires p 225226 225 neros dos sexos das ordens e dos reinos Só se trata de nós aqui e agora mas o que é animal em nós vegetal mineral ou humano não mais é distinto embora nós nós ganhemos aí singularmente em distinção O máximo de determinação emerge como um clarão deste bloco de vizinhança Precisamente porque as opiniões são funções do vivido elas aspiram a um certo conhecimento das afecções As opiniões insistem nas paixões do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressão de que a opinião desconhece os estados afetivos e que ela agrupa ou separa os que não deveriam ser agrupados ou separados13 Não basta sequer como faz a psicanálise dar objetos proibidos às afecções repertoriadas nem substituir as zonas de indeterminação por simples ambivalências Um grande romancista é antes de tudo um artista que inventa afectos não conhecidos ou desconhecidos e os faz vir à luz do dia como o devir de seus personagens os estados crepusculares dos cavaleiros nos romances de Chrétien de Troyes em relação com um conceito eventual de cavalaria os estados de repouso quase catatônicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette em relação com um conceito de quietismo até os estados de Beckett como afectos tanto mais grandiosos quanto são pobres em afecções Quando Zola sugere a seus leitores prestem atenção não é remorso que meus personagens sentem não devemos mais ver nisso a expressão de uma tese fisiologista mas a atribuição de novos afectos que crescem com a criação de personagens no naturalismo o Medíocre o Perverso o Animal o que Zola chama de instinto não se separa de um deviranimal Quando Emily Bronté traça o liame que une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto violento que sobretudo não 13 Bergson La pensée et le mouvant Ed du Centenaire p 12931294 226 deve ser confundido com o amor algo como uma fraternidade entre dois lobos Quando Proust parece descrever tão minuciosamente o ciúme inventa um afecto porque não deixa de inverter a ordem que a opinião supõe nas afecções segundo a qual o ciúme seria uma conseqüência infeliz do amor para ele ao contrário o ciúme é finalidade destinação e se é preciso amar é para poder ser ciumento sendo o ciúme o sentido dos signos o afecto como semiologia Quando Claude Simon descreve o prodigioso amor passivo da mulherterra esculpe um afecto de barro e pode dizer é minha mãe e acreditamos já que ele diz mas uma mãe que ele introduz na sensação e à qual ergue um monumento tão original que não é mais com seu filho real que ela tem uma relação mas mais longinquamente com um outro personagem de criação a Eula de Faulkner É assim que de um escritor a um outro os grandes afectos criadores podem se encadear ou derivar em compostos de sensações que se transformam vibram se enlaçam ou se fendem são estes seres de sensação que dão conta da relação do artista com o público da relação entre as obras de um mesmo artista ou mesmo de uma eventual afinidade de artistas entre si14 O artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres da sensação são variedades como os seres de conceitos são variações e os seres de função são variáveis É de toda a arte que seria preciso dizer o artista é mostrador de afectos inventor de afectos criador de afectos em relação com os perceptos ou as visões que nos dá Não é somente em sua obra que ele os cria ele os dá para nós e nos faz transformamos com eles ele nos apanha no composto Os girassóis de Van Gogh são devires como os cardos de 14 Estas três questões retornam freqüentemente em Proust notadamente Le temps retrouvé La Pléiade III p 895896 sobre a vida a visão e a arte como criação de universo 227 Dürer ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visão primeira ensaiada na flor A flor vê Puro e simples terror Vê você este girassol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia15 Uma história floral da pintura é como a criação incessantemente retomada e continuada dos afectos e dos perceptos das flores A arte é a linguagem das sensações que faz entrar nas palavras nas cores nos sons ou nas pedras A arte não tem opinião A arte desfaz a tríplice organização das percepções afecções e opiniões que substitui por um monumento composto de perceptos de afectos e de blocos de sensações que fazem as vezes de linguagem O escritor se serve de palavras mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação e que faz gaguejar a língua corrente ou tremer ou gritar ou mesmo cantar é o estilo o tom a linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fála vibrar abraçaa fendea para arrancar o percepto das percepções o afecto das afecções a sensação da opinião visando esperamos esse povo que ainda não existe Minha memória não é amor mas hostilidade e ela trabalha não para reproduzir mas para descartar o passado Que queria dizer minha família eu não sei Ela era gagá de nascença e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muitos de meus contemporâneos pesa a gagueira de nascença Aprendemos não a falar mas a balbuciar e é só ouvindo o ruído crescente do século e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que nós adquirimos uma língua16 Precisamente é a tarefa de toda arte e a pintura a música 15 Lowry Audessous du volcan Ed BuchetChastel p 203 16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77 228 não arrancam menos das cores e dos sons acordes novos paisagens plásticas ou melódicas personagens rítmicos que os elevam até o canto da terra e o grito dos homens o que constitui o tom a saúde o devir um bloco visual e sonoro Um monumento não comemora não celebra algo que se passou mas transmite para o futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento o sofrimento sempre renovado dos homens seu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seria vão porque o sofrimento é eterno e as revoluções não sobrevivem à sua vitória Mas o sucesso de uma revolução só reside nela mesma precisamente nas vibrações nos enlaces nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia e que compõem em si um monumento sempre em devir como esses túmulos aos quais cada novo viajante acrescenta uma pedra A vitória de uma revolução é imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes não duram mais que sua matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão à traição As figuras estéticas e o estilo que as cria não têm nada a ver com a retórica São sensações perceptos e afectos paisagens e rostos visões e devires Mas não é também pelo devir que definimos o conceito filosófico e quase nos mesmos termos Todavia as figuras estéticas não são idênticas aos personagens conceituais Talvez entrem uns nos outros num sentido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas é na medida em que há sensações de conceitos e conceitos de sensações Não é o mesmo devir O devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não pára de deviroutro continuando a ser o que é girassol ou Ahab enquanto que o devir conceituai é o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que é Este é heterogeneidade compreendida numa forma absoluta aquele a alteridade empenhada numa matéria de expressão O monumento não atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna dá 229 lhe um corpo uma vida um universo É assim que Proust definia a artemonumento por esta via superior ao vivido suas diferenças qualitativas seus universos que constróem seus próprios limites seus distanciamentos e suas aproximações suas constelações os blocos de sensações que eles fazem rolar o universoRembrandt ou universoDebussy Estes universos não são nem virtuais nem atuais são possíveis o possível como categoria estética possível por favor senão eu sufoco a existência do possível enquanto que os acontecimentos são a realidade do virtual formas de um pensamentoNatureza que sobrevoam todos os universos possíveis Não significa dizer que o conceito precede de direito a sensação mesmo um conceitode sensação deve ser criado com seus meios próprios e uma sensação existe em seu universo possível sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta Pode a sensação ser assimilada a uma opinião originária Urdoxa como fundação do mundo ou base imutável A fenomenologia encontra a sensação em a priori materiais perceptivos e afectivos que transcendem as percepções e afecções vividas o amarelo de Van Gogh ou as sensações inatas de Cézanne A fenomenologia deve fazerse fenomenologia da arte já vimos porque a imanência do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimirse em funções transcendentes que não determinam somente a experiência em geral mas que atravessam aqui e agora o próprio vivido e se encarnam nele constituindo sensações vivas O ser da sensação o bloco do percepto e do afecto aparecerá como a unidade ou a reversibilidade daquele que sente e do sentido seu íntimo entrelaçamento como mãos que se apertam é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo vivido do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada à experiência enquanto a carne nos dá o ser da sensação e carrega a opinião originária 230 distinta do juízo de experiência Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidência ideal17 É um curioso Carnismo que inspira este último avatar da fenomenologia e a precipita no mistério da encarnação é uma noção piedosa e sensual ao mesmo tempo uma mistura de sensualidade e de religião sem a qual a carne talvez não ficaria de pé sozinha ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon A questão de saber se a carne é adequada à arte pode se enunciar assim é ela capaz de carregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensação ou então é ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potências de vida A carne não é a sensação mesmo se ela participa de sua revelação Era precipitado dizer que a sensação encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado superposições do vermelho e do branco ora com tons justapostos justaposição de complementares em proporções desiguais Mas o que constitui a sensação é o deviranimal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado como a presença de um animal descarnado de um fruto descascado Vênus no espelho ou que surge na fusão no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona 17 Desde a Phénoménologie de Yexpérience esthétique PUF 1953 Mikel Dufrenne fazia uma espécie de analítica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensação como relação do corpo e do mundo Permanecia próximo de Erwin Straus Mas há um ser de sensação que se manifestaria na carne Era a via de MerleauPonty no Le visible et Vinvisible Dufrenne fazia muitas reservas a uma tal ontologia da carne Uoeil et 1oreille Ed LHexagone Recentemente Didier Franck retomou o tema de MerleauPonty mostrando a importância decisiva da carne segundo Heidegger e já Husserl Heidegger et le problème de Vespace Chair et corps Ed de Minuit Todo este problema está no centro de uma fenomenologia da arte Talvez o livro ainda inédito de Foucault Les aveux de Ia chair nos informe sobre as origens mais gerais da noção de carne e seu alcance na Patrística 231 de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se não houvesse um segundo elemento para dar consistência à carne A carne é apenas o termômetro de um devir A carne é tenra demais O segundo elemento é menos o osso ou a ossatura que a casa a armadura O corpo desabrocha na casa ou num equivalente numa fonte num bosque Ora o que define a casa são as extensões isto é os pedaços de planos diversamente orientados que dão à carne sua armadura primeiro plano e planodefundo paredes horizontais verticais esquerda direita retos e oblíquos retilíneos ou curvos18 Essas extensões são muros mas também solos portas janelas portasjanelas espelhos que dão precisamente à sensação o poder de manterse sozinha em molduras autônomas São as faces do bloco de sensação E há certamente dois signos do gênio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeito quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junção dos planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura é nula sem trabalho sem pensamento O difícil é juntar não as mãos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contrário escarificálos cortálos Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem freqüentemente A junção dos planos horizontais e verticais em Cézanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusão Não há dois grandes pintores ou mesmo duas grandes obras que operem da mesma maneira Há todavia tendências num pintor em Giacometti por 18 Como mostra Georges DidiHuberman a carne engendra uma dúvida ela é próxima demais do caos donde a necessidade de uma complementariedade entre o encarnado e a extensão tema essencial de La peinture incarnée retomada e desenvolvida em Devant 1image Ed de Minuit 232 exemplo os planos horizontais fugidios diferem à direita e à esquerda e parecem se reunir na coisa a carne da pequena maçã mas como uma pinça que a puxaria para trás e a faria desaparecer se um plano vertical do qual só se vê o fio sem espessura não viesse fixála retêla no último momento darlhe uma existência durável à maneira de um longo alfinete que a atravessa e a torna filiforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela é vida vida não orgânica das coisas De todos os modos possíveis é a junção dos planos de mil orientações que define a casasensação A casa mesma ou seu equivalente é a junção finita dos planos coloridos O terceiro elemento é o universo o cosmos Não é somente a casa aberta que se comunica com a paisagem por uma janela ou um espelho mas a casa mais fechada está aberta sobre um universo A casa de Monet se vê sempre aspirada pelas forças vegetais de um jardim incontrolável cosmo das rosas Um universocosmos não é carne Nem mesmo plano pedaços de planos que se juntam planos diversamente orientados embora a junção de todos os planos até o infinito possa constituílo Mas o universo se apresenta no limite como o fundo da tela o único grande plano o vazio colorido o infinito monocromático A porta janela como em Matisse só se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura não mais é o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa devir É como uma passagem do finito ao infinito mas também do território à desterritorialização É bem o momento do infinito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensão da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia infinita de uma pura cor homogênea viva e saturada em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faço um fundo simples do azul mais rico 233 mais intenso19 É verdade que o fundo monocromático é mais do que um fundo E quando a pintura quer começar do zero construindo o percepto como um mínimo antes do vazio ou aproximando ao máximo do conceito ela procede por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne É notadamente o azul que se encarrega do infinito e que faz do percepto uma sensibilidade cósmica ou o que há de mais conceituai na natureza ou de mais proposicional a cor na ausência do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul ou o negro ou o branco é perfeitamente idêntico no quadro ou de um quadro a outro é a pintura que se torna azul Yves o monocromo segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e não deixa mais nada por fazer ao pintor por excelência20 O vazio colorido ou antes colorante já é força A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna não mais têm necessidade de recorrer a pequenos buquês murais mas apresentam variações sutis imperceptíveis todavia constitutivas de um percepto seja porque são cortados ou con 19 Van Gogh carta a Théo Correspondance complete GallimardGrasset III p 165 Os tons justapostos e sua relação com o fundo são um tema freqüente da correspondência Também Gauguin carta a Schuffenecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz um retrato de mim para Vincent É acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensível por exemplo de tal maneira é abstrato o seu desenho é inteiramente arbitrário abstração completa a cor é uma cor distante da natureza imagine uma vaga lembrança de cerâmica retorcida pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajados pelos clarões de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo se meado de buquês infantis Quarto de moça pura É a idéia do colorista arbitrário segundo Van Gogh 20 Cf Artstudio n 16 Monochromes sobre Klein artigos de Geneviève Monnier e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx 234 tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensão de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intensidade do fundo por vizinhança ou distanciamento seja porque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre tom seja porque são esburacados ou fendidos são problemas de junção ainda mas singularmente ampliados Numa palavra o fundo vibra se enlaça ou se fende porque é portador de forças apenas vislumbradas É o que fazia de início a pintura abstrata convocar as forças povoar o fundo com as forças que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forças invisíveis traçar figuras de aparência geométrica mas que não seriam mais do que forças força de gravitação de peso de rotação de turbilhão de explosão de expansão de germinação força do tempo como se pode dizer da música que ela faz ouvir a força sonora do tempo por exemplo com Messiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a força ilegível do tempo Não é esta a definição do percepto em pessoa tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo e que nos afetam nos fazem devir O que Mondrian obtém por simples diferenças entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensões lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundo das eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do universo que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando à intuição as forças mecânicas constituindo uma poderosa vida nãoorgânica21 O eterno objeto da pintura pintar as forças como Tintoretto Encontraremos também talvez a casa e o corpo É que o fundo infinito é freqüentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou então é o muro da própria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquês de flores para fazer deles o papel mural 21 Worringer Uart gothique Gallimard 235 sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa não nos abriga das forças cósmicas no máximo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algumas vezes em forças benevolentes jamais a pintura fez ver a força de Arquimedes a força do empuxo da água sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nu no banho Mas também as forças mais maléficas podem entrar pela porta entreaberta ou fechada são as forças cósmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos tons justapostos de um rosto esbofeteandoo arranhandoo fundindoo em todos os sentidos e são estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forças escondidas no fundo Bacon Há plena complementariedade enlace de forças como perceptos e de devires como afectos A linha de força abstrata segundo Worringer é rica em motivos animalescos Às forças cósmicas ou cosmogenéticas correspondem deviresanimais vegetais moleculares até que o corpo desapareça no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorça e turbilhone na zona de indiscernibilidade do corpo Numa palavra o ser de sensação não é a carne mas o composto das forças nãohumanas do cosmos dos devires não humanos do homem e da casa ambígua que os troca e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne é somente o revelador que desaparece no que revela o composto de sensações Como toda pintura a pintura abstrata é sensação nada mais que sensação Em Mondrian é o quarto que acede ao ser de sensação dividindo por extensões coloridas o plano vazio infinito que lhe dá de volta um infinito de abertura22 Em Kandinsky as casas são uma das 22 Mondrian Réalité naturelle et réalité abstraite in Seuphor Piet Mondrian sa vie son oeuvre Ed Flammarion sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em quadrados ou retângulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Répertoire III Le carré et son habitant Ed de Minuit p 307309 314315 236 fontes da abstração que consiste menos em figuras geométricas que em trajetos dinâmicos e linhas de errância caminhos que caminham nos arredores Em Kupka é de início sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensões coloridas que produzirão no vazio os planos curvos que o povoam tornandose sensações cosmogenéticas É a sensação espiritual ou já um conceito vivo o quarto a casa o universo A arte abstrata e depois a arte conceituai colocam diretamente a questão que impregna toda pintura sua relação com o conceito sua relação com a função A arte começa talvez com o animal ao menos com o animal que recorta um território e faz uma casa os dois são correlativos ou até mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat Com o sistema territóriocasa muitas funções orgânicas se transformam sexualidade procriação agressividade alimentação mas não é esta transformação que explica a aparição do território e da casa seria antes o inverso o território implica na emergência de qualidades sensíveis puras sensibilia que deixam de ser unicamente funcionais e se tornam traços de expressão tornando possível uma transformação das funções23 Sem dúvida esta expressividade já está difundida na vida e podese dizer que o simples lírio dos campos celebra a glória dos céus Mas é com o território e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as qualidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergência já é arte não somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos 23 Parecenos que é um engano de Lorenz querer explicar o território por uma evolução das funções Uagression Ed Flammarion 237 cantos e nos gritos que marcam o território É um jorro de traços de cores e de sons inseparáveis na medida em que se tornam expressivos conceito filosófico de território O Scenopoietes dentirostris pássaro das florestas chuvosas da Austrália faz cair da árvore as folhas que corta cada manhã viraas para que sua face interna mais pálida contraste com a terra constrói para si assim uma cena como um readymade e canta exatamente em cima sobre um cipó ou um galho um canto complexo composto de suas próprias notas e das de outros pássaros que imita nos intervalos mostrando a raiz amarela das plumas sob seu bico é um artista completo24 Não são as sinestesias em plena carne são estes blocos de sensações no território cores posturas e sons que esboçam uma obra de arte total Estes blocos são ritornelos mas há também ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritornelos Reverências e posições eretas rondas traços de cores O ritornelo inteiro é o ser de sensação Os monumentos são ritornelos Desse ponto de vista a arte não deixará de ser habitada pelo animal A arte de Kafka será a mais profunda meditação sobre o território e a casa o terreiro as posturasretrato a cabeça pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contrário o grande tímido que fura o teto com seu crânio anguloso os sonsmúsica os cães que são músicos por suas próprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual jamais saberemos se canta Gregoire que une seu piado ao violino de sua irmã numa relação complexa quartocasaterritório Eis tudo o que é preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos sob a condição de que tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha de universo ou de 24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds ofParadise and Bowler Birds Weidenfeld 238 desterritorialização Perspectiva de um quarto com seus habitantes Klee Cada território cada habitat junta seus planos ou suas extensões não apenas espaçotemporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e uma cor perceptos e afectos E cada território engloba ou recorta territórios de outras espécies ou intercepta trajetos de animais sem território formando junções interespecíficas É neste sentido que Uexkühl num primeiro aspecto desenvolve uma concepção da Natureza melódica polifônica contrapontual Não apenas o canto de um pássaro tem suas relações de contraponto mas pode fazer contraponto com o canto de outras espécies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um máximo de freqüências A teia de aranha contém um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do molusco se torna quando ele morre o contraponto do Bernardoeremita que faz dela seu próprio habitat graças a sua cauda que não é nadadeira mas preênsil e lhe permite capturar a concha vazia O Carrapato é organicamente construído de modo a encontrar seu contraponto no mamífero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvalho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorrem Não é uma concepção finalista mas melódica em que não mais sabemos o que é arte ou natureza a técnica natural há contraponto toda vez que uma melodia intervém como motivo numa outra melodia como nas bodas entre a mamangava e a bocadeleão Essas relações de contraponto juntam planos formam compostos de sensações blocos e determinam devires Mas não são somente estes compostos melódicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados é preciso também sob um outro aspecto um plano de composição sinfônica infinito da Casa ao universo Da endosensação à exosensação É que o ter 239 ritório não se limita a isolar e juntar ele abre para forças cósmicas que sobem de dentro ou que vêm de fora e torna sensíveis seu efeito sobre o habitante É um plano de composição do carvalho que porta ou comporta a força de desenvolvimento da bolota e a força de formação das gotas ou o do carrapato que tem a força da luz capaz de atrair o animal até a ponta de um galho numa altura suficiente e a força de peso com a qual se deixa cair sobre o mamífero que passa e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamífero não passa25 E ora as forças se fundem umas nas outras em transições sutis decompõem se tão logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixamse selecionar pelo território e são as mais benevolentes que entram na casa Ora lançam um apelo misterioso que arranca o habitante do território e o precipita numa viagem irresistível como os pintassilgos que se reúnem freqüentemente aos milhões ou as lagostas que empreendem uma imensa peregrinação no fundo da água Ora se abatem sobre o território e o invertem malevolentes restaurando o caos de onde ele mal saía Mas sempre se a natureza é como a arte é porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlicb e o Unheimlich o território e a desterritorialização os compostos melódicos finitos e o grande plano de composição infinito o pequeno e o grande ritornelo A arte começa não com a carne mas com a casa é por isso que a arquitetura é a primeira das artes Quando Dubuffet procura delimitar um certo estado bruto de arte é a princípio na direção da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a pintura E limi 25 Cf a obraprima de J von Uexkühl Mondes animaux et monde humain Théorie de Ia signification Ed Gonthier p 137142 o contraponto motivo do desenvolvimento e da morfogênese 240 tandonos à forma a arquitetura mais sábia não deixa de fazer planos extensões e de juntálos É por isso que se pode definila pela moldura um encaixe de molduras diversamente orientadas que se imporiam às outras artes da pintura ao cinema Já se apresentou a préhistória do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral na moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura é o umbigo que liga o quadro ao monumento do qual ele é a redução como a moldura gótica com colunetas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo número de formas enquadrantes que não prejulgam nenhum conteúdo concreto nem função do edifício o muro que isola a janela que capta ou seleciona em conexão com o território o solochão que conjura ou rarifica rarificar o relevo da terra para dar livre curso às trajetórias humanas o teto que envolve a singularidade do lugar o teto em declive coloca o edifício sobre uma colina Encaixar essas molduras ou juntar todos estes planos extensão de muro extensão de janela extensão de solo extensão de declive é todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junções sustentam os compostos de sensações dão consistência às figuras confundemse com seu dar consistência seu próprio tônus Aí estão as faces de um cubo de sensação As molduras ou as extensões não são coordenadas pertencem aos compostos de sensações dos quais constituem as faces as interfaces Mas por mais extensível que seja este sistema é preciso ainda um vasto plano de composição que opere uma espécie de desenquadramento segundo linhas de fuga que só passe pelo território para abrilo sobre o universo que vá da casaterritório à cidadecosmos 26 Henry van de Velde Déblaiement dart Archives darchitecture moderne p 20 241 e que dissolva agora a identidade do lugar na variação da Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores pregueando a linha abstrata do relevo É sobre este plano de composição como sobre um espaço vetorial abstrato que se traçam figuras geométricas cone prisma diedro plano estrito que nada mais são do que forças cósmicas capazes de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo de antes do homem mesmo se é produto do homem27 É preciso agora desarticular os planos para remetêlos a seus intervalos em vez de remetêlos uns aos outros para criar novos afectos28 Ora vimos que a pintura seguia o mesmo movimento A moldura ou a borda do quadro é em primeiro lugar o invólucro externo de uma série de molduras ou de extensões que se juntam operando contrapontos de linhas e de cores determinando compostos de sensações Mas o quadro é atravessado também por uma potência de desen quadramento que o abre para um plano de composição ou um campo de forças infinito Estes procedimentos podem ser muito diversos mesmo no nível da moldura exterior formas irregulares lados que não se juntam molduras pintadas ou pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian tudo o que dá ao quadro o poder de sair da tela Jamais o gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e não começa com ela 27 Sobre todos estes pontos a análise das formas enquadrantes e da cidadecosmos exemplo de Lausanne cf Bernard Cache Uameublement du territoire a sair 28 É Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento para aplicar ao cinema novas relações entre os planos Cahiers du cinema n 284 janeiro de 1978 planos disjuntos triturados ou fragmentados graças aos quais o cinema se torna uma arte depurandose das emoções mais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento estético e produzindolhe afetos novos Le champ aveugle Ed Cahiers du cinema Gallimard sistème des émotions 242 Não parece que a literatura e particularmente o romance estejam numa outra situação O que conta não são as opiniões dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caráter como nos maus romances mas as relações de contraponto nos quais entram e os compostos de sensações que esses personagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em seus devires e suas visões O contraponto não serve para relatar conversas reais ou fictícias mas para fazer mostrar a loucura de qualquer conversa de qualquer diálogo mesmo interior É tudo isso que o romancista deve extrair das percepções afecções e opiniões de seus modelos psicossociais que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida E isso implica num vasto plano de composição não preconcebido abstratamente mas que se constrói à medida que a obra avança abrindo misturando desfazendo e refazendo compostos cada vez mais ilimitados segundo a penetração de forças cósmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistência dos componentes contrapontuais polifônicos e plurivocais com um plano de composição arquitetônico ou sinfônico29 Um romancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita do contraponto nos compostos que forma entre personagens atualidades biografias olhos de câmera ao mesmo tempo que um plano de composição se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade cosmos E se retornamos a Proust é porque mais do que qualquer outro ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem embora presentes um no outro o plano de composição aparece pouco a pouco para a vida para a morte compostos de sensação que ele edifica no curso do tempo perdido até aparecer em si mesmo com o tempo reencontrado a força ou antes as 29 Bakhtin Estbétique et tbéorie du roman Gallimard 243 forças do tempo puro tornadas sensíveis Tudo começa pelas Casas que devem todas juntar suas dimensões e dar consistência a compostos Combray o palacete de Guermantes o salão Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetário já está lá visível ao telescópio arruinandoas ou transformandoas e absorvendoas no infinito do fundo Tudo começa por ritornelos cada um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil não se compõe apenas em si mesmo mas com outras sensações variáveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne e tudo termina no infinito no grade Ritornelo a frase do séptuor em perpétua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz um ser de sensação que não deixa de se conservar mas fugindo sobre um plano de composição do Ser seres de fuga EXEMPLO XII Não parece que a música esteja numa outra situação talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizse todavia que o som não tem moldura Mas os compostos de sensações os blocos sonoros tampouco têm extensões ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples são a ária melódica que é um ritornelo monofônico o motivo que já é polifônico um elemento de uma melodia interveniente no desenvolvimento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificações harmônicas através das linhas melódicas Essas três formas elementares constróem a casa sonora e seu território Elas correspondem às três modalidades de um ser de sensação pois a ária é uma vibração o motivo é um enlace um acoplamen 244 to enquanto o tema não fecha sem se descerrar fender e também abrir Com efeito o fenômeno musical mais importante que aparece à medida que os compostos de sensações sonoras se tornam mais complexos é que sua clausura ou fechamento por junção de suas molduras de suas extensões se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composição cada vez mais ilimitado Os seres de música são como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulação repetição transposição justaposição Se consideramos a sonata encontramos aí uma forma enquadrante particularmente rígida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensões exposição do primeiro tema transição exposição do segundo tema desenvolvimentos sobre o primeiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulação etc É toda uma casa com seus aposentos Mas é antes o primeiro movimento que forma assim uma célula e é raro que um grande músico siga a forma canônica os outros movimentos podem abrirse notadamente o segundo pelo tema e variação até que Liszt assegure uma fusão dos movimentos no poema sinfônico A sonata aparece então antes como uma formacruzamento em que da junção das dimensões musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composição Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variação que mantém a moldura harmônica do tema dá lugar a uma espécie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composição Chopin Schumann Liszt é um novo momento essencial porque o trabalho criador não mais versa sobre os componentes sonoros motivos e temas abrindo um plano 245 mas ao contrário versa diretamente sobre o próprio plano de composição para fazer nascer dele compostos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequilíbrio permanente É a cor do som que conta cada vez mais Passase da Casa ao Cosmos segundo uma fórmula que a obra de Stockhausen retomará O trabalho do plano de composição se desenvolve em duas direções que engendrarão uma desagregação da moldura tonai os imensos fundos da variação contínua que fazem enlaçar e se unir as forças tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forças agenciando suas passagens reversíveis em Debussy UniversoWagner universo Debussy Todas as árias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquadrados infantis domésticos profissionais nacionais territoriais são carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra o desterritorializado que se eleva com Mahler Berg ou Bartók E sem dúvida o plano de composição engendra sempre novas clausuras como na série Mas sempre o gesto do músico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retomar o plano de composição segundo a fórmula que obceca Boulez traçar uma transversal irredutível à vertical harmônica como à horizontal melódica que conduz blocos sonoros à individualização variável mas também abrilas ou fendêlas num espaçotempo que determina sua densidade e seu percurso sobre o plano30 O grande ritornelo se eleva à medida que nos afastamos da casa mes 30 Boulez notadamente Points de repère Ed BourgoisLe Seuil p 159 e segs Pensez Ia musique aujourdhui Ed Gonthier p 5962 A extensão da série em durações intensidades e timbres não é um ato de clausura mas ao contrário uma abertura do que se fechava na série das alturas 246 mo se é para retornar a ela já que ninguém mais nos reconhecerá quando retornarmos Composição composição eis a única definição da arte A composição é estética e o que não é composto não é uma obra de arte Não confundiremos todavia a composição técnica trabalho do material que faz freqüentemente intervir a ciência matemática física química anatomia e a composição estética que é o trabalho da sensação Só este último merece plenamente o nome de composição e nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica Certamente a técnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura não apenas a tela em pintura mas sua preparação os pigmentos suas misturas os métodos de perspectiva ou então os doze sons da música ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relação entre os dois planos o plano de composição técnica e o plano de composição estética não cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponíveis na pintura a óleo num primeiro caso o quadro é preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho esboço enfim se põe a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisão e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correções substituindo o esboço o pintor pintará sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordância dos análogos Van Gogh é por e na cor que se encontrará a arquitetura mesmo se é preciso renunciar aos relevos para reconstituir grandes unidades colorantes E verdade que Xavier de Langlais vê em todo este segundo caso uma longa decadência que cai no efêmero e não chega a restaurar uma ar 247 quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem dúvida esta observação coloca ao menos negativamente a questão do progresso na arte já que Langlais considera que a decadência começa já depois de Van Eyck um pouco como alguns param a música no canto gregoriano ou a filosofia em Santo Tomás Mas é uma observação técnica que concerne somente ao material além de que a duração do material é muito relativa a sensação é de uma outra ordem e possui uma existência em si enquanto o material dura A relação da sensação com o material deve pois ser avaliada nos limites da duração do material qualquer que ela seja Se há progressão em arte é porque a arte só pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retornos linhas de partilha mudanças de níveis e de escalas Deste ponto de vista a distinção de dois estados da pintura a óleo toma um aspecto inteiramente diferente estético e não mais técnico esta distinção não conduz evidentemente ao representativo ou não já que nenhuma arte nenhuma sensação jamais foram representativas No primeiro caso a sensação se realiza no material e não existe fora desta realização Diríamos que a sensação o composto de sensações se projeta sobre o plano de composição técnica bem preparado de sorte que o plano de composição estética venha recobrilo É preciso pois que o material compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graças aos quais a sensação projetada não se realiza somente cobrindo o quadro mas segundo uma profundidade A arte desfruta então de uma aparência de transcendência que se exprime não numa coisa por representar mas no caráter paradigmático da projeção e no caráter simbólico da perspectiva A Figura é como a fabulação segundo Bergson tem 31 Xavier de Langlais La technique de Ia peinture à lhuile Ed Flammarion E Goethe Traité des couleurs Ed Tríades 902909 248 uma origem religiosa Mas quando ela se torna estética sua transcendência sensitiva entra numa oposição surda ou aberta com a transcendência suprasensível das religiões No segundo caso não é mais a sensação que se realiza no material é antes o material que entra na sensação Certamente a sensação não existe mais fora dessa entrada e o plano de composição técnica não mais tem autonomia a não ser no primeiro caso não vale jamais por si mesmo Mas diríamos agora que ele sobe no plano de composição estética e lhe dá uma espessura própria como diz Damisch independente de qualquer perspectiva e profundidade É o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transcendência aparente ou de um modelo paradigmático e confessam seu ateísmo inocente seu paganismo E sem dúvida entre estes dois casos estes dois estados da sensação estes dois pólos da técnica as transições as combinações e as coexistências se fazem constantemente por exemplo o trabalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens são pólos abstratos ao invés de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com óleo e solvente se volta cada vez mais na direção do segundo pólo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composição estética É por isso que é tão falso definir a sensação na pintura moderna pela admissão de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a espessura não precisa ser larga ou profunda Pôdese dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfície bastalhe apoiarse sobre os vazios e os plenos do papel Canson É uma pintura que não mais tem fundo porque o baixo emerge a superfície é esburacável ou o plano de composição ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspectiva independentemente das sombras e mesmo da ordem 249 cromática da cor o colorista arbitrário Não mais se recobre fazse subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar É uma promoção do solo e a escultura pode tornarse plana já que o plano se estratifica Não mais se pinta sobre mas sob A arte informal levou muito longe estas novas potências da textura essa elevação do solo com Dubuffet e também o expressionismo abstrato a arte minimalista procedendo por impregnações fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atrás de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem à vista do pintor o que entregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes çstados a pintura é pensamento a visão existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdadeiro conceito mostrando que o trançado poderia bem preencher para a pintura futura função análoga àquela que foi a da perspectiva O que não é próprio da pintura já que Damisch reencontra a mesma distinção no nível do plano arquitetural quando Scarpa por exemplo rejeita o movimento da projeção e os mecanismos da perspectiva para inscrever os volumes na espessura do próprio plano33 E da literatura à música uma espessura material se afirma que 32 Cf Christian Bonnefoi interviewé et commenté par YvesAlain Bois Macula 56 33 Damisch Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de Ia peinture Ed du Seuil pp 275305 e p 80 a espessura do plano em Pollock Da misch é o autor que mais insistiu sobre a relação artepensamento pin tura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instaurála Mallarmé fazia da espessura do livro uma dimensão distinta da pro fundidade cf Jacques Schérer Le livre de Mallarmé Gallimard p 55 tema que Boulez retoma por sua vez para a música Points de repère p 161 250 não se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal É um traço característico da literatura moderna quando as palavras e a sintaxe sobem no plano de composição e o cavam em lugar de colocálo em perspectiva E a música quando renuncia à projeção como às perspectivas que impõem a altura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano sonoro uma espessura singular da qual testemunham elementos muito diferentes a evolução dos estudos para piano que deixam de ser somente técnicas para tornarse estudos de composição com a extensão que lhes dá Debussy a importância decisiva que toma a orquestração em Berlioz a subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferação dos afectos de percussão com os metais as peles e as madeiras e sua ligação com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparáveis do material Varèse a redefinição do percepto em função do ruído do som bruto e complexo Cage não apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendência a uma aparição nãocromática do som num continuum infinito música eletrônica ou eletro acústica Só há um plano único no sentido em que a arte não comporta outro plano diferente do da composição estética o plano técnico com efeito é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição estética É sob esta condição que a matéria se torna expressiva o composto de sensações se realiza no material ou o material entra no composto mas sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético Há muitos problemas técnicos em arte e a ciência pode intervir em sua solução mas eles só se colocam em função de problemas de composição estética que concernem aos compostos de sensações e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus materiais Toda sensação é uma questão mesmo se só o silêncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em en 251 contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plano estender sob tal monumento e os dois ao mesmo tempo assim em Klee o movimento no limite da terra fértil e o monumento em terra fértil Não há tantos planos diferentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte à outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou então entrar em relações de captura e formar constelações de universo independentemente de qualquer derivação mas também dispersarse em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob distâncias qualitativas que não são mais de espaço e de tempo É sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser único ao mesmo tempo que os universos são múltiplos irredutíveis Tudo se passa inclusive a técnica entre os compostos de sensações e o plano de composição estética Ora este não vem antes não sendo voluntário ou preconcebido não tendo nada a ver com um programa mas também não vem depois embora sua tomada de consciência se faça progressivamente e surja freqüentemente depois A cidade não vem depois da casa nem o cosmos depois do território O universo não vem depois da figura e a figura é aptidão de universo Chegamos da sensação composta ao plano de composição mas para reconhecer sua estrita coexistência ou sua complementariedade um só progredindo através do outro A sensação composta feita de perceptos e de afectos desterritorializa o sistema da opinião que reunia as percepções e afecções dominantes num meio natural histórico e social Mas a sensação composta se reterritorializa sobre o plano de composição porque ela ergue suas casas sobre ele porque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extensões articuladas que limitam seus componentes paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afectos E ao mesmo tempo o plano de composição arrasta a 252 sensação numa desterritorialização superior fazendoa passar por uma espécie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma sensação sobre o plano não ocupa um lugar sem estendêlo distendêlo pela Terra inteira e liberar todas as sensações que ela contém abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja próprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito O que define o pensamento as três grandes formas do pensamento a arte a ciência e a filosofia é sempre enfrentar o caos traçar um plano esboçar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dandolhe consistência ela traça um plano de imanência que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a ação de personagens conceituais A ciência ao contrário renuncia ao infinito para ganhar a referência ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funções ou proposições referenciais sob a ação de observadores parciais A arte quer criar um finito que restitua o infinito traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas sob a ação de figuras estéticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente não é uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parecenos que as manchas castanhas que dançam na margem e atravessam a tela são a passagem infinita do caos o formigar de pontos sobre a tela dividida por bastonetes é a sensação composta finita mas se abre sobre o plano de composição que nos devolve o infinito Isso não implica contudo que a arte seja como uma síntese da ciência e da filosofia da via finita e da via infinita As três vias são específicas tão diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar é pensar por conceitos ou então por funções ou ainda por sensações 253 e um desses pensamentos não é melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamente pensado As molduras da arte não são coordenadas científicas como as sensações não são conceitos ou o inverso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da filosofia são a arte abstrata e a arte conceituai mas não substituem o conceito pela sensação criam sensações e não conceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensação desmaterializála estendendo um plano de composição arquitetônico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma matéria radiante pensante e pensada não mais uma sensação do mar ou da árvore mas uma sensação do conceito de mar ou do conceito de árvore A arte conceituai procura uma desmaterialização oposta por generalização instaurando um plano de composição suficientemente neutralizado o catálogo que reúne obras não mostradas o solo recoberto por seu próprio mapa os espaços abandonados sem arquitetura o plano flatbed para que tudo tome aí um valor de sensação reprodutível até o infinito as coisas as imagens ou clichês as proposições uma coisa sua fotografia na mesma escala e no mesmo lugar sua definição tirada do dicionário Não é certo porém que se atinja assim neste último caso a sensação nem o conceito porque o plano de composição tende a se fazer informativo e a sensação depende da simples opinião de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou não isto é decidir se é arte ou não Tanto esforço para reencontrar no infinito as percepções e afecções ordinárias e conduzir o conceito a uma doxa do corpo social ou da grande metrópole americana Os três pensamentos se cruzam se entrelaçam mas sem síntese nem identificação A filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensações a ciência constrói estados de coisas com suas fun 254 ções Um rico tecido de correspondências pode estabelecerse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminantes onde a sensação se torna ela própria sensação de conceito ou de função o conceito conceito de função ou de sensação a função função de sensação ou de conceito E um dos elementos não aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos que restam por criar sobre outros planos o pensamento como heterogênese É verdade que estes pontos culminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirnos à opinião da qual queríamos sair ou nos precipitar no caos que queríamos enfrentar 255 Conclusão Do Caos ao Cérebro Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos Nada é mais doloroso mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo idéias que fogem que desaparecem apenas esboçadas já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras que também não dominamos São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem São velocidades infinitas que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem sem natureza nem pensamento É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo Recebemos chicotadas que latem como artérias Perdemos sem cessar nossas idéias E por isso que queremos tanto agarrarmonos a opiniões prontas Pedimos somente que nossas idéias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes e a associação de idéias jamais teve outro sentido fornecernos regras protetoras semelhança contigüidade causalidade que nos permitem colocar um pouco de ordem nas idéias passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo impedindo nossa fantasia o delírio a loucura de percorrer o universo no instante para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo Mas não haveria nem um pouco de ordem nas idéias se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas como um anticaos objetivo Se o cinábrio fosse ora vermelho ora preto ora leve ora pesado minha imaginação não encontraria a ocasião para receber no pensamento o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha1 E enfim para que haja acordo entre coisas e pensamento é preciso que a sensação se reproduza como a garantia ou o testemunho de seu acordo a sensação de pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão a de vermelho cada vez que o vemos com nossos ór 1 Kant Crítica da Razão Fura Analítica Da síntese da reprodução na imaginação 259 gãos do corpo que não percebem o presente sem lhe impor uma conformidade com o passado É tudo isso que pedimos para formar uma opinião como uma espécie de guardasol que nos protege do caos Nossas opiniões são feitas de tudo isso Mas a arte a ciência a filosofia exigem mais traçam planos sobre o caos Essas três disciplinas não são como as religiões que invocam dinastias de deuses ou a epifania de um deus único para pintar sobre o guardasol um firmamento como as figuras de uma Urdoxa de onde derivariam nossas opiniões A filosofia a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos Só o venceremos a este preço Atravessei três vezes o Aqueronte como vencedor O filósofo o cientista o artista parecem retornar do país dos mortos O que o filósofo traz do caos são variações que permanecem infinitas mas tornadas inseparáveis sobre superfícies ou em volumes absolutos que traçam um plano de imanência secante não mais são associações de idéias distintas mas re encadeamentos por zona de indistinção num conceito O cientista traz do caos variáveis tornadas independentes por desaceleração isto é por eliminação de outras variabilidades quaisquer suscetíveis de interferir de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função não mais são liames de propriedades nas coisas mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global O artista traz do caos variedades que não constituem mais uma reprodução do sensível no órgão mas erigem um ser do sensível um ser da sensação sobre um plano de composição anorgânica capaz de restituir o infinito A luta com o caos que Cézanne e Klee mostraram em ato na pintura no coração da pintura se encontra de uma outra maneira na ciência na filosofia tratase sempre de vencer o caos por um plano secante que o atravessa O pintor passa por uma ca 260 tástrofe ou por um incêndio e deixa sobre a tela o traço dessa passagem como do salto que o conduz do caos à composição2 As próprias equações matemáticas não desfrutam de uma tranqüila certeza que seria como a sanção de uma opinião científica dominante mas saem de um abismo que faz que o matemático salte de pés juntos sobre os cálculos que preveja que não pode efetuálos e não chega à verdade sem se chocar de um lado e do outro3 E o pensamento filosófico não reúne seus conceitos na amizade sem ser ainda atravessado por uma fissura que os reconduz ao ódio ou os dispersa no caos coexistente onde é preciso retomálos pesquisálos dar um salto É como se se jogasse uma rede mas o pescador arriscase sempre a ser arrastado e de se encontrar em pleno mar quando acreditava chegar ao porto As três disciplinas procedem por crises ou abalos de maneira diferente e é a sucessão que permite falar de progresso em cada caso Diríamos que a luta contra o caos implica em afinidade com o inimigo porque uma outra luta se desenvolve e toma mais importância contra a opinião que no entanto pretendia nos proteger do próprio caos Num texto violentamente poético Lawrence descreve o que a poesia faz os homens não deixam de fabricar um guardasol que os abriga por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções suas opiniões mas o poeta o artista abre uma fenda no guardasol rasga até o firmamento para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca uma visão que aparece através da fenda primavera de Wordsworth ou maçã 2 Sobre Cézanne e o caos cf Gasquet in Conversations avec Cézanne sobre Klee e o caos cf a note sur le point gris in Théorie de lart moderne Ed Gonthier E as análises de Henri Maldiney Regard Parole Espace Ed LAge dhomme p 150151 183185 3 Galois in Dalmas Evariste Galois p 121 130 261 de Cézanne silhueta de Macbeth ou de Ahab Então segue a massa dos imitadores que remendam o guardasol com uma peça que parece vagamente com a visão e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões comunicação Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas operar as necessárias destruições talvez cada vez maiores e restituir assim a seus predecessores a incomunicável novidade que não mais se podia ver Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos que ele invoca em todos os seus votos de uma certa maneira que contra os clichês da opinião4 O pintor não pinta sobre uma tela virgem nem o escritor escreve sobre uma página branca mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes preestabelecidos que é preciso de início apagar limpar laminar mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar saída do caos que nos traga a visão Quando Fontana corta a tela colorida com um traço de navalha não é a cor que ele fende dessa maneira pelo contrário ele nos faz ver o fundo de cor pura através da fenda A arte luta efetivamente com o caos mas para fazer surgir nela uma visão que o ilumina por um instante uma Sensação Mesmo as casas é do caos que saem as casas embriagadas de Soutine chocandose de um lado e do outro impedindose reciprocamente de nele recair e a casa de Monet surge como uma fenda através da qual o caos se torna a visão das rosas Mesmo o encarnado mais delicado se abre para o caos como a carne sobre o esfolado5 Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião a arte não é mais feita de caos do que de opinião mas se ela se bate 4 Lawrence Le chãos en poésie in Lawrence Cahiers de lHerne p 189191 5 DidiHuberman La peinture incarnée p 120123 sobre a carne e o caos 262 contra o caos é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião para melhor vencêla com armas provadas É mesmo porque o quadro está desde início recoberto por clichês que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião qualquer clichê por quanto tempo A arte não é o caos mas uma composição do caos que dá a visão ou sensação de modo que constitui um caosmos como diz Joyce um caos composto não previsto nem preconcebido A arte transforma a variabilidade caótica em variedade caóide por exemplo o flamejamento cinza negro e verde de El Greco o flamejamento de ouro de Turner ou o flamejamento vermelho de Staél A arte luta com o caos mas para tornálo sensível mesmo através do personagem mais encantador a paisagem mais encantada Watteau Um movimento semelhante sinuoso e reptiliano anima talvez a ciência Uma luta contra o caos parece pertencerlhe por essência quando faz entrar a variabilidade desacelerada sob constantes ou limites quando a reconduz dessa maneira a centros de equilíbrio quando a submete a uma seleção que só retém um pequeno número de variáveis independentes nos eixos de coordenadas quando instaura entre essas variáveis relações cujo estado futuro pode ser determinado a partir do presente cálculo determinista ou ao contrário quando faz intervir tantas variáveis ao mesmo tempo que o estado de coisas é apenas estatístico cálculo de probabilidades Podese falar nesse sentido de uma opinião propriamente científica conquistada sobre o caos como de uma comunicação definida ora por informações iniciais ora por informações de grande escala e que vai no mais das vezes do elementar ao composto seja do presente ao futuro seja do molecular ao molar Mas ainda aí a ciência não pode impedirse de experimentar uma profunda atração pelo caos que combate Se a desaceleração é a fina borda que nos 263 separa do caos oceânico a ciência se aproxima tanto quanto ela pode das vagas mais próximas estabelecendo relações que se conservam com a aparição e a desaparição das variáveis cálculo diferencial a diferença se faz cada vez menor entre o estado caótico em que a aparição e a desaparição de uma variabilidade se confundem e o estado semicaótico que apresenta uma relação como limite das variáveis que aparecem ou desaparecem Como diz Michel Serres a propósito de Leibniz haveria dois infra conscientes o mais profundo seria estruturado como um conjunto qualquer pura multiplicidade ou possibilidade em geral mistura aleatória de signos o menos profundo seria recoberto de esquemas combinatórios desta multiplicidade6 Poderíamos conceber uma série de coordenadas ou de espaços de fases como uma sucessão de crivos dos quais o precedente sempre seria relativamente um estado caótico e o seguinte um estado caóide de modo que passaríamos por limiares caóticos ao invés de ir do elementar ao composto A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade com unificar suas leis e hoje ainda procuraria uma comunidade das quatro forças Mais obstinado porém o sonho de captar um pedaço de caos mesmo se as mais diversas forças nele se agitam A ciência daria toda a unidade racional à qual aspira por um pedacinho de caos que pudesse explorar A arte capta um pedaço de caos numa moldura para formar um caos composto que se torna sensível ou do qual retira uma sensação caóide enquanto variedade mas a ciência o apreende num sistema de coordenadas e forma um caos referido que se torna Natureza e com o qual produz uma função aleatória e variáveis caóides É desse modo que um dos aspectos mais importantes da física matemática moder 6 Serres Le système de Leibniz PUF I p 111 e sobre a sucessão dos crivos p 120123 264 na aparece em transições na direção do caos sob a ação de atratores estranhos ou caóticos duas trajetórias vizinhas num sistema determinado de coordenadas não permanecem vizinhas e divergem de maneira exponencial antes de se aproximarem por operações de estiramento e de redobramento que se repetem e recortam o caos7 Se os atratores de equilíbrio pontos fixos ciclos limites toros exprimem bem a luta da ciência com o caos os atratores estranhos desmascaram sua profunda atração pelo caos assim como a constituição de um caosmos interior à ciência moderna tudo coisas que se revelavam de uma maneira ou de outra em períodos precedentes notadamente na fascinação pelas turbulências Encontramos pois uma conclusão análoga àquela a que nos conduzia a arte a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a opinião pois é da opinião que vem a desgraça dos homens A ciência voltase contra a opinião que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de unificação Mas assim ela se volta em si mesma contra a opinião propriamente científica enquanto Urdoxa que consiste ora na previsão determinista o Deus de Laplace ora na avaliação probabilística o demônio de Maxwell desligandose das informações iniciais e das informações de grande escala a ciência substitui a comunicação pelas condições de criatividade definidas pelos efeitos singulares de flutuações mínimas O que é criação são as variedades estéticas ou as variáveis científicas que surgem sobre um plano capaz de recortar a variabilidade caótica Quanto às pseudociências que pretendem considerar os fenômenos de opinião os cérebros artificiais de que se servem tomam como modelos processos probabilísticos atratores estáveis toda uma lógica da 7 Sobre os atratores estranhos as variáveis independentes e as rotas na direção do caos Prigogine e Stengers Entre le temps et 1éternité Ed Fayard cap IV E Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel 265 recognição das formas mas devem atingir estados caóides e atratores caóticos para compreender ao mesmo tempo a luta do pensamento contra a opinião e a degenerescência do pensamento na própria opinião uma das vias de evolução dos computadores vai no sentido de uma aceitação de um sistema caótico ou caotizante É o que confirma o terceiro caso não mais a variedade sensível nem a variável funcional mas a variação conceituai tal como aparece na filosofia A filosofia também luta com o caos como abismo indiferenciado ou oceano da dissemelhança Não concluiremos disso que a filosofia se coloca do lado da opinião nem que a opinião passa a ter lugar na filosofia Um conceito não é um conjunto de idéias associadas como uma opinião Nem tampouco uma ordem de razões uma série de razões ordenadas que poderiam a rigor constituir uma espécie de Urdoxa racionalizada Para atingir o conceito não basta mesmo que os fenômenos se submetam a princípios análogos àqueles que associam as idéias ou as coisas aos princípios que ordenam as razões Como diz Michaux o que basta para as idéias correntes não basta para as idéias vitais as que se deve criar As idéias só são associáveis como imagens e ordenáveis como abstrações para atingir o conceito é preciso que ultrapassemos umas e outras e que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais determináveis como seres reais É já o que mostravam Espinosa ou Fichte devemos nos servir de ficções e de abstrações mas somente na medida necessária para aceder a um plano onde caminharíamos de ser real em ser real e procederíamos por construção de conceitos8 Vimos como este resultado podia ser obtido na medida em que variações se tornavam inseparáveis segundo zonas de vizinhança ou de 8 Cf Guéroult Uévolution et Ia structure de Ia Doctrine de Ia science chez Fichte Ed Les Belles Lettres I p 174 266 indiscernibilidade elas deixam então de ser associáveis segundo os caprichos da imaginação ou discerníveis e ordenáveis segundo as exigências da razão para formar verdadeiros blocos conceituais Um conceito é um conjunto de variações inseparáveis que se produz ou se constrói sobre um plano de imanência na medida em que este recorta a variabilidade caótica e lhe dá consistência realidade Um conceito é pois um estado caóide por excelência remete a um caos tornado consistente tornado Pensamento caosmos mental E que seria pensar se não se comparasse sem cessar com o caos A Razão só nos oferece seu verdadeiro rosto quando ruge na sua cratera Mesmo o cogito só é uma opinião no máximo uma Urdoxa enquanto não se extrai dele as variações inseparáveis que dele fazem um conceito enquanto se renuncia a encontrar nele um guardasol ou um abrigo quanto se deixa de supor uma imanência que se faria por ele mesmo ao contrário é preciso colocálo sobre um plano de imanência ao qual pertence e que o conduz ao pleno mar Numa palavra o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta são as Caóides a arte a ciência e a filosofia como formas do pensamento ou da criação Chamamse de caóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos A junção não a unidade dos três planos é o cérebro Certamente quando o cérebro é considerado como uma função determinada aparece ao mesmo tempo como um conjunto complexo de conexões horizontais e de integrações verticais reagindo umas sobre as outras como testemunham os mapas cerebrais Então a questão é dupla as conexões são preestabelecidas guiadas como por trilhos ou fazemse e desfazemse em campos de forças E os processos de integração são centros hierárquicos localizados ou antes formas Gestalten que atingem suas condições de estabilidade num campo do qual depende a posição do próprio centro A importância da Gestalttheorie deste ponto de vista concerne 267 tanto à teoria do cérebro quanto à concepção da percepção já que ela se opõe diretamente ao estatuto do córtex tal como aparecia do ponto de vista dos reflexos condicionados Mas quaisquer que sejam os pontos de vista considerados não se tem dificuldade em mostrar que caminhos inteiramente prontos ou em vias de se fazer centros mecânicos ou dinâmicos encontram dificuldades semelhantes Caminhos inteiramente prontos que se segue aos poucos implicam num traçado prévio mas trajetos que se constituem num campo de forças procedem por resoluções de tensão agindo também gradativamente por exemplo a tensão de reaproximação entre a fóvea e o ponto luminoso projetado sobre a retina tendo esta uma estrutura análoga a uma área cortical os dois esquemas supõem um plano não um fim ou um programa mas um sobrevôo do campo inteiro É isso que a Gestalttheorie não explica do mesmo modo que o mecanicismo não explica a prémontagem Não é de se surpreender que o cérebro tratado como objeto constituído da ciência só possa ser um órgão de formação e de comunicação da opinião é que as conexões graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo estreito da recognição gnosias e praxias é um cubo é um lápis e que a biologia do cérebro se alinha aqui com os mesmos postulados da lógica mais obstinada As opiniões são formas pregnantes como as bolhas de sabão segundo a Gestalt levando em conta os meios os interesses as crenças e os obstáculos Parece então difícil tratar a filosofia a arte e mesmo a ciência como objetos mentais simples conjuntos de neurônios no cérebro objetivado já que o modelo derrisório da recognição os encerra na doxa Se os objetos mentais da filosofia da arte e da ciência isto é as idéias vitais tivessem um lugar seria no mais profundo das fendas sinápticas nos hiatos nos intervalos e nos entretempos de um cérebro inobjetivável onde penetrar para procurá 268 los seria criar Seria um pouco como no ajuste de uma tela de televisão cujas intensidades fariam surgir o que escapa do poder de definição objetivo9 Significa dizer que o pensamento mesmo sob a forma que toma ativamente na ciência não depende de um cérebro feito de conexões e de integrações orgânicas segundo a fenomenologia dependeria de relações do homem com o mundo com as quais o cérebro concorda necessariamente porque delas deriva como as excitações derivam do mundo e das reações do homem inclusive em suas incertezas e suas falências O homem pensa e não o cérebro mas esta reação da fenomenologia que ultrapassa o cérebro na direção de um Ser no mundo através de uma dupla crítica do mecanicismo e do dinamismo não nos faz absolutamente sair ainda da esfera das opiniões conduznos somente a uma Urdoxa afirmada como opinião originária ou sentido dos sentidos10 A viragem não estaria em outra parte lá onde o cérebro é sujeito se torna sujeito É o cérebro que pensa e não o homem o homem sendo apenas uma cristalização cerebral Podese falar do cérebro como Cézanne da paisagem o homem ausente mas inteiro no cérebro A filosofia a arte a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado mas os três aspectos sob os quais o cérebro se torna sujeito Pensamentocérebro os três planos as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta Quais são os caráteres deste cérebro que não mais se define pelas conexões e integrações secundárias Não é um cérebro por trás do cérebro mas a princípio um estado de sobrevôo sem distância ao rés do chão auto sobrevôo do qual não escapa nenhum abismo nenhuma dobra nem hiato É uma forma verdadeira primária como a definia Ruyer não uma Gestalt nem uma for 9 JeanClet Martin Variation a sair 10 Erwin Straus Du sens des sens Ed Millon Parte III 269 ma percebida mas uma forma em si que não remete a nenhum ponto de vista exterior como a retina ou a área estriada do córtex não remete a uma outra uma forma consistente absoluta que se sobrevoa independentemente de qualquer dimensão suplementar que não apela pois a nenhuma transcendência que só tem um único lado qualquer que seja o número de suas dimensões que permanece copresente a todas as suas determinações sem proximidade ou distanciamento que as percorre numa velocidade infinita sem velocidadelimite e que faz delas variações inseparáveis às quais confere uma equipotencialidade sem confusão11 Vimos que tal era o estatuto do conceito como acontecimento puro ou realidade do virtual E sem dúvida os conceitos não se reduzem a um único e mesmo cérebro já que é cada um deles que constitui um domínio de sobrevôo e as passagens de um conceito a um outro permanecem irredutíveis enquanto um novo conceito não tornar necessário por sua vez sua copresença ou a equipotencialidade das determinações Não diremos também que todo conceito é um cérebro Mas o cérebro sob este primeiro aspecto da forma absoluta aparece bem como a faculdade dos conceitos isto é como a faculdade da sua criação ao mesmo tempo que estende o plano de imanência sobre o qual os conceitos se alocam se deslocam mudam de ordem e de relações se renovam e não param de criarse O cérebro é o espírito mesmo É ao mesmo tempo que o cérebro se torna sujeito ou antes superjecto segundo o termo de White head que o conceito se torna o objeto como criado o acontecimento ou a criação mesma e a filosofia o plano de imanência que carrega os conceitos e que traça o cérebro Assim os movimentos cerebrais engendram personagens conceituais 11 Ruyer Néofinalisme PUF cap V1IX Em toda sua obra Ruyer conduziu uma dupla crítica do mecanicismo e do dinamismo Gestalt diferente daquela da fenomenologia 270 É o cérebro que diz Eu mas Eu é um outro Não é o mesmo cérebro que o das conexões e integrações segundas embora não haja transcendência E este Eu não é apenas o eu concebo do cérebro como filosofia é também o eu sinto do cérebro como arte A sensação não é menos cérebro que o conceito Se consideramos as conexões nervosas excitaçãoreação e as integrações cerebrais percepçãoação não nos perguntaremos em que momento do caminho nem em que nível aparece a sensação pois ela é suposta e se mantém na retaguarda A retaguarda não é o contrário do sobrevôo mas um correlato A sensação é a excitação mesma não enquanto se prolonga gradativamente e passa à reação mas enquanto se conserva ou conserva suas vibrações A sensação contrai as vibrações do excitante sobre uma superfície nervosa ou num volume cerebral a precedente não desapareceu ainda quando a seguinte aparece É sua maneira de responder ao caos A sensação vibra ela mesma porque contrai vibrações Conservase a si mesma porque conserva vibrações ela é Monumento Ela ressoa porque faz res soar seus harmônicos A sensação é a vibração contraída tornada qualidade variedade É por isso que o cérebrosujeito aqui é dito alma ou força já que só a alma conserva contraindo o que a matéria dissipa ou irradia faz avançar reflete refracta ou converte Assim procuramos em vão a sensação enquanto nos limitamos às reações e às excitações que elas prolongam às ações e às percepções que elas refletem é que a alma ou antes a força como dizia Leibniz nada faz ou não age mas é apenas presente conserva a contração não é uma ação mas uma paixão pura uma contemplação que conserva o precedente no seguinte12 A sensação está pois sobre um outro plano diferente daquele dos meca 12 Hume no Tratado da Natureza Humana define a imaginação por esta contemplaçãocontração passiva Parte III seção 14 271 nismos dos dinamismos e das finalidades é um plano de composição em que a sensação se forma contraindo o que a compõe e compondose com outras sensações que ela contrai por sua vez A sensação é contemplação pura pois é pela contemplação que se contrai contemplandose a si mesma à medida que se contempla os elementos de que se procede Contemplar é criar mistério da criação passiva sensação A sensação preenche o plano de composição e preenche a si mesma preenchendose com aquilo que ela contempla ela é enjoyment e selfenjoyntent É um sujeito ou antes um injecto Plotino podia definir todas as coisas como contemplações não apenas os homens e os animais mas as plantas a terra e as rochas Não são Idéias que contemplamos pelo conceito mas os elementos da matéria por sensação A planta contempla contraindo os elementos dos quais ela procede a luz o carbono e os sais e se preenche a si mesma com cores e odores que qualificam sempre sua variedade sua composição é sensação em si13 Como se as flores sentissem a si mesmas sentindo o que as compõe tentativas de visão ou de olfato primeiros antes de serem percebidas ou mesmo sentidas por um agente nervoso e cerebrado As rochas e as plantas certamente não têm sistema nervoso Mas se as conexões nervosas e as integrações cerebrais supõem uma forçacérebro como faculdade de sentir coexistente aos tecidos é verossímil supor também uma faculdade de sentir que coexiste com os tecidos embrionários e que se apresenta na Espécie como cérebro coletivo ou com os tecidos vegetais nas pequenas espécies Não só as afinidades químicas como as causalidades físicas remetem elas 13 O grande texto de Plotino sobre as contemplações está no início das Ennéades III 8 De Hume a Butler e a Whitehead os empiristas retomarão o tema inclinandoo na direção da matéria donde seu neo platonismo 272 mesmas a forças primárias capazes de conservar suas longas cadeias contraindo os elementos e fazendoos ressoar a menor causalidade permanece ininteligível sem esta instância subjetiva Nem todo organismo é cerebrado e nem toda vida é orgânica mas há em toda a parte forças que constituem microcérebros ou uma vida inorgânica das coisas Se não é indispensável fazer a esplêndida hipótese de um sistema nervoso da Terra como Fechner ou Conan Doyle é porque a força de contrair ou de conservar isto é de sentir só se apresenta como um cérebro global em relação a tais elementos diretamente contraídos e a tal modo de contração que diferem segundo os domínios e constituem precisamente variedades irredutíveis Mas no final das contas são os mesmos elementos últimos e a mesma força de reserva que constituem um só plano de composição suportando as variedades do Universo O vitalismo teve sempre duas interpretações possíveis a de uma Idéia que age mas que não é que age portanto somente do ponto de vista de um conhecimento cerebral exterior de Kant a Claude Bernard ou a de uma força que é mas que não age que é portanto um puro Sentir interno de Leibniz a Ruyer Se a segunda interpretação parece imporse é porque a contração que conserva está sempre desligada da relação à ação ou mesmo ao movimento e se apresenta como uma pura contemplação sem conhecimento Verificamos isso mesmo no domínio cerebral por excelência da aprendizagem ou da formação de hábitos embora tudo pareça passarse em conexões e integrações progressivas ativas de uma tentativa a outra é preciso como mostrava Hume que as tentativas ou os casos as ocorrências se contraiam numa imaginação contemplante enquanto permanecem distintos tanto com relação às ações quanto com relação ao conhecimento e mesmo quando se é um rato é por contemplação que se contrai um hábito É preciso ainda descobrir sob o ruído das ações essas sen 273 sações criadoras interiores ou essas contemplações silenciosas que testemunham a favor de um cérebro Estes dois primeiros aspectos ou folhas do cérebrosujeito a sensação como o conceito são muito frágeis Não são somente desconexões e desintegrações objetivas mas uma imensa fadiga que faz com que as sensações tornadas pastosas deixem escapar os elementos e as vibrações que elas têm cada vez mais dificuldade em contrair A velhice é esta fadiga ela mesma então ou é uma queda no caos mental fora do plano de composição ou uma recaída sobre opiniões inteiramente acabadas clichês que mostram que um artista nada mais tem a dizer não mais sendo capaz de criar sensações novas nãomais sabendo como conservar contemplar contrair O caso da filosofia é um pouco diferente embora dependa de uma fadiga semelhante desta vez incapaz de manterse sobre o plano de imanência o pensamento cansado não mais pode suportar as velocidades infinitas do terceiro gênero que medem à maneira de um turbilhão a co presença do conceito a todos seus componentes intensivos ao mesmo tempo consistência é remetido às velocidades relativas que só concernem à sucessão do movimento de um ponto a outro de um componente extensivo a um outro de uma idéia a uma outra e que medem simples associações sem poder reconstituir o conceito E sem dúvida ocorre que estas velocidades relativas são muito grandes a ponto de simularem o absoluto só são porém velocidades variáveis de opinião de discussão ou de réplicas como entre os infatigáveis jovens cuja rapidez de espírito é celebrada mas também entre os velhos cansados que seguem opiniões desaceleradas e entretêm discussões estagnantes falando sozinhos no interior de sua cabeça esvaziada como uma longínqua lembrança de seus antigos conceitos aos quais se agarram ainda para não caírem inteiramente no caos 274 Sem dúvida as causalidades as associações as integrações nos inspiram opiniões e crenças como diz Hume que são maneiras de esperar e de reconhecer algo inclusive objetos mentais vai chover a água vai ferver é o caminho mais curto é a mesma figura sob um outro aspecto Mas embora tais opiniões se insinuem freqüentemente entre as proposições científicas não fazem parte delas e a ciência submete esses processos a operações de uma natureza inteiramente diferente que constituem uma atividade de conhecer e remetem a uma faculdade de conhecimento como terceira folha de um cérebrosujeito não menos criador que os outros dois O conhecimento não é nem uma forma nem uma força mas uma função eu funciono O sujeito apresentase agora como um ejecto porque extrai dos elementos cuja característica principal é a distinção o discernimento limites constantes variáveis funções todos estes functivos ou prospectos que formam os termos da proposição científica As projeções geométricas as substituições e transformações algébricas não consistem em reconhecer algo através das variações mas em distinguir variáveis e constantes ou em discernir progressivamente os termos que tendem na direção de limites sucessivos De modo que quando uma constante é determinada numa operação científica não se trata de contrair casos ou momentos numa mesma contemplação mas de estabelecer uma relação necessária entre fatores que permanecem independentes Os atos fundamentais da faculdade científica de conhecer pareceramnos neste sentido ser os seguintes colocar limites que marcam uma renúncia às velocidades infinitas e traçam um plano de referência determinar variáveis que se organizam em séries tendendo no sentido desses limites coordenar as variáveis independentes de modo a estabelecer entre elas ou seus limites relações necessárias das quais dependem funções distintas o plano de referência sendo uma coordenação em ato 275 determinar as misturas ou estados de coisas que se relacionam com as coordenadas e às quais as funções se referem Não basta dizer que estas operações do conhecimento científico são funções do cérebro as funções são elas mesmas as dobras de um cérebro que traça as coordenadas variáveis de um plano de conhecimento referência e que envia por toda a parte observadores parciais Há ainda uma operação que precisamente mostra a persistência do caos não apenas em torno do plano de referência ou de coordenação mas em desvios de sua superfície variável sempre reposta em jogo São as operações de bifurcação e de individuação se os estados de coisas lhes são submissos é porque são inseparáveis de potenciais que tomam do próprio caos e que não atualizam sem risco de ser destruídos ou submergidos Cabe pois à ciência pôr em evidência o caos no qual mergulha o próprio cérebro enquanto sujeito do conhecimento O cérebro não cessa de constituir limites que determinam funções de variáveis em áreas particularmente extensas com mais razão as relações entre essas variáveis conexões apresentam um caráter incerto e casual não apenas nas sinapses elétricas que indicam um caos estatístico como também nas sinapses químicas que remetem a um caos determinista14 Há menos centros cerebrais que pontos concentrados numa área disseminados numa outra e osciladores moléculas oscilantes que passam de um ponto a um outro Mesmo num modelo linear como o dos reflexos condicionados Erwin Straus mostrava que o essencial era compreender os intermediários os hiatos e os vazios Os paradigmas arborizados do cérebro dão lugar a figuras rizomáticas sistemas acentrados redes de autômatos 14 Burns The Uncertain Nervous System Ed Arnold E Steven Rose Le cerveau conscient Ed Le Seuil p 84 O sistema nervoso é incerto probabilista portanto interessante 276 finitos estados caóides Sem dúvida este caos está escondido pelo reforço das facilitações geradoras de opinião sob a ação dos hábitos ou dos modelos de recognição mas ele se tornará tanto mais sensível se considerarmos ao contrário processos criadores e as bifurcações que implicam E a individuação no estado de coisas cerebral é tanto mais funcional quanto não tem por variáveis as próprias células já que estas não deixam de morrer sem renovarse fazendo do cérebro um conjunto de pequenos mortos que colocam em nós a morte incessante Ela apela para um potencial que se atualiza sem dúvida nas ligações determináveis que decorrem das percepções mas mais ainda no livre efeito que varia segundo a criação dos conceitos das sensações ou das funções mesmas Os três planos são tão irredutíveis quanto seus elementos plano de imanência da filosofia plano de composição da arte plano de referência ou de coordenação da ciência forma do conceito força da sensação função do conhecimento conceitos e personagens conceituais sensações e figuras estéticas funções e observadores parciais Problemas análogos colocamse para cada plano em que sentido e como o plano em cada caso é uno ou múltiplo que unidade que multiplicidade Mas mais importantes nos parecem agora os problemas de interferência entre planos que se juntam no cérebro Um primeiro tipo de interferência aparece quando um filósofo tenta criar o conceito de uma sensação ou de uma função por exemplo um conceito próprio ao espaço riemanniano ou ao número irracional ou então quando um cientista cria funções de sensações como Fechner ou nas teorias da cor ou do som e mesmo funções de conceitos como Lautman mostra para as matemáticas enquanto estas atualizariam conceitos virtuais ou quando um artista cria puras sensações de conceitos ou de funções como vemos nas variedades de arte abstrata ou em Klee A regra 277 em todos estes casos é que a disciplina interferente deve proceder com seus próprios meios Por exemplo acontece que se fala da beleza intrínseca de uma figura geométrica de uma operação ou de uma demonstração mas esta beleza nada tem de estética na medida em que é definida por critérios tomados da ciência tais como proporção simetria dissimetria projeção transformação é o que Kant mostrou com tanta força15 É preciso que a função seja captada numa sensação que lhe dá perceptos e afectos compostos pela arte exclusivamente sobre um plano de criação específica que a arranca de toda referência o cruzamento de duas linhas negras ou as camadas de cor de ângulos retos em Mondrian ou então a aproximação do caos pela sensação de atratores estranhos em Noland ou Shirley Jaffe São portanto interferências extrínsecas porque cada disciplina permanece sobre seu próprio plano e utiliza seus elementos próprios Mas um segundo tipo de interferência é intrínseco quando conceitos e personagens conceituais parecem sair de um plano de imanência que lhes corresponderia para escorregar sobre um outro plano entre as funções e os observadores parciais ou entre as sensações e as figuras estéticas e o mesmo vale para os outros casos Estes deslizamentos são tão sutis como o de Zaratustra na filosofia de Nietzsche ou o de Igitur na poesia de Mallarmé que nos encontramos em planos complexos difíceis de qualificar Os observadores parciais por sua vez introduzem sensibilia na ciência que são às vezes próximas das figuras estéticas sobre um plano misto Há enfim interferências ilocalizáveis É que cada disciplina distinta está à sua maneira em relação com um negativo mesmo a ciência está em relação com uma nãociência que lhe devolve seus efeitos Não se trata de dizer somente 15 Kant Crítica do Juízo 62 278 que a arte deve nos formar nos despertar nos ensinar a sentir nós que não somos artistas e a filosofia ensinarnos a conceber e a ciência a conhecer Tais pedagogias só são possíveis se cada uma das disciplinas por sua conta está numa relação essencial com o Não que a ela concerne O plano da filosofia é préfilosófico enquanto o consideramos nele mesmo independentemente dos conceitos que vêm ocupálo mas a não filosofia encontrase lá onde o plano enfrenta o caos A filosofia precisa de uma nãofilosofia que a compreenda ela precisa de uma compreensão nãofilosófica como a arte precisa da nãoarte e a ciência da nãociência16 Elas não precisam de seu negativo como começo nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer realizandose mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento Ora se os três Não se distinguem ainda pela relação com o plano cerebral não mais se distinguem pela relação com o caos no qual o cérebro mergulha Neste mergulho diríamos que se extrai do caos a sombra do povo por vir tal como a arte o invoca mas também a filosofia a ciência povomassa povomundo povocérebro povocaos Pensamento nãopensante que se esconde nos três como o conceito não conceituai de Klee ou o silêncio interior de Kandinsky É aí que os conceitos as sensações as funções se tornam indecidíveis ao mesmo tempo que a filosofia a arte e a ciência indiscerníveis como se partilhassem a mesma sombra que se estende através de sua natureza diferente e não cessa de acompanhálos 16 François Larurelle propõe uma compreensão da nãofilosofia como real de a ciência para além do objeto de conhecimento Philosophie et nonphilosophie Ed Mardaga Mas não se vê porque este real da ciência não é também nãociência 279 COLEÇÃO TRANS direção de Eric Alliez Para além do malentendido de um pretenso fim da filosofia intervindo no contexto do que se admite chamar até em sua alteridade tecnocientífica a crise da razão contra um certo destino da tarefa crítica que nos incitaria a escolher entre ecletismo e academismo no ponto de estranheza onde a experiência tornada intriga dá acesso a novas figuras do ser e da verdade TRANS quer dizer transversalidade das ciências exatas e anexatas humanas e não humanas transdiscipUnaridade dos problemas Em suma transformação numa prática cujo primeiro conteúdo é que há linguagem e que a linguagem nos conduz a dimensões heterogêneas que não têm nada em comum com o processo da metáfora A um só tempo arqueológica e construtivista em todo caso experimental essa afirmação das indagações voltadas para uma exploração polifônica do real leva a liberar a exigência do conceito da hierarquia das questões admitidas aguçando o trabalho do pensamento sobre as práticas que articulam os campos do saber e do poder Sob a responsabilidade científica do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares TRANS vem propor ao público brasileiro numerosas traduções incluindo textos inéditos Não por um fascínio pelo Outro mas por uma preocupação que não hesitaríamos em qualificar de política se porventura se verificasse que só se forjam instrumentos para uma outra realidade para uma nova experiência da história e do tempo ao arriscarse no horizonte múltiplo das novas formas de racionalidade Maurice de Gandillac Gêneses da modernidade Pierre Clastres Crônica do índios Guayaki Jacques Rancière Políticas da escrita JeanPierre Faye A razão narrativa Monique DavidMénard A loucura na razão pura Jacques Rancière O desentendimento Éric Alliez Da impossibilidade da fenomenologia Michael Hardt Gilles Deleuze Éric Alliez Deleuze filosofia virtual Pierre Lévy O que é o virtual François Jullien Figuras da imanência Gilles Deleuze Crítica e clínica Stanley Cavell Esta América nova ainda inabordável Richard Shusterman Vivendo a arte André de Muralt A metafísica do fenômeno François Jullien Tratado da eficácia Georges DidiHuberman O que vemos o que nos olha Pierre Lévy Cibercultura Gilles Deleuze Bergsonismo Alain de Libera Pensar na Idade Média Éric Alliez org Colóquio Deleuze Gilles Deleuze e Félix Guattari O que é a filosofia Félix Guattari Caosmose Gilles Deleuze Conversações Barbara Cassin Nicole Loraux Catherine Peschanski Gregos bárbaros estrangeiros Pierre Lévy As tecnologias da inteligência Paul Virilio O espaço crítico Antônio Negri A anomalia selvagem André Parente org Imagemmáquina Bruno Latour jamais fomos modernos Nicole Loraux Invenção de Atenas Éric Alliez A assinatura do mundo Gilles Deleuze e Félix Guattari Mil platôs Vols 12 34 e 5
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Gilles Deleuze Félix Guattari O QUE É A FILOSOFIA Tradução Bento Prado Jr e Alberto Alonso Munoz Coleção TRANS Editora 34 Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia tardiamente quando chega a velhice e a hora de falar concretamente De fato a bibliografia é muito magra Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta à meianoite quando nada mais resta a perguntar Antigamente nós a formulávamos não deixávamos de formulála mas de maneira muito indireta ou oblíqua demasiadamente artificial abstrata demais expúnhamos a questão mas dominandoa pela rama sem deixarnos engolir por ela Não estávamos suficientemente sóbrios Tínhamos muita vontade de fazer filosofia não nos perguntávamos o que ela era salvo por exercício de estilo não tínhamos atingido este ponto de nãoestilo em que se pode dizer enfim mas o que é isso que fiz toda a minha vida Há casos em que a velhice dá não uma eterna juventude mas ao contrário uma soberana liberdade uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras Gilles Deleuze e Félix Guattari Podese falar hoje de um profundo malestar na filosofia Um pouco por toda parte encontramos a expressão de uma espécie de desencanto como se a filosofia passasse como um todo por um processo de banalização Processo que não é indiferente à hegemonia crescente da filosofia escolar ou universitária à civilização do papel que fustigavam nela identificando sintoma de decadência pensadores tão diferentes como Wittgenstein e MerleauPonty Por contraste tanto maior é o prazer cada vez mais raro de ler um belo livro de filosofia como é o caso desta obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari A qualidade do livro transparece já na originalidade de seu estilo alegre A gravidade da questão que não é uma questão preliminar ou retórica não exclui o humor antes o exige Nem poderia ser de outra maneira quando abandonamos a esfera técnica da análise conceituai para mergulhar na tarefa propriamente filosófica da construção conceituai Já no primeiro capítulo o leitor tem acesso ao ponto de vista crítico que está na raiz da virulência desta concepção e desta prática da filosofia Arrisquemos uma fórmula não há nenhum solo préfilosófico susceptível de determinação positiva seja a linguagem comum seja o Lebenswelt que possa servir de pano de fundo ou de guia para a análise conceituai A invenção ou a produção dos conceitos remete à instauração de um plano de imanência que podendo embora ser caracterizado como préfilosófico não deixa de ser contemporâneo e indissociável dessa invenção e dessa produção De alguma maneira e inesperadamente a esfera do préfilosófico se revela como posífilosófica O chão se abre sob nossos pés e experimentamos a vertigem do pensamento Mas sobretudo essa radiografia da filosofia através das noções básicas de conceito plano de imanência e personagem conceituai ganha vida nos inúmeros exemplos que se sucedem O trabalho do filósofo é aqui amparado pelo do historiador da filosofia mesmo breves são particularmente iluminadoras as análises da instituição da filosofia nas obras de Platão Descartes Kant etc O que este livro nos oferece é a compreensão do que há de vertiginoso na filosofia mas também e seguindo o mesmo movimento de pensamento do que há de vertiginoso na ciência e na arte Filosofia ciência e arte são planos irredutíveis mas podem ser explorados segundo uma mesma estratégia às três instâncias da instauração filosófica corresponderão instâncias simétricas da instauração artística e científica plano de imanência da filosofia plano de composição da arte plano de referência ou de coordenação da ciência forma do conceito força da sensação função de conhecimento conceitos e personagens conceituais sensações e figuras estéticas funções e observadores parciais Ao abrir este livro caro leitor você poderá descobrir com alegria que a filosofia está viva e não consiste apenas em objeto de interesse filológico Bento Prado Jr O QUE É A FILOSOFIA Introdução Assim Pois a Questão 7 I FILOSOFIA O que é um Conceito 25 O Plano de Imanência 49 Os Personagens Conceituais 81 Geofilosofia 111 II FILOSOFIA CIÊNCIA LÓGICA E ARTE Functivos e Conceitos 151 Prospectos e Conceitos 175 Percepto Afecto e Conceito 211 Conclusão Do Caos ao Cérebro 257 Introdução Assim Pois a Questão Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia tardiamente quando chega a velhice e a hora de falar concretamriile I e lato a bibliografia e muito magra Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta à meianoite quando nada mais resta a perguntar Antigamente nós a formulávamos não deixávamos de formulála mas de maneira muito indireta ou oblíqua demasiadamente artificial abstrata demais expúnhamos a questão mas dominandoa pela rama sem deixarnos engolir por ela Não estávamos suficientemente sóbrios Tínhamos muita vontade de fazer filosofia não nos perguntávamos o que ela era salvo por exercício de estilo não tínhamos atingido este ponto de nãoestilo em que se pode dizer enfim mas o que é isso que fiz toda a minha vida Há casos em que a velhice dá não uma eterna juventude mas ao contrário uma soberana liberdade uma necessidade pura em que se desfruta de um momento de graça entre a vida e a morte e em que todas as peças da máquina se combinam para enviar ao porvir um traço que atravesse as eras Ticiano Turner Monet1 Velho Turner adquiriu ou conquistou o direito de conduzir a pintura por um caminho deserto e sem retorno que não se distingue mais de uma última questão Talvez a Vie de Rance marque ao mesmo tempo a velhice de Chateaubriand e o início da literatura moderna2 O cinema também nos oferece por vezes seus dons da terceira idade onde Ivens por exemplo mistura seu riso com o da bruxa no vento solto O mesmo ocorre na filosofia a Crítica do juízo de Kant é uma obra de velhice uma obra desatada atrás da qual não cessarão de correr 1 Cf Uoeuvre ultime de Cézanne à Dubuffet Fondation Maeght prefácio de JeanLouis Prat 2 Barbéris Chateaubriand Ed Larousse Rance livro sobre a velhice como valor impossível é um livro escrito contra a velhice no poder é um livro de ruínas universais em que só se afirma o poder da escrita 9 seus descendentes toilis is faculdades do espírito ultrapassam seus limites estes mesmos limites que Kant tinha fixado tão cuidadosamente em seus livros de maturidade Nós não podemos aspirar a um tal estatuto Simplesmente chegou a hora para nós de perguntar o que é a filosofia Nunca havíamos deixado de fazêlo e já tínhamos a resposta que não variou a filosofia é a arte de formar de inventar de fabricar conceitos Mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão seria necessário também que determinasse uma hora uma ocasião circunstâncias paisagens e personagens condições e incógnitas da questão Seria preciso formulála entre amigos como uma confidencia ou uma confiança ou então face ao inimigo como um desafio e ao mesmo tempo atingir esta hora entre o cão e o lobo em que se desconfia mesmo do amigo É a hora em que se diz era isso mas eu não sei se eu disse bem nem se fui assaz convincente E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente já que de qualquer maneira é nossa questão agora Os conceitos como veremos têm necessidade de personagens conceituais que contribuam para sua definição Amigo é um desses personagens do qual se diz mesmo que ele testemunha a favor de uma origem grega da filosofia as outras civilizações tinham Sábios mas os gregos apresentam esses amigos que não são simplesmente sábios mais modestos Seriam os gregos que teriam sancionado a morte do Sábio e o teriam substituído pelos filósofos os amigos da sabedoria aqueles que procuram a sabedoria mas não a possuem formalmente3 Mas não haveria somente diferença de grau como numa escala entre o filósofo e o sábio o velho sábio vindo do Oriente pensa talvez por Figura en 3 Kojève Tyrannie et sagesse p 235 in Léo Strauss De Ia tyrannie Gallimard 10 quanto o filósofo inventa e pensa o Conceito A sabedoria mudou muito lauto mais difícil tornouse saber o que significa amigo mesmo e sobretudo entre os gregos Amigo designaria uma certa intimidade competente uma espécie de gosto material e uma potencialidade como aquela do marceneiro com a madeira o bom marceneiro é em potência madeira ele é o amigo da madeira A questão é importante uma vez que o amigo tal como ele aparece na filosofia não designa mais um personagem extrínseco um exemplo ou uma circunstância empírica mas uma presença intrínseca ao pensamento uma condição de possibilidade do próprio pensamento uma categoria viva um vivido transcendental Com a filosofia os gregos submetem a uma violência o amigo que não está mais em relação com um outro mas com uma Entidade uma Objetividade uma Essência Amigo de Platão mas mais ainda da sabedoria do verdadeiro ou do conceito Filaleto e Teófilo O filósofo é bom em conceitos e em falta de conceitos ele sabe quais são inviáveis arbitrários ou inconsistentes não resistem um instante e quais ao contrário são bem feitos e testemunham uma criação mesmo se inquietante ou perigosa Que quer dizer amigo quando ele se torna personagem conceituai ou condição para o exercício do pensamento Ou então amante não seria antes amante E o amigo não vai reintroduzir até no pensamento uma relação vital com o Outro que se tinha acreditado excluir do pensamento puro Ou então ainda não se trata de alguém diferente do amigo ou do amante Pois se o filósofo é o amigo ou o amante da sabedoria não é porque ele aspira a ela nela se empenhando em potência mais do que a possuindo em ato O amigo seria pois também o pretendente e aquele de que ele se diria o amigo seria a Coisa que é alvo da pretensão mas não o terceiro que se tornaria ao contrário um rival A amizade comportaria tanto desconfiança competitiva com 11 relação ao rival quanto tensão amorosa em direção ilo ob jeto do desejo Quando a amizade se voltasse para a consciência os dois amigos seriam como o pretendente e o rival mas o que os distinguiria É sob este primeiro traço que a filosofia parece uma coisa grega e coincide com a contribuição das cidades ter formado sociedades de amigos ou de iguais mas também ter promovido entre elas e em cada uma relações de rivalidade opondo pretendentes em todos os domínios no amor nos jogos nos tribunais nas magistraturas na política e até no pensamento que não encontraria sua condição somente no amigo mas no pretendente e no rival a dialética que Platão define pela amphisbetesis A rivalidade dos homens livres um atletismo generalizado o agôn4 É próprio da amizade conciliar a integridade da essência e a rivalidade dos pretendentes Não é uma tarefa grande demais O amigo o amante o pretendente o rival são determinações transcendentais que não perdem por isso sua existência intensa e animada num mesmo personagem ou em diversos E quando hoje Maurice Blanchot que faz parte dos raros pensadores que pensam o sentido da palavra amigo em filosofia retoma esta questão interior das condições do pensamento como tal não são novos personagens conceituais que ele introduz no seio do mais puro Pensado personagens pouco gregos desta vez vindos de outra parte como se tivessem passado por uma catástrofe que os arrasta na direção de novas relações vivas promovidas ao estado de caracteres a priori um desvio um certo desamparo uma certa destreza entre amigos que converte a própria amizade ao pensamento do conceito como desconfiança e paciência infini 4 Por exemplo Xenofonte República dos lacedemônios IV 5 Detienne e Vernant analisaram particularmente estes aspectos da cidade 12 tas5 A lista dos personagens conceituais não está jamais In huli c por isso desempenha um papel importante na evolução ou nas mutações da filosofia sua diversidade deve ser compreendida sem ser reduzida à unidade já complexa do filósofo grego O filósofo é o amigo do conceito ele é conceito em potência Quer dizer que a filosofia não é uma simples arte de formar de inventar ou de fabricar conceitos pois os conceitos não são necessariamente formas achados ou produtos A filosofia mais rigorosamente é a disciplina que consiste em criar conceitos O amigo seria o amigo de suas próprias criações Ou então é o ato do conceito que remete à potência do amigo na unidade do criador e de seu duplo Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como àquele que o tem em potência ou que tem sua potência e sua competência Não se pode objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes já que a arte faz existir entidades espirituais e já que os conceitos filosóficos são também sensibilia Para falar a verdade as ciências as artes as filosofias são igualmente criadoras mesmo se compete apenas à filosofia criar conceitos no sentido estrito Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos como corpos celestes Não há céu para os conceitos Eles devem ser inventados fabricados ou antes criados e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu os filósofos não devem mais contentarse em aceitar os conceitos que lhes são dados para somente limpálos e fazêlos reluzir mas é necessário que eles comecem por fabricálos criálos afirmálos persuadindo 5 Sobre a relação da amizade com a possibilidade de pensar no mundo moderno cf Blanchot Uamitié e Uentretien infini o diálogo dos dois cansados Gallimard E Mascolo Autour dun effort de mémoire Ed Nadeau 13 os homens a utilizálos Até o presente momento tudo somado cada um tinha confiança em seus conceitos como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso mas é necessário substituir a confiança pela desconfiança e é dos conceitos que o filósofo deve desconfiar mais desde que ele mesmo não os criou Platão sabia isso bem apesar de ter ensinado o contrário6 Platão dizia que é necessário contemplar as Idéias mas tinha sido necessário antes que ele criasse o conceito de Idéia Que valeria um filósofo do qual se pudesse dizer ele não criou um conceito ele não criou seus conceitos Vemos ao menos o que a filosofia não é ela não é contemplação nem reflexão nem comunicação mesmo se ela pôde acreditar ser ora uma ora outra coisa em razão da capacidade que toda disciplina tem de engendrar suas próprias ilusões e de se esconder atrás de uma névoa que ela emite especialmente Ela não é contemplação pois as contemplações são as coisas elas mesmas enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos Ela não é reflexão porque ninguém precisa de filosofia para refletir sobre o que quer que seja acreditase dar muito à filosofia fazendo dela a arte da reflexão mas retirase tudo dela pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos para refletir sobre a matemática nem os artistas sobre a pintura ou a música dizer que eles se tornam então filósofos é uma brincadeira de mau gosto já que sua reflexão pertence a sua criação respectiva E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação que não trabalha em potência a não ser de opiniões para criar o consenso e não o conceito A idéia de uma conversação democrática ocidental entre amigos não produziu nunca o menor conceito ela vem 6 Nietzsche Posthumes 18841885 Oeuvres philosophiques XI Gallimard pp 215216 sobre a arte da desconfiança 14 talvez dos gregos mas estes dela desconfiavam de tal maneira e a faziam sofrer um tratamento tão rude que o conceito era antes como o pássarosolilóquioirônico que sobrevoava o campo de batalha das opiniões rivais aniquiladas os convidados bêbados do banquete A filosofia não contempla não reflete não comunica se bem que ela tenha de criar conceitos para estas ações ou paixões A contemplação a reflexão a comunicação não são disciplinas mas máquinas de constituir Universais em todas as disciplinas Os Universais de contemplação e em seguida de reflexão são como duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho de dominar as outras disciplinas idealismo objetivo e idealismo subjetivo e a filosofia não se engrandece mais apresentandose como uma nova Atenas e se desviando sobre Universais da comunicação que forneceriam as regras de um domínio imaginário dos mercados e da mídia idealismo intersubjetivo Toda criação é singular e o conceito como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade O primeiro princípio da filosofia é que os Universais não explicam nada eles próprios devem ser explicados Conhecerse a si mesmo aprender a pensar fazer como se nada fosse evidente espantarse estranhar que o ente seja estas determinações da filosofia e muitas outras formam atitudes interessantes se bem que fatigantes a longo prazo mas não constituem uma ocupação bem definida uma atividade precisa mesmo de um ponto de vista pedagógico Podese considerar como decisiva ao contrário a definição da filosofia conhecimento por puros conceitos Mas não há lugar para opor o conhecimento por conceitos e por construção de conceitos na experiência possível ou na intuição Pois segundo o veredito nietzscheano você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado isto é construído numa intuição que lhes é própria um campo um plano um solo que não se confunde com 15 eles mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam O construtivismo exige que toda criação seja unia construção sobre um plano que lhe dá uma existência autônoma Criar conceitos ao menos é fazer algo A questão do uso ou da utilidade da filosofia ou mesmo de sua nocividade a quem ela prejudica é assim modificada Muitos problemas urgem sob os olhos alucinados de um velho que veria confrontaremse todas as espécies de conceitos filosóficos e de personagens conceituais E de início os conceitos são e permanecem assinados substância de Aristóteles cogito de Descartes mônada de Leibniz condição de Kant potência de Schelling duração de Bergson Mas também alguns exigem uma palavra extraordinária às vezes bárbara ou chocante que deve designálos ao passo que outros se contentam com uma palavra corrente muito comum que se enche de harmônicos tão longínquos que podem passar despercebidos a um ouvido não filosófico Alguns solicitam arcaísmos outros neologismos atravessados por exercícios etimológicos quase loucos a etimologia como atletismo propriamente filosófico Deve haver em cada caso uma estranha necessidade destas palavras e de sua escolha como elemento do estilo O batismo do conceito solicita um gosto propriamente filosófico que procede com violência ou com insinuação e que constitui na língua uma língua da filosofia não somente um vocabulário mas uma sintaxe que atinge o sublime ou uma grande beleza Ora apesar de datados assinados e batizados os conceitos têm sua maneira de não morrer e todavia são submetidos a exigências de renovação de substituição de mutação que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas das quais cada momento cada lugar se conservam mas no tempo e passam mas fora do tempo Se os conceitos não param de mudar podemos perguntar qual unidade resta para as filosofias É a mesma coisa para as ciências para as artes que 16 não procedem por conceitos E quanto à história dessas três disciplinas Se a filosofia é essa criação contínua de conceitos perguntarseá evidentemente o que é um conceito como Idéia filosófica mas também em que consistem as outras Idéias criadoras que não são conceitos que pertencem às ciências e às artes que têm sua própria história e seu próprio devir e suas próprias relações variáveis entre elas e com a filosofia A exclusividade da criação de conceitos assegura à filosofia uma função mas não lhe dá nenhuma proeminência nenhum privilégio pois há outras maneiras de pensar e de criar outros modos de ideação que não têm de passar por conceitos como o pensamento científico E retornaremos sempre à questão de saber para que serve esta atividade de criar conceitos em sua diferença em relação às atividades científica ou artística por que é necessário criar conceitos e sempre novos conceitos por qual necessidade para qual uso Para fazer o quê A resposta segundo a qual a grandeza da filosofia estaria justamente em não servir para nada é um coquetismo que não tem graça nem mesmo para os jovens Em todo caso não tivemos jamais um problema concernente à morte da metafísica ou à superação da filosofia são disparates inúteis e penosos Falase hoje da falência dos sistemas quando é apenas o conceito de sistema que mudou Se há lugar e tempo para a criação dos conceitos a essa operação de criação sempre se chamará filosofia ou não se distinguira da filosofia mesmo se lhe for dado um outro nome Sabemos todavia que o amigo ou o amante como pretendente não existe sem rivais Se a filosofia tem uma origem grega como é certo dizêlo é porque a cidade ao contrário dos impérios ou dos Estados inventa o agôn como regra de uma sociedade de amigos a comunidade dos homens livres enquanto rivais cidadãos É a situação constante que descreve Platão se cada cidadão aspira a alguma coisa ele encontra necessariamente rivais de modo que é neces 17 sário poder julgar acerca do bemfundado das pretensões O marceneiro aspira à madeira mas se choca com o guardaflorestal com o lenhador com o carpinteiro que dizem sou eu sou eu o amigo da madeira Se se trata de cuidar dos homens há muitos pretendentes que se apresentam como o amigo do homem o camponês que o alimenta o tecelão que o veste o médico que dele cuida o guerreiro que o protege7 E se em todos estes casos a seleção se faz apesar de tudo em um círculo algo restrito o mesmo não acontece na política onde quem quer que seja pode aspirar ao que quer que seja na democracia ateniense tal como a vê Platão De onde a necessidade para Platão de uma reordenação na qual se criem as instâncias que permitam julgar acerca do bemfundado das pretensões são as Idéias como conceitos filosóficos Mas mesmo aí não se vai reencontrar todas as espécies de pretendentes para dizer o verdadeiro filósofo sou eu sou eu o amigo da Sabedoria ou do BemFundado A rivalidade culmina naquela entre o filósofo c o sofista que disputam os despojos do velho sábio mas como distinguir o falso amigo do verdadeiro e o conceito do simulacro O simulador e o amigo é todo um teatro platônico que faz proliferar os personagens conceituais dotandoos das potências do cômico e do trágico Mais recentemente a filosofia cruzou com muitos novos rivais Eram a princípio as ciências do homem e notadamente a sociologia que desejavam substituíla Mas como a filosofia tinha cada vez mais desprezado sua vocação de criar conceitos para se refugiar nos Universais não se sabia mais muito bem qual era a questão Tratavase de renunciar a toda criação do conceito em proveito de uma ciência estrita do homem ou ao contrário de transformar a natureza dos conceitos transformandoos ora em representações 7 Platão Político 268a 279a 18 c iletivas ora em concepções do mundo criadas pelos povos suas forças vitais históricas e espirituais Depois foi a voga da epistemologia da lingüística ou mesmo da psicanálise e da análise lógica De provação em provação a filosofia enfrentaria seus rivais cada vez mais insolentes cada vez mais calamitosos que Platão ele mesmo não teria imaginado em seus momentos mais cômicos Enfim o fundo do poço da vergonha foi atingido quando a informática o marketing o design a publicidade todas as disciplinas da comunicação apoderaramse da própria palavra conceito e disseram é nosso negócio somos nós os criativos nós somos os conceituadoresl Somos nós os amigos do conceito nós os colocamos em computadores Informação e criatividade conceito e empresa uma abundante bibliografia já O marketing reteve a idéia de uma certa relação entre o conceito e o acontecimento mas eis que o conceito se tornou o conjunto das apresentações de um produto histórico científico artístico sexual pragmático e o acontecimento a exposição que põe em cena apresentações diversas e a troca de idéias à qual supostamente dá lugar Os únicos acontecimentos são as exposições e os únicos conceitos produtos que se pode vender O movimento geral que substituiu a Crítica pela promoção comercial não deixou de afetar a filosofia O simulacro a simulação de um pacote de macarrão tornouse o verdadeiro conceito e o apresentadorexpositor do produto mercadoria ou obra de arte tornouse o filósofo o personagem conceituai ou o artista Como a filosofia essa velha senhora poderia alinharse com os jovens executivos numa corrida aos universais da comunicação para determinar uma forma mercantil do conceito MERZ Certamente é doloroso descobrir que Conceito designa uma sociedade de serviços e de engenharia informática Porém quanto mais a filosofia tropeça em rivais imprudentes e simplórios mais ela os encontra em seu próprio seio pois ela se sente preparada 19 para realizar a tarefa criar conceitos que são antes metro ritos que mercadorias Ela tem ataques de riso que a levam às lágrimas Assim pois a questão da filosofia é o ponto sin guiar onde o conceito e a criação se remetem um ao outro Os filósofos não se ocuparam o bastante com a natureza do conceito como realidade filosófica Eles preferiram considerálo como um conhecimento ou uma representação dados que se explicam por faculdades capazes de formálo abstração ou generalização ou de utilizálos juízo Mas o conceito não é dado é criado está por criar não é forma do ele próprio se põe em si mesmo autoposição As duas coisas se implicam já que o que é verdadeiramente criado do ser vivo à obra de arte desfruta por isso mesmo de uma autoposição de si ou de um caráter autopoiético pelo qual ele é reconhecido Tanto mais o conceito é criado tanto mais ele se põe O que depende de uma atividade criadora livre é também o que se põe em si mesmo independentemente e necessariamente o mais subjetivo será o mais objetivo Foram os pós kantianos que mais deram atenção neste sentido ao conceito como realidade filosófica notadamente Schelling e Hegel Hegel definiu poderosamente o conceito pelas Figuras de sua criação e os Momentos de sua autoposição as figuras tornaramse pertenças do conceito porque constituem o lado sob o qual o conceito é criado por e na consciência por meio da sucessão de espíritos enquanto os momentos erigem o outro lado pelo qual o conceito se põe a si mesmo e reúne os espíritos no absoluto do Si Hegel mostrava assim que o conceito nada tem a ver com uma idéia geral ou abstrata nem tampouco com uma Sabedoria incriada que não dependeria da própria filosofia Mas era ao preço de uma extensão indeterminada da filosofia que não deixava subsistir o movimento independente das ciências e das artes porque reconstituía universais com seus próprios momentos e só tratava os personagens de sua própria cria 20 cão como figurantes fantasmas Os póskantianos giravam cm torno de uma enciclopédia universal do conceito que remeteria sua criação a uma pura subjetividade em lugar de propor uma tarefa mais modesta uma pedagogia do conceito que deveria analisar as condições de criação como fatores de momentos que permanecem singulares8 Se as três idades do conceito são a enciclopédia a pedagogia e a formação profissional comercial só a segunda pode nos impedir de cair dos picos do primeiro no desastre absoluto do terceiro desastre absoluto para o pensamento quaisquer que sejambem entendido os benefícios sociais do ponto de vista do capitalismo universal 8 Sob uma forma voluntariamente escolar Frédéric Cossutta propôs uma pedagogia do conceito muito interessante Eléments pour Ia lecture des textes philosophiques Ed Bordas 21 I FILOSOFIA O que é um Conceito Não há conceito simples Todo conceito tem componentes e se define por eles Tem portanto uma cifra É uma multiplicidade embora nem toda multiplicidade seja conceituai Não há conceito de um só componente mesmo o primeiro conceito aquele pelo qual uma filosofia começa possui vários componentes já que não é evidente que a filosofia deva ter um começo e que se ela determina um deve acrescentarlhe um ponto de vista ou uma razão Descartes Hegel Feuerhach não somente não começam pelo mesmo conceito como não têm o mesmo conceito de começo Todo conceito é ao menos duplo ou triplo etc Também não há conceito que tenha todos os componentes já que seria um puro e simples caos mesmo os pretensos universais como conceitos últimos devem sair do caos circunscrevendo um universo que os explica contemplação reflexão comunicação Todo conceito tem um contorno irregular definido pela cifra de seus componentes É por isso que de Platão a Bergson encontramos a idéia de que o conceito é questão de articulação corte e superposição É um todo porque totaliza seus componentes mas um todo fragmentário É apenas sob essa condição que pode sair do caos mental que não cessa de espreitálo de aderir a ele para reabsorvêlo Sob quais condições um conceito é primeiro não absolutamente mas com relação a um outro Por exemplo outrem é necessariamente segundo em relação a um eu Se ele o é é na medida em que seu conceito é aquele de um outro sujeito que se apresenta como um objeto especial com relação ao eu são dois componentes Com efeito se nós o identificarmos a um objeto especial outrem já não é outra coisa senão o outro sujeito tal como ele aparece para mim e se nós o identificarmos a um outro sujeito sou eu que sou outrem tal como eu lhe apareço Todo conceito remete a um problema a problemas sem os quais não teria sentido e que só podem ser isolados ou compreendidos na medida de sua 27 solução estamos aqui diante de um problema concernente à pluralidade dos sujeitos sua relação sua apresentação recíproca Mas tudo muda evidentemente se acreditamos descobrir um outro problema em que consiste a posição de outrem que o outro sujeito vem somente ocupar quando ele me aparece como objeto especial e que eu venho por minha vez ocupar como objeto especial quando eu lhe apareço Deste ponto de vista outrem não é ninguém nem sujeito nem objeto Há vários sujeitos porque há outrem não o inverso Outrem exige então um conceito a priori de que devem derivar o objeto especial o outro sujeito e o eu não o contrário A ordem mudou do mesmo modo que a natureza dos conceitos ou que os problemas aos quais se supõe que eles respondam Deixamos de lado a questão de saber que diferença há entre um problema na ciência e na filosofia Mas mesmo na filosofia não se cria conceitos a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados pedagogia do conceito Procedamos sumariamente consideremos um campo de experiência tomado como mundo real não mais com relação a um eu mas com relação a um simples há Há nesse momento um mundo calmo e repousante Surge de repente um rosto assustado que olha alguma coisa fora do campo Outrem não aparece aqui como um sujeito nem como um objeto mas o que é muito diferente como um mundo possível como a possibilidade de um mundo assustador Esse mundo possível não é real ou não o é ainda e todavia não deixa de existir é um expressado que só existe em sua expressão o rosto ou um equivalente do rosto Outrem é antes de mais nada esta existência de um mundo possível E este mundo possível tem também uma realidade própria em si mesmo enquanto possível basta que aquele que exprime fale e diga tenho medo para dar uma realidade ao possível enquanto tal mesmo se suas palavras são mentirosas 28 O eu como índice lingüístico não tem outro sentido E mais ainda não é indispensável a China é um mundo possível mas assume realidade logo que se fale chinês ou que se fale da China num campo de experiência dado É muito diferente do caso em que a China se realiza tornandose o próprio campo de experiência Eis pois um conceito de outrem que não pressupõe nada além da determinação de um mundo sensível como condição Outrem surge neste caso como a expressão de um possível Outrem é um mundo possível tal como existe num rosto que o exprime e se efetua numa linguagem que lhe dá uma realidade Neste sentido é um conceito com três componentes inseparáveis mundo possível rosto existente linguagem real ou fala Evidentemente todo conceito tem uma história Este conceito de outrem remete a Leibniz aos mundos possíveis de Leibniz e à mônada como expressão de mundo mas não é o mesmo problema porque os possíveis de Leibniz não existem no mundo real Remete também à lógica modal das proposições mas estas não conferem aos mundos possíveis a realidade correspondente a suas condições de verdade mesmo quando Wittgenstein encara as proposições de medo ou de dor não vê nelas modalidades exprimíveis numa posição de outrem porque deixa outrem oscilar entre um outro sujeito e um objeto especial Os mundos possíveis têm uma longa história1 Numa palavra dizemos de qualquer conceito que ele sempre tem uma história embora a história se desdobre em ziguezague embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes Num conceito há no mais das vezes pedaços ou componentes vindos de outros conceitos 1 Esta história que não começa com Leibniz passa por episódios tão diversos quanto a proposição de outrem como tema constante em Wittgenstein ele está com dor de dente e a posição de outrem como teoria do mundo possível em Michel Tournier Vendredi ou les limbes du Pacifique Gallimard 29 que respondiam a outros problemas e supunham outros planos Não pode ser diferente já que cada conceito opera um novo corte assume novos contornos deve ser reativado ou recortado Mas por outro lado um conceito possui um devir que concerne desta vez a sua relação com conceitos situados no mesmo plano Aqui os conceitos se acomodam uns aos outros superpõemse uns aos outros coordenam seus contornos compõem seus respectivos problemas pertencem à mesma filosofia mesmo se têm histórias diferentes Com efeito todo conceito tendo um número finito de componentes bifurcará sobre outros conceitos compostos de outra maneira mas que constituem outras regiões do mesmo plano que respondem a problemas conectáveis participam de uma cocriação Um conceito não exige somente um problema sob o qual remaneja ou substitui conceitos precedentes mas uma encruzilhada de problemas em que se alia a outros conceitos coexistentes No caso do conceito de Outrem como expressão de um mundo possível num campo perceptivo somos levados a considerar de uma nova maneira os componentes deste campo por si mesmo outrem não mais sendo nem um sujeito de campo nem um objeto no campo vai ser a condição sob a qual se redistribuem não somente o objeto e o sujeito mas a figura e o fundo as margens e o centro o móvel e o ponto de referência o transitivo e o substancial o comprimento e a profundidade Outrem é sempre percebido como um outro mas em seu conceito ele é a condição de toda percepção para os outros como para nós É a condição sob a qual passamos de um mundo a outro Outrem faz o mundo passar e o eu nada designa senão um mundo passado eu estava tranqüilo Por exemplo Outrem basta para fazer de todo comprimento uma profundidade possível no espaço e inversamente a tal ponto que se este conceito não funcionasse no campo perceptivo as transições e as inversões se 30 tornariam incompreensíveis e não cessaríamos de nos chocar contra as coisas o possível tendo desaparecido Ou ao menos filosoficamente seria necessário encontrar uma outra razão pela qual nós não nos chocamos É assim que a partir de um plano determinável se passa de um conceito a um outro por uma espécie de ponte a criação de um conceito de Outrem com tais componentes vai levar à criação de um novo conceito de espaço perceptivo com outros componentes a determinar não se chocar ou não se chocar demais fará parte de seus componentes Partimos de um exemplo bastante complexo Como fazer de outra maneira já que não há conceito simples O leitor pode partir de qualquer exemplo a seu gosto Nós acreditamos que dele decorrerão as mesmas conseqüências concernentes à natureza do conceito ou ao conceito de conceito Em primeiro lugar cada conceito remete a outros conceitos não somente em sua história mas em seu devir ou suas conexões presentes Cada conceito tem componentes que podem ser por sua vez tomados como conceitos assim Outrem tem o rosto entre seus componentes mas o Rosto ele mesmo será considerado como conceito tendo também componentes Os conceitos vão pois ao infinito e sendo criados não são jamais criados do nada Em segundo lugar é próprio do conceito tornar os componentes inseparáveis nele distintos heterogêneos e todavia não separáveis tal é o estatuto dos componentes ou o que define a consistência do conceito sua endoconsistência É que cada componente distinto apresenta um recobrimento parcial uma zona de vizinhança ou um limite de indiscernibilidade com um outro por exemplo no conceito de outrem o mundo possível não existe fora do rosto que o exprime embora se distinga dele como o expressado e a expressão e o rosto por sua vez é a proximidade das palavras de que já é o portavoz Os componentes permanecem distintos mas algo passa de um 31 a outro algo de indecidível entre os dois há um domínio ab que pertence tanto a a quanto a b em que a e b se tornam indiscerníveis São estas zonas limites ou devires esta inseparabilidade que definem a consistência interior do conceito Mas este tem igualmente uma exoconsistência com outros conceitos quando sua criação implica a construção de uma ponte sobre o mesmo plano As zonas e as pontes são as junturas do conceito Em terceiro lugar cada conceito será pois considerado como o ponto de coincidência de condensação ou de acumulação de seus próprios componentes O ponto conceituai não deixa de percorrer seus componentes de subir e de descer neles Cada componente neste sentido é um traço intensivo uma ordenada intensiva que não deve ser apreendida nem como geral nem como particular mas como uma pura e simples singularidade um mundo possível um rosto certas palavras que se particulariza ou se generaliza segundo se lhe atribui valores variáveis ou se lhe designa uma função constante Mas contrariamente ao que se passa na ciência não há nem constante nem variável no conceito e não se distinguirão nem espécies variáveis para um gênero constante nem espécie constante para indivíduos variáveis As relações no conceito não são nem de compreensão nem de extensão mas somente de ordenação e os componentes do conceito não são nem constantes nem variáveis mas puras e simples variações ordenadas segundo sua vizinhança Elas são processuais modulares O conceito de um pássaro não está em seu gênero ou sua espécie mas na composição de suas posturas de suas cores e de seus cantos algo de indiscernível que é menos uma sinestesia que uma sineidesia Um conceito é uma heterogênese isto é uma ordenação de seus componentes por zonas de vizinhança É ordinal é uma intensão presente em todos os traços que o compõem Não cessando de percorrêlos segundo uma or 32 dem sem distância o conceito está em estado de sobrevôo com relação a seus componentes Ele é imediatamente copresente sem nenhuma distância de todos os seus componentes ou variações passa e repassa por eles é um ritornelo um opus com sua cifra O conceito é um incorporai embora se encarne ou se efetue nos corpos Mas justamente não se confunde com o estado de coisas no qual se efetua Não tem coordenadas espaçotemporais mas apenas ordenadas intensivas Não tem energia mas somente intensidades é anergético a energia não é a intensidade mas a maneira como esta se desenrola e se anula num estado de coisas extensivo O conceito diz o acontecimento não a essência ou a coisa É um Acontecimento puro uma becceidade uma entidade o acontecimento de Outrem ou o acontecimento do rosto quando o rosto por sua vez é tomado como conceito Ou o pássaro como acontecimento O conceito definese pela inseparabilidade de um número finito de componentes heterogêneos percorridos por um ponto em sobrevôo absoluto à velocidade infinita Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos formas que não têm outro objeto senão a inseparabilidade de variações distintas2 O sobrevôo é o estado do conceito ou sua infinitude própria embora sejam os infinitos maiores ou menores segundo a cifra dos componentes dos limites e das pontes O conceito é bem ato de pensamento neste sentido o pensamento operando em velocidade infinita embora maior ou menor O conceito é portanto ao mesmo tempo absoluto e relativo relativo a seus próprios componentes aos outros conceitos ao plano a partir do qual se delimita aos problemas que se supõe deva resolver mas absoluto pela conden 2 Sobre o sobrevôo e as superfícies ou volumes absolutos como seres reais cf Raymond Ruyer Néo finalisme PUF cap IXXI 33 sação que opera pelo lugar que ocupa sobre o plano pelas condições que impõe ao problema É absoluto como todo mas relativo enquanto fragmentário É infinito por seu sobrevôo ou sua velocidade mas finito por seu movimento que traça o contorno dos componentes Um filósofo não pára de remanejar seus conceitos e mesmo de mudálos basta às vezes um ponto de detalhe que se avoluma e produz uma nova condensação acrescenta ou retira componentes O filósofo apresenta às vezes uma amnésia que faz dele quase um doente Nietzsche diz Jaspers corrigia ele mesmo suas idéias para constituir novas sem confessálo explicitamente em seus estados de alteração esquecia as conclusões às quais tinha chegado anteriormente Ou Leibniz eu acreditava entrar no porto mas fui jogado novamente em pleno mar3 O que porém permanece absoluto é a maneira pela qual o conceito criado se põe nele mesmo e com outros A relatividade e a absolutidade do conceito são como sua pedagogia e sua ontologia sua criação e sua autoposição sua idealidade e sua realidade Real sem ser atual ideal sem ser abstrato O conceito define se por sua consistência endoconsistência e exoconsistência mas não tem referência ele é autoreferencial põese a si mesmo e põe seu objeto ao mesmo tempo que é criado O construtivismo une o relativo e o absoluto Enfim o conceito não é discursivo e a filosofia não é uma formação discursiva porque não encadeia proposições É a confusão do conceito com a proposição que faz acreditar na existência de conceitos científicos e que considera a proposição como uma verdadeira intensão o que a frase exprime então o conceito filosófico só aparece quase sempre como uma proposição despida de sentido Esta confusão reina na lógica e explica a idéia infantil que ela tem da 3 Leibniz Système nouveau de Ia Nature 12 34 filosofia Medemse os conceitos por uma gramática filosófica que os substitui por proposições extraídas das frases onde eles aparecem somos restringidos sempre a alternativas entre proposições sem ver que o conceito já foi projetado no terceiro excluído O conceito não é de forma alguma uma proposição não é proposicional e a proposição não é nunca uma intensão As proposições definemse por sua referência e à referência não concerne ao Acontecimento mas a uma relação com o estado de coisas ou de corpos bem como às condições desta relação Longe de constituir uma intensão estas condições são todas extensionais implicam sucessivas operações de enquadramento em abcissas ou de linearização que fazem os dados intensivos entrar em coordenadas espaçotemporais e energéticas em operações de correspondência entre conjuntos assim delimitados São essas sucessões e essas correspondências que definem a discursividade nos sistemas extensivos e a independência das variáveis nas proposições opõese à inseparabilidade das variações no conceito Os conceitos que só têm consistência ou ordenadas intensivas fora de coordenadas entram livremente em relações de ressonância não discursiva seja porque os componentes de um se tornam conceitos com outros componentes sempre heterogêneos seja porque não apresentam entre si nenhuma diferença de escala em nenhum nível Os conceitos são centros de vibrações cada um em si mesmo e uns em relação aos outros É por isso que tudo ressoa em lugar de se seguir ou de se corresponder Não há nenhuma razão para que os conceitos se sigam Os conceitos como totalidades fragmentárias não são sequer os pedaços de um quebracabeça pois seus contornos irregulares não se correspondem Eles formam um muro mas é um muro de pedras secas e se tudo é tomado conjuntamente é por caminhos divergentes Mesmo as pontes de um conceito a um outro são ainda encruzilhadas ou desvios que não circuns 35 crevem nenhum conjunto discursivo São pontes moventes Desse ponto de vista não é errado considerar que a filosofia está em estado de perpétua digressão ou digressividade Daí decorrem grandes diferenças entre a enunciação filosófica dos conceitos fragmentários e a enunciação científica das proposições parciais Sob um primeiro aspecto toda enunciação é enunciação de posição mas ela permanece exterior à proposição porque tem por objeto um estado de coisas como referente e por condições as referências que constituem valores de verdade mesmo se estas condições em si mesmas são interiores ao objeto Ao contrário a enunciação de posição é estritamente imanente ao conceito já que este não tem outro objeto senão a inseparabilidade dos componentes pelos quais ele próprio passa e repassa e que constitui sua consistência Quanto ao outro aspecto enunciação de criação ou de assinatura é certo que as proposições científicas e seus correlatos não são menos assinadas ou criadas que os conceitos filosóficos falamos de teorema de Pitágoras de coordenadas cartesianas de número hamiltoniano de função de Lagrange tanto quanto de Idéia platônica ou de cogito de Descartes etc Mas os nomes próprios aos quais se vincula assim a enunciação malgrado serem históricos e atestados como tais são máscaras para outros devires servem somente de pseudônimos a entidades singulares mais secretas No caso das proposições tratase de observadores parciais extrínsecos cientificamente definíveis com relação a tal ou tais eixos de referência ao passo que para os conceitos são personagens conceituais intrínsecos que impregnam tal ou tal plano de consistência Não se dirá somente que os nomes próprios têm usos muito diferentes nas filosofias ciências e artes o mesmo acontece para os elementos sintáticos e notadamente as preposições as conjunções ou pois A filosofia procede por frases mas não são sempre proposições que se extraem das frases em geral 36 Por enquanto dispomos apenas de uma hipótese muito ampla das frases ou de um equivalente a filosofia tira conceitos que não se confundem com idéias gerais ou abstratas enquanto que a ciência tira prospectos proposições que não se confundem com juízos e a arte tira perceptos e afectos que também não se confundem com percepções ou sentimentos Em cada caso a linguagem é submetida a provas e usos incomparáveis mas que não definem a diferença entre as disciplinas sem constituir também seus cruzamentos perpétuos EXEMPLO I É necessário de início confirmar as análises precedentes tomando o exemplo de um conceito filosófico assinado dentre os mais conhecidos ou seja o cogito cartesiano o Eu de Descartes um conceito de eu Este conceito tem três componentes duvidar pensar ser não se concluirá daí que todo conceito seja triplo O enunciado total do conceito enquanto multiplicidade é eu penso logo eu sou ou mais completamente eu que duvido eu penso eu sou eu sou uma coisa que pensa É o acontecimento sempre renovado do pensamento tal como o vê Descartes O conceito condensase no ponto E que passa por todos os componentes e onde coincidem E duvidar E pensar E ser Os componentes como ordenadas intensivas se ordenam nas zonas de vizinhança ou de indiscernibilidade que fazem passar de uma à outra e que constituem sua inseparabilidade uma primeira zona está entre duvidar e pensar eu que duvido não posso duvidar que penso e a segunda está entre pensar e ser para pensar é necessário ser Os componentes apresentamse aqui como verbos mas isto não é uma regra basta que sejam va 37 riações Com efeito a dúvida comporta momentos que não são as espécies de um gênero mas as fases de uma variação dúvida sensível científica obsessiva Todo conceito tem portanto um espaço de fases ainda que seja de uma maneira diferente daquela da ciência O mesmo vale para os modos do pensamento sentir imaginar ter idéias O mesmo vale para os tipos de ser coisa ou substância o ser infinito o ser pensante finito o ser extenso É de se observar que neste último caso o conceito do eu não retém senão a segunda fase do ser e deixa fora o resto da variação Mas esse é precisamente o sinal de que o conceito se fecha como totalidade fragmentária com eu sou uma coisa pensante não se passará às outras fases do ser senão por pontesencruzilhadas que levam a outros conceitos Assim entre minhas idéias eu tenho a idéia de infinito é a ponte que conduz do conceito de eu àquele de Deus este novo conceito tendo ele mesmo três componentes que formam 38 as provas da existência de Deus como acontecimento infinito a terceira prova ontológica assegurando o fechamento do conceito mas também lançando por sua vez uma ponte ou uma bifurcação na direção de um conceito de extensão porquanto garante o valor objetivo de verdade das outras idéias claras e distintas de que dispomos Quando nos perguntamos há precursores do cogito queremos dizer há conceitos assinados por filósofos anteriores que teriam componentes semelhantes ou quase idênticos mas onde faltaria um ou então que acrescentariam outros de tal maneira que um cogito não chegaria a cristalizarse os componentes não coincidindo ainda em um eu Tudo parecia pronto e todavia algo faltava O conceito anterior remetia talvez a um outro problema diferente daquele do cogito é preciso uma mutação de problema para que o cogito cartesiano apareça ou mesmo se desenrolava sobre um outro plano O plano cartesiano consiste em recusar todo pressuposto objetivo explícito em que cada conceito remeteria a outros conceitos por exemplo o homem animalracional Ele exige somente uma compreensão préfilosófica isto é pressupostos implícitos e subjetivos todo mundo sabe o que quer dizer pensar ser eu sabese fazendoo sendo ou dizendoo É uma distinção muito nova Esse plano exige um conceito primeiro que não deve pressupor nada de objetivo De modo que o problema é qual é o primeiro conceito sobre este plano ou por qual começar para determinar a verdade como certeza subjetiva absolutamente pura Tal é o cogito Os outros conceitos poderão conquistar a objetividade mas com a condição de serem ligados por pontes ao primeiro conceito de responderem a problemas sujeitos às mesmas condições e de permanecerem sobre o 39 mesmo plano será a objetividade que adquire um conhecimento certo e não a objetividade que supõe uma verdade reconhecida como preexistente ou já lá É inútil perguntar se Descartes tinha ou não razão Pressupostos subjetivos e implícitos valem mais que pressupostos objetivos explícitos É necessário começar e no caso positivo é necessário começar do ponto de vista de uma certeza subjetiva O pensamento pode sob essa condição ser o verbo de um Eu Não há resposta direta Os conceitos cartesianos não podem ser avaliados a não ser em função dos problemas aos quais eles respondem e do plano sobre o qual eles ocorrem Em geral se os conceitos anteriores puderam preparar um conceito sem por isso constituílo é que seu problema estava ainda enlaçado com outros e o plano não tinha ainda a curvatura ou os movimentos indispensáveis E se conceitos podem ser substituídos por outros é sob a condição de novos problemas e de um outro plano com relação aos quais por exemplo Eu perde todo sentido o começo perde toda necessidade os pressupostos toda diferença ou assumem outras Um conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função das condições de sua criação Há um plano melhor que todos os outros e problemas que se impõem contra os outros Justamente não se pode dizer nada a este respeito Os planos é necessário fazêlos e os problemas colocálos como é necessário criar os conceitos O filósofo faz o que pode mas tem muito a fazer para saber se é o melhor ou mesmo se interessar por esta questão Certamente os novos conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos com nossa história e sobretudo com nossos devires Mas que significam os conceitos de nosso tempo ou de um tempo qualquer Os conceitos não são eternos mas são por isso temporais Qual é a forma filosófica dos problemas deste tempo Se um concei 40 to é melhor que o precedente é porque ele faz ouvir novas variações e ressonâncias desconhecidas opera recortes insólitos suscita um Acontecimento que nos sobrevoa Mas não é já o que fazia o precedente E se podemos continuar sendo platônicos cartesianos ou kantianos hoje é porque temos direito de pensar que seus conceitos podem ser reativados em nossos problemas e inspirar os conceitos que é necessário criar É qual é a melhor maneira de seguir os grandes filósofos repetir o que eles disseram ou então fazer o que eles fizeram isto é criar conceitos para problemas que mudam necessariamente É por isso que o filósofo tem muito pouco prazer em discutir Todo filósofo foge quando ouve a frase vamos discutir um pouco As discussões são boas para as mesas redondas mas é sobre uma outra mesa que a filosofia joga seus dados cifrados As discussões o mínimo que se pode dizer é que elas não fariam avançar o trabalho já que os interlocutores nunca falam da mesma coisa Que alguém tenha tal opinião e pense antes isto que aquilo o que isso pode importar para a filosofia na medida em que os problemas em jogo não são enunciados E quando são enunciados não se trata mais de discutir mas de criar indiscutíveis conceitos para o problema que nós nos atribuímos A comunicação vem sempre cedo demais ou tarde demais e a conversação está sempre em excesso com relação a criar Fazemos às vezes da filosofia a idéia de uma perpétua discussão como racionalidade comunicativa ou como conversação democrática universal Nada é menos exato e quando um filósofo critica um outro é a partir de problemas e de um plano que não eram aqueles do outro e que fazem fundir os antigos conceitos como se pode fundir um canhão para fabricar a partir dele novas armas Não estamos nunca sobre o mesmo plano Criticar é somente constatar que um conceito se esvanece perde seus componentes ou adquire outros 41 novos que o transformam quando é mergulhado em um novo meio Mas aqueles que criticam sem criar aqueles que se contentam em defender o que se esvanesceu sem saber darlhe forças para retornar à vida eles são a chaga da filosofia São animados pelo ressentimento todos esses discutidores esses comunicadores Eles não falam senão deles mesmos confrontando generalidades vazias A filosofia tem horror a discussões Ela tem mais que fazer O debate lhe é insuportável não porque ela é segura demais de si mesma ao contrário são suas incertezas que a arrastam para outras vias mais solitárias Contudo Sócrates não fazia da filosofia uma livre discussão entre amigos Não é o auge da sociabilidade grega como conversação de homens livres De fato Sócrates tornou toda discussão impossível tanto sob a forma curta de um agôn de questões e respostas quanto sob a forma longa de uma rivalidade de discursos Ele fez do amigo o amigo exclusivo do conceito e do conceito o impiedoso monólogo que elimina um após o outro todos os rivais EXEMPLO II O Parmênides mostra quanto Platão é mestre do conceito O Uno tem dois componentes o ser e o nãoser fases de componentes o Uno superior ao ser igual ao ser inferior ao ser o Uno superior ao não ser igual ao nãoser zonas de indiscernibilidade com relação a si com relação aos outros E um modelo de conceito Mas o Uno não precede todo conceito É aí que Platão ensina o contrário daquilo que faz ele cria os conceitos mas precisa colocálos como representando o incriado que os precede Ele põe o tempo no conceito mas este tempo deve ser o Anterior Ele constrói o conceito mas como testemunha da preexistência de uma objetidade sob a forma de uma diferença de tempo 44 capaz de medir o distanciamento ou a proximidade do construtor eventual É que no plano platônico a verdade se põe como pressuposta como já estando lá Tal é a Idéia No conceito platônico de Idéia primeiro toma um sentido muito preciso muito diferente daquele que terá em Descartes é o que possui objetivamente uma qualidade pura ou o que não é outra coisa senão o que ele é Só a Justiça é justa a Coragem é corajosa tais são as Idéias e há Idéia de mãe se há uma mãe que não é outra coisa senão mãe que não teria sido filha por sua vez ou pêlo que não é outra coisa senão pêlo e não cilicium também Está entendido que as coisas ao contrário são sempre diferentes daquilo que elas são no melhor dos casos elas não possuem portanto a qualidade senão secundariamente não podem senão aspirar à qualidade e somente na medida em que elas participam da Idéia Então o conceito de Idéia tem os seguintes componentes a qualidade possuída ou por possuir a Idéia que possui primordialmente como imparticipável o que aspira à qualidade e não pode possuíla a não ser secundariamente terciariamente quaternáriamente a Idéia participada que julga as pretensões Dirseia o Pai um pai duplo a filha e os pretendentes São as ordenadas intensivas da Idéia uma pretensão não estará fundada a não ser por uma vizinhança uma maior ou menor proximidade que se teve com relação à Idéia no sobrevôo de um tempo sempre anterior necessariamente anterior O tempo sob esta forma de anterioridade pertence ao conceito ele é como que sua zona Seguramente não é neste plano grego sobre este solo platônico que o cogito pode eclodir Enquanto subsistir a preexistência da Idéia mesmo à maneira cristã dos arquétipos no entendimento de Deus o cogito poderá ser preparado mas não levado a cabo Para que 43 Descartes crie este conceito será necessário que primeiro mude singularmente de sentido tome um sentido subjetivo e que toda diferença de tempo se anule entre a idéia e a alma que a forma enquanto sujeito donde a importância da observação de Descartes contra a reminiscência quando diz que as idéias inatas não são antes mas ao mesmo tempo que a alma Será necessário que se chegue a uma instantaneidade do conceito e que Deus crie até as verdades Será necessário que a pretensão mude de natureza o pretendente cessa de receber a filha das mãos de um pai para devêla apenas a suas próprias proezas cavalheirescas a seu próprio método A questão de saber se Malebranche pode reativar componentes platônicos num plano autenticamente cartesiano e a que preço deveria ser analisada deste ponto de vista Mas queríamos apenas mostrar que um conceito tem sempre componentes que podem impedir a aparição de um outro conceito ou ao contrário que só podem aparecer ao preço do esvanecimento de outros conceitos Entretanto nunca um conceito vale por aquilo que ele impede ele só vale por sua posição incomparável e sua criação própria Suponhamos que se acrescente um componente a um conceito é provável que ele estoure ou apresente uma mutação completa implicando talvez um outro plano em todo caso outros problemas É o caso do cogito kantiano Sem dúvida Kant construiu um plano transcendental que torna a dúvida inútil e muda também a natureza dos pressupostos Mas é em virtude desse plano que ele pode declarar que se eu penso é uma determinação que implica a este título uma existência indeterminada eu sou nem por isso sabemos como este indeterminado se torna determinável nem portanto sob qual forma ele aparece como determina 44 do Kant critica pois Descartes por ter dito eu sou uma substância pensante já que nada funda uma tal pretensão do Eu Kant exige a introdução de um novo componente no cogito aquele que Descartes tinha recusado precisamente o tempo pois é somente no tempo que minha existência indeterminada se torna determinável Mas eu não sou determinado no tempo a não ser como eu passivo e fenomenal sempre afetável modificável variável Eis que o cogito apresenta agora quatro componentes eu penso e por isso sou ativo eu tenho uma existência portanto esta existência não é determinável senão no tempo como aquela de um eu passivo eu sou pois determinado como um eu passivo que se representa necessariamente sua própria atividade pensante como um Outro que o afeta Não é um outro sujeito é antes o sujeito que se torna um outro É a via de uma conversão do eu em outrem Uma preparação do Eu é um outro É uma nova sintaxe com outras ordenadas outras zonas de indiscernibilidade asseguradas pelo esquema depois pela afecção de si por si que tornam inseparáveis o Eu Je e o Mim Moi Que Kant critique Descartes significa somente que traçou um plano e construiu um problema que não podem ser ocupados ou efetuados pelo cogito cartesiano Descartes tinha criado o cogito como conceito mas expulsando o tempo como forma de anterioridade para fazer dele um simples modo de sucessão que remete à criação contínua Kant reintroduz o tempo no cogito mas um tempo inteiramente diferente daquele da anterioridade platônica Criação de conceito Ele faz do tempo um componente de um novo cogito mas sob a condição de fornecer por sua vez um novo conceito do tempo o tempo tornase forma de inferioridade com três componentes sucessão mas também simultaneidade e 45 permanência O que implica ainda um novo conceito de espaço que não pode mais ser definido pela simples simultaneidade e se torna forma de exterioridade É uma revolução considerável Espaço tempo Eu penso três conceitos originais ligados por pontes que são outras tantas encruzilhadas Uma saraivada de novos conceitos A história da filosofia não implica somente que se avalie a novidade histórica dos conceitos criados por um filósofo mas a potência de seu devir quando eles passam uns pelos outros Em toda parte reencontramos o mesmo estatuto pedagógico do conceito uma multiplicidade uma superfície ou um volume absolutos autoreferentes compostos de um certo número de variações intensivas inseparáveis segundo uma ordem de vizinhança e percorridos por um ponto em estado de sobrevôo O conceito é o contorno a configuração a constelação de um acontecimento por vir Os conceitos neste sentido pertencem de pleno direito à filosofia porque é ela que os cria e não cessa de criálos O conceito é evidentemente conhecimento mas conhecimento de si e o que ele conhece é o puro acontecimento que não se confunde com o estado de coisas no qual se encarna Destacar sempre um acontecimento das coisas e dos seres é a tarefa da filosofia quando cria conceitos entidades Erigir o novo evento das coisas e dos seres darlhes sempre um novo acontecimento o espaço o tempo a matéria o pensamento o possível como acontecimentos É inútil atribuir conceitos à ciência mesmo quando ela se ocupa dos mesmos objetos não é sob o aspecto do conceito não é criando conceitos Dirseá que é uma questão de palavras mas é raro que as palavras não impliquem intenções e armadilhas Seria uma pura questão de palavras se decidíssemos reservar o conceito à ciência sob condição 46 ilc se encontrar outra palavra para designar o negócio da filosofia Mas o mais das vezes procedemos de outra maneira Começamos por atribuir o poder do conceito à ciência definimos o conceito pelos procedimentos criativos da ciência medimolo pela ciência depois perguntamos se não resta uma possibilidade para que a filosofia forme por sua vez conceitos de segunda zona que suprem sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido Assim Gilles GastonGranger começa por definir o conceito como uma proposição ou uma função científicas depois concede que pode até mesmo haver conceitos filosóficos que substituam a referência ao objeto pelo correlato de uma totalidade do vivido4 Mas de fato ou a filosofia ignora tudo a respeito do conceito ou ela o conhece de pleno direito e de primeira mão a ponto de nada dele deixar para a ciência que aliás não tem nenhuma necessidade dele e que só se ocupa de estados de coisas e de suas condições As proposições ou funções bastam para a ciência ao passo que a filosofia não tem necessidade por seu lado de invocar um vivido que só daria uma vida fantasmática e extrínseca a conceitos secundários por si mesmos exangues O conceito filosófico não se refere ao vivido por compensação mas consiste por sua própria criação em erigir um acontecimento que sobrevoe todo o vivido bem como qualquer estado de coisas Cada conceito corta o acontecimento o recorta a sua maneira A grandeza de uma filosofia avaliase pela natureza dos acontecimentos aos quais seus conceitos nos convocam ou que ela nos torna capazes de depurar em conceitos Portanto é necessário experimentar em seus mínimos detalhes o vínculo único exclusivo dos conceitos com a filosofia como disciplina criadora O conceito pertence à filosofia e só a ela pertence 4 GillesGaston Granger Pour Ia connaissance philosophique Ed Odile Jacob cap VI 47 O Plano de Imanência Os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias que não se ajustam umas às outras já que suas bordas não coincidem Eles nascem de lances de dados não compõem um quebracabeças E todavia eles ressoam e a filosofia que os cria apresenta sempre um Todo poderoso não fragmentado mesmo se permanece aberto UnoTodo ilimitado omnitudo que os compreende a todos num só e mesmo plano É uma mesa um platô uma taça É um plano de consistência ou mais exatamente o plano de imanência dos conceitos o planômeno Os conceitos e o plano são estritamente correlativos mas nem por isso devem ser confundidos O plano de imanência não é um conceito nem o conceito de todos os conceitos Se estes fossem confundíveis nada impediria os conceitos de se unificarem ou de tornaremse universais e de perderem sua singularidade mas também nada impediria o plano de perder sua abertura A filosofia é um construtivismo e o construtivismo tem dois aspectos complementares que diferem em natureza criar conceitos e traçar um plano Os conceitos são como as vagas múltiplas que se erguem e que se abaixam mas o plano de imanência é a vaga única que os enrola e os desenrola O plano envolve movimentos infinitos que o percorrem e retornam mas os conceitos são velocidades infinitas de movimentos finitos que percorrem cada vez somente seus próprios componentes De Epicuro a Espinosa o prodigioso livro V de Espinosa a Michaux o problema do pensamento é a velocidade infinita mas esta precisa de um meio que se mova em si mesmo infinitamente o plano o vazio o horizonte É necessário a elasticidade do conceito mas também a fluidez do meio1 É necessário os dois para compor os seres lentos que nós somos 1 Sobre a elasticidade do conceito Hubert Damisch Prefácio a Prospectus de Dubuffet Gallimard I pp 1819 51 Os conceitos são o arquipélago ou a ossatura antes uma coluna vertebral que um crânio enquanto o plano é a respiração que banha essas tribos isoladas Os conceitos são superfícies ou volumes absolutos disformes e fragmentários enquanto o plano é o absoluto ilimitado informe nem superfície nem volume mas sempre fractal Os conceitos são agenciamentos concretos como configurações de uma máquina mas o plano é a máquina abstrata cujos agenciamentos são as peças Os conceitos são acontecimentos mas o plano é o horizonte dos acontecimentos o reservatório ou a reserva de acontecimentos puramente conceituais não o horizonte relativo que funciona como um limite muda com um observador e engloba estados de coisas observáveis mas o horizonte absoluto independente de todo observador e que torna o acontecimento como conceito independente de um estado de coisas visível em que ele se efetuaria2 Os conceitos ladrilham ocupam ou povoam o plano pedaço por pedaço enquanto o próprio plano é o meio indivisível em que os conceitos se distribuem sem romperlhe a integridade a continuidade eles ocupam sem contar a cifra do conceito não é um número ou se distribuem sem dividir O plano é como um deserto que os conceitos povoam sem partilhar São os conceitos mesmos que são as únicas regiões do plano mas é o plano que é o único suporte dos conceitos O 2 JeanPierre Luminet distingue os horizontes relativos como o horizonte terrestre centrado sobre um observador e se deslocando com ele e o horizonte absoluto horizonte dos acontecimentos independente de todo observador e que separa os acontecimentos em duas categorias vistos e nãovistos comunicáveis e nãocomunicáveis le trou noir et linfini in Les dimensions de 1infini Instituto Cultural Italiano de Paris Nós nos reportaremos também ao texto zen do monge japonês Dôgen que invoca o horizonte ou a reserva dos acontecimentos Shôbogenzo Ed de Ia Différence tradução e comentários de René de Ceccaty e Nakamura 52 plano não tem outras regiões senão as tribos que o povoam e nele se deslocam É o plano que assegura o ajuste dos conceitos com conexões sempre crescentes e são os conceitos que asseguram o povoamento do plano sobre uma curvatura renovada sempre variável O plano de imanência não é um conceito pensado nem pensável mas a imagem do pensamento a imagem que ele se dá do que significa pensar fazer uso do pensamento se orientar no pensamento Não é um método pois todo método concerne eventualmente aos conceitos e supõe uma tal imagem Não é nem mesmo um estado de conhecimento sobre o cérebro e seu funcionamento já que o pensamento não é aqui remetido ao lento cérebro como ao estado de coisas cientificamente determinável em que ele se limita a efetuarse quaisquer que sejam seu uso e sua orientação Não é nem mesmo a opinião que se faz do pensamento de suas formas de seus fins e seus meios a tal ou tal momento A imagem do pensamento implica uma severa repartição do fato e do direito o que concerne ao pensamento como tal deve ser separado dos acidentes que remetem ao cérebro ou às opiniões históricas Quid júris Por exemplo perder a memória ou estar louco isto pode pertencer ao pensamento como tal ou são somente acidentes do cérebro que devem ser considerados como simples fatos E contemplar refletir comunicar são outra coisa senão opiniões que se faz sobre o pensamento a tal época e em tal civilização A imagem do pensamento só retém o que o pensamento pode reivindicar de direito O pensamento reivindica somente o movimento que pode ser levado ao infinito O que o pensamento reivindica de direito o que ele seleciona é o movimento infinito ou o movimento do infinito E ele que constitui a imagem do pensamento O movimento do infinito não remete a coordenadas espaçotemporais que definiriam as posições sucessivas de um 53 móvel e os pontos fixos de referência com relação aos quais estas variam Orientarse no pensamento não implica nem num ponto de referência objetivo nem num móvel que se experimentasse como sujeito e que por isso desejaria o infinito ou teria necessidade dele O movimento tomou tudo e não há lugar nenhum para um sujeito e um objeto que não podem ser senão conceitos O que está em movimento é o próprio horizonte o horizonte relativo se distancia quando o sujeito avança mas o horizonte absoluto nós estamos nele sempre e já no plano de imanência O que define o movimento infinito é uma ida e volta porque ele não vai na direção de uma destinação sem já retornar sobre si a agulha sendo também o pólo Se voltarse para é o movimento do pensamento na direção do verdadeiro como o verdadeiro não se voltaria também na direção do pensamento E como não se afastaria o próprio verdadeiro do pensamento quando o pensamento dele se afasta Não é uma fusão entretanto é uma reversibilidade uma troca imediata perpétua instantânea um clarão O movimento infinito é duplo e não há senão uma dobra de um a outro É neste sentido que se diz que pensar e ser são uma só e mesma coisa Ou antes o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser Quando salta o pensamento de Tales é como água que o pensamento retorna Quando o pensamento de Heráclito se faz polémos é o fogo que retorna sobre ele É uma mesma velocidade de um lado e do outro o átomo vai tão rápido quanto o pensamento3 O plano de imanência tem duas faces como Pensamento e como Natureza como Physis e como Noüs É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos presos uns nos outros dobrados uns nos outros na medida em que o retorno de um relança um outro instantaneamente de tal maneira que o pla 3 Epicuro Carta a Heródoto 6162 54 no de imanência não pára de se tecer gigantesco tear Voltarsepara não implica somente se desviar mas enfrentar voltarse retornar perderse apagarse4 Mesmo o negativo produz movimentos infinitos cair no erro bem como evitar o falso deixarse dominar pelas paixões bem como superálas Diversos movimentos do infinito são de tal maneira misturados uns com os outros que longe de romper o UnoTodo do plano de imanência constituem sua curvatura variável as concavidades e as convexidades a natureza fractal de alguma maneira É esta natureza fractal que faz do planômeno um infinito sempre diferente de toda superfície ou volume determinável como conceito Cada movimento percorre todo o plano fazendo um retorno imediato sobre si mesmo cada um se dobrando mas também dobrando outros ou deixandose dobrar engendrando retroações conexões proliferações na fractalização desta infinidade infinitamente redobrada curvatura variável do plano Mas se é verdade que o plano de imanência é sempre único sendo ele mesmo variação pura tanto mais necessário será explicar por que há planos de imanência variados distintos que se sucedem ou rivalizam na história precisamente segundo os movimentos infinitos retidos selecionados O plano não é certamente o mesmo nos gregos no século XVII hoje e ainda estes termos são vagos e gerais não é nem a mesma imagem do pensamento nem a mesma matéria do ser O plano é pois o objeto de uma especificação infinita que faz com que ele não pareça ser o UnoTodo senão em cada caso especificado pela seleção do movimento Esta dificuldade concernente à natureza última do plano de imanência só pode ser resolvida progressivamente É essencial não confundir o plano de imanência e os conceitos que o ocupam E todavia os mesmos elementos 4 Sobre estes dinamismos cf Michel Courthial Le visage no prelo 55 podem aparecer duas vezes sobre o plano e no conceito mas jamais sob os mesmos traços mesmo quando se exprimem nos mesmos verbos e nas mesmas palavras já o vimos quanto ao ser ao pensamento ao Uno eles entram em componentes de conceito e são eles mesmos conceitos mas de uma maneira tão diferente que não pertencem ao plano como imagem ou matéria Inversamente o verdadeiro sobre o plano não pode ser definido senão por um voltarse na direção de ou aquilo em cuja direção o pensamento se volta mas não dispomos assim de nenhum conceito de verdade Se o próprio erro é um elemento de direito que faz parte do plano ele consiste somente em tomar o falso pelo verdadeiro cair mas só recebe um conceito se são determinados seus componentes por exemplo segundo Descartes os dois componentes de um entendimento finito e de uma vontade infinita Os movimentos ou elementos do plano não parecerão pois senão definições nominais com relação aos conceitos enquanto negligenciarmos a diferença de natureza Mas na realidade os elementos do plano são traços diagramáticos enquanto os conceitos são traços intensivos Os primeiros são movimentos do infinito enquanto os segundos são as ordenadas intensivas desses movimentos como cortes originais ou posições diferenciais movimentos finitos cujo infinito só é de velocidade e que constituem cada vez uma superfície ou um volume um contorno irregular marcando uma parada no grau de proliferação Os primeiros são direções absolutas de natureza fractal ao passo que os segundos são dimensões absolutas superfícies ou volumes sempre fragmentários definidos intensivamente Os primeiros são intuições os segundos intensões Que toda filosofia dependa de uma intuição que seus conceitos não cessam de desenvolver até o limite das diferenças de intensidade esta grandiosa perspectiva leibniziana ou bergsoniana está fundada se consideramos a intuição como o envolvimento dos mo 56 vimentos infinitos do pensamento que percorrem sem cessar um plano de imanência Não se concluirá daí que os conceitos se deduzam do plano para tanto é necessário uma construção especial distinta daquela do plano e é por isso que os conceitos devem ser criados do mesmo modo que o plano deve ser erigido Jamais os traços intensivos são a conseqüência dos traços diagramáticos nem as ordenadas intensivas se deduzem dos movimentos ou direções A correspondência entre os dois excede mesmo as simples ressonâncias e faz intervir instâncias adjuntas à criação dos conceitos a saber os personagens conceituais Se a filosofia começa com a criação de conceitos o plano de imanência deve ser considerado como préfilosófico Ele está pressuposto não da maneira pela qual um conceito pode remeter a outros mas pela qual os conceitos remetem eles mesmos a uma compreensão nãoconceitual Esta compreensão intuitiva varia ainda segundo a maneira pela qual o plano está traçado Em Descartes tratarseia de uma compreensão subjetiva e implícita suposta pelo Eu penso como primeiro conceito em Platão era a imagem virtual de um jápensado que redobraria todo conceito atual Heidegger invoca uma compreensão pré ontológica do Ser uma compreensão préconceitual que parece bem implicar a captação de uma matéria do ser em relação com uma disposição do pensamento De qualquer maneira a filosofia coloca como pré filosófica ou mesmo nãofilosófica a potência de um UnoTodo como um deserto movente que os conceitos vêm a povoar Préfilosófica não significa nada que preexista mas algo que não existe fora da filosofia embora esta o suponha São suas condições internas O nãofilosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia e significa que a filosofia não pode contentarse em ser compreendida somente de maneira filosófica ou conceituai mas que ela se endereça também em sua essência aos não filó 57 sofos5 Veremos que esta remissão constante à nãofilosofia assume aspectos variados de acordo com este primeiro aspecto a filosofia definida como criação de conceitos implica uma pressuposição que dela se distingue e que todavia dela é inseparável A filosofia é ao mesmo tempo criação de conceito e instauração do plano O conceito é o começo da filosofia mas o plano é sua instauração6 O plano não consiste evidentemente num programa num projeto num fim ou num meio é um plano de imanência que constitui o solo absoluto da filosofia sua Terra ou sua desterritorialização sua fundação sobre os quais ela cria seus conceitos Ambos são necessários criar os conceitos e instaurar o plano como duas asas ou duas nadadeiras Pensar suscita a indiferença geral E todavia não é falso dizer que é um exercício perigoso É somente quando os perigos se tornam evidentes que a indiferença cessa mas eles permanecem freqüentemente escondidos pouco perceptíveis inerentes à empresa Precisamente porque o plano de imanência é pré filosófico e já não opera com conceitos ele implica uma espécie de experimentação tateante e seu traçado recorre a meios pouco confessáveis pouco racionais e razoáveis São meios da ordem do sonho dos processos patológicos das experiências esotéricas da embriaguez ou do excesso Corremos em direção ao horizonte sobre o plano de imanência retornamos dele com olhos vermelhos mes 5 François Laruelle desenvolve uma das tentativas mais interessantes da filosofia contemporânea invoca um UnoTodo que qualifica de nãofilosófico e estranhamente de científico sobre o qual se enraíza a decisão filosófica Este UnoTodo parece próximo de Espinosa Cf Philosophie et nonphilosopbie Ed Mardaga 6 Etienne Souriau publicou em 1939 Uinstauration pbilosophique Ed Alcan sensível à atividade criadora em filosofia ele invoca uma espécie de plano de instauração como solo desta criação ou filosofema animado de dinamismos pp 6263 58 mo se são os olhos do espírito Mesmo Descartes tem seu sonho Pensar é sempre seguir a linha de fuga do vôo da bruxa Por exemplo o plano de imanência de Michaux com seus movimentos e suas velocidades infinitas furiosas O mais das vezes esses meios não aparecem no resultado que deve ser tomado em si mesmo e calmamente Mas então perigo toma um outro sentido tratase de conseqüências evidentes quando a imanência pura suscita na opinião uma forte reprovação instintiva e a natureza dos conceitos criados ainda vem redobrar a reprovação É que não pensamos sem nos tornarmos outra coisa algo que não pensa um bicho um vegetal uma molécula uma partícula que retornam sobre o pensamento e o relançam O plano de imanência é como um corte do caos e age como um crivo O que caracteriza o caos com efeito é menos a ausência de determinações que a velocidade infinita com a qual elas se esboçam e se apagam não é um movimento de uma a outra mas ao contrário a impossibilidade de uma relação entre duas determinações já que uma não aparece sem que a outra tenha já desaparecido e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço O caos não é um estado inerte ou estacionado não é uma mistura ao acaso O caos caotiza e desfaz no infinito toda consistência O problema da filosofia é de adquirir uma consistência sem perder o infinito no qual o pensamento mergulha o caos deste ponto de vista tem uma existência tanto mental como física Dar consistência sem nada perder do infinito é muito diferente do problema da ciência que procura dar referências ao caos sob a condição de renunciar aos movimentos e velocidades infinitos e de operar desde início uma limitação de velocidade o que é primeiro na ciência é a luz ou o horizonte relativo A filosofia ao contrário procede supondo ou instaurando o plano de imanência é ele cujas curvaturas variáveis conservam os mo 59 vimentos infinitos que retornam sobre si na troca incessante mas também não cessam de liberar outras que se conservam Então resta aos conceitos traçar as ordenadas intensivas destes movimentos infinitos como movimentos eles mesmos finitos que formam em velocidade infinita contornos variáveis inscritos sobre o plano Operando um corte do caos o plano de imanência faz apelo a uma criação de conceitos À questão a filosofia pode ou deve ser considerada como grega uma primeira resposta pareceu ser que a cidade grega com efeito se apresenta como a nova sociedade dos amigos com todas as ambigüidades desta palavra JeanPierre Vernant acrescenta uma segunda resposta os gregos seriam os primeiros a ter concebido uma imanência estrita da Ordem a um meio cósmico que corta o caos à maneira de um plano Se se chama de Logos um tal planocrivo grande é a distância entre o Logos e a simples razão como quando se diz que o mundo é racional A razão é apenas um conceito e um conceito bem pobre para definir o plano e os movimentos infinitos que o percorrem Numa palavra os primeiros filósofos são aqueles que instauram um plano de imanência como um crivo estendido sobre o caos Eles se opõem neste sentido aos Sábios que são personagens da religião sacerdotes porque concebem a instauração de uma ordem sempre transcendente imposta de fora por um grande déspota ou por um deus superior aos outros inspirado por Eris na seqüência de guerras que ultrapassam todo agôn e de ódios que recusam desde o início as provas da rivalidade7 Há religião cada vez que há transcendência Ser vertical Estado imperial no céu ou sobre a terra e há Filosofia cada vez que houver imanência mesmo se ela serve de arena ao agôn e à rivalidade os tiranos gregos não seriam uma objeção porque eles estão plenamente 7 Cf JeanPierre Vernant Les origines de Ia pensée grecque PUF pp 105125 62 do lado da sociedade dos amigos tal como ela se apresenta através de suas rivalidades mais loucas mais violentas E estas duas determinações eventuais da filosofia como grega estão talvez profundamente ligadas Só os amigos podem estender um plano de imanência como um solo que se esquiva dos ídolos Em Empédocles é Filia que o traça mesmo se ela não retorna sobre mim sem dobrar o Ódio como o movimento tornado negativo que testemunha uma subtranscendência do caos o vulcão e uma sobretranscendência de um deus Pode ser que os primeiros filósofos e sobretudo Empédocles tenham ainda o ar de sacerdotes ou mesmo de reis Eles se apropriam da máscara do sábio e como diz Nietzsche como a filosofia não se disfarçaria em seus primórdios E mesmo poderá ela jamais prescindir dos disfarces Se a instauração da filosofia se confunde com a suposição de um plano préfilosófico como a filosofia não tiraria proveito disso para pôr uma máscara Resta que os primeiros filósofos traçam um plano que movimentos ilimitados não cessam de percorrer sobre duas faces das quais uma é determinável como Physis na medida em que dá uma matéria ao Ser e a outra como Noüs enquanto dá uma imagem ao pensamento É Anaximandro que leva ao maior rigor a distinção das duas faces combinando o movimento das qualidades com a potência de um horizonte absoluto o Apeiron ou o Ilimitado mas sempre sobre o mesmo plano O filósofo opera um vasto seqüestro da sabedoria ele a põe a serviço da imanência pura Ele substitui a genealogia por uma geologia EXEMPLO III Podese apresentar toda a história da filosofia do ponto de vista da instauração de um plano de imanência Distinguirseiam então os fisicalistas que insistem sobre a matéria do Ser e os noologistas sobre a ima 61 gem do pensamento Mas um risco de confusão surge muito rápido em vez de o plano de imanência ele mesmo constituir esta matéria do Ser ou esta imagem do pensamento é a imanência que seria remetida a algo que seria como um dativo Matéria ou Espírito É o que se torna evidente com Platão e seus sucessores Em vez de um plano de imanência constituir o UnoTodo a imanência está no Uno de tal modo que um outro Uno desta vez transcendente se superpõe àquele no qual a imanência se estende ou ao qual ela se atribui sempre um Uno para além do Uno será a fórmula dos neoplatônicos Cada vez que se interpreta a imanência como a algo produzse uma confusão do plano com o conceito de modo que o conceito se torna um universal transcendente e o plano um atributo no conceito Assim mal entendido o plano de imanência relança o transcendente é um simples campo de fenômenos que só possui secundariamente o que se atribui de início à unidade transcendente Com a filosofia cristã a situação piora A posição de imanência continua sendo a instauração filosófica pura mas ao mesmo tempo ela só é suportada em doses muito pequenas ela é severamente controlada e enquadrada pelas exigências de uma transcendência emanativa e sobretudo criativa Cada filósofo deve demonstrar com o risco de sua obra e por vezes de sua vida que a dose de imanência que ele injeta no mundo e no espírito não compromete a transcendência de um Deus ao qual a imanência não deve ser atribuída senão secundariamente Nicolau de Cusa Eckhart Bruno A autoridade religiosa quer que a imanência não seja sustentada senão localmente ou num nível intermediário um pouco como numa fonte em cascata na qual a água pode brevemente manar sobre cada plataforma mas sob a 62 condição de vir de uma fonte mais alta e descer mais baixo transascendência e transdescendência como dizia Wahl Da imanência podese estimar que ela seja a pedra de toque incandescente de toda a filosofia porque toma para si todos os perigos que esta deve enfrentar todas as condenações perseguições e denegações que ela sofre Isso demonstra ao menos que o problema da imanência não é abstrato ou somente teórico À primeira vista não se vê por que a imanência é tão perigosa mas é assim Ela engole os sábios e os deuses A parte da imanência ou a parte do fogo é por ela que se reconhece o filósofo A imanência só é imanente a si mesma e então toma tudo absorve o TodoUno e não deixa subsistir nada a que ela poderia ser imanente Em todo caso cada vez que se interpreta a imanência como imanente a Algo podese estar certo que este Algo reintroduz o transcendente A partir de Descartes e com Kant e Husserl o cogito torna possível tratar o plano de imanência como um campo de consciência É que a imanência é suposta ser imanente a uma consciência pura a um sujeito pensante Este sujeito Kant o nomeará transcendental e não transcendente precisamente porque é o sujeito do campo de imanência de toda experiência possível ao qual nada escapa o exterior bem como o interior Kant recusa todo uso transcendente da síntese mas remete a imanência ao sujeito da síntese como nova unidade unidade subjetiva Ele pode até mesmo darse ao luxo de denunciar as Idéias transcendentes para fazer delas o horizonte do campo imanente ao sujeito8 Mas 8 Kant Crítica da Razão pura o espaço como forma da exterioridade não está menos em nós que o tempo como forma da interioridade Crítica do quarto paralogismo E sobre a Idéia como horizonte cf Apêndice à dialética transcendental 63 fazendo isso Kant encontra a maneira moderna de salvar a transcendência não é mais a transcendência de um Algo ou de um Uno superior a toda coisa contemplação mas a de um Sujeito ao qual o campo de imanência é atribuído por pertencer a um eu que se representa necessariamente um tal sujeito reflexão O mundo grego que não pertencia a ninguém se torna cada vez mais a propriedade de uma consciência cristã Mais um passo ainda quando a imanência se torna imanente a uma subjetividade transcendental é no seio de seu próprio campo que deve aparecer a marca ou a cifra de uma transcendência como ato que remete agora a um outro eu a uma outra consciência comunicação É o que se passa com Husserl e com muitos de seus sucessores que descobrem no Outro ou na Carne o trabalho de toupeira do transcendente na própria imanência Husserl concebe a imanência como a de um fluxo do vivido na subjetividade mas como todo este vivido puro e mesmo selvagem não pertence inteiramente ao eu que a representa para si é nas regiões de nãopertença que se restabelece no horizonte algo de transcendente uma vez sob a forma de uma transcendência imanente ou primordial de um mundo povoado de objetos intencionais uma outra vez como transcendência privilegiada de um mundo intersubjetivo povoado de outros eus uma terceira vez como transcendência objetiva de um mundo ideal povoado de formações culturais e pela comunidade dos homens Neste momento moderno não nos contentamos mais em pensar a imanência a um transcendente querse pensar a transcendência no interior do imanente e é da imanência que se espera uma ruptura Assim em Jaspers o plano de imanência receberá a mais profunda determinação como Englobante mas este englobante não 64 será mais que uma bacia para as erupções de transcendência A palavra judaicocristã substitui o logos grego não nos contentamos em atribuir a imanência fazemos com que ela em toda parte faça transbordar o transcendente Não basta mais conduzir a imanência ao transcendente querse que ela remeta a ele e o reproduza que ela mesma o fabrique Para falar a verdade isto não é difícil basta parar o movimento9 Desde que se pare o movimento do infinito a transcendência desce ela disso se aproveita para ressurgir erguerse novamente reassumir todo o seu relevo As três espécies de Universais contemplação reflexão comunicação são como três idades da filosofia a Eidética a Crítica e a Fenomenologia que não se separam da história de uma longa ilusão Era necessário ir até aí na inversão dos valores fazernos acreditar que a imanência é uma prisão solipsismo de que o Transcendente pode salvarnos A suposição de Sartre de um campo transcendental impessoal devolve à imanência seus direitos10 É quando a imanência não mais é imanente a outra coisa senão a si que se pode falar de um plano de imanência Um tal plano é talvez um empirismo radical ele não apresenta um fluxo do vivido imanente a um sujeito e que se individualiza no que pertence a um eu Ele não apresenta senão acontecimentos isto é mundos possíveis enquanto conceitos e outrem como expressões de mundos possíveis ou personagens conceituais O acontecimento não remete o vivido a um sujeito transcen 9 Raymond Bellour Uentreimages Ed de Ia Différence p 132 sobre a ligação da transcendência com a interrupção de movimento ou a imagem congelada 10 Sartre La transcendence de lEgo Ed Vrin invocação de Espinosa p 23 65 dente Eu mas remete ao contrário ao sobrevôo imanente de um campo sem sujeito Outrem não devolve a transcendência a um outro eu mas traz todo outro eu à imanência do campo sobrevoado O empirismo não conhece senão acontecimentos e outrem pois ele é grande criador de conceitos Sua força começa a partir do momento em que define o sujeito um habitus um hábito apenas um hábito num campo de imanência o hábito de dizer Eu Quem sabia plenamente que a imanência não pertencia senão a si mesma e assim que ela era um plano percorrido pelos movimentos do infinito preenchido pelas ordenadas intensivas era Espinosa Assim ele é o príncipe dos filósofos Talvez o único a não ter aceitado nenhum compromisso com a transcendência a têla expulsado de todos os lugares Ele fez o movimento do infinito e deu ao pensamento velocidades infinitas no terceiro gênero do conhecimento no último livro da Ética Ele aí atinge velocidades inauditas atalhos tão fulgurantes que não se pode mais falar senão de música de tornado de vento e de cordas Ele encontrou a liberdade tãosomente na imanência Ele finalizou a filosofia porque preencheu sua suposição préfilosófica Não é a imanência que se remete à substância e aos modos espinosistas é o contrário são os conceitos espinosistas de substância e de modos que se remetem ao plano de imanência como a seu pressuposto Este plano nos mostra suas duas faces a extensão e o pensamento ou mais exatamente suas duas potências potência de ser e potência de pensar Espinosa é a vertigem da imanência da qual tantos filósofos tentam em vão escapar Chegaremos a estar maduros para uma inspiração espinosista Aconteceu com Bergson uma vez o princípio de Matière et mémoire traça um plano que corta o caos ao mesmo tem 66 po movimento infinito de uma matéria que não pára de se propagar e a imagem de um pensamento que não pára de fazer proliferar por toda parte uma pura consciência de direito não é a imanência que é imanência à consciência mas o inverso Ilusões envolvem o plano Não são contrasensos abstratos nem somente pressões de fora mas miragens do pensamento Explicamse pelo peso de nosso cérebro pela circulação estereotipada das opiniões dominantes e porque não podemos suportar estes movimentos infinitos nem dominar estas velocidades infinitas que nos destruiriam então devemos parar o movimento fazermonos novamente prisioneiros de um horizonte relativo E todavia somos nós que corremos sobre o plano de imanência que estamos no horizonte absoluto É necessário em parte ao menos que as ilusões se ergam do próprio plano como os vapores de um pântano como as exalações présocráticas que se desprendem da transformação dos elementos sempre em obra sobre o plano Artaud dizia o plano de consciência ou o plano de imanência ilimitado o que os indianos chamam de Ciguri engendra também alucinações percepções errôneas sentimentos maus11 Seria necessário fazer a lista dessas ilusões tomarlhes a medida como Nietzsche depois de Espinosa fazia a lista dos quatro grandes erros Mas a lista é infinita Há de início a ilusão de transcendência que talvez preceda todas as outras sob um duplo aspecto tornar a imanência imanente a algo e reencontrar uma transcendência na própria imanência Depois a ilusão dos universais quando se confundem os conceitos com o plano mas esta confusão se faz quando se coloca uma imanência em algo já que este algo é necessariamente conceito crêse que 11 Artaud Les Tarabumaras Obras completas Gallimard IX 67 o universal explique enquanto é ele que deve ser explicado e caise numa tripla ilusão a da contemplação ou da reflexão ou da comunicação Depois ainda a ilusão do eterno quando esquecemos que os conceitos devem ser criados Depois a ilusão da discursividade quando confundimos as proposições com os conceitos Precisamente não convém acreditar que todas estas ilusões se encadeiem logicamente como proposições elas ressoam ou reverberam e formam uma névoa espessa em torno do plano O plano de imanência toma do caos determinações com as quais faz seus movimentos infinitos ou seus traços diagramáticos Podese devese então supor uma multiplicidade de planos já que nenhum abraçaria todo o caos sem nele recair e que todos retêm apenas movimentos que se deixam dobrar juntos Se a história da filosofia apresenta tantos planos muito distintos não é somente por causa das ilusões da variedade das ilusões não é somente porque cada um tem sua maneira sempre recomeçada de relançar a transcendência é também mais profundamente em sua maneira de fazer a imanência Cada plano opera uma seleção do que cabe de direito ao pensamento mas é esta seleção que varia de um para outro Cada plano de imanência é UnoTodo não é parcial como um conjunto científico nem fragmentário como os conceitos mas distributivo é um cada um O plano de imanência é folhado É sem dúvida difícil estimar em cada caso comparado se há um só e mesmo plano ou vários diferentes os présocráticos têm uma imagem comum do pensamento malgrado as diferenças entre Heráclito e Parmênides Podese falar de um plano de imanência ou de uma imagem do pensamento dita clássica que se manteria de Platão a Descartes O que varia não são somente os planos mas a maneira de distribuílos Há somente pontos de vista mais ou menos longínquos ou aproximados que permitem agrupar as folhas diferentes sobre um período bas 68 tante longo ou ao contrário separar folhas sobre um plano que pareceria comum e de onde viriam estes pontos de vista malgrado o horizonte absoluto Podemos contentarnos aqui com um historicismo um relativismo generalizado Com relação a tudo isto a questão do uno ou do múltiplo tornase novamente a mais importante ao introduzirse no plano No limite não é todo grande filósofo que traça um novo plano de imanência que traz uma nova matéria do ser e erige uma nova imagem do pensamento de modo que não haveria dois grandes filósofos sobre o mesmo plano É verdade que nós não imaginamos um grande filósofo do qual não se pudesse dizer ele mudou o que significa pensar pensou de outra maneira segundo a fórmula de Foucault E quando se distinguem várias filosofias num mesmo autor não é porque ele próprio tinha mudado de plano encontrado mais uma nova imagem Não se pode ser insensível à queixa de Biran próximo da morte eu me sinto um pouco velho para recomeçar a construção12 Em contrapartida não são filósofos aqueles funcionários que não renovam a imagem do pensamento e não têm sequer consciência do problema na beatitude de um pensamento inteiramente pronto que ignoram até o labor daqueles que pretendem tomar por modelos Mas então como se entender em filosofia se há todas estas folhas que ora se juntam e ora se separam Não estamos condenados a tentar traçar nosso próprio plano sem saber quais ele vai superpor Não é reconstituir uma espécie de caos E esta é a razão pela qual cada plano não é somente folhado mas esburacado deixando passar essas névoas que o envolvem e nas quais o filósofo que o traçou arriscase freqüentemente a ser o primeiro a se perder Que haja tantas névoas que sobem nós o explicamos pois de duas 12 Biran Sa vie et ses pensées Ed Naville ano 1823 p 357 69 maneiras Antes de mais nada porque o pensamento não pode impedirse de interpretar a imanência como imanente a algo grande Objeto da contemplação Sujeito da reflexão Outro sujeito da comunicação é fatal então que a transcendência seja introduzida E se não se pode escapar a isso é porque cada plano de imanência ao que parece não pode pretender ser único ser O plano senão reconstituindo o caos que devia conjurar você tem a escolha entre a transcendência e o caos EXEMPLO IV Quando o plano seleciona o que cabe de direito ao pensamento para fazer dele seus traços intuições direções ou movimentos diagramáticos ele remete outras determinações ao estado de simples fatos caracteres de estados de coisas conteúdos vividos E certamente a filosofia poderá tirar conceitos destes estados de coisas desde que ela deles extraia o acontecimento Mas não é essa a questão O que pertence de direito ao pensamento o que está retido como traço diagramático em si rejeita outras determinações rivais mesmo se estas são destinadas a receber um conceito Assim Descartes faz do erro o traço ou a direção que exprime de direito o negativo do pensamento Não é o primeiro a fazêlo e podemos considerar o erro como um dos traços principais da imagem clássica do pensamento Não se ignora numa tal imagem que há muitas outras coisas que ameaçam o pensar a burrice a amnésia a afasia o delírio a loucura mas todas estas determinações serão consideradas como fatos que não possuem senão um único efeito imanente de direito no pensamento o erro sempre o erro O erro é o movimento infinito que recolhe todo o negativo Podese fazer remon 70 tar este traço até Sócrates para quem o mau de fato é de direito alguém que se engana Mas se é verdade que o Teeteto é uma fundação do erro não resguarda Platão os direitos de outras determinações rivais como o delírio do Fedro a tal ponto que a imagem do pensamento em Platão nos parece também traçar outras tantas vias Ocorre uma grande mudança não somente nos conceitos mas na imagem do pensamento quando a ignorância e a superstição vão substituir o erro e o preconceito para exprimir de direito o negativo do pensamento Fontenelle desempenha aqui um grande papel e o que muda é ao mesmo tempo os movimentos infinitos nos quais o pensamento se perde e se conquista Mais ainda quando Kant marcar que o pensamento está ameaçado não tanto pelo erro mas por ilusões inevitáveis que vêm de dentro da razão como de uma zona ártica interior onde a agulha de qualquer bússola enlouquece é uma reorientação de todo o pensamento que se torna necessária ao mesmo tempo que nele se insinua um certo delírio de direito Ele não está mais ameaçado no plano de imanência por buracos ou sulcos de um caminho que segue mas pelas névoas nórdicas que recobrem tudo A própria questão orientarse no pensamento muda de sentido Um traço não é isolável Com efeito o movimento afetado por um signo negativo vêse ele mesmo dobrado em outros movimentos em signos positivos ou ambíguos Na imagem clássica o erro não exprime de direito o que pode acontecer de pior ao pensamento sem que o pensamento se apresente ele mesmo como desejando o verdadeiro orientado na direção do verdadeiro voltado para o verdadeiro o que está suposto é que todo o mundo sabe o que quer dizer pensar portanto é ca 71 paz de direito de pensar É esta confiança que não exclui o humor que anima a imagem clássica uma remissão à verdade que constitui o movimento infinito do conhecimento como traço diagramático O que manifesta ao contrário a mutação da luz no século XVIII da luz natural em Luzes é a substituição do conhecimento pela crença isto é um novo movimento infinito que implica uma outra imagem do pensamento não se trata mais de se voltar em direção de mas de seguir a pista de inferir mais do que captar ou ser captado Sob quais condições uma inferência é legítima Sob quais condições uma crença tornada profana pode ser legítima Esta questão só encontrará suas respostas com a criação dos grandes conceitos empiristas associação relação hábito probabilidade convenção mas inversamente estes conceitos entre eles aquele de que a própria crença recebe pressupõem os traços diagramáticos que fazem da crença um movimento infinito independente da religião percorrendo o novo plano de imanência e é a crença religiosa ao contrário que se tornará um caso conceitualizável do qual se poderá medir segundo a ordem do infinito a legitimidade ou a ilegitimidade Certamente encontraremos em Kant muitos desses traços herdados de Hume mas ao preço de uma profunda mutação num novo plano ou segundo uma outra imagem São sempre grandes audácias O que muda de um plano de imanência a um outro quando muda a repartição do que cabe de direito ao pensamento não são somente os traços positivos ou negativos mas os traços ambíguos que se tornam eventualmente cada vez mais numerosos e que não se contentam mais em dobrar segundo uma oposição vetorial de movimentos Se tentamos também sumariamente traçar as linhas de uma imagem moderna do pensamento não é 72 de uma maneira triunfante mesmo que seja no horror Nenhuma imagem do pensamento pode contentarse em selecionar determinações calmas e todas encontram algo de abominável de direito seja o erro no qual o pensamento não cessa de cair seja a ilusão na qual não cessa de girar seja a burrice na qual não cessa de se afundar seja o delírio no qual não cessa de se desviar de si mesmo ou de um deus Já a imagem grega do pensamento invocava a loucura do desvio duplo que jogava o pensamento na errância infinita mais do que no erro Jamais a relação do pensamento com o verdadeiro foi um negócio simples ainda menos constante nas ambigüidades do movimento infinito É por isso que é vão invocar uma tal relação para definir a filosofia O primeiro caráter da imagem moderna do pensamento é talvez o de renunciar completamente a esta relação para considerar que a verdade é somente o que o pensamento cria tendose em conta o plano de imanência que se dá por pressuposto e todos os traços deste plano negativos tanto quanto positivos tornados indiscerníveis pensamento é criação não vontade de verdade como Nietzsche soube mostrar Mas se não há vontade de verdade contrariamente ao que aparecia na imagem clássica é que o pensamento constitui uma simples possibilidade de pensar sem definir ainda um pensador que seria capaz disso e poderia dizer Eu que violência se deve exercer sobre o pensamento para que nos tornemos capazes de pensar violência de um movimento infinito que nos priva ao mesmo tempo do poder de dizer Eu Textos célebres de Heidegger e de Blanchot expõem este segundo caráter Mas como terceiro caráter se há assim um Impoder do pensamento que reside em seu coração quando adquire a capacidade determinável como criação eis que um conjunto de signos ambíguos 73 se ergue que se tornam traços diagramáticos ou movimentos infinitos que assumem um valor de direito enquanto não passavam de simples fatos derrisórios rejeitados sem seleção em outras imagens do pensamento como o sugere Kleist ou Artaud é o pensamento enquanto tal que se põe a ter ríctus rangidos gaguejos glossolalias gritos que o levam a criar ou a ensaiar13 E se o pensamento procura é menos à maneira de um homem que disporia de um método que à maneira de um cão que pula desordenadamente Não há por que envaidecerse por uma tal imagem do pensamento que comporta muitos sofrimentos sem glória e que indica quanto o pensar tornouse cada vez mais difícil a imanência A história da filosofia é comparável à arte do retrato Não se trata de fazer parecido isto é de repetir o que o filósofo disse mas de produzir a semelhança desnudando ao mesmo tempo o plano de imanência que ele instaurou e os novos conceitos que criou São retratos mentais noéticos maquínicos E embora sejam feitos ordinariamente com meios filosóficos podese também produzilos esteticamente É assim que Tinguely apresentou recentemente monumentais retratos maquínicos de filósofos operando poderosos movimentos infinitos conjuntos ou alternativos redobráveis e desdobráveis com sons clarões matérias de ser e imagens de pensamento segundo planos curvos complexos14 E todavia se é permitido apresentar uma crítica a um ar 13 Cf Kleist De 1élaboration progressive des idées dans le discours Anedoctes et petits écrits Ed Payot p 77 E Artaud Correspondance avec Rivière Obras completas I 14 Tinguely catálogo Beaubourg 1989 74 tista tão grandioso parece que a tentativa não está ainda no ponto Nada dança no Nietzsche enquanto que Tinguely soube tão bem em outro lugar fazer dançar as máquinas O Schopenhauer nada nos revela de decisivo quando as quatro Raízes o véu de Maya parecem inteiramente prontos para ocupar o plano bifacial do Mundo como vontade e como representação O Heidegger não retém nenhum velamentodesvelamento sobre o plano de um pensamento que não pensa ainda Talvez tivesse sido necessário prestar mais atenção ao plano de imanência traçado como máquina abstrata e aos conceitos criados como peças da máquina Poderseia imaginar neste sentido um retrato maquínico de Kant ilusões compreendidas ver esquema acima 75 1 O Eu penso com cabeça de boi sonorizado que não cessa de repetir Eu Eu 2 As categorias como conceitos universais quatro grandes títulos fios extensíveis e retrácteis seguindo o movimento circular de 3 3 A roda móvel dos esquemas 4 O pouco profundo riacho o tempo como forma da interioridade na qual mergulha e emerge a roda dos esquemas 5 O Espaço como forma da exterioridade margens e fundo 6 O eu passivo no fundo do riacho e como junção das duas formas 7 Os princípios dos juízos sintéticos que percorrem o espaçotempo 8 O campo transcendental da experiência possível imanente ao Eu plano de imanência 9 As três idéias ou ilusões de transcendência círculos girando no horizonte absoluto Alma Mundo e Deus Muitos são os problemas que concernem tanto à filosofia quanto à história da filosofia As folhas do plano de imanência ora se separam até se oporem umas às outras e convirem cada uma a tal ou tal filósofo ora ao contrário se reúnem para cobrir ao menos períodos bastante longos Além disso entre a instauração de um plano préfilosófico e a criação de conceitos filosóficos as relações são elas próprias complexas Num longo período filósofos podem criar conceitos novos permanecendo no mesmo plano e supondo a mesma imagem que um filósofo precedente que eles reivindicarão como mestre Platão e os neoplatônicos Kant e os neokantianos ou mesmo a maneira como Kant ele mesmo reativa certos segmentos do platonismo Em todo caso não será todavia sem prolongar o plano primitivo afetandoo com novas curvaturas a ponto de que uma dúvida subsiste não é um outro plano que foi tecido nas malhas do primeiro A questão de saber em quais casos os filósofos são discípulos de um outro e até que ponto em quais casos 76 ao contrário fazem enrica a ele mudando de plano traçando uma outra imagem implica pois avaliações tanto mais complexas e relativas quanto jamais os conceitos que ocupam um plano podem ser simplesmente deduzidos Os conceitos que vêm povoar um mesmo plano mesmo em datas muito diferentes e sob acomodações especiais serão chamados conceitos do mesmo grupo não serão assim chamados aqueles que remetem a planos diferentes A correspondência de conceitos criados e de plano instaurado é rigorosa mas fazse sob relações indiretas que restam por determinar Podese dizer que um plano é melhor que um outro ou ao menos que ele responde ou não às exigências da época Que quer dizer responder às exigências e que relação há entre os movimentos ou traços diagramáticos de uma imagem do pensamento e os movimentos ou traços sóciohistóricos de uma época Estas questões só podem avançar se renunciamos ao ponto de vista estreitamente histórico do antes e do depois para considerar o tempo da filosofia em detrimento da história da filosofia E um tempo estratigráfico onde o antes e o depois não indicam mais que uma ordem de superposições Certos caminhos movimentos não tomam sentido e direção senão como os atalhos ou os desvios de caminhos apagados uma curvatura variável não pode aparecer senão como a transformação de uma ou várias outras uma camada ou uma folha do plano de imanência estará necessariamente em cima ou por baixo em relação a uma outra e as imagens do pensamento não podem surgir em qualquer ordem já que implicam mudanças de orientação que só podem ser situadas diretamente sobre a imagem anterior e mesmo para o conceito o ponto de condensação que o determina supõe ora a explosão de um ponto ora a aglomeração de pontos precedentes As paisagens mentais não mudam de qualquer maneira através das eras foi necessário que uma montanha se erguesse aqui ou que um rio passasse por 77 ali ainda recentemente para que o solo agora seco e plano tivesse tal aspecto tal textura É verdade que camadas muito antigas podem ressurgir abrir um caminho através das formações que as tinham recoberto e aflorar diretamente sobre a camada atual à qual elas comunicam uma nova curvatura Mais ainda segundo as regiões consideradas as superposições não são forçosamente as mesmas e não têm a mesma ordem O tempo filosófico é assim um grandioso tempo de coexistência que não exclui o antes e o depois mas os superpõe numa ordem estratigráfica É um devir infinito da filosofia que atravessa sua história mas não se confunde com ela A vida dos filósofos e o mais exterior de sua obra obedece a leis de sucessão ordinária mas seus nomes próprios coexistem e brilham seja como pontos luminosos que nos fazem repassar pelos componentes de um conceito seja como os pontos cardeais de uma camada ou de uma folha que não deixam de visitarnos como estrelas mortas cuja luz é mais viva que nunca A filosofia é devir não história ela é coexistência de planos não sucessão de sistemas É por isso que os planos podem ora se separar ora se reunir na verdade tanto para o melhor quanto para o pior Eles têm em comum restaurar a transcendência e a ilusão não podem evitálo mas também combatêla com vigor e cada um também tem sua maneira particular de fazer uma e outra coisa Há um plano melhor que não entrega a imanência a Algo x e que não simula mais nada de transcendente Dirseia que O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado Ele seria o nãopensado no pensamento É a base de todos os planos imanente a cada plano pensável que não chega a pensálo É o mais íntimo no pensamento e todavia o fora absoluto Um fora mais longínquo que todo mundo exterior porque ele é um dentro mais profundo que todo mundo interior é a imanência a intimidade como Fora o 78 exterior tornado intrusão que sufoca e a inversão de um e de outro15 A idaevolta incessante do plano o movimento infinito Talvez seja o gesto supremo da filosofia não tanto pensar O plano de imanência mas mostrar que ele está lá não pensado em cada plano O pensar desta maneira como o fora e o dentro do pensamento o fora não exterior ou o dentro não interior O que não pode ser pensado e todavia deve ser pensado isto foi pensado uma vez como o Cristo encarnouse uma vez para mostrar desta vez a possibilidade do impossível Assim Espinosa é o Cristo dos filósofos e os maiores filósofos não mais são do que apóstolos que se afastam ou se aproximam deste mistério Espinosa o tornarsefilósofo infinito Ele mostrou erigiu pensou o melhor plano de imanência isto é o mais puro aquele que não se dá ao transcendente nem propicia o transcendente aquele que inspira menos ilusões maus sentimentos e percepções errôneas 15 Blanchot Uentretien infini Gallimard p 65 Sobre o impensado no pensamento Foucault Les mots et les cboses pp 333339 E o longínquo interior de Michaux 79 Os Personagens Conceituais EXEMPLO V O cogito de Descartes é criado como conceito mas tem pressupostos Não como um conceito supõe outros por exemplo homem supõe animal e racional Aqui os pressupostos são implícitos subjetivos préconceituais e formam uma imagem do pensamento todo mundo sabe o que significa pensar Todo mundo tem a possibilidade de pensar todo mundo quer o verdadeiro Há outra coisa além destes dois elementos o conceito e o plano de imanência ou imagem do pensamento que vai ser ocupada por conceitos de mesmo grupo o cogito e os conceitos que a ele se ligam Há outra coisa no caso de Descartes além do cogito criado e da imagem pressuposta do pensamento Há efetivamente outra coisa um pouco misteriosa que aparece em certos momentos ou que transparece e que parece ter uma existência fluida intermediária entre o conceito e o plano préconceitual indo de um a outro No momento é o Idiota é ele que diz Eu é ele que lança o cogito mas é ele também que detém os pressupostos subjetivos ou que traça o plano O idiota é o pensador privado por oposição ao professor público o escolástico o professor não cessa de remeter a conceitos ensinados o homemanimal racional enquanto o pensador privado forma um conceito com forças inatas que cada um possui de direito por sua conta eu penso Eis um tipo muito estranho de personagem aquele que quer pensar e que pensa por si mesmo pela luz natural O idiota é um personagem conceituai Podemos dar mais precisão à questão há precursores do cogito De onde vem o personagem do idiota como ele apareceu seria numa atmosfera cristã mas em reação contra a organização escolástica do cristianismo contra a or 83 ganização autoritária da Igreja Encontramse traços dele já em santo Agostinho É Nicolau de Cusa quem lhe dá pleno valor de personagem conceituai É a razão pela qual este filósofo estaria próximo do cogito mas sem poder ainda fazêlo cristalizar como conceito1 Em todo caso a história da filosofia deve passar pelo estudo desses personagens de suas mutações segundo os planos de sua variedade segundo os conceitos E a filosofia não pára de fazer viver personagens conceituais de lhes dar vida O idiota reaparecerá numa outra época num outro contexto ainda cristão mas russo Tornandose eslavo o idiota permaneceu o singular ou o pensador privado mas mudou de singularidade É Chestov que encontra em Dostoievski a potência de uma nova oposição do pensador privado e do professor público2 O antigo idiota queria evidências às quais ele chegaria por si mesmo nessa expectativa duvidaria de tudo mesmo de 3 2 5 colocaria em dúvida todas as verdades da Natureza O novo idiota não quer de maneira alguma evidências não se resignará jamais a que 3 2 5 ele quer o absurdo não é a mesma imagem do pensamento O antigo idiota queria o verdadeiro mas o novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do pensamen 1 Sobre o Idiota o profano o privado ou o particular por oposição ao técnico e ao sábio em suas relações com o pensamento Nicolau de Cusa Idiota Obras Escolhidas por M de Gandillac Ed Aubier Descartes reconstitui os três personagens sob o nome de Eudoxo o idiota Poliandro o técnico e Epistemon o sábio público La recherche de Ia vérité par Ia lumière naturelle Oeuvres Philosophiques Ed Alquié Garnier II Sobre as razões pelas quais Nicolau de Cusa não chega a um cogito cf Gandillac p 26 2 É primeiro de Kierkegaard que Chestov empresta a nova oposição Kierkegaard et Ia philosophie existentielle Ed Vrin 84 to isto é criar O antigo idiota queria não prestar contas senão à razão mas o novo idiota mais próximo de Jó que de Sócrates quer que se lhe preste contas de cada vítima da história esses não são os mesmos conceitos Ele não aceitará jamais as verdades da História O antigo idiota queria darse conta por si mesmo do que era compreensível ou não razoável ou não perdido ou salvo mas o novo idiota quer que lhe devolvam o perdido o incompreensível o absurdo Seguramente não é o mesmo personagem houve uma mutação E todavia um fio tênue une os dois idiotas como se fosse necessário que o primeiro perdesse a razão para que o segundo reencontrasse o que o outro tinha perdido a princípio ganhandoa Descartes na Rússia tornouse louco Pode acontecer que o personagem conceituai apareça por si mesmo muito raramente ou por alusão Todavia ele está lá e mesmo não nomeado subterrâneo deve sempre ser reconstituído pelo leitor Por vezes quando aparece tem um nome próprio Sócrates é o principal personagem conceituai do platonismo Muitos filósofos escreveram diálogos mas há perigo de confundir os personagens de diálogo e os personagens conceituais eles só coincidem nominalmente e não têm o mesmo papel O personagem de diálogo expõe conceitos no caso mais simples um entre eles simpático é o representante do autor enquanto que os outros mais ou menos antipáticos remetem a outras filosofias das quais expõem os conceitos de maneira a preparálos para as críticas ou as modificações que o autor lhes vai impor Os personagens conceituais em contrapartida operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor e intervém na própria criação de seus conceitos Assim mesmo quando são antipáticos pertencem plenamente ao plano que o filósofo considerado traça e aos conceitos que cria eles 85 marcam então os perigos próprios a este plano as más percepções os maus sentimentos ou mesmo os movimentos negativos que dele derivam e vão eles mesmos inspirar conceitos originais cujo caráter repulsivo permanece uma propriedade constituinte desta filosofia O mesmo vale com mais forte razão para os movimentos positivos do plano os conceitos atrativos e os personagens simpáticos toda uma Einfühlung filosófica E freqüentemente entre uns e outros há grandes ambigüidades O personagem conceitual não é o representante do filósofo é mesmo o contrário o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem conceituai e de todos os outros que são os intercessores os verdadeiros sujeitos de sua filosofia Os personagens conceituais são os heterônimos do filósofo e o nome do filósofo o simples pseudônimo de seus personagens Eu não sou mais eu mas uma aptidão do pensamento para se ver e se desenvolver através de um plano que me atravessa em vários lugares O personagem conceitual nada tem a ver com uma personificação abstrata um símbolo ou uma alegoria pois ele vive ele insiste O filósofo é a idiossincrasia de seus personagens conceituais E o destino do filósofo é de transformarse em seu ou seus personagens conceituais ao mesmo tempo que estes personagens se tornam eles mesmos coisa diferente do que são historicamente mitologicamente ou comumente o Sócrates de Platão o Dioniso de Nietzsche o Idiota de Cusa O personagem conceitual é o devir ou o sujeito de uma filosofia que vale para o filósofo de tal modo que Cusa ou mesmo Descartes deveriam assinar o Idiota como Nietzsche assinou o Anticristo ou Dioniso crucificado Os atos de fala na vida comum remetem a tipos psicossociais que testemunham de fato uma terceira pessoa subjacente eu decreto a mobilização enquanto presidente da república eu te falo enquanto pai Igualmente o dêictico filosófico é um ato de 86 tala em terceira pessoa em que é sempre um personagem conceituai que diz Eu eu penso enquanto Idiota eu quero enquanto Zaratustra eu danço enquanto Dioniso eu aspiro enquanto Amante Mesmo a duração bergsoniana precisa de um corredor Na enunciação filosófica não se faz algo di zendoo mas fazse o movimento pensandoo por intermédio de um personagem conceituai Assim os personagens conceituais são verdadeiros agentes de enunciação Quem é Eu é sempre uma terceira pessoa Invocaremos Nietzsche porque poucos filósofos operaram tanto com personagens conceituais simpáticos Dioniso Zaratustra ou antipáticos Cristo o Sacerdote os Homens superiores o próprio Sócrates tornado antipático Poderíamos acreditar que Nietzsche renuncia aos conceitos Todavia ele cria imensos e intensos conceitos forças valor devir vida e conceitos repulsivos como ressentimento má consciência bem como traça um novo plano de imanência movimentos infinitos da vontade de potência e do eterno retorno que subvertem a imagem do pensamento crítica da vontade de verdade Mas jamais nele os personagens conceituais implicados permanecem subentendidos É verdade que sua manifestação por si mesma suscita uma ambigüidade que faz com que muitos leitores considerem Nietzsche como um poeta um taumaturgo ou um criador de mitos Mas os personagens conceituais em Nietzsche e alhures não são personificações míticas nem mesmo pessoas históricas nem sequer heróis literários ou romanescos Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche como não é o Sócrates da História que está em Platão Devir não é ser e Dioniso se torna filósofo ao mesmo tempo que Nietzsche se torna Dioniso Aí ainda é Platão quem começou ele se torna Sócrates ao mesmo tempo que faz Sócrates tornarse filósofo A diferença entre os personagens conceituais e as figuras estéticas consiste de início no seguinte uns são potências de 87 conceitos os outros potências de afectos e de perceptos Uns operam sobre um plano de imanência que é uma imagem de PensamentoSer número os outros sobre um plano de composição como imagem do Universo fenômeno As grandes figuras estéticas do pensamento e do romance mas também da pintura da escultura e da música produzem afectos que transbordam as afecções e percepções ordinárias do mesmo modo os conceitos transbordam as opiniões correntes Melville dizia que um romance comporta uma infinidade de caracteres interessantes mas uma única Figura original como o único sol de uma constelação do universo como começo das coisas ou como um farol que tira da sombra um universo escondido assim o capitão Ahab ou Bartleby3 O universo de Kleist é percorrido por afectos que o atravessam como flechas ou que se petrificam subitamente lá onde se erguem a figura de Homburg ou aquela de Pentesiléia As figuras não têm nada a ver com a semelhança nem com a retórica mas são a condição sob a qual as artes produzem afectos de pedra e de metal de cordas e de ventos de linhas e de cores sobre um plano de composição do universo A arte e a filosofia recortam o caos e o enfrentam mas não é o mesmo plano de corte não é a mesma maneira de povoálo aqui constelação de universo ou afectos e perceptos lá complexões de imanência ou conceitos A arte não pensa menos que a filosofia mas pensa por afectos e perceptos Isto não impede que as duas entidades passem freqüentemente uma pela outra num devir que as leva a ambas numa intensidade que as codetermina A figura teatral e musical de Don Juan se torna personagem conceituai com Kierkegaard e o personagem de Zaratustra em Nietzsche já é uma grande figura de música e de teatro É como se de uns aos outros não somente alianças mas bifurcações e substi 3 Melville Le grana escroc Ed de Minuit cap 44 88 tuições se produzissem No pensamento contemporâneo Michel Guérin é um daqueles que descobrem mais profundamente a existência de personagens conceituais no coração da filosofia mas ele os define num logodrama ou numa figurologia que põe o afecto no pensamento4 É que o conceito como tal pode ser conceito de afecto tanto quanto o afecto afecto de conceito O plano de composição da arte e o plano de imanência da filosofia podem deslizar um no outro a tal ponto que certas extensões de um sejam ocupadas por entidades do outro Em cada caso com efeito o plano e o que o ocupa são como duas partes relativamente distintas relativamente heterogêneas Um pensador pode portanto modificar de maneira decisiva o que significa pensar traçar uma nova imagem do pensamento instaurar um novo plano de imanência mas em lugar de criar novos conceitos que o ocupam ele o povoa com outras instâncias outras entidades poéticas romanescas ou mesmo pictóricas ou musicais E o inverso também Igitur é precisamente um desses casos personagem conceituai transportado sobre o plano de composição figura estética transportada sobre um plano de imanência seu nome próprio é uma conjunção Esses pensadores são filósofos pela metade mas são também bem mais que filósofos embora não sejam sábios Que força nestas obras com pés desequilibrados Hõlderlin Kleist Rimbaud Mallarmé Kafka Michaux Pessoa Artaud muitos romancistas ingleses e americanos de Melville a Lawrence ou Miller nos quais o leitor descobre com admiração que escreveram o romance do espinosismo Certamente eles não fazem uma síntese de arte e de filosofia Eles bifurcam e não param de bifurcar São gênios híbridos que não apagam a diferença de natureza nem a ultrapassam mas ao contrário empenham todos os recursos de seu atletismo para ins 4 Michel Guérin La terreur et Ia pitié Ed Actes Sud 89 talarse na própria diferença acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo Com mais forte razão os personagens conceituais como as figuras estéticas são irredutíveis a tipos psicossociais embora haja ainda aqui penetrações incessantes Simmel e depois Goffman levaram muito longe o estudo destes tipos que parecem freqüentemente instáveis nos enclaves ou nas margens de uma sociedade o estrangeiro o excluído o migrante o passante o autóctone aquele que retorna a seu país5 Não é por gosto de anedota Parecenos que um campo social comporta estruturas e funções mas nem por isso nos informa diretamente sobre certos movimentos que afetam o Socius Já nos animais sabemos da importância dessas atividades que consistem em formar territórios em abandonálos ou em sair deles e mesmo em refazer território sobre algo de uma outra natureza o etólogo diz que o parceiro ou o amigo de um animal eqüivale a um lar ou que a família é um território móvel Com mais forte razão o hominídeo desde seu registro de nascimento ele desterritorializa sua pata anterior ele a arranca da terra para fazer dela uma mão e a reterritorializa sobre galhos e utensílios Um bastão por sua vez é um galho desterritorializado É necessário ver como cada um em toda idade nas menores coisas como nas maiores provações procura um território para si suporta ou carrega desterritorializações e se reterritorializa quase sobre qualquer coisa lembrança fetiche ou sonho Os ritornelos exprimem esses dinamismos poderosos minha cabana no Canadá adeus eu estou partindo sim sou eu era necessário que eu retornasse Não se pode mesmo dizer o que é primeiro e todo território supõe talvez uma desterritorialização prévia ou então tudo ocorre ao mes 5 Cf as análises de Isaac Joseph que invoca Simmel e Goffman Le passant considérable Librairie des Méridiens 90 mo tempo Os campos sociais são nós inextrincáveis em que os três movimentos se misturam é necessário pois para desmisturálos diagnosticar verdadeiros tipos ou personagens O comerciante compra num território mas desterritorializa os produtos em mercadorias e se reterritorializa sobre os circuitos comerciais No capitalismo o capital ou a propriedade se desterritorializam cessam de ser fundiários e se reterritorializam sobre meios de produção ao passo que o trabalho por sua vez se torna trabalho abstrato reterritorializado no salário é por isso que Marx não fala somente do capital do trabalho mas sente a necessidade de traçar verdadeiros tipos psicossociais antipáticos ou simpáticos O capitalista O proletário Se se procura a originalidade do mundo grego será necessário perguntar que espécie de território os gregos instauram como se desterritorializam sobre o que se reterritorializam e para isso isolar tipos propriamente gregos por exemplo o Amigo Não é sempre fácil escolher os bons tipos num momento dado numa sociedade dada assim o escravo liberto como tipo de desterritorialização no império chinês Tcheu figura do Excluído do qual o sinólogo Tõkei fez o retrato detalhado Acreditamos que os tipos psicossociais têm precisamente este sentido nas circunstâncias mais insignificantes ou mais importantes tornar perceptíveis as formações de territórios os vetores de desterritorialização o processo de reterritorialização Mas não há também territórios e desterritorializações que não são somente físicas e mentais mas espirituais não somente relativas mas absolutas num sentido a determinar mais tarde Qual é a Pátria ou o Chão Natal invocados pelo pensador filósofo ou artista A filosofia é inseparável de um Chão Natal do qual dão testemunho também o a priori o inato ou a reminiscência Mas por que esta pátria desconhecida perdida esquecida fazendo do pensador um Exilado O que é que vai lhe devolver um equi 91 valente de território como valendo um lar Quais serão os ritornelos filosóficos Qual é a relação do pensamento com a Terra Sócrates o Ateniense que não gosta de viajar é guiado por Parmênides de Eléia quando é jovem substituído pelo Estrangeiro quando envelheceu como se o platonismo tivesse necessidade de dois personagens conceituais pelo menos6 Que espécie de estrangeiro há no filósofo com seu ar de retornar do país dos mortos Os personagens conceituais têm este papel manifestar os territórios desterritorializações e reterritorializações absolutas do pensamento Os personagens conceituais são pensadores unicamente pensadores e seus traços personalísticos se juntam estreitamente aos traços diagramáticos do pensamento e aos traços intensivos dos conceitos Tal ou tal personagem conceituai pensa em nós e talvez não nos preexistia Por exemplo se dizemos que um personagem conceituai gagueja não é mais um tipo que gagueja numa língua mas um pensador que faz gaguejar toda a linguagem e que faz da gagueira o traço do próprio pensamento enquanto linguagem o interessante é então qual é este pensamento que só pode gaguejar Por exemplo ainda se dizemos que um personagem conceituai é o Amigo ou então que é o Juiz o Legislador não se trata mais de estados privados públicos ou jurídicos mas do que cabe de direito ao pensamento e somente ao pensamento Gago amigo juiz não perdem sua existência concreta ao contrário assumem uma nova existência como condições interiores do pensamento para seu exercício real com tal ou tal personagem conceituai Não são dois amigos que se exercem em pensar é o pensamento que exige que o pensador seja um amigo para que o pensamento seja partilhado em si mesmo e possa 6 Sobre o personagem do estrangeiro em Platão JF Mattéi Létranger et le simulacre PUF 92 se exercer É o pensamento mesmo que exige esta partilha de pensamento entre amigos Não são mais determinações empíricas psicológicas e sociais ainda menos abstrações mas intercessores cristais ou germes do pensamento Mesmo se a palavra absoluto se revela exata não diremos que as desterritorializações e reterritorializações do pensamento transcendem as psicossociais mas tampouco que se reduzem a elas ou são delas uma abstração uma expressão ideológica É antes uma conjunção um sistema de remissões ou de substituições perpétuas Os traços dos personagens conceituais têm com a época e o meio históricos em que aparecem relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar Mas inversamente os movimentos físicos e mentais dos tipos psicossociais seus sintomas patológicos suas atitudes relacionais seus modos existenciais seus estatutos jurídicos se tornam suscetíveis de uma determinação puramente pensante e pensada que os arranca dos estados de coisas históricos de uma sociedade como do vivido dos indivíduos para fazer deles traços de personagens conceituais ou acontecimentos do pensamento sobre o plano que ele traça ou sob os conceitos que ele cria Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro e se conjugam sem jamais se confundir Nenhuma lista de traços dos personagens conceituais pode ser exaustiva já que dela nascem constantemente e que variam com os planos de imanência E sobre um plano dado diferentes gêneros de traços se misturam para compor um personagem Presumimos que haja traços páticos pathiques o Idiota aquele que quer pensar por si mesmo e é um personagem que pode mudar tomar um outro sentido Mas também um Louco uma espécie de louco pensador cataléptico ou múmia que descobre no pensamento uma impotência para pensar Ou então um grande maníaco um delirante que procura o que precede o pensamento um JáAí mas no seio do próprio pensamento Temse freqüentemente 93 aproximado a filosofia e a esquizofrenia mas num caso o esquizofrênico é um personagem conceituai que vive intensamente no pensador e o força a pensar no outro é um tipo psicossocial que reprime o vivo e lhe rouba seu pensamento E os dois por vezes se conjugam se enlaçam como se a um acontecimento forte demais respondesse um estado vivido por demais difícil de suportar Há traços relacionais o Amigo mas um amigo que só tem relação com seu amigo através de uma coisa amada portadora de rivalidade São o Pretendente e o Rival que disputam a coisa ou o conceito mas o conceito precisa de um corpo sensível inconsciente adormecido o Jovem que se acrescenta aos personagens conceituais Não estamos já sobre um outro plano pois o amor é como a violência que força a pensar Sócrates amante ao passo que a amizade pediria somente um pouco de boa vontade E como impedir uma Noiva de assumir por sua vez o papel de personagem conceituai com o risco de perdêla mas não sem que o próprio filósofo se torne mulher Como diz Kierkegaard ou Kleist ou Proust não vale uma mulher mais do que o amigo competente E que acontece se a própria mulher se torna filósofa ou então um casal que seria interior ao pensamento e faria de Sócrates casado o personagem conceituai A menos que sejamos reconduzidos ao Amigo mas depois de uma provação forte demais uma catástrofe indizível portanto em mais um novo sentido num mútuo desamparo numa mútua fadiga que formam um novo direito do pensamento Sócrates tornado judeu Não dois amigos que comunicam e se relembram conjuntamente mas passam ao contrário por uma amnésia ou uma afasia capazes de fender o pensamento de dividilo em si mesmo Os personagens proliferam e bifurcam se chocam se substituem7 7 Não se busque aqui senão alusões sumárias à ligação de Eros e da philia nos gregos ao papel da Noiva e do Sedutor em Kierkegaard à função noética do Casal segundo Klossowski Les lois de 1hospitalité Gallimard à constituição da mulherfilósofa segundo Michelle Le Doeuff Uétude et le rouet Ed du Seuil ao novo personagem do Amigo em Blanchot 94 Há traços dinâmicos se avançar trepar descer são dinamismos de personagens conceituais saltar à maneira de Kierkegaard dançar como Nietzsche mergulhar como Melville são outros para atletas filosóficos irredutíveis uns aos outros E se nossos esportes hoje estão em plena mutação se as velhas atividades produtoras de energia dão lugar a exercícios que se inserem ao contrário sobre feixes energéticos existentes não é somente uma mutação no tipo são outros traços dinâmicos ainda que se introduzem num pensamento que desliza com novas matérias de ser vaga ou neve que fazem do pensador uma espécie de surfista como personagem conceituai renunciamos então ao valor energético do tipo esportivo para sublinhar a diferença dinâmica pura que se exprime num novo personagem conceituai Há traços jurídicos na medida em que o pensamento não cessa de exigir o que lhe cabe de direito e de enfrentar a Justiça desde os présocráticos mas seria o poder do Pretendente ou mesmo do Queixoso tal como a filosofia o retira do tribunal trágico grego E não será por muito tempo proibido ao filósofo ser Juiz ele que no máximo será doutor recrutado a serviço da justiça de Deus enquanto ele próprio não for acusado Surge um novo personagem conceituai quando Leibniz faz do filósofo o Advogado de um deus ameaçado em toda a parte E os empiristas o estranho personagem que lançam com o Inquiridor É Kant que faz enfim do filósofo um Juiz ao mesmo tempo que a razão forma um tribunal mas é o poder legislativo de um juiz determinante ou o poder judiciário a jurisprudência de um juiz reflexionante Dois personagens conceituais muito diferen 95 tes A menos que o pensamento não inverta tudo juizes advogados queixosos acusadores e acusados como Alice sobre um plano de imanência em que a Justiça se iguala à Inocência em que o Inocente se torna o personagem conceituai que não tem mais de se justificar uma espécie de criançajogador contra a qual não se pode mais nada um Espinosa que não deixou subsistir nenhuma ilusão de transcendência Não é necessário que o juiz e o inocente se confundam isto é que os seres sejam julgados de dentro de maneira alguma em nome da Lei ou dos Valores nem mesmo em virtude de sua consciência mas pelos critérios puramente imanentes de sua existência para além do Bem e do Mal isto ao menos não quer dizer para além do bom e do mau Há com efeito traços existenciais Nietzsche dizia que a filosofia inventa modos de existência ou possibilidades de vida É por isso que bastam algumas anedotas vitais para fazer o retrato de uma filosofia como Diógenes Laércio soube fazêlo escrevendo o livro de cabeceira ou a lenda dourada dos filósofos Empédocles e seu vulcão Diógenes e seu tonei Objetarseá a vida muito burguesa da maioria dos filósofos modernos mas a liga das meias de Kant não é uma anedota vital adequada ao sistema da Razão8 E o gosto de Espinosa pelos combates de aranhas deriva do fato de que reproduzem de maneira pura relações de modos no sistema da Ética entendida como etologia superior E que estas anedotas não remetem simplesmente a um tipo social ou mesmo psicológico de um filósofo o príncipe Empédocles ou o escravo Diógenes elas manifestam antes os personagens conceituais que o habitam As possibilidades de vida ou os modos de existência não podem inventarse senão sobre um plano de imanência que desenvolve a potência de per 8 Sobre este aparelho complexo cf Thomas de Quincey Les derniers jours dEmmanuel Kant Ed Ombres 96 sonagens conceituais O rosto e o corpo dos filósofos abrigam estes personagens que lhes dão freqüentemente um ar estranho sobretudo no olhar como se algum outro visse através de seus olhos As anedotas vitais contam a relação de um personagem conceituai com animais plantas ou rochedos relação segundo a qual o próprio filósofo se torna algo de inesperado e adquire uma amplitude trágica e cômica que ele não teria sozinho Nós filósofos é por nossos personagens que nos tornamos sempre outra coisa e que renascemos como jardim público ou zoológico EXEMPLO VI Mesmo as ilusões de transcendência nos servem e fornecem anedotas vitais Pois quando nós nos vangloriamos de encontrar o transcendente na imanência nada fazemos senão recarregar o plano de imanência com a própria imanência Kierkegaard salta fora do plano mas o que lhe é restituído nesta suspensão nesta parada de movimento é a noiva ou o filho perdidos é a existência sobre o plano de imanência9 Kierkegaard não hesita em dizêlo no que concerne à transcendência um pouco de resignação bastaria mas é necessário além disso que a imanência seja devolvida Pascal aposta na existência transcendente de Deus mas o que se aposta aquilo sobre o que se aposta é a existência imanente daquele que crê que Deus exista Só esta existência é capaz de cobrir o plano de imanência de adquirir um movimento infinito de produzir e de reproduzir intensidades ao passo que a existência daquele que crê que Deus não existe cai no negativo Aqui mesmo se poderia dizer o que François Jullien diz do pen 9 Kierkegaard Crainte et tremblement Ed Aubier p 68 97 samento chinês a transcendência é nele relativa e não representa mais do que uma absolutização da ima nência10 Não temos a menor razão para pensar que os modos de existência tenham necessidade de valores transcendentes que os comparariam os selecionariam e decidiriam que um é melhor que o outro Ao contrário não há critérios senão imanentes e uma possibilidade de vida se avalia nela mesma pelos movimentos que ela traça e pelas intensidades que ela cria sobre um plano de imanência é rejeitado o que não traça nem cria Um modo de existência é bom ou mau nobre ou vulgar cheio ou vazio independente do Bem e do Mal e de todo valor transcendente não há nunca outro critério senão o teor da existência a intensificação da vida É o que Pascal e Kierkegaard sabem bem eles que são bons em movimentos infinitos e que tiram do Antigo Testamento novos personagens conceituais capazes de fazer frente a Sócrates O cavaleiro da fé de Kierkegaard aquele que salta ou o apostador de Pascal aquele que lança os dados são os homens de uma transcendência ou de uma fé Mas não cessam de recarregar a imanência são filósofos ou antes os intercessores os personagens conceituais que valem por estes dois filósofos e que não se preocupam mais com a existência transcendente de Deus mas somente com possibilidades imanentes infinitas que traz a existência daquele que crê que Deus existe O problema mudaria se fosse um outro plano de imanência Não que aquele que crê que Deus não existe pudesse então ser vencedor já que ele pertence ainda ao antigo plano como movimento negativo Mas sobre o novo plano poderia acontecer que o problema dis 10 François Jullien Procès ou création Ed du Seuil pp 18 117 98 sesse respeito agora à existência daquele que crê no mundo não propriamente na existência do mundo mas em suas possibilidades em movimentos e em intensidades para fazer nascer ainda novos modos de existência mais próximos dos animais e dos rochedos Pode ocorrer que acreditar neste mundo nesta vida se tenha tornado nossa tarefa mais difícil ou a tarefa de um modo de existência por descobrir hoje sobre nosso plano de imanência É a conversão empirista temos tantas razões de não crer no mundo dos homens perdemos o mundo pior que uma noiva um filho ou um deus Sim o problema mudou O personagem conceituai e o plano de imanência estão em pressuposição recíproca Ora o personagem parece preceder o plano ora seguilo É que ele aparece duas vezes intervém duas vezes Por um lado ele mergulha no caos tira daí determinações das quais vai fazer os traços diagramáticos de um plano de imanência é como se ele se apoderasse de um punhado de dados no acasocaos para lançálos sobre uma mesa Por outro lado para cada dado que cai faz corresponder os traços intensivos de um conceito que vem ocupar tal ou tal região da mesa como se esta se fendesse segundo os resultados Com seus traços personalísticos o personagem conceituai intervém pois entre o caos e os traços diagramáticos do plano de imanência mas também entre o plano e os traços intensivos dos conceitos que vêm povoálo Igitur Os personagens conceituais constituem os pontos de vista segundo os quais planos de imanência se distinguem ou se aproximam mas também as condições sob as quais cada plano se vê preenchido por conceitos do mesmo grupo Todo pensamento é um Fiat emite um lance de dados construtivismo Mas é um jogo muito complexo porque o ato de lançar é feito de movimentos infinitos reversí 99 veis e dobrados uns sobre os outros de modo que a queda só ocorre em velocidade infinita criando as formas finitas que correspondem às ordenadas intensivas destes movimentos todo conceito é uma cifra que não preexistia Os conceitos não se deduzem do plano é necessário o personagem conceituai para criálos sobre o plano como para traçar o próprio plano mas as duas operações não se confundem no personagem que se apresenta ele mesmo como um operador distinto Os planos são inumeráveis cada um com curvatura variável e se agrupam ou se separam segundo os pontos de vista constituídos pelos personagens Cada personagem tem vários traços que podem dar lugar a outros personagens sobre o mesmo plano ou sobre um outro há uma proliferação de personagens conceituais Há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano eles ressoam ligamse através de pontes móveis mas é impossível prever o jeito que assumem em função das variações de curvatura Eles se criam por saraivadas e não cessam de bifurcar O jogo é tanto mais complexo quanto os movimentos negativos infinitos são envolvidos nos positivos sobre cada plano exprimindo os riscos e perigos que o pensamento enfrenta as falsas percepções e os maus sentimentos que o envolvem há também personagens conceituais antipáticos que colam estreitamente nos simpáticos e dos quais estes não chegam a se desgrudar não é somente Zaratustra que está impregnado por seu macaco ou seu bufão Dioniso que não se separa do Cristo mas Sócrates que não chega a se distinguir de seu sofista o filósofo crítico que não pára de conjurar seus maus duplos há enfim conceitos repulsivos enlaçados nos atrativos mas que desenham sobre o plano regiões de intensidade baixa ou vazia e que não cessam de se isolar de desconjuntar de romper as conexões a transcendência ela mesma não tem seus conceitos Mas mais ainda que uma distribuição 100 vetorial os signos de planos de personagens e de conceitos são ambíguos porque se dobram uns nos outros se enlaçam ou se avizinham É por isso que a filosofia opera sempre lance por lance A filosofia apresenta três elementos cada um dos quais responde aos dois outros mas deve ser considerada em si mesma o plano préfilosófico que ela deve traçar imanência o ou os personagens pró filosóficos que ela deve inventar e fazer viver insistência os conceitos filosóficos que ela deve criar consistência Traçar inventar criar esta é a trindade filosófica Traços diagramáticos personalísticos e intensivos Há grupos de conceitos caso eles ressoem ou lancem pontes móveis cobrindo um mesmo plano de imanência que os une uns aos outros Há famílias de planos caso os movimentos infinitos se dobrem uns nos outros e componham variações de curvatura ou ao contrário selecionem variedades não componíveis Há tipos de personagens segundo suas possibilidades de encontro mesmo hostil sobre um mesmo plano e num grupo Mas é freqüentemente difícil determinar se é o mesmo grupo o mesmo tipo a mesma família Para isso é necessário todo um gosto Como nenhum dos elementos se deduz dos outros é necessário uma coadaptação dos três Chama se gosto esta faculdade filosófica de coadaptação e que regra a criação de conceitos Se se chama Razão ao traçado do plano Imaginação à invenção dos personagens Entendimento à criação de conceitos o gosto aparece como a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado do personagem ainda nos limbos do plano ainda transparente É por isso que é necessário criar inventar traçar mas o gosto é como que a regra de correspondência das três instâncias que diferem em natureza Não é certamente uma faculdade de medida Não se encontrará nenhuma medida nestes movimentos infinitos que compõem o plano de imanência estas linhas aceleradas sem 101 contorno estes declives e curvaturas nem nestes personagens sempre excessivos por vezes antipáticos ou nestes conceitos de formas irregulares de intensidades estridentes de cores tão vivas e bárbaras que podem inspirar uma espécie de desgosto notadamente nos conceitos repulsivos Todavia o que aparece em todos os casos como gosto filosófico é o amor do conceito bem feito chamando bem feito não a uma moderação do conceito mas a uma espécie de novo lance de modulação em que a atividade conceituai não tem limite nela mesma mas somente nas duas outras atividades sem limites Se os conceitos preexistissem já prontos teriam limites a observar mas mesmo o plano préfilosófico só é assim nomeado porque se o traça como pressuposto e não porque ele existiria antes de ser traçado As três atividades são estritamente simultâneas e não têm relações senão incomensuráveis A criação de conceitos não tem outro limite senão o plano que eles vêm povoar mas o próprio plano é ilimitado e seu traçado só se confunde com os conceitos por criar que deve juntar ou com os personagens por inventar que deve entreter É como em pintura mesmo para os monstros e os anões há um gosto segundo o qual eles devem ser bem feitos o que não quer dizer neutralizados mas que seus contornos irregulares devem ser postos em relação com uma textura da pele ou um fundo da Terra como matéria germinal com a qual eles parecem brincar Há um gosto pela cor que não vem moderar a criação de cores num grande pintor mas ao contrário conduz a criação até o ponto em que as cores desposam suas figuras feitas de contornos e seu plano feito de fundos uniformes curvaturas arabescos Van Gogh só conduz o amarelo até o ilimitado inventando o homemgirassol e traçando o plano das pequenas vírgulas infinitas O gosto pelas cores testemunha ao mes No original aplat N dos T 102 mo tempo o respeito necessário a sua aproximação a longa espera pela qual é necessário passar mas também a criação sem limite que as faz existir O mesmo ocorre com o gosto dos conceitos o filósofo só se aproxima do conceito indeterminado com temor e respeito hesita muito em se lançar mas só pode determinar o conceito criandoo sem medida um plano de imanência tendo como única regra que traça e como único compasso os personagens estranhos que ele faz viver O gosto filosófico não substitui a criação de conceitos nem a modera é ao contrário a criação de conceitos que faz apelo a um gosto que a modula A livre criação de conceitos determinados precisa de um gosto do conceito indeterminado O gosto é esta potência este serempotência do conceito não é certamente por razões racionais ou razoáveis que tal conceito é criado tais componentes escolhidos Nietzsche pressentiu esta relação da criação de conceitos com um gosto propriamente filosófico e se o filósofo é aquele que cria conceitos é graças a uma faculdade de gosto como um sapere instintivo quase animal um Fiat ou um Fatum que dá a cada filósofo o direito de aceder a certos problemas como um sinete marcado sobre seu nome como uma afinidade da qual suas obras promanam11 Um conceito está privado de sentido enquanto não concorda com outros conceitos e não está associado a um problema que resolve ou contribui para resolver Mas importa distinguir os problemas filosóficos e os problemas científicos Não se ganharia grande coisa dizendo que a filosofia coloca questões já que as questões são somente uma palavra para designar problemas irredutíveis aos da ciência 11 Nietzsche MusarionAusgabe XVI p 35 Nietzsche invoca freqüentemente um gosto filosófico e faz derivar o sábio de sapere sapiens o degustador sisyphos o homem de gosto extremamente sutil La naissance de Ia philosophie Gallimard p 46 103 Como os conceitos não são proposicionais eles não podem remeter a problemas que concerniriam às condições extensionais de proposições assimiláveis às da ciência Se insistimos de qualquer modo em traduzir o conceito filosófico em proposições só podemos fazêlo na forma de opiniões mais ou menos verossímeis e sem valor científico Mas topamos assim com uma dificuldade que os gregos já enfrentavam É mesmo o terceiro caráter pelo qual a filosofia passa por uma coisa grega a cidade grega promoveu o amigo ou o rival como relação social ela traça um plano de imanência mas também faz reinar a livre opinião doxa A filosofia deve então extrair das opiniões um saber que as transforma e que também se distingue da ciência O problema filosófico consiste em encontrar em cada caso a instância capaz de medir um valor de verdade das opiniões oponíveis seja selecionando umas como mais sábias que as outras seja fixando a parte que cabe a cada uma Tal foi sempre o sentido do que se chama dialética e que reduz a filosofia à discussão interminável12 Vemolo em Platão no qual os universais de contemplação supostamente medem o valor respectivo das opiniões rivais para eleválas ao saber é verdade que as contradições subsistentes em Platão nos diálogos ditos aporéticos forçam já Aristóteles a orientar a pesquisa dialética dos problemas na direção dos universais de comunicação os tópicos Em Kant ainda o problema consistirá na seleção ou na partilha das opiniões opostas mas graças a universais de reflexão até que Hegel tenha a idéia de se servir da contradição das opiniões rivais para delas extrair proposições supracientíficas capazes de se mover de se contemplar se refletir se comunicar em si mesmas e no absoluto proposição especulativa em que as opiniões se tornam 12 Cf Bréhier La notion de problème en philosophie Études de philosophie antique PUF 104 os momentos do conceito Mas sob as mais altas ambições da dialética e qualquer que seja o gênio dos grandes dialéticos recaímos na mais miserável condição a que Nietzsche diagnosticava como a arte da plebe ou o mau gosto em filosofia a redução do conceito a proposições como simples opiniões a submersão do plano de imanência nas falsas percepções e nos maus sentimentos ilusões da transcendência ou dos universais o modelo de um saber que constitui apenas uma opinião pretensamente superior Urdoxa a substituição dos personagens conceituais por professores ou chefes de escola A dialética pretende encontrar uma discursividade propriamente filosófica mas só pode fazêlo encadeando as opiniões umas às outras Ela pode ultrapassar a opinião na direção do saber a opinião ressurge e persiste em ressurgir Mesmo com os recursos de uma Urdoxa a filosofia permanece uma doxografia É sempre a mesma melancolia que se eleva das Questões disputadas e dos Quodlibets da Idade Média em que se aprende o que cada doutor pensou sem saber porque ele o pensou o Acontecimento e que se encontra em muitas histórias da filosofia nas quais se passa em revista as soluções sem jamais saber qual é o problema a substância em Aristóteles em Descartes em Leibniz já que o problema é somente decalcado das proposições que lhe servem de resposta Se a filosofia é paradoxal por natureza não é porque toma o partido das opiniões menos verossímeis nem porque mantém as opiniões contraditórias mas porque se serve das frases de uma língua standard para exprimir algo que não é da ordem da opinião nem mesmo da proposição O conceito é bem uma solução mas o problema ao qual ele responde reside em suas condições de consistência intensional e não como na ciência nas condições de referência das proposições extensionais Se o conceito é uma solução as condições do problema filosófico estão sobre o plano de imanência 105 que ele supõe a que movimento infinito ele remete na imagem do pensamento e as incógnitas do problema estão nos personagens conceituais que ele mobiliza que personagem precisamente Um conceito como o de conhecimento só tem sentido com relação a uma imagem do pensamento a que ele remete e a um personagem conceituai de que precisa uma outra imagem um outro personagem exigem outros conceitos a crença por exemplo e o Inquiridor Uma solução não tem sentido independentemente de um problema a determinar em suas condições e em suas incógnitas mas estas não mais têm sentido independentemente das soluções determináveis como conceitos As três instâncias estão umas nas outras mas não são de mesma natureza coexistem e subsistem sem desaparecer uma na outra Bergson que contribuiu tanto para a compreensão do que é um problema filosófico dizia que um problema bem colocado era um problema resolvido Mas isso não quer dizer que um problema é somente a sombra ou o epifenômeno de suas soluções nem que a solução é apenas a redundância ou a conseqüência analítica do problema Significa antes que as três atividades que compõem o construcionismo não cessam de se alternar de se recortar uma precedendo a outra e logo o inverso uma que consiste em criar conceitos como caso de solução outra em traçar um plano e um movimento sobre o plano como condições de um problema outra em inventar um personagem como a incógnita do problema O conjunto do problema de que a própria solução faz parte consiste sempre em construir as duas outras quando a terceira está em curso Nós vimos como de Platão a Kant o pensamento o primeiro o tempo recebiam conceitos diferentes capazes de determinar soluções mas em função de pressupostos que determinavam problemas diferentes pois os mesmos termos podem aparecer duas vezes e mesmo três vezes uma vez nas soluções como conceitos outra vez nos problemas pressupostos 106 uma outra vez num personagem como intermediário intercessor mas a cada vez sob uma forma específica irredutível Nenhuma regra e sobretudo nenhuma discussão dirão a princípio se é o bom plano o bom personagem o bom conceito pois é cada um deles que decide se os dois outros deram certo ou não mas cada um deles deve ser construído por sua conta um criado o outro inventado o outro traçado Constroem se problemas e soluções dos quais se pode dizer Deu certo Não deu certo mas somente na medida de e segundo suas coadaptações O construtivismo desqualifica toda discussão que retardaria as construções necessárias como denuncia todos os universais a contemplação a reflexão a comunicação como fontes do que se chama de falsos problemas que emanam das ilusões que envolvem o plano É tudo o que se pode dizer de antemão Pode acontecer que acreditemos ter encontrado uma solução mas uma nova curvatura do plano que não tínhamos visto de início vem relançar o conjunto e colocar novos problemas uma nova série de problemas operando por empuxos sucessivos e solicitando conceitos futuros por criar nós nem mesmo sabemos se não é antes um novo plano que se destaca do precedente Inversamente pode acontecer que um novo conceito venha insinuarse como uma cunha entre dois conceitos que acreditávamos vizinhos solicitando por sua vez sobre a mesa de imanência a determinação de um problema que surge como uma espécie de ponte A filosofia vive assim numa crise permanente O plano opera por abalos e os conceitos procedem por saraivadas os personagens por solavancos O que é problemático por natureza é a relação das três instâncias Não se pode dizer de antemão se um problema está bem colocado se uma solução convém se é bem o caso se um personagem é viável É que cada uma das atividades filosóficas não encontra critério senão nas outras duas é por 107 isso que a filosofia se desenvolve no paradoxo A filosofia não consiste em saber e não é a verdade que inspira a filosofia mas categorias como as do Interessante do Notável ou do Importante que decidem sobre o sucesso ou o fracasso Ora não se pode sabêlo antes de ter construído De muitos livros de filosofia não se dirá que são falsos pois isso não é dizer nada mas que são sem importância nem interesse justamente porque não criam nenhum conceito nem trazem uma imagem do pensamento ou engendram um personagem que valha a pena Só os professores podem pôr errado à margem e mas os leitores podem ter ainda assim dúvidas sobre a importância e o interesse isto é a novidade do que se lhes dá para ler São categorias do Espírito Um grande personagem romanesco deve ser um Original um Único dizia Melville um personagem conceituai também Mesmo antipático ele deve ser notável mesmo repulsivo um conceito deve ser interessante Quando Nietzsche construía o conceito de má consciência podia ver nele o que há de mais asqueroso no mundo nem por isso gritava menos é aí que o homem começa a se tornar interessante e considerava com efeito que acabava de criar um novo conceito para o homem que convinha ao homem em relação com o novo personagem conceituai o sacerdote e com uma nova imagem do pensamento a vontade de potência apreendida sob o traço negativo do niilismo13 A crítica implica novos conceitos da coisa criticada tanto quanto a criação mais positiva Os conceitos devem ter contornos irregulares moldados sobre sua matéria viva Que é desinteressante por natureza Os conceitos inconsistentes o que Nietzsche chamava de os informes e fluidos borrões de conceitos ou então ao contrário os conceitos por demais regulares petrificados reduzidos a uma ossa 13 Nietzsche Généalogie de Ia morale I 6 108 tura Os conceitos mais universais os que são apresentados como formas ou valores eternos são deste ponto de vista os mais esqueléticos os menos interessantes Não fazemos nada de positivo mas também nada no domínio da crítica ou da história quando nos contentamos em agitar velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação sem ver que os antigos filósofos de que são emprestados faziam já o que se queria impedir os modernos de fazer eles criavam seus conceitos e não se contentavam em limpar em raspar os ossos como o crítico ou o historiador de nossa época Mesmo a história da filosofia é inteiramente desinteressante se não se propuser a despertar um conceito adormecido a relançálo numa nova cena mesmo a preço de voltálo contra ele mesmo 109 Geofilosofia O sujeito e o objeto oferecem uma má aproximação do pensamento Pensar não é nem um fio estendido entre um sujeito e um objeto nem uma revolução de um em torno do outro Pensar se faz antes na relação entre o território e a terra Kant é menos prisioneiro que se acredita das categorias de objeto e de sujeito já que sua idéia de revolução copernicana põe diretamente o pensamento em relação com a terra Husserl exige um solo para o pensamento que seria como a terra na medida em que não se move nem está em repouso como intuição originária Vimos todavia que a terra não cessa de operar um movimento de desterritorialização in loco pelo qual ultrapassa todo território ela é desterrítorializante e desterritorializada Ela se confunde com o movimento daqueles que deixam em massa seu território lagostas que se põem a andar em fila no fundo da água peregrinos ou cavaleiros que cavalgam numa linha de fuga celeste A terra não é um elemento entre os outros ela reúne todos os elementos num mesmo abraço mas se serve de um ou de outro para desterritorializar o território Os movimentos de desterritorialização não são separáveis dos territórios que se abrem sobre um alhures e os processos de reterritorialização não são separáveis da terra que restitui territórios São dois componentes o território e a terra com duas zonas de indiscernibilidade a desterritorialização do território à terra e a reterritorialização da terra ao território Não se pode dizer qual é primeiro Perguntase em que sentido a Grécia é o território do filósofo ou a terra da filosofia Os Estados e as Cidades têm freqüentemente sido definidos como territoriais substituindo o princípio das linhagens pelo princípio territorial Mas não é exato os grupos de linhagens podem mudar de território só se determinam efetivamente desposando um território ou uma residência numa linhagem local O Estado e a Cidade ao contrário operam uma desterritorialização porque um justapõe e com 113 para os territórios agrícolas remetendoos a uma Unidade superior aritmética e o outro adapta o território a uma extensão geométrica prolongável em circuitos comerciais O Spatium imperiale do Estado ou a extensio política da cidade é menos um princípio territorial que uma desterritorialização que captamos ao vivo quando o Estado se apropria do território dos grupos locais ou então quando a cidade ignora sua hinterlândia a reterritorialização se faz num caso sobre o palácio e seus estoques no outro sobre a agora e as rotas mercantis Nos Estados imperiais a desterritorialização é de transcendência ela tende a se fazer em altura verticalmente segundo um componente celeste da terra O território tornouse terra deserta mas um Estrangeiro celeste vem refundar o território ou reterritorializar a terra Na cidade ao contrário a desterritorialização é de imanência ela libera um Autóctone isto é uma potência da terra que segue um componente marítimo que passa por sob as águas para refundar o território o Erecteion templo de Atena e de Poseidon É verdade que as coisas são mais complicadas porque o Estrangeiro imperial tem ele próprio necessidade de autóctones sobreviventes e que o Autóctone cidadão apela a estrangeiros em fuga mas justamente não são de modo algum os mesmos tipos psicossociais do mesmo modo que o politeísmo de império e o politeísmo da cidade não são as mesmas figuras religiosas1 Dirseia que a Grécia tem uma estrutura fractal tão próximo do mar está cada ponto da península e tão grande é o comprimento das costas Os povos egeus as cidades da 1 Mareei Detienne renovou profundamente estes problemas sobre a oposição do Estrangeiro fundador e do Autóctone sobre as misturas complexas entre estes dois pólos sobre Erectéia cf Questce quun site in Traces de fondation Ed Peeters Cf também Giulia Sissa e Mareei Detienne La vie quotidienne des dieux grees Hachette sobre Erectéia cap XIV e sobre a diferença dos dois politeísmos cap X 114 Grécia antiga e sobretudo Atenas a autóctone não são as primeiras cidades comerciantes Mas são as primeiras a ser ao mesmo tempo bastante próximas e bastante distantes dos impérios arcaicos orientais para poderem aproveitarse deles sem seguir seu modelo em lugar de se estabelecer em seus poros elas banham num novo componente fazem valer um modo particular de desterritorialização que procede por imanência formam um meio de imanência É como um mercado internacional nas bordas do Oriente que se organiza entre uma multiplicidade de cidades independentes ou de sociedades distintas mas ligadas umas às outras onde os artesãos e os mercadores encontram uma liberdade uma mobilidade que os impérios lhes recusam2 Esses tipos vêm da borda do mundo grego estrangeiros em fuga em ruptura com o império e colonizados por Apoio Não somente os artesãos e mercadores mas os filósofos como diz Faye é preciso um século para que o nome filósofo sem dúvida inventado por Heráclito de Éfeso encontre seu correlato na palavra filosofia sem dúvida inventada por Platão o Ateniense Ásia Itália África são as fases odisseanas do percurso que religa o philósophos à filosofia3 Os filósofos são estrangeiros mas a filosofia é grega O que é que estes emi 2 Childe UEurope préhistorique Ed Payot pp 110115 3 JeanPierre Faye La raison narrative Ed Balland pp 1518 Cf Clémence Ramnoux in Histoire de Ia philosophie Gallimard I pp 408409 a filosofia présocrática nasce e cresce na borda da área helênica tal como a colonização tinha conseguido definila por volta do fim do século VII e do início do século VI e precisamente lá onde os gregos enfrentaram em relação de comércio e de guerra os reinos e os impérios do Oriente depois ganha o extremo oeste as colônias da Sicília e da Itália graças a migrações provocadas pelas invasões iranianas e as revoluções políticas Nietzsche Lanaissance de Ia philosophie Gallimard p 131 Imagine que a filosofia seja um emigrado chegado entre os gregos ocorre assim com os Pré Platônicos São de alguma maneira estrangeiros despatriados 115 grados encontram no meio grego Três coisas ao menos que são as condições de fato da filosofia uma pura sociabilidade como meio de imanência natureza intrínseca da associação que se opõe à soberania imperial e que não implica nenhum interesse prévio já que os interesses rivais ao contrário a supõem um certo prazer de se associar que constitui a amizade mas também de romper a associação que constitui a rivalidade não havia já sociedades de amigos formadas pelos emigrados tais como os Pitagóricos mas sociedades ainda um pouco secretas que encontrariam sua abertura na Grécia um gosto pela opinião inconcebível num império um gosto pela troca de opiniões pela conversação4 Imanência amizade opinião nós encontramos sempre estes três traços gregos Não se verá aí um mundo mais doce tantas são as crueldades que a sociabilidade implica as rivalidades da amizade os antagonismos e as reviravoltas sangrentas da opinião O milagre grego é Salamina onde a Grécia escapa ao Império persa e onde o povo autóctone que perdeu seu território o carrega para o mar reterritorializandose sobre o mar A liga de Delos é como que a fractalização da Grécia O liame mais profundo durante um período muito curto existiu entre a cidade democrática a colonização o mar e um novo imperialismo que não via mais no mar um limite de seu território ou um obstáculo a sua empresa mas um banho de imanência ampliada Tudo isso e principalmente o liame da filosofia com a Grécia parece fora de dúvida mas marcado por desvios e por contingência Física psicológica ou social a desterritorialização é relativa na medida em que concerne à relação histórica da terra 4 Sobre esta sociabilidade pura aquém e além do conteúdo particular e a democracia a conversação cf Simmel Sociologie et épistémologie PUF cap III 116 com os territórios que nela se desenham ou se apagam sua relação geológica com eras e catástrofes sua relação astronômica com o cosmos e o sistema estelar do qual faz parte Mas a desterritorialização é absoluta quando a terra entra no puro plano de imanência de um pensamento Ser de um pensamento Natureza com movimentos diagramáticos infinitos Pensar consiste em estender um plano de imanência que absorve a terra ou antes a adsorve A desterritorialização de um tal plano não exclui uma reterritorialização mas a afirma como a criação de uma nova terra por vir Resta que a desterritorialização absoluta só pode ser pensada segundo certas relações por determinar com as desterritorializações relativas não somente cósmicas mas geográficas históricas e psicossociais Há sempre uma maneira pela qual a desterritorialização absoluta sobre o plano de imanência toma o lugar de uma desterritorialização relativa num campo dado É aí que uma grande diferença intervém se a desterritorialização relativa é ela própria de imanência ou de transcendência Quando ela é transcendente vertical celeste operada pela unidade imperial o elemento transcendente deve inclinarse ou sofrer uma espécie de rotação para se inscrever sobre o plano do pensamentoNatureza sempre imanente é segundo uma espiral que a vertical celeste pousa sobre a horizontal do plano do pensamento Pensar implica aqui uma projeção do transcendente sobre o plano de imanência A transcendência pode ser inteiramente vazia em si mesma ela se preenche à medida que se inclina e atravessa diferentes níveis hierárquicos que se projetam em conjunto sobre uma região do plano isto é sobre um aspecto correspondente a um movimento infinito E quando a transcendência invade o absoluto ou quando um monoteísmo substitui a unidade imperial ocorre o mesmo o Deus transcendente permanecerá vazio ou ao menos absconditus se não se proje 117 tar sobre um plano de imanência da criação em que traça as etapas de sua teofania Em todos estes casos unidade imperial ou império espiritual a transcendência que se projeta sobre o plano de imanência o ladrilha ou o povoa de Figuras É uma sabedoria ou uma religião pouco importa É somente deste ponto de vista que se pode aproximar os hexagramas chineses as mandalas hindus as sefirot judaicas os imaginais islâmicos os ícones cristãos pensar por figuras Os hexagramas são combinações de traços contínuos e descontínuos derivando uns dos outros segundo os níveis de uma espiral que figura o conjunto dos momentos sob os quais o transcendente se inclina A mandala é uma projeção sobre uma superfície que faz corresponder os níveis divino cósmico político arquitetural orgânico como valores de uma mesma transcendência É por isso que a figura tem uma referência e uma referência por natureza plurívoca e circular Ela certamente não se define por uma semelhança exterior que permanece proibida mas por uma tensão interna que a remete ao transcendente sobre o plano de imanência do pensamento Numa palavra a figura é essencialmente paradigmática projetiva hierárquica referencial as artes e as ciências também erigem poderosas figuras mas o que as distingue de toda religião não é aspirar à semelhança proibida é emancipar tal ou tal nível para dele fazer novos planos do pensamento sobre os quais as referências e projeções como veremos mudam de natureza Precedentemente para ir rápido dizíamos que os gregos tinham inventado um plano de imanência absoluto Mas a originalidade dos gregos é preciso antes procurála na relação entre o relativo e o absoluto Quando a desterritorialização relativa é ela mesma horizontal imanente ela se conjuga com a desterritorialização absoluta do plano de imanência que leva ao infinito que leva ao absoluto os movimentos da primeira transformandoos o meio o amigo a 118 opinião A imanência é redobrada É aí que se pensa não mais por figuras mas por conceitos É o conceito que vem povoar o plano de imanência Não há mais projeção numa figura mas conexão no conceito É por isso que o conceito ele mesmo abandona toda referência para não reter senão conjugações e conexões que constituem sua consistência O conceito não tem outra regra senão a da vizinhança interna ou externa Sua vizinhança ou consistência interna está assegurada pela conexão de seus componentes em zonas de indiscernibilidade sua vizinhança externa ou exoconsistência está assegurada por pontes que vão de um conceito a um outro quando os componentes de um estão saturados E é bem o que significa a criação de conceitos conectar componentes interiores inseparáveis até o fechamento ou a saturação de modo que não se pode mais acrescentar ou retirar um deles sem mudar o conceito conectar o conceito com um outro de tal maneira que outras conexões mudariam sua natureza A plurivocidade do conceito depende unicamente da vizinhança um conceito pode ter muitos outros conceitos vizinhos Os conceitos são fundos uniformes sem níveis ordenadas sem hierarquia Donde a importância das questões na filosofia que meter num conceito e com que coinserilo Que conceito é preciso inserir ao lado deste e que componentes em cada um São as questões da criação de conceitos Os présocráticos tratam os elementos físicos como conceitos eles os tomam por si mesmos independentemente de toda referência e procuram somente as boas regras de vizinhança entre eles e em seus componentes eventuais Se variam em suas respostas é porque não compõem esses conceitos elementares da mesma maneira por dentro e por fora O conceito não é paradigmático mas sintagmático não é projetivo mas conectivo não é hierárquico mas vicinal não é referente mas consistente É forçoso daí que a filosofia a ciência e a arte não se organizem mais como os níveis de uma 119 mesma projeção e mesmo que não se diferenciem a partir de uma matriz comum mas se coloquem ou se reconstituam imediatamente numa independência respectiva uma divisão do trabalho que suscita entre elas relações de conexão É preciso concluir daí por uma oposição radical entre as figuras e os conceitos A maior parte das tentativas de determinar suas diferenças exprimem somente juízos de humor que se contentam em desvalorizar um dos dois termos ora se dá aos conceitos o prestígio da razão enquanto as figuras são remetidas à noite do irracional e a seus símbolos ora se dá às figuras os privilégios da vida espiritual enquanto que os conceitos são remetidos aos movimentos artificiais de um entendimento morto E todavia inquietantes afinidades aparecem sobre um plano de imanência que parece comum5 O pensamento chinês inscreve sobre o plano numa espécie de ir e vir os movimentos diagramáticos de um pensamento Natureza yin e yang e os hexagramas são os cortes do plano as ordenadas intensivas destes movimentos infinitos com seus componentes em traços contínuos e descontínuos Mas tais correspondências não excluem uma fronteira mesmo que difícil de discernir É que as figuras são projeções sobre o plano que implicam algo de vertical ou de transcen 5 Certos autores retomam hoje sobre novas bases a questão propriamente filosófica liberandose dos estereótipos hegelianos ou heideggerianos sobre uma filosofia judaica os trabalhos de Lévinas e em torno de Lévinas Les cahiers de Ia nuit surveillée n 3 1984 sobre uma filosofia islâmica em função dos trabalhos de Corbin cf Jambet La logique des Orientaux Ed du Seuil e Lardreau Discours philosophique et discours spirituel Ed du Seuil sobre uma filosofia hindu em função de MassonOursel cf a aproximação de RogerPol Droit Uoubli de 1Inde PUF sobre uma filosofia chinesa os estudos de François Cheng Vide et plein Ed du Seuil e de François Jullien Procès ou création Ed du Seuil sobre uma filosofia japonesa cf René de Ceccaty e Nakamura Mille ans de littérature japonaise e a tradução comentada do monge Dôgen Ed de Ia Différence 120 dente os conceitos em contrapartida só implicam vizinhanças e conjugações sobre o horizonte Certamente o transcendente produz por projeção uma absolutização da imanência como François Jullien já o mostrou quanto ao pensamento chinês Mas inteiramente diferente é a imanência do absoluto que a filosofia reivindica Tudo o que podemos dizer é que as figuras tendem para conceitos a ponto de se aproximar infinitamente deles O cristianismo dos séculos XV ao XVII faz da impresa o invólucro de um conceito mas o conceito não tomou ainda consistência e depende da maneira pela qual é figurado ou mesmo dissimulado A questão que retorna periodicamente há uma filosofia cristã significa o cristianismo é capaz de criar conceitos próprios A crença a angústia o pecado a liberdade Nós o vimos em Pascal e Kierkegaard talvez a crença não se torne um verdadeiro conceito senão quando ela se faz crença neste mundo e se conecta em lugar de se projetar Talvez o pensamento cristão não produza conceito senão por seu ateísmo pelo ateísmo que ele secreta mais que qualquer outra religião Para os filósofos o ateísmo não é um problema a morte de Deus menos ainda os problemas só começam a seguir quando se atingiu o ateísmo do conceito Estranhase que tantos filósofos ainda assumam como trágica a morte de Deus O ateísmo não é um drama ele é a serenidade do filósofo e a conquista da filosofia Há sempre um ateísmo por extrair de uma religião Já era verdade para o pensamento judaico ele empurra suas figuras até o conceito mas só o atinge com Espinosa o ateu E se as figuras tendem assim para os conceitos o inverso é igualmente verdadeiro e os conceitos filosóficos reproduzem figuras toda vez que a imanência é atribuída a algo objetidade de contemplação sujeito de reflexão intersubjetividade de comunicação as três figuras da filosofia É preciso ainda constatar que as religiões não atingem o conceito sem se renegar tal como as filosofias não atin 121 gem a figura sem se trair Entre as figuras e os conceitos há diferença de natureza mas também todas as diferenças de grau possíveis Podese falar de uma filosofia chinesa hindu judaica islâmica Sim na medida em que o pensar ocorre sobre um plano de imanência que pode ser povoado de figuras tanto quanto de conceitos Este plano de imanência todavia não é exatamente filosófico mas préfilosófico Ele é afetado pelo que o povoa e que reage sobre ele de modo que só se torna filosófico sob o efeito do conceito suposto pela filosofia ele não é menos instaurado por ela e se desdobra numa relação filosófica com a nãofilosofia No caso das figuras ao contrário o préfilosófico mostra que o próprio plano de imanência não tinha por destinação inevitável uma criação de conceito ou uma formação filosófica mas podia se desdobrar em sabedorias e religiões segundo uma bifurcação que conjurava previamente a filosofia do ponto de vista de sua própria possibilidade O que negamos é que a filosofia apresente uma necessidade interna seja em si mesma seja nos gregos e a idéia de um milagre grego não seria senão um outro aspecto dessa pseudonecessidade E no entanto a filosofia foi uma coisa grega embora trazida por migrantes Para que a filosofia nascesse foi preciso um encontro entre o meio grego e o plano de imanência do pensamento Foi preciso a conjunção de dois movimentos de desterritorialização muito diferentes o relativo e o absoluto o primeiro operando já na imanência Foi preciso que a desterritorialização absoluta do plano de pensamento se ajustasse ou se conectasse diretamente com a desterritorialização relativa da sociedade grega Foi preciso o encontro do amigo e do pensamento Numa palavra há de fato uma razão para a filosofia mas uma razão sintética e contingente um encontro uma conjunção Ela não é insuficiente por si mesma mas contingente em si mesma Mesmo no conceito a razão 122 depende de uma conexão dos componentes que poderia ter sido outra com outras vizinhanças O princípio de razão tal como aparece na filosofia é um princípio de razão contingente e se anuncia não há boa razão senão contingente não há história universal senão da contingência EXEMPLO VII E vão procurar como Hegel ou Heidegger uma razão analítica e necessária que uniria a filosofia à Grécia Porque os gregos são homens livres são os primeiros a captar o Objeto numa relação com o sujeito tal seria o conceito segundo Hegel Mas já que o objeto permanece contemplado como belo sem que sua relação com o sujeito seja ainda determinada é preciso esperar os estágios seguintes para que esta relação seja ela mesma refletida depois posta em movimento ou comunicada Não deixa de ser verdade que os gregos inventaram o primeiro estágio a partir do qual tudo se desenvolve interiormente ao conceito O Oriente pensava sem dúvida mas pensava o objeto em si como abstração pura a universalidade vazia idêntica à simples particularidade faltavalhe a relação com o sujeito como universalidade concreta ou como individualidade universal O Oriente ignora o conceito porque se contenta em fazer coexistir o vazio mais abstrato e o ente mais trivial sem nenhuma mediação Todavia não se vê muito bem o que distingue o estágio antefilosófico do Oriente e o estágio filosófico da Grécia já que o pensamento grego não é consciente da relação com o sujeito que supõe sem saber refletilo ainda Também Heidegger desloca o problema e situa o conceito na diferença entre o Ser e o ente antes que naquela do sujeito e do objeto Ele considera o grego como 123 autóctone antes que como livre cidadão e toda a reflexão de Heidegger sobre o Ser e o ente se aproxima da Terra e do território como testemunham os temas do construir do habitar o próprio do grego é habitar o Ser e dispor da palavra Ser Desterritorializado o grego se reterritorializa sobre sua própria língua e seu tesouro lingüístico o verbo ser Assim o Oriente não está antes da filosofia mas ao lado porque ele pensa mas não pensa o Ser6 E a filosofia mesma passa menos por graus do sujeito e do objeto evolui menos do que habita uma estrutura do Ser Os gregos de Heidegger não chegam a articular sua relação com o Ser os de Hegel não chegam a refletir sua relação com o Sujeito Mas em Heidegger não se trata de ir mais longe que os gregos basta retomar seu movimento numa repetição recomeçante iniciante É que o Ser em virtude de sua estrutura não cessa de se desviar quando se volta e a história do Ser ouda Terra é a de seu desvio de sua desterritorialização no desenvolvimento técnicomundial da civilização ocidental iniciada pelos gregos e reterritorializada sobre o nacionalsocialismo O que permanece comum a Heidegger e a Hegel é terem concebido a relação da Grécia com a filosofia como uma origem e assim como o ponto de partida de uma história interior ao Ocidente de modo que a filosofia se confunde necessariamente com sua própria história Por mais fortemente que se tenha dele aproximado Heidegger trai o movimento da desterritorialização porque o cristaliza de uma vez por todas entre o ser e o ente entre o território grego e a Terra ocidental que os gregos teriam nomeado Ser 6 Cf Jean Beaufret A fonte está em toda parte indeterminada tanto chinesa árabe quanto indiana Mas eis há o episódio grego os gregos tiveram o estranho privilégio de nomear a fonte ser Ethernité n 11985 124 Hegel e Heidegger permanecem historicistas na medida em que tomam a história como uma forma de interioridade na qual o conceito desenvolve ou desvela necessariamente seu destino A necessidade repousa sobre a abstração do elemento histórico tornado circular Compreendese mal então a imprevisível criação dos conceitos A filosofia é uma geofilosofia exatamente como a história é uma geohistória do ponto de vista de Braudel Por que a filosofia na Grécia em tal momento Ocorre o mesmo que para o capitalismo segundo Braudel por que o capitalismo em tais lugares e em tais momentos por que não na China em tal outro momento já que tantos componentes já estavam presentes lá A geografia não se contenta em fornecer uma matéria e lugares variáveis para a forma histórica Ela não é somente física e humana mas mental como a paisagem Ela arranca a história do culto da necessidade para fazer valer a irredutibilidade da contingência Ela a arranca do culto das origens para afirmar a potência de um meio o que a filosofia encontra entre os gregos dizia Nietzsche não é uma origem mas um meio um ambiente uma atmosfera ambiente o filósofo deixa de ser um cometa Ela a arranca das estruturas para traçar as linhas de fuga que passam pelo mundo grego através do Mediterrâneo Enfim ela arranca a história de si mesma para descobrir os devires que não são a história mesmo quando nela recaem a história da filosofia na Grécia não deve esconder que os gregos sempre tiveram primeiro que se tornar filósofos do mesmo modo que os filósofos tiveram que se tornar gregos O devir não é história hoje ainda a história designa somente o conjunto das condições por mais recentes que sejam das quais nos desviamos para um devir isto é para criarmos algo de novo Os gregos o fizeram mas não há desvio que valha de uma vez por todas Não se pode reduzir a filosofia a sua própria história porque a filosofia não cessa de se arrancar dessa história para criar novos con 125 ceitos que recaem na história mas não provêm dela Como algo viria da história Sem a história o devir permaneceria indeterminado incondicionado mas o devir não é histórico Os tipos psicossociais são da história mas os personagens conceituais são do devir O próprio acontecimento tem necessidade do devir como de um elemento nãohistórico O elemento nãohistórico diz Nietzsche assemelhase a uma atmosfera ambiente sem a qual a vida não pode engendrarse vida que desaparece de novo quando essa atmosfera se aniquila É como um momento de graça e onde há atos que o homem foi capaz de realizar sem se ter antes envolvido por esta nuvem nãohistórica7 Se a filosofia aparece na Grécia é em função de uma contingência mais do que de uma necessidade de um ambiente ou de um meio mais do que de uma origem de um devir mais do que de uma história de uma geografia mais do que de uma historiografia de uma graça mais do que de uma natureza Por que a filosofia sobrevive à Grécia Não se pode dizer que o capitalismo através da Idade Média seja a continuação da cidade grega mesmo as formas comerciais são pouco comparáveis Mas por razões sempre contingentes o capitalismo arrasta a Europa numa fantástica desterritorialização relativa que remete de início a vilascidades e que procede ela também por imanência As produções territoriais se reportam a uma forma comum imanente capaz de percorrer os mares a riqueza em geral o trabalho simplesmente e o encontro entre os dois como mercadoria Marx constrói exatamente um conceito de capitalismo determinando os dois componentes principais trabalho nu e riqueza pura com sua zona de indiscernibilidade quando a riqueza compra o 7 Nietzsche Considérations intempestives De Putilité et des inconvénients des études historiques 1 Sobre o filósofocometa e o meio que ele encontra na Grécia La naissance de Ia philosophie Gallimard p 37 126 trabalho Por que o capitalismo no Ocidente e não na China do século III ou mesmo no século VIII8 É que o Ocidente monta e ajusta lentamente estes componentes ao passo que o Oriente os impede de vir a termo Só o Ocidente estende e propaga seus focos de imanência O campo social não remete mais como nos impérios a um limite exterior que o limita de cima mas a limites interiores imanentes que não cessam de se deslocar alargando o sistema e que se reconstituem deslocandose9 Os obstáculos exteriores são apenas tecnológicos e só subsistem as rivalidades internas Mercado mundial que se estende até os confins da terra antes de passar para a galáxia mesmo os ares se tornam horizontais Não é uma continuação da tentativa grega mas uma retomada numa escala anteriormente desconhecida sob uma outra forma e com outros meios que relança todavia a combinação da qual os gregos tiveram a iniciativa o imperialismo democrático a democracia colonizadora O europeu pode pois se considerar não como um tipo psicossocial entre os outros mas como o Homem por excelência assim como o grego já o fizera mas com muito mais força expansiva e vontade missionária que o grego Husserl dizia que os povos mesmo em sua hostilidade se agrupam em tipos que têm um lar territorial e um parentesco familiar tal como os povos da índia mas só a Europa malgrado a rivalidade de suas nações proporia a si mesma e aos outros povos uma incitação a se europeizar cada vez mais de modo que é a humanidade inteira que se aparenta a si neste Ocidente como o fizera ou 8 Cf Balazs La bureaucratie celeste Gallimard cap XIII 9 Marx O Capital III 3 conclusões A produção capitalista tende sem cessar a ultrapassar estes limites que lhe são imanentes mas ela não chega a isso senão empregando meios que novamente e numa escala mais imponente erguem ante ela as mesmas barreiras A verdadeira barreira da produção capitalista é o capital ele mesmo 127 trora na Grécia10 Todavia é difícil acreditar que seja a ascensão da filosofia e das ciências coinclusas o que explica este privilégio de um sujeito transcendental propriamente europeu É preciso que o movimento infinito do pensamento o que Husserl chama de Telos entre em conjunção com o grande movimento relativo do capital que não cessa de se desterritorializar para assegurar o poder da Europa sobre todos os outros povos e sua reterritorialização sobre a Europa O liame da filosofia moderna com o capitalismo é pois do mesmo gênero que o da filosofia antiga com a Grécia a conexão de um plano de imanência absoluto com um meio social relativo que procede também por imanência Não é uma continuidade necessária que vai da Grécia à Europa do ponto de vista do desenvolvimento da filosofia por intermédio do cristianismo é o recomeço contingente de um mesmo processo contingente com outros dados A imensa desterritorialização relativa do capitalismo mundial precisa se reterritorializar sobre o Estado nacional moderno que culmina na democracia nova sociedade de irmãos versão capitalista da sociedade dos amigos Como mostra Braudel o capitalismo partiu das vilascidades mas estas levaram tão longe a desterritorialização que foi necessário que os Estados modernos imanentes moderassem a loucura delas as recuperassem e as investissem para operar as reterritorializações necessárias como novos limites internos11 O capitalismo reativa o mundo grego sobre estas bases econômicas políticas e sociais É a nova Atenas O homem do capitalismo não é Robinson mas Ulisses o plebeu astucioso o homem médio qualquer habitante das gran 10 Husserl ha crise des sáences européennes Gallimard pp 353355 cf os comentários de RP Droit Uoubli de lInde pp 203204 11 Braudel Civilisation tnatérielle et capitalistne Ed Armand Colin I pp 391400 128 des cidades Proletário autóctone ou Migrante estrangeiro que se lançam no movimento infinito a revolução Não é um grito mas dois gritos que atravessam o capitalismo e vão ao encalço da mesma decepção Emigrados de todos os países univos Proletários de todos os países Nos dois pólos do Ocidente a América e a Rússia o pragmatismo e o socialismo representam o retorno de Ulisses a nova sociedade de irmãos ou de camaradas que retoma o sonho grego e reconstitui a dignidade democrática Com efeito a conexão da filosofia antiga com a cidade grega a conexão da filosofia moderna com o capitalismo não são ideológicos e não se contentam em levar ao infinito determinações históricas e sociais para extrair daí figuras espirituais Certamente pode ser tentador ver na filosofia um comércio agradável do espírito que encontraria no conceito sua mercadoria própria ou antes seu valor de troca do ponto de vista de uma sociabilidade desinteressada nutrida pela conversação democrática ocidental capaz de engendrar um consenso de opinião e de fornecer uma ética para a comunicação como a arte lhe forneceria uma estética Se é isso que se chama filosofia compreendese que o marketing se apodere do conceito e que o publicitário se apresente como o conceituador por excelência poeta e pensador o deplorável não está nesta apropriação desavergonhada mas antes de mais nada na concepção da filosofia que a tornou possível Guardadas todas as proporções os gregos tinham passado por vergonhas semelhantes com certos sofistas Mas para o bem da filosofia moderna esta não é mais amiga do capitalismo do que a filosofia antiga era da cidade A filosofia leva ao absoluto a desterritorialização relativa do capital ela o faz passar sobre o plano de imanência como movimento do infinito e o suprime enquanto limite interior voltandoo contra si para chamálo a uma nova terra a um novo povo Mas assim ela atinge a forma não proposicional do conceito em 129 que se aniquilam a comunicação a troca o consenso e a opinião Está pois mais próximo daquilo que Adorno chamava de dialética negativa e do que a escola de Frankfurt designava como utopia Com efeito é a utopia que faz a junção da filosofia com sua época capitalismo europeu mas já também cidade grega É sempre com a utopia que a filosofia se torna política e leva ao mais alto ponto a crítica de sua época A utopia não se separa do movimento infinito ela designa etimologicamente a desterritorialização absoluta mas sempre no ponto crítico em que esta se conecta com o meio relativo presente e sobretudo com as forças abafadas neste meio A palavra empregada pelo utopista Samuel Butler Erewhon não remete somente a NoWhere ou a parteNenhuma mas a NowHere aquiagora O que conta não é a pretensa distinção de um socialismo utópico e de um socialismo científico são antes os diversos tipos de utopia dentre os quais a revolução Há sempre na utopia como na filosofia o risco de uma restauração da transcendência e por vezes sua orgulhosa afirmação de modo que é preciso distinguir as utopias autoritárias ou de transcendência e as utopias libertárias revolucionárias imanentes12 Mas justamente dizer que a revolução é ela mesma utopia de imanência não é dizer que é um sonho algo que não se realiza ou que só se realiza traindose Pelo contrário é colocar a revolução como plano de imanência movimento infinito sobrevôo absoluto mas enquanto estes traços se conectam com o que há de real aqui e agora na luta contra o capitalismo e relançam novas lutas sempre que a precedente é traída A palavra utopia designa portanto esta conjunção da filosofia ou do conceito com o meio presente filosofia políti 12 Sobre estes tipos de utopias cf Ernst Bloch Le príncipe esperance Gallimard II E os comentários de René Schérer sobre a utopia de Fourier em suas relações com o movimento Pari sur 1impossible Presses Universitaires de Vincennes 130 ca embora talvez a utopia não seja a melhor palavra em raão do sentido mutilado que a opinião lhe deu Não é falso dizer que a revolução é culpa dos filósofos embora não sejam os filósofos que a conduzam Que as duas grandes revoluções modernas a americana e a soviética tenham dado no que deram não impede o conceito de prosseguir sua via imanente Como mostrava Kant o conceito de revolução não está na maneira pela qual esta pode ser conduzida num campo social necessariamente relativo mas no entusiasmo com o qual ela é pensada sobre um plano de imanência absoluto como uma apresentação do infinito no aquiagora que não comporta nada de racional ou mesmo de razoável13 O conceito libera a imanência de todos os limites que o capital lhe impunha ainda ou que ela se impunha a si mesma sob a forma do capital aparecendo como algo de transcendente Neste entusiasmo tratase todavia menos de uma separação entre o espectador e o ator que de uma distinção na ação mesma entre os fatores históricos e a névoa nãohistórica entre o estado de coisas e o acontecimento A título de conceito e como acontecimento a revolução é autoreferencial ou goza de uma autoposição que se deixa apreender num entusiasmo imanente sem que nada nos estados de coisas ou no vivido possa atenuála sequer as decepções da razão A revolução é desterritorialização absoluta no ponto mesmo em que esta faz apelo à nova terra ao novo povo A desterritorialização absoluta não existe sem reterritorialização A filosofia se reterritorializa sobre o conceito O conceito não é objeto mas território Não há Objeto mas um território Precisamente por isso ele tem uma forma passada presente e talvez por vir A filosofia moderna se reter 13 Kant Le conflit des facultes II 6 este texto reencontrou toda a sua importância hoje pelos comentários muito diferentes de Foucault 131 ritorializa sobre a Grécia como forma de seu próprio passado São os filósofos alemães sobretudo que viveram a relação com a Grécia como uma relação pessoal Mas justamente eles se viviam a si mesmos como o avesso ou o contrário dos gregos o simétrico inverso os gregos mantinham bem o plano de imanência que eles construíam no entusiasmo e na embriaguez mas eles precisavam procurar com quais conceitos preenchêlo para não recair nas figuras do Oriente enquanto que nós nós temos conceitos nós acreditamos têlos depois de tantos séculos de pensamento ocidental mas não sabemos de modo algum onde colocálos porque carecemos de um verdadeiro plano desviados que somos pela transcendência cristã Numa palavra sob sua forma passada o conceito é o que não era ainda Nós hoje temos os conceitos mas os gregos não tinham ainda eles tinham o plano que nós não temos mais É por isso que os gregos de Platão contemplam o conceito como algo que está ainda muito longe e acima enquanto que nós nós temos o conceito nós o temos no espírito de uma maneira inata basta refletir É o que Hõlderlin exprimia tão profundamente o chão natal dos gregos é nosso estrangeiro o que nós devemos adquirir enquanto os gregos ao contrário tinham de adquirir nosso chão natal como seu estrangeiro14 Ou então Schelling os gregos viviam e pensavam na Natureza 14 Hõlderlin os gregos possuem o grande Plano pânico que eles partilhavam com o Oriente mas eles devem adquirir o conceito ou a composição orgânica ocidental entre nós é o contrário carta a Bõlhendorf 4 de dezembro de 1801 e os comentários de Jean Beaufret in Hòlderlin Remarques sur Oedipe Ed UGE Col 1018 pp 811 cf também Philippe LacoueLabarthe Uimitation des modernes Ed Galilée Mesmo o texto célebre de Renan sobre o milagre grego tem um movimento complexo análogo o que os gregos tinham por natureza nós não podemos reencontrálo senão pela reflexão confrontando um esquecimento e um tédio fundamentais nós não somos mais gregos nós somos bretões Souvenirs denfance et de jeunesse 132 mas deixavam o Espírito nos mistérios enquanto que nós nós vivemos sentimos e pensamos no Espírito na reflexão mas deixamos a Natureza num profundo mistério alquímico que não cessamos de profanar O autóctone e o estrangeiro não se separam mais como dois personagens distintos mas se distribuem como um só e mesmo personagem duplo que se desdobra por sua vez em duas versões presente e passada o que era estrangeiro se torna autóctone Hõlderlin conclama com todas as suas forças uma sociedade de amigos como condição do pensamento mas é como se esta sociedade tivesse atravessado uma catástrofe que muda a natureza da amizade Nós nos reterritorializamos entre os gregos mas em função do que eles não tinham e não eram ainda de modo que nós os reterritorializamos sobre nós mesmos A reterritoríalização filosófica tem pois também uma forma presente Podese dizer que a filosofia se reterritorializa sobre o Estado democrático moderno e os direitos do homem Mas como não há Estado democrático universal este movimento implica a particularidade de um Estado de um direito ou o espírito de um povo capaz de exprimir os direitos do homem em seu Estado e de desenhar a moderna sociedade de amigos Com efeito não é somente o filósofo que tem uma nação enquanto homem é a filosofia que se reterritorializa sobre o Estado nacional e o espírito do povo o mais freqüentemente aqueles do filósofo mas nem sempre Assim Nietzsche fundou a geofilosofia procurando determinar os caracteres nacionais da filosofia francesa inglesa e alemã Mas por que três países somente foram coletivamente capazes de produzir filosofia no mundo capitalista Por que não a Espanha por que não a Itália A Itália notadamente apresentava um conjunto de cidades desterritorializadas e uma potência marítima capazes de renovar as condições de um milagre e marcou o começo de uma filosofia inigualável mas que abortou e cuja herança passa antes para a Alema 133 nha com Leibniz e Schelling Talvez a Espanha fosse por demais submissa à Igreja e a Itália por demais próxima da Santa Sé o que salvou espiritualmente a Inglaterra e a Alemanha foi talvez a ruptura com o catolicismo e a França o galicanismo À Itália e à Espanha faltava um meio para a filosofia de modo que seus pensadores permaneceram cometas e elas estavam dispostas a queimar seus cometas A Itália e a Espanha foram os dois países ocidentais capazes de desenvolver poderosamente o conceitismo isto é o compromisso católico do conceito e da figura que tinha um grande valor estético mas mascarava a filosofia desviava a filosofia para uma retórica e impedia uma plena posse do conceito A forma presente se enuncia assim nós temos os conceitos Enquanto que os gregos não os tinham ainda e os contemplavam de longe ou os pressentiam daí decorre a diferença entre a reminiscência platônica e o inatismo cartesiano ou o a priori kantiano Mas a posse do conceito não parece coincidir com a revolução o Estado democrático e os direitos do homem Se é verdade que na América a empresa filosófica do pragmatismo tão subestimada na França está em continuidade com a revolução democrática e a nova sociedade de irmãos não ocorre o mesmo com a idade de ouro da filosofia francesa no século XVII nem com a Inglaterra no século XVIII nem com a Alemanha no século XIX Mas isto significa somente que a história dos homens e a história da filosofia não têm o mesmo ritmo E a filosofia francesa já exige uma república de espíritos e uma capacidade de pensar como a coisa melhor partilhada que terminará por se exprimir num cogito revolucionário a Inglaterra não cessará de refletir sobre sua experiência revolucionária e será a primeira a perguntar por que as revoluções dão errado nos fatos quando tanto prometem em espírito A Inglaterra a América e a França vivem a si mesmas como as três terras dos direitos do homem Quanto à Alemanha 134 ela não cessa de sua parte de refletir sobre a revolução francesa como aquilo que ela não pode fazer faltamlhe cidades suficientemente desterritorializadas ela sofre o peso de uma hinterlândia o Land Mas o que ela não pode fazer ela se dá por tarefa pensar É sempre em conformidade com o espírito de um povo e sua concepção do direito que a filosofia se reterritorializa no mundo moderno A história da filosofia é pois marcada por caracteres nacionais ou antes nacionalitários que são como opiniões filosóficas EXEMPLO VIII Se é verdade que nós homens modernos temos o conceito mas perdemos de vista o plano de imanência o caráter francês em filosofia tem a tendência a se aproveitar desta situação sustentando os conceitos por uma simples ordem do conhecimento reflexivo uma ordem de razões uma epistemologia É como o recenseamento das terras habitáveis civilizáveis conhecíveis ou conhecidas que se medem por uma tomada de consciência ou cogito mesmo se o cogito deve tornarse préreflexivo e esta consciência nãotética para cultivar as terras mais ingratas Os franceses são como proprietários rurais cuja renda é o cogito Eles são sempre reterritorializados sobre a consciência A Alemanha pelo contrário não renuncia ao absoluto ela se serve da consciência mas como de um meio de desterritorialização Ela quer reconquistar o plano de imanência grego a terra desconhecida que ela sente agora como sua própria barbárie sua própria anarquia deixada aos nômades depois da desaparição dos gregos15 Também 15 Devemonos remeter às primeiras linhas do prefácio da primeira edição da Crítica da Razão pura O terreno onde se travam os combates se chama a Metafísica No início sob o reino dos dogmáticos seu poder era despótico Mas como sua legislação levava ainda a marca da antiga barbárie esta metafísica cai pouco a pouco em conseqüência de guerras intestinas numa completa anarquia e os céticos espécies de nômades que têm horror de se estabelecer definitivamente sobre uma terra rompiam de tempos em tempos o liame social Todavia como não eram felizmente senão um pequeno número eles não puderam impedir seus adversários de tentar sempre novamente mas de resto sem nenhum plano entre eles previamente concertado restabelecer este liame quebrado E sobre a ilha da fundação o grande texto da Analítica dos princípios no começo do capítulo III As Críticas não compõem somente uma história mas sobretudo uma geografia da Razão segundo a qual se distingue um campo um território e um domínio do conceito Crítica do juízo introdução 2 JeanClet Martin fez uma bela análise desta geografia da Razão pura em Kant Variations no prelo 135 lhe é necessário sem cessar limpar e consolidar este solo isto é fundar Uma mania de fundar de conquistar inspira esta filosofia o que os gregos tinham por autoctonia ela o terá por conquista e fundação de modo que ela tornará a imanência imanente a algo a seu próprio Ato de filosofar a sua própria subjetividade filosofante o cogito toma pois um sentido inteiramente diferente já que ele conquista e fixa o solo Deste ponto de vista a Inglaterra é á obsessão da Alemanha pois os ingleses são precisamente esses nômades que tratam o plano de imanência como um solo móvel e movente um campo de experiência radical um mundo em arquipélago onde eles se contentam em plantar suas tendas de ilha em ilha e sobre o mar Os ingleses nomadizam sobre a velha terra grega fraturada fractalizada estendida a todo o universo Não se pode sequer dizer que eles tenham os conceitos como os franceses ou os alemães mas eles os adquirem não crêem senão no adquirido Não porque tudo viria dos sentidos mas porque se adquire um conceito habitan 136 do plantando sua tenda contraindo um hábito Na trindade FundarConstruirHabitar são os franceses que constróem e os alemães que fundam mas os ingleses habitam Bastalhes uma tenda Eles forjam para si uma concepção extraordinária do hábito adquirimos hábitos contemplando e contraindo o que contemplamos O hábito é criador A planta contempla a água a terra o azoto o carbono os cloros e os sulfatos e os contrai para adquirir seu próprio conceito e se sacia com ele enjoyment O conceito é um hábito adquirido contemplando os elementos dos quais se procede de onde a grecidade muito especial da filosofia inglesa seu neoplatonismo empírico Nós somos todos contemplações portanto hábitos Eu é um hábito Há conceito em toda a parte onde há hábito e os hábitos se fundam e se desfazem sobre o plano de imanência da experiência radical são convenções16 É por isso que a filosofia inglesa é uma livre e selvagem criação de conceitos Uma proposição sendo dada a qual convenção remete ela qual é o hábito que constitui seu conceito É a questão do pragmatismo O direito inglês é de costume ou de convenção como o francês de contrato sistema dedutivo e o alemão de instituição totalidade orgânica Quando a filosofia se reterritorializa sobre o Estado de direito o filósofo se torna professor de filosofia mas o alemão o é por instituição e fundamento o francês o é por contrato o inglês não o é senão por convenção Se não há Estado democrático universal malgrado o sonho de fundação da filosofia alemã é porque a única coi 16 Hume Traitéde Ia nature humaine Ed Aubier II p 608 Dois homens que manejam os remos de um barco fazemno segundo um acordo ou uma convenção embora jamais tenham feito promessas 137 sa que é universal no capitalismo é o mercado Por oposição aos impérios arcaicos que operavam sobrecodificações transcendentes o capitalismo funciona como uma axiomática imanente de fluxos decodificados fluxo de dinheiro de trabalho de produtos Os Estados nacionais não são mais paradigmas de sobrecodificação mas constituem os modelos de realização dessa axiomática imanente Numa axiomática os modelos não remetem a uma transcendência ao contrário É como se a desterritorialização dos Estados moderasse a do capital e fornecesse a este as reterritorializações compensatórias Ora os modelos de realização podem ser muito diversos democráticos ditatoriais totalitários podem ser realmente heterogêneos não são menos isomorfos em relação ao mercado mundial enquanto este não supõe somente mas produz desigualdades de desenvolvimento determinantes É por isso que como se observou freqüentemente os Estados democráticos são ligados de tal maneira e comprometidos com os Estados ditatoriais que a defesa dos direitos do homem deve necessariamente passar pela crítica interna de toda democracia Todo democrata é também o outro Tartufo de Beaumarchais o Tartufo humanitário como dizia Péguy Certamente não há razão para acreditar que não podemos mais pensar depois de Auschwitz e que somos todos responsáveis pelo nazismo numa culpabilidade malsã que aliás só afetaria as vítimas Primo Levi diz não nos obrigarão a tomar as vítimas por algozes Mas o que o nazismo e os campos nos inspiram diz ele é bem mais ou bem menos a vergonha de ser um homem porque mesmo os sobreviventes precisaram compactuar se comprometer17 Não são 17 É um sentimento composto que Primo Levi descreve assim vergonha que homens tenham podido fazer isso vergonha que nós não tenhamos podido impedilo vergonha de ter sobrevivido a isto vergonha de ter sido envilecido ou diminuído Cf Les naufragés et les rescapés Gallimard e sobre a zona cinza de contornos mal definidos que se 138 somente nossos Estados é cada um de nós cada democrata que se acha não responsável pelo nazismo mas maculado por ele Há catástrofe mas a catástrofe consiste em que a sociedade de irmãos ou de amigos passou por uma tal prova que eles não podem mais se olhar um ao outro ou cada um a si mesmo sem uma fadiga talvez uma desconfiança que se tornam movimentos infinitos do pensamento que não suprimem a amizade mas lhe dão sua cor moderna e substituem a simples rivalidade dos gregos Não somos mais gregos e a amizade não é mais a mesma Blanchot Mascolo viram a importância desta mutação para o próprio pensamento Os direitos do homem são axiomas eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas especialmente na segurança da propriedade que os ignoram ou ainda os suspendem mais do que os contradizem a impura mistura ou o impuro lado a lado dizia Nietzsche Quem pode manter e gerar a miséria e a desterritorializaçãoreterritorialização das favelas salvo polícias e exércitos poderosos que coexistem com as democracias Que socialdemocracia não dá a ordem de atirar quando a miséria sai de seu território ou gueto Os direitos não salvam nem os homens nem uma filosofia que se reterritorializa sobre o Estado democrático Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo E é preciso muita inocência ou safadeza a uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou mesmo de sábios formando uma opinião universal como consenso capaz de moralizar as nações os Estados e o mercado18 para e liga ao mesmo tempo os dois campos de senhores e de escravos P 42 18 Sobre a crítica da opinião democrática seu modelo americano e as mistificações dos direitos do homem ou do Estado de direito internacional uma das mais fortes análises é a de Michel Butel UAutre journal n 10 março de 1991 pp 2125 139 Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanentes do homem provido de direitos E a vergonha de ser um homem nós não a experimentamos somente nas situações extremas descritas por Primo Levi mas nas condições insignificantes ante a baixeza e a vulgaridade da existência que impregnam as democracias ante a propagação desses modos de existência e de pensamentoparao mercado ante os valores os ideais e as opiniões de nossa época A ignomínia das possibilidades de vida que nos são oferecidas aparecem de dentro Não nos sentimos fora de nossa época ao contrário não cessamos de estabelecer com ela compromissos vergonhosos Este sentimento de vergonha é um dos mais poderosos motivos da filosofia Não somos responsáveis pelas vítimas mas diante das vítimas E não há outro meio senão fazer como o animal rosnar escavar o chão nitrir convulsionarse para escapar ao ignóbil o pensamento mesmo está por vezes mais próximo de um animal que morre do que de um homem vivo mesmo democrata Se a filosofia se reterritorializa sobre o conceito ela não encontra sua condição na forma presente do Estado democrático ou num cogito de comunicação mais duvidoso ainda que o cogito da reflexão Não nos falta comunicação ao contrário nós temos comunicação demais faltanos criação Falta nos resistência ao presente A criação de conceitos faz apelo por si mesma a uma forma futura invoca uma nova terra e um povo que não existe ainda A europeização não constitui um devir constitui somente a história do capitalismo que impede o devir dos povos sujeitados A arte e a filosofia juntamse neste ponto a constituição de uma terra e de um povo ausentes como correlato da criação Não são autores populistas mas os mais aristocráticos que exigem esse porvir Esse povo e essa terra não serão reencontrados em nossas democracias As democracias são maiorias mas um devir é por natureza o que se subtrai sempre à maio 140 ria É uma posição complexa ambígua a de muitos autores com relação à democracia O caso Heidegger veio complicar as coisas foi necessário que um grande filósofo se reterritorializasse efetivamente sobre o nazismo para que os comentários mais estranhos se cruzassem ora para pôr em causa sua filosofia ora para absolvêla em nome de argumentos tão complicados e alambicados que nos deixam perturbados Nem sempre é fácil ser heideggeriano Terseia compreendido melhor que um grande pintor um grande músico caíssem assim na vergonha mas justamente eles não o fizeram Precisou ter sido um filósofo como se a vergonha devesse entrar na própria filosofia Ele quis reencontrar os gregos pelos alemães no pior momento de sua história que há de pior dizia Nietzsche do que se encontrar ante um alemão quando se esperava um grego Como os conceitos de Heidegger não seriam intrinsecamente maculados por uma reterritorialização abjeta A menos que todos os conceitos comportem esta zona cinza e de indiscernibilidade onde os lutadores se confundem um instante sobre o solo e onde o olho cansado do pensador toma um pelo outro não somente o alemão por um grego mas o fascista por um criador de existência e de liberdade Heidegger se perdeu nos caminhos da reterritorialização pois são caminhos sem baliza nem parapeito Talvez este rigoroso professor fosse mais louco do que parecia Ele se enganou de povo de terra de sangue Pois a raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura mas uma raça oprimida bastarda inferior anárquica nômade irremediavelmente menor aqueles que Kant excluía das vias da nova Crítica Artaud dizia escrever para os analfabetos falar para os afásicos pensar para os acéfalos Mas que significa para Não é com vistas a Nem mesmo em lugar de É diante É uma questão de devir O pensador não é acéfalo afásico ou analfabeto mas se torna Tornase índio não 141 pára de se tornar talvez para que o índio que é índio se torne ele mesmo outra coisa e possa escapar a sua agonia Pensamos e escrevemos para os animais Tornamonos animal para que o animal também se torne outra coisa A agonia de um rato ou a execução de um bezerro permanecem presentes no pensamento não por piedade mas como a zona de troca entre o homem e o animal em que algo de um passa ao outro É a relação constitutiva da filosofia com a nãofilosofia O devir é sempre duplo e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova terra O filósofo deve tornarse nãofilósofo para que a nãofilosofia se torne a terra e o povo da filosofia Mesmo um filósofo tão bem considerado como o bispo Berkeley não pára de dizer nós os irlandeses o populacho O povo é interior ao pensador porque é um devirpovo na medida em que o pensador é interior ao povo como devir não menos ilimitado O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo só podem invocálo com todas as suas forças Um povo só pode ser criado em sofrimentos abomináveis e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia Mas os livros de filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento que faz pressentir o advento de um povo Eles têm em comum resistir resistir à morte à servidão ao intolerável à vergonha ao presente A desterritorialização e a reterritorialização se cruzam no duplo devir Não se pode mais distinguir o autóctone e o estrangeiro porque o estrangeiro se torna autóctone no outro que não o é ao mesmo tempo que o autóctone se torna estrangeiro a si mesmo a sua própria classe a sua própria nação a sua própria língua nós falamos a mesma língua e todavia eu não entendo você Tornarse estrangeiro a si mesmo e a sua própria língua e nação não é próprio do filósofo e da filosofia seu estilo o que se chama um galimatias filosófico Em resumo a filosofia se reterritorializa 142 três vezes uma vez no passado sobre os gregos uma vez no presente sobre o Estado democrático uma vez no porvir sobre o novo povo e a nova terra Os gregos e os democratas se deformam singularmente neste espelho do porvir A utopia não é um bom conceito porque mesmo quando se opõe à História referese a ela ainda e se inscreve nela como um ideal ou como uma motivação Mas o devir é o próprio conceito Nasce na História e nela recaí mas não pertence a ela Não tem em si mesmo nem início nem fim mas somente um meio Assim é mais geográfico que histórico Tais são as revoluções e as sociedades de amigos sociedades de resistência pois criar é resistir puros devires puros acontecimentos sobre um plano de imanência O que a História capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisas ou no vivido mas o acontecimento em seu devir em sua consistência própria em sua autoposição como conceito escapa à História Os tipos psicossociais são históricos mas os personagens conceituais são acontecimentos Ora envelhecemos segundo a História e com ela ora nos tornamos velhos num acontecimento muito discreto talvez o mesmo acontecimento que permite colocar o problema o que é a filosofia E é a mesma coisa para os que morrem jovens há muitas maneiras de morrer assim Pensar é experimentar mas a experimentação é sempre o que se está fazendo o novo o notável o interessante que substituem a aparência de verdade e que são mais exigentes que ela O que se está fazendo não é o que acaba mas menos ainda o que começa A história não é experimentação ela é somente o conjunto das condições quase negativas que tornam possível a experimentação de algo que escapa à história Sem história a experimentação permaneceria indeterminada incondicionada mas a experimentação não é histórica ela é filosófica 143 EXEMPLO IX É num grande livro de filosofia que Péguy explica que há duas maneiras de considerar o acontecimento uma que consiste em passar ao longo do acontecimento em recolher sua efetuação na história o condicionamento e o apodrecimento na história mas a outra em remontar ao acontecimento em instalarse nele como num devir em rejuvenescer e em envelhecer nele de uma só vez em passar por todos os seus componentes ou singularidades Pode ser que nada mude ou pareça mudar na história mas tudo muda no acontecimento e nós mudamos no acontecimento Não houve nada E um problema do qual não se via o fim um problema sem saída de repente não existe mais e perguntamos de que falávamos ele passou a outros problemas nada houve e estávamos num novo povo num novo mundo num novo homem19 Não é mais o histórico nem é o eterno diz Péguy é o Internai Eis um nome que Péguy precisou criar para designar um novo conceito e os componentes as intensidades deste conceito E não é algo de semelhante que um pensador distante de Péguy tinha designado pelo nome Intempestivo ou Inatual a névoa nãohistórica que nada tem a ver com o eterno o devir sem o qual nada se faria na história mas não se confunde com ela Por sob os gregos e os Estados ele lança um povo uma terra como a flecha e o disco de um novo mundo que não acaba sempre se fazendo agir contra o tempo e assim sobre o tempo em favor eu espero de um tempo por vir Agir contra o passado e assim sobre o presente em favor eu espero de um porvir mas o porvir não é um futuro da histó 19 Péguy Clio Gallimard p 266269 144 ria mesmo utópico é o infinito Agora o Nún que Platão já distinguia de todo presente o Intensivo ou o Intempestivo não um instante mas um devir Não é ainda o que Foucault chamava de Atual Mas como o conceito receberia agora o nome de atual enquanto Nietzsche o chamava de inatual É que para Foucault o que conta é a diferença do presente e do atual O novo o interessante é o atual O atual não é o que somos mas antes o que nos tornamos o que estamos nos tornando isto é o Outro nosso deviroutro O presente ao contrário é o que somos e por isso mesmo o que já deixamos de ser Devemos distinguir não somente a parte do passado e a do presente mas mais profundamente a do presente e a do atual20 Não que o atual seja a prefiguração mesmo utópica de um porvir de nossa história mas ele é o agora de nosso devir Quando Foucault admira Kant por ter colocado o problema da filosofia não remetendo ao eterno mas remetendo ao Agora ele quer dizer que a filosofia não tem como objeto contemplar o eterno nem refletir a história mas diagnosticar nossos devires atuais um devirrevolucionário que segundo p próprio Kant não se confunde com o passado o presente nem o porvir das revoluções Um devirdemocrático que não se confunde com o que são os Estados de direito ou mesmo um devirgrego que não se confunde com o que foram os gregos Diagnosticar os devires em cada presente que passa é o que Nietzsche atribuía ao filósofo como médico médico da civilização ou inventor de novos modos de existência imanentes A filosofia eterna mas também a história da filosofia cedem lugar a um devirfilosófíco Que devires nos atravessam hoje que recaem na história mas 20 Foucault Archéologie du savoir Gallimard p 172 145 que dela não provêm ou antes que só vêm dela para dela sair O Internai o Intempestivo o Atual eis exemplos de conceitos em filosofia conceitos exemplares E se um chama Atual o que o outro chamava de Inatual é somente em virtude de uma cifra do conceito em virtude de suas proximidades e componentes cujos ligeiros deslocamentos podem engendrar como dizia Péguy a modificação de um problema o TemporalmenteEterno em Péguy a Eternidade do devir segundo Nietzsche o ForaInterior com Foucault 146 II FILOSOFIA CIÊNCIA LÓGICA E ARTE Functivos e Conceitos A ciência não tem por objeto conceitos mas funções que se apresentam como proposições nos sistemas discursivos Os elementos das funções se chamam functivos Uma noção científica é determinada não por conceitos mas por funções ou proposições É uma idéia muito variada muito complexa como se pode ver já no uso que dela fazem respectivamente a matemática e a biologia porém é essa idéia de função que permite às ciências refletir e comunicar A ciência não tem nenhuma necessidade da filosofia para essas tarefas Em contrapartida quando um objeto é cientificamente construído por funções por exemplo um espaço geométrico resta buscar seu conceito filosófico que não é de maneira alguma dado na função Mais ainda um conceito pode tomar por componentes os functivos de toda função possível sem por isso ter o menor valor científico mas com a finalidade de marcar as diferenças de natureza entre conceitos e funções Sob estas condições a primeira diferença está na atitude respectiva da ciência e da filosofia com relação ao caos Definese o caos menos por sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça É um vazio que não é um nada mas um virtual contendo todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida sem consistência nem referência sem conseqüência1 E uma velocidade infinita de nascimento e de esvanescimento Ora a filosofia pergunta como guardar as velocidades infinitas ganhando ao mesmo tempo consistência dando uma consistência própria ao virtual O crivo filosófico como plano 1 Ilya Prigogine e Isabelle Stengers Entre le temps et 1éternité EdFayard pp 162163 os autores tomam o exemplo da cristalização de um líquido superfundido líquido a uma temperatura inferior a sua temperatura de cristalização Num tal líquido formamse pequenos germes de cristais mas estes germes aparecem e depois se dissolvem sem gerar conseqüências 153 de imanência que recorta o caos seleciona movimentos infinitos do pensamento e se mobilia com conceitos formados como partículas consistentes que se movimentam tão rápido como o pensamento A ciência tem uma maneira inteiramente diferente de abordar o caos quase inversa ela renuncia ao infinito à velocidade infinita para ganhar uma referência capaz de atualizar o virtual Guardando o infinito a filosofia dá uma consistência ao virtual por conceitos renunciando ao infinito a ciência dá ao virtual uma referência que o atualiza por funções A filosofia procede por um plano de imanência ou de consistência a ciência por um plano de referência No caso da ciência é como uma parada da imagem É uma fantástica desaceleração e é por desaceleração que a matéria se atualiza como também o pensamento científico capaz de penetrála por proposições Uma função é uma Desacelerada Certamente a ciência não cessa de promover acelerações não somente nas catalises mas nos aceleradores de partículas nas expansões que distanciam as galáxias Estes fenômenos contudo não encontram na desaceleração primordial um instantezero com o qual rompem mas antes uma condição coextensiva a seu desenvolvimento integral Desacelerar é colocar um limite no caos sob o qual todas as velocidades passam de modo que formam uma variável determinada como abcissa ao mesmo tempo que o limite forma uma constante universal que não se pode ultrapassar por exemplo um máximo de contração Os primeiros functivos são pois o limite e a variável e a referência é uma relação entre valores da variável ou mais profundamente a relação da variável como abcissa das velocidades com o limite Acontece que a constantelimite aparece ela própria como uma relação no conjunto do universo ao qual todas as partes são submetidas sob uma condição finita quantidade No original ralentissement N dos T 154 de movimento de força de energia Ainda é preciso que sistemas de coordenadas existam aos quais remetem os termos da relação é pois um segundo sentido do limite um enquadramento externo ou uma exoreferência Pois os protolimites fora de todas as coordenadas geram de início abcissas de velocidades sobre as quais se erguerão os eixos coordenáveis Uma partícula terá uma posição uma energia uma massa um valor de spin mas sob a condição de receber uma existência ou uma atualidade física ou de aterrissar nas trajetórias que os sistemas de coordenadas poderão captar São esses limites primeiros que constituem a desaceleração no caos ou o limiar de suspensão do infinito que servem de endoreferência e operam uma contagem não são relações mas números e toda a teoria das funções depende de números Invocarseáa velocidade da luz o zero absoluto o quantum de ação o Big Bang o zero absoluto das temperaturas é de 27315 graus a velocidade da luz 299796 kms lá onde os comprimentos se contraem a zero e onde os relógios param Tais limites só valem pelo valor empírico que eles assumem apenas no sistema de coordenadas agem de início como a condição de desaceleração primordial que se estende com relação ao infinito sobre toda a escala das velocidades correspondentes sobre suas acelerações ou desacelerações condicionadas E não é somente a diversidade desses limites que autoriza duvidar da vocação unitária da ciência é cada um com efeito que gera por sua conta sistemas de coordenadas heterogêneas irredutíveis e impõe limiares de descontinuidade segundo a proximidade ou o distanciamento da variável por exemplo o distanciamento das galáxias A ciência não é impregnada por sua própria unidade mas pelo plano de referência constituído por todos os limites ou bordas sob as quais ela enfrenta o caos São estas bordas que dão ao plano suas referências quanto aos sistemas de coordenadas eles povoam ou mobiliam o próprio plano de referência 155 EXEMPLO X É difícil compreender como o limite corrói imediatamente o infinito o ilimitado E todavia não é a coisa limitada que impõe um limite ao infinito é o limite que torna possível uma coisa limitada Pitágoras Anaximandro Platão mesmo o pensaram um corpoacorpo do limite com o infinito de onde sairão as coisas Todo limite é ilusório e toda determinação é negação se a determinação não está numa relação imediata com o indeterminado A teoria da ciência e das funções depende disso Mais tarde é Cantor quem dá à teoria suas fórmulas matemáticas de um duplo ponto de vista intrínseco e extrínseco Segundo o primeiro um conjunto é dito infinito se apresenta uma correspondência termo a termo com uma de suas partes ou subconjuntos o conjunto e o subconjunto tendo a mesma potência ou o mesmo número de elementos designáveis por alef 0 assim ocorre com o conjunto dos números inteiros De acordo com a segunda determinação o conjunto dos subconjuntos de um conjunto dado é necessariamente maior que o conjunto de partida o conjunto dos alef 0 subconjuntos remete pois a um outro número transfinito alef 1 que possui a potência do contínuo ou corresponde ao conjunto dos números reais continuase em seguida com alef 2 etc Ora é estranho que se tenha tão freqüentemente visto nesta concepção uma reintrodução do infinito na matemática é antes a extrema conseqüência da definição do limite por um número este sendo o primeiro número inteiro que segue todos os números inteiros finitos dos quais nenhum é máximo O que a teoria dos conjuntos faz é inscrever o limite no infinito mesmo sem o que não haveria jamais limite em sua 156 severa hierarquização ela instaura uma desaceleração ou antes como diz o próprio Cantor uma parada um princípio de parada segundo o qual só se cria um novo número inteiro se a reunião de todos os números precedentes tem a potência de uma classe de números definida já dada em toda a sua extensão2 Sem este princípio de parada ou de desaceleração haveria um conjunto de todos os conjuntos que Cantor já recusa e que não poderia ser senão o caos como o mostra Russell A teoria dos conjuntos é a constituição de um plano de referência que não comporta somente uma endoreferência determinação intrínseca de um conjunto infinito mas já uma exoreferência determinação extrínseca Malgrado o esforço explícito de Cantor para reunir o conceito filosófico e a função científica a diferença característica subsiste já que um se desenvolve sobre um plano de imanência ou de consistência sem referência mas a outra sobre um plano de referência desprovido de consistência Gõdel Quando o limite gera pela desaceleração uma abcissa das velocidades as formas virtuais do caos tendem a se atualizar segundo uma ordenada E certamente o plano de referência opera já uma préseleção que emparelha as formas aos limites ou mesmo às regiões de abcissas consideradas Mas as formas não deixam de constituir variáveis independentes daquelas que se deslocam na abcissa É muito diferente do conceito filosófico as ordenadas intensivas não designam mais componentes inseparáveis aglomerados no conceito enquanto sobrevôo absoluto variações mas determinações distintas 2 Cantor Fondements dune théorie générale des ensembles Cahiers pour 1analyse n 10 Desde o começo do texto Cantor invoca o Limite platônico 157 que devem emparelharse numa formação discursiva com outras determinações tomadas em extensão variáveis As ordenadas intensivas de formas devem se coordenar às abcissas extensivas de velocidade de tal maneira que as velocidades de desenvolvimento e a atualização das formas se remetam umas às outras como determinações distintas extrínsecas3 É sob este segundo aspecto que o limite é agora a origem de um sistema de coordenadas composto de duas variáveis independentes ao menos mas estas entram numa relação da qual depende uma terceira variável a título de estado de coisas ou de matéria formada no sistema tais estados de coisas podem ser matemáticos físicos biológicos É bem o novo sentido da referência como forma da proposição a relação de um estado de coisas ao sistema O estado de coisas é uma função é uma variável complexa que depende de uma relação entre duas variáveis independentes ao menos A independência respectiva das variáveis aparece na matemática quando uma está numa potência mais elevada que a primeira É por isso que Hegel mostra que a variabilidade na função não se contenta com valores que se pode mudar 23 e 46 nem com que se os deixe indeterminados a2b mas exige que uma das variáveis esteja numa potência superior y2xP Pois é então que uma relação pode ser diretamente determinada como relação diferencial dydx sob a qual o valor das variáveis não tem mais outra determinação senão evanescerse ou nascer embora ele seja extraído das velocidades infinitas De uma tal relação depende um estado de coisas ou uma função derivada fezse uma ope 3 Sobre a instauração das coordenadas por Nicolau Oresmo as ordenadas intensivas e seu relacionamento com linhas extensivas cf Duhem Le système du monde Ed Hermann VII cap 6 E Gilles Châtelet La toile le spectre le pendule Les enjeux du mobile no prelo sobre a associação de um espectro contínuo e de uma seqüência discreta e os diagramas de Oresmo 158 ração de despotenciação que permite comparar potências distintas a partir das quais poderão mesmo desenvolverse uma coisa ou um corpo integração4 Em geral um estado de coisas não atualiza um virtual caótico sem lhe emprestar um potencial que se distribui no sistema de coordenadas Ele recolhe no virtual que atualiza um potencial de que se apropria O sistema mais fechado tem ainda um fio que sobe até o virtual e de onde desce a aranha Mas a questão de saber se o potencial pode ser recriado no atual se pode ser renovado e alargado permite distinguir mais estritamente os estados de coisas as coisas e os corpos Quando passamos do estado de coisas para a coisa mesma vemos que uma coisa se relaciona sempre ao mesmo tempo a muitos eixos segundo variáveis que são funções umas das outras mesmo se a unidade interna permanece indeterminada Mas quando a coisa passa ela mesma por mudanças de coordenadas ela se torna falando propriamente um corpo e a função não toma por referência o limite e a variável mas antes um invariante e um grupo de transformações o corpo euclidiano da geometria por exemplo será constituído por invariantes em relação ao grupo dos movimentos O corpo com efeito não é aqui uma especialidade biológica e encontra uma determinação matemática á partir de um mínimo absoluto representado pelos números racionais operando extensões independentes deste corpo de base que limitam cada vez mais as substituições possíveis até uma perfeita individuação A diferença entre o corpo e o estado das coisas ou da coisa diz respeito à individuação do corpo que procede por uma cascata de atualizações Com os corpos a relação entre variáveis independentes completa suficientemente sua razão 4 Hegel Science de Ia logique Ed Aubier II p 277 e sobre as operações de despotenciação e de potenciação da função segundo Lagrange 159 sob a condição de se prover de um potencial ou de uma potência que lhe renova a individuação Notadamente quando o corpo é um vivente que procede por diferenciação e não mais por extensão ou adjunção é ainda um novo tipo de variáveis que surge variáveis internas determinando funções propriamente biológicas em relação com meios interiores endoreferência mas também entrando em funções probabilísticas com as variáveis externas do meio exterior exoreferência5 Encontramonos pois ante uma nova seqüência de functivos sistemas de coordenadas potenciais estados de coisas coisas corpos Os estados de coisas são misturas ordenadas de tipos muito diversos que podem mesmo não concernir senão a trajetórias Mas as coisas são interações e os corpos comunicações Os estados de coisas remetem às coordenadas geométricas de sistemas supostos como fechados as coisas às coordenadas energéticas de sistemas acoplados os corpos às coordenadas informáticas de sistemas separados não ligados A história das ciências é inseparável da construção de eixos de sua natureza de suas dimensões de sua proliferação A ciência não opera nenhuma unificação do Referente mas todas as espécies de bifurcações sobre um plano de referência que não preexiste a seus desvios ou a seu traçado E como se a bifurcação fosse procurar no infinito caos do virtual novas formas por atualizar operando uma espécie de potenciação da matéria o carbono introduz na tabela de Mendeleiev uma bifurcação que faz dele por suas propriedades plásticas o estado de uma matéria orgânica O problema da unidade ou da multiplicidade da ciência não deve pois ser colocado em função de 5 Pierre Vendryès Déterntinisme et autonomie Ed Armand Colin O interesse dos trabalhos de Vendryès não reside numa matematizaçao da biologia mas antes numa homogeneização da função matemática e da função biológica 160 um sistema de coordenadas eventualmente único num momento dado como para o plano de imanência em filosofia é preciso perguntar qual estatuto tomam o antes e o depois simultaneamente sobre um plano de referência de dimensão e evolução temporais Há um só ou vários planos de referência A resposta só será a mesma para o plano de imanência filosófico suas camadas ou suas folhas superpostas É que a referência implicando uma renúncia ao infinito só pode montar cadeias de functivos que se quebram necessariamente em certo momento As bifurcações as desacelerações e acelerações produzem buracos cortes e rupturas que remetem a outras variáveis outras relações e outras referências Segundo exemplos sumários dizse que o número fracionário rompe com o número inteiro o número irracional com os racionais a geometria riemanniana com a euclidiana Mas noutro sentido simultâneo do depois ao antes o número inteiro aparece como um caso particular de número fracionário ou o racional um caso particular de corte num conjunto linear de pontos É verdade que este processo unificante que opera no sentido retroativo faz intervir necessariamente outras referências cujas variáveis são submetidas não somente a condições de restrição para dar o caso particular mas em si mesmas a novas rupturas e bifurcações que mudarão suas próprias referências É o que acontece quando se deriva Newton de Einstein ou então os números reais da ruptura ou a geometria euclidiana de uma geometria métrica abstrata O que é o mesmo que dizer com Kuhn que a ciência é paradigmática enquanto que a filosofia é sintagmática Como a filosofia a ciência não se satisfaz com uma sucessão temporal linear Mas em lugar de um tempo estratigráfico que exprime o antes e o depois numa ordem de superposições a ciência desdobra um tempo propriamente serial ramificado em que o antes o precedente designa sem 161 pre bifurcações e rupturas por vir e depois reencadeamentos retroativos de onde um ritmo inteiramente diferente do progresso científico E os nomes próprios dos cientistas se escrevem neste outro tempo este outro elemento marcando os pontos de ruptura e os pontos de reencadeamento Certamente é sempre possível e por vezes frutífero interpretar a história da filosofia segundo este ritmo científico Mas dizer que Kant rompe com Descartes e que o cogito cartesiano se torna um caso particular do cogito kantiano não é plenamente satisfatório já que precisamente é fazer da filosofia uma ciência Inversamente não seria mais satisfatório estabelecer entre Newton e Einstein uma ordem de superposição Longe de nos fazer repassar pelos mesmos componentes o nome próprio do cientista tem por função evitar que façamos isso e persuadirnos de que não se trata de percorrer novamente um trajeto já percorrido não passamos por uma equação nomeada servimonos dela Longe de distribuir pontos cardeais que organizam os sintagmas sobre um plano de imanência o nome próprio do cientista edifica paradigmas que se projetam nos sistemas de referências necessariamente orientados Finalmente o que é problemático é menos a relação da ciência com a filosofia do que a relação ainda mais passional da ciência com a religião como se vê em todas as tentativas de uniformização e de universalização científicas à procura de uma lei única de uma força única de uma única interação O que aproxima a ciência da religião é que os functivos não são conceitos mas figuras que se definem por uma tensão espiritual mais que por uma intuição espacial Há algo de figurai nos functivos que forma uma ideografia própria à ciência e que faz já da visão uma leitura Mas o que não cessa de reafirmar a oposição da ciência a toda religião e ao mesmo tempo de tornar felizmente impossível a unificação da ciência é a substituição de toda transcendência pela referência é a correspondência 162 funcional do paradigma com um sistema de referência que proíbe todo uso infinito religioso da figura determinando uma maneira exclusivamente científica pela qual esta deve ser construída vista e lida por functivos6 A primeira diferença entre a filosofia e a ciência reside no pressuposto respectivo do conceito e da função aqui um plano de imanência ou de consistência lá um plano de referência O plano de referência é ao mesmo tempo uno e múltiplo mas de uma maneira diferente da do plano de imanência A segunda diferença concerne mais diretamente ao conceito e à função a inseparabilidade das variações é o próprio do conceito incondicionado ao passo que a independência das variáveis em relações condicionáveis pertence à função Num caso temos um conjunto de variações inseparáveis sob uma razão contingente que constitui o conceito de variações no outro caso um conjunto de variáveis independentes sob uma razão necessária que constitui a função das variáveis É por isso que deste último ponto de vista a teoria das funções apresenta dois pólos no caso de n variáveis serem dadas uma talvez considerada como função de n1 variáveis independentes com n1 derivadas parciais e uma diferencial total da função ou no caso de n1 grandezas serem ao contrário funções de uma mesma variável independente sem diferencial total da função composta Da mesma forma o problema das tangentes diferenciação mobiliza tantas variáveis quantas curvas há e a derivada para cada uma é a tangente qualquer num ponto qualquer mas o problema inverso das tangentes integração não 6 Sobre o sentido que toma a palavra figura ou imagem Bild numa teoria das funções cf a análise de Vuillemin a propósito de Riemann na projeção de uma função complexa a figura dá a ver o curso da função e suas diferentes afecções faz ver imediatamente a correspondência funcional da variável e da função La philosophie de 1algèbre PUF pp 320326 163 considera mais que uma variável única que é a própria curva tangente a todas as curvas de mesma ordenada sob a condição de uma mudança de coordenadas7 Uma dualidade análoga concerne à descrição dinâmica de um sistema de n partículas independentes o estado instantâneo pode ser representado por n pontos e n vetores de velocidade num espaço de três dimensões mas também por um único ponto num espaço de fases Dirseia que a ciência e a filosofia seguem duas vias opostas porque os conceitos filosóficos têm por consistência acontecimentos ao passo que as funções científicas têm por referência estados de coisas ou misturas a filosofia não pára de extrair por conceitos do estado de coisas um acontecimento consistente de algum modo um sorriso sem gato ao passo que a ciência não cessa de atualizar por funções o acontecimento num estado de coisas uma coisa ou um corpo referíveis Deste ponto de vista os Pré Socráticos detinham já o essencial de uma determinação da ciência válida até nossos dias quando faziam da física uma teoria das misturas e de seus diferentes tipos8 E os Estóicos levarão ao mais alto ponto a distinção fundamental entre os estados de coisas ou misturas de corpos nas quais se atualiza o aconteci 7 Leibniz Dune ligne issue de lignes e Nouvelle application du calcul trad fr Oeuvre concernant le calcul infinitésimal Ed Blanchard Estes textos de Leibniz são considerados como bases da teoria das funções 8 Tendo descrito a mistura íntima das trajetórias de tipos diferentes em toda região do espaço de fases de um sistema de estabilidade fraca Prigogine e Stengers concluem Podese pensar numa situação familiar a dos números sobre o eixo em que cada racional está cercado de irracionais e cada irracional de racionais Podese igualmente pensar na maneira pela qual Anaxágoras mostra como toda coisa contém em todas as suas partes até as mais ínfimas uma multiplicidade infinita de germes qualitativamente diferentes intimamente misturados La nouvelle alliance Gallimard p 241 164 mento e os acontecimentos incorporais que se elevam como uma fumaça dos próprios estados de coisas É pois por duas características ligadas que o conceito filosófico e a função científica se distinguem variações inseparáveis variáveis independentes acontecimentos sobre um plano de imanência estados de coisas num sistema de referência disso decorre o estatuto das ordenadas intensivas diferentes nos dois casos já que são os componentes interiores do conceito mas são somente coordenadas às abcissas extensivas nas funções quando a variação não é mais que um estado de variável Os conceitos e as funções se apresentam assim como dois tipos de multiplicidades ou variedades que diferem em natureza E embora os tipos de multiplicidades científicos tenham por si mesmos uma grande diversidade eles deixam de fora as multiplicidades propriamente filosóficas para as quais Bergson exigia um estatuto particular definido pela duração multiplicidade de fusão que exprimia a inseparabilidade das variações por oposição às multiplicidades de espaço número e tempo que ordenavam misturas e remetiam à variável ou às variáveis independentes9 É verdade que esta oposição mesma entre as multiplicidades científicas e filosóficas discursivas e intuitivas extensionais e intensivas está apta a julgar também a correspondência entre a ciência e a filosofia sua eventual colaboração sua mútua inspiração Há enfim uma terceira grande diferença que não concerne mais ao pressuposto respectivo nem ao elemento como 9 A teoria das duas espécies de multiplicidades aparece em Bergson desde Les données itntnédiates cap II as multiplicidades de consciência se definem pela fusão a penetração termos que se encontra igualmente em Husserl desde a Filosofia da aritmética A semelhança entre os dois autores é extrema com relação a isto Bergson não cessará de definir o objeto da ciência por mistos de espaçotempo e seu ato principal pela tendência a tomar o tempo como variável independente ao passo que a duração no outro pólo passa por todas as variações 165 conceito ou como função mas ao modo de enundação Com certeza há tanta experimentação como experiência do pensamento em filosofia quanto na ciência e nos dois casos a experiência pode ser perturbadora estando próxima do caos Mas também há tanta criação em ciência quanto na filosofia ou nas artes Nenhuma criação existe sem experiência Quaisquer que sejam as diferenças entre a linguagem científica a linguagem filosófica e suas relações com as línguas ditas naturais os functivos entre eles os eixos de coordenadas não preexistem inteiramente prontos não mais que os conceitos Granger pôde mostrar que estilos que remetem a nomes próprios estavam presentes nos sistemas científicos não como determinação extrínseca mas pelo menos como dimensão de sua criação e mesmo em contato com uma experiência ou um vivido10 As coordenadas as funções e equações as leis os fenômenos ou efeitos permanecem ligados a nomes próprios como uma doença permanece designada pelo nome do médico que soube isolála agrupar ou reagrupar os signos variáveis Ver ver o que se passa teve sempre uma importância essencial maior que as demonstrações mesmo na matemática pura que pode ser dita visual figurai independentemente de suas aplicações muitos matemáticos pensam hoje que um computador é mais precioso que uma axiomática e o estudo das funções nãolineares passa por demoras e acelerações em séries de números observáveis Que a ciência seja discursiva não significa de maneira alguma que ela seja dedutiva Ao contrário em suas bifurcações ela passa por muitas catástrofes rupturas e reencadeamentos marcados por nomes próprios Se a ciência guarda com a filosofia uma diferença impossível de apagar é que os nomes próprios marcam num caso uma jus 10 GG Granger Essai dune philosophie du style Ed Odile Jacob pp 1011 102105 166 taposição de referência e no outro uma superposição de folhas elas se opõem por todas as características das referencias e da consistência Mas a filosofia e a ciência comportam dois lados como a arte ela mesma com seu terceiro lado um eu não sei tornado positivo e criador condição da criação mesma e que consiste em determinar pelo que não se sabe como dizia Gálois indicar a marcha dos cálculos e prever os resultados sem jamais poder efetuálos11 É que nós nos remetemos a um outro aspecto da enunciação que não se endereça mais ao nome próprio de um cientista ou de um filósofo mas a seus intercessores ideais interiores aos domínios considerados vimos precedentemente o papel filosófico dos personagens conceituais com relação aos conceitos fragmentários sobre um plano de imanência mas agora a ciência faz aparecer observadores parciais com relação às funções nos sistemas de referência Que não haja observador total como seria o demônio de Laplace capaz de calcular o porvir e o passado a partir de um estado de coisas dado significa somente que Deus não é nem um observador científico nem um personagem filosófico Mas o nome de demônio permanece excelente em filosofia como também na ciência para indicar não algo que ultrapassaria nossas possibilidades mas um gênero comum desses intercessores necessários como sujeitos de enunciação respectivos o amigo filosófico o pretendente o idiota o superhomem são demônios não menos que o demônio de Maxwell o observador de Einstein ou de Heisenberg A questão não é de saber o que eles podem fazer ou não mas a maneira pela qual são perfeitamente positivos do ponto de vista do conceito ou da função mesmo no que não sabem ou não podem Em cada um desses dois casos a va 11 Cf os grandes textos de Galois sobre a enunciação matemática André Dalmas Evariste Galois Ed Fasquelle pp 117132 167 riedade é imensa mas não a ponto de fazer esquecer a diferença de natureza entre os dois grandes tipos Para compreender o que são os observadores parciais que proliferam em todas as ciências e todos os sistemas de referência é preciso evitar darlhes o papel de um limite do conhecimento ou de uma subjetividade da enunciação Pôdese observar que as coordenadas cartesianas privilegiavam os pontos situados perto da origem ao passo que as da geometria projetiva davam uma imagem finita de todos os valores da variável e da função Mas a perspectiva liga um observador parcial como um olho ao vértice de um cone e assim capta contornos sem captar os relevos ou a qualidade da superfície que remetem a uma outra posição do observador Como regra geral o observador não é nem insuficiente nem subjetivo mesmo na física quântica o demônio de Heisenberg não exprime a impossibilidade de medir ao mesmo tempo a velocidade e a posição de uma partícula sob pretexto de uma interferência subjetiva da medida com o mensurado mas mede exatamente um estado de coisas objetivo que deixa fora do campo de sua atualização a posição respectiva de duas de suas partículas o número de variáveis independentes sendo reduzido e os valores das coordenadas tendo a mesma probabilidade As interpretações subjetivistas da termodinâmica da relatividade da física quântica testemunham as mesmas insuficiências O perspectivismo ou relativismo científico não é mais relativo a um sujeito ele não constitui uma relatividade do verdadeiro mas ao contrário uma verdade do relativo isto é das variáveis das quais ele ordena os casos segundo os valores que revela em seu sistema de coordenadas como a ordem das cônicas segundo as secções do cone cujo vértice é ocupado pelo olho E com certeza um observador bem definido revela tudo o que ele pode revelar tudo o que pode ser revelado no sistema correspondente Numa palavra o papel de um observador parcial é 168 de perceber e de experimentar embora essas percepções o afecções não sejam as de um homem no sentido correntemente admitido mas pertençam às coisas que ele estuda O homem não deixa de sentir o efeito dessas percepções e afecções que matemático não experimenta plenamente o efeito de uma secção de uma ablação de uma adjunção mas só recebe este efeito do observador ideal que ele mesmo instalou como um golem no sistema de referência Esses observadores parciais estão na vizinhança das singularidades de uma curva de um sistema físico de um organismo vivo e mesmo o animismo está menos longe da ciência biológica do que se diz quando multiplica as pequenas almas imanentes aos órgãos e às funções com a condição de lhes retirar qualquer papel ativo ou eficiente para fazer deles somente focos de percepção e de afecção moleculares os corpos são assim povoados de uma infinidade de pequenas mônadas Chamarseá sítio à região de um estado de coisas ou de um corpo apreendido por um observador parcial Os observadores parciais são forças mas a força não é o que age é como sabiam Leibniz e Nietzsche o que percebe e experimenta Há observadores em toda parte em que aparecem propriedades puramente funcionais de reconhecimento ou de seleção sem ação direta assim ocorre em toda a biologia molecular em imunologia ou com as enzimas alostéricas12 Já Maxwell supunha um demônio capaz de distinguir numa mistura moléculas rápidas e lentas de alta e de baixa energia É verdade que num sistema em estado de equilíbrio o demônio de Maxwell associado ao gás seria necessariamen 12 J Monod Le hasard et Ia necessite Ed du Seuil p 91 As interações alostéricas são indiretas devidas exclusivamente às propriedades diferenciais de reconhecimento estereoespecífico da proteína nos dois ou mais estados que lhe são acessíveis Um processo de reconhecimento molecular pode fazer intervir mecanismos limites sítios e observadores muito diferentes como no reconhecimento machofêmea nas plantas 169 te tomado por uma afecção de atordoamento ele pode todavia passar muito tempo num estado metaestável próximo de uma enzima A física das partículas precisa de inúmeros observadores infinitamente sutis Pode se conceber observadores cujo sítio é tanto menor quanto o estado de coisas atravessar mudanças de coordenadas Finalmente os observadores parciais ideais são as percepções ou afecções sensíveis dos próprios functivos Mesmo as figuras geométricas têm afecções e percepções paternas e sintomas dizia Proclus sem os quais os problemas mais simples permaneceriam ininteligíveis Os observadores parciais são sensibilia que duplicam os functivos Ao invés de opor conhecimento sensível e conhecimento científico é preciso revelar estes sensibilia que povoam os sistemas de coordenadas e que são próprios à ciência Russell não fazia outra coisa quando evocava essas qualidades despidas de toda subjetividade dados sensoriais distintos de toda sensação sítios estabelecidos nos estados de coisas perspectivas vazias pertencendo às coisas mesmas pedaços contraídos de espaçotempo que correspondem ao conjunto ou às partes de uma função Ele os compara a aparelhos e instrumentos interferômetro de Michaelson ou mais simplesmente placa fotográfica câmera espelho que captam o que ninguém está lá para ver e fazem flamejar estes sensibilia nãosentidos13 Mas longe destes sensibilia se definirem pelos instrumentos já que estes estão à espera de um observador real que poderá ver são os instrumentos que supõem o observador parcial ideal situado num bom ponto de vista nas coisas o observador nãosubjetivo é precisamente o sensível que qualifica por vezes por milhares um estado de coisas uma coisa ou um corpo cientificamente determinados 13 Russell Misticism and logic The relation of sensedata to physics Penguin Books 170 Por seu turno os personagens conceituais são os sensibilia filosóficos as percepções e afecções dos conceitos fragmentários eles mesmos por eles os conceitos não são somente pensados mas percebidos e sentidos Não podemos todavia contentarnos em dizer que eles se distinguem dos observadores científicos como os conceitos se distinguem dos functivos já que não trariam então nenhuma determinação suplementar os dois agentes de enunciação devem distinguirse não somente pelo percebido mas pelo modo de percepção nãonatural nos dois casos Não basta com Bergson assimilar o observador científico por exemplo o viajante cósmico da relatividade a um simples símbolo que marcaria estados de variáveis ao passo que o personagem filosófico teria o privilégio do vivido um ser que dura porque ele passaria pelas variações elas mesmas14 Um não é vivido como o outro não é simbólico Há nos dois casos percepção e afecção ideais mas muito diferentes Os personagens conceituais estão sempre e já no horizonte e operam sobre fundo de velocidade infinita as diferenças anergéticas entre o rápido e o lento vindo somente das superfícies que eles sobrevoam ou dos componentes pelos quais passam num só instante a percepção não transmite assim informação mas circunscreve um afeto simpático ou antipático Os observadores científicos ao contrário são pontos de vista nas coisas mesmas que supõem um escalonamento de horizontes e uma sucessão de enquadramentos sobre fundo de desacelerações e de acelerações os afetos aí se tornam relações energéticas e a própria percepção uma quantidade de informação Não podemos de modo algum desenvolver estas determinações porque o estatuto de perceptos e de afectos 14 Em toda a sua obra Bergson opõe o observador científico ao personagem filosófico que passa pela duração e sobretudo tenta mostrar que o primeiro supõe o segundo não somente na física newtoniana Don nées immédiates cap III mas na Relatividade Durée et simultanéité 171 puros ainda nos escapa remetendo à existência das artes Mas justamente que haja percepções e funções propriamente filosóficas e propriamente científicas numa palavra sensibilia de conceito e de função indica já o fundamento de uma relação entre a ciência e a filosofia de um lado a arte de outro de tal maneira que se pode dizer de uma função que ela é bela de um conceito que ele é belo Tanto as percepções quanto as afecções especiais da filosofia ou da ciência se ligarão necessariamente aos perceptos e afectos da arte Quanto à confrontação direta da ciência e da filosofia ela se faz sob três instâncias de oposição principais que agrupam as séries de functivos de um lado e as pertenças de conceitos de outro É primeiro o sistema de referência e o plano de imanência em seguida as variáveis independentes e as variações inseparáveis enfim os observadores parciais e os personagens conceituais São dois tipos de multiplicidade Uma função pode ser dada sem que o conceito seja ele mesmo dado embora possa e deva sêlo uma função do espaço pode ser dada sem que seja ainda dado o conceito deste espaço A função na ciência determina um estado de coisas uma coisa ou um corpo que atualizam o virtual sobre um plano de referência e num sistema de coordenadas o conceito na filosofia exprime um acontecimento que dá ao virtual uma consistência sobre um plano de imanência e numa forma ordenada O campo de criação respectivo se encontra pois balizado por entidades muito diferentes nos dois casos mas que não deixam de apresentar uma certa analogia em suas tarefas um problema em ciência ou em filosofia não consiste em responder a uma questão mas em adaptar coadaptar com um gosto superior como faculdade problemática os elementos correspondentes em curso de determinação por exemplo para a ciência escolher boas variáveis independentes instalar o observador parcial eficaz sobre um tal percurso construir as melhores coordenadas 172 de uma equação ou de uma função Esta analogia impõe duas tarefas ainda Como conceber as passagens práticas entre as duas espécies de problemas Mas sobretudo teoricamente as instâncias de oposição impedem qualquer uniformização e mesmo qualquer redução de conceitos aos functivos ou o inverso E se toda redução é impossível como pensar um conjunto de relações positivas entre as duas 173 Prospectos e Conceitos A lógica é reducionista não por acidente mas por essência e necessariamente ela quer fazer do conceito uma função segundo a via traçada por Frege e Russell Mas para tanto é necessário de início que a função não se defina somente numa proposição matemática ou científica mas caracterize uma ordem mais geral de proposição como o exprimido das frases de uma língua natural E preciso pois inventar um novo tipo de função propriamente lógica A função proposicional x é humano marca bem a posição de uma variável independente que não pertence à função como tal mas sem a qual a função está incompleta A função completa é feita de um ou vários pares ordenados É uma relação de dependência ou de correspondência razão necessária que define a função tal que ser humano não é mesmo a função mas o valor de fa para uma variável x Pouco importa que a maior parte das proposições tenha várias variáveis independentes e mesmo que a noção de variável enquanto ligada a um número indeterminado seja substituída pela do argumento que implica numa suposição disjuntiva nos limites ou um intervalo A referência à variável ou ao argumento independente da função proposicional define a referência da proposição ou o valordeverdade verdadeiro e falso da função para o argumento João é um homem mas Bill é um gato O conjunto dos valores de verdade de uma função que determinam proposições afirmativas verdadeiras constitui a extensão de um conceito os objetos do conceito ocupam o lugar das variáveis ou argumentos da função proposicional para as quais a proposição é verdadeira ou sua referência preenchida O conceito ele mesmo é assim função para o conjunto dos objetos que constituem sua extensão Todo conceito completo é um conjunto neste sentido e tem um número determinado os objetos do conceito são os elementos do conjunto1 1 Cf Russell Príncipes de Ia mathématique PUF sobretudo apêndice A e Frege Les fondements de 1arithmétique Ed du Seuil 48 e 177 É preciso ainda fixar condições da referência que dêem os limites ou intervalos nos quais uma variável entra numa proposição verdadeira X é um homem João é um homem porque ele fez isto porque ele se apresenta assim Tais condições de referências constituem não a compreensão mas a intensão do conceito São apresentações ou descrições lógicas intervalos potenciais ou mundos possíveis como dizem os lógicos eixos de coordenadas estados de coisas ou situações subconjuntos do conceito a estrela da tarde e a estrela da manhã Por exemplo um conceito de um só elemento o conceito de Napoleão I tem por intensão o vencedor de Iena o vencido de Waterloo Vêse bem que nenhuma diferença de natureza separa aqui a intensão da extensão já que ambas dizem respeito à referência a intensão sendo somente condição de referência e constituindo uma endoreferência da proposição a extensão constituindo a exoreferência Não se sai da referência elevandose até sua condição permanecese na extensionalidade A questão é antes a de saber como se chega através destas apresentações intencionais a uma determinação unívoca dos objetos ou elementos do conceito variáveis proposicionais argumentos da função do ponto de vista da exo referência ou da representação é o problema do nome próprio e a tarefa de uma identificação ou individuação lógica que nos faz passar dos estados de coisas à coisa ou ao corpo objeto por operações de quantificação que permitem tanto atribuir os predicados essenciais da coisa como o que constitui enfim a compreensão do conceito Vênus a estrela da tarde e a estrela da manhã é um planeta cujo tempo de revolução é inferior ao da terra Vencedor de Iena é uma descrição ou apresenta 54 Ecrits logiques et philosopbiques sobretudo Fonction et concept Concept et objet e para a crítica da variável Questce quune fonction Cf os comentários de Claude Imbert nestes dois livros e Philippe de Rouilhan Frege les paradoxes de Ia représentation Ed de Minuit 178 ção ao passo que general é um predicado de Bonaparte imperador um predicado de Napoleão embora ser nomeado general ou sagrado imperador sejam descrições O conceito proposicional evolui pois inteiramente no círculo da referência na medida em que opera uma logicização dos functivos que se tornam assim os prospectos de uma proposição passagem da proposição científica à proposição lógica As frases não têm autoreferência como o mostra o paradoxo do eu minto Mesmo os performativos não são autoreferenciais mas implicam numa exoreferência da proposição a ação que lhe está ligada por convenção e que realizamos enunciando a proposição e uma endoreferência o título ou o estado de coisas sob o qual se é habilitado a formular o enunciado por exemplo a intensão do conceito no enunciado eu juro é testemunho no tribunal criança à qual se censura algo enamorado que se declara etc2 Em contrapartida se emprestamos à frase uma autoconsistência esta só pode residir na nãocontradição formal da proposição ou das proposições entre si Mas quer dizer que as proposições não gozam materialmente de qualquer endoconsistência nem de exoconsistência Na medida em que um número cardinal pertence ao conceito proposicional a lógica das proposições precisa de uma demostração científica da consistência da aritmética dos números inteiros a partir de axiomas ora segundo os dois aspectos do teorema de Gõdel a demonstração de consistência da aritmética não pode ser representada no interior do sistema não há endo consistência e o sistema se choca necessariamente com enunciados verdadeiros que não são todavia demonstráveis que permanecem indecidíveis não há exoconsistência ou o sistema consis 2 Oswald Ducrot criticou o caráter autoreferencial que se empresta aos enunciados performativos o que se faz dizendo eu juro eu prometo eu ordeno Dire et ne pas dire Ed Hermann p 72 e ss 179 tente não pode ser completo Em resumo tornandose proposicional o conceito perde todos os caráteres que possuía como conceito filosófico sua autoreferência sua endoconsistência e sua exoconsistência É que um regime de independência substituiu o da inseparabilidade independência das variáveis dos axiomas e das proposições indecidíveis Mesmo os mundos possíveis como condições de referência são cortados do conceito de Outrem que lhes daria consistência de modo que a lógica se acha estranhamente desarmada diante do solipsismo O conceito em geral não tem mais uma cifra mas um número aritmético o indecidível não marca mais a inseparabilidade dos componentes intencionais zona de indiscernibilidade mas ao contrário a necessidade de distinguilos segundo a exigência da referência que torna toda consistência a autoconsistência incerta O próprio número marca um princípio geral de separação o conceito letra da palavra Zabl separa Z de a a de h etc As funções tiram toda sua potência da referência seja a estados de coisas seja a coisas seja a outras proposições é fatal que a redução do conceito à função o prive de todos seus caráteres próprios que remetem a uma outra dimensão Os atos de referência são movimentos finitos do pensamento pelos quais a ciência constitui ou modifica estados de coisas e de corpos Podese dizer também que o homem histórico opera tais modificações mas em condições que são as do vivido em que os functivos são substituídos por percepções afecções e ações Não ocorre o mesmo com a lógica como ela considera a referência vazia nela mesma como simples valor de verdade só pode aplicála a estados de coisas ou a corpos já constituídos seja nas proposições adquiridas da ciência seja nas proposições de fato Napoleão é o vencido de Waterloo seja em simples opiniões X acredita que Todos esses tipos de proposições são prospectos com valor de informação A lógica tem pois um paradigma 180 ela é mesmo o terceiro caso de paradigma que não é mais o da religião nem da ciência e que é como que a recognição do verdadeiro nos prospectos ou nas proposições informativas A expressão técnica metamatemática mostra bem a passagem do enunciado científico à proposição lógica sob uma forma de recognição É a projeção deste paradigma que faz que os conceitos lógicos não sejam por sua vez senão figuras e que a lógica seja uma ideografia A lógica das proposições precisa de um método de projeção e o próprio teorema de Gõdel inventa um modelo projetivo3 É como uma deformação regrada oblíqua da referência com relação a seu estatuto científico A lógica tem o ar de se debater eternamente na questão complexa de sua diferença com a psicologia todavia élhe concedido facilmente que ela erige em modelo uma imagem de direito do pensamento que não é de maneira alguma psicológica sem por isso ser normativa A questão reside antes no valor desta imagem de direito e no que ela pretende nos ensinar sobre os mecanismos de um pensamento puro De todos os movimentos mesmo finitos do pensamento a forma da recognição é certamente a que vai o menos longe a mais pobre e a mais infantil Em todos os tempos a filosofia correu este perigo que consiste em medir o pensamento com ocorrências tão desinteressantes quanto dizer bom dia Teodoro quando é Teeteto que passa a imagem clássica do pensamento não está ao abrigo destas aventuras que se devem à recognição do verdadeiro Terseá dificuldade em acreditar que os problemas do pensamento tanto em ciência como em filosofia tenham a ver com tais casos um problema enquanto criação de pensamento nada tem a ver com uma interrogação que não é senão uma proposi 3 Sobre a projeção e o método de Gõdel Nagel e Newman Le théoreme de Gòdel Ed du Seuil p 6169 181 ção suspensa o pálido duplo de uma afirmativa que se supõe servirlhe de resposta qual é o autor de Waverley Scott é o autor de Waverley A lógica é sempre vencida por si mesma isto é pela insignificância dos casos de que se alimenta Em seu desejo de suplantar a filosofia a lógica desliga a proposição de todas suas dimensões psicológicas mas não deixa de conservar o conjunto dos postulados que limitava e submetia o pensamento às coerções de uma recognição do verdadeiro na proposição4 E quando a lógica se aventura num cálculo de problemas é decalcando o cálculo de proposições em isomorfismo com ele Dirseia menos um jogo de xadrez ou de linguagem que um jogo de questões para programas de televisão Mas os problemas não são jamais proposicionais Ao invés de um encadeamento de proposições valeria mais a pena revelar o fluxo do monólogo interior ou as estranhas bifurcações da conversação mais ordinária desligandoas também elas de suas aderências psicológicas e sociológicas para poder mostrar como o pensamento como tal produz algo de interessante quando acede ao movimento infinito que o libera do verdadeiro como paradigma suposto e reconquista um poder imanente de criação Mas para isto seria necessário que o pensamento fosse até o interior dos estados de coisas ou dos corpos científicos em vias de constituição a fim de penetrar na consistência isto é na esfera do virtual que nada faz senão atualizarse neles Seria preciso subir de novo o caminho que a ciência desce e em baixo do qual a lógica instala seus campos O mesmo vale para a História em que é preciso atingir a névoa nãohistó 4 Sobre a concepção da proposição interrogativa por Frege Recherches logiques Ecrits logiques et philosophiques p 175 O mesmo vale para os três elementos a captação do pensamento ou o ato de pensar a recognição da verdade de um pensamento ou o juízo a manifestação do juízo ou a afirmação E Russell Príncipes de Ia mathématique 477 182 rica que ultrapassa os fatores atuais em proveito de uma criação de novidade Mas esta esfera do virtual este PensamentoNatureza é o que a lógica só é capaz de mostrar segundo uma frase famosa sem poder jamais apreendêlo em suas proposições nem remetêlo a uma referência Então a lógica se cala e ela só é interessante quando se cala Paradigma por paradigma ela se identifica então com uma espécie de budismo zen Confundindo os conceitos com funções a lógica faz como se a ciência se ocupasse já com conceitos ou formasse conceitos de primeira zona Mas ela própria deve dobrar as funções científicas com funções lógicas que se supõe formam uma nova classe de conceitos puramente lógicos ou de segunda zona É um verdadeiro ódio que anima a lógica na sua rivalidade ou sua vontade de suplantar a filosofia Ela mata o conceito duas vezes Todavia o conceito renasce porque não é uma função científica e porque não é uma proposição lógica ele não pertence a nenhum sistema discursivo não tem referência O conceito se mostra e nada mais faz que se mostrar Os conceitos são monstros que renascem de seus pedaços A própria lógica deixa por vezes renascer os conceitos filosóficos mas sob que forma e em que estado Como os conceitos em geral encontraram um estatuto pseudorigoroso nas funções científicas e lógicas a filosofia herda conceitos de terceira zona que escapam ao número e não constituem mais conjuntos bem definidos bem recortados relacionáveis a misturas determináveis como estados de coisas físicomatemáticos São antes conjuntos vagos ou confusos simples agregados de percepções e de afecções que se formam no vivido como imanente a um sujeito a uma consciência São multiplicidades qualitativas ou intensivas tal como o vermelho o calvo em que não se pode decidir se certos elementos pertencem ou não ao conjunto Esses 183 conjuntos vividos exprimemse numa terceira espécie de prospectos não mais de enunciados científicos ou de proposições lógicas mas de puras e simples opiniões do sujeito avaliações subjetivas ou juízos de gosto já é vermelho está quase calvo Entretanto mesmo para um inimigo da filosofia não é nesses juízos empíricos que se encontra imediatamente o refúgio dos conceitos filosóficos É preciso descobrir funções de que esses conjuntos confusos esses conteúdos vividos são somente variáveis E neste ponto encontramo nos ante uma alternativa ou se chegará a reconstituir para estas variáveis funções científicas ou lógicas que tornarão definitivamente inútil o apelo a conceitos filosóficos5 ou então deveremos inventar um novo tipo de função propriamente filosófica terceira zona em que tudo parece inverterse bizarramente já que ela será encarregada de suportar as duas outras Se o mundo do vivido é como a terra que deve fundar ou suportar a ciência e a lógica dos estados de coisas é claro que conceitos aparentemente filosóficos são requeridos para operar essa fundação primeira O conceito filosófico requer então uma pertença a um sujeito e não mais uma pertença a um conjunto Não que o conceito filosófico se confunda com o simples vivido mesmo definido como uma multiplicidade de fusão ou como imanência de um fluxo ao sujeito o vivido só fornece variáveis ao passo que os 5 Por exemplo introduzse graus de verdade entre o verdadeiro e o falso 1 e 0 que não são probabilidades mas operam uma espécie de fractalização das cristas de verdade e dos baixios de falsidade de modo que os conjuntos confusos tornemse novamente numéricos mas sob um número fracionário entre 0 e 1 A condição todavia é que o conjunto confuso seja o subconjunto de um conjunto normal remetendo a uma função regular Cf Arnold Kaufmann Introduction à Ia théorie des sousensembles flous Ed Masson E Pascal Engel La norme du vrai Gallimard que consagra um capítulo ao vago 184 conceitos devem ainda definir verdadeiras funções Essas funções terão somente referência ao vivido como as funções científicas aos estados de coisas Os conceitos filosóficos serão funções do vivido como os conceitos científicos são funções de estados de coisas mas agora a ordem ou a derivação mudam de sentido já que essas funções do vivido se tornam primeiras É uma lógica transcendental podese chamála também de dialética que esposa a terra e tudo o que ela carrega e que serve de solo primordial para a lógica formal e para as ciências regionais derivadas Será preciso que no seio mesmo da imanência do vivido a um sujeito se descubram atos de transcendência do sujeito capazes de constituir as novas funções de variáveis ou as referências conceituais o sujeito neste sentido não é mais solipsista e empírico mas transcendental Vimos que Kant tinha começado a realizar essa tarefa mostrando como os conceitos filosóficos remetiam necessariamente à experiência vivida por proposições ou juízo a priori como funções de um todo da experiência possível Mas é Husserl que vai até o fim descobrindo nas multiplicidades não numéricas ou nos conjuntos fusionais imanentes perceptivoafetivos a tríplice raiz dos atos de transcendência pensamento pelos quais o sujeito constitui de início um mundo sensível povoado de objetos depois um mundo intersubjetivo povoado de outrem enfim um mundo ideal comum que as formações científicas matemáticas e lógicas povoarão Os numerosos conceitos fenomenológicos ou filosóficos tais como o ser no mundo a carne a idealidade etc serão a expressão desses atos Não são somente vividos imanentes ao sujeito solipsista mas as referências do sujeito transcendental ao vivido não são variáveis perceptivoafetivas mas as grandes funções que encontram nestas variáveis seu percurso respectivo de verdade Não são conjuntos vagos ou confusos subconjuntos mas totalizações que excedem toda po 185 tência dos conjuntos Não são somente juízos ou opiniões empíricas mas protocrenças Urdoxa opiniões originárias como proposições6 Não são os conteúdos sucessivos do fluxo de imanência mas os atos de transcendência que o atravessam e o carregam determinando as significações da totalidade potencial do vivido O conceito como significação é tudo isso ao mesmo tempo imanência do vivido ao sujeito ato de transcendência do sujeito com relação às variações do vivido totalização do vivido ou função destes atos Dirseia que os conceitos filosóficos só se salvam ao aceitar tornaremse funções especiais e desnaturalizando a imanência de que ainda carecem como a imanência não é mais que a do vivido ela é forçosamente imanência a um sujeito cujos atos funções serão os conceitos relativos a este vivido como vimos seguindo a longa desnaturação do plano de imanência Embora seja perigoso para a filosofia depender da generosidade dos lógicos ou de seus remorsos podemos perguntar se não podemos encontrar um equilíbrio precário entre os conceitos científicológicos e os conceitos fenomenológicofilosóficos GillesGaston Granger pôde propor uma repartição em que o conceito sendo de início determinado como função científica e lógica deixa todavia um lugar de terceira zona mas autônomo a funções filosóficas funções ou significações do vivido como totalidade virtual os conjuntos confusos parecem desempenhar um papel de eixo articulador entre as duas formas de conceitos7 A ciência ar 6 Sobre as três transcendências que aparecem no campo de imanência a primordial a intersubjetiva e a objetiva cf Husserl Méditations cartésiennes Ed Vrin notadamente 5556 Sobre a Urdoxa Idées directrices pour une phénoménologie Gallimard notadamente 103104 Expérience et jugement PUF 7 GG Granger Pour Ia connaissance philosophique cap VI e VII O conhecimento do conceito filosófico reduzse à referência ao vivido na medida em que esta o constitui como totalidade virtual o que implica um sujeito transcendental e Granger não parece dar ao virtual outro sentido senão o sentido kantiano de um todo da experiência possível p 174175 Observarseá o papel hipotético que Granger atribui aos conceitos confusos na passagem dos conceitos científicos aos conceitos filosóficos 186 rogou o conceito a si mesma mas há também conceitos nãocientíficos que suportamos em doses homeopáticas isto é fenomenológicas Donde os mais estranhos híbridos que se vê nascer hoje do frege husserlianismo ou mesmo de wittgensteinheideggerianismo Não era já há muito tempo a situação da filosofia na América com um grande departamento de lógica e um minúsculo de fenomenologia embora os dois partidos estivessem quase sempre em guerra É como patê de cotovia mas a parte da cotovia fenomenológica nem sequer é a mais refinada é a que o cavalo lógico concede às vezes à filosofia É antes como o rinoceronte e o pássaro que vive de seus parasitas É uma longa série de malentendidos sobre o conceito É verdade que o conceito é confuso vago mas não porque não tem contorno é porque ele é vagabundo nãodiscursivo em deslocamento sobre um plano de imanência É intencional ou modular não porque tem condições de referência mas porque é composto de variações inseparáveis que passam por zonas de indiscernibilidade e lhe mudam o contorno Não há de maneira nenhuma referência nem ao vivido nem aos estados de coisas mas uma consistência definida por seus componentes internos nem denotação de estado de coisas nem significação do vivido o conceito é o acontecimento como puro sentido que percorre imediatamente os componentes Não há número inteiro nem fracionário para contar as coisas que apresentam suas propriedades mas uma cifra que as condensa lhes acumula os componentes percorridos e sobrevoados O conceito é uma forma ou uma for 187 ça jamais uma função em qualquer sentido possível Em resumo não há conceito senão filosófico sobre o plano de imanência e as funções científicas ou as proposições lógicas não são conceitos Prospectos designam de início os elementos da proposição função proposicional variáveis valor de verdade mas também os diversos tipos de proposições ou modalidades do juízo Se o conceito filosófico é confundido com uma função ou uma proposição não será sob uma espécie científica ou mesmo lógica mas por analogia como uma função do vivido ou uma proposição de opinião terceiro tipo Assim devese produzir um conceito que dê conta desta situação o que a opinião propõe é uma certa relação entre uma percepção exterior como estado de um sujeito e uma afecção interior como passagem de um estado a um outro exo e endoreferência Nós destacamos uma qualidade suposta comum a vários objetos que percebemos e uma afecção suposta comum a vários sujeitos que a experimentam e apreendem conosco esta qualidade A opinião é á regra de correspondência de uma a outra é uma função ou uma proposição cujos argumentos são percepções e afecções e nesse sentido função do vivido Por exemplo apreendemos uma qualidade perceptiva comum aos gatos ou aos cães e um certo sentimento que nos faz amar ou odiar uns ou outros para um grupo de objetos podese extrair muitas qualidades diversas e formar muitos grupos de sujeitos muito diferentes atrativos ou repulsivos sociedade dos que amam os gatos ou dos que os detestam de modo que as opiniões são essencialmente o objeto de uma luta ou de uma troca É a concepção popular democrática ocidental da filosofia onde esta se propõe a oferecer agradáveis ou agressivas conversações de jantar com M Rorthy Opiniões rivalizam na mesa do banquete não é a Atenas eterna nossa maneira de ser ainda gregos As três características que remetiam a filosofia à 188 cidade grega eram precisamente a sociedade de amigos a mesa da imanência e as opiniões que se enfrentavam Objetarseá que os filósofos gregos não cessaram de denunciar a doxa e de lhe opor uma episteme como único saber adequado à filosofia Mas é um negócio complicado e os filósofos sendo amigos e não sábios têm bastante dificuldade em abandonar a doxa A doxa é um tipo de proposição que se apresenta da seguinte maneira sendo dada uma situação vivida perceptivaafetiva por exemplo trazse queijo à mesa do banquete alguém extrai dele uma qualidade pura por exemplo mau cheiro mas ao mesmo tempo que abstrai a qualidade ele mesmo se identifica com um sujeito genérico experimentando uma afecção comum a sociedade daqueles que detestam o queijo rivalizando assim com aqueles que o adoram o mais das vezes em função de uma outra qualidade A discussão versa pois sobre a escolha da qualidade perceptiva abstrata e sobre a potência do sujeito genérico afetado Por exemplo detestar o queijo é privarse de ser um bon vivantí Mas bon vivant é uma afecção genericamente invejável Não é necessário dizer que os que adoram o queijo e todos os bons vivants eles mesmos cheiram mal A menos que sejam os inimigos do queijo que cheiram mal É como a história que contava Hegel a vendedora a quem se disse Seus ovos estão podres velha e que responde Podre é você sua mãe sua avó a opinião é um pensamento abstrato e a injúria desempenha um papel eficaz nesta abstração porque a opinião exprime funções gerais de estados particulares8 A opinião retira da percepção uma qualidade abstrata e da afecção uma potência geral toda opinião já é política neste sentido É por isso que tantas discus 8 Sobre o pensamento abstrato e o juízo popular cf o texto curto de Hegel Quem pensa abstrato Sámtliche Werke XX p 445450 189 soes podem se enunciar assim eu enquanto homem considero que todas as mulheres são infiéis eu enquanto mulher penso que todos os homens são mentirosos A opinião é um pensamento que se molda estreitamente sobre a forma da recognição recognição de uma qualidade na percepção contemplação recognição de um grupo na afecção reflexão recognição de um rival na possibilidade de outros grupos e outras qualidades comunicação Ela dá à recognição do verdadeiro uma extensão e critérios que são por natureza os de uma ortodoxia será verdadeira uma opinião que coincida com a do grupo ao qual se pertencerá ao enunciála Vêse bem isso em certos concursos você deve dizer sua opinião mas você ganha você disse a verdade se você disse a mesma coisa que a maioria dos que participam desse concurso A opinião em sua essência é vontade de maioria e já fala em nome de uma maioria Mesmo o homem do paradoxo só se exprime com tantas piscadelas e tanta bobagem segura de si porque pretende exprimir a opinião secreta de todo mundo e ser o portavoz do que os outros não ousam dizer Mas este é apenas o primeiro passo no reino da opinião esta triunfa quando a qualidade retida deixa de ser a condição da constituição de um grupo quando não é mais do que a imagem ou a marca do grupo constituído que determina ele mesmo o modelo perceptivo e afetivo a qualidade e a afecção que cada um deve adquirir Então o marketing aparece como o próprio conceito nós os conceituadores Estamos na idade da comunicação mas qualquer alma bem nascida foge e se esquiva cada vez que lhe é proposta uma pequena discussão um colóquio uma simples conversa Em toda conversa é sempre do destino da filosofia que se trata e muitas discussões filosóficas enquanto tais não vão mais longe do que aquela sobre o queijo com suas injúrias e confrontos de concepções do mundo A filosofia da comunicação se 190 esgota na procura de uma opinião universal liberal como consenso sob o qual encontramos as percepções e afecções cínicas do capitalista em pessoa EXEMPLO XI Em que esta situação concerne aos gregos Dizse freqüentemente que desde Platão os gregos opõem a filosofia como um saber que compreende ainda as ciências e a opiniãodoxa que remetem aos sofistas e retores Mas descobrimos que não era uma oposição simples tão clara Como os filósofos possuiriam o saber eles que não podem nem querem restaurar o saber dos sábios e são apenas amigos E como a opinião seria inteiramente o negócio dos sofistas já que ela recebe um valordeverdade9 Mais ainda parece que os gregos se faziam da ciência uma idéia bastante clara que não se confundia com a filosofia era um conhecimento da causa da definição uma espécie de função já Então todo o problema era como podese chegar às definições a estas premissas do silogismo científico ou lógico Era graças à dialética uma pesquisa que tendia sobre um termo dado a determinar entre as opiniões aquelas que eram mais verossímeis pela qualidade que extraíam as mais sábias pelos sujeitos que as proferiam Mesmo em Aristóteles a dialética das opiniões era necessária para determinar as proposições científicas possíveis e em Platão a opinião verdadeira era o requisito do saber e 9 Mareei Detienne mostra que os filósofos se arrogam a um saber que não se confunde com a velha sabedoria e a uma opinião que não se confunde com a dos sofistas Les maitres de vérité dans Ia Grèce archdique Ed Maspero cap VI p 131 e segs 191 das ciências Já Parmênides não colocava o saber e a opinião como duas vias disjuntivas10 Democratas ou não os gregos opunham menos o saber e a opinião do que se debatiam entre as opiniões e se opunham uns aos outros rivalizavam uns com os outros no elemento da opinião pura O que os filósofos criticavam nos sofistas não era o fato de se ater à doxa mas de escolher mal a qualidade a extrair das percepções e o sujeito genérico a depurar das afecções de modo que os sofistas não podiam atingir o que havia de verdadeiro numa opinião permaneciam prisioneiros das variações do vivido Os filósofos criticavam os sofistas por se aterem a não importa que qualidade sensível com relação a um homem individual ou com relação ao gênero humano ou com relação ao nomos da cidade três interpretações do Homem como potência ou medida de todas as coisas Mas eles os filósofos platônicos tinham uma extraordinária resposta que lhes permitia pensavam eles selecionar opiniões Era preciso escolher a qualidade que era como o desdobramento do Belo em tal situação vivida e tomar por sujeito genérico o Homem inspirado pelo Bem Era preciso que as coisas se desdobrassem no belo e que seus utilizadores se inspirassem no bem para que a opinião atingisse o Verdadeiro Não era fácil em cada caso É o belo na Natureza e o bem nos espíritos que definiria a filosofia como função da vida variável Assim a filosofia grega é o momento do belo o belo e o bem são as funções das quais opinião é o valor de verdade Era preciso levar a percepção até a beleza do percebido dokounta e a afecção até a prova do bem dokimôs para atingir a opinião verdadeira esta não se 10 Cf a análise célebre de Heidegger e de Beaufret Le poètne de Parménide PUF p 3134 192 ria mais a opinião mutável e arbitrária mas uma opinião originária uma protoopinião que nos recolocaria na pátria esquecida do conceito como na grande trilogia platônica o amor do Banquete o delírio do Fedro a morte do Fédon Pelo contrário lá onde o sensível se apresenta sem beleza reduzido à ilusão e o espírito sem o bem deixado ao simples prazer a opinião permanece sofistica e falsa o queijo talvez a lama o pelo Todavia esta pesquisa apaixonada da opinião verdadeira não conduz os Platônicos a uma aporia a mesma que se exprime no mais surpreendente diálogo o Teeteto É preciso que o saber seja transcendente que ele se acrescente à opinião e se distinga dela para tornála verdadeira mas é preciso que ele seja imanente para que ela seja verdadeira como opinião A filosofia grega permanece ainda atada a esta velha Sabedoria inteiramente disposta a redesdobrar novamente sua transcendência embora não tenha mais senão sua amizade a afecção É preciso a imanência é também preciso que ela seja imanente a algo de transcendente a idealidade O belo e o bem não cessam de nos reconduzir à transcendência É como se a opinião verdadeira exigisse ainda um saber que ela todavia destituiu A fenomenologia não recomeça uma tentativa análoga Pois ela também parte à procura das opiniões originárias que nos ligam ao mundo como a nossa pátria Terra E ela precisa do belo e do bem para que elas não se confundam com a opinião empírica variável e que a percepção e a afecção atinjam seu valor de verdade tratase desta vez do belo na arte e da constituição da humanidade na história A fenomenologia precisa da arte como a lógica da ciência Erwin Strauss MerleauPonty ou Maldiney precisam de Cézanne ou da pintura chinesa O vivido não faz do conceito outra 193 coisa senão uma opinião empírica como tipo psicossociológico É preciso pois que a imanência do vivido a um sujeito transcendental faça da opinião uma protoopinião na constituição da qual entram a arte e a cultura e que se exprime como um ato de transcendência deste sujeito no vivido comunicação de modo a formar uma comunidade de amigos Mas o sujeito transcendental husserliano não esconde o homem europeu cujo privilégio é de europeizar sem cessar como o grego grecizava isto é de ultrapassar os limites das outras culturas mantidas como tipos psicossociais Não somos então reconduzidos à simples opinião do Capitalista médio o grande Maior o Ulisses moderno cujas percepções são clichês e cujas afecções são marcas num mundo de comunicação tornado marketing do qual mesmo Cézanne ou Van Gogh não podiam escapar A distinção do originário e do derivado não basta por si mesma para nos fazer sair do simples domínio da opinião e a Urdoxa não nos eleva até o conceito Como na aporia platônica a fenomenologia não teve jamais tanta necessidade de uma sabedoria superior de uma ciência rigorosa quanto no momento em que no entanto nos convidava a renunciar a ela A fenomenologia queria renovar nossos conceitos dandonos percepções e afecções que nos fariam nascer no mundo não como bebês ou como hominídeos mas como seres de direito cujas protoopiniões seriam as fundações deste mundo Mas não se luta contra os clichês perceptivos e afetivos se não se luta também contra a máquina que os produz Invocando o vivido primordial fazendo da imanência uma imanência num sujeito a fenomenologia não podia impedir o sujeito de formar somente opiniões que já reproduziriam o clichê das novas percepções e afecções prometidas Nós continuaríamos a evo 194 luir na forma da recognição nós invocaríamos a arte mas sem atingir os conceitos capazes de enfrentar o afecto e o percepto artísticos Os gregos com suas cidades a fenomenologia com nossas sociedades ocidentais tem certamente razão de supor a opinião como uma das condições da filosofia Mas a filosofia encontrará a via que conduz ao conceito invocando a arte como o meio de aprofundar a opinião e de descobrir opiniões originárias ou ao contrário é preciso com a arte subverter a opinião elevála ao movimento infinito que a substitui precisamente pelo conceito A confusão do conceito com a função é ruinosa sob vários aspectos para o conceito filosófico Ela faz da ciência o conceito por excelência que se exprime na proposição científica o primeiro prospecto Ela substitui o conceito filosófico por um conceito lógico que se exprime nas proposições de fato segundo prospecto Ela deixa ao conceito filosófico uma parte reduzida ou degenerada que ela se reserva no domínio da opinião terceiro prospecto servindose de sua amizade por uma sabedoria superior ou uma ciência rigorosa Mas o conceito não tem seu lugar em nenhum destes três sistemas discursivos O conceito não é uma função do vivido nem uma função científica ou lógica A irredutibilidade dos conceitos às funções só se descobre se ao invés de confrontálas de maneira indeterminada se compara o que constitui a referência de umas e o que faz a consistência das outras Os estados de coisas os objetos ou corpos os estados vividos formam as referências de função ao passo que os acontecimentos são a consistência de conceito São esses termos que é preciso considerar do ponto de vista de uma redução possível 195 EXEMPLO XII Uma tal comparação parece corresponder à empresa de Badiou particularmente interessante no pensamento contemporâneo Ele se propõe a escalonar sobre uma linha ascendente uma série de fatores que vão das funções aos conceitos Ele se dá uma base neutralizada com relação aos conceitos tanto quanto às funções uma multiplicidade qualquer apresentada como Conjunto elevável ao infinito A primeira instância é a situação quando o conjunto é remetido a elementos que são sem dúvida multiplicidades mas que são submetidos a um regime do contar por um corpos ou objetos unidades da situação Em segundo lugar os estados de situação são os subconjuntos sempre em excesso sobre os elementos do conjunto ou os objetos da situação mas este excesso do estado não se deixa mais hierarquizar como em Cantor ele é indeterminável numa linha de errância conforme ao desenvolvimento da teoria dos conjuntos Resta que ele deve ser representado na situação desta vez como indiscernível ao mesmo tempo que a situação se torna quase completa a linha de errância forma aqui quatro figuras quatro laços como funções genéricas científica artística política ou dóxica amorosa ou vivida às quais correspondem produções de verdades Mas atingese talvez então uma conversão de imanência da situação conversão do excesso ao vazio que vai reintroduzir o transcendente é o sítio acontecimental que se mantém à borda do vazio na situação e não comporta mais unidades mas singularidades como elementos que dependem das funções precedentes Enfim o acontecimento ele mesmo aparece ou desaparece menos como uma singularidade que como um ponto aleatório sepa 196 rado que se acrescenta ou se subtrai ao sítio na transcendência do vazio ou A verdade como vazio sem que se possa decidir sobre a pertença do acontecimento à situação na qual se encontra seu sítio o indecidível Talvez em contrapartida haja uma intervenção como um lance de dados sobre o sítio que qualifica o acontecimento e o faz entrar na situação uma potência de fazer o acontecimento É que o acontecimento é o conceito ou a filosofia como conceito que se distingue das quatro funções precedentes embora receba delas condições e lhes imponha por sua vez que a arte seja fundamentalmente poema e a ciência conjuntista que o amor seja o inconsciente de Lacan e que a política escape à opiniãodoxa11 Falando de uma base neutralizada o conjunto que marca uma multiplicidade qualquer Badiou traça uma linha única embora muito complexa sobre a qual as funções e o conceito vão escalonarse este sobre aquelas a filosofia parece pois flutuar numa transcendência vazia conceito incondicionado que encontra nas funções a totalidade de suas condições genéricas ciência poesia política e amor Não é sob a aparência do múltiplo o retorno a uma velha concepção da filosofia superior Parecenos que a teoria das multiplicidades não suporta a hipótese de uma multiplicidade qualquer mesmo as matemáticas estão fartas do conjuntismo As multiplicidades é preciso pelo menos duas dois tipos desde o início Não que o dualismo valha mais que a unidade mas a multiplicidade é precisamente o que se passa entre os dois Assim os dois tipos não esta 11 Alain Badiou Uêtre et 1événement e Manifeste pour Ia philosopbie Ed du Seuil A teoria de Badiou é muito complexa tememos terlhe feito sofrer simplificações excessivas 197 rão certamente um acima do outro mas um ao lado do outro um contra o outro face a face ou costas contra costas As funções e os conceitos os estados de coisas atuais e os acontecimentos virtuais são dois tipos de multiplicidades que não se distribuem numa linha de errância mas se reportam a dois vetores que se cruzam um segundo o qual os estados de coisas atualizam os acontecimentos o outro segundo o qual os acontecimentos absorvem ou antes adsorvem os estados de coisas Os estados de coisas saem do caos virtual sob condições constituídas pelo limite referência são atualidades embora não sejam ainda corpos nem mesmo coisas unidades ou conjuntos São massas de variáveis independentes partículastrajetórias ou signosvelocidades São misturas Essas variáveis determinam singularidades na medida em que entram em coordenadas e são tomadas em relações segundo as quais uma dentre elas depende de um grande número de outras ou inversamente muitas dentre elas dependem de uma A um tal estado de coisas encontrase associado um potencial ou uma potência a importância da fórmula leibniziana mv2 vem de que ela introduz um potencial no estado de coisas É que o estado de coisas atualiza uma virtualidade caótica carregando consigo um espaço que sem dúvida deixou de ser virtual mas mostra ainda sua origem e serve de correlato propriamente indispensável ao estado Por exemplo na atualidade do núcleo atômico o núcleon está ainda próximo do caos e se encontra cercado por uma nuvem de partículas virtuais constantemente emitidas e reabsorvidas mas num nível mais avançado da atualização o elétron está em relação com um fóton potencial que interage com o núcleon para dar um novo estado da matéria nuclear Não se pode separar um estado de coisas do potencial através do qual ele opera e sem o qual não haveria ativida 198 de ou evolução por exemplo catalise É através desse potencial que ele pode enfrentar acidentes adjunções ablações ou mesmo projeções como já se vê nas figuras geométricas ou então perder e ganhar variáveis estender singularidades até a vizinhança de novas ou seguir bifurcações que o transformam ou passar por um espaço de fases cujo número de dimensões aumenta com as variáveis suplementares ou sobretudo individuar corpos no campo que ele forma com o potencial Nenhuma destas operações se faz por si mesma todas elas constituem problemas O privilégio do ser vivo é reproduzir de dentro o potencial associado no qual atualiza seu estado e individualiza seu corpo Mas em qualquer domínio a passagem de um estado de coisas ao corpo por intermédio de um potencial ou de uma potência ou antes a divisão dos corpos individuados no estado de coisas subsistente representa um momento essencial Passase aqui da mistura à interação E enfim as interações dos corpos condicionam uma sensibilidade uma proto perceptibilidade e uma protoafetividade que se exprimem já nos observadores parciais ligados ao estado de coisas embora só completem sua atualização no ser vivo O que se chama percepção não é mais um estado de coisas mas um estado do corpo enquanto induzido por um outro corpo e afecção é a passagem deste estado a um outro como aumento ou diminuição do potencialpotência sob a ação de outros corpos nenhum é passivo mas tudo é interação mesmo o peso Era a definição que Espinosa dava da affectio e do affectus para os corpos tomados num estado de coisas e que Whitehead reencontrava quando fazia de cada coisa uma preensão de outras e da passagem de uma preensão a uma outra um feeling positivo ou negativo A interação se torna comunicação O estado de coisas público era a mistura dos dados atualizados pelo mundo em seu estado anterior ao passo que os corpos são novas atualizações cujos estados 199 privados reproduzem estados de coisas para novos corpos12 Mesmo nãoviventes ou antes não orgânicas as coisas têm um vivido porque são percepções e afecções Quando a filosofia se compara com a ciência ocorre que proponha uma imagem simples demais da ciência que faz os cientistas rirem Todavia mesmo se a filosofia tem o direito de apresentar da ciência uma imagem despida de valor científico por conceitos não tem nada a ganhar impondolhe limites que os cientistas não param de ultrapassar nos procedimentos mais elementares Assim quando a filosofia remete a ciência ao já pronto e guarda para si o fazendose como Bergson ou como a fenomenologia notada mente em Erwin Straus não se corre somente o perigo de aproximar a filosofia de um simpes vivido mas se oferece da ciência uma má caricatura Paul Klee tem certamente uma visão mais correta quando diz que consagrandose ao funcional a matemática e a física tomam por objeto a própria formação e não a forma acabada13 Muito mais quando se comparam as multiplicidades filosóficas e as multiplicidades científicas as multiplicidades conceituais e as multiplicidades funcionais pode ser sumário demais definir estas últimas por conjuntos Os conjuntos já vimos só têm interesse como atualização do limite eles dependem das funções e não o contrário e a função é o verdadeiro objeto da ciência Em primeiro lugar as funções são funções de estados de coisas e constituem então proposições científicas como primeiro tipo de prospectos seus argumentos são variáveis independentes sobre as quais se exercem operações de coordenação e potencializações que determinam suas relações necessárias Em segundo lugar as funções são funções de coisas objetos ou corpos individuados que constituem pro 12 Cf Whitehead Process and Reality Free Press p 2226 13 Klee Théorie de lart moderne Ed Gonthier p 4849 200 posições lógicas seus argumentos são termos singulares tomados como átomos lógicos independentes sobre os quais se exercem descrições estado de coisas lógico que determinam seus predicados Em terceiro lugar as funções de vivido têm como argumentos percepções e afecções e constituem opiniões doxa como terceiro tipo de prospecto temos opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos afeta a ponto de as ciências do homem poderem ser consideradas como uma vasta doxologia mas as coisas mesmas são opiniões genéricas na medida em que têm percepções e afecções moleculares no sentido em que o organismo mais elementar tem uma protoopinião sobre a água o carbono e os sais de que dependem seu estado e sua potência Essa é a via que desce do virtual aos estados de coisas e às outras atualidades não encontramos conceito nesta via mas funções A ciência desce da virtualidade caótica aos estados de coisas e corpos que a atualizam todavia ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar num sistema atual ordenado do que por um desejo de não se afastar demais do caos de escavar os potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna o segredo do caos por detrás dela a pressão do virtual14 Ora se remontamos a linha na direção contrária se vamos dos estados de coisas ao virtual não se trata da mesma linha porque não é o mesmo virtual podemos pois também descêla sem que ela se confunda com a precedente O virtual não mais é a virtualidade caótica mas a virtualidade tornada consistente entidade que se forma sobre um plano de imanência que corta o caos É o que se chama o Acontecimento ou a parte do que escapa à sua própria atualização 14 A ciência não sente somente a necessidade de ordenar o caos mas de vêlo de tocálo de fazêlo cf James Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel Gilles Châtelet mostra como a matemática e a física tentam reter algo de uma esfera do virtual Les enjeux du mobile a sair 201 privados reproduzem estados de coisas para novos corpos12 Mesmo nãoviventes ou antes não orgânicas as coisas têm um vivido porque são percepções e afecções Quando a filosofia se compara com a ciência ocorre que proponha uma imagem simples demais da ciência que faz os cientistas rirem Todavia mesmo se a filosofia tem o direito de apresentar da ciência uma imagem despida de valor científico por conceitos não tem nada a ganhar impondolhe limites que os cientistas não param de ultrapassar nos procedimentos mais elementares Assim quando a filosofia remete a ciência ao já pronto e guarda para si o fazendose como Bergson ou como a fenomenologia notada mente em Erwin Straus não se corre somente o perigo de aproximar a filosofia de um simpes vivido mas se oferece da ciência uma má caricatura Paul Klee tem certamente uma visão mais correta quando diz que consagrandose ao funcional a matemática e a física tomam por objeto a própria formação e não a forma acabada13 Muito mais quando se comparam as multiplicidades filosóficas e as multiplicidades científicas as multiplicidades conceituais e as multiplicidades funcionais pode ser sumário demais definir estas últimas por conjuntos Os conjuntos já vimos só têm interesse como atualização do limite eles dependem das funções e não o contrário e a função é o verdadeiro objeto da ciência Em primeiro lugar as funções são funções de estados de coisas e constituem então proposições científicas como primeiro tipo de prospectos seus argumentos são variáveis independentes sobre as quais se exercem operações de coordenação e potencializações que determinam suas relações necessárias Em segundo lugar as funções são funções de coisas objetos ou corpos individuados que constituem pro 12 Cf Whitehead Process and Reality Free Press p 2226 13 Klee Théorie de lart moderne Ed Gonthier p 4849 202 posições lógicas seus argumentos são termos singulares tomados como átomos lógicos independentes sobre os quais se exercem descrições estado de coisas lógico que determinam seus predicados Em terceiro lugar as funções de vivido têm como argumentos percepções e afecções e constituem opiniões doxa como terceiro tipo de prospecto temos opiniões sobre qualquer coisa que percebemos ou que nos afeta a ponto de as ciências do homem poderem ser consideradas como uma vasta doxologia mas as coisas mesmas são opiniões genéricas na medida em que têm percepções e afecções moleculares no sentido em que o organismo mais elementar tem uma protoopinião sobre a água o carbono e os sais de que dependem seu estado e sua potência Essa é a via que desce do virtual aos estados de coisas e às outras atualidades não encontramos conceito nesta via mas funções A ciência desce da virtualidade caótica aos estados de coisas e corpos que a atualizam todavia ela é menos inspirada pela preocupação de se unificar num sistema atual ordenado do que por um desejo de não se afastar demais do caos de escavar os potenciais para apreender e domesticar uma parte do que a impregna o segredo do caos por detrás dela a pressão do virtual14 Ora se remontamos a linha na direção contrária se vamos dos estados de coisas ao virtual não se trata da mesma linha porque não é o mesmo virtual podemos pois também descêla sem que ela se confunda com a precedente O virtual não mais é a virtualidade caótica mas a virtualidade tornada consistente entidade que se forma sobre um plano de imanência que corta o caos É o que se chama o Acontecimento ou a parte do que escapa à sua própria atualização 14 A ciência não sente somente a necessidade de ordenar o caos mas de vêlo de tocálo de fazêlo cf James Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel Gilles Châtelet mostra como a matemática e a física tentam reter algo de uma esfera do virtual Les enjeux du mobile a sair 203 tempo é devir O entretempo o acontecimento é sempre um tempo morto lá onde nada se passa uma espera infinita que já passou infinitamente espera e reserva Este tempo morto não sucede ao que acontece coexiste com o instante ou o tempo do acidente mas como a imensidade do tempo vazio em que o vemos ainda por vir e já chegado na estranha indiferença de uma intuição intelectual Todos os entretempos se superpõem enquanto que os tempos se sucedem Em cada acontecimento há muitos componentes heterogêneos sempre simultâneos já que são cada um um entretempo todos no entretempo que os faz comunicar por zonas de indiscernibilidade de indecidibilidade são variações modulações intermezzi singularidades de uma nova ordem infinita Cada componente de acontecimento se atualiza ou se efetua num instante e o acontecimento no tempo que passa entre estes instantes mas nada se passa na virtualidade que só tem entretempos como componentes e um acontecimento como devir composto Nada se passa aí mas tudo se torna de tal maneira que o acontecimento tem o privilégio de recomeçar quando o tempo passou17 Nada se passa e todavia tudo muda porque o devir não pára de repassar por seus componentes e de conduzir o acontecimento que se atualiza alhures a um outro momento Quando o tempo passa e leva o instante há sempre um entretempo para trazer o acontecimento É um conceito que apreende o acontecimento seu devir suas variações inseparáveis ao passo que uma função apreende um estado de coisas um tempo e variáveis com suas relações segundo o tempo O conceito tem uma potência de repetição que se distingue da potência discursiva da função 17 Sobre o entretempo conferir a um artigo muito intenso de Groethuysen De quelques aspects du temps Recberches philosophiques V 19351936 Todo acontecimento está por assim dizer no tempo em que nada se passa Toda a obra romanesca de LernetHolonia se passa em entretempos 204 Em sua produção e sua reprodução o conceito tem a realidade de um virtual de um incorporai de um impassível contrariamente às funções de estado atual às funções de corpo e de vivido Erigir um conceito não é a mesma coisa que traçar uma função embora haja movimento dos dois lados embora haja transformações e criações num caso como no outro os dois tipos de multiplicidades se entrecruzam Sem dúvida o acontecimento não é feito somente de variações inseparáveis ele mesmo é inseparável do estado de coisas dos corpos e do vivido nos quais se atualiza ou se efetua Mas diremos o inverso também o estado de coisas também não é separável do acontecimento que transborda contudo sua atualização por toda parte É preciso ascender de novo até o acontecimento que dá sua consistência virtual ao conceito bem como descer até o estado de coisas atual que dá suas referências à função De tudo o que um sujeito pode viver do corpo que lhe pertence dos corpos e objetos que se distinguem do seu e do estado de coisas ou do campo físicomatemático que os determinam erguese um vapor que não se assemelha a eles e que investe o campo de batalha a batalha e o ferimento como componentes ou variações de um acontecimento puro onde subsiste somente uma alusão ao que diz respeito aos nossos estados A filosofia como gigantesca alusão Atualizamos ou efetuamos o acontecimento todas as vezes que o investimos de bom ou mau grado num estado de coisas mas o contraefetuamos cada vez que o abstraímos dos estados de coisas para liberar seu conceito Há como que uma dignidade do acontecimento que foi sempre inseparável da filosofia como amor fati igualarse ao acontecimento ou tornarse o filho de seus próprios acontecimentos meu ferimento existia antes de mim nasci para encarnálo18 Nasci para encarnálo 18 Joe Bousquet Les Capitules Le Cercle du livre p 103 205 como acontecimento porque soube desencarnálo como estado de coisas ou situação vivida Não há ética diferente daquela do amor fati da filosofia A filosofia é sempre entretempo Aquele que contraefetua o acontecimento Mallarmé o chama de o Mímico porque ele esquiva o estado de coisas e se limita a uma alusão perpétua sem quebrar o gelo19 Um mímico como este não reproduz o estado de coisas como também não imita o vivido não dá uma imagem mas constrói um conceito Ele não procura a função do que acontece mas extrai o acontecimento ou a parte do que não se deixa atualizar a realidade do conceito Não querer o que acontece com esta falsa vontade que se queixa e se defende e se perde em mímica mas levar a queixa e o furor ao ponto em que eles se voltam contra o que acontece para erigir o acontecimento depurálo extraílo no conceito vivo A filosofia não tem outro objetivo além de tornarse digna do acontecimento e aquele que contraefetua o acontecimento é precisamente o personagem conceituai Mímico é um nome ambíguo Ele é o personagem conceituai que opera o movimento infinito Querer a guerra contra as guerras por vir e passadas a agonia contra todas as mortes e o ferimento contra todas as cicatrizes em nome do devir e não do eterno é neste sentido somente que o conceito reúne Descemos dos virtuais aos estados de coisas atuais subimos dos estados de coisas aos virtuais sem podermos isolálos uns dos outros Mas não é a mesma linha que subimos e que descemos assim a atualização e a contraefetuação não são dois segmentos da mesma linha mas linhas diferentes Se nos ativermos às funções científicas de estados de coisas diremos que elas não se deixam isolar de um virtual que atualizam este virtual se apresenta de início como uma névoa ou uma neblina ou mesmo como um caos uma virtualidade 19 Mallarmé Mimique Oeuvres La Pléiade p 310 206 caótica mais do que como a realidade de um acontecimento ordenado no conceito É por isso que a filosofia freqüentemente parece para a ciência recobrir um simples caos que faz com que esta diga você só tem escolha entre o caos e eu a ciência A linha de atualidade traça um plano de referência que recorta o caos retira dele estados de coisas que certamente atualizam também em suas coordenadas os acontecimentos virtuais mas só retêm dele potenciais já em vias de atualização fazendo parte das funções Inversamente se consideramos os conceitos filosóficos de acontecimentos sua virtualidade remete ao caos mas sobre um plano de imanência que o recobre por sua vez e só dele extrai a consistência ou realidade do virtual Quanto aos estados de coisas densos demais são sem dúvida adsorvidos contraefetuados pelo acontecimento mas a eles só encontramos alusões sobre o plano de imanência e no acontecimento As duas linhas são pois inseparáveis mas independentes cada uma completa em si mesma como os invólucros dos dois planos tão diversos A filosofia só pode falar da ciência por alusão e a ciência só pode falar da filosofia como de uma nuvem Se as duas linhas são inseparáveis é em sua suficiência respectiva e os conceitos filosóficos não intervém mais na constituição das funções científicas do que as funções na dos conceitos É em sua plena maturidade e não no processo de sua constituição que os conceitos e as funções se cruzam necessariamente cada um só sendo criado por seus meios próprios em cada caso um plano elementos agentes É por isso que é sempre desagradável que os cientistas façam filosofia sem meio realmente filosófico ou que os filósofos façam ciência sem meio efetivamente científico e nós não pretendemos fazê lo O conceito não reflete sobre a função nem a função se aplica ao conceito Conceito e função devem se cruzar cada um seguindo sua linha As funções riemannianas de espaço 207 por exemplo não nos dizem nada de um conceito de espaço riemanniano próprio à filosofia é na medida em que a filosofia está apta a criálo que temos o conceito de uma função O número irracional igualmente definese por uma função como limite comum de duas séries de racionais das quais uma não tem máximo ou a outra não tem mínimo o conceito em contrapartida não remete a séries de números mas a seqüências de idéias que se reencadeiam por sobre uma lacuna em lugar de se encadear por prolongamento A morte pode ser assimilada a um estado de coisas cientificamente determinável como função de variáveis independentes ou mesmo como função do estado vivido mas aparece também como um acontecimento puro cujas variações são coextensivas à vida os dois aspectos muito diferentes se encontram em Bichat Goethe construiu um grandioso conceito de cor com as variações inseparáveis de luz e de sombra as zonas de indiscernibilidade os processos de intensificação que mostram até que ponto também em filosofia há experimentações enquanto que Newton tinha contruído a função de variáveis independentes ou a freqüência Se a filosofia precisa fundamentalmente da ciência que lhe é contemporânea é porque a ciência cruza sem cessar a possibilidade de conceitos e porque os conceitos comportam necessariamente alusões à ciência que não são nem exemplos nem aplicações nem mesmo reflexões Há inversamente funções de conceitos funções propriamente científicas E o mesmo que perguntar se a ciência como acreditamos precisa igual e intensamente da filosofia Mas só os cientistas estão aptos a responder a esta questão 208 Percepto Afecto e Conceito O jovem sorri na tela enquanto ela dura O sangue lateja sob a pele deste rosto de mulher e o vento agita um ramo um grupo de homens se apressa em partir Num romance ou num filme o jovem deixa de sorrir mas começará outra vez se voltarmos a tal página ou a tal momento A arte conserva e é a única coisa no mundo que se conserva Conserva e se conserva em si quid júris embora de fato não dure mais que seu suporte e seus materiais quidfacti pedra tela cor química etc A moça guarda a pose que tinha há cinco mil anos gesto que não depende mais daquela que o fez O ar guarda a agitação o sopro e a luz que tinha tal dia do ano passado e não depende mais de quem o respirava naquela manhã Se a arte conserva não é à maneira da indústria que acrescenta uma substância para fazer durar a coisa A coisa tornouse desde o início independente de seu modelo mas ela é independente também de outros personagens eventuais que são eles próprios coisasartistas personagens de pintura respirando este ar de pintura E ela não é dependente do espectador ou do auditor atuais que se limitam a experimentála num segundo momento se têm força suficiente E o criador então Ela é independente do criador pela auto posição do criado que se conserva em si O que se conserva a coisa ou a obra de arte é um bloco de sensações isto é um composto de perceptos e afectos Os perceptos não mais são percepções são independentes do estado daqueles que os experimentam os afectos não são mais sentimentos ou afecções transbordam a força daqueles que são atravessados por eles As sensações perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido Existem na ausência do homem podemos dizer porque o homem tal como ele é fixado na pedra sobre a tela ou ao longo das palavras é ele próprio um composto de perceptos e de afectos A obra de arte é um ser de sensação e nada mais ela existe em si 213 Os acordes são afectos Consoantes e dissonantes os acordes de tons ou de cores são os afectos de música ou de pintura Rameau sublinhava a identidade entre o acorde e o afecto O artista cria blocos de perceptos e de afectos mas a única lei da criação é que o composto deve ficar de pé sozinho O mais difícil é que o artista o faça manterse de pé sozinho Para isso é preciso por vezes muita inverossimilhança geométrica imperfeição física anomalia orgânica do ponto de vista de um modelo suposto do ponto de vista das percepções e afecções vividas mas estes erros sublimes acedem à necessidade da arte se são os meios interiores de manter de pé ou sentado ou deitado Há uma possibilidade pictural que nada tem a ver com a possibilidade física e que dá às posturas mais acrobáticas a força da verticalidade Em contrapartida tantas obras que aspiram à arte não se mantêm de pé um só instante Manterse de pé sozinho não é ter um alto e um baixo não é ser reto pois mesmo as casas são bêbadas e tortas é somente o ato pelo qual o composto de sensações criado se conserva em si mesmo Um monumento mas o monumento pode sustentarse em alguns traços ou em algumas linhas como um poema de Emily Dickinson Do croqui de um velho burro exausto que maravilha é feito com dois traços mas postos sobre bases imutáveis onde a sensação melhor testemunha anos de trabalho persistente tenaz desdenhoso1 O modo menor em música é uma prova tanto mais essencial quanto lança ao músico o desafio de roubálo a suas combinações efêmeras para tornálo sólido e durável autoconservante mesmo em posições acrobáticas O som deve tanto ser mantido em sua extinção quanto 1 Edith Wharton Les metteurs en scène Ed 1018 p 263 Tratase de um pintor acadêmico e mundano que renuncia a pintar depois de ter descoberto um pequeno quadro de um contemporâneo desconhecido E eu eu não tinha criado nenhuma de minhas obras eu as tinha simplesmente adotado 214 em sua produção e seu desenvolvimento Através de sua admiração por Pissaro por Monet o que Cézanne criticava nos impressionistas era que a mistura óptica das cores não bastava para fazer um composto suficientemente sólido e durável como a arte dos museus como a perpetuldade do sangue em Rubens2 É uma maneira de falar porque Cézanne não acrescenta algo que conservaria o impressionismo ele procura uma outra solidez outras bases e outros blocos A questão de saber se as drogas ajudam o artista a criar esses seres de sensação se fazem parte dos meios interiores se nos conduzem realmente às portas da percepção se nos entregam aos perceptos e aos afectos recebe uma resposta geral na medida em que o que foi composto sob efeito de droga é o mais das vezes extraordinariamente friável incapaz de se conservar por si mesmo desfazendose ao mesmo tempo que se faz ou que o olhamos Podemos também admirar os desenhos de crianças ou antes comovermonos com eles é raro que se mantenham de pé e só parecem com coisa de Klee ou de Miro se não os olhamos muito tempo As pinturas dos loucos ao contrário sustentamse quase sempre mas sob a condição de serem saturadas e de não deixarem subsistir vazio Todavia os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio pois mesmo o vazio é uma sensação toda sensação se compõe com o vazio compondose consigo tudo se mantém sobre a terra e no ar e conserva o vazio se conserva no vazio conservandose a si mesmo Uma tela pode ser inteiramente preenchida a ponto de que mesmo o ar não passe mais por ela mas algo só é uma obra de arte se como diz o pintor chinês guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos quando mais não seja pela variedade de planos3 2 Conversations avec Cézanne Ed Macula Gasquet p 121 3 Cf François Cheng Vide et plein Ed du Seuil p 63 citação do pintor Huang PinHung 215 Pintamos esculpimos compomos escrevemos com sensações Pintamos esculpimos compomos escrevemos sensações As sensações como perceptos não são percepções que remeteriam a um objeto referência se se assemelham a algo é uma semelhança produzida por seus próprios meios e o sorriso sobre a tela é somente feito de cores de traços de sombra e de luz Se a semelhança pode impregnar a obra de arte é porque a sensação só remete a seu material ela é o percepto ou o afecto do material mesmo o sorriso de óleo o gesto de terra cozida o élan de metal o acocorado da pedra romana e o elevado da pedra gótica E o material é tão diverso em cada caso o suporte da tela o agente do pincel ou da brocha a cor no tubo que é difícil dizer onde acaba e onde começa a sensação de fato a preparação da tela o traço do pêlo do pincel fazem evidentemente parte da sensação e muitas outras coisas antes de tudo isso Como a sensação poderia conservarse sem um material capaz de durar e por mais curto que seja o tempo este tempo é considerado como uma duração veremos como o plano do material sobe irresistivelmente e invade o plano de composição das sensações mesmas até fazer parte dele ou ser dele indiscernível Dizse neste sentido que o pintor é pintor e nada além de um pintor com a cor captada como sai fora do tubo com a marca um depois do outro dos pêlos do pincel com este azul que não é um azul de água mas um azul de pintura líquida E todavia a sensação não é idêntica ao material ao menos de direito O que se conserva de direito não é o material que constitui somente a condição de fato mas enquanto é preenchida esta condição enquanto a tela a cor ou a pedra não virem pó o que se conserva em si é o percepto ou o afecto Mesmo se o material só durasse alguns segundos daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si na eternidade que coexiste com esta curta duração Enquanto dura o material é de uma eternidade que 216 a sensação desfruta nesses mesmos momentos A sensação não se realiza no material sem que o material entre inteiramente na sensação no percepto ou no afecto Toda a matéria se torna expressiva É o afecto que é metálico cristalino pétreo etc e a sensação não é colorida ela é colorante como diz Cézanne É por isso que quem só é pintor é também mais que pintor porque ele faz vir diante de nós na frente da tela fixa não a semelhança mas a pura sensação da flor torturada da paisagem cortada sulcada e comprida devolvendo a água da pintura à natureza4 Só passamos de um material a outro como do violão ao piano do pincel à brocha do óleo ao pastel se o composto de sensações o exigir E por mais fortemente que um artista se interesse pela ciência jamais um composto de sensações se confundirá com as misturas do material que a ciência determina em estados de coisas como mostra eminentemente a mistura óptica dos impressionistas O objetivo da arte com os meios do material é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente arrancar o afecto das afecções como passagem de um estado a um outro Extrair um bloco de sensações um puro ser de sensações Para isso é preciso um método que varie com cada autor e que faça parte da obra basta comparar Proust e Pessoa nos quais a pesquisa da sensação como ser inventa procedimentos diferentes5 Os escritores 4 Artaud Van Gogh le suicide de Ia société Gallimard Ed Paule Thevenin p 74 82 Pintor nada senão pintor Van Gogh dominou os meios da pura pintura e não os ultrapassou mas o maravilhoso é que este pintor que só é pintor é também de todos os pintores natos o que mais faz esquecer que temos a ver com a pintura 5 José Gil consagra um capítulo aos procedimentos pelos quais Pés soa extrai o percepto a partir de percepções vividas notadamente em Ode marítima Fernando Pessoa ou Ia métaphysique des sensations Ed De Ia Différence cap II 217 quanto a isto não estão numa situação diferente da dos pintores dos músicos dos arquitetos O material particular dos escritores são as palavras e a sintaxe a sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação Para sair das percepções vividas não basta evidentemente memória que convoque somente antigas percepções nem uma memória involuntária que acrescente a reminiscência como fator conservante do presente A memória intervém pouco na arte mesmo e sobretudo em Proust É verdade que toda a obra de arte é um monumento mas o monumento não é aqui o que comemora um passado é um bloco de sensações presentes que só devem a si mesmas sua própria conservação e dão ao acontecimento o composto que o celebra O ato do monumento não é a memória mas a fabulação Não se escreve com lembranças de infância mas por blocos de infância que são devirescriança do presente A música está cheia disso Para tanto é preciso não memória mas um material complexo que não se encontra na memória mas nas palavras nos sons Memória eu te odeio Só se atinge o percepto ou o afecto como seres autônomos e suficientes que não devem mais nada àqueles que os experimentam ou os experimentaram Combray como jamais foi vivido como não é nem será vivido Combray como catedral ou monumento E se os métodos são muito diferentes não somente segundo as artes mas segundo cada autor podese no entanto caracterizar grandes tipos monumentais ou variedades de compostos de sensação a vibração que caracteriza a sensação simples mas ela já é durável ou composta porque ela sobe ou desce implica uma diferença de nível constitutiva segue uma corda invisível mais nervosa que cerebral o enlace ou o corpoacorpo quando duas sensações ressoam uma na outra esposandose tão estreitamente num corpoacorpo que é puramente energético o recuo a divisão a distensão quando duas sensações se separam ao contrá 218 rio se distanciam mas para só serem reunidas pela luz o ar ou o vazio que se inscrevem entre elas ou nelas como uma cunha ao mesmo tempo tão densa e tão leve que se estende em todos os sentidos à medida que a distância cresce e forma um bloco que não tem mais necessidade de qualquer base Vibrar a sensação acoplar a sensação abrir ou fender esvaziar a sensação A escultura apresenta esses tipos quase em estado puro com suas sensações de pedra de mármore ou de metal que vibram segundo a ordem dos tempos fortes e dos tempos fracos das saliências ou das reentrâncias seus poderosos corpoa corpo que os entrelaçam seu arranjo de grandes vazios entre um grupo e outro e no interior de um mesmo grupo onde não mais se sabe se é a luz se é o ar que esculpe ou é esculpido O romance se elevou freqüentemente ao percepto não a percepção da charneca mas a charneca como percepto em Hardy os perceptos oceânicos de Melville os perceptos urbanos ou especulares em Virginia Woolf A paisagem vê Em geral qual o grande escritor que não soube criar esses seres de sensação que conservam em si a hora de um dia o grau do calor de um momento as colinas de Faulkner a estepe de Tolstoi ou a de Tchekov O percepto é a paisagem anterior ao homem na ausência do homem Mas em todos estes casos por que dizer isso já que a paisagem não é independente das supostas percepções dos personagens e por seu intermédio das percepções e lembranças do autor E como a cidade poderia ser sem homem ou antes dele o espelho sem a velha que nele se reflete mesmo se ela não se mira nele É o enigma freqüentemente comentado de Cézanne o homem ausente mas inteiro na paisagem Os personagens não podem existir e o autor só pode criálos porque eles não percebem mas entraram na paisagem e fazem eles mesmos parte do composto de sensações É Ahab que tem as percepções do mar mas só as tem porque entrou numa relação com 219 Moby Dick que o faz tornarsebaleia e forma um composto de sensações que não precisa de ninguém mais Oceano É Mrs Dalloway que percebe a cidade mas porque entrou na cidade como uma lâmina através de tudo e se tornou ela mesma imperceptível Os afectos são precisamente estes devires não humanos do homem como os perceptos entre eles a cidade são as paisagens não humanas da natureza Há um minuto do mundo que passa não o conservaremos sem nos transformarmos nele diz Cézanne6 Não estamos no mundo tornamonos com o mundo nós nos tornamos contemplandoo Tudo é visão devir Tornamonos universo Devires animal vegetal molecular devir zero Kleist é sem dúvida quem mais escreveu por afectos servindose deles como pedras ou armas apreendendoos em devires de petrificação brusca ou de aceleração infinita no devircadela de Pentesiléia e seus perceptos alucinados Isto é verdadeiro para todas as artes que estranhos devires desencadeiam a música através de suas paisagens melódicas e seus personagens rítmicos como diz Messiaen compondo num mesmo ser de sensação o molecular e o cósmico as estrelas os átomos e os pássaros Que terror invade a cabeça de Van Gogh tomada num devir girassol Sempre é preciso o estilo a sintaxe de um escritor os modos e ritmos de um músico os traços e as cores de um pintor para 6 Cézanne op cit p 113 Cf Erwin Straus Du sens des sens Ed Millon p 519 as grandes paisagens têm todas elas um caráter visionário A visão é o que do invisível se torna visível a paisagem é invisível porque quanto mais a conquistamos mais nela nos perdemos Para chegar à paisagem devemos sacrificar tanto quanto possível toda determinação temporal espacial objetiva mas este abandono não atinge somente o objetivo ele afeta a nós mesmos na mesma medida Na paisagem deixamos de ser seres históricos isto é seres eles mesmos objetiváveis Não temos memória para a paisagem não temos memória nem mesmo para nós na paisagem Sonhamos em pleno dia e com os olhos abertos Somos furtados ao mundo objetivo mas também a nós mesmos É o sentir 220 se elevar das percepções vividas ao percepto de afecções vividas ao afecto Insistimos sobre a arte do romance porque é a fonte de um malentendido muitas pessoas pensam que se pode fazer um romance com suas percepções e suas afecções suas lembranças ou seus arquivos suas viagens e seus fantasmas seus filhos e seus pais os personagens interessantes que pôde encontrar e sobretudo o personagem interessante que é forçosamente ele mesmo quem não o é enfim suas opiniões para soldar o todo Invocamse para tanto grandes autores que só teriam contado sua vida Thomas Wolfe ou Miller Obtémse geralmente obras compostas em que alguém se agita muito mas na procura de um pai que só poderia encontrar em si mesmo o romance do jornalista Nada nos poupam na ausência de qualquer trabalho realmente artístico Não precisamos alterar muito a crueldade do que se pôde ver nem o desespero pelo qual se passou para produzir mais uma vez a opinião que se tira geralmente das dificuldades de comunicação Rossellini viu nisso uma razão para renunciar à arte a arte deixouse invadir demais pelo infantilismo e pela crueldade tornandose simultaneamente cruel e chorosa gemebunda e satisfeita de modo que era melhor renunciar7 O mais interessante é que Rossellini via a mesma invasão na pintura Mas é antes de mais nada a literatura que não parou de manter este equívoco com o vivido Pode acontecer mesmo que se tenha um grande senso de observação e muita imaginação é possível escrever com percepções afecções e opiniões Mesmo nos romances menos autobiográficos vemos confrontaremse cruzaremse opiniões de uma multidão de personagens cada opinião sendo função das percepções e afecções de cada um segundo sua situação social e suas aventuras individuais sendo o conjunto tomado numa vasta corrente que seria a opinião do autor que se divide para 7 Rosselini Le cinema révélé Ed de lEtoile p 8082 221 recair sobre os personagens ou se esconder para que o autor possa formar a sua é assim mesmo que começa a grande teoria do romance de Bakhtin felizmente ele não fica aí justamente na base paródica do romance A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmo amplificada nem com um fantasma Com efeito o artista entre eles o romancista excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido É um vidente alguém que se torna Como contaria ele o que lhe aconteceu ou o que imagina já que é uma sombra Ele viu na vida algo muito grande demasiado intolerável também e a luta da vida com o que a ameaça de modo que o pedaço de natureza que ele percebe ou os bairros da cidade e seus personagens acedem a uma visão que compõe através deles perceptos desta vida deste momento fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo de simultanismo de luz crua ou de crepúsculo de púrpura ou de azul que não têm mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos Chamase de estilos dizia Giacometti essas visões paradas no tempo e no espaço Tratase sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira ou de tentar fazêlo num combate incerto A morte do porcoespinho em Lawrence a morte da toupeira em Kafka são atos de romancista quase insuportáveis e por vezes é preciso deitar na terra como faz o pintor para localizar o motivo isto é o percepto Os perceptos podem ser telescópicos ou microscópicos dão aos personagens e às paisagens dimensões de gigantes como se estivessem repletos de uma vida à qual nenhuma percepção vivida pode atingir Grandeza de Balzac Pouco importa que esses personagens sejam medíocres ou não eles se tornam gigantes como Bouvard e Pécuchet Bloom e Molly Mercier e Camier sem deixar de ser o que são É por força da mediocridade mesmo de besteira ou de infâmia que podem tornarse não simples jamais são simples mas gigantescos Mesmo os anões 222 ou os inválidos podem fazêlo toda fabulação é fabricação de gigantes8 Medíocres ou grandiosos são demasiadamente vivos para serem vivíveis ou vividos Thomas Wolfe extrai de seu pai um gigante e Miller da cidade um planeta negro Wolfe pode descrever os homens do velho Catawha através de suas opiniões imbecis e sua mania de discussão o que faz é erigir o monumento secreto de sua solidão de seu deserto de sua terra eterna e de suas vidas esquecidas despercebidas Faulkner pode criar também oh homens de Yoknapatawpha Dizse que o romancista monumental se inspira ele mesmo no vivido e é verdade M de Charlus parece muito com Montesquiou mas entre Montesquiou e M de Charlus no final das contas há aproximadamente a mesma relação que entre o cãoanimal que late e o Cão constelação celeste Como tornar um momento do mundo durável ou fazêlo existir por si Virginia Woolf dá uma resposta que vale para a pintura ou a música tanto quanto para a escrita Saturar cada átomo Eliminar tudo o que é resto morte e superfluidade tudo o que gruda em nossas percepções correntes e vividas tudo o que alimenta o romancista medíocre só guardar a saturação que nos dá um percepto Incluir no momento o absurdo os fatos o sórdido mas tratados em transparência Colocar aí tudo e contudo saturar9 Por ter atingido o percepto como a fonte sagrada por ter visto a Vida no vivente ou o Vivente no vivido o romancista ou o pintor voltam com olhos vermelhos e o fôlego cur 8 No capítulo II das Deux Sources Bergson analisa a fabulação como uma faculdade visionária muito diferente da imaginação que consiste em criar deuses e gigantes potências semipessoais ou presenças eficazes Ela se exerce inicialmente nas religiões mas desenvolvese livremente na arte e na literatura 9 Virginia Woolf Journal dun écrivain Ed 10181 p 230 223 to São atletas não atletas que teriam formado bem seus corpos e cultivado o vivido embora muitos escritores não tenham resistido a ver nos esportes um meio de aumentar a arte e a vida mas antes atletas bizarros do tipo campeão de jejum ou grande Nadador que não sabia nadar Um Atletismo que não é orgânico ou muscular mas um atletismo afetivo que seria o duplo inorgânico do outro um atletismo do devir que revela somente forças que não são as suas espectro plástico10 Desse ponto de vista os artistas são como os filósofos têm freqüentemente uma saudezinha frágil mas não por causa de suas doenças nem de suas neuroses é porque eles viram na vida algo de grande demais para qualquer um de grande demais para eles e que pôs neles a marca discreta da morte Mas esse algo é também a fonte ou o fôlego que os fazem viver através das doenças do vivido o que Nietzsche chama de saúde Um dia saberemos talvez que não havia arte mas somente medicina11 O afecto não ultrapassa menos as afecções que o percepto as percepções O afecto não é a passagem de um estado vivido a um outro mas o devir não humano do homem Ahab não imita Moby Dick e Pentesiléia não se comporta como a cadela não é uma imitação uma simpatia vivida nem mesmo uma identificação imaginária Não é a semelhança embora haja semelhança Mas justamente é apenas uma semelhança produzida É antes uma extrema contigüidade num enlaçamento entre duas sensações sem semelhança ou ao contrário no distanciamento de uma luz que capta as duas num mesmo reflexo André Dhôtel soube colocar seus per 10 Artaud Le théâtre et son double Oeuvres completes Gallimard IV p 154 11 Le Clézio HAl Ed Flammarion p 7 sou um índio embora não saiba cultivar o milho nem talhar uma piroga Num texto célebre Michaux falava da saúde própria à arte posfácio a Mes propriétés La nuit remmue Gallimard p 193 224 sonagens em estranhos deviresvegetais tornarse árvore ou tornarse áster não é diz ele que um se transforme no outro mas algo passa de um ao outro12 Este algo só pode ser precisado como sensação É uma zona de indeterminação de indiscernibilidade como se coisas animais e pessoas Ahab e Moby Dick Pentesiléia e a cadela tivessem atingido em cada caso este ponto todavia no infinito que precede imediatamente sua diferenciação natural É o que se chama um afecto Em Pierre ou les ambiguités Pierre ganha a zona em que ele não pode mais distinguirse de sua meiairmã Isabelle e tornase mulher Só a vida cria tais zonas em que turbilhonam os vivos e só a arte pode atingila e penetrála em sua empresa de co criação É que a própria arte vive dessas zonas de indeterminação quando o material entra na sensação como numa escultura de Rodin São blocos A pintura precisa de uma coisa diferente da habilidade do desenhista que marcaria a semelhança entre formas humanas e animais e nos faria assistir à sua metamorfose é preciso ao contrário a potência de um fundo capaz de dissolver as formas e de impor a existência de uma tal zona em que não se sabe mais quem é animal e quem é humano porque algo se levanta como o triunfo ou o monumento de sua indistinção assim Goya ou mesmo Daumier Redon É preciso que o artista crie os procedimentos e materiais sintáticos ou plásticos necessários a uma empresa tão grande que recria por toda a parte os pântanos primitivos da vida a utilização da águaforte e da aguatinta por Goya O afecto não opera certamente um retorno às origens como se se reencontrasse em termos de semelhança a persistência de um homem bestial ou primitivo sob o civilizado É nos meios temperados de nossa civilização que agem e prosperam atualmente as zonas equatoriais ou glaciais que se furtam à diferenciação dos gê 12 André Dhôtel Terres de mémoire Ed Universitaires p 225226 225 neros dos sexos das ordens e dos reinos Só se trata de nós aqui e agora mas o que é animal em nós vegetal mineral ou humano não mais é distinto embora nós nós ganhemos aí singularmente em distinção O máximo de determinação emerge como um clarão deste bloco de vizinhança Precisamente porque as opiniões são funções do vivido elas aspiram a um certo conhecimento das afecções As opiniões insistem nas paixões do homem e sua eternidade Mas como observava Bergson temos a impressão de que a opinião desconhece os estados afetivos e que ela agrupa ou separa os que não deveriam ser agrupados ou separados13 Não basta sequer como faz a psicanálise dar objetos proibidos às afecções repertoriadas nem substituir as zonas de indeterminação por simples ambivalências Um grande romancista é antes de tudo um artista que inventa afectos não conhecidos ou desconhecidos e os faz vir à luz do dia como o devir de seus personagens os estados crepusculares dos cavaleiros nos romances de Chrétien de Troyes em relação com um conceito eventual de cavalaria os estados de repouso quase catatônicos que se confundem com o dever segundo Mme de Lafayette em relação com um conceito de quietismo até os estados de Beckett como afectos tanto mais grandiosos quanto são pobres em afecções Quando Zola sugere a seus leitores prestem atenção não é remorso que meus personagens sentem não devemos mais ver nisso a expressão de uma tese fisiologista mas a atribuição de novos afectos que crescem com a criação de personagens no naturalismo o Medíocre o Perverso o Animal o que Zola chama de instinto não se separa de um deviranimal Quando Emily Bronté traça o liame que une Heathcliff e Catherine ela inventa um afeto violento que sobretudo não 13 Bergson La pensée et le mouvant Ed du Centenaire p 12931294 226 deve ser confundido com o amor algo como uma fraternidade entre dois lobos Quando Proust parece descrever tão minuciosamente o ciúme inventa um afecto porque não deixa de inverter a ordem que a opinião supõe nas afecções segundo a qual o ciúme seria uma conseqüência infeliz do amor para ele ao contrário o ciúme é finalidade destinação e se é preciso amar é para poder ser ciumento sendo o ciúme o sentido dos signos o afecto como semiologia Quando Claude Simon descreve o prodigioso amor passivo da mulherterra esculpe um afecto de barro e pode dizer é minha mãe e acreditamos já que ele diz mas uma mãe que ele introduz na sensação e à qual ergue um monumento tão original que não é mais com seu filho real que ela tem uma relação mas mais longinquamente com um outro personagem de criação a Eula de Faulkner É assim que de um escritor a um outro os grandes afectos criadores podem se encadear ou derivar em compostos de sensações que se transformam vibram se enlaçam ou se fendem são estes seres de sensação que dão conta da relação do artista com o público da relação entre as obras de um mesmo artista ou mesmo de uma eventual afinidade de artistas entre si14 O artista acrescenta sempre novas variedades ao mundo Os seres da sensação são variedades como os seres de conceitos são variações e os seres de função são variáveis É de toda a arte que seria preciso dizer o artista é mostrador de afectos inventor de afectos criador de afectos em relação com os perceptos ou as visões que nos dá Não é somente em sua obra que ele os cria ele os dá para nós e nos faz transformamos com eles ele nos apanha no composto Os girassóis de Van Gogh são devires como os cardos de 14 Estas três questões retornam freqüentemente em Proust notadamente Le temps retrouvé La Pléiade III p 895896 sobre a vida a visão e a arte como criação de universo 227 Dürer ou as mimosas de Bonnard Redon intitulava uma litografia Houve talvez uma visão primeira ensaiada na flor A flor vê Puro e simples terror Vê você este girassol que olha para dentro pela janela do quarto Ele olha meu quarto todo o dia15 Uma história floral da pintura é como a criação incessantemente retomada e continuada dos afectos e dos perceptos das flores A arte é a linguagem das sensações que faz entrar nas palavras nas cores nos sons ou nas pedras A arte não tem opinião A arte desfaz a tríplice organização das percepções afecções e opiniões que substitui por um monumento composto de perceptos de afectos e de blocos de sensações que fazem as vezes de linguagem O escritor se serve de palavras mas criando uma sintaxe que as introduz na sensação e que faz gaguejar a língua corrente ou tremer ou gritar ou mesmo cantar é o estilo o tom a linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua a que solicita um povo por vir oh gente do velho Catawba oh gente de Yoknapatawpha O escritor torce a linguagem fála vibrar abraçaa fendea para arrancar o percepto das percepções o afecto das afecções a sensação da opinião visando esperamos esse povo que ainda não existe Minha memória não é amor mas hostilidade e ela trabalha não para reproduzir mas para descartar o passado Que queria dizer minha família eu não sei Ela era gagá de nascença e contudo tinha algo para dizer Sobre mim e sobre muitos de meus contemporâneos pesa a gagueira de nascença Aprendemos não a falar mas a balbuciar e é só ouvindo o ruído crescente do século e uma vez lavados pela espuma de sua onda mais alta que nós adquirimos uma língua16 Precisamente é a tarefa de toda arte e a pintura a música 15 Lowry Audessous du volcan Ed BuchetChastel p 203 16 Mandelstam Le bruit du temps Ed LAge dhomme p 77 228 não arrancam menos das cores e dos sons acordes novos paisagens plásticas ou melódicas personagens rítmicos que os elevam até o canto da terra e o grito dos homens o que constitui o tom a saúde o devir um bloco visual e sonoro Um monumento não comemora não celebra algo que se passou mas transmite para o futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento o sofrimento sempre renovado dos homens seu protesto recriado sua luta sempre retomada Tudo seria vão porque o sofrimento é eterno e as revoluções não sobrevivem à sua vitória Mas o sucesso de uma revolução só reside nela mesma precisamente nas vibrações nos enlaces nas aberturas que deu aos homens no momento em que se fazia e que compõem em si um monumento sempre em devir como esses túmulos aos quais cada novo viajante acrescenta uma pedra A vitória de uma revolução é imanente e consiste nos novos liames que instaura entre os homens mesmo se estes não duram mais que sua matéria em fusão e dão lugar rapidamente à divisão à traição As figuras estéticas e o estilo que as cria não têm nada a ver com a retórica São sensações perceptos e afectos paisagens e rostos visões e devires Mas não é também pelo devir que definimos o conceito filosófico e quase nos mesmos termos Todavia as figuras estéticas não são idênticas aos personagens conceituais Talvez entrem uns nos outros num sentido ou no outro como Igitur ou como Zaratustra mas é na medida em que há sensações de conceitos e conceitos de sensações Não é o mesmo devir O devir sensível é o ato pelo qual algo ou alguém não pára de deviroutro continuando a ser o que é girassol ou Ahab enquanto que o devir conceituai é o ato pelo qual o acontecimento comum ele mesmo esquiva o que é Este é heterogeneidade compreendida numa forma absoluta aquele a alteridade empenhada numa matéria de expressão O monumento não atualiza o acontecimento virtual mas o incorpora ou o encarna dá 229 lhe um corpo uma vida um universo É assim que Proust definia a artemonumento por esta via superior ao vivido suas diferenças qualitativas seus universos que constróem seus próprios limites seus distanciamentos e suas aproximações suas constelações os blocos de sensações que eles fazem rolar o universoRembrandt ou universoDebussy Estes universos não são nem virtuais nem atuais são possíveis o possível como categoria estética possível por favor senão eu sufoco a existência do possível enquanto que os acontecimentos são a realidade do virtual formas de um pensamentoNatureza que sobrevoam todos os universos possíveis Não significa dizer que o conceito precede de direito a sensação mesmo um conceitode sensação deve ser criado com seus meios próprios e uma sensação existe em seu universo possível sem que o conceito exista necessariamente em sua forma absoluta Pode a sensação ser assimilada a uma opinião originária Urdoxa como fundação do mundo ou base imutável A fenomenologia encontra a sensação em a priori materiais perceptivos e afectivos que transcendem as percepções e afecções vividas o amarelo de Van Gogh ou as sensações inatas de Cézanne A fenomenologia deve fazerse fenomenologia da arte já vimos porque a imanência do vivido a um sujeito transcendental precisa exprimirse em funções transcendentes que não determinam somente a experiência em geral mas que atravessam aqui e agora o próprio vivido e se encarnam nele constituindo sensações vivas O ser da sensação o bloco do percepto e do afecto aparecerá como a unidade ou a reversibilidade daquele que sente e do sentido seu íntimo entrelaçamento como mãos que se apertam é a carne que vai se libertar ao mesmo tempo do corpo vivido do mundo percebido e da intencionalidade de um ao outro ainda muito ligada à experiência enquanto a carne nos dá o ser da sensação e carrega a opinião originária 230 distinta do juízo de experiência Carne do mundo e carne do corpo como correlatos que se trocam coincidência ideal17 É um curioso Carnismo que inspira este último avatar da fenomenologia e a precipita no mistério da encarnação é uma noção piedosa e sensual ao mesmo tempo uma mistura de sensualidade e de religião sem a qual a carne talvez não ficaria de pé sozinha ela desceria ao longo dos ossos como nas figuras de Bacon A questão de saber se a carne é adequada à arte pode se enunciar assim é ela capaz de carregar o percepto e o afecto de constituir o ser de sensação ou então é ela mesma que deve ser carregada e ingressar em outras potências de vida A carne não é a sensação mesmo se ela participa de sua revelação Era precipitado dizer que a sensação encarna A pintura faz a carne ora com o encarnado superposições do vermelho e do branco ora com tons justapostos justaposição de complementares em proporções desiguais Mas o que constitui a sensação é o deviranimal vegetal etc que monta sob as praias de encarnado no nu mais gracioso mais delicado como a presença de um animal descarnado de um fruto descascado Vênus no espelho ou que surge na fusão no cozimento no derramar de tons justapostos como a zona 17 Desde a Phénoménologie de Yexpérience esthétique PUF 1953 Mikel Dufrenne fazia uma espécie de analítica dos a priori perceptivos e afetivos que fundavam a sensação como relação do corpo e do mundo Permanecia próximo de Erwin Straus Mas há um ser de sensação que se manifestaria na carne Era a via de MerleauPonty no Le visible et Vinvisible Dufrenne fazia muitas reservas a uma tal ontologia da carne Uoeil et 1oreille Ed LHexagone Recentemente Didier Franck retomou o tema de MerleauPonty mostrando a importância decisiva da carne segundo Heidegger e já Husserl Heidegger et le problème de Vespace Chair et corps Ed de Minuit Todo este problema está no centro de uma fenomenologia da arte Talvez o livro ainda inédito de Foucault Les aveux de Ia chair nos informe sobre as origens mais gerais da noção de carne e seu alcance na Patrística 231 de indiscernibilidade do animal e do homem Talvez fosse um embaralhamento ou um caos se não houvesse um segundo elemento para dar consistência à carne A carne é apenas o termômetro de um devir A carne é tenra demais O segundo elemento é menos o osso ou a ossatura que a casa a armadura O corpo desabrocha na casa ou num equivalente numa fonte num bosque Ora o que define a casa são as extensões isto é os pedaços de planos diversamente orientados que dão à carne sua armadura primeiro plano e planodefundo paredes horizontais verticais esquerda direita retos e oblíquos retilíneos ou curvos18 Essas extensões são muros mas também solos portas janelas portasjanelas espelhos que dão precisamente à sensação o poder de manterse sozinha em molduras autônomas São as faces do bloco de sensação E há certamente dois signos do gênio dos grandes pintores bem como de sua humildade o respeito quase um terror com o qual eles se aproximam da cor e entram nela o cuidado com o qual operam a junção dos planos da qual depende o tipo de profundidade Sem este respeito e este cuidado a pintura é nula sem trabalho sem pensamento O difícil é juntar não as mãos mas os planos Fazer relevos com planos que se juntam ou ao contrário escarificálos cortálos Os dois problemas a arquitetura dos planos e o regime da cor se confundem freqüentemente A junção dos planos horizontais e verticais em Cézanne os planos na cor os planos o lugar colorido ou a alma dos planos entra em fusão Não há dois grandes pintores ou mesmo duas grandes obras que operem da mesma maneira Há todavia tendências num pintor em Giacometti por 18 Como mostra Georges DidiHuberman a carne engendra uma dúvida ela é próxima demais do caos donde a necessidade de uma complementariedade entre o encarnado e a extensão tema essencial de La peinture incarnée retomada e desenvolvida em Devant 1image Ed de Minuit 232 exemplo os planos horizontais fugidios diferem à direita e à esquerda e parecem se reunir na coisa a carne da pequena maçã mas como uma pinça que a puxaria para trás e a faria desaparecer se um plano vertical do qual só se vê o fio sem espessura não viesse fixála retêla no último momento darlhe uma existência durável à maneira de um longo alfinete que a atravessa e a torna filiforme por sua vez A casa participa de todo um devir Ela é vida vida não orgânica das coisas De todos os modos possíveis é a junção dos planos de mil orientações que define a casasensação A casa mesma ou seu equivalente é a junção finita dos planos coloridos O terceiro elemento é o universo o cosmos Não é somente a casa aberta que se comunica com a paisagem por uma janela ou um espelho mas a casa mais fechada está aberta sobre um universo A casa de Monet se vê sempre aspirada pelas forças vegetais de um jardim incontrolável cosmo das rosas Um universocosmos não é carne Nem mesmo plano pedaços de planos que se juntam planos diversamente orientados embora a junção de todos os planos até o infinito possa constituílo Mas o universo se apresenta no limite como o fundo da tela o único grande plano o vazio colorido o infinito monocromático A porta janela como em Matisse só se abre sobre um fundo negro A carne ou antes a figura não mais é o habitante do lugar da casa mas o habitante de um universo que suporta a casa devir É como uma passagem do finito ao infinito mas também do território à desterritorialização É bem o momento do infinito infinitos infinitamente variados Em Van Gogh em Gauguin em Bacon hoje vemos surgir a imediata tensão da carne e do fundo dos derrames de tons justapostos e da praia infinita de uma pura cor homogênea viva e saturada em lugar de pintar a parede banal do mesquinho apartamento eu pinto o infinito faço um fundo simples do azul mais rico 233 mais intenso19 É verdade que o fundo monocromático é mais do que um fundo E quando a pintura quer começar do zero construindo o percepto como um mínimo antes do vazio ou aproximando ao máximo do conceito ela procede por monocromia liberada de toda casa ou de toda carne É notadamente o azul que se encarrega do infinito e que faz do percepto uma sensibilidade cósmica ou o que há de mais conceituai na natureza ou de mais proposicional a cor na ausência do homem o homem mergulhado na cor mas se o azul ou o negro ou o branco é perfeitamente idêntico no quadro ou de um quadro a outro é a pintura que se torna azul Yves o monocromo segundo um puro afecto que faz o universo mergulhar no vazio e não deixa mais nada por fazer ao pintor por excelência20 O vazio colorido ou antes colorante já é força A maior parte dos grandes monocromos da pintura moderna não mais têm necessidade de recorrer a pequenos buquês murais mas apresentam variações sutis imperceptíveis todavia constitutivas de um percepto seja porque são cortados ou con 19 Van Gogh carta a Théo Correspondance complete GallimardGrasset III p 165 Os tons justapostos e sua relação com o fundo são um tema freqüente da correspondência Também Gauguin carta a Schuffenecker 8 de outubro de 1888 Lettres Ed Grasset p 140 Eu fiz um retrato de mim para Vincent É acredito eu uma das minhas melhores coisas absolutamente incompreensível por exemplo de tal maneira é abstrato o seu desenho é inteiramente arbitrário abstração completa a cor é uma cor distante da natureza imagine uma vaga lembrança de cerâmica retorcida pelo fogo forte Todos os vermelhos os violetas rajados pelos clarões de fogo como uma fornalha radiante aos olhos sede das lutas do pensamento do pintor O todo sobre um fundo cromo se meado de buquês infantis Quarto de moça pura É a idéia do colorista arbitrário segundo Van Gogh 20 Cf Artstudio n 16 Monochromes sobre Klein artigos de Geneviève Monnier e de Denys Riout e sobre os avatares atuais do monocromo artigo de Pierre Sterckx 234 tornados de um lado por uma fita um faixa uma extensão de uma outra cor ou de um outro tom que mudam a intensidade do fundo por vizinhança ou distanciamento seja porque apresentam figuras lineares ou circulares quase virtuais tom sobre tom seja porque são esburacados ou fendidos são problemas de junção ainda mas singularmente ampliados Numa palavra o fundo vibra se enlaça ou se fende porque é portador de forças apenas vislumbradas É o que fazia de início a pintura abstrata convocar as forças povoar o fundo com as forças que ele abriga fazer ver nelas mesmas as forças invisíveis traçar figuras de aparência geométrica mas que não seriam mais do que forças força de gravitação de peso de rotação de turbilhão de explosão de expansão de germinação força do tempo como se pode dizer da música que ela faz ouvir a força sonora do tempo por exemplo com Messiaen ou da literatura com Proust que faz ler e conceber a força ilegível do tempo Não é esta a definição do percepto em pessoa tornar sensíveis as forças insensíveis que povoam o mundo e que nos afetam nos fazem devir O que Mondrian obtém por simples diferenças entre lados de um quadrado e Kandinsky pelas tensões lineares e Kupka pelos planos curvos em torno do ponto Do fundo das eras nos vem o que Worringer chamava a linha setentrional abstrata e infinita linha do universo que forma fitas e tiras rodas e turbinas toda uma geometria viva elevando à intuição as forças mecânicas constituindo uma poderosa vida nãoorgânica21 O eterno objeto da pintura pintar as forças como Tintoretto Encontraremos também talvez a casa e o corpo É que o fundo infinito é freqüentemente aquilo sobre o que se abre a janela ou a porta ou então é o muro da própria casa ou o solo Van Gogh e Gauguin semeiam o fundo de pequenos buquês de flores para fazer deles o papel mural 21 Worringer Uart gothique Gallimard 235 sobre o qual se destaca o rosto de tons justapostos E com efeito a casa não nos abriga das forças cósmicas no máximo ela as filtra elas as seleciona Ela as transforma algumas vezes em forças benevolentes jamais a pintura fez ver a força de Arquimedes a força do empuxo da água sobre um corpo gracioso que flutua na banheira da casa como Bonnard conseguiu em o Nu no banho Mas também as forças mais maléficas podem entrar pela porta entreaberta ou fechada são as forças cósmicas que provocam elas mesmas as zonas de indiscernibilidade nos tons justapostos de um rosto esbofeteandoo arranhandoo fundindoo em todos os sentidos e são estas zonas de indiscernibilidade que revelam as forças escondidas no fundo Bacon Há plena complementariedade enlace de forças como perceptos e de devires como afectos A linha de força abstrata segundo Worringer é rica em motivos animalescos Às forças cósmicas ou cosmogenéticas correspondem deviresanimais vegetais moleculares até que o corpo desapareça no fundo ou entre no muro ou inversamente que o fundo se contorça e turbilhone na zona de indiscernibilidade do corpo Numa palavra o ser de sensação não é a carne mas o composto das forças nãohumanas do cosmos dos devires não humanos do homem e da casa ambígua que os troca e os ajusta os faz turbilhonar como os ventos A carne é somente o revelador que desaparece no que revela o composto de sensações Como toda pintura a pintura abstrata é sensação nada mais que sensação Em Mondrian é o quarto que acede ao ser de sensação dividindo por extensões coloridas o plano vazio infinito que lhe dá de volta um infinito de abertura22 Em Kandinsky as casas são uma das 22 Mondrian Réalité naturelle et réalité abstraite in Seuphor Piet Mondrian sa vie son oeuvre Ed Flammarion sobre o quarto e seu desdobramento Michel Butor analisou este desdobramento do quarto em quadrados ou retângulos e a abertura sobre um quadrado interior vazio e branco como promessa de quarto futuro Répertoire III Le carré et son habitant Ed de Minuit p 307309 314315 236 fontes da abstração que consiste menos em figuras geométricas que em trajetos dinâmicos e linhas de errância caminhos que caminham nos arredores Em Kupka é de início sobre o corpo que o pintor talha fitas ou extensões coloridas que produzirão no vazio os planos curvos que o povoam tornandose sensações cosmogenéticas É a sensação espiritual ou já um conceito vivo o quarto a casa o universo A arte abstrata e depois a arte conceituai colocam diretamente a questão que impregna toda pintura sua relação com o conceito sua relação com a função A arte começa talvez com o animal ao menos com o animal que recorta um território e faz uma casa os dois são correlativos ou até mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat Com o sistema territóriocasa muitas funções orgânicas se transformam sexualidade procriação agressividade alimentação mas não é esta transformação que explica a aparição do território e da casa seria antes o inverso o território implica na emergência de qualidades sensíveis puras sensibilia que deixam de ser unicamente funcionais e se tornam traços de expressão tornando possível uma transformação das funções23 Sem dúvida esta expressividade já está difundida na vida e podese dizer que o simples lírio dos campos celebra a glória dos céus Mas é com o território e a casa que ela se torna construtiva e ergue os monumentos rituais de uma missa animal que celebra as qualidades antes de tirar delas novas causalidades e finalidades Esta emergência já é arte não somente no tratamento dos materiais exteriores mas nas posturas e cores do corpo nos 23 Parecenos que é um engano de Lorenz querer explicar o território por uma evolução das funções Uagression Ed Flammarion 237 cantos e nos gritos que marcam o território É um jorro de traços de cores e de sons inseparáveis na medida em que se tornam expressivos conceito filosófico de território O Scenopoietes dentirostris pássaro das florestas chuvosas da Austrália faz cair da árvore as folhas que corta cada manhã viraas para que sua face interna mais pálida contraste com a terra constrói para si assim uma cena como um readymade e canta exatamente em cima sobre um cipó ou um galho um canto complexo composto de suas próprias notas e das de outros pássaros que imita nos intervalos mostrando a raiz amarela das plumas sob seu bico é um artista completo24 Não são as sinestesias em plena carne são estes blocos de sensações no território cores posturas e sons que esboçam uma obra de arte total Estes blocos são ritornelos mas há também ritornelos posturais e de cores e tanto posturas quanto cores se introduzem sempre nos ritornelos Reverências e posições eretas rondas traços de cores O ritornelo inteiro é o ser de sensação Os monumentos são ritornelos Desse ponto de vista a arte não deixará de ser habitada pelo animal A arte de Kafka será a mais profunda meditação sobre o território e a casa o terreiro as posturasretrato a cabeça pendida do habitante com o queixo enterrado no peito ou ao contrário o grande tímido que fura o teto com seu crânio anguloso os sonsmúsica os cães que são músicos por suas próprias posturas Josephine a ratinha cantora da qual jamais saberemos se canta Gregoire que une seu piado ao violino de sua irmã numa relação complexa quartocasaterritório Eis tudo o que é preciso para fazer arte uma casa posturas cores e cantos sob a condição de que tudo isso se abra e se lance sobre um vetor louco como uma vassoura de bruxa uma linha de universo ou de 24 Marshall Bowler Birds Oxford at the Clarendon Press Gilliord Birds ofParadise and Bowler Birds Weidenfeld 238 desterritorialização Perspectiva de um quarto com seus habitantes Klee Cada território cada habitat junta seus planos ou suas extensões não apenas espaçotemporais mas qualitativos por exemplo uma postura e um canto um canto e uma cor perceptos e afectos E cada território engloba ou recorta territórios de outras espécies ou intercepta trajetos de animais sem território formando junções interespecíficas É neste sentido que Uexkühl num primeiro aspecto desenvolve uma concepção da Natureza melódica polifônica contrapontual Não apenas o canto de um pássaro tem suas relações de contraponto mas pode fazer contraponto com o canto de outras espécies e pode ele mesmo imitar estes outros cantos como se se tratasse de ocupar um máximo de freqüências A teia de aranha contém um retrato muito sutil da mosca que lhe serve de contraponto A concha como casa do molusco se torna quando ele morre o contraponto do Bernardoeremita que faz dela seu próprio habitat graças a sua cauda que não é nadadeira mas preênsil e lhe permite capturar a concha vazia O Carrapato é organicamente construído de modo a encontrar seu contraponto no mamífero qualquer que passa sob seu galho como as folhas de carvalho arranjadas como telhas nas gotas de chuva que escorrem Não é uma concepção finalista mas melódica em que não mais sabemos o que é arte ou natureza a técnica natural há contraponto toda vez que uma melodia intervém como motivo numa outra melodia como nas bodas entre a mamangava e a bocadeleão Essas relações de contraponto juntam planos formam compostos de sensações blocos e determinam devires Mas não são somente estes compostos melódicos determinados que constituem a natureza mesmo generalizados é preciso também sob um outro aspecto um plano de composição sinfônica infinito da Casa ao universo Da endosensação à exosensação É que o ter 239 ritório não se limita a isolar e juntar ele abre para forças cósmicas que sobem de dentro ou que vêm de fora e torna sensíveis seu efeito sobre o habitante É um plano de composição do carvalho que porta ou comporta a força de desenvolvimento da bolota e a força de formação das gotas ou o do carrapato que tem a força da luz capaz de atrair o animal até a ponta de um galho numa altura suficiente e a força de peso com a qual se deixa cair sobre o mamífero que passa e entre os dois nada um vazio assustador que pode durar anos se o mamífero não passa25 E ora as forças se fundem umas nas outras em transições sutis decompõem se tão logo vislumbradas ora se alternam ou se enfrentam Ora deixamse selecionar pelo território e são as mais benevolentes que entram na casa Ora lançam um apelo misterioso que arranca o habitante do território e o precipita numa viagem irresistível como os pintassilgos que se reúnem freqüentemente aos milhões ou as lagostas que empreendem uma imensa peregrinação no fundo da água Ora se abatem sobre o território e o invertem malevolentes restaurando o caos de onde ele mal saía Mas sempre se a natureza é como a arte é porque ela conjuga de todas as maneiras esses dois elementos vivos a Casa e o Universo o Heimlicb e o Unheimlich o território e a desterritorialização os compostos melódicos finitos e o grande plano de composição infinito o pequeno e o grande ritornelo A arte começa não com a carne mas com a casa é por isso que a arquitetura é a primeira das artes Quando Dubuffet procura delimitar um certo estado bruto de arte é a princípio na direção da casa que ele se volta e toda sua obra se ergue entre a arquitetura a escultura e a pintura E limi 25 Cf a obraprima de J von Uexkühl Mondes animaux et monde humain Théorie de Ia signification Ed Gonthier p 137142 o contraponto motivo do desenvolvimento e da morfogênese 240 tandonos à forma a arquitetura mais sábia não deixa de fazer planos extensões e de juntálos É por isso que se pode definila pela moldura um encaixe de molduras diversamente orientadas que se imporiam às outras artes da pintura ao cinema Já se apresentou a préhistória do quadro como passando pelo afresco na moldura da parede o vitral na moldura da janela o mosaico na moldura do solo A moldura é o umbigo que liga o quadro ao monumento do qual ele é a redução como a moldura gótica com colunetas ogiva e flecha26 Fazendo da arquitetura a arte primeira da moldura Bernard Cache pode enumerar um certo número de formas enquadrantes que não prejulgam nenhum conteúdo concreto nem função do edifício o muro que isola a janela que capta ou seleciona em conexão com o território o solochão que conjura ou rarifica rarificar o relevo da terra para dar livre curso às trajetórias humanas o teto que envolve a singularidade do lugar o teto em declive coloca o edifício sobre uma colina Encaixar essas molduras ou juntar todos estes planos extensão de muro extensão de janela extensão de solo extensão de declive é todo um sistema composto rico em pontos e contrapontos As molduras e suas junções sustentam os compostos de sensações dão consistência às figuras confundemse com seu dar consistência seu próprio tônus Aí estão as faces de um cubo de sensação As molduras ou as extensões não são coordenadas pertencem aos compostos de sensações dos quais constituem as faces as interfaces Mas por mais extensível que seja este sistema é preciso ainda um vasto plano de composição que opere uma espécie de desenquadramento segundo linhas de fuga que só passe pelo território para abrilo sobre o universo que vá da casaterritório à cidadecosmos 26 Henry van de Velde Déblaiement dart Archives darchitecture moderne p 20 241 e que dissolva agora a identidade do lugar na variação da Terra uma cidade que tem menos um lugar do que vetores pregueando a linha abstrata do relevo É sobre este plano de composição como sobre um espaço vetorial abstrato que se traçam figuras geométricas cone prisma diedro plano estrito que nada mais são do que forças cósmicas capazes de se fundir se transformar se enfrentar alternar mundo de antes do homem mesmo se é produto do homem27 É preciso agora desarticular os planos para remetêlos a seus intervalos em vez de remetêlos uns aos outros para criar novos afectos28 Ora vimos que a pintura seguia o mesmo movimento A moldura ou a borda do quadro é em primeiro lugar o invólucro externo de uma série de molduras ou de extensões que se juntam operando contrapontos de linhas e de cores determinando compostos de sensações Mas o quadro é atravessado também por uma potência de desen quadramento que o abre para um plano de composição ou um campo de forças infinito Estes procedimentos podem ser muito diversos mesmo no nível da moldura exterior formas irregulares lados que não se juntam molduras pintadas ou pontilhados de Seurat quadrados sobre ponta de Mondrian tudo o que dá ao quadro o poder de sair da tela Jamais o gesto do pintor fica na moldura ele sai da moldura e não começa com ela 27 Sobre todos estes pontos a análise das formas enquadrantes e da cidadecosmos exemplo de Lausanne cf Bernard Cache Uameublement du territoire a sair 28 É Pascal Bonitzer que formou o conceito de desenquadramento para aplicar ao cinema novas relações entre os planos Cahiers du cinema n 284 janeiro de 1978 planos disjuntos triturados ou fragmentados graças aos quais o cinema se torna uma arte depurandose das emoções mais comuns que arriscam de lhe impedir o desenvolvimento estético e produzindolhe afetos novos Le champ aveugle Ed Cahiers du cinema Gallimard sistème des émotions 242 Não parece que a literatura e particularmente o romance estejam numa outra situação O que conta não são as opiniões dos personagens segundo seus tipos sociais e seu caráter como nos maus romances mas as relações de contraponto nos quais entram e os compostos de sensações que esses personagens experimentam eles mesmos ou fazem experimentar em seus devires e suas visões O contraponto não serve para relatar conversas reais ou fictícias mas para fazer mostrar a loucura de qualquer conversa de qualquer diálogo mesmo interior É tudo isso que o romancista deve extrair das percepções afecções e opiniões de seus modelos psicossociais que se integram inteiramente nos perceptos e os afectos aos quais o personagem deve ser elevado sem conservar outra vida E isso implica num vasto plano de composição não preconcebido abstratamente mas que se constrói à medida que a obra avança abrindo misturando desfazendo e refazendo compostos cada vez mais ilimitados segundo a penetração de forças cósmicas A teoria do romance de Bakhtin vai nesse sentido mostrando de Rabelais a Dostoievski a coexistência dos componentes contrapontuais polifônicos e plurivocais com um plano de composição arquitetônico ou sinfônico29 Um romancista como Dos Passos soube atingir uma arte inaudita do contraponto nos compostos que forma entre personagens atualidades biografias olhos de câmera ao mesmo tempo que um plano de composição se alarga ao infinito para arrastar tudo para a Vida para a Morte para a cidade cosmos E se retornamos a Proust é porque mais do que qualquer outro ele fez com que os dois elementos quase se sucedessem embora presentes um no outro o plano de composição aparece pouco a pouco para a vida para a morte compostos de sensação que ele edifica no curso do tempo perdido até aparecer em si mesmo com o tempo reencontrado a força ou antes as 29 Bakhtin Estbétique et tbéorie du roman Gallimard 243 forças do tempo puro tornadas sensíveis Tudo começa pelas Casas que devem todas juntar suas dimensões e dar consistência a compostos Combray o palacete de Guermantes o salão Verdurin e as casas elas mesmas se ajuntam segundo interfaces mas um Cosmos planetário já está lá visível ao telescópio arruinandoas ou transformandoas e absorvendoas no infinito do fundo Tudo começa por ritornelos cada um dos quais como a pequena frase da sonata de Vinteuil não se compõe apenas em si mesmo mas com outras sensações variáveis a de uma passante desconhecida a do rosto de Odette a das folhagens do bosque de Boulogne e tudo termina no infinito no grade Ritornelo a frase do séptuor em perpétua metamorfose o canto dos universos o mundo de antes do homem ou de depois De cada coisa finita Proust faz um ser de sensação que não deixa de se conservar mas fugindo sobre um plano de composição do Ser seres de fuga EXEMPLO XII Não parece que a música esteja numa outra situação talvez mesmo a encarne com mais poder ainda Dizse todavia que o som não tem moldura Mas os compostos de sensações os blocos sonoros tampouco têm extensões ou formas enquadrantes que devem em cada caso se ajuntar assegurando um certo fechamento Os casos mais simples são a ária melódica que é um ritornelo monofônico o motivo que já é polifônico um elemento de uma melodia interveniente no desenvolvimento de uma outra e fazendo contraponto o tema como objeto de modificações harmônicas através das linhas melódicas Essas três formas elementares constróem a casa sonora e seu território Elas correspondem às três modalidades de um ser de sensação pois a ária é uma vibração o motivo é um enlace um acoplamen 244 to enquanto o tema não fecha sem se descerrar fender e também abrir Com efeito o fenômeno musical mais importante que aparece à medida que os compostos de sensações sonoras se tornam mais complexos é que sua clausura ou fechamento por junção de suas molduras de suas extensões se acompanha de uma possibilidade de abertura sobre um plano de composição cada vez mais ilimitado Os seres de música são como os seres vivos segundo Bergson que compensam sua clausura individuante por uma abertura feita de modulação repetição transposição justaposição Se consideramos a sonata encontramos aí uma forma enquadrante particularmente rígida fundada sobre um bitematismo e da qual o primeiro movimento apresenta as seguintes dimensões exposição do primeiro tema transição exposição do segundo tema desenvolvimentos sobre o primeiro ou o segundo coda desenvolvimento do primeiro com modulação etc É toda uma casa com seus aposentos Mas é antes o primeiro movimento que forma assim uma célula e é raro que um grande músico siga a forma canônica os outros movimentos podem abrirse notadamente o segundo pelo tema e variação até que Liszt assegure uma fusão dos movimentos no poema sinfônico A sonata aparece então antes como uma formacruzamento em que da junção das dimensões musicais da clausura dos compostos sonoros nasce a abertura de um plano de composição Deste ponto de vista o velho procedimento tema e variação que mantém a moldura harmônica do tema dá lugar a uma espécie de desenquadramento quando o piano engendra os estudos de composição Chopin Schumann Liszt é um novo momento essencial porque o trabalho criador não mais versa sobre os componentes sonoros motivos e temas abrindo um plano 245 mas ao contrário versa diretamente sobre o próprio plano de composição para fazer nascer dele compostos bem mais livres e desenquadrados quase agregados incompletos ou sobrecarregados em desequilíbrio permanente É a cor do som que conta cada vez mais Passase da Casa ao Cosmos segundo uma fórmula que a obra de Stockhausen retomará O trabalho do plano de composição se desenvolve em duas direções que engendrarão uma desagregação da moldura tonai os imensos fundos da variação contínua que fazem enlaçar e se unir as forças tornadas sonoras em Wagner ou os tons justapostos que separam e dispersam as forças agenciando suas passagens reversíveis em Debussy UniversoWagner universo Debussy Todas as árias todos os pequenos ritornelos enquadrantes ou enquadrados infantis domésticos profissionais nacionais territoriais são carregados no grande Ritornelo um potente canto da terra o desterritorializado que se eleva com Mahler Berg ou Bartók E sem dúvida o plano de composição engendra sempre novas clausuras como na série Mas sempre o gesto do músico consiste em desenquadrar encontrar a abertura retomar o plano de composição segundo a fórmula que obceca Boulez traçar uma transversal irredutível à vertical harmônica como à horizontal melódica que conduz blocos sonoros à individualização variável mas também abrilas ou fendêlas num espaçotempo que determina sua densidade e seu percurso sobre o plano30 O grande ritornelo se eleva à medida que nos afastamos da casa mes 30 Boulez notadamente Points de repère Ed BourgoisLe Seuil p 159 e segs Pensez Ia musique aujourdhui Ed Gonthier p 5962 A extensão da série em durações intensidades e timbres não é um ato de clausura mas ao contrário uma abertura do que se fechava na série das alturas 246 mo se é para retornar a ela já que ninguém mais nos reconhecerá quando retornarmos Composição composição eis a única definição da arte A composição é estética e o que não é composto não é uma obra de arte Não confundiremos todavia a composição técnica trabalho do material que faz freqüentemente intervir a ciência matemática física química anatomia e a composição estética que é o trabalho da sensação Só este último merece plenamente o nome de composição e nunca uma obra de arte é feita por técnica ou pela técnica Certamente a técnica compreende muitas coisas que se individualizam segundo cada artista e cada obra as palavras e a sintaxe em literatura não apenas a tela em pintura mas sua preparação os pigmentos suas misturas os métodos de perspectiva ou então os doze sons da música ocidental os instrumentos as escalas as alturas E a relação entre os dois planos o plano de composição técnica e o plano de composição estética não cessa de variar historicamente Sejam dois estados oponíveis na pintura a óleo num primeiro caso o quadro é preparado por um fundo branco sobre o qual se desenha e se dilui o desenho esboço enfim se põe a cor as sombras e as luzes No outro caso o fundo se torna cada vez mais espesso opaco e absorvente de modo que ele se colore na divisão e o trabalho se faz em plena massa sobre uma gama escura as correções substituindo o esboço o pintor pintará sobre cor depois cor ao lado de cor as cores se tornando cada vez mais relevos a arquitetura sendo assegurada pelo contraste dos complementares e a concordância dos análogos Van Gogh é por e na cor que se encontrará a arquitetura mesmo se é preciso renunciar aos relevos para reconstituir grandes unidades colorantes E verdade que Xavier de Langlais vê em todo este segundo caso uma longa decadência que cai no efêmero e não chega a restaurar uma ar 247 quitetura o quadro se obscurece empalidece ou se escama rapidamente31 E sem dúvida esta observação coloca ao menos negativamente a questão do progresso na arte já que Langlais considera que a decadência começa já depois de Van Eyck um pouco como alguns param a música no canto gregoriano ou a filosofia em Santo Tomás Mas é uma observação técnica que concerne somente ao material além de que a duração do material é muito relativa a sensação é de uma outra ordem e possui uma existência em si enquanto o material dura A relação da sensação com o material deve pois ser avaliada nos limites da duração do material qualquer que ela seja Se há progressão em arte é porque a arte só pode viver criando novos perceptos e novos afectos como desvios retornos linhas de partilha mudanças de níveis e de escalas Deste ponto de vista a distinção de dois estados da pintura a óleo toma um aspecto inteiramente diferente estético e não mais técnico esta distinção não conduz evidentemente ao representativo ou não já que nenhuma arte nenhuma sensação jamais foram representativas No primeiro caso a sensação se realiza no material e não existe fora desta realização Diríamos que a sensação o composto de sensações se projeta sobre o plano de composição técnica bem preparado de sorte que o plano de composição estética venha recobrilo É preciso pois que o material compreenda ele mesmo mecanismos de perspectiva graças aos quais a sensação projetada não se realiza somente cobrindo o quadro mas segundo uma profundidade A arte desfruta então de uma aparência de transcendência que se exprime não numa coisa por representar mas no caráter paradigmático da projeção e no caráter simbólico da perspectiva A Figura é como a fabulação segundo Bergson tem 31 Xavier de Langlais La technique de Ia peinture à lhuile Ed Flammarion E Goethe Traité des couleurs Ed Tríades 902909 248 uma origem religiosa Mas quando ela se torna estética sua transcendência sensitiva entra numa oposição surda ou aberta com a transcendência suprasensível das religiões No segundo caso não é mais a sensação que se realiza no material é antes o material que entra na sensação Certamente a sensação não existe mais fora dessa entrada e o plano de composição técnica não mais tem autonomia a não ser no primeiro caso não vale jamais por si mesmo Mas diríamos agora que ele sobe no plano de composição estética e lhe dá uma espessura própria como diz Damisch independente de qualquer perspectiva e profundidade É o momento em que as figuras da arte se liberam de uma transcendência aparente ou de um modelo paradigmático e confessam seu ateísmo inocente seu paganismo E sem dúvida entre estes dois casos estes dois estados da sensação estes dois pólos da técnica as transições as combinações e as coexistências se fazem constantemente por exemplo o trabalho em plena massa de Ticiano ou de Rubens são pólos abstratos ao invés de movimentos realmente distintos Resta que a pintura moderna mesmo quando se contenta com óleo e solvente se volta cada vez mais na direção do segundo pólo e faz subir e introduzir o material na espessura do plano de composição estética É por isso que é tão falso definir a sensação na pintura moderna pela admissão de uma plenitude visual pura o erro vem talvez de que a espessura não precisa ser larga ou profunda Pôdese dizer de Mondrian que ele era um pintor da espessura e quando Seurat define a pintura como a arte de cavar uma superfície bastalhe apoiarse sobre os vazios e os plenos do papel Canson É uma pintura que não mais tem fundo porque o baixo emerge a superfície é esburacável ou o plano de composição ganha espessura enquanto o material sobe independentemente de uma profundidade ou perspectiva independentemente das sombras e mesmo da ordem 249 cromática da cor o colorista arbitrário Não mais se recobre fazse subir acumular empilhar atravessar sublevar dobrar É uma promoção do solo e a escultura pode tornarse plana já que o plano se estratifica Não mais se pinta sobre mas sob A arte informal levou muito longe estas novas potências da textura essa elevação do solo com Dubuffet e também o expressionismo abstrato a arte minimalista procedendo por impregnações fibras folheados ou usando a tarlatana ou o tule de modo que o pintor possa pintar atrás de seu quadro num estado de cegueira32 Com Hantai as dobragens escondem à vista do pintor o que entregam ao olho do espectador uma vez desdobradas De qualquer maneira e em todos estes çstados a pintura é pensamento a visão existe pelo pensamento e o olho pensa mais ainda do que escuta Hubert Damisch fez da espessura do plano um verdadeiro conceito mostrando que o trançado poderia bem preencher para a pintura futura função análoga àquela que foi a da perspectiva O que não é próprio da pintura já que Damisch reencontra a mesma distinção no nível do plano arquitetural quando Scarpa por exemplo rejeita o movimento da projeção e os mecanismos da perspectiva para inscrever os volumes na espessura do próprio plano33 E da literatura à música uma espessura material se afirma que 32 Cf Christian Bonnefoi interviewé et commenté par YvesAlain Bois Macula 56 33 Damisch Fenêtre jaune cadmium ou les dessous de Ia peinture Ed du Seuil pp 275305 e p 80 a espessura do plano em Pollock Da misch é o autor que mais insistiu sobre a relação artepensamento pin tura pensamento tal como notadamente Dubuffet procurava instaurála Mallarmé fazia da espessura do livro uma dimensão distinta da pro fundidade cf Jacques Schérer Le livre de Mallarmé Gallimard p 55 tema que Boulez retoma por sua vez para a música Points de repère p 161 250 não se deixa reduzir a nenhuma profundidade formal É um traço característico da literatura moderna quando as palavras e a sintaxe sobem no plano de composição e o cavam em lugar de colocálo em perspectiva E a música quando renuncia à projeção como às perspectivas que impõem a altura o temperamento e o cromatismo para dar ao plano sonoro uma espessura singular da qual testemunham elementos muito diferentes a evolução dos estudos para piano que deixam de ser somente técnicas para tornarse estudos de composição com a extensão que lhes dá Debussy a importância decisiva que toma a orquestração em Berlioz a subida dos timbres em Stravinski e em Boulez a proliferação dos afectos de percussão com os metais as peles e as madeiras e sua ligação com os instrumentos de sopro para constituir blocos inseparáveis do material Varèse a redefinição do percepto em função do ruído do som bruto e complexo Cage não apenas o alargamento do cromatismo a outros componentes diferentes da altura mas a tendência a uma aparição nãocromática do som num continuum infinito música eletrônica ou eletro acústica Só há um plano único no sentido em que a arte não comporta outro plano diferente do da composição estética o plano técnico com efeito é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição estética É sob esta condição que a matéria se torna expressiva o composto de sensações se realiza no material ou o material entra no composto mas sempre de modo a se situar sobre um plano de composição propriamente estético Há muitos problemas técnicos em arte e a ciência pode intervir em sua solução mas eles só se colocam em função de problemas de composição estética que concernem aos compostos de sensações e ao plano ao qual remetem necessariamente com seus materiais Toda sensação é uma questão mesmo se só o silêncio responde a ela O problema na arte consiste sempre em en 251 contrar que monumento erguer sobre tal plano ou que plano estender sob tal monumento e os dois ao mesmo tempo assim em Klee o movimento no limite da terra fértil e o monumento em terra fértil Não há tantos planos diferentes quantos universos autores ou mesmo obras De fato os universos de uma arte à outra bem como numa mesma arte podem derivar uns dos outros ou então entrar em relações de captura e formar constelações de universo independentemente de qualquer derivação mas também dispersarse em nebulosas ou sistemas estelares diferentes sob distâncias qualitativas que não são mais de espaço e de tempo É sobre suas linhas de fuga que os universos se encadeiam ou se separam de modo que o plano pode ser único ao mesmo tempo que os universos são múltiplos irredutíveis Tudo se passa inclusive a técnica entre os compostos de sensações e o plano de composição estética Ora este não vem antes não sendo voluntário ou preconcebido não tendo nada a ver com um programa mas também não vem depois embora sua tomada de consciência se faça progressivamente e surja freqüentemente depois A cidade não vem depois da casa nem o cosmos depois do território O universo não vem depois da figura e a figura é aptidão de universo Chegamos da sensação composta ao plano de composição mas para reconhecer sua estrita coexistência ou sua complementariedade um só progredindo através do outro A sensação composta feita de perceptos e de afectos desterritorializa o sistema da opinião que reunia as percepções e afecções dominantes num meio natural histórico e social Mas a sensação composta se reterritorializa sobre o plano de composição porque ela ergue suas casas sobre ele porque ela se apresenta nele em molduras encaixadas ou extensões articuladas que limitam seus componentes paisagens tornadas puros perceptos personagens tornados puros afectos E ao mesmo tempo o plano de composição arrasta a 252 sensação numa desterritorialização superior fazendoa passar por uma espécie de desenquadramento que a abre e a fende sobre um cosmos infinito Como em Pessoa uma sensação sobre o plano não ocupa um lugar sem estendêlo distendêlo pela Terra inteira e liberar todas as sensações que ela contém abrir ou fender igualar o infinito Talvez seja próprio da arte passar pelo finito para reencontrar restituir o infinito O que define o pensamento as três grandes formas do pensamento a arte a ciência e a filosofia é sempre enfrentar o caos traçar um plano esboçar um plano sobre o caos Mas a filosofia quer salvar o infinito dandolhe consistência ela traça um plano de imanência que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes sob a ação de personagens conceituais A ciência ao contrário renuncia ao infinito para ganhar a referência ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas que define sempre estados de coisas funções ou proposições referenciais sob a ação de observadores parciais A arte quer criar um finito que restitua o infinito traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas sob a ação de figuras estéticas Damisch analisou precisamente o quadro de Klee Igual infinito Certamente não é uma alegoria mas o gesto de pintar que se apresenta como pintura Parecenos que as manchas castanhas que dançam na margem e atravessam a tela são a passagem infinita do caos o formigar de pontos sobre a tela dividida por bastonetes é a sensação composta finita mas se abre sobre o plano de composição que nos devolve o infinito Isso não implica contudo que a arte seja como uma síntese da ciência e da filosofia da via finita e da via infinita As três vias são específicas tão diretas umas como as outras e se distinguem pela natureza do plano e daquilo que o ocupa Pensar é pensar por conceitos ou então por funções ou ainda por sensações 253 e um desses pensamentos não é melhor que um outro ou mais plenamente mais completamente mais sinteticamente pensado As molduras da arte não são coordenadas científicas como as sensações não são conceitos ou o inverso As duas tentativas recentes para aproximar a arte da filosofia são a arte abstrata e a arte conceituai mas não substituem o conceito pela sensação criam sensações e não conceitos A arte abstrata procura somente refinar a sensação desmaterializála estendendo um plano de composição arquitetônico em que ela se tornaria um puro ser espiritual uma matéria radiante pensante e pensada não mais uma sensação do mar ou da árvore mas uma sensação do conceito de mar ou do conceito de árvore A arte conceituai procura uma desmaterialização oposta por generalização instaurando um plano de composição suficientemente neutralizado o catálogo que reúne obras não mostradas o solo recoberto por seu próprio mapa os espaços abandonados sem arquitetura o plano flatbed para que tudo tome aí um valor de sensação reprodutível até o infinito as coisas as imagens ou clichês as proposições uma coisa sua fotografia na mesma escala e no mesmo lugar sua definição tirada do dicionário Não é certo porém que se atinja assim neste último caso a sensação nem o conceito porque o plano de composição tende a se fazer informativo e a sensação depende da simples opinião de um espectador ao qual cabe eventualmente materializar ou não isto é decidir se é arte ou não Tanto esforço para reencontrar no infinito as percepções e afecções ordinárias e conduzir o conceito a uma doxa do corpo social ou da grande metrópole americana Os três pensamentos se cruzam se entrelaçam mas sem síntese nem identificação A filosofia faz surgir acontecimentos com seus conceitos a arte ergue monumentos com suas sensações a ciência constrói estados de coisas com suas fun 254 ções Um rico tecido de correspondências pode estabelecerse entre os planos Mas a rede tem seus pontos culminantes onde a sensação se torna ela própria sensação de conceito ou de função o conceito conceito de função ou de sensação a função função de sensação ou de conceito E um dos elementos não aparece sem que o outro possa estar ainda por vir ainda indeterminado ou desconhecido Cada elemento criado sobre um plano apela a outros elementos heterogêneos que restam por criar sobre outros planos o pensamento como heterogênese É verdade que estes pontos culminantes comportam dois perigos extremos ou reconduzirnos à opinião da qual queríamos sair ou nos precipitar no caos que queríamos enfrentar 255 Conclusão Do Caos ao Cérebro Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos Nada é mais doloroso mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo idéias que fogem que desaparecem apenas esboçadas já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras que também não dominamos São variabilidades infinitas cuja desaparição e aparição coincidem São velocidades infinitas que se confundem com a imobilidade do nada incolor e silencioso que percorrem sem natureza nem pensamento É o instante que não sabemos se é longo demais ou curto demais para o tempo Recebemos chicotadas que latem como artérias Perdemos sem cessar nossas idéias E por isso que queremos tanto agarrarmonos a opiniões prontas Pedimos somente que nossas idéias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes e a associação de idéias jamais teve outro sentido fornecernos regras protetoras semelhança contigüidade causalidade que nos permitem colocar um pouco de ordem nas idéias passar de uma a outra segundo uma ordem do espaço e do tempo impedindo nossa fantasia o delírio a loucura de percorrer o universo no instante para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo Mas não haveria nem um pouco de ordem nas idéias se não houvesse também nas coisas ou estados de coisas como um anticaos objetivo Se o cinábrio fosse ora vermelho ora preto ora leve ora pesado minha imaginação não encontraria a ocasião para receber no pensamento o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha1 E enfim para que haja acordo entre coisas e pensamento é preciso que a sensação se reproduza como a garantia ou o testemunho de seu acordo a sensação de pesado cada vez que tomamos o cinábrio na mão a de vermelho cada vez que o vemos com nossos ór 1 Kant Crítica da Razão Fura Analítica Da síntese da reprodução na imaginação 259 gãos do corpo que não percebem o presente sem lhe impor uma conformidade com o passado É tudo isso que pedimos para formar uma opinião como uma espécie de guardasol que nos protege do caos Nossas opiniões são feitas de tudo isso Mas a arte a ciência a filosofia exigem mais traçam planos sobre o caos Essas três disciplinas não são como as religiões que invocam dinastias de deuses ou a epifania de um deus único para pintar sobre o guardasol um firmamento como as figuras de uma Urdoxa de onde derivariam nossas opiniões A filosofia a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e que mergulhemos no caos Só o venceremos a este preço Atravessei três vezes o Aqueronte como vencedor O filósofo o cientista o artista parecem retornar do país dos mortos O que o filósofo traz do caos são variações que permanecem infinitas mas tornadas inseparáveis sobre superfícies ou em volumes absolutos que traçam um plano de imanência secante não mais são associações de idéias distintas mas re encadeamentos por zona de indistinção num conceito O cientista traz do caos variáveis tornadas independentes por desaceleração isto é por eliminação de outras variabilidades quaisquer suscetíveis de interferir de modo que as variáveis retidas entram em relações determináveis numa função não mais são liames de propriedades nas coisas mas coordenadas finitas sobre um plano secante de referência que vai das probabilidades locais a uma cosmologia global O artista traz do caos variedades que não constituem mais uma reprodução do sensível no órgão mas erigem um ser do sensível um ser da sensação sobre um plano de composição anorgânica capaz de restituir o infinito A luta com o caos que Cézanne e Klee mostraram em ato na pintura no coração da pintura se encontra de uma outra maneira na ciência na filosofia tratase sempre de vencer o caos por um plano secante que o atravessa O pintor passa por uma ca 260 tástrofe ou por um incêndio e deixa sobre a tela o traço dessa passagem como do salto que o conduz do caos à composição2 As próprias equações matemáticas não desfrutam de uma tranqüila certeza que seria como a sanção de uma opinião científica dominante mas saem de um abismo que faz que o matemático salte de pés juntos sobre os cálculos que preveja que não pode efetuálos e não chega à verdade sem se chocar de um lado e do outro3 E o pensamento filosófico não reúne seus conceitos na amizade sem ser ainda atravessado por uma fissura que os reconduz ao ódio ou os dispersa no caos coexistente onde é preciso retomálos pesquisálos dar um salto É como se se jogasse uma rede mas o pescador arriscase sempre a ser arrastado e de se encontrar em pleno mar quando acreditava chegar ao porto As três disciplinas procedem por crises ou abalos de maneira diferente e é a sucessão que permite falar de progresso em cada caso Diríamos que a luta contra o caos implica em afinidade com o inimigo porque uma outra luta se desenvolve e toma mais importância contra a opinião que no entanto pretendia nos proteger do próprio caos Num texto violentamente poético Lawrence descreve o que a poesia faz os homens não deixam de fabricar um guardasol que os abriga por baixo do qual traçam um firmamento e escrevem suas convenções suas opiniões mas o poeta o artista abre uma fenda no guardasol rasga até o firmamento para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa luz brusca uma visão que aparece através da fenda primavera de Wordsworth ou maçã 2 Sobre Cézanne e o caos cf Gasquet in Conversations avec Cézanne sobre Klee e o caos cf a note sur le point gris in Théorie de lart moderne Ed Gonthier E as análises de Henri Maldiney Regard Parole Espace Ed LAge dhomme p 150151 183185 3 Galois in Dalmas Evariste Galois p 121 130 261 de Cézanne silhueta de Macbeth ou de Ahab Então segue a massa dos imitadores que remendam o guardasol com uma peça que parece vagamente com a visão e a massa dos glosadores que preenchem a fenda com opiniões comunicação Será preciso sempre outros artistas para fazer outras fendas operar as necessárias destruições talvez cada vez maiores e restituir assim a seus predecessores a incomunicável novidade que não mais se podia ver Significa dizer que o artista se debate menos contra o caos que ele invoca em todos os seus votos de uma certa maneira que contra os clichês da opinião4 O pintor não pinta sobre uma tela virgem nem o escritor escreve sobre uma página branca mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes preestabelecidos que é preciso de início apagar limpar laminar mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar saída do caos que nos traga a visão Quando Fontana corta a tela colorida com um traço de navalha não é a cor que ele fende dessa maneira pelo contrário ele nos faz ver o fundo de cor pura através da fenda A arte luta efetivamente com o caos mas para fazer surgir nela uma visão que o ilumina por um instante uma Sensação Mesmo as casas é do caos que saem as casas embriagadas de Soutine chocandose de um lado e do outro impedindose reciprocamente de nele recair e a casa de Monet surge como uma fenda através da qual o caos se torna a visão das rosas Mesmo o encarnado mais delicado se abre para o caos como a carne sobre o esfolado5 Uma obra de caos não é certamente melhor do que uma obra de opinião a arte não é mais feita de caos do que de opinião mas se ela se bate 4 Lawrence Le chãos en poésie in Lawrence Cahiers de lHerne p 189191 5 DidiHuberman La peinture incarnée p 120123 sobre a carne e o caos 262 contra o caos é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião para melhor vencêla com armas provadas É mesmo porque o quadro está desde início recoberto por clichês que o pintor deve enfrentar o caos e apressar as destruições para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião qualquer clichê por quanto tempo A arte não é o caos mas uma composição do caos que dá a visão ou sensação de modo que constitui um caosmos como diz Joyce um caos composto não previsto nem preconcebido A arte transforma a variabilidade caótica em variedade caóide por exemplo o flamejamento cinza negro e verde de El Greco o flamejamento de ouro de Turner ou o flamejamento vermelho de Staél A arte luta com o caos mas para tornálo sensível mesmo através do personagem mais encantador a paisagem mais encantada Watteau Um movimento semelhante sinuoso e reptiliano anima talvez a ciência Uma luta contra o caos parece pertencerlhe por essência quando faz entrar a variabilidade desacelerada sob constantes ou limites quando a reconduz dessa maneira a centros de equilíbrio quando a submete a uma seleção que só retém um pequeno número de variáveis independentes nos eixos de coordenadas quando instaura entre essas variáveis relações cujo estado futuro pode ser determinado a partir do presente cálculo determinista ou ao contrário quando faz intervir tantas variáveis ao mesmo tempo que o estado de coisas é apenas estatístico cálculo de probabilidades Podese falar nesse sentido de uma opinião propriamente científica conquistada sobre o caos como de uma comunicação definida ora por informações iniciais ora por informações de grande escala e que vai no mais das vezes do elementar ao composto seja do presente ao futuro seja do molecular ao molar Mas ainda aí a ciência não pode impedirse de experimentar uma profunda atração pelo caos que combate Se a desaceleração é a fina borda que nos 263 separa do caos oceânico a ciência se aproxima tanto quanto ela pode das vagas mais próximas estabelecendo relações que se conservam com a aparição e a desaparição das variáveis cálculo diferencial a diferença se faz cada vez menor entre o estado caótico em que a aparição e a desaparição de uma variabilidade se confundem e o estado semicaótico que apresenta uma relação como limite das variáveis que aparecem ou desaparecem Como diz Michel Serres a propósito de Leibniz haveria dois infra conscientes o mais profundo seria estruturado como um conjunto qualquer pura multiplicidade ou possibilidade em geral mistura aleatória de signos o menos profundo seria recoberto de esquemas combinatórios desta multiplicidade6 Poderíamos conceber uma série de coordenadas ou de espaços de fases como uma sucessão de crivos dos quais o precedente sempre seria relativamente um estado caótico e o seguinte um estado caóide de modo que passaríamos por limiares caóticos ao invés de ir do elementar ao composto A opinião nos apresenta uma ciência que sonharia com a unidade com unificar suas leis e hoje ainda procuraria uma comunidade das quatro forças Mais obstinado porém o sonho de captar um pedaço de caos mesmo se as mais diversas forças nele se agitam A ciência daria toda a unidade racional à qual aspira por um pedacinho de caos que pudesse explorar A arte capta um pedaço de caos numa moldura para formar um caos composto que se torna sensível ou do qual retira uma sensação caóide enquanto variedade mas a ciência o apreende num sistema de coordenadas e forma um caos referido que se torna Natureza e com o qual produz uma função aleatória e variáveis caóides É desse modo que um dos aspectos mais importantes da física matemática moder 6 Serres Le système de Leibniz PUF I p 111 e sobre a sucessão dos crivos p 120123 264 na aparece em transições na direção do caos sob a ação de atratores estranhos ou caóticos duas trajetórias vizinhas num sistema determinado de coordenadas não permanecem vizinhas e divergem de maneira exponencial antes de se aproximarem por operações de estiramento e de redobramento que se repetem e recortam o caos7 Se os atratores de equilíbrio pontos fixos ciclos limites toros exprimem bem a luta da ciência com o caos os atratores estranhos desmascaram sua profunda atração pelo caos assim como a constituição de um caosmos interior à ciência moderna tudo coisas que se revelavam de uma maneira ou de outra em períodos precedentes notadamente na fascinação pelas turbulências Encontramos pois uma conclusão análoga àquela a que nos conduzia a arte a luta com o caos só é o instrumento de uma luta mais profunda contra a opinião pois é da opinião que vem a desgraça dos homens A ciência voltase contra a opinião que lhe empresta um gosto religioso de unidade ou de unificação Mas assim ela se volta em si mesma contra a opinião propriamente científica enquanto Urdoxa que consiste ora na previsão determinista o Deus de Laplace ora na avaliação probabilística o demônio de Maxwell desligandose das informações iniciais e das informações de grande escala a ciência substitui a comunicação pelas condições de criatividade definidas pelos efeitos singulares de flutuações mínimas O que é criação são as variedades estéticas ou as variáveis científicas que surgem sobre um plano capaz de recortar a variabilidade caótica Quanto às pseudociências que pretendem considerar os fenômenos de opinião os cérebros artificiais de que se servem tomam como modelos processos probabilísticos atratores estáveis toda uma lógica da 7 Sobre os atratores estranhos as variáveis independentes e as rotas na direção do caos Prigogine e Stengers Entre le temps et 1éternité Ed Fayard cap IV E Gleick La théorie du chãos Ed Albin Michel 265 recognição das formas mas devem atingir estados caóides e atratores caóticos para compreender ao mesmo tempo a luta do pensamento contra a opinião e a degenerescência do pensamento na própria opinião uma das vias de evolução dos computadores vai no sentido de uma aceitação de um sistema caótico ou caotizante É o que confirma o terceiro caso não mais a variedade sensível nem a variável funcional mas a variação conceituai tal como aparece na filosofia A filosofia também luta com o caos como abismo indiferenciado ou oceano da dissemelhança Não concluiremos disso que a filosofia se coloca do lado da opinião nem que a opinião passa a ter lugar na filosofia Um conceito não é um conjunto de idéias associadas como uma opinião Nem tampouco uma ordem de razões uma série de razões ordenadas que poderiam a rigor constituir uma espécie de Urdoxa racionalizada Para atingir o conceito não basta mesmo que os fenômenos se submetam a princípios análogos àqueles que associam as idéias ou as coisas aos princípios que ordenam as razões Como diz Michaux o que basta para as idéias correntes não basta para as idéias vitais as que se deve criar As idéias só são associáveis como imagens e ordenáveis como abstrações para atingir o conceito é preciso que ultrapassemos umas e outras e que atinjamos o mais rápido possível objetos mentais determináveis como seres reais É já o que mostravam Espinosa ou Fichte devemos nos servir de ficções e de abstrações mas somente na medida necessária para aceder a um plano onde caminharíamos de ser real em ser real e procederíamos por construção de conceitos8 Vimos como este resultado podia ser obtido na medida em que variações se tornavam inseparáveis segundo zonas de vizinhança ou de 8 Cf Guéroult Uévolution et Ia structure de Ia Doctrine de Ia science chez Fichte Ed Les Belles Lettres I p 174 266 indiscernibilidade elas deixam então de ser associáveis segundo os caprichos da imaginação ou discerníveis e ordenáveis segundo as exigências da razão para formar verdadeiros blocos conceituais Um conceito é um conjunto de variações inseparáveis que se produz ou se constrói sobre um plano de imanência na medida em que este recorta a variabilidade caótica e lhe dá consistência realidade Um conceito é pois um estado caóide por excelência remete a um caos tornado consistente tornado Pensamento caosmos mental E que seria pensar se não se comparasse sem cessar com o caos A Razão só nos oferece seu verdadeiro rosto quando ruge na sua cratera Mesmo o cogito só é uma opinião no máximo uma Urdoxa enquanto não se extrai dele as variações inseparáveis que dele fazem um conceito enquanto se renuncia a encontrar nele um guardasol ou um abrigo quanto se deixa de supor uma imanência que se faria por ele mesmo ao contrário é preciso colocálo sobre um plano de imanência ao qual pertence e que o conduz ao pleno mar Numa palavra o caos tem três filhas segundo o plano que o recorta são as Caóides a arte a ciência e a filosofia como formas do pensamento ou da criação Chamamse de caóides as realidades produzidas em planos que recortam o caos A junção não a unidade dos três planos é o cérebro Certamente quando o cérebro é considerado como uma função determinada aparece ao mesmo tempo como um conjunto complexo de conexões horizontais e de integrações verticais reagindo umas sobre as outras como testemunham os mapas cerebrais Então a questão é dupla as conexões são preestabelecidas guiadas como por trilhos ou fazemse e desfazemse em campos de forças E os processos de integração são centros hierárquicos localizados ou antes formas Gestalten que atingem suas condições de estabilidade num campo do qual depende a posição do próprio centro A importância da Gestalttheorie deste ponto de vista concerne 267 tanto à teoria do cérebro quanto à concepção da percepção já que ela se opõe diretamente ao estatuto do córtex tal como aparecia do ponto de vista dos reflexos condicionados Mas quaisquer que sejam os pontos de vista considerados não se tem dificuldade em mostrar que caminhos inteiramente prontos ou em vias de se fazer centros mecânicos ou dinâmicos encontram dificuldades semelhantes Caminhos inteiramente prontos que se segue aos poucos implicam num traçado prévio mas trajetos que se constituem num campo de forças procedem por resoluções de tensão agindo também gradativamente por exemplo a tensão de reaproximação entre a fóvea e o ponto luminoso projetado sobre a retina tendo esta uma estrutura análoga a uma área cortical os dois esquemas supõem um plano não um fim ou um programa mas um sobrevôo do campo inteiro É isso que a Gestalttheorie não explica do mesmo modo que o mecanicismo não explica a prémontagem Não é de se surpreender que o cérebro tratado como objeto constituído da ciência só possa ser um órgão de formação e de comunicação da opinião é que as conexões graduais e as integrações centradas permanecem sob o modelo estreito da recognição gnosias e praxias é um cubo é um lápis e que a biologia do cérebro se alinha aqui com os mesmos postulados da lógica mais obstinada As opiniões são formas pregnantes como as bolhas de sabão segundo a Gestalt levando em conta os meios os interesses as crenças e os obstáculos Parece então difícil tratar a filosofia a arte e mesmo a ciência como objetos mentais simples conjuntos de neurônios no cérebro objetivado já que o modelo derrisório da recognição os encerra na doxa Se os objetos mentais da filosofia da arte e da ciência isto é as idéias vitais tivessem um lugar seria no mais profundo das fendas sinápticas nos hiatos nos intervalos e nos entretempos de um cérebro inobjetivável onde penetrar para procurá 268 los seria criar Seria um pouco como no ajuste de uma tela de televisão cujas intensidades fariam surgir o que escapa do poder de definição objetivo9 Significa dizer que o pensamento mesmo sob a forma que toma ativamente na ciência não depende de um cérebro feito de conexões e de integrações orgânicas segundo a fenomenologia dependeria de relações do homem com o mundo com as quais o cérebro concorda necessariamente porque delas deriva como as excitações derivam do mundo e das reações do homem inclusive em suas incertezas e suas falências O homem pensa e não o cérebro mas esta reação da fenomenologia que ultrapassa o cérebro na direção de um Ser no mundo através de uma dupla crítica do mecanicismo e do dinamismo não nos faz absolutamente sair ainda da esfera das opiniões conduznos somente a uma Urdoxa afirmada como opinião originária ou sentido dos sentidos10 A viragem não estaria em outra parte lá onde o cérebro é sujeito se torna sujeito É o cérebro que pensa e não o homem o homem sendo apenas uma cristalização cerebral Podese falar do cérebro como Cézanne da paisagem o homem ausente mas inteiro no cérebro A filosofia a arte a ciência não são os objetos mentais de um cérebro objetivado mas os três aspectos sob os quais o cérebro se torna sujeito Pensamentocérebro os três planos as jangadas com as quais ele mergulha no caos e o enfrenta Quais são os caráteres deste cérebro que não mais se define pelas conexões e integrações secundárias Não é um cérebro por trás do cérebro mas a princípio um estado de sobrevôo sem distância ao rés do chão auto sobrevôo do qual não escapa nenhum abismo nenhuma dobra nem hiato É uma forma verdadeira primária como a definia Ruyer não uma Gestalt nem uma for 9 JeanClet Martin Variation a sair 10 Erwin Straus Du sens des sens Ed Millon Parte III 269 ma percebida mas uma forma em si que não remete a nenhum ponto de vista exterior como a retina ou a área estriada do córtex não remete a uma outra uma forma consistente absoluta que se sobrevoa independentemente de qualquer dimensão suplementar que não apela pois a nenhuma transcendência que só tem um único lado qualquer que seja o número de suas dimensões que permanece copresente a todas as suas determinações sem proximidade ou distanciamento que as percorre numa velocidade infinita sem velocidadelimite e que faz delas variações inseparáveis às quais confere uma equipotencialidade sem confusão11 Vimos que tal era o estatuto do conceito como acontecimento puro ou realidade do virtual E sem dúvida os conceitos não se reduzem a um único e mesmo cérebro já que é cada um deles que constitui um domínio de sobrevôo e as passagens de um conceito a um outro permanecem irredutíveis enquanto um novo conceito não tornar necessário por sua vez sua copresença ou a equipotencialidade das determinações Não diremos também que todo conceito é um cérebro Mas o cérebro sob este primeiro aspecto da forma absoluta aparece bem como a faculdade dos conceitos isto é como a faculdade da sua criação ao mesmo tempo que estende o plano de imanência sobre o qual os conceitos se alocam se deslocam mudam de ordem e de relações se renovam e não param de criarse O cérebro é o espírito mesmo É ao mesmo tempo que o cérebro se torna sujeito ou antes superjecto segundo o termo de White head que o conceito se torna o objeto como criado o acontecimento ou a criação mesma e a filosofia o plano de imanência que carrega os conceitos e que traça o cérebro Assim os movimentos cerebrais engendram personagens conceituais 11 Ruyer Néofinalisme PUF cap V1IX Em toda sua obra Ruyer conduziu uma dupla crítica do mecanicismo e do dinamismo Gestalt diferente daquela da fenomenologia 270 É o cérebro que diz Eu mas Eu é um outro Não é o mesmo cérebro que o das conexões e integrações segundas embora não haja transcendência E este Eu não é apenas o eu concebo do cérebro como filosofia é também o eu sinto do cérebro como arte A sensação não é menos cérebro que o conceito Se consideramos as conexões nervosas excitaçãoreação e as integrações cerebrais percepçãoação não nos perguntaremos em que momento do caminho nem em que nível aparece a sensação pois ela é suposta e se mantém na retaguarda A retaguarda não é o contrário do sobrevôo mas um correlato A sensação é a excitação mesma não enquanto se prolonga gradativamente e passa à reação mas enquanto se conserva ou conserva suas vibrações A sensação contrai as vibrações do excitante sobre uma superfície nervosa ou num volume cerebral a precedente não desapareceu ainda quando a seguinte aparece É sua maneira de responder ao caos A sensação vibra ela mesma porque contrai vibrações Conservase a si mesma porque conserva vibrações ela é Monumento Ela ressoa porque faz res soar seus harmônicos A sensação é a vibração contraída tornada qualidade variedade É por isso que o cérebrosujeito aqui é dito alma ou força já que só a alma conserva contraindo o que a matéria dissipa ou irradia faz avançar reflete refracta ou converte Assim procuramos em vão a sensação enquanto nos limitamos às reações e às excitações que elas prolongam às ações e às percepções que elas refletem é que a alma ou antes a força como dizia Leibniz nada faz ou não age mas é apenas presente conserva a contração não é uma ação mas uma paixão pura uma contemplação que conserva o precedente no seguinte12 A sensação está pois sobre um outro plano diferente daquele dos meca 12 Hume no Tratado da Natureza Humana define a imaginação por esta contemplaçãocontração passiva Parte III seção 14 271 nismos dos dinamismos e das finalidades é um plano de composição em que a sensação se forma contraindo o que a compõe e compondose com outras sensações que ela contrai por sua vez A sensação é contemplação pura pois é pela contemplação que se contrai contemplandose a si mesma à medida que se contempla os elementos de que se procede Contemplar é criar mistério da criação passiva sensação A sensação preenche o plano de composição e preenche a si mesma preenchendose com aquilo que ela contempla ela é enjoyment e selfenjoyntent É um sujeito ou antes um injecto Plotino podia definir todas as coisas como contemplações não apenas os homens e os animais mas as plantas a terra e as rochas Não são Idéias que contemplamos pelo conceito mas os elementos da matéria por sensação A planta contempla contraindo os elementos dos quais ela procede a luz o carbono e os sais e se preenche a si mesma com cores e odores que qualificam sempre sua variedade sua composição é sensação em si13 Como se as flores sentissem a si mesmas sentindo o que as compõe tentativas de visão ou de olfato primeiros antes de serem percebidas ou mesmo sentidas por um agente nervoso e cerebrado As rochas e as plantas certamente não têm sistema nervoso Mas se as conexões nervosas e as integrações cerebrais supõem uma forçacérebro como faculdade de sentir coexistente aos tecidos é verossímil supor também uma faculdade de sentir que coexiste com os tecidos embrionários e que se apresenta na Espécie como cérebro coletivo ou com os tecidos vegetais nas pequenas espécies Não só as afinidades químicas como as causalidades físicas remetem elas 13 O grande texto de Plotino sobre as contemplações está no início das Ennéades III 8 De Hume a Butler e a Whitehead os empiristas retomarão o tema inclinandoo na direção da matéria donde seu neo platonismo 272 mesmas a forças primárias capazes de conservar suas longas cadeias contraindo os elementos e fazendoos ressoar a menor causalidade permanece ininteligível sem esta instância subjetiva Nem todo organismo é cerebrado e nem toda vida é orgânica mas há em toda a parte forças que constituem microcérebros ou uma vida inorgânica das coisas Se não é indispensável fazer a esplêndida hipótese de um sistema nervoso da Terra como Fechner ou Conan Doyle é porque a força de contrair ou de conservar isto é de sentir só se apresenta como um cérebro global em relação a tais elementos diretamente contraídos e a tal modo de contração que diferem segundo os domínios e constituem precisamente variedades irredutíveis Mas no final das contas são os mesmos elementos últimos e a mesma força de reserva que constituem um só plano de composição suportando as variedades do Universo O vitalismo teve sempre duas interpretações possíveis a de uma Idéia que age mas que não é que age portanto somente do ponto de vista de um conhecimento cerebral exterior de Kant a Claude Bernard ou a de uma força que é mas que não age que é portanto um puro Sentir interno de Leibniz a Ruyer Se a segunda interpretação parece imporse é porque a contração que conserva está sempre desligada da relação à ação ou mesmo ao movimento e se apresenta como uma pura contemplação sem conhecimento Verificamos isso mesmo no domínio cerebral por excelência da aprendizagem ou da formação de hábitos embora tudo pareça passarse em conexões e integrações progressivas ativas de uma tentativa a outra é preciso como mostrava Hume que as tentativas ou os casos as ocorrências se contraiam numa imaginação contemplante enquanto permanecem distintos tanto com relação às ações quanto com relação ao conhecimento e mesmo quando se é um rato é por contemplação que se contrai um hábito É preciso ainda descobrir sob o ruído das ações essas sen 273 sações criadoras interiores ou essas contemplações silenciosas que testemunham a favor de um cérebro Estes dois primeiros aspectos ou folhas do cérebrosujeito a sensação como o conceito são muito frágeis Não são somente desconexões e desintegrações objetivas mas uma imensa fadiga que faz com que as sensações tornadas pastosas deixem escapar os elementos e as vibrações que elas têm cada vez mais dificuldade em contrair A velhice é esta fadiga ela mesma então ou é uma queda no caos mental fora do plano de composição ou uma recaída sobre opiniões inteiramente acabadas clichês que mostram que um artista nada mais tem a dizer não mais sendo capaz de criar sensações novas nãomais sabendo como conservar contemplar contrair O caso da filosofia é um pouco diferente embora dependa de uma fadiga semelhante desta vez incapaz de manterse sobre o plano de imanência o pensamento cansado não mais pode suportar as velocidades infinitas do terceiro gênero que medem à maneira de um turbilhão a co presença do conceito a todos seus componentes intensivos ao mesmo tempo consistência é remetido às velocidades relativas que só concernem à sucessão do movimento de um ponto a outro de um componente extensivo a um outro de uma idéia a uma outra e que medem simples associações sem poder reconstituir o conceito E sem dúvida ocorre que estas velocidades relativas são muito grandes a ponto de simularem o absoluto só são porém velocidades variáveis de opinião de discussão ou de réplicas como entre os infatigáveis jovens cuja rapidez de espírito é celebrada mas também entre os velhos cansados que seguem opiniões desaceleradas e entretêm discussões estagnantes falando sozinhos no interior de sua cabeça esvaziada como uma longínqua lembrança de seus antigos conceitos aos quais se agarram ainda para não caírem inteiramente no caos 274 Sem dúvida as causalidades as associações as integrações nos inspiram opiniões e crenças como diz Hume que são maneiras de esperar e de reconhecer algo inclusive objetos mentais vai chover a água vai ferver é o caminho mais curto é a mesma figura sob um outro aspecto Mas embora tais opiniões se insinuem freqüentemente entre as proposições científicas não fazem parte delas e a ciência submete esses processos a operações de uma natureza inteiramente diferente que constituem uma atividade de conhecer e remetem a uma faculdade de conhecimento como terceira folha de um cérebrosujeito não menos criador que os outros dois O conhecimento não é nem uma forma nem uma força mas uma função eu funciono O sujeito apresentase agora como um ejecto porque extrai dos elementos cuja característica principal é a distinção o discernimento limites constantes variáveis funções todos estes functivos ou prospectos que formam os termos da proposição científica As projeções geométricas as substituições e transformações algébricas não consistem em reconhecer algo através das variações mas em distinguir variáveis e constantes ou em discernir progressivamente os termos que tendem na direção de limites sucessivos De modo que quando uma constante é determinada numa operação científica não se trata de contrair casos ou momentos numa mesma contemplação mas de estabelecer uma relação necessária entre fatores que permanecem independentes Os atos fundamentais da faculdade científica de conhecer pareceramnos neste sentido ser os seguintes colocar limites que marcam uma renúncia às velocidades infinitas e traçam um plano de referência determinar variáveis que se organizam em séries tendendo no sentido desses limites coordenar as variáveis independentes de modo a estabelecer entre elas ou seus limites relações necessárias das quais dependem funções distintas o plano de referência sendo uma coordenação em ato 275 determinar as misturas ou estados de coisas que se relacionam com as coordenadas e às quais as funções se referem Não basta dizer que estas operações do conhecimento científico são funções do cérebro as funções são elas mesmas as dobras de um cérebro que traça as coordenadas variáveis de um plano de conhecimento referência e que envia por toda a parte observadores parciais Há ainda uma operação que precisamente mostra a persistência do caos não apenas em torno do plano de referência ou de coordenação mas em desvios de sua superfície variável sempre reposta em jogo São as operações de bifurcação e de individuação se os estados de coisas lhes são submissos é porque são inseparáveis de potenciais que tomam do próprio caos e que não atualizam sem risco de ser destruídos ou submergidos Cabe pois à ciência pôr em evidência o caos no qual mergulha o próprio cérebro enquanto sujeito do conhecimento O cérebro não cessa de constituir limites que determinam funções de variáveis em áreas particularmente extensas com mais razão as relações entre essas variáveis conexões apresentam um caráter incerto e casual não apenas nas sinapses elétricas que indicam um caos estatístico como também nas sinapses químicas que remetem a um caos determinista14 Há menos centros cerebrais que pontos concentrados numa área disseminados numa outra e osciladores moléculas oscilantes que passam de um ponto a um outro Mesmo num modelo linear como o dos reflexos condicionados Erwin Straus mostrava que o essencial era compreender os intermediários os hiatos e os vazios Os paradigmas arborizados do cérebro dão lugar a figuras rizomáticas sistemas acentrados redes de autômatos 14 Burns The Uncertain Nervous System Ed Arnold E Steven Rose Le cerveau conscient Ed Le Seuil p 84 O sistema nervoso é incerto probabilista portanto interessante 276 finitos estados caóides Sem dúvida este caos está escondido pelo reforço das facilitações geradoras de opinião sob a ação dos hábitos ou dos modelos de recognição mas ele se tornará tanto mais sensível se considerarmos ao contrário processos criadores e as bifurcações que implicam E a individuação no estado de coisas cerebral é tanto mais funcional quanto não tem por variáveis as próprias células já que estas não deixam de morrer sem renovarse fazendo do cérebro um conjunto de pequenos mortos que colocam em nós a morte incessante Ela apela para um potencial que se atualiza sem dúvida nas ligações determináveis que decorrem das percepções mas mais ainda no livre efeito que varia segundo a criação dos conceitos das sensações ou das funções mesmas Os três planos são tão irredutíveis quanto seus elementos plano de imanência da filosofia plano de composição da arte plano de referência ou de coordenação da ciência forma do conceito força da sensação função do conhecimento conceitos e personagens conceituais sensações e figuras estéticas funções e observadores parciais Problemas análogos colocamse para cada plano em que sentido e como o plano em cada caso é uno ou múltiplo que unidade que multiplicidade Mas mais importantes nos parecem agora os problemas de interferência entre planos que se juntam no cérebro Um primeiro tipo de interferência aparece quando um filósofo tenta criar o conceito de uma sensação ou de uma função por exemplo um conceito próprio ao espaço riemanniano ou ao número irracional ou então quando um cientista cria funções de sensações como Fechner ou nas teorias da cor ou do som e mesmo funções de conceitos como Lautman mostra para as matemáticas enquanto estas atualizariam conceitos virtuais ou quando um artista cria puras sensações de conceitos ou de funções como vemos nas variedades de arte abstrata ou em Klee A regra 277 em todos estes casos é que a disciplina interferente deve proceder com seus próprios meios Por exemplo acontece que se fala da beleza intrínseca de uma figura geométrica de uma operação ou de uma demonstração mas esta beleza nada tem de estética na medida em que é definida por critérios tomados da ciência tais como proporção simetria dissimetria projeção transformação é o que Kant mostrou com tanta força15 É preciso que a função seja captada numa sensação que lhe dá perceptos e afectos compostos pela arte exclusivamente sobre um plano de criação específica que a arranca de toda referência o cruzamento de duas linhas negras ou as camadas de cor de ângulos retos em Mondrian ou então a aproximação do caos pela sensação de atratores estranhos em Noland ou Shirley Jaffe São portanto interferências extrínsecas porque cada disciplina permanece sobre seu próprio plano e utiliza seus elementos próprios Mas um segundo tipo de interferência é intrínseco quando conceitos e personagens conceituais parecem sair de um plano de imanência que lhes corresponderia para escorregar sobre um outro plano entre as funções e os observadores parciais ou entre as sensações e as figuras estéticas e o mesmo vale para os outros casos Estes deslizamentos são tão sutis como o de Zaratustra na filosofia de Nietzsche ou o de Igitur na poesia de Mallarmé que nos encontramos em planos complexos difíceis de qualificar Os observadores parciais por sua vez introduzem sensibilia na ciência que são às vezes próximas das figuras estéticas sobre um plano misto Há enfim interferências ilocalizáveis É que cada disciplina distinta está à sua maneira em relação com um negativo mesmo a ciência está em relação com uma nãociência que lhe devolve seus efeitos Não se trata de dizer somente 15 Kant Crítica do Juízo 62 278 que a arte deve nos formar nos despertar nos ensinar a sentir nós que não somos artistas e a filosofia ensinarnos a conceber e a ciência a conhecer Tais pedagogias só são possíveis se cada uma das disciplinas por sua conta está numa relação essencial com o Não que a ela concerne O plano da filosofia é préfilosófico enquanto o consideramos nele mesmo independentemente dos conceitos que vêm ocupálo mas a não filosofia encontrase lá onde o plano enfrenta o caos A filosofia precisa de uma nãofilosofia que a compreenda ela precisa de uma compreensão nãofilosófica como a arte precisa da nãoarte e a ciência da nãociência16 Elas não precisam de seu negativo como começo nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer realizandose mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento Ora se os três Não se distinguem ainda pela relação com o plano cerebral não mais se distinguem pela relação com o caos no qual o cérebro mergulha Neste mergulho diríamos que se extrai do caos a sombra do povo por vir tal como a arte o invoca mas também a filosofia a ciência povomassa povomundo povocérebro povocaos Pensamento nãopensante que se esconde nos três como o conceito não conceituai de Klee ou o silêncio interior de Kandinsky É aí que os conceitos as sensações as funções se tornam indecidíveis ao mesmo tempo que a filosofia a arte e a ciência indiscerníveis como se partilhassem a mesma sombra que se estende através de sua natureza diferente e não cessa de acompanhálos 16 François Larurelle propõe uma compreensão da nãofilosofia como real de a ciência para além do objeto de conhecimento Philosophie et nonphilosophie Ed Mardaga Mas não se vê porque este real da ciência não é também nãociência 279 COLEÇÃO TRANS direção de Eric Alliez Para além do malentendido de um pretenso fim da filosofia intervindo no contexto do que se admite chamar até em sua alteridade tecnocientífica a crise da razão contra um certo destino da tarefa crítica que nos incitaria a escolher entre ecletismo e academismo no ponto de estranheza onde a experiência tornada intriga dá acesso a novas figuras do ser e da verdade TRANS quer dizer transversalidade das ciências exatas e anexatas humanas e não humanas transdiscipUnaridade dos problemas Em suma transformação numa prática cujo primeiro conteúdo é que há linguagem e que a linguagem nos conduz a dimensões heterogêneas que não têm nada em comum com o processo da metáfora A um só tempo arqueológica e construtivista em todo caso experimental essa afirmação das indagações voltadas para uma exploração polifônica do real leva a liberar a exigência do conceito da hierarquia das questões admitidas aguçando o trabalho do pensamento sobre as práticas que articulam os campos do saber e do poder Sob a responsabilidade científica do Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares TRANS vem propor ao público brasileiro numerosas traduções incluindo textos inéditos Não por um fascínio pelo Outro mas por uma preocupação que não hesitaríamos em qualificar de política se porventura se verificasse que só se forjam instrumentos para uma outra realidade para uma nova experiência da história e do tempo ao arriscarse no horizonte múltiplo das novas formas de racionalidade Maurice de Gandillac Gêneses da modernidade Pierre Clastres Crônica do índios Guayaki Jacques Rancière Políticas da escrita JeanPierre Faye A razão narrativa Monique DavidMénard A loucura na razão pura Jacques Rancière O desentendimento Éric Alliez Da impossibilidade da fenomenologia Michael Hardt Gilles Deleuze Éric Alliez Deleuze filosofia virtual Pierre Lévy O que é o virtual François Jullien Figuras da imanência Gilles Deleuze Crítica e clínica Stanley Cavell Esta América nova ainda inabordável Richard Shusterman Vivendo a arte André de Muralt A metafísica do fenômeno François Jullien Tratado da eficácia Georges DidiHuberman O que vemos o que nos olha Pierre Lévy Cibercultura Gilles Deleuze Bergsonismo Alain de Libera Pensar na Idade Média Éric Alliez org Colóquio Deleuze Gilles Deleuze e Félix Guattari O que é a filosofia Félix Guattari Caosmose Gilles Deleuze Conversações Barbara Cassin Nicole Loraux Catherine Peschanski Gregos bárbaros estrangeiros Pierre Lévy As tecnologias da inteligência Paul Virilio O espaço crítico Antônio Negri A anomalia selvagem André Parente org Imagemmáquina Bruno Latour jamais fomos modernos Nicole Loraux Invenção de Atenas Éric Alliez A assinatura do mundo Gilles Deleuze e Félix Guattari Mil platôs Vols 12 34 e 5