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SERIE EDUCACAO EM ACAO MARISA LAJOLO DO MUNDO DA LEITURA PARA A LEITURA DO MUNDO EDITOR Fernando Paixao ASSISTENCIA EDITORIAL Mario Videla PREPARACAO DE TEXTO Renato Nicolai EDICAO DE ARTE MOTOB Milton Takeda COORDENACAO GRAFICA Jorge Okura COMPOSICAO Maria Ines Rodrigues PAGINACAO EM VIDEO Eliana Ap Fernandes Santos CAPA Ary Normanha ISBN 85 08 04383 X 1993 Todos os direitos reservados Editora Atica SA Rua Barao de Iguape 110 CEP 01507900 Tel PABX 011 2789722 Caixa Postal 8635 End Telegrafico Bonlivro Fax 01 277 4116 Sao Paulo SP Cecilia Canalle Regina Zilberman e Pedro Bandeira em exercicio de amizade leram generosamente os originais Pela leitura e pelos palpites a autora agradece assumindo no entanto integral responsabilidade pela teimosia que impediu completo aproveitamento das sugestoes feitas SUMARIO Introducao 7 1 NO MUNDO DA LEITURA A leitura literaria na escola 11 Literatura infantojuvenil fada madrinha de um curriculo em crise ou genero descartavel para um leitor em transito 17 I 17 II 25 Os leitores esses temiveis desconhecidos 33 Poesia uma fragil vitima da escola 41 Livro didatico e Lingua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 52 Literatura infantil e escola a escolarizacao do texto 66 2 LEITURAS DO MUNDO Machado de Assis um mestre de leitura 77 As aventuras de Ngunga na escola e na leitura 86 Lobato um Dom Quixote no caminho da leitura 94 Tecendo a leitura 104 Indice onomastico 110 INTRODUÇÃO Ninguém nasce sabendo ler aprendese a ler à medida que se vive Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola outras leituras se aprendem por aí na chamada escola da vida a leitura do vôo das arribações que indicam a seca como sabe quem lê Vidas secas de Graciliano Ramos independe da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros Como entre tais coisas e tais outros incluemse também livros e leitores fechase o círculo lêse para entender o mundo para viver melhor Em nossa cultura quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida mais intensamente se lê numa espiral quase sem fim que pode e deve começar na escola mas não pode nem costuma encerrarse nela Do modo da leitura à leitura do mundo o trajeto se cumpre sempre realizandose inclusive por um viceversa que transforma a leitura em prática circular e infinita Como fonte de prazer e de sabedoria a leitura não esgota seu poder de sedução nos estreitos círculos da escola Aposto nisso e constitui uma espécie de profissão de fé nessa aposta o que tenho discutido ao longo dos eventos que motivaram os textos aqui reunidos Mundo da leitura leitura do mundo onde acaba um e começa a outra Talvez os limites sejam esgarçados aquela terceira margem do rio de que fala Guimarães Rosa Muito embora estritamente entrelaçados na vida real mundo da leitura e leitura do mundo distinguemse aqui invocando a temporária suspensão do real que os livros patrocinam como forma de iluminar e fecundar o retorno ao real em cada parte do livro predomina um deles 8 DO MUNDO DA LEITURA PARA A LETURA DO MUNDO A primeira parte é constituída de ensaios mais direta e ostensivamente relacionados ao mundo de papel impresso de escola de alunos e professores de livro didático de literatura infantil e juvenil Currículo formação de professores práticas escolares de leitura particularmente de leitura literária formas de inserção de livros escolares e de leitura em diferentes momentos do sistema cultural brasileiro são as portas de ingresso para as questões e reflexões que incidem sobre diferentes aspectos do mundo da leitura Na segunda parte a leitura do mundo entra mais ostensivamente em cena trazida para a berlinda pela análise de algumas representações que leitura escola e literatura encontram em diferentes textos literários Machado de Assis José Pepetela e Monteiro Lobato são por assim dizer casos que resolvem de modo positivo e legitimado pela história literária o que se discutiu e problematizou nos textos da primeira parte Em seus textos afloram diferentes projetos de educação de leitores de alfabetização de leitura dos clássicos de cambulhada com histórias de amor de guerra e de loucura Os textos comentados nos introduzem em mundos com os quais se tropeça tanto no silêncio da vida de cada um quanto no estardalhaço das situações e notícias que diariamente trazem o distante e o estranho para dentro de nós No seu conjunto os ensaios propõem itinerários possíveis para o percurso indicado pelo título sugerem que a reflexão teórica a abordagem histórica e a análise textual constituem trajetos seguros e paisagens sedutoras na tão necessária travessia do mundo da leitura à leitura do mundo e seu viceversa A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA Se por não sei que excesso de socialismo ou barbárie todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto uma é a disciplina literária que devia ser salva pois todas as ciências estão presentes no monumento literário Mudamse os tempos mudamse as vontades sonetava Camões pela janela do século XVI E o mesmo constatamos nós em esferas mais baixas examinando ainda que sem o talento do poeta meia dúzia de livros didáticos ou paradidáticos de literatura Figurinos e modas não faltam O que parece faltar é inspiração e elegância que permitam passar da máxi à míni sem mostrar canelas escalavradas nem joelhos sujos E antes que alguém pergunte se se fala da moda ou do texto literário em classe saibase que a epígrafe de Barthes é salvoconduto para tomar do universo da moda as primeiras metáforas O que fazer com ou do texto literário em sala de aula fundase ou devia fundarse em uma concepção de literatura muitas vezes deixada de lado em discussões pedagógicas Estas de modo geral afastam os problemas teóricos como irrelevantes ou elitistas diante da situação precária que dizse espera o professor de literatura numa classe de jovens A precaric ¹ Versão anterior deste texto foi apresentada em mesaredonda sobre Literatura e Ensino organizada em Porto Alegre pelo Goethe Institute PUCRS e Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul e com o título O texto literário na sala de aula posteriormente publicado no Boletim da ALBS Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul no 283 p 237 2 BARTHES R Aula São Paulo Cultrix 1980 p 18 ambigüidade o meiotom a conotação sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpretação como se consomem pipocas e refrigerantes De modo geral não se pode e talvez nem se deva fugir a alguns encaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura por exemplo a inscrição do texto na época de sua produção uma vez que textos assim contextualizados nos dão acesso a uma historicidade muito concreta e encarnada à qual se cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor outro caminho a inscrição no texto do conjunto dos principais juízos críticos que sobre ele se foram acumulando fundamental para fazer o aluno vivenciar a complexidade da instituição literária que não se compõe exclusivamente de textos literários mas sim do conjunto destes mais todos os outros por estes inspirados outro exemplo ainda a inscrição do e no texto no e do cotidiano do aluno entendendo que este cotidiano abrange desde o mundo contemporâneo no que essa expressão tem intencionalmente de vago e de amplo até os impasses individuais vividos por cada um nos arredores da leitura de cada texto Se o professor não conhece tais impasses e provavelmente não os conhece nem precisa conhecêlos a vivência que tem de seus impasses e a forma como diferentes textos dialogam com tais impasses são suficientes para sugerir comentários perguntas e atividades que encaminhem nessa direção o trabalho com o texto Numa última perspectiva o desencontro literaturajovens que explode na escola parece mero sintoma de um desencontro maior que nós professores também vivemos Os alunos não lêem nem nós os alunos escrevem mal e nós também Mas ao contrário de nós os alunos não estão investidos de nada E o bocejo que oferecem à nossa explicação sobre o realismo fantástico de Incidente em Antares ou sobre a metalinguagem de Memórias póstumas de Brás Cubas é incômodo e subversivo porque sinaliza nossos impasses Mas sinalizandoos ajuda a superálos Pois só superandoos é que em nossas aulas se pode cumprir da melhor maneira possível o espaço de liberdade e subversão que em certas condições instaurase pelo e no texto literário longo e árduo atividade exigida leitura obrigatória expressões cinzentas e duras em harmonia com uma escola como a brasileira amarga e curtida por políticas educacionais equivocadas A função desse professor bemsucedido confinase ao papel de propagandista persuasivo de um produto a leitura que sob a avalanche do marketing e do merchandising corre o risco de perder ao menos em parte sua especificidade A compreensão desse estado de coisas parece fundamental ilumina o contexto escolar brasileiro no qual discussões sobre e propostas para usos do texto literário em classe podem transformarse em armadilha para o professor que sentindose fragilizado busca respostas imediatas para seus problemas concretos As propostas transformamse em armadilha quando patrocinam discussões das quais se sai com as técnicas debaixo do braço e confiante na terapêutica Técnicas milagrosas para convívio harmonioso com o texto não existem e as que assim se proclamam são mistificadoras pois estabelecem uma harmonia só aparente mantendo intacto quando já instalado o desentroncmentre leitor e texto Vários professores ouvidos na pesquisa da editora Abril têm sugestões a fazer Tratase geralmente de propostas que somam ao idealismo ingênuo o imediatismo das soluções enlatadas sugestões bemintencionadas sem dúvida que reduzem o atrito e aumentam a digestibilidade da aula mas lidam superficialmente com a questão resolvendo o problema pelo seu contorno passando ao largo das zonas profundas de conflito os livros deveriam ser mais dinamizados e rejeitados seria preciso levar obras literárias até os alunos de um maneira inteligente interessante e proveitosa seria importante ter um audiovisual de leitura 5 Mas ouvir professores é tarefa de amor como dizia Bilac a propósito de estrellas tarefa de amor pois talvez o professor seja peça secundaria na escola de hoje e consequentemente sua voz se faça ouvir com timidez no que respeita aos destinos do texto literário em classe Não parece que o que fazer com c Ver nota 5 o texto literário na sala de aula seja ainda de sua competência Já faz alguns anos que decidir isso é da competência de editoras livros didáticos e paradidáticos muitos dos quais se afirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar na razão direta em que tiraram dos ombros dos professores a tarefa de preparar as aulas O que há então para o professor é um script de autoria alheia para cuja composição ele não foi chamado leitura jogralizada testes de múltipla escolha perguntas abertas ou semiabertas reescritura de textos resumos comentados são alguns dos números mais atuais do espetáculo que ao longo do território nacional mestres menos ou mais treinados estreiam para plateias às vezes desatentas às vezes rebeldes quase sempre desinteressadas sobrando a seção de queixas e reclamações para congressos seminários cursos de atualização e congêneres ou então pesquisas como a que aqui está sendo comentada Talvez não se tenha refletido ainda o bastante sobre alguns traços que modernas pedagogias e certos modelos de escola renovada imprimiram à educação principalmente ao ensino de literatura Nesse sentido urge discutir por exemplo o conceito de motivação porque é em nome dele que a obra literária pode ser completamente desfigurada na prática escolar Propor palavras cruzadas sugerir identificação com uma ou outra personagem dramatizar textos e similares atividades que manuais escolares propõem é periférico ao ato de leitura ao contato solitário e profundo que o texto literário pede Ou o texto dá um sentido ao mundo ou ele não tem sentido nenhum E o mesmo se pode dizer de nossas aulas O texto em sala de aula é geralmente objeto de técnicas de análise remotamente inspiradas em teorias literárias de extração universitária Mas se no âmbito universitário a teoria literária pode ainda preservar uma semântica geral do texto na transposição das ditas teorias para o contexto didático esse sentido maior costuma adelgaçarse e rarefazerse a ponto de ficar quase irreconhecível7 Na escola anulase a 7 CE AMARAL Emília O ensino de literatura no segundo grau Dissertação de mestrado mimeo IFIUnicamp 1986 LAPOLO M Leitura e literatura mais que uma rima e menos que uma solução In ZILBERMAN R SILVA K TInodromo dia orgs Leitura perspectivas interdisciplinares São Paulo Ática 1988 um problema talvez seja mera representação contemporânea de uma crise muito maior e muito mais antiga faz tempo que não se sabe qual é a formação necessária ao professor de língua materna porque também não se tem claro a função da escola no que se refere à competência linguística que o aluno deve dominar ao abandonar os bancos escolares Neste tempo nosso fértil em discussões várias o assunto está embaralhadíssimo Circulam com sucesso crenças como a de que o professor não deve corrigir o texto dos alunos que ele deve deixar o aluno escrever como fala que a escola deve respeitar o dialeto do aluno que redação não deve ter nota e outras similares afirmações e negações E todas e cada uma delas tomadas fora do contexto em que foram formuladas e aplicadas a toque de caixa em atividades que variam de exercícios propostos por livros escolares a metodologias desenvolvidas em cursos relâmpago ficam fora do lugar Imobilizamse em crenças por um lado insuficientes para romper o autoritarismo compacto do aparelho escolar E por outro inadequadas para satisfazer as expectativas que a comunidade alimenta em face da escola3 Não se advoga aqui evidentemente o retorno às listas de verbos e plurais irregulares nem a volta às redações do tipo Uma lágrima ao cair da tarde O que se sugere é que a rapidez com que o ensino da Língua Portuguesa se desvencilhou de tais práticas e absorveu outras por ter ocorrido no bojo de um movimento maior de projetos educacionais e políticos talvez parcialmente gorados pode ter travestido de populismo o que na origem era autêntica vontade democrática Hoje os tempos são outros menos eufóricos e mais amadurecidos Podemos então na colheita dos primeiros resultados e das primeiras perplexidades tentar corrigir os rumos procurando resgatar no novo percurso o já tantas vezes adiado projeto de democratização e qualificação da educação brasileira Nesse sentido e com esses objetivos o primeiro passo é a inserção histórica das questões educacionais inclusive da 3 Relativamente a tais expectativas ver SOARES Magda B As condições sociais da leitura uma reflexão com contraponto In ZILBERMAN R SILVA L Theodoro de orgs Leitura perspectivas interdisciplinares São Paulo Ática 1988 Trinta anos depois 186364 outro documento sublinha o descaso pelo ensino da língua materna e da leitura e registra a baixa remuneração do magistério Um pai ao levar seu filho ao colégio recomenda que não se gaste tempo com o estudo de Português que todos sabem que estude o Francês e o Latim porque lhe disseram que a gramática portuguesa estudavase na leitura O menino escreverá em português sim mas no português que aprendeu com sua ama concordará o verbo do singular com o sujeito do plural e cometerá os maiores disparates Como exigir que o país se honre com larga cópia de brilhantes escritores se a matériaprima de toda arte de escrever o padrão idioma lhes foi negada pela própria sociedade que inicialmente lhes reclama o fruto de uma semente que ela não lançou à terra Exijase pois o estudo da Língua Portuguesa familiarizemse os alunos com o correto dizer dos que falaram e escreveram a língua e teremos removido uma grande dificuldade6 quais são os homens que entre nós se ocupam do magistério Ou antes é este entre nós uma profissão Não Nenhum homem que dispõe de um certo cabedal de conhecimento deixa ocupações muitíssimo mais vantajosas para se dar a uma vida inglória e penosa a um sacerdócio todo de obnegação como o magistério7 Outro texto prefácio de um livro escolar editado em 1870 endossa as críticas ao ensino da leitura e da língua materna sublinhando a inexistência de material didático adequado a maior parte dos meninos aprendem a ler sem livros servindose principalmente nas localidades centrais ou pouco consideráveis dos cartilhas do Pe Inácio de bilhetes e cartas às vezes oh Deus com que letra e ortografia ou de gazetas que seus pais lhes fornecem ou de velhos aules pelo comum indecifráveis que os próprios mestres lançam dos tabeliães do lugar E não é por alsic que os nossos meninos geralmente falando saem das escolas aos 13 e 14 anos de idade no mais lastroso estado de ignorância sem o hábito de pensarem e sem ligarem o mínimo valor ao que lêem8 Vem de 187879 e de alémmar um último testemunho aqui convocado o fragmento de uma carta na qual o autor de uma cartilha portuguesa sugere que a adoção de sua obra poderia solucionar os problemas educacionais brasileiros 1 Eu tenho um Método como sabes que na edição para o Brasil dedico ao chároche desse estado Já esta circunstância pedia da parte de teus compatriotas alguma atenção comigo Ora a isso acresce a singular reputação do Método e sendo tu o que és na repartição da Instrução Pública dessa província e meu amigo deviaste lembrar de mim e de ti e desse público a quem tal Método tanto podia utilitzar Faz tu o que eu faria no teu lugar e já te indiquei Envia a um homem de letras ou reconhecidamente competente a tomar conhecimento deste processo de ensino que as despesas bem cabem nas forças da província e depois verás que todos abençoarão a despesa e a missão Fazes um bom serviço público Doíte destas crianças atormentadas pela ignorância e pelo caminho onde levaram a ti e a mim na leitura e na escrita o mestre é um demônio que nos inspira horror e a escola um verdadeiro inferno Dói também os milhões de analfabetos que lá há de haver como ainda cá De modo que o amor dos homens e o amor do progresso te convido a este empenho e estou que em ti querendo facilmente conseguirás a resolução de todos9 A viagem por esses textos mais antigos sugere que não estamos sozinhos e nem somos poucos ao contrário os educadores que nos falam pelos textos transcritos contam que somos herdeiros de uma tradição educacional pobre e improvisada a qual precisa ser o contexto de qualquer avaliação do que se tem feito ou dito até agora Estabelecido esse chão histórico para a questão mais ampla da formação do professor é tempo de se levantarem hipóteses que na forma antipática de prérequisitos podem mapear o terreno sugerindo algumas práticas valores e conteúdos essenciais à formação do professor O professor de Português deve dispor de uma noção ampla de linguagem que inclua seus aspectos sociais psicológicos biológicos antropológicos e políticos Ele deve ser usuário competente da modalidade culta da Língua Portuguesa Deve nesse sentido ser uma espécie de poliglota precisa dominar competentemente várias modalidades de linguagem de forma que se disser nós vai e se escrever paçarinho irá fazêlo por opção consciente e não por desconhecimento de outras opções O professor de Português deve estar familiarizado com uma leitura bastante extensa de literatura particularmente da brasileira da portuguesa e da africana de expressão portu 9 DEUS João de gucsa Frequentador assíduo dos clássicos sua opção pelos contemporâneos pelas crônicas curtas ou pelos textos infantis deve ser quando for o caso mera preferência Em outras palavras o professor de Português pode não gostar de Camões nem de Machado de Assis Mas precisa conhecêlos entendêlos e ser capaz de explicálos O professor de Português deve estar familiarizado com a história do ensino da Língua Portuguesa no Brasil com a história da alfabetização da leitura e da literatura na escola brasileira Pois só assim poderá perceberse num processo que não começa nem se encerra nele e poderá no mesmo gesto tanto dar sentido aos esforços dos educadores que o precederam como ainda sinalizar o caminho dos que o sucederão No que respira especificamente à literatura infantojuvenil não parece que sua inclusão como disciplina no currículo de formação de professores de qualquer grau seja isoladamente uma solução não há varinhas de condão muito embora recentemente a literatura infantil talvez por falar tanto de fadas pareça querer atribuirse a função de resolver os problemas de leitura da escola brasileira No entanto embora sua inclusão como disciplina no currículo que forma professores de primeiro grau e no de Letras que forma os professores desses professores não vá por si só produzir efeitos milagrosos é importante no diaadia do currículo iniciará o professor no estudo específico de um ramo da produção cultural que freqüenta assiduamente suas classes Mas para que a inclusão da literatura infantojuvenil em currículos escolares cumpra eficientemente tal papel outras providências se fazem igualmente necessárias É essencial por exemplo compreender que a literatura infantojuvenil é um produto tardio da pedagogia escolar que ela não existiu desde sempre que ao contrário só se tornou possível e necessária e teve portanto condições de emergir como gênero no momento em que a sociedade através da escola necessitou dela para burilar e fazer cintilar nas dobras da persuasão retórica e no cristal das sonoridades poéticas as lições de moral e bons costumes que pelas mãos de Perrault as crianças do mundo moderno começaram a aprender É também fundamental que se entenda que a noção de criança alterase com o tempo que a criança da qual falava Rousseau não é a mesma para a qual escrevia Perrault e que esta por sua vez não é a criança para a qual Edmond de Amicis escreveu Cuore a qual a seu turno é diferente do pimpolho para o qual Collodi escreveu Pinocchio e assim indefinidamente como na Quadrilha de Drummond em que João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que etc etc etc no rodopio sem fim das cirandas Traduzindo a historicidade dessa noção de criança para o panorama da infância brasileira e dos livros a ela destinados cumpre ao professor de Língua Portuguesa entender que a criança em quem Jansen pensava ao traduzir clássicos infantis para a editora Lacemert era diferente da criança para a qual Olavo Bilac compôs suas Poesias infantis esta por sua vez não se confundia com a criança para a qual Monteiro Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo e nenhuma delas com a criança para a qual Francisco Marins escreveu a saga de TaquaraPoca a qual também não se confunde com a criança que lê e se identifica com O gênio do crime de João Carlos Marinho Assumir essa noção de infância como construção histórica sempre retomada implica perceber que a noção de criança que assumem os educadores de cada época tem tanto ou nada a ver com pimpolhos de carne e osso quanto os raios de sol têm a ver com as formulações dos físicos sobre a luz importa que ambas as noções no caso de criança e de luz funcionem isto é produzam os resultados esperados quando transformadas em premissas Como funcionaram cada uma a seu tempo as imagens de criança que a literatura infantil brasileira assumiu e pôs em circulação ao longo de sua constituição enquanto modalidade cultural Assim inscritas na história as formulações apressadas que fazem das crianças anjos ou demônios começam a mostrar os materiais e andaimês de sua construção entre os quais destacamse disciplinas como a Pedagogia a Psicologia a Biologia e outras senhoras E se é verdade que o educador não precisa assumir integralmente nenhuma dessas noções precisa conhecêlas todas para posicionarse frente a elas discutilas sempre de forma a poder reconhecer quando uma ou outra se manifesta nas entrelinhas de propostas de alfabetização ou de projetos de leitura que lhe são oferecidos no meio de acervos de literatura infantil ou cursos de reciclagem Historizada a criança leitora virtual da literatura infantil falta ainda historizar o jovem leitor virtual da chamada literatura juvenil Ao conceito de jovem cabem as mesmas considerações feitas em torno da noção de criança e mais algumas Por exemplo o que separa a literatura infantil da juvenil De novo a resposta aponta para construções Tanto a criança à qual se destina a literatura infantil é uma construção quanto o jovem ao qual se destina a literatura juvenil é outra construção ambas sociais E na condição de satélites de construções sociais tanto o infantil de uma quanto o juvenil de outra são conceitos instáveis o que é literatura infantil em determinado contexto pode ser juvenil em outro e viceversa São essas parece as premissas a partir das quais se pode discutir o papel da literatura infantil e juvenil na construção de um currículo para a formação de professores Discussão sempre recomeçada dado que leitura literatura educação e educadores são expressões que recobrem conceitos e noções assustadoramente provisórios De cuja provisoriedade aliás se constrói sua estabilidade sua natureza sua maneira de ser que é o que se discute quando se discute currículo e a importância dentro dele de uma ou de outra disciplina II1 Sois da Pátria esperança faqueira Branca nuvem de um róseo porvir Do futuro levais a bandeira Hasteada na frente a sorrir Mocidade eia avante eia avante Que o Brasil sobre vós ergue a fé Esse imenso colosso gigante Trabalhai por erguêlo de pé2 O jovem leitor virtual da literatura juvenil bem como a criança leitora virtual da literatura infantil são construções da história Em face dessa historicidade não tem sentido atribuirse universalidadeobjetividadeimanência a tais categorias Não foi sempre que tais categorias existiram muito embora as pessoas tenham sempre tido sete dez e quinze anos O reconhecimento de diferentes fases ao longo da vida e a distribuição das populações por tais faixas é de um lado fruto do progressivo estudo do comportamento responde por outro pelo agrupamento de pessoas em torno de certas características comuns que coletivizandolhes a identidade alojamnas num lugar social mais seguro É possível por exemplo reconhecer o processo pelo qual se inventou a infância como categoria social usando de suas diferenças biofisiopsicológicas para atribuir ao ente assim mos eufóricos junto com os primeiros longplays para as vitrolas que se chamavam hifís No mesmo pacote vinham também do irmão do Norte modelos de rebeldia a partir daí consentida e aceita como marca jovem James Dean e Elvis Presley são a juventude sadicamente transviada que o balanço das horas de Bill Halley e seus Cometas inaugura como marca de juventude Por esse tempo as categorias dos que lidavam com a segmentação dos menores em diferentes faixas etárias eram muito menos sofisticadas do que as que hoje orquestramos Mas nem por serem mais rudimentares as daquele tempo e nem por se respaldarem as nossas nos prometidos rigores da Psicologia Pedagogia e Biologia uma ou outra são menos ou mais eficientes Cumprem todas a função para a qual existem traçar consolidar matizar e redefinir o roteiro pelo qual se pauta a construção do imaginário dos valores dos comportamentos dos sentimentos e atitudes que definem esta ou aquela faixa etária Naqueles idos a inclusão de um livro na lista dos recomendados para esta ou aquela faixa etária ocorria a posteriori a faixa etária era obtida a partir da média de idade dos consulentes de bibliotecas cujas fichas indicavam terem lido e apreciado determinado livro Se é verdade que na época havia menos livros estes eram sob todos os pontos de vista menos descartáveis do que hoje sendo a previsão de comportamentos e expectativas fundamental na produção industrial de mercadorias que é o modo contemporâneo de produção da literatura infantil e juvenil de novo o que se vê é a adequação de ambos os processos a cada um de seus momentos Das pioneiríssimas atividades de Lenira Fraccarolli à frente das bibliotecas infantis paulistanas4 ao catálogo de publicações infantis e juvenis de uma editora contemporânea de sucesso o percurso que se contempla é o modo de produção dos livros infantis e juvenis É o trânsito de um modo capitalista incipiente para um mais desenvolvido É na esteira dessa especialização progressiva de mercadorias e de mercados que adquire nitidez maior a noção de literatura juvenil e que se entende a dimensão sobretudo mercadológica dos livros voltados para jovens qual é a imagem de jovem em circulação nos meios que consomem literatura juvenil Entre os espelhos que refletem essa imagem destacamse os catálogos das editoras as bibliografias as resenhas capas orelhas e similares Um bom catálogo vai muito além de divulgar os títulos que encerra além de envolver maquiar e marcar o produto que anuncia o catálogo acaba construindo uma das imagens pela qual seu produto fica conhecido Ou seja no caso dos livros as informações que o catálogo fornece a respeito das obras que nele constam transformamse quando o usuário do catálogo transformase em leitor do livro nas categorias que prioritariamente o leitor procurará e com grande chance encontrará no livro Por isso as coloridas e geralmente bem diagramadas páginas de um catálogo são documento muito importante para o estudo de livros ensinando no caso dos livros juvenis que juvenil é o texto que consta de catálogos de editoras voltados para o inventário da produção juvenil daquela editora Ou seja com o mesmo direito que Mário de Andrade usou para dizer conto é tudo aquilo que autor achar que é conto podese dizer que juvenil é toda obra que assim for considerada pelo seu editor A complexidade crescente da indústria editorial moderna exige compatibilização de demanda e produção orientando uma pela outra criando uma em função da outra reforçando uma e otimizando outra são essas providências que garantem a sobrevivência no mercado Assim um livro que aspira ao circuito escolar é circundado no catálogo que deve promovêlo junto aos professores de um conjunto de informações que só constam no catálogo por corresponderem à imagem que os editores fazem do que é e do que não é relevante para o professor que adotará o livro Vêse isso por exemplo no catálogo de literatura juvenil da editora Moderna que informa esse catálogo os livros estão apresentados com um resumo elucidativo claro ao conteúdo indicação das séries a partir das quais o livro pode ser lido faixa de idade a partir da qual o livro pode ser bem compreendido e apresentação dos principais temas que o texto aborda5 No mesmo sentido um catálogo da editora Melhoramentos é também bastante explícito relativamente às funções que pretende cumprir definese como instrumento prático para orientar e informar a todos aqueles que lidam com o livro e necessitam adequálo às faixas interessadas e ao nível de leitura de seu público Para atingirmos este objetivo é facilitar o manuseio organizamos várias seções Literatura Infantil Atividades Didático e Paradidáticos6 Assim em grande número de catálogos manifestase invejável ainda que discutível nitidez de fronteiras entre diferentes gêneros no interior do conjunto de modalidades que circulam pelo espaço escolar a compartimentalização acaba sacramentando as subdivisões que propõe e acaba transformandose em categorias de leitura para os usuários do dito catálogo ou seja diferentes profissionais da leitura Na medida entretanto em que no catálogo de obras jovens pode repetirse a folha de abertura do catálogo de infantis da mesma editora fica sugerido que os percursos da literatura infantil e da juvenile pelo menos até certo ponto superpõemse E superpõemse exatamente no caminho de seus intermediários quais sejam professores pedagogos e bibliotecários que estão na encruzilhada na qual crianças e jovens transformamse em alunos e leitores transformamse em consumidores compulsórios Os efeitos de generalização que nesse percurso sofre a categoria leitores parecem dispensar comentários sua distribuição ao longo de determinados segmentos sugere que a escola é o grande entreposto dessa mercadoria e que seu imposto é a escolarização do leitor o que gera escolarização da leitura e do texto E por contágio escolarização da noção de jovem7 Mas a aprendizagem que os catálogos patrocinam vai ainda além Observase por exemplo que os livros só em casos raros são anunciados individualmente Agrupados em séries e coleções unificados em último caso pela faixa de escolaridade a que se destinam os pacotes são emblema da necessária racionalização do processo de produção A qualidade de um título responde pela qualidade dos outros a relevância de um tema contagia o tema dos outros livros o interesse por um texto pode deflagrar o interesse por outros Em termos de investimentos tais medidas delineiam um movimento de otimização de chocolates a automóveis passando pelo livro a produção em série é a marca da produção industrializada Muitas vezes no entanto o elemento unificador de uma série em relação às demais é mais sofisticado do que o mero agrupamento de títulos aconchegados para esta ou aquela faixa de escolaridade Em alguns casos a unificação de títulos em séries fazse em torno e a pretexto de uma particularidade que à falta de melhor termo poderíamos chamar de estrutural como ocorre por exemplo com a série Alternativa apresentada pelo catálogo juvenil da editora Melhoramentos A Série Alternativa parte para uma nova idéia em literatura criar uma situação que permite ao leitor participar ativamente do desfecho da história Os livros da série especialmente escritos por autores consagrados de literatura juvenil têm como principal característica oferecer a opção entre dois finais e ainda convidar o leitor a propor um terceiro escrevendo ele mesmo o desfecho ou apresentando soluções segundo suas próprias emoções despertadas pelo que acabou de ler8 Algumas das expressões constantes do texto acima a partir do título da coleção repercutem positivamente frisando o caráter inovador da coleção que parece gravitar na órbita de formulações de Teoria Literária contemporâneas da polifonia de Bakhtin à obra aberta de Umberto Eco quem estiver familiarizado com discussões acadêmicas sobre arredores do texto literário encontrará no texto com que o catálogo anuncia a coleção semelhanças e parentescos Reconhecerá um certo ar de família parentesco distante é verdade talvez filhos ilegítimos mas parentes Mas o parentesco não elide as diferenças Pois polifonia explícita e abertura frontal acabam configurando ingerência autoritária primário via série depois via professor e finalmente via texto no que era solidão de leitura obrigatoriedade de pluralismo no que era liberdade do leitor O texto é ainda pródigo em expressões que apontam não só para a modernidade da experiência mas também para o respeito aos leitores afinal o texto que apresenta a série Alternativa sugere participação ativa oferecendo opções de leitura e instigando o leitor a escrever ele mesmo o desfecho numa aparente ruptura da hegemonia de quem escreve sobre quem lê Esta catadupa de modernidade apregoada proporciona ainda uma outra informação subsidiária a de que os textos que integram tal série são todos escritos por autores consagrados da literatura juvenil o que garante a margem de segurança necessária à experimentação avaliando por tabela a existência do gênero literatura juvenil tão consistente que tem até autores consagrados São assim múltiplas e insubstituíveis as lições dos catálogos Estudálos e discutilos não conduz evidentemente a tercear armas com a indústria editorial Tratase sim e urgentemente de entendêla e de aprender a lidar com ela entre outras razões porque ela já agora necessária Esfinge de nossos dias ela nos espreita em cada uma das muitas dobras e dos muitos avessos dos generosos projetos que engendramos em que nos envolvemos que reivindicamos em prol da leitura e dos livros A indústria nos espreita e nos desafia como a esfinge Ou me decifras ou te devoro Pois é Carecemos de pistas para a charada para decifrandoa escaparmos com o máximo de decoro e de dignidade possíveis do ritual de devoração que nos reserva papel de iguaria Indigesta mas digerível É preciso decifrar a esfinge E só então antropofagicamente devorála OS LEITORES ESSES TEMÍVEIS DESCONHECIDOS Se o autor real deve ser considerado como ambíguo e misterioso perdido na história parece igualmente verdade que o leitor real perdido na história contemporânea não é menos misterioso nem às vezes irrelevante É na posição do leitor que se encontram as credenciais mais fortes para quem quer discutir o perfil do indivíduo que livro aberto nas mãos no silêncio de sua leitura pergunta ao escritor que não pode esquivarse da resposta trouxese a chave Com ou sem chave leitor e escritor são faces da mesma moeda não obstante as quedasdebraço em que às vezes ambos se confrontam Quem quer que já tenha algum dia rabiscado maltraçadas colocase no papel de alguém que tem de cativar seus leitores Pois o leitor como o freguês do botequim parece que tem sempre razão Do aluno obrigado a escrever uma redação que lhe garanta nota mínima na prova ao festejado autor de bestsellers milionários o trazer ou não a chave é senha para cativar leitores tanto o professor que encomenda a redação quanto o público que deve consumir o romance ambos precisam encontrar no texto que leêm o que nele foram buscar se encontraram mais do que esperavam melhor para eles se encontraram menos pior para o autor que pode ter perdido no desencanto do desencontro seu precioso leitor Da adequação ao tema à excitação das cenas eróticas do suspense sobre quem matou Roger Ackroyd à perfeição das frases e concordâncias a frustração das expectativas do leitor tem preço alto a indiferença do público e a nota baixa se equivalem como gesto soberano de o leitor dizer ao escriba não não trouxeste a chave Assim sendo leitores desfrutam de imenso poder ainda que sejam extremamente voláteis mas não obstante essa impalpabilidade o autor precisa crer na existência desses evanescentes seres de óculos e mais ainda crer que há vida inteligente por detrás dos óculos Não crer nesse impalpável ser supralinguístico faz os escritores definharem e até morrerem Eu por exemplo creio firmemente na existência de tais seres ou seja acredito que disponho de leitores que os tenho de diferentes tipos e confesso que prefiro os mais visíveis aqueles que efetivamente leem o que escrevo A existência desses leitores de carne e osso manifestase de diferentes maneiras sendo a mais concreta de todas expressa em cifrões e cifrinhas tornase indiscutível a existência de leitores quando se sabe que cerca de 10 por cento do que eles pagam quando compram livros vão para os bolsos dos escritores Magros bolsos Cidadãos sabidamente econômicos os autores podem com tal verba no fim do ano financiar uma pizza média para a família brindando no chope que a acompanha a generosa fidelidade dos leitores que financiam tão frugal repasto Benditos leitores Tais leitores que algum desafeto da laboriosa classe dos escritores poderia reduzir à categoria de compradoresconsumidores de livros vão às vezes além dessa existência grosseiramente econômica Sobem na vida e ganham por assim dizer o estatuto de leitores mais íntimos são aqueles que numa aula numa palestra ou numa carta abordam o escritor perguntando concordando referindo citando Dizendo em resumo que leem Desses leitoresinterlocutores de carne e osso os que discordam são dignos do maior apreço Os que reclamam então são os preferidos muito embora não sejam necessariamente os pretendidos escrevese afinal para que se concorde com o que se escreve Ao escrever não importa se resenha de jornal redação de escola texto para congresso capítulo para livro ou até mesmo uma prova para alunos temse a intenção de convencer os leitores do que se diz e da qualidade e da adequação do texto em que se diz o que se diz Com tal objetivo o escritor faz a finesse e a justiça de expor aos leitores seus melhores argumentos tentando transformálos assim em interlocutores e comparsas os quais tanto mais se respeita quanto mais se lhes dão piropos palmadas e piscadelas de olhos ingredientes fundamentais do pacto que escritores e leitores celebram desde que o mundo passou a circular em folhas impressas reunidas em livros vendidos em lojas especializadas No entanto por mais que através de gracinhas ou graça nas o autor tente tornarse íntimo de seus leitores fazendoos crer que compartilham de sua intimidade tal esforço talvez não apague nem atenue a distância que separa autores de leitores o leitor é irmão mas é hipócrita Mesmo quando um autor se lê lêse com olhos viciados num ato de leitura quase incestuoso é de antemão convivente com o que disse escrevendo Élhe proscrito como autor do texto que lê o distanciamento a surpresa o diálogo Como autor élhe vedado o gesto que sela a suprema liberdade do leitor fechar o livro Como autor élhe vedado desligar o micro empurrar a máquina fechar a caneta abandonar o lápis tem de cumprir até o fim sua luta com as palavras com a falta delas com o calor com a música do vizinho e a televisão das crianças com o prazo do editor e finalmente com o leitor que sempre o ameaça com suas prerrogativas de abandono definitivo do texto No entanto por mais que o narcisismo dos escribas possa comprarse em intermináveis considerações autogratificantes sobre eu meus leitores que podem nada mais ser do que projeções deles escritores confio aos gentis leitores a tarefa de se explicarem ou se demitirem e no espaço que resta emigro para considerações outras feitas agora do ponto de vista de leitora particularmente do ponto de vista de leitora cativa e profissional de textos que tematizam leitura literatura livros infantis e juvenis no contexto da escola brasileira de hoje Como leitora assídua de tais textos ocupo posição muito mais confortável posso como já disse fechar o livro quando quiser Mas posso sobretudo extrair da fragilidade aparente dessa posição de quem usualmente não tem acesso à palavra e consequentemente parece não ter direito à voz a imensa força do silêncio e da solidão Solidão e silêncio no entanto talvez só aparentes Pois desconfio e meus botões compartilham desta desconfiança que os textos que tematizam leitura no contexto escolar não têm leitores individuais pois na condição de leitores profissionais somos só coletivo Ou melhor dizendo encostamos nossa solidão e nossa identidade na identidade e na solidão de milhares centenas milhões de criaturas que comigo e conosco integram o segmento de público para o qual escrevem os que escrevem sobre tais assuntos Como membro de um hipotético clube de leitores profissionais posto que anônimos fica interessante conversar sobre seus estatutos pressupostos e regulamentos discutindo os direitos e os deveres dos associados e o regulamento da agremiação Todos nós membros desse clube somos leitores muito especiais Nosso parentesco ultrapassa idiossincrasias como gostarmos de Machado de Assis e não gostarmos de Sidney Sheldon Aparentamonos pela força de nossos empregos pelo prestígio de nosso compromisso com textos e livros pela aura da confiança e expectativa que a comunidade deposita em nós no que tange à leitura Dizendo de outra forma e temperando as palavras com dose generosa de otimismo aparentamonos pela posição que ocupamos no sistema cultural constituindo uma espécie de corporação de leitores oficiais confraria que dispõe de autoridade e razoável poder em assuntos de leitura e de linguagem Somos em uma palavra profissionais da leitura esta polêmica senhora que nos reúne em tão concorridos saraus E porque somos ou vá lá gostamos de pensar que somos avaliastas arautos mediadores e intermediários dos textos que almejam circular na escola e nos seus arredores transformamonos em alvo dos que pretendem as mãos os olhos e os bolsos das crianças e jovens já igualmente desindividualizados na categoria leitoresdelivrosinfantisoujuvenis que aguardam de nossas recomendações oficiais e conversas oficiosas o sinal verde Sinal que também aguardam crianças jovens e mestres de ambos para que lendo tais livros sagremse leitores Assim atingir esse leitorado público consumidor infantil ou juvenil que a escola se incumbe de arremgetar reunir e homogeneizar em torno de uma categoria qualquer préleitores ou préadolescentes quinta série ou segundo grau supõe em primeira instância atingirnos a nós A nós a quem cabe a decisão sobre o que é melhor mais adequado mais desejável mais indicado para este ou aquele contingente de jovens acidental e circunstancialmente sob nossa influência e responsabilidade É essa responsabilidade que nos transforma de leitores em uma espécie de atravessadores num mercado organizado em função de uma clientela que mantém relações enviesadas com a mercadoria que compra é para legitimar e avalizar tal viés que precisamos ser seduzidos não só pelo texto que indicamos para nossos pupilos mas pelo texto que falando sobre eletexto apresentao divulgao promoveo em uma palavra pelo texto que o vende isto é catálogos livros do professor apresentações de coleção e similares É pois fundamental que compreendamos o papel de leitor que tais textos nos reservam E para tal compreensão precisamos contemplar à luz clara do meiodia o retrato de nós mesmos que esses textos apresentam Em outras palavras a imagem com que tais textos nos representam corre o risco de afivelarse ao nosso rosto como máscara deixando nossa face na sombra E que imagem de leitor tais textos apresentam como nossa Para responder à questão temse de considerar que para seduzir o leitor há que pôrse em seu lugar antecipando suas expectativas suas reações Ou seja o escritor interessado em seduzir o outro tem de construir hipóteses relativas ao leitor que deseja seduzir Dentre tais hipóteses algumas são mais importantes do que outras E dentre as mais importantes salientamse as que respondem a questões que quem almeja a sedução tem de responderse 1 que imagem estea outroa tem de si mesmoa 2 que imagem estea outroa gostaria que eu tivesse delea Enquanto como leitores a história nos reserva o papel de seduzidosas e não de sedutores como detetives de um bom livro policial vamos em busca não já do criminoso mas da vítima nós mesmos professores e educadores envolvidos com a leitura na imagem que de nós traça o material didático e paradidático que pretende com nosso apoio e aval chegar aos consumidores escolares Mas é difícil que nos reconheçamos como vítimas por que desconfiaríamos de uma fotografia que nos representa como professores modernos sinceramente empenhados em motivar a leitura dos jovens levemente desconfiados do papel dos clássicos em tal empresa profundamente insatisfeitos com o autoritarismo de avaliações sistemáticas e rigorosas de atividades de leitura comprometidos com o prazer e não com o dever da leitura informados e convencidos da importância da imaginação e da fantasia na formação do jovem e sobretudo honestamente comprometidos com um projeto de educação que conduza à leitura crítica do mundo Por que desconfiaríamos de tão belo retrato Sorrimos de beatitude na contemplação de tão simpático retrato somos nós mesmos tão mal pagos tão despreparados tão assoberbados de aulas Reconhecemonos nessa eficientíssima moderna e simpática figura Sim e não Somos e não somos Para dialectizar esse hamletiano ser e não ser suspendase por instantes a gratificante contemplação desse nosso gene rosíssimo retrato e perguntese ou sobretudo respondase quem o tirou de que ponto de vista com que tipo de máquina com que finalidade e para que álbum Se as respostas a tais questões podem congelar um pouco o sorriso que brota da contemplação da foto elas também fazem aceitar com naturalidade as eventuais rugas e cabelos brancos que o retrato por ser retocado acabou omitindo Pois o retrato acima apresentado é a nossa imagem tal como ela nos é apresentada por quem nos vende os livros que devemos vender aos alunos Vendas já se vê muito pouco metafóricas certamente a partir de um ponto qualquer transformam em consumidores pagantes aqueles leitores tão inofensivamente virtuais de que falamos quando academicamente falamos de leitores Mas tal imagem lisonjeira um pouco inverídica porque muito retocada certamente se constrói com material cunhado em situações nas quais diferentes escalões de profissionais de leitura constroem e afinam a linguagem com a qual falando de leitura falam de si mesmos construindo sua identidade de leitoresprofissionais E se muitas vezes nessa linguagem figura com destaque uma retórica salvacionista e apocalíptica é nela que se encontram os elementos que ideologicamente rearranjados transformam livros leituras e leitores em mercadorias como qualquer outra tão mercadoria que cumpre vendêla e comprála É exatamente para que a vendamos com eficiência que comissão antecipadamente paga nosso retrato é traçado de forma tão lisonjeira apresentado como ficção do rosto o que é perfil desejado do produto fixando como expressão dos olhos o que é rótulo de embalagem E evidentemente contagiando o produto com a qualidade do agente de vendas ofuscado e emudecido pela surpresa de verse retratado em cores e formas tão favoráveis Catálogos de editoras quartas capas e contracapas de coleções infantis e juvenis orelhas e apresentações de livros didáticos e paradidáticos são as galerias de onde nos contem plam esses incríveis retratos de nós mesmos Que se são sedutores e é inevitável que o sejam não precisam pela força da sedução que exercem fecharnos os olhos para eventuais discrepâncias entre o retrato e seu modelo Ou seja há que indagarse face a cada material que recebemos para eventual adoção Eu sou esse mesmo que está aí representado Se eu sou assim tão bom criativo responsável competente e interessado é necessário que este livro venha me dizer isso Este material que me declara interessado competente responsável criativo é o material que um educador com tais predicados elegeria para trabalhar É claro que não se descarta a hipótese de que a resposta a todas essas questões seja afirmativa e que no solitário diálogo com nossos botões nos consideremos competentes reconheçamos em uma ou outra peça publicitária o direito de proclamar essa nossa competência e mais ainda que achemos este ou aquele livro muito bom e que o transformemos em instrumento de nossa proclamada competência Em princípio tudo isso é possível É deve mesmo ser verdadeiro em certos casos Mas não sempre nem em todos os casos E é essa dúvida que torna oportuno que em regra geral como leitores tenhamos uma saudável desconfiança face a qualquer máscara de leitor assim ou assado que nos queiram impingir E que na esteira de Cecília Meireles a contemplação no espelho que nos põem na mão seja solitária forma única de buscar resposta menos provisória à pergunta funda mental em que espelho ficou perdida a minha face1 POESIA UMA FRÁGIL VÍTIMA DA ESCOLA1 Para a criança como para o adulto a eternidade é um sonho inconfessado mas vigilante2 Parecem antigas as desavenças entre poetas e o uso que a escola costuma fazer da poesia São desavenças tão antigas que em 1904 na apresentação de suas Poesias infantis Olavo Bilac já alude à precariedade dos textos poéticos de que dispu nha a infância de seu tempo Falando dos medos que o assalta vam a propósito de seu livro frisa o receio de que o seu fosse um livro ingênuo demais ou o que seria pior um livro como tantos há por aí falso cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a creduli dade das crianças fazendoas ter medo de coisas que não existem Em certos livros de leitura que todos conhecemos os autores querendo evitar o apuro do estilo fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação Uma poesia infantil conheço eu longa que não tem um só verso certo3 Na década seguinte o editor de Alma infantil de Francisca Júlia e Júlio da Silva faz diagnóstico semelhante ao do pocta as nossas escolas do estado estão invadidas de livros medíocres A maior parte deles são escritos em linguagem incorreta onde por vezes ressalta o calão popular e o termo chulo Esses livros pois em vez de educar as crio ças guiamnhes o gosto pelas coisas belas e elevadas viciamnos desde cedo familiarizandoas com as formas dialetais mais plebéias 1 Este texto foi originalmente apresentado na 36a reunião da SBPC em São Paulo em 1984 e reformulado foi publicado na revista Gazeta teoria e prática ano III p 1925 1984 2 MEIRELES Cecília Problemas da literatura infantil 2 ed São Paulo Summus 1979 p 33 3 BILAC Olavo Poesias infantis 17 ed Rio de Janeiro Francisco Alves 1949 p 1 Verdade é que poucos de nossos escritores didáticos pouquíssimos mesmo têm fora desta especialidade uma sólida repercussão nos etros1 Mais tarde um pouco a voz acatada de Alceu Amoroso Lima constata a baixa qualidade dos versos infantis apontando também o anacronismo estético da poesia destinada à infância Não será novidade nenhuma dizer que é excessivamente escassa a nossa poesia infantil Todos os professores se queixam disso E basta percorrer um pouco a nossa paupérrima literatura de crianças para nos convencermos de que no gênero o que há é pouco e raramente bom é preciso dizer desde logo que toda a poesia dos nossos mais recentes livros escolares bem como o gosto poético da maioria de professores inspetores e autores ainda não saiu do Parnasianismo Têm um certo ar vário ou muito outros em relação às correntes de poesia recente e hoje dominantes5 As citações acima revelam unanimidade de julgamento de três instâncias da instituição literária o escritor o editor e o crítico Contemplando o panorama da literatura infantil brasileira nos arredores de seu início dispensamlhe todos o mesmo veredito implacável Ao longo do tempo que nos separa da publicação dos versos bilacquianos o panorama da poesia infantil brasileira parece ter sofrido consideráveis alterações6 Tais alterações no entanto parecem não ter sido suficientes para invalidar os desencontros e entreveros que marcam o relacionamento literatura e escola e em particular o relacionamento poesia e escola ao tempo dos depoimentos acima transcritos Sendo ainda hoje pobre o repertório disponível para a seleção dos textos que integram os livros escolares não é de estra 4 JÚLIA F SILVA J da Alma infantil Rio de Janeiro s ed 1912 sp Para uma reflexão sobre o significado de tais prefácios enquanto manifestação da nascente e já agressiva indústria do livro escolar consultar LAJOLO M Usos e abusos da literatura no século Bilac e a literatura escolar na República Velha Rio de Janeiro Globo 1982 p 5462 5 LIMA Alceu Amoroso Poesia infantil In Estudos 1a série Rio de Janeiro Ed Centro D Vital sd p 114 6 Sobre a atual situação da poesia infantil brasileira consultar CUNHA Maria Antonieta Antunes Poesia na escola São Paulo Descubra 1976 LAJOLO M ZILBER R B Literatura infantil brasileira história histórias São Paulo Ática 1984 Para um levantamento da poesia infantil mais recente consultar Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil 19651974 São Paulo Brasilia Melhora mentosINI e Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil 19751978 Porto Alegre Mercado Aberto 1984 de inserção da literatura na vida escolar uma vez que a prática de leitura patrocinada pela escola é dirigida planejada limitada no tempo e no espaço Tais atributos tornam a leitura escolar bastante afastada da individualidade solidão e gratuidade que caracterizam a leitura prevista pelas teorias da literatura que desconsideram em suas reflexões as condições institucionais nas quais ocorre a leitura dos textos de cuja literariedade elas se ocupam As teorias da literariedade imanente no entanto não podem ser inteiramente descartadas elas viabilizam a sistematização da leitura tão essencial para trabalhos coletivos e dirigidos como é o da leitura que a escola patrocina Por outro lado são as mesmas teorias que permitem a identificação de elementos que latentes no texto se atualizam mediante a leitura Não é entretanto qualquer leitura nem qualquer leitor que atualiza essa virtualidade Tampouco a virtualidade do literário se atualiza da mesma forma com diferentes leitores ou em diferentes leituras de um mesmo leitor A atualização da literariedade em latência depende de certa interação do texto com cada um de seus leitores É assim que embora as teorias da imanência e da objetividade da literariedade não sejam suficientes nem por isso elas deixam de levantar elementos fundamentais para uma teoria que conceba a literatura como interação É fecunda por exemplo a discussão jakobsoniana da literariedade a partir de determinadas ocorrências de linguagem para Jakobson bem como para boa parte dos teóricos de linhagem estruturalista e formalista a manifestação da função poética decorre de determinada manipulação dos elementos de linguagem No entanto o mesmo gesto que postula a natureza linguística dos elementos que respondem pela função poética reconhece também que a manifestação da função poética realizase sempre de maneira histórica isto é de forma diferente em diferentes momentos ou em diferentes leituras do mesmo poema revelandose diferente para diferentes leitores George Steiner a partir do quadro Le philosophie lisant de Chardin analisa de forma belíssima diferentes concepções do exercício da leitura em tempos antigos e modernos STEINER George The uncommon reader Bennington Coll 1978 25 Assim da mesma forma que se reconhece certa especificidade do texto literário postulamse para viabilizar a hipótese de que o literário resulte de determinada forma de interação entre leitor e texto prérequisitos para que a leitura se configure como literária para o leitor Na medida em que os elementos de que se constitui a especificidade do poema estão na linguagem e na medida em que a linguagem é uma construção da cultura para que ocorra a interação entre o leitor e o texto e para que essa interação constitua o que se costuma considerar uma experiência poética é preciso que o leitor tenha possibilidade de percepção e reconhecimento mesmo que inconscientes dos elementos de linguagem que o texto manipula Em outras palavras leitor e texto precisam participar de uma mesma esfera de cultura O que estou chamando de esfera de cultura inclui a língua e privilegia os vários usos daquela língua que no correr do tempo foram constituindo a tradição literária da comunidade à qual o leitor pertence falante daquela língua na qual o poema foi escrito Retomando agora os motivos pelos quais teorias interacionistas contribuem mais significativamente para a discussão do relacionamento entre literatura e escola podese incluir entre as funções da escola o aumento progressivo e paulatino da familiaridade do aluno com textos que ampliem seu horizonte de expectativas numa perspectiva de familiaridade crescente com esferas de cultura cada vez mais complexas que incluem no limite aqueles textos que tendo a sanção dos canais competentes configuram a literatura Por isso a mera inclusão de textos tidos como bons e superiores entre os textos escolares não soluciona nenhuma das faces da crise de leitura Pois a presença de um excelente texto num manual pode ficar sem a contrapartida qual seja o texto tido como bom pode ser diluído pela perspectiva de leitura que a escola patrocina através das atividades com que ela circunda a leitura Para ilustrar esse ponto de vista vamos estudar o caso do poema de Cecília Meireles O vestido de Laura que freqüenta com certa assiduidade manuais escolares 26 Esse texto aparentemente satisfaz os requisitos de qualidade é assinado por um dos poetas maiores da literatura brasileira é extraído de um livro infantil irrestritamente apontado pela crítica especializada como excelente e finalmente é um texto que suporta sem concessões leituras e análises que tentem com os instrumentos específicos da teoria e da crítica literárias dar conta de sua especificidade estética Eis o poema O vestido de Laura é de três babados todos bordados O primeiro todinho todinho de flores de muitas cores No segundo apenas borboletas voando num fino bando O terceiro estrelas estrelas de renda talvez de lenda O vestido de Laura vamos ver agora sem mais demora Que as estrelas passam borboletas flores perdem suas cores Se não formos depressa acabouse o vestido todo bordado e florido O vestido de Laura tem sete estrofes compostas de três versos cada uma que alternam de maneira irregular seis cinco e quatro sílabas com exceção da última estrofe cujo derradeiro verso tem sete sílabas As rimas são constantes entre os versos dois e três As quatro primeiras estrofes unificamse pelo seu tom descritivo o verbo da primeira estrofe é de ligação atribuindo ao vestido a propriedade de babados As estrofes II III e IV são apostas à estrofe I cada uma delas retoma um dos babados especificandoo a partir de detalhes de sua aparência os babados cuja existência é declarada na estrofe I são progressiva e individualmente retomados e retrabalhados nas estrofes II III e IV Observase no entanto que apesar desse movimento de especificação progressiva o poema mesmo nessas estrofes que detalham pormenores do vestido guarda a imprecisão a mobilidade e a sugestividade que parecem constituir traço dominante na poesia de Cecília Meireles Esse caráter sugestivo se constrói por exemplo pela intensa sonoridade das estrofes desse bloco as rimas as repetições de oclusivas na estrofe I a reiteração léxica na estrofe II e a nasalidade da estrofe III criam sensorialmente a impressão e magia do mundo de Cecília Meireles Essa sugestividade que se entrega ao leitor sem mediação alguma configurase também no nível sintático do texto não há nexo sintático explícito entre a estrofe I e as três que a seguem em relação apositiva Além disso a elipse do verbo nestas estrofes compõe um movimento de atenuação como se a enunciação das qualidades de cada babado nascesse ao ritmo fugaz dos movimentos amplos de um vestido No plano interno de cada estrofe poderíamos observar ainda que a relação sintática entre suas partes vai progressivamente se atenuando os versos O primeiro todinhotodinho de flores embora com fortes traços de oralidade consistem enunciado coeso do ponto de vista da gramática tradicional esta coesão se enfraquece no entanto na estrofe III em que os versos No segundo apenasborboletas voando sugerem a dissipação do babado e o fortalecimento de seus desenhos e praticamente desaparece ou fica apenas implícita no verso O terceiro estrelas em que a ausência de qualquer nexo prepositivo substituído pela vírgula completa o esgarçamento das formas de predicação Na estrofe V o poema muda de figurino e a voz do poeta fica explícita a forma imperativa é clara e o comando vamos ver rompe o clima de descrição impressionista das estrofes anteriores e instaura outra atmosfera E com ela outra etapa do poema Cf DAMASCO D Poesia do sensível e do imaginário In MEIRELES Cecília Obra poética 3 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1972 Observase que o compromisso das atividades sugeridas é com elementos exteriores e secundários ao poema não trabalham com estruturas internas e transformam a leitura numa atividade reprodutora e repetitiva em tudo homóloga às funções que a escola como instituição social tende a cumprir Antes que se indague se alunos eou professores do primeiro grau têm condições de desenvolver uma análise como a esboçada vale dizer que não mas que isso não tem importância alguma O reconhecimento e a nomeação dos processos formais agenciados por um texto não são fundamentais para que o dito texto seja fruído pelo leitor Familiaridade com processos formais é da competência se não do especialista ao menos do professor de literatura de segundo grau Se assim não fosse a fruição da poesia estaria proscrita a todos aqueles que nunca passaram por um curso de Letras Não é pois objetivo deste texto reivindicar que as questões propostas para trabalho de um poema em classe privilegiam este ou aquele elemento de sua constituição formal fundamentandose numa ou noutra teoria literária O objetivo é sugerir que as atividades de leitura propostas ao aluno quando este se debruça sobre um texto literário têm sempre de ser centradas no significado mais amplo do texto significado que não se confunde com o que o texto diz mas reside no modo como o texto diz o que diz Nesse sentido é necessário que os elementos do texto selecionado como gerador de atividades levem o aluno a observar mais de perto procedimentos realmente relevantes para o significado geral do texto O que não parece ser o caso dos exercícios transcritos Recorrendo a um objeto tão prosaico quanto um vestido Cecília Meireles fala da efemeridade Efemeridade do quê De tudo em geral e em particular das coisas efêmeras que tocam aquele leitor particular no momento específico da leitura do poema O quê Desde o recreio que acabou até o amor que se foi E como no limite o tema da efemeridade toca no da morte a urgência do comando vamos agora vamos depressa se vale de estrelas que passam borboletas que voam e flores que murcham para metaforizar o contínuo processo de perda que é a vida LIVRO DIDÁTICO E LÍNGUA PORTUGUESA PARCERIA ANTIGA E MAL RESOLVIDA AEIOU dabliú dabliú Na cartilha da Juju Juju A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Há dez anos na cartilha A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Escreve sal com cêcedilha AEIOU de Noel Rosa e Lamartine Babo Em meados do século XIX a disciplina Língua Portuguesa não fazia parte do currículo da escola brasileira situação que desagradava alguns educadores Entre os que protestavam estava Manuel Frasão Vergonha terão nossos vindouros quando recorrendo às estatísticas da instrução pública virem que um semnúmero de moços têm sido reprovados em idiomas estranhos que aliás conheciam sofrivelmente ao passo que uma só vez não consta que alguém deixasse de matricularse por desconhecer o pátrio idioma Pretendendo irritar o regulamento francês e encontrando a exigência da língua francesa com exclusão do portuguesa impuseram a língua francesa excluirar a portuguesa A crítica de Frasão sugere que em pleno Segundo Reinado leitura e redação de texto em língua materna não desfrutavam ainda da importância curricular que para tais atividades insinuava o paulista Martim Francisco Ribeiro de Andrada em projeto encaminhado aos constituintes de 1823 Quarto ao ensino da arte de exprimir e desenvolver as idéias digo que suas regras se devem conformar com os efeitos que dela se requerem Na antiguidade tempo em que se desconhecia a imprensa e havia mister de persuadir e seduzir os povos pelo dom da palavra esta arte se reduzia meramente a ensinar o modo de bem falar Depois da invenção da imprensa mudaram as circunstâncias escreveuse nos negócios particulares imprimiuse nos negócios públicos e destarte decidiramse as questões e à proporção que cresciam os tuxes de uma nação cresceu também a facilidade de espalhar raticamente as idéias por meio da impressão portanto a arte de escrever discursos é a verdadeira retórica dos modernos e o eloquência de um discurso é o de um livro feito para ser entendido por todos os espíritos A vista disso em que vem a constituir esta arte considerada como parte de um ensino público Em escrever uma memória ou parecer com clareza método e simplicidade em desenvovêlas razões com ordem e precisão evitando de um lado a negligência ou afetação e de outro a exageração ou o mau gosto Na Constituinte de 1823 livro didático escola professores e leitura estruturavam momentosas polémicas Os legisladores ao discutirem leitura e livro didático inscreveram a discussão no contexto geral da precariedade que herdada da Colônia vai persistir por muito tempo os requisitos que Ribeiro de Andrada inventaria para os professores desciam a tais minúcias que o quadro resultante é de completo despreparo do magistério cinto no primeiro ano como nos dois seguintes deste curso de instrução o professor deve ter em vista amostrarse no método de ensino e fazerse corresponder instituirse no modo de responder às perguntas e dificuldades que questões que o menino possa lhe propor analisar escrupulosamente as palavras inseridas no compêndio a fim de dar ao discípulo idéias precisas delas não se esquecendo de empregar as palavras técnicas que geralmente fazem cotados não só porque a linguagem filosófica é mais exata do que a vulgar mas também porque iguais vocábulos exprimem noções mais precisas designam objetos mais distintos e correspondem a idéias de mais fácil análise As atas das sessões constituintes pelo teor e calor das discussões que registram apontam tal despreparo como crônico e desalentadoramente irremediável o estado de atraso em que se acha desgraciosamente a educação no Brasil fará com que se formos o exigir de um professor de primeiro ensino do qual depende a felicidade dos cidadãos requisitos maiores não teremos professores Outro legislador responsabiliza os baixos salários pela falta e despreparo dos professores de que serve isso se os ordenados dos mestres são tão escassos que a maior parte das escolas se acham fechadas Dáse 120000 por ano a um homem que com menor trabalho pode fazer o duplo em qualquer ramo de comércio em pescarias etc É pois sombria a infraestrutura em que o assunto livro didático cruza com leitura escrita e Língua Portuguesa como preocupação dos primeiros legisladores brasileiros que discutiam o sistema escolar a ser implantado no Brasil Odorico Mendes sugere para livros de leitura a Constituição e alguns clássicos da língua Tem por melhor que os meninos leiam estes livros do que se lênenças velhas e obras outrinárias rançosas que nada valem enquanto Lino Coutinho pondera que para leitura é preciso atender não só à escolha de doutrinas como à linguagem Lembra a vida de Frei Bartolomeu dos Mártires e coisas de Jacinto Freire de Andrade pois livros escritos com exatidão escolha e pureza de linguagem O ensino se conta deve ser mecânico O de gramática deve se limitar às declinações dos nomes e conjugação dos verbos regulares e irregulares de criação conhecimento dos agentes dos verbos ou as ligações dos casos Não obstante tais discussões datarem da década de vinte do século passado e nela as questões de ensinoaprendizagem de língua materna virem pelo viés da questão do livro didático o desabafo de Frasão nos anos sessenta sugere que só muito paulatinamente a Língua Portuguesa ganhou o espaço do currículo escolar e que mesmo transformada em disciplina era insatisfatório o modo pelo qual se processava seu ensino E parece permanecer insatisfatório por longos anos A permanência da situação nos primeiros anos da República manifestase no rigoroso julgamento com que Rui Barbosa define como calamitoso o resultado do ensino do vernáculo na escola brasileira Isentando de culpa os professores atribui parcela grande da responsabilidade ao livro didático e à política educacional os mestres são os menos culpados nesta imbecilização oficial da mocidade Deste enorme pecado contra a Pátria e contra a humanidade a responsabilidade cabe quase toda à péssima direção do ensino popular aos métodos aos livros adotados num sistema em que a adoção importa de fato um verdadeiro privilégio Tendo por tribuna o Congresso Nacional e respaldado no que de mais moderno havia em Linguística e Pedagogia Rui Barbosa aponta a baixa qualidade do livro didático criticando também os métodos de ensino de língua materna Nestas críticas o leitor de hoje pode reconstituir fragmentos dos conceitos de linguagem a que Rui Barbosa adere como quando por exemplo referese particularmente ao trabalho mecânico de memorização que no programa da instrução elementar se classificia sob o nome de gramática Que o ensino da língua não se confunda com o ensino da gramática não é lícito contestar Mas nem a classificação mesmo da gramática se pode estender a esta tecnologia de obs trações inúteis que aliás suplício inútil ca infância na escola conscreve a mais larga parte no plano de estudos primários11 Com admirável intuição lingüística Rui Barbosa vincula a inadequação do ensino patrocinado pela escola brasileira do século passado ao fato de a escola lidar com língua materna como se esta estrangeira fosse Todo o menino que vem sentarse nos bancos de uma escola traz consigo sem consciência de tal o conhecimento prático aos princípios da linguagem o uso dos gêneros e dos números das conjugações e sem senti distingue as várias espécies das palavras12 No mesmo fim de século que assistiu à Abolição e à República de outros pontos de vista outras vozes confirmam o desencontro entre métodos objetivos e clientela da disciplina Língua Portuguesa aumentando o desconsolo da situação José Veríssimo e Sílvio Romero intelectuais ativos na cultura do entreséculos referendam Rui Barbosa inscrevendo a reflexão sobre a inadequação dos métodos na concretude da evocação do diaadia escolar Registra José Veríssimo Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros Eram portugueses e absolutamente alhe os ao Brasil os primeiros livos que li E assim foi sem dúvida para toda a minha geração Acahaddíssimas são as melhorias desse triste estado de coisas e cinqa hoje a maioria dos livros de leitura se não são estrangeiros pela orgem sãono pelo espírito Os nossos livros de excertos é cos autores porugeses que os vão buscar e autores cuja clássica e hoje ossoleta linguagem o acesse mal amanhado preparatroirio de português mal compreese São os fres Lus de Sousas os Lucenas os Bernardes os Herníso Mendes e credo o classicismo português que lemos nas nossos discos de Língua que aliás começa a tomar nos programas o nome de língua nacional Pois se pretende sic ao meu ver erradamente começar o estudo da língua pelos clássicos autores brasileiros tratando coisas brasileiras não poderiam fornecer relevantes passagens1 Não é diferente o depoimento de Sílvio Romero praticamente contemporâneo de José Veríssimo 11 Idem ibidem p 224 12 Idem ibidem p 225 13 VERÍSSIMO José 18571916 A educação nacional Rio de Janeiro Francisco Alves 1906 p 46 Apud ZILBERMAN R TAJOLO M Um Brasil para crianças 2 ed São Paulo Global 1988 p 271 Livro didático e Língua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 57 Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendiase a ler em velhos aulos velhus sentenças fornecidas pelos cartórios dos escrivões fosseses Histórias detestáveis e er ladrôrhas na sua impertinente bondidade eramos ministrados nestes pacíferntos cartapácios Eram como clavas a nos esmagar o senso estrético emroutecer o raciocínio e estragar o caráter As sentenças menescr tas eram securadadas por impressos vulgares inócio es próprios para o audren a destruição Era o ler por ler ser incentivo sem préstimo sem estímtos nenhuns14 Se é assim sombrio o panorama das práticas de leitura escolar no Brasil do século passado não são menos desoladores os registros das práticas de leitura vigentes fora da escola em trecho autobiográfico relativo aos anos quarenta do século passado quando frequentava a Academia de Direito de São Paulo José de Alencar relata dificuldade de acesso a livros sugerindo que leitura e livros do lado de fora das paredes escolares no Brasil de seu tempo eram coisa rara talvez como decorrência do caráter problemático da presença da língua portuguesa e leitura no quadro da educação formal Naque tempo o comércio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo todavia apesar de mais baratos as cores literárias tinham menor circulação Proviha isso da escassez das comunicações com a Europa e do maior rar da de livros e gabinetes de leitura Cada estudante porém levava consigo a modesta provisão que juntara durante as férias e cujo uso entrava logo para a comunhão escolástica Assim corresceria São Paulo às honras e sede de uma academia tornandose o centro do movimento literário15 Os testemunhos de educadores e intelectuais fazem coro a depoimentos de viajantes estrangeiros que confirmam a raridade dos livros e da leitura no país das jandeias nas frondes verdes da carnaúba Henry Koster inglês que perambulou pelo Brasil logo depois da chegada de D João VI registra 14 ROMERO Sílvio 18511914 O professor Carlos Jausen e as leituras das classes primárias In Estudos de literatura contemporânea Págsnas deúteis Apud ZILBERMAN R TAJULO M Op cit p 265 15 ALENCAR José de Como é por que sou romancista Adaptação ortográfica de Carlos de Acquino Pereira Campinas Pontes 1990 p 38 31 curiosas reações que o ato de ler provocava reações que apontam para a fragilidade e insuficiência das práticas de leitura aqui vigentes alguns de meus vizinhos tanto em Itamaracá quanto em Jaguaribe entravam às vezes enquanto eu estava lendo e echavam estranho que eu achasse prove nesta atividade Eu me lembro de um homem que dizia O senhor não é um padre portanto por que o senhor lê O senhor está lendo um breviário Em outra ocasião contaramme que eu tinha graça da forma de um homem muito santo porque esava sempre lendo16 Descomprometidos com o modelo católico de colonização portuguesa e sem papas na língua viajantes ingleses retratam o Brasil dos arredores da Independência como uma sociedade onde as luzes não chegaram a acenderse ou se se acenderam foram clarão efêmero que não ultrapassou a arcádia dos malogrados inconfidentes mineiros Luccock outro inglês ao relatar conversas com brasileiros ao longo de uma viagem pelo sertão mineiro sublinha o isolamento cultural do Brasil Nesta nossa terra nunca se ouviu até agora sobre guerras européias nem se supunha até recentemente que houvesse outros povos na terra além de portugueses e espanhóis além do Gerlio 17 Dãose pois as mãos educadores e escritores legisladores e viajantes ao longo do século XIX à precariedade do sistema escolar e ao espaço reservado à Língua Portuguesa correspondia fora da escola prática de leitura rarefeita e esgarçada Irresolvida a questão se arrasta e se agrava Em 1888 o assunto livro didático entremeandose a amargas evocações da escola aflora da passagem no romance O Ateneu de Raul Pompéia Entre as lembranças da vida escolar de Sérgio vivida sob a batuta de Aristarco Argolo de Ramos nome ficcional de Abílio César Borges o Barão de Macaúbas educador do 16 KOSTER H Travels in Brazil London 1817 Tradução minha 17 LUCCOCK John Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brasil taken during a residence of ten years in that country from 1808 to 1818 London Printed for Manuel Leigh in the Strand 1820 p 3823 Tradução minha Livro cicático e língua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 59 Império Raul Pompéia pela boca do narrador Sérgio relata modos pouco ortodoxos de produção do livro didático que têm pontos comuns com situações e práticas que vivemos hoje O Dr Aristarco Argolo de Ramos da conhecida família do Visconde de Ramos do Norte chegada o Império com o seu renome de pedagogo Eram boletins de propaganda pelas províncias conferências em diversos pontos da cidade a pedidos e sustância atocando a imprensa dos lugarejos COIXÕES sobretucos de livros elementares fabricados às pressas com o esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos caixas e mais caixas de livros cortados em Leipzig funcionando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão de capas azuis róseas amarelas em que o nome de Aristarco inteiro e sonoro ofereciase ao pasmo venerado dos esfarelados de alfabeto dos coríns da Pátria Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos de a corrente gratuita espontânea irresistível E não havia senso aceitar farinha doce ela marca para o pão do espírito E engordavam as letras à força daquele póo Um benemérito Não admira que em dias de gala crítica ou nacional festas do colégio ou recepções do coro o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de pedraria opulentemente a nobreza de todos os honoríficos oerloques18 O mesmo Barão de Macaúbas reaparece como personagem na autobiografia de Graciliano Ramos nascido em 1892 nas secas e ensolaradas Alagoas Graciliano retrata em Infância obra editada em 1945 os percalços de uma meninice sofrida na qual os livros escolares em particular os de Abílio César Borges o Barão de Macaúbas são lembrança dolorida Um grosso volume escuro cartorrogem severa Nas folhas delgadas ircorlóveis as letras fervilhavam míldas e as ilustrações avultavam num papel brilhante como gastro de lesma ou catarro seco Principiei a leitura de má vontade E logo enterrei na história de um menino vadia que dirigindose à escola se rebravava a conversa com os passarinhos e recebia deles opiniões suaves e bons conselhos Passarinho queres tu brincar comigo Forma de perguntar esquisita pensei E o animal eio atarefado na construção de um ninho excitouse de maneira ainda mais confusa Ave sabia e modesta que se confessava trabalhadora em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do dever Em seguida vieram outros irracionais igualmente bemintencionados e bemtalentess Havia ar moscezinha que morava na parede de uma chamine e voava à toa desobecendo às ordens maternas Tanto voou que afinal caiu no fogo 18 POMPÉIA Raul O Ateneu 3 ed São Paulo Melhoramentos 1963 p 3 32 Estes dois contos me infringiram com o Barão de Macaúbas Examineilhe o retrato e assaltaramme presságios funestos Um tipo de barbas espessas corno os do mestre rural visio anos atrás Camaraceco cabeludo E perverso Perverso com a mosca inocente e perverso com os leitores19 Esta escola de Graciliano Ramos dá foros de veracidade à tão verossímil escola ficcionalmente criada por Raul Pompéia perdida nos confins da Pátria esfaimada de alfabeto e inundada pelos livros escolares do Barão de Macaúbas cuja produção O Ateneu relata tão desencantadamente E serve de magro consolo no caso de Graciliano a idéia de que uma tão dolorosa iniciação nas letras não matou em casulo o talento do futuro escritor No entanto mais desoladora da que a frequência com que depoimentos amargos como o do mestre Graça se repetem é a certeza de que na tradição brasileira escola leitura e escrita são experiências que só afloram em relatos de vidas vividas no pólo hegemônico de cultura Só fala de livros quem tem a intimidade de ter nascido em meio a eles Os que falam de livros de leituras e de escolas falam com o àvontade de quem pertence à classe que se apossa de livros de leitura e de escrita desde o berço E como perversamente o registro da história passa pela escrita são poucas tênues e fugazes as chances de resgate da história da cultura escrita escrita da perspectiva dos despossuídos dela O que levanta questão maior se todos os depoimentos lamentam a precariedade da presença de livros e de leitura dentro e fora da escola na vida dos bemnascidos o que esperar das relações que com a escrita e a leitura mantinham brasileiros pobres Se encarada de frente esta questão continua a aturdir educadores que nela tropeçam por isso a reflexão sobre semelhanças e diferenças entre as situações vividas por professores de ontem e de hoje pode ser sugestiva20 19 RAMOS Graciliano Infância 17 ed Rio de Janeiro Record 1981 p 1267 20 Em Analfabetismo no Brasil da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas Paraguay Filipas Madalenas Anas Genebras Apolinárias e Gracias até os Severinas BrasíliaSão Paulo INEPF Cortez 1989 Ana Maria Araújo Freire discute a história da leitura da perspectiva dos despossuídos dela Em Cultura de massa e cultura popular leituros operárias PorópolisVozes 1981 Edeze Bosi discute a questão da leitura literária de operárias paulistas Se Manuel Frasão Rui Barbosa Sílvio Romero José de Alencar e seus pares parecem antecipar em suas críticas e queixas nossas queixas e críticas para evitar identificaões precipitadas vale notar que razões objetivos e modos de realizarse do ensino de língua materna na escola não foram sempre os mesmos e portanto como dizia o Machado de D Casmurro se o rostó é igual a fisionomia é diferente Um dos aspectos que parece unificar os diferentes modelos e crises por que passou o ensino de língua materna na escola brasileira é que sua função foi sempre concebida como modelar quer o modelo fosse de língua quer fosse de valores e comportamentos Se hoje a pedagogia oficial tende a envolver a censura a certos livros em razões de natureza técnica o caráter seletivo da vontade ou do poder que adota certos livros e não outros configura movimento mais sofisticado do que aquele que por exemplo expulsos os jesuítas no século XVIII proibiu sua pedagogia o que incluía os livros didáticos nela inspirados mesmo para disciplinas aparentemente tão pouco polêmicas quanto o Grego o Latim e a Retórica Laerte Ramos de Carvalho estudando as reformas pombalinas na instrução pública registra que Corretamente escreveu o DiretorGeral proibir o ensino pelos antigos métodos Os professores que teimavam em ensinar pela Arte do Pe Alvarez com o auxílio dos delitos livros proibidos eram recolhidos à prisão e obrigados a assinar um termo no qual juravam que nunca mais se ocupariam do ensino de Latim no Reino e seus domínios Os livros proibidos fossem pertencentes à biblioteca dos professores fossem das livrarias eram recolhidos e algumas vezes queimados21 Se a proscrição dos livros jesuíticos ilustra os cuidados do sistema com os temidos contramodelos a prescrição dos livros escolares e infantis de Olavo Bilac ilustra o endosso aos modelos desejados Ao dedicarse à tarefa de compor livros para a infância brasileira Olavo Bilac parece ter funcionado como anteparo ideológico da classe que com a República assumia o poder político correspondente ao poder econômico 21 CARVALHO Laerte Ramos de As reformas pombalinas da instrução pública São Paulo SaraivaEdusp 1978 p 1261 de que já dispunha As campanhas de educação em curso nos anos 8090 do século passado são parte do projecto de modernização capitalista que o regime republicano e o fim da escravatura pareciam afiançar Fazendo conviver diferentes fases da modernização do modo de produção cultural entre os quais se incluem os livros escolares e infantis as últimas décadas do século XIX são significativas Assim como República e Abolição constituíram ajustes políticos e econômicos necessários às novas formas da vida brasileira a passagem de um modo artesanal e amadorístico de produzir livros escolares para um mais planificado e regido pela eficiência manifesta na vida cultural a mesma transição No fim do século explodem questões fulcrais da relação entre livros escola e produção cultural a profissionalização do intelectual e a correspondente implantação e desenvolvimento de mecanismos praxes e acordos que regulando as relações do escritor com o capital e com o mercado modernizam a inserção social da produção cultural assim engendrada Por isso o tempo de Olavo Bilac e seus parceiros é tão decisivo para a compreensão de nosso tempo Eles assistiram à criação do gênero viveram a préhistória do livro didático brasileiro que a partir de meados do nosso século assume sem rebuços a dimensão de mercadoria para a qual se vocacionava desde que nasceu e que hoje vivemos plenamente E exatamente por vivermos tão plenamente os complexos caminhos por onde envereda a produção contemporânea do livro didático encontramos ouvidos para ouvir vozes que dissonantes festejam o mesmo livro didático que outras vozes aupam e vaiam Patativa do Assaré por exemplo envolve em róseo saudoso a evocação de seus primeiros livros escolaresEu nasci aqui no mato Vivi sempre a trabalhar Neste meu pobre recôlo Eu não pude estudar No verde de minha idade Só tive a felicidade De dá um pequeno ensaio in dois livro do inscrito Evitando os trilhadosísimos caminhos da crítica aos conteúdos esta obra se ocupa da política que envolve o livro didático acompanhando seus desdobramentos os quais se relacionam diretamente com as condições de produção e consumo desse material Essa abordagem imprime à questão perfil mais complexo e por isso mesmo mais instigante Não tem sentido a denúncia simplória do recorte ideológico dominante burguês conservador ou elitista deste ou daquele livro didático deste ou daquele autor acusações de parcialidade ideológica rimam e soam tão ingênuas quanto proclamações de neutralidade ideológica Talvez por isso A política do livro didático tenha tido carreira comercial menos espetaculosa do que outros trabalhos que caçam fantasmas com fogos de artifício Ir afinal na pista das diferentes políticas que desembocam no rendoso filão dos livros escolares tornase cardápio indigesto para um público habituado a dictas mais leves João Batista e seus coautores apontam que o didático representa fatia bastante considerável dos livros produzidos e consumidos no país que datam de 1938 os primeiros esforços brasileiros de centralização das providências relativas ao livro de escola que inúmeras instâncias federais e estaduais já foram encarregadas dele CNLD CELD COLTED INL FENAME FLE são algumas das siglas que os escândalos no setor são a norma e que em meio a tantas discussões sempre recomeçadas vozes de bom senso disseram que com professores capazes a rejeição dos maus títulos seria espontânea O livro se encerra propondo uma pauta para o debate privilegiando nela o binômio centralizaçãodescentralização e salientando a necessidade de envolvimento dos professores em todas as instâncias de vez que como bem dizem os autores não há lei nem supervisão que obrigue um professor a usar material com o qual não esteja à vontade e sobre cuja adoção não tenha sido consultado é a tal voz do bom senso Por centrar no professor a questão do livro didático A política do livro didático retoma reencaminha e arremata a discussão do ensino de escrita e de leitura de língua e de literatura Ao retomála politizaa inscrevendo a análise dos conteúdos do livro didático em seu modo de produção e circulação e para adotando seus livros garantir um nada desprezível mercado para obras infantis3 De Bilac para nossos dias mudaram bastante os conteúdos educativos pelos quais a escola se responsabiliza Mudaram também comportamentos atitudes sentimentos e valores veiculados pela literatura mantendose todavia inalterada a relação de dependência entre literatura infantil e escola A modernização econômica refez traduzindo em modos de produção sofisticados e em divulgação mais agressiva a antiga aliança econômicoideológica sempre celebrada entre a sala de aula de um lado e histórias e poesias infantis de outro Hoje em dia o sucesso da dobradinha manifestase por exemplo nas tiragens dos livros infantis sempre superiores às dos livros não infantis em suas freqüentes reedições em seu escoamento mais rápido e seguro4 A divulgação dos atraentes e coloridos volumes é eficaz e diretamente dirigida para o professor a adesão do mestre a um ou outro título é essencial dado que se traduz na adoção que multiplica as vendas É preciso que os livros sejam adotados quer essa adoção ocorra no varejo da leitura daquele livro pelos vinte trinta quarenta alunos daquele professor quer ocorra no atacado da inclusão do dito livro nos acervos com os quais órgãos governamentais cumprem sua função de prover bibliotecas escolares O significativo aumento da população escolar alterou o modo de produção dessa rendosa mercadoria favorecendo a profissionalização do escritor voltado para esse público profissionalização esta muito mais viável que a do escriba não voltado para a clientela escolar onde se concentra a fatia maior de vendas do livro infantil e juvenil Também índice de modernização do gênero é a garra de boa parte dos escritores voltados para o público não adulto na consolidação do escrever livros como profissão exigem contratos melhores profissionalizam a relação com os editores através de agentes literários e dada a importância do planejamento gráfico no gênero infantil envolvemse em várias etapas da transformação de seus originais em livros A aguda consciência que têm de seu trabalho como produto e como mercadoria manifestase ainda no zelo com que tentam preservar seus direitos muito frequentemente ameaçados pela inclusão gratuita e não autorizada de textos seus em antologias e livros didáticos Outro indício sugestivo da renovação da aliança literatura infantilescola é a efetiva mobilização dos escritores para crianças quase todos participam de campanhas e eventos comprometidos com a difusão da leitura comparecendo maciçamente a congressos simpósios e seminários e principalmente visitando amiúde escolas onde discutindo seus livros incentivam seu consumo Em tudo isso e mais ainda na sua articulação com instituições voltadas para a leitura infantil no estado de São Paulo CELIJU Academia de Literatura Infantil e Juvenil Fundação para o Livro Escolar em nível nacional Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil Fundação de Assistência ao Estudante e por menor e mais frágil que seja o poder decisório de tais instituições o que se encontra é uma comunidade de escritores profissionalmente conscientes de sua importância peso e função dentro das instituições culturais e que do ponto de vista de mobilização articulamse com o perfil econômico atual da sociedade brasileira de forma mais adequada que seus companheiros que não escrevem para o público infantil No entanto os mesmos fatores que entrelaçam literatura infantil e escola e que eventualmente respondem pela modernidade desse segmento da produção cultural brasileira são também responsáveis pelo descompasso digamos estético entre a literatura infantil e a não infantil Tomando por parâmetro a produção literária brasileira contemporânea não infantil os livros para crianças parecem conservadores pagando com o que se poderia chamar de compromisso pedagógico seu ingresso no aparelho escolar Esta vocação pedagógica e inevitavelmente conservadora da literatura infantil não constitui opção consciente de seus autores configura antes a linguagem do gênero cuja força pode ser avaliada pela sua permanência ao longo de seu quase um século de história no Brasil5 e pela constatação de que o pragmatismo pedagógico é o traço que submerge primeiro nos momentos de ruptura como ocorre em O livro de Berenice de João Carlos Marinho metalinguagem dos impasses do gênero aprisionado entre uma tradição integrada e um desejo apocalíptico No interior das histórias e poesias mais antigas o protagonista era modelo acabado da criança que a escola se propunha formar como em Através do Brasil Olavo Bilac e Manuel Bonfim 1910 e Saudade Thales de Andrade 1918 6 Da mesma forma a sociedade brasileira contemporânea encontra na literatura infantil atual modelos condizentes com os valores e comportamentos liberais e tolerantes incorporados pela escola brasileira de hoje Assim as crianças perguntadeiras e maluquinhas a rebeldia contra o arbítrio exagerado a consciência ecológica a defesa das minorias temas recorrentes nos livros infantis de hoje mantêm com a escola contemporânea articulação homóloga à que em seu tempo mantinham com a escola de antanho outros temas o ama com fé e orgulho a terra em que nasceste bilacquiano o projeto ruralista de Thales de Andrade e as histórias da conquista do Oeste que proliferaram contemporaneamente à construção de Brasília no Planalto Central Além de refletirse internamente na adesão do texto à ideologia escolar e externamente no apoio da escola à circulação do gênero a interrelação literatura infantilescola manifestase ainda externamente ao texto mas internamente ao livro na extensão aos livros infantis e juvenis de tratamento didático semelhante ao dispensado aos textos incluídos em manuais de Comunicação e Expressão 5 Cf LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura infantil brasileira história histórias São Paulo Ática 1984 6 Sobre os compromissos ideológicos dessa produção ver LAJOLO M Usos e abusos da literatura na escola Bilac e a literatura escolar na República Velha Rio de Janeiro Globo 1982 Até os anos cinquentasessenta era prática corrente a utilização de textos literários como pretexto para exercícios gramaticais7 a partir daí no entanto o mesmo sopro de modernização que sancionou a produção de textos críticos e contestadores na esteira do prestígio crescente da Lingüística varreu do horizonte a análise sintática de estrofes camonianas Surgiram em seu lugar atividades mais condizentes com o processo geral de modernização por que passavam sociedade e escola brasileiras O primeiro momento de liberação do texto literário da gramática aguda coincidiu com a adesão a uma espécie de modelo simplificado de análise literária questionários a propósito de personagens principais e secundários identificação de tempo e espaço da narrativa escrutínio estrutural do texto Com pequenas alterações esse modelo persiste até hoje convivendo agora com propostas de leitura que desembocam em desencadeado ativismo Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para despertar e desenvolver o gosto quase sempre chamado de hábito pela leitura encontramse a transformação do texto narrativo em roteiro teatral e subseqüente encenação a reprodução em cartazes ou desenhos do tema da história ou de personagens do livro a criação a partir de sucata de objetos ou colagens de alguma forma relacionados à história as pesquisas que aprofundam algum tópico que o texto aborda o prosseguimento da história sua reescritura com alteração do ponto de vista entrevista real ou simulada com autor ou personagens do livro jogral ou coro falado quando se trata de poemas e tantas outras familiares a quem tem intimidade com a literatura infantil A freqüência com que essas atividades são sugeridas em fichas de leitura encartes suplementos e similares só se compara à sofreguidão com que quando ausentes são solicitadas pelos caros mestres às voltas com a árdua tarefa não só de fazer com que seus alunos leiam mas principalmente de fazer alguma coisa com o que seus alunos efetivamente leram A inclusão de sugestões de atividades em livros destinados ao público infantil já foi interiorizada como necessidade pelos professores que as solicitam quando não as encontram no livro que escolhem para seus alunos Até hoje a editora não preparou nenhuma ficha de leitura ou ficha de interpretação do Gênio do Crime como é uso em outros livros dados em classe a pedido meu Acho que tais fichas delimitam a apreciação do livro e a uniformizam Nas visitas que tenho feito em classe desde 1969 encontrei ótimos professores que segundo seu critério e segundo o adiantamento da classe adotam este ou aquele tipo de trabalho muitos excelentes e originais Não é minha intenção impor um método de trabalho sobre O Gênio do Crime Os professores que já experimentaram seus métodos particulares devem continuar o fazêlo O método ideal de exercício surge sempre da conjunção do modo de ser do professor com o modo de ser da classe coisa pessoalíssima e que uma ficha de leitura não pode prever Acontece que a editora há vários anos continua recebendo solicitações para que O Gênio do Crime venha acompanhado de uma ficha de leitura Atendendo a estes pedidos elaborei as seguintes alternativas ao método de trabalho8 O depoimento de João Carlos Marinho registra o momento em que os professores delegam a terceiros o planejamento das atividades de leitura que desenvolverão com seus alunos Se na origem dessa distorção está o despreparo do magistério seu achatamento salarial a precariedade das condições de seu exercício profissional reconhecer tudo isso não diminui a gravidade do fato de que a leitura patrocinada pela escola de hoje parece sofrer de uniformização Essa uniformização no entanto pode passar despercebida pois muitas vezes vem embrulhada em propostas que em nome de uma leitura lúdica e criativa gerenciam o envolvimento com o texto imergindo a leitura em atividades que apenas simulam criação e fantasia Ao lermos a história do Capitão Argo e sua nave prateada no planeta das árvores chamejantes que o Fausto Cunha inventou e que naturalmente vai interessar e muito aos préadolescentes podemos convidar o pessoal para embarcar numa nave imaginária e viver suas próprias peripécias Para isso precisamos pensar o espaço da viagem O espaço propriamente dito os possíveis itinerários o local da decolagem e aterrissagem o raciocínio da viagem e assim por diante Tiramos as cadeiras da sala de aula se possível ou as colocamos para um canto Limpo o chão embarcamos em nossas naves individuais ou em pequenos grupos SIC e nelas soltamos a nossa fantasia num vão realmente sem limites A nave espacial flutua e o nosso corpo flutua e nos leva a espaços desconhecidos e a mil aventuras9 Sem atenção para níveis metafóricos do texto e da leitura essa proposta referencializa e banaliza o ato de ler Condena à pobreza da improvisação teatral sugerida a viagem de cada leitor embarcao numa nave necessariamente pobre ao confinarse ao espaço mesmo sem carteiras de uma sala de aula empobrece a viagem ao cristalizála num itinerário prévio ao encolhêla a uma duração definida Não se trata evidentemente de dizer que tais atividades são desaconselháveis prejudiciais más em si mesmas Nada em si mesmo é bom ou mau O problema é que atividades sugeridas indiferenciadamente para muitos milhares de alunos distribuídas em pacotes endereçados a anônimos e despreparados professores passam a representar a varinha mágica que transformará crianças mal alfabetizadas e sem livros disponíveis em bons leitores Favorecem ainda a crença de que sua realização operará o milagre de transformar os professores em orientadores de leitura fazendo vista grossa à sua pouca familiaridade com livros não questionando sua leitura quantitativa e qualitativamente muito pobre deixando intocada sua estranheza face a práticas mais significativas da linguagem Na rotina de tais atividades camuflamse riscos sérios de alienação da leitura Aí sim tais atividades são más desaconselháveis prejudiciais Da perspectiva da indústria de livros o investimento em atividades de leitura desse tipo pode assegurar a fidelidade do professor a seus produtos uma vez que roteiros atividades fichas de leitura e seus congêneres promovem obliquamente o produto livro através de uma estratégia que capitaliza a insegurança e o despreparo do professor Da perspectiva dos professores o endosso acrítico de tais atividades parece sugerir que a internalização da burocracia e tecnocracia da escola brasileira posterior a setenta é a manifestação contemporânea da velha aliança sempre recelebrada entre literatura e escola Já da perspectiva estatal a instauração de uma política de leitura escolarada na dilusão apressada e superficial pela via de cursos treinamentos e publicações de tais atividades improvisadas sempre no nível da precariedade das condições materiais da educação brasileira não só descompromete o estado das responsabilidades pela qualidade do ensino como reforça o caráter reprodutor da escola na medida em que tira da responsabilidade do professor em diálogo com seus alunos e com suas leituras o planejamento das atividades de leitura em que vai engajarse com sua classe É nesse diálogo que as atividades de leitura adquirem sentido e podem agora sim tornarse práticas significantes Libertado da imposição delas o professor pode voluntariamente retornar a elas para senhor de sua disciplina e de seu curso selecionar aquelas em que mais acredita descartar outras nas quais não aposta reformular todas balizandoas pelo que conhece de seus alunos e da leitura deles pelo que conhece de língua linguagem e de literatura pelo que entende por ensino por leitura e por escrita e particularmente pelo que entende por ensinar Português no Brasil de hoje Para muito além das queixas eou bravatas que geralmente pontilham discussões sobre leitura e literatura infantil é preciso que se entenda essa antiga interrelação da literatura com a escola como histórica e social E que também se entenda que não se proclama nem se decreta por mais vontade que se tenha e por mais rebeldia que se ponha na voz a independência de um segmento da produção cultural das estruturas nem das instituições pelas quais tal produção circula e em cujo código encontra seu significado Tais são as premissas que precisam balizar projetos que objetivem efetiva democratização e qualificação das práticas sobretudo escolares de leitura no Brasil Os projetos precisam abrirse com a crítica da inevitável participação nos rituais de apropriação da literatura infantil pela escola e viceversa que os professores lutem por uma formação competente regular e supletiva que os liberte da tutela de cursos efêmeros e do paternalismo autoritário de receitas de leituras apostas a livros que os autores se mobilizem no sentido de fazerem frente à escolarização de seus textos e que os demais envolvidos nós todos discutamos nos circuitos bastidores e arrabaldes da literatura infantil o caráter histórico da organicidade institucional dos livros infantis refinando categorias para a compreensão dessa historicidade que também nos envolve cumprindo assim de forma mais crítica o papel que nos cabe e que ninguém cumprirá por nós 2 LEITURAS DO MUNDO MACHADO DE ASSIS UM MESTRE DE LEITURA1 Todo artista aspira a ser lido Não existe correspondência particular de um artista que consideramos experimental de Joyce a Montale que não mostre como aquele autor mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas de seu próprio leitor comum e atual aspirava a formar um futuro leitor particular capaz de entendêlo e de saboreálo sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendêlo apreciálo e amálo2 Em Contos fluminenses obra com que Machado de Assis estréia em volume em 1870 o leitor comparece não poucas vezes tratado sempre com deferência e educação na boca do que se poderia chamar de um narrador cordial O conto de abertura do livro Miss Dollar traz o leitor para dentro do texto já na primeira linha Érø conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar p 273 1 Este texto foi originalmente apresentado na mesaredonda 150 anos de Machado de Assis no XXXVI Seminário do GEL e posteriormente e com alterações no GT de Leitura e Literatura Infantil durante o IV Encontro Nacional da ANPOLL Ambos os eventos ocorreram em 1989 2 Eco Umberto O texto o prazer e o consumo In Sobre os aspectos e outros ensaios 2 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira sd p 100 3 O número entre parênteses indica a página da edição consultada ASSIS Machado de Obra completa Org Afrânio Coutinho Rio de Janeiro José Aguilar 1962 v II e III A essa benevolente alusão à conveniência narrativa seguemse considerações sobre os deveres de um narrador que desembocam em elogio à objetividade economia e racionalidade de recursos narrativos sem a apresentação de Miss Dollar ser o o leitor obrigado a process digressões que encheriam o papel sem adiatar a ação Não há hesitação possível vou apresentarlhes Miss Dollar p 27 Enganase no entanto a boafé de quem acreditar nessas promessas ao contrário do que arregaora o narrador entregase à volúpia de imaginar diferentes e variados tipos de leitores cujas previsões sobre a identidade da personagem título ela antecipa e desmente valendose da autoridade narratorial Começa refutando a imagem de Miss Dollar como uma inglesa pálida e degada escassa de carnes e de sangue p 27 creditada à imaginação de um rapaz dado ao gênio melancólico p 27 Linhas abaixo o texto inventa um outro leitor atribuindo a este a imagem de uma Miss Dollar robusta americana vertendo sangue pelas veias formas arredondadas olhos vivos e ardentes mulher feita refeita perfeita p 27 No parágrafo subsequente o mesmo imaginoso narrador investiga as expectativas de um outro tipo de leitor daquele que tendo já passada a segunda mocidade tem à sua frente uma velhice sem recursos para quem então a Miss Dollar do conto deve ser boa inglesa de cinqüenta anos dotada com alguns mi lúbricos esterlinos e que aportando ao Brasil em procura de assento para escrever um romance realizasse um romance verdadeiro casando com o leitor alucido p 27 Vêse que o narrador de Miss Dollar dispõe de galeria inesgotável de leitorespersonagens que faz desfilar pelo texto ao antecipar uma vez mais interpretações para a personagemtítulo ele convoca uma outra imagem de leitor que lisonjeiramente qualifica de mais esperto do que os outros p 28 e cuja esperteza parece consistir na interpretação de Miss Dollar como brasileira de quatro costados p 28 vindo seu nome à conta de sua riqueza Miss Dollar que dizer as coisas que a rapariga é rica p 28 É só depois dessa célere multiplicação de leitores imaginários incessantemente extraídos de sua algibeira que para alívio dos leitores de carne e osso o narrador cumpre finalmente sua promessa e desvela a identidade de Miss Dollar A Miss Dollar de romance não é o menina romântica nem a mulher robusta nem a velha literata nem a brasileira rica Miss Dollar é uma cadelinha gaga p 28 Essa assídua convocação do leitor prossegue pelo resto do conto mesmo quando o texto já navega desenvolvido as águas desatadas da narração O narrador qualifica com frequência o leitor de quem e com quem fala organizando hierarquicamente a galeria de leitores que constrói Se a moldura escolhida para os quadros da galeria for o contexto sóciohistórico da literatura machadiana a visita à galeria pode constituir lance sugestivo para o esboço de uma história social da leitura na segunda metade do século XIX brasileiro4 Em tal galeria ocupa o patamar mais baixo o leitor superficial cuja interpretação o narrador desqualifica sem rebuços O leitor superficial concluirá daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico Não era p 28 A ele seguese seu antípoda o leitor grave Algum leitor grave encontrará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles Provarei com isso que tem pouca crítica do mundo p 32 Mais adiante o narrador arrasta para cena outra casta de leitores os conspícuos Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse assim tão assíduo no caso de uma senhora exposta às condições do mundo p 36 4 Para uma história social da leitura no Brasil ver LAJOLO M ZILBERMAN R A leitora naifista São Paulo Brasiliense 1991 Como se vê mesmo estreante Machado já orquestra e embaralha os fios da ficção e da realidade transformando leitores em personagens tematizando e encenando os caminhos do envolvimento do leitor com a matéria narrada Como no caso do romancetexto que uma das presuntivas Miss Dollar pretendia escrever em trânsito para o romancevida o envolvimento amoroso da mesma presuntiva Miss Dollar com o virtual leitor pobretão do texto de Machado o percurso se cumpre sempre Essa metalinguagem constante amplifica ao máximo o miseenabyme da obra e guarda nas suas entrelinhas a ironia implacável que alguns anos e obras depois cairá com olímpica indiferença sobre a cabeça dos leitores de Brás Cubas Não se trata aqui evidentemente de discutir se o Machado de Brás Cubas já estava dentro do de Miss Dollar ou se este foi mudado naquele por efeito de algum caso incidente seria ocioso discutir isso leitor apressado O fato é que depois de tantas convocações para o interior de um texto que lhe discute as expectativas o leitor brasileiro do século passado que teve sob os olhos esta Miss Dollar estava pelas mãos seguríssimas do narrador machadiano educandose na leitura literária A constância da metalinguagem através da qual Machado a pretexto de seus leitores mas sobretudo para eles tematiza o ato de leitura em curso inscreve no texto uma espécie de pedagogia da leitura que não destoa do contexto brasileiro das últimas décadas do século passado quando o necessário fortalecimento do sistema cultural era bandeira assumida por todos os intelectuais É entre esses intelectuais que o em geral politicamente discreto Machado na pele do colaborador da imprensa carioca também milita em prol das letras nacionais Já em abril de 1858 nas páginas de A Marmota um Machado de dezenove anos pedia providências que defendessem o teatro brasileiro 5 Em sua Bibliografia de Machado de Assis J Galante de Souza registra não ter encontrado publicação deste texto anterior a Contos iluminados obra saída à luz em fevereiro de 1870 e composta de contos publicados no Journal das Famílias entre 1864 e 1869 acusado pela cultura francesa de carregação fazendo ver a necessidade de texto ilegível e um tratado sobre direitos de representação reservados com um opêndice e um pronto sobre traduções dramáticas p 788 O artigo revela um Machado bastante atento à República das Letras familiarizado com suas tretas e mutretas fazendose portavoz de reivindicações em prol da cultura brasileira Na berlinda o teatro ao qual Machado vai dedicarse com empenho cada vez maior como autor tradutor e crítico ao longo dos anos sessenta Não se trata pois de palpites de um curioso Em 1858 Machado não tinha ainda publicado nenhuma peça e assim sendo não advogava em causa própria mas já escrevia sobre teatro e nessa época o teatro era o palco onde se definiam os rumos da cultura nacional o que emprestava autoridade a sua voz A crítica de Machado enumera argumentos que justificam o imposto sugerido As tentativas neoufresçar diante deste czariniato de bastidores imoral e vergonhoso pois que tende a obstruir os progressos da arte A tradução é o elemento dominante neste caso que deveria ser a praça santa onde a arte pelos hábitos de seus criações falasse às turbas entusiasmadas e delirantes Transplantar uma composição francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda O que provém daí O que se está vendo A arte tornouse uma indústria e é parte mecida de operações bemsucedidas sem dúvida o nosso teatro é uma fábula uma utopía p 788 9 Não é essa a única ocasião em que Machado dedicase a inventariar obstáculos à produção artística brasileira Ainda em 1858 o mesmo Machado reconhece o gigantismo e a complexidade da questão da cultura nacional admitindo implicitamente o traço quixotesco de propostas fiscais como a sua no país que um pouco mais tarde 1874 no calor de uma polêmica sobre direitos autorais José de Alencar chamaria de país do monopólio6 6 Cf FARA João Roberto José de Alencar e o teatro São Paulo PerspectivaEdusp 1987 Em formulação aguda e precisa neste outro texto de 58 Machado como que se penitencia dos arroubos retóricos do texto anterior saturado de boas intenções mas também inchado de urcas santas lábios de oráculo e turbas delirantes Machado aponta agora com sobriedade notável o impasse maior da produção cultural em uma sociedade como a brasileira atrasada e anacrônica É mais fácil regenerar uma nação que uma literatura Para esta não há gestos do Ipiranga as modificações operamse vagarosamente e não se chega em um só momento a um resultado p 787 Novo artigo de Machado oito anos depois em 1866 insiste ainda uma vez no mesmo problema na Semana Literária do muito mais popular Diário do Rio de Janeiro o discurso machadiano sofre reajustes e incide sobre a literatura A trajetória desses artigos de Machado do teatro para a literatura parece oposta à da cultura nacional que no decênio de sessenta assistia à migração para o teatro de expoentes das letras como Macedo e Alencar7 empenhados ambos aparentemente em substituir a raridade e esquivança do público de romances pelo calor dos aplausos de platéias lotadas Neste artigo de 1866 Machado reclama de uma tempestade literária abaixo de zero queixa bastante compreensível tendo em conta que afora Casamento no arrabalde de Franklin Távora o panorama das letras brasileiras parece ter sido desolador nesse ano principalmente considerando as expectativas criadas pela publicação de Iracema no ano anterior 1865 Analisando a questão Machado atribui a pobreza da oferta literária à falta de gosto formado no espírito público e ao correr da crônica tempra seu desencanto com análise mais sofisticada dos elementos envolvidos na produção literária e que contribuem para seu desalento 7 É numerosa a produção teatral de Alencar e Macedo nos anos finais de 50 e nos primeiros anos da década seguinte É a seguinte a cronologia do teatro de Alencar no período em questão A noite de São João 1857 Vera e quartana 1857 O alemão familiar 1858 As asas de um anjo 1860 Mãe 1862 A expiação 1867 O juruá 1875 para Macedo a cronologia é O cego 1849 Cubó 1852 O fantasma branco 1856 O primo da Califórnia 1858 O sacrifício da Inocência 1859 Lavo e calandras 1860 O novo Otelo 1863 Lisbela 1863 A torre em extinção 1863 Machada de Assis um mestre de leitura e quando pensamos entre nós nessa posição excêntrica chamada editor se os escritores conseguem err carregarlo por meio de um contrato da impressão de seus coras é claro que o editor não pode oferecer vantagem aos poetas eles sim por isso é razão de que a venda do livro é problemática e difícil A opinião que deveria suspenso o livro darlhe vez corcálo enfim no Ceprídio moderno esse como os heróis de Tácito brilha pela ausência Há um círculo limitado de leitores a concorrência é quase nula e os livros aparecem e morrem nas livrarias Não dizemos que isso ocorra com todos os livros nem com todos os autores mas a regra geral é esta p 841 Reencontrase nesse texto de 1866 o mesmo Machado que oito anos antes apontava a precariedade das condições de existência e desenvolvimento do teatro brasileiro ele continua atento às condições necessárias para a produção cultural e documenta agora a pobreza da infraestrutura disponível para o desempenho das Letras no Segundo Império Em crônica de 1895 para A Semana um agora já editadíssimo Machado de Assis mestre e patrono das letras brasileiras também elas já às vésperas da institucionalização numa Academia que iria desfrutar do beneplácito do Estado continua acompanhando com atenção gestos e rituais que selam o destino das Letras no Brasil Replonta no texto um discreto otimismo e uma ainda mais discreta gratidão que afloram quando Machado registra trâmites da legislação sobre direitos autorais o Sr Senedor Romiro Barcelos achou entre os seus cuidados um momento para pedir que entrasse na ordem do dia o projeto de Direitos autorais O senhor presidente do Senado de pronto acordo incluiu o projeto na ordem do dia Resta que o Senado correspondendo à iniciativa de um e à boa vontade de outro vote e conclua a lei p 668 Ainda em 1895 e nas páginas da mesma A Semana o tema retorna quando Machado discute a falta de leitura no Brasil Agora sem presidentes do Senado no horizonte desaparece o otimismo Em seu lugar erguese a ironia fina metonimicamente apoiada no deslocamento de leitura na paisagem cultural brasileira deslocamento que se agrava mais ainda quando somado ao registro do sotaque francês da cultura em circulação Que pouco se lê a este tempo é o que muita gente afirma há longos anos é o que occeocana de dizer um bibliônaro na Revista Brasileira Este porém AS AVENTURAS DE NGUNGA NA ESCOLA E NA LEITURA Não posso matar o meu texto com a arma do outro Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto Invento outro texto Interfiro descrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade As aventuras de Ngunga obra de Pepetela tem o apelo das obras feitas no calor da hora escrita que foi nas manhãs de dez dias debaixo de uma árvore numa carteira da mata na frente Leste O texto produzido nessas condições foi divulgado pela primeira vez em 1973 a partir dos 300 exemplares mimeografados pelo MPLA que circularam de forma sorrateira entre os combatentes pela libertação de Angola Se esse modo de produção é incomum para um livro a história que ele conta é bem mais trivial são os conflitos e experiências temores e amores que vive o protagonista Ngunga órfão de treze anos cujos pais foram surpreendidos pelos inimigos um dia nas lavras Os inimigos já se sabe são os tugas e os amigos também já se sabe são os combatentes os povos dos kimbos o mestreescola e para tudo ser como deve o próprio narrador Versão anterior deste texto foi publicada em 1983 no número 1 de EPA Estudos Portugueses e Africanos IEL Unicamp Rui Manuel Cinco vezes onze Poemas em novembro União dos Escritores Angolanos 1985 Pepetela José As aventuras de Ngunga São Paulo Ática 1983 Nas citações os números entre parênteses indicam a página desta edição Corruptela de turtuga portugueses forma pejorativa de referirse aos portugueses colonialistas As aventuras de Ngunga na escola e na leitura As condições de produção do livro seu públicoalvo e a militância política de seu autor fazem com que essa obra de sua concepção à sua circulação constitua projeto que estabelece entre o político e o literário o pacto de solidariedade firmado na tradição ocidental moderna em momentos de alteração social profunda O interesse que esse livro de Pepetela desperta entretanto não se deve apenas ao fato de ele fazer parte de um projeto político que confia à escrita a pedagogia revolucionária não é original nem necessariamente interessante a criação de um texto literário para difusão de um projeto político Quantos projetos similares ao de Pepetela não se encontram na tradição literária européia que em vários momentos abriu espaço para o cruzamento do estético com o político Para não recuar muito aquém do século passado nem ir muito além da pátriamãe fiquese com a belíssima exortação de Antero de Quental ao poeta Erguete pois soldado do Futuro E dos raios de luz do sonho puro Sonhador faze a espada do combate Pepetela pode pois invocar em seu favor o precedente de Antero que estará em excelente companhia Longe de constituir uma solução no entanto o precedente de Antero levanta uma questão interessante pois o interesse que o livro de Pepetela desperta nasce exatamente dessa falta de originalidade do projeto que parece ter presidido à sua elaboração Tratase de um precedente branco ocidental e português a cultura portuguesa inscrevese na européia na qual se inventaram livros escolas leitura literatura e todos os etcéteras de que se ocupam letrados aquém e além da Taprobana Curiosamente no entanto livros não obstante serem mídia privilegiada da cultura burguesa não por acaso também européia no nascimento costumam ser concebidos como efficientíssimos agentes de contracultura de resistência cultural e até mesmo como arma revolucionária Quental Antero de Sonetos 3 ed Lisboa Sá da Costa 1968 DO MUNDO DA LEITURA PARA A LEITURA DO MUNDO Que pirueta dialética permite então conciliar no mesmo saco gatos tão distintos como burguesia e revolução socialista liberalismo e libertação cultura letrada e contracultura É exatamente o que se pergunta a esse Pepetela de Ngunga supondose que Angola Pepetela e seu Ngunga sejam outros gatos de outríssimos sacos Serão A questão começa na observação de que As aventuras de Ngunga constitui de certa forma versão africana contemporânea de antigos projetos gerados e executados na velha Europa do século XIX Por exemplo na Itália e na França que no fim do século passado fizeram circular com exemplar eficiência os textos de Cuore e de Le tour de la France par deux garçons cimento precioso na argamassa patriótica dos projetos nacionais então em curso Tanto a obra italiana quanto a francesa são ao mesmo tempo romances de formação e obras de consolidação de unidade nacional Surgiram ambas em momentos de crise de suas respectivas sociedades O livro de De Amicis engajase no projeto de unificação italiana e o de G Bruno revigora o ânimo nacional francês seriamente abalado pela derrota militar diante da Alemanha A simpatia de que tais projetos estéticopedagógicos gozam junto às elites letradas findusiècle é grande É tanta a simpatia que o projeto atravessa os mares já dantes navegados e aporta ao Brasil onde Olavo Bilac e Manuel Bonfim engajamse na bemsucedida empresa de produzirem um similar nacional o famosíssimo Através do Brasil lido e relido por muitas e muitas gerações patrióticas Assim com Pepetela o projeto refaz a travessia atlântica na rota das caravelas e continuando a gozar de credibilidade recoloca a questão será que um projeto cuja versão primeira serviu de consolidação da ideologia liberal burguesa inclusive em seus desdobramentos colonialistas pode ser impunemente reciclado cem anos depois nas tropicais florestas e cidades de uma Angola às vésperas da libertação E se pode a que preço Logo à primeira visita percebese que em comum com os projetos anteriores o livro de Pepetela tem um protagonista criança Se na cultura ocidental a infância é a fase da vida marcada por fragilidade e insegurança traços que desde Perrault constituem prato cheio para a sensibilidade de leitores igualmente ocidentais fica por saberse se o solitário Ngunga produz impacto similar na sensibilidade de seus leitoresalvo a população de Angola envolvida na guerra de libertação Outro traço que aproxima o livro de Pepetela de seus modelos europeus é a orfandade do protagonista No livro francês a perda dos pais coincide com a perda da nacionalidade e as crianças então duplamente órfãs abandonam a AlsáciaLorena zona de ocupação alemã e fogem para a França em busca dos remanescentes da família Não é preciso dizer que recuperam ao mesmo tempo ambas pátria e família Quando o leitor termina o livro os meninos já são crescidos proprietários pais de família e supõese felizes para sempre na melhor tradição do conto de fadas de origem igualmente européia O Ngunga de Pepetela sofre a mesma carência dupla de pais e de pátria e embora em seu horizonte não haja parentes a procurar tendo o colonialismo como agente de sua orfandade sua busca de sobrevivência solitária e autosuficiente coincide com a busca do povo angolano do estatuto novo de nação independente Novamente Pátria e Família com maiúsculas identificamse Ecoam pois no projeto de Pepetela fragmentos de outras ideologias de terras outras e sobretudo de outros tempos Parece que Angola começa tudo de novo refazendo no projeto de sua literatura o percurso de institucionalização cumprido por literaturas européias Mas talvez a semelhança resida mais nos óculos do que no objeto contemplado pode tratarse de olhos e óculos treinados a reduzirem tudo a seu código de origem Mas como nem mesmo Machado sabia se o que tinha mudado era ele o Natal ou ambos registrese apenas a tentação e o risco de ler as literaturas do Terceiro Mundo inclusive a verdeamarela com olhos e gosto educados nas produções culturais do Primeiro Mundo Riscos e tentações crescem e tropeçam na constatação a propósito desse Pepetela de que são os modelos do Primeiro Mundo os padrões aos quais recorre o escritor deste Mundo Número Três quando se debruça sobre sua folha em branco Pois é Há que dizerse no entanto que se Ngunga vem na esteira de vários romances educativos ocidentais ele também ostenta algumas feições autônomas A começar pela linguagem que é simplíssima nada de períodos longos de parágrafos maciços de subordinações encadeadas Em vez disso muitos diálogos e quando é necessária a intervenção do narrador o registro dela não difere do de seus narrados Tratase de uma linguagem que guarda marcas fortes da oralidade das narrativas populares sugerindo uma recepção de texto que se afasta da recepção livresca escolar ocidental e que dá sentido emergencial e menos pitoresco àquele modo de produção sob as árvores e sob o sol Reforçando a oralidade os capítulos são sempre muito curtos e frequentemente se fecham de forma lapidar com frases que evocam fórmulas rituais de encerramento de narrativas populares Assim foi o teste do nascimento de Lumongo o primeiro filho de Kayro de Maria p 9 Foi assim que Ngunga deixou a Seção e seus amigos Voltaria a visitálos prometia ele com vontade de chorar p 27 É através dessa preservação da oralidade que o livro de Pepetela afastase dos modelos europeus e recupera seu horizonte de cultura terceiromundista em cujo contexto começa a esgarçarse a hegemonia dos já aludidos traços europeus e ocidentais de seus modelos literários De Amicis G Bruno e mesmo nosso Olavo Bilac não conhecem meiostons O quadro de valores que suas narrativas endossam e propagam tem a nitidez das ortodoxias acima de qualquer suspeita bem e mal certo e errado adulto e criança são mundos estanques que jamais se interpenetram No Pepetela de Ngunga ao contrário a nuance o meiotom e a ambigüidade estão presentes o tempo todo fecundando o texto Idade e orfandade do protagonista que já se viu serem ponto comum entre o romance angolano e obras de outras tradições culturais são tratadas diferentemente por Pepetela No livro de Bilac por exemplo a condição infantil é sistematicamente reprimida pois é rebelde às exigências do real social e histórico sendo jogo prazer e brincadeiras sempre controlados em nome de um valor mais alto que se alevanta o dever o trabalho o estudo Mais ainda não é sempre o paternal narrador bilacquiano quem em Através do Brasil comete o infanticídio o irmão mais velho assume o papel repressor o que sugere que em projetos pedagógicos bemsucedidos o abafamento da infância acaba incorporado pela própria criança O fato de os irmãos serem dois tanto no livro francês quanto no brasileiro como que facilita a escalonada e paulatina substituição do sercriança pelo sergentegrande cabendo ao primogênito iniciar o caçula nas sucessivas e dolorosas fases de maturidade É nesse aspecto que o solitário Ngunga ganha muitos pontos em comparação a outros heróis juvenis ocidentais Na voz de seus vários interlocutores Ngunga ora é criança demais ora demasiado crescido para ser dono de sua vontade Assim manipulada a condição infantil tornase presa de fácil dominação Mas Ngunga resiste e nessa sua resistência traço original do livro em face dos similares europeus e brasileiros está o traço maior de solidariedade a que esse livro convida seus leitores Em seu longo itinerário de conquista da maturidade que nas circunstâncias específicas angolanas equivale a tornarse militante na luta pela libertação do país Ngunga preserva a noção de liberdade individual e lhe dói sempre a injustiça de um mundo organizado e gerido por adultos autoritários mesmo quando esses adultos são pioneiros eou guerrilheiros Todos os adultos eram assim egoístas Ele Ngunga nada possuía Não tinha uma coisa era essa força dos brasis E essa força ele oferecia aos outros trabalhando na lavra para arranjar o com da dos guerilheiros O que ele tinha oferecia Era generoso Mas os adultos Só pensavam ne es Até mesmo um chefe do povo escolhido pelo Movimento para dirigir o povo Estava certo p 15 Mavinga foi ter com os mais velhos Ngunga ficou a olhar o velho Cripoya muito vaidoso ao lado do Comandante que ao Kavxi Lus exp crodotores todos eles e nomeados pelo Moviment por dirigir o povo p 54 A defesa da infância se faz explicitamente no elogio de Ngunga ao professor União O camarada professor é copaz de ser cindo um bocadb crionça não sei Por isso dinda é bom Mas também é mau Com o Crivicula foi mau Não devia mcrdálo embora p 30 A desconfiança em face do mundo adulto transparece tambéem no pouco entusiasmo com que Ngunga encara a escola Em conversa com o Comandante Mavinga o ideal escolar adulto e ocidental na origem não parece seduzir muito o menino que defende o aprendervivendoefazendo em lugar da aprendizagem institucionalizada da escola Ngunga tu és pequeno demais para ser guerilheiro Aqui já te disse que não podes ficar Andar só como fazes não é bcm Jm dia vai acontecerte uma coisa má E não estás a aprender cado Como Estou a ver novas terras novos rios novas pessoas Cico c que falam Estou a aprender Não é a mesma coisa Numo escola aprendes mais E assim vos connecer o professor Já viste um professor p 20 Para todos os efeitos o ponto de vista do comandante e do narrador leva a melhor e Ngunga vai efetivamente para a escola A lição que ele lá aprende entretanto é a lição de solidariedade e lealdade ficando a alfabetização para mais tarde e assim mesmo só tolerada como instrumento para a causa maior a da libertação de Angola se soubesse escrever podia meter um bilhete nc celda de União e combina rem juntos a fuga Mas pouco se interessara por aprender só gostava mesmo de passear Pela primeira vez Ngunga desação co professor cue lhe dizia que um homem só pode ser livre se ceixer de ser ignorante p 37 Também ao contrário dos romances de formação ociden tais o final do livro de Pepetela não coincide com nenhuma restauração universal de equilíbrio Ngunga não recupera os pais happyend de Atrazés do Brasil em que era falsa a notícia da morte do pai dos meninos e tampouco seu pais consolidase como independente Ngunga como protagonista desa Parece de cena e as talas finais do livro são do narrador que se dirige diretamente ao leitor exortandoo a descobrir e culti var o Ngunga que cada um tem dentro de si O desaparecimento de Ngunga é voluntário e como solu cão narrativa aproximase muito do antológico desapareci mento de Ceci e Peri no olho da palmeira o menino desaparece na selva e desaparecendo ressurge como mito O que não sendo uma rima pode bem ser uma solução Solução narrativa que textualiza com os impasses vivi dos pela literatura angolana leitura escrita e escola Práticas e instituições impostas pelo colonizador a partir de certo pon to elas tornamse essenciais para a libertação do jugo colo nial cabendo à literatura expressão simbólica a tal passagem e a nós profissionais da leitura desenvolvimento das catego rias críticas que dêem conta de tal movimento favorecendo a elaboração de uma teoria e de uma história da leitura espe cífica das regiões do planeta onde ela chegou na esteira de pro jectos coloniais LOBATO UM DOM QJIXOTE NO CAMINHO DA LEITURA Já viste Reinações de Narizinho Vou falar na edi tora que te mandem Dei também Alice no País das Maravilhas e Robinson tudo na mesma semana E ontem falei no Rádio com a filhinha do Octales a Cleo uma menina que é um encanto de desembaraço Dialogamos inventadamente sobre o que nos veio à cabeça e todos gostaram2 A década que se abre em 1930 é difícil para Lobato que de Nova York cm 91 desabafa com a irmã declarandose encalacrado em dívidas Hás de crer que acabo de cometer um dos maiores erros de minha vida Entrei no Stock Excnange com todos os recursos que pude reunir certo de fazer fortuna Errei o bote Em vez de ganhar já perdi metade do meu cap tal e estou ameaçado a perder o resto e ainda devendo alguma coisa Estou em arranjos com o Octales para vender o resto das ações que tenho na companhia se isso se der estarei habi tado a receltar o perd de tal vez sai ganhando Seria uma operação muito difícil meses atrás mas com a escassez absoluta de dinheiro que anda em São Paulo creio que este passo falhe falhando tenho de sair perdendo3 Em maio do mesmo ano e ainda de Nova York ele anuncia ao amigo Fomoura as providências relativas a suas precárias finanças e que se traduzem em proposta feita à edi tora Nacional escrevi ao Octales propondo uma série de novos livros infantis que ele ande qucrerco publicar en troca de ele me custear os despescos da coerça do Egger Caso ele ace ile irá converson com você para combinar o pagamento do que já forneceste e Teca Minha moeda sempre é livro sic e vamos ver agora se reizz o moedc os livros en estado policial que tenho na cobega4 O envolvimento de Lobato retornado ao Brasil em 1931 com a campanha do petróleo prolonga o tempo das vacas magras e faz com que sua sobrevivência dependa cada vez mais dos livros infantis que escreve e das traduções que faz Destacamse aqui as obras cuja temática por interessar à escola ou por desfrutar do prestígio dos clássicos garante circulação ampla e recompensa financeira para um quase insolvente Lobato que em novembro de 1933 anuncia a Anísio Teixeira Emilia no pais da gramática Estou escrevendo Emilia no país da gramática Está estupendo Indo agora fiz a entrevista de Emilia ne qualidade de repórter do Grito do Picapau Amarelo um jornal que ela vai fundar no sítio com o Venerabilissimo Verbo SER que ela trata respeitosamente de Vossa Senhoria Está tão persóstica Anísio que você não magia5 Em 15 de agosto do ano seguinte em carta a Viana Lobato alude ao sucesso do livro A minha Emilia está realmente um sucesso entre os crianças e os professores Sisto dizer que tirei uma edição inicial de 20000 e o Octales está com medo que não aguente o reste do ano Só aí ro Ro 4000 vendidas num mês Mas a critico se Teto não sarcbeu o significação da obra Vale como significação de que há caminhos novos para o ensino das matérias obrstras Numa escola que visiei o criação da me rodeou com grandes festas e me pediram Iça o Emilia do pai da arritmética Esse pedido espontâneo esse grito dalma da criança não está indicando um caminho O livro con o temas torturo os pobres crianças e ne entanto poderie diverrilos como a gramática da Emilia co está fazendo Todas os erros sodiam tomar se una pândega una tarra infantil A química a física a biologia a geografia prestamse imenscmente porové ideam passa as dimensões objetuais do livro em questão e textualizase o teor clássico castiço e castilho da linguagem assusta os ouvintes não obstante a propaganda de Dona Benta Dona Benta começou a ler Num lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrarme vivia não há muito um fidalgo dos de lança em cabido adarga antiga e gojoso corredor Crê exclamou Emília Se o livro traíço é nessa perfeição de língua até logo Vou brincar de esconder com o Quindim Lança em cabido adarga antiga galgo corredor Não entendo estas viscondessas não p 11 Ameaçada de perder seu público Dona Benta recua e concilia esta obra está escrito em alto estilo rico de todas as perfeições e sutilezas de forma razão pela qual se tornou clássica Mas certo vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária er vez de ler vou contar a história com palavras minhas Isso berrou Emília Com palavras suas e de tia Nastácia e minhas também e de Narizinho e de Pedrinho e de Ribicó Os viscondes que falem arrequezado lá entre eles Nós que não somos viscondes nem viscondessas queremos estilo de claro de ovo bem transparente que não dê trabalho para ser entendido p 12 A idéia dessa leitura ao alcance de todos não é novidade na obra de Lobato Já em seu livro inaugural as Reinações de Narizinho ele encenara no sítio do Picapau Amarelo a propósito de Pinocchio proposta de leitura bastante similar A roda de Dona Benta ler era boa Lia diferente dos livros Como quase todos os livros de crianças que há no Brasil são muito sem graça cheios de termos do tempo de onça ou só usados em Portugal a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil que não existe por exemplo lume lá fogo onde estava lixeira lia varanda E sempre que dava com um botouo ou comeuo lia botou sie comeu sie e era o dobro mais interessante Como naquele dia os personagens eram da fábula Dona Benta começou a aumentar a voz de um ratinho galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de farrapos e assim o Pinocchio inventou uma vizinha de taquara rachada que era direito como o boneco devia ficar1 1 Reinações de Narizinho 7 ed São Paulo Brasiliense 1987 p 199200 Dona Benta leitora experiente toma a si a tarefa de apontar à sua platéia os elementos necessários ao fortalecimento da vocossimilhança da compreensão do envolvimento Ao narrar por exemplo o encontro de D Quixote com o jovem chicoteado pelo amo ela sugere categorias pelas quais sua audiência pode reconhecerse na personagem Num ândice estive no ponto de onde vinham os gritos Que vê lá um menino assim um pouco maior do que Pedrinho agarrado a um tronco de árvore e a receber uma tremenda sova de correião p 28 Assim pelos expedientes de sua leitura Dona Benta favorece o envolvimento que amarra o leitor ao texto e o envolve Os resultados não se fazem esperar Ao fim do episódio quando Dona Benta relata a ironia com que o amo diz ao menino espancado vai agora atrás do tal defensor dos inocentes e pedelhe que te cure o lombo Ah Ah Ah p 30 Narizinho não se contém E o menino foi indagou Narizinho denoda com a brutalidade do homem p 31 dando a deixa para Pedrinho Pois eu iria disse Pedrinho Fugiu e só ia pelo mundo até encontrar de novo D Quixote e tentarlo para rachar os baderneiros de dança e briga com a onça p 32 O episódio cala fundo em todos inclusive em Emília que sonha que o malvado patrão do André apareceu no sítio p 45 O viver vidas alheias promessa sedutora e irresistível da leitura de ficção é aqui encenado à maravilha não faltando sequer a ruptura do envolvimento ou seja o retorno ao real no caso patrocinado por Emília Ao fim do episódio a boneca chama a atenção de Pedrinho para o fato de que rachar baderneiros de alto a baixo só com a espada uma vez que lança é só para espetar Multiplicamse assim passagens nas quais Lobato cifra questões de leitura a partir de situações de leitura vividas pelas personagensleitoras e que podem conjugiar os leitoresleitores De leitores de papeletinta a leitoresdecarneeosso o projeto se encorpa ao longo do livro reforçandose em uma confissão de Pedrinho relativa a uma leitura aparentemente feita sem a interferência de adultos ia ser uma vez que caiu em casa aquele livrinho da história de Carlos Magno e dos doze pares da França Comecei a ler e fui me esquentando me esquentando até que não pude mais Minha cabeça virou fiquei assim com o de D Quixote Convincime de que eu era o próprio Rodolfo Fui lá no quarto das calculações e tirei aquela espada que pertenceu ao velho tio Encarnações e molheia no rego bem amoladinha E quando a senhora sou com tia Nastácia e Narizinho para visitar o compadre Teodorico ah que regalia Corri ao moral e não vi ninguém pé de milho na minha frente Só vi mourões AN Caí em cima deles de espada que foi uma beleza Destróios completamente Não ficou um só Que coisa gostosa Nastácia gritou Dona Benta Venho ver quem nos esgangalhou o milharal Foi Pedrinho p 1023 À semelhança do que sucedera por ocasião dos serões nos quais Dona Benta contava às crianças a história de Peter Pan cuja tradução adaptada de Lobato é de 1930 quando a sombra cortada de Peter Pan sugere a Emília picotar a sombra de tia Nastácia também nesse D Quixote a boneca não fica imune à loucura do protagonista Emília continuava a dar viracambotas Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança e começou a espetar todo o mundo E botou um cinceiro de estan na cabeça dizendo que era o elmo de Mambrino Por fim inventou re Visconde dizendo que era Rocinante p 154 Dona Benta foi vaqueira pela panela e de fato viu as cistripúlmas que Emília e tal Ribicó estava fazendo no quintal Vestidinho de cavaleiroandante toda cheia de armaduras ao corpo e de elmo na cabeça avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste fazendo a bicharada fugir com pavor no maior grito Até o galo que era um canijó valente correra e esconderse dentro de um cícico Dona Berta gritoulhe várias vezes que paresse com aquilo Tudo inútil A parece fora tomada dum verdadeiro delírio de heroísmo p 1801 Tampaoco falta ao livro a idéia de que ouvir a história de D Quixote não é a mesma coisa que lêla e lêla na íntegra cabendo também a Dona Benta chamar a atenção das crianças para a diferença entre originais e suas adaptações É uma lástima disse Dona Benta eu estar contando só a parte aventureira da história do cavaleiro do Maroto Um dia quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais aceita pela cultura haveremos de ler o outro inteira nesta tradução dos dois viscondes que é ótima p 212 A tradução em questão é a do visconde de Castilho e visconde de Azevedo apresentados por Dona Benta no começo dos serões O visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa É considerado um dos melhores clássicos isto é um dos que escreveram em estilo mais perfeito Quem quiser saber a porcujês a fundo deve lêlo e também Herculano Camilo e outros p 11 Para quem estranha essa adesão consentida aos clássicos o prosseguimento da conversa sobre adaptação traz outros elementos de surpresa prosseguindo a defesa da superioridade da leitura de obras integrais Dona Benta discute o desencontro entre a tradução de Castilho e a recepção dela pelo pessoal do sítio É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora Hoje usamos a linguagem mais simplificada possível como o de Machado de Assis que é o nosso grande mestre Os escritores portugueses que chamamos clássicos usavam uma forma menos singela mais cheia de termos próprios mais rica mais interpolada p 22 Mais adiante um pouco e face à geral condenação da norma culta pela audiência do sítio que através da boca de Emília acusa o estilo clássico de dar dor de cabeça e constituir uma charada Dona Benta explica Para vocês meus filhos que estão começando a chegar com a língua já eu entendo o período perfeitamente sem nenhuma dificuldade p 213 A relação de Dona Benta com a cultura é assumidamente uma relação mais complexa mais aprofundada mais antiga e que assim se proclama sem falsos escrúpulos de um igualitarismo enganoso O que parece sugerir que entre um iniciador de leitura e os iniciandos ou entre um professor e seus alunos não se deve estabelecer nenhum nivelamento por baixo Dona Benta como todo e qualquer leitor competente aliás como todo e qualquer usuário competente da língua escrita e oral é poliglota isto é transita com facilidade do estilo clássico de Castilho para o estilo coloquial de sua platéia Mas tem plena consciência de que ambas as modalidades são diferentes e que sua responsabilidade como iniciadora de jovens na prática de leitura é leválos até o classicismo de Castilho Em outra passagem do livro vêm à tona as expectativas da escola em face da leitura dos jovens Conversando com Emília que atribui sua crise de loucura à revolta contra tanta besteira que há no mundo Dona Benta retruca Lá vem você com as palavras plebeias Muitas professoras Emília criticam esse seu modo desbocado de falar Besteira Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie Use expressão mais culta Diga por exemplo notice p 195 Como os anos trinta são o tempo em que Lobato usa da pena para sobreviver o quanto essa sobrevivência depende da aprovação das senhoras professoras é fácil de imaginar a partir do que vivemos hoje quando a escola decreta se a personagem do romance juvenil pode ou não fumar maconha pode ou não ficar embriagada se pode dizer merda ou deve dizer droga A completa conversão de Emília que ao fim do episódio adere a formas menos quixotescas de protesto parece atestar já ao tempo de Lobato a forte dependência da literatura juvenil da escola Assim nesse D Quixote das crianças o leitor encontra material bastante rico para reflexão sobre questões de leitura de leitura dos clássicos da adequabilidade de certas linguagens a certos públicos do papel a ser representado pelo adulto responsável pela iniciação dos jovens na leitura e mais miudezas Naqueles pacatos anos trinta ainda sem roteiros de leitura fichas de atividades sugestões de trabalhos sem notas de rodapé nem glossários Dona Benta patrocina a seus ouvintes as experiências e as discussões de leitura necessárias ao amadurecimento deles fazendo a ponte entre algumas questões nossas contemporâneas diante de leitura escrita e escola e o encaminhamento que tais questões tiveram em outro momento de nossa história cultural TECENDO A LEITURA Um galo sozinho não tece uma manhã ele precisará sempre de outros galos De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã desde uma teia tênue se vá tecendo entre todos os galos O poema de João Cabral sugere uma bela concepção de leitura os galos que tecem a manhã evocam os leitores que tecem o significado dos textos com que se deparam ao longo da vida Tecendo a manhã conota artesanato solidariedade e diálogo construindo uma metáfora que sublinha aspectos relevantes para uma reflexão sobre o papel da leitura numa sociedade democrática Fica pois a tecelagem prática ancestral de fiar de tingir e de urdir os fios de entrelaçálos em tecidos matriz metafórica da leitura Ao longo da história a arte de tecer deslocanas hoje barulhentas indústrias têxteis onde o antigo tecelão por participar apenas de uma das etapas da produção perde o sentido da totalidade tanto do objeto que produz como do processo pelo qual o objeto é produzido À semelhança da história da tecelagem a modernização ininterrupta do modo de produção do livro a partir de Gutenberg tornou possível e mesmo necessária a massificação da leitura trazendo para o horizonte dela o risco de alienação de fracionamento e esgarçamento do significado do texto e do ato de ler A atividade da leitura que em suas origens era individual e reflexiva em oposição ao caráter coletivo volátil e irrecuperável da oralidade de poetas e contadores de histórias transformouse hoje em consumo rápido do texto em leitura dinâmica que para ser lucrativa tem de envelhecer depressa gerando constantemente a necessidade de novos textos O ato de ler foi de tal forma se afastando da prática individual que a tarefa que hoje se solicita de profissionais da leitura como professores bibliotecários e animadores culturais é exorcizar em o risco da alienação muito embora eles possam acabar constituindo elo a mais na longa e agora inevitável cadeia de mediadores que se interpõem entre o leitor e o significado do texto Esse papel de intermediário pode afastar da prática docente o artesanato que a leitura exige O que se reserva aos professores de hoje a partir inclusive de sua formação profissional é a divulgação de livros a decifração de significados a intermediação e o patrocínio do consumo de textos impressos É só muito incidentalmente e como que por acréscimo a iniciação de jovens na leitura talvez porque em nossa tradição cultural a leitura como prática coletiva só exista muito esgarçadamente Tomar consciência das ambigüidades desse papel pode ser o primeiro passo para mudanças qualitativas nos projetos e práticas de leitura particularmente as escolares que ocorrem em diferentes circuitos da cultura brasileira a começar da ruptura da cadeia de alienações em que se insere a prática escolar da leitura no Brasil de hoje A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados Mas se a leitura literária é uma modalidade de leitura cumpre não esquecer que há outras e que essas outras desfrutam inclusive de maior trânsito social Cumpre lembrar também que a competência nessas outras modalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderia chamar de capital cultural de uma sociedade e conseqüentemente responsável pelo grau de cidadania de que desfruta o cidadão Numa sociedade como a nossa em que a divisão de bens de rendas e de lucros é tão desigual não se estranha que desigualdade similar presida também à distribuição de bens culturais já que a participação em boa parte destes últimos é mediada pela leitura habilidade que não está ao alcance de todos nem mesmo de todos aqueles que foram à escola Mas ler no entanto é essencial E não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada dos requintes da ciência e da técnica da filosofia e da arte literária A própria sociedade de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagem escrita e chega por vezes a transformar em consumo o ato de ler os rituais da leitura e o acesso a ela Assim no contexto de um projeto de educação democrática vem à frente a habilidade de leitura essencial para quem quer ou precisa ler jornais assinar contratos de trabalho procurar emprego através de anúncios solicitar documentos na polícia enfim para todos aqueles que participam mesmo que à revelia dos circuitos da sociedade moderna que fez da escrita seu código oficial Mas a leitura literária também é fundamental É a literatura como linguagem e como instituição que se confiam os diferentes imaginários as diferentes sensibilidades valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute simbolicamente seus impasses seus desejos suas utopias Por isso a literatura é importante no currículo escolar o cidadão para exercer plenamente sua cidadania precisa apoderarse da linguagem literária alfabetizarse nela tornarse seu usuário competente mesmo que nunca vá escrever um livro mas porque precisa ler muitos Como a manhã que no poema de João Cabral se perfazia pelo entrelaçamento do canto de muitos galos também a leitura principalmente a literária parece constituir um tecido ao mesmo tempo individual e coletivo Cada leitor na individualidade de sua vida vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que ao longo da história de um texto este foi acumulando Cada leitor tem a história de suas leituras cada texto a história das suas Leitor maduro é aquele que em contato com o texto novo faz convergir para o significado deste o significado de todos os textos que leu É conhecedor das interpretações que um texto já recebeu é livre para aceitálas ou recusálas e capaz de sobrepor a elas a interpretação que nasce de seu diálogo com o texto Em resumo o significado de um novo texto afasta afeta e redimensiona o significado de todos os outros Desse ponto de vista a história da literatura de um povo é a história das leituras de que foram objeto os livros que integram o corpus dessa literatura No entanto se o texto literário mais do que qualquer outro oportuniza leituras divergentes há também o risco de que o peso e a autoridade das leituras de que ele foi objeto ao longo da história silenciem as outras tantas leituras que ele virtualmente pôde e pode suscitar em outros leitores Nesse sentido história e teoria literárias quando transformadas em argumento de autoridade quer como justificativa para a inclusão de determinado texto ou autor no currículo escolar quer como endosso de interpretação deste ou daquele texto podem ser paralisantes Entre a interpretação sancionada pela comunidade intelectual e a interpretação livre do leitor anônimo reside o equilíbrio difícil em que precisa moverse o professor de leitura e de literatura Apostando assim numa concepção de leitura que a vê ao mesmo tempo como instituição e como prática coletiva parece que se pode privilegiar a reflexão sobre a natureza e o percurso social da leitura deixando em plano secundário discussões sobre metodologias e estratégias que em nome dela leitura costumam ser incorretamente vistas como os elementos determinantes do famoso e reclamadamente ausente interesse dos jovens pela leitura Se algumas metodologias e estratégias propostas para o desenvolvimento da leitura parecem enganosas por trilharem caminhos equivocados o engano instaurase no começo do caminho a partir do diagnóstico do declínio ou da inexistência do hábito de leitura entre os jovens Espalilhada em hábito a leitura tornase passível de rotina de mecanização e automação semelhant a certos rituais de higiene e alimentação só para citar áreas nas quais o termo hábito é pertinente Tanto o diagnóstico ausência ou declínio do hábito de leitura quanto a terapia estratégias de motivação para a leitu ra sugerem alienação do modo de leitura patrocinado numa sociedade como a nossa o que também se revela no léxico de controle social e de automação com que se discute a formação do professor reciclagem treinamento estratégias hábitos Os caminhos precisam ser outros A discussão sobre leitura principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizarse começa dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores Um professor precisa gostar de ler precisa ler muito precisa envolverse com o que lê E esse não é infelizmente o perfil comum do professor Pesquisa recente feita entre professores de primeiro grau e bibliotecários de Campinas e do Recife mostrou como o repertório de leitura desses profissionais é desolador constituído a maior parte das vezes por bestsellers tão antigos quanto Fernando Capelo Gaivota O menino do dedo verde e O pequeno príncipe ou pelo que se poderia chamar de clássicos escolares como A moreninha Iracema e A escrava Isaura A precariedade da situação que essa pobreza de repertório indica é grave E a gravidade aumenta quando se sabe que para muito além do conhecimento mecânico de metodologias e técnicas de desenvolvimento da leitura a formação de um leitor exige familiaridade com grande número de textos É preciso pois que haja espaço para leitura nos cursos destinados a profissionais de leitura Se afirmar isso soa redundante cumpre lembrar que em tais cursos a ênfase fica geralmente por conta da prescrição de títulos e do treinamento em atividades como fazer cartazes recortar figuras dramatizar textos fazer jogos Atividades interessantes e que podem realmente tornar mais agradável o tempo de escola mas que são inócuas quanto ao papel que representam na interação leitorlivro que é afinal aquilo em que a leitura consiste É importante frisar também que a prática de leitura patrocinada pela escola precisa ocorrer num espaço de maior liberdade possível A leitura só se torna livre quando se respeita ao menos em momentos iniciais do aprendizado o prazer ou a aversão de cada leitor em relação a cada livro Ou seja quando não se obriga toda uma classe à leitura de um mesmo livro com a justificativa de que tal livro é apropriado para a faixa etária daqueles alunos ou que se trata de um tema que interessa àquele tipo de criança a relação entre livros e faixas etárias entre faixas etárias interesses e habilidades de leitura é bem mais relativa do que fazem crer pedagogias e marketing Menos ou mais sofisticados os exercícios que sob o nome de interpretação compreensão ou entendimento do texto costumam sucederse à leitura são quase sempre exercícios que sugerem ao aluno que interpretar compreender ou entender um texto atividades que podem muito bem definir o ato de leitura é repetir o que o texto diz O que é absolutamente incorreto Sorry como diz o samba é triste mas é realidade e apenas severidade e rigor permitem perceber que escola e professor são talvez os únicos pontos de ruptura da leitura alienada e consumista E rigor e severidade de análise sugerem também que para que ocorra a ruptura é preciso uma guinada radical nos rumos que norteiam as políticas de leitura atualmente em prática O mecenato do Estado através do provimento de bibliotecas o patrocínio empresarial que esporadicamente doa livros a uma ou outra escola a ação do Estado na formação de professores constituem instâncias à que se deve pode e tem de recorrer Recorrer a elas no entanto é preciso que se aprenda a fazer frente ao paternalismo de que geralmente se reveste a atuação de tais instâncias para o que é preciso que as associações profissionais conquistem espaço crítico e que através delas a comunidade docente passe a ter voz e voto na política cultural e educacional brasileira O modelo capitalista de nossa sociedade e nossa condição de país dependente não deixam abertos outros caminhos Mas descaminhos há muitos Relativamente à leitura nosso desgoverno e nossa imaturidade política parecem manifestarse às vezes através de uma rivalidade de competências bibliotecários escritores professores primários secundários e universitários parecem desculparse cada um de ser o que é e de não ser o outro O resultado é o descarte numa equivocada condenação da competência exatamente daquilo que por ser atributo da cultura e do saber permite a passagem do discurso à ação da leitura à vida e para encerrar retornando ao texto de abertura do canto de galo à luz da manhã Índice Onomástico Abreu e Lima 19n Abril Educação editora 12n 13 14 Academia de Literatura Infantil e Juvenil 68 Ackroyd Roger 34 Aguerra Carlos Artur 63 Alencar José de 57 61 81 82 Alice no País das Maravilhas 94 Alma infantil 41 Alvarez Padre 61 Amaral Emília 15n Amicis Edmond de 23 88 90 Andersen 96 Andrada Marlim Francisco Ribeiro de 53 Andrade Carlos Drummond de 23 51 66n Andrade Jacinto Freire de 54 55 Andrade M 49n Andrade Mário de 29 Andrade Thales de 69 Ariès Philippe 26n Aritmética da Emília 97 Assaré Patativa do 62 63 65 Assis Machado de 8 22 36 61 77 80 81 82 83 84 85 90 102 O Ateneu 58 59 60 Através do Brasil 69 88 91 93 As aventuras de Ngunga 86 88 90 91 Azevedo visconde de 102 Babo Lamartine 52 Bakhtin M 31 Barbosa José Juvêncio 63n Barbosa Rui 55 56 61 65 Barcelos Senador Ramiro 83 Barthes Roland 11 Bernardes P Manuel 56 Bernardes Maria Thereza Caribby Crescenti 19 Bilac Olavo 14 23 41 42n 61 62 66 67 69 88 90 91 Bolívar Simón 19 Bomény Helena Maria Bousquet 63 Bonfim Manuel 69 88 Borges Abílio César barão de Macaúbas 20n 58 59 60 Bosi Ecléa 60n Branco Camilo Castelo 102 Bruno G 88 90 Caminha Adolfo 17n Camões Luís de 11 22 Carvalho Filisberto de 63 Carvalho Laerte Ramos de 61 Casamento na arrabalde 82 Castilho visconde de 102 103 Ceci e Peri 93 CELD Comissão Estadual do Livro Didático 64 CELIJU Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil 68 Cervantes Miguel de 97 99 Chardin Jean Baptist Siméon 44n CNLD Comissão Nacional do Livro Didático 64 Collodi Carlo 23 COLTEF Comissão Nacional do Livvo Técnico e Didático 64 58 Índice onomástico 111 Contos de Conan Dover 96 Contos fluminenses 77 80 Coutinho Afrânio 77n Covinho Lino 54 Cunha Fausto 71 Cunha Maria Antonieta Antunes 42n Cure 23 68 Damasceno D 47 Dean James 28 Deus João de 21n Diário do Rio de Janeiro 82 Dietzsch Mary Julia M 19n Dom Casmurro 61 Dom Quixote das crianças 97 101 103 Doyle A Conan 96 Eco Umberto 31 77n Emília no país da gramática 95 96 A ervona Larama 108 FAF Fundação de Assistência ao Estudante 68 Faria João Roberto 81n FENAME Fundação de Material Escolar 64 Fernão Capelo Gaivota 108 Ferreira Octales Marcondes 94 95 96 97 Fish S 43 FLE Fundação para o Livro Escolar 64 68 Fontoura da Silveira Cândido 94 Fraccarolli Lenira 28 França Dr A F 19n Frasão Manuel José Pereira 20n 52 53 55 61 65 Freire Ana Maria Araújo 60n Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil 68 O genio da crime 23 71 Geografia de Dona Benta 97 Gibson Walter 33n Gomes Antônio Carlos 25n Grimm 96 Guimarães Sonia Dantas Pinto 63 Gutenberg 105 Hallewell Lawrence 67n Herculano Alexandre 102 História das invenções 97 História do mundo para crianças 97 História social da criança e da família 26n O homem invisível 96 Hollywood 27 Inácio Padre 20 INL Instituto Nacional do Livro 64 Incidente em Antares 16 Infância 59 60 Iracema 82 108 Jakobsson Roman 43 44 Jansen Carlos 23 57n João VI D 57 Jornal das Famílias 80 Joyce James 77 Júlia Francisca 41 42n Khede Sonia S 67n Koster Henry 57 58n Laemmert editora 23 Lajolo Marisa 15n 19n 42n 56n 57n 67n 69n 70n 79n 85n 88n Lancaster José 19 Lima Alceu Amoroso 42 O livro da jungle 96 O livro de Berenice 69 Lobato Monteiro 8 23 94 95 96 97 98 99 100 101 103 Luccock John 53 Lucena Pe João de 56 Macaúbas barão de v Abílio César Borges Macedo Joaquim Manuel de 82 Marinho João Carlos 23 69 71 Marins Francisco 23 A Mornuta 80 Martins Maria Helena 19n Mártires Frei Bartolomeu dos 54 Meireles Cecília 40 41n 45 47 50 Melhoramentos editora 30 31 58 112 Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo Melo Neto João Cabral de 104 106 Memórias póstumas de Brás Cubas 16 80 85 Mendes Odorico 54 O menino do dedo verde 108 Miss Dollar 77 80 84 85 Moacir Primitivo 53 Moderna editora 29 Montalc Eugenio 77 Morais L M 49n A moreninha 108 MPJA Movimento Popular pela Libertação de Angola 86 Nacional editora 95 97 Nunes Cassiano 95 Octales v Octales Marcondes Ferreira Oliveira João Batista Araújo e 63 64 Pepetela José 8 86 87 88 89 90 91 92 O pequeno príncipe 108 Pereira Carlos de Aquino 57n Perrault Charles 22 23 89 96 Pessoa Fernando 12 13 Peter Pan 101 Le philosophe lisant 44n Pinocchio 23 98 Pinto Fernão Mendes 56 O poço do Visconde 97 Poesias infantis 23 41 A política do livro didático 63 64 Polyana moça 96 Pompéia Raul 58 59 60 65 Presley Elvis 28 Quadrilha 23 Quental Antero de 87 Ramos Graciliano 7 59 60 65 Rangel Godofredo 96 Reinações de Narizinho 94 98 Revista Brasileira 83 Robinson Crusoe 94 Romero Silvio 56 57n 61 Rosa João Guimarães 7 65 Rosa Noel 52 Rousseau JJ 23 Rui Manuel 86 Saldiva Associados 13 Sampaio Bittencourt 25n Saudade 69 A Semana 83 Serões de Dona Benta 97 Sheldon Sidney 36 Silva E Theodoro da 15n 18n Silva Júlio da 41 42n Soares Magda B 18n Sousa Frei Luís de 56 Souza J Galante de 80 Steiner George 44 Tácito 83 Távora Franklin 82 Teixeira Anísio 95 Tompkins Jane 33n Le tour de la France par deux garçons 88 Veríssimo José 56 O vestido de Lazara 45 46 48 49 Viana Francisco José de Oliveira 95 Vidas secas 7 Wells H G 96 Zillcerman Regina 15n 18n 19n 42n 56n 57n 69n 70n 79n Zola E 17 mundo da leitura na escola Seus tópicos essenciais são o livro didático a literatura infantil e juvenil as práticas escolares de leitura o currículo a formação e o preparo dos professores Em análises consistentes derivadas de grande capacidade teórica e de longa prática de observação Marisa Lajolo sempre mediante exemplos concretos questiona uma série de valores e funções atribuídos à literatura infantojuvenil na escola Esse questionamento no entanto não procura fechar portas e sim abrilas trata de repor soluções e práticas Desse modo a autora avança sugestões e estimula a reflexão de todos os interessados em tema e prática tão importantes Na segunda parte do livro a leitura do mundo ocupa o primeiro plano graças à análise de textos literários que investigam a leitura o leitor a escola a iniciação à leitura É assim que Miss Dolar de Machado de Assis As aventuras de Ngunga de José Pepetela e D Quixote das crianças de Monteiro Lobato trazem iluminações exemplares sobre as questões discutidas na primeira parte Essa concatenação é mais uma das qualidades também exemplares de Do mundo da leitura para a leitura do mundo Sua análise do universo cultural brasileiro incorpora dados e situações econômicosociais sem incorrer em simplismos ou reduções Neste livro que versa sobre o amplo sentido do termo leitura o estilo da autora claro e elegantemente descontraído unese ao vigor de sua análise para formar um todo isto é um texto que convence e conquista
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SERIE EDUCACAO EM ACAO MARISA LAJOLO DO MUNDO DA LEITURA PARA A LEITURA DO MUNDO EDITOR Fernando Paixao ASSISTENCIA EDITORIAL Mario Videla PREPARACAO DE TEXTO Renato Nicolai EDICAO DE ARTE MOTOB Milton Takeda COORDENACAO GRAFICA Jorge Okura COMPOSICAO Maria Ines Rodrigues PAGINACAO EM VIDEO Eliana Ap Fernandes Santos CAPA Ary Normanha ISBN 85 08 04383 X 1993 Todos os direitos reservados Editora Atica SA Rua Barao de Iguape 110 CEP 01507900 Tel PABX 011 2789722 Caixa Postal 8635 End Telegrafico Bonlivro Fax 01 277 4116 Sao Paulo SP Cecilia Canalle Regina Zilberman e Pedro Bandeira em exercicio de amizade leram generosamente os originais Pela leitura e pelos palpites a autora agradece assumindo no entanto integral responsabilidade pela teimosia que impediu completo aproveitamento das sugestoes feitas SUMARIO Introducao 7 1 NO MUNDO DA LEITURA A leitura literaria na escola 11 Literatura infantojuvenil fada madrinha de um curriculo em crise ou genero descartavel para um leitor em transito 17 I 17 II 25 Os leitores esses temiveis desconhecidos 33 Poesia uma fragil vitima da escola 41 Livro didatico e Lingua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 52 Literatura infantil e escola a escolarizacao do texto 66 2 LEITURAS DO MUNDO Machado de Assis um mestre de leitura 77 As aventuras de Ngunga na escola e na leitura 86 Lobato um Dom Quixote no caminho da leitura 94 Tecendo a leitura 104 Indice onomastico 110 INTRODUÇÃO Ninguém nasce sabendo ler aprendese a ler à medida que se vive Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola outras leituras se aprendem por aí na chamada escola da vida a leitura do vôo das arribações que indicam a seca como sabe quem lê Vidas secas de Graciliano Ramos independe da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros Como entre tais coisas e tais outros incluemse também livros e leitores fechase o círculo lêse para entender o mundo para viver melhor Em nossa cultura quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida mais intensamente se lê numa espiral quase sem fim que pode e deve começar na escola mas não pode nem costuma encerrarse nela Do modo da leitura à leitura do mundo o trajeto se cumpre sempre realizandose inclusive por um viceversa que transforma a leitura em prática circular e infinita Como fonte de prazer e de sabedoria a leitura não esgota seu poder de sedução nos estreitos círculos da escola Aposto nisso e constitui uma espécie de profissão de fé nessa aposta o que tenho discutido ao longo dos eventos que motivaram os textos aqui reunidos Mundo da leitura leitura do mundo onde acaba um e começa a outra Talvez os limites sejam esgarçados aquela terceira margem do rio de que fala Guimarães Rosa Muito embora estritamente entrelaçados na vida real mundo da leitura e leitura do mundo distinguemse aqui invocando a temporária suspensão do real que os livros patrocinam como forma de iluminar e fecundar o retorno ao real em cada parte do livro predomina um deles 8 DO MUNDO DA LEITURA PARA A LETURA DO MUNDO A primeira parte é constituída de ensaios mais direta e ostensivamente relacionados ao mundo de papel impresso de escola de alunos e professores de livro didático de literatura infantil e juvenil Currículo formação de professores práticas escolares de leitura particularmente de leitura literária formas de inserção de livros escolares e de leitura em diferentes momentos do sistema cultural brasileiro são as portas de ingresso para as questões e reflexões que incidem sobre diferentes aspectos do mundo da leitura Na segunda parte a leitura do mundo entra mais ostensivamente em cena trazida para a berlinda pela análise de algumas representações que leitura escola e literatura encontram em diferentes textos literários Machado de Assis José Pepetela e Monteiro Lobato são por assim dizer casos que resolvem de modo positivo e legitimado pela história literária o que se discutiu e problematizou nos textos da primeira parte Em seus textos afloram diferentes projetos de educação de leitores de alfabetização de leitura dos clássicos de cambulhada com histórias de amor de guerra e de loucura Os textos comentados nos introduzem em mundos com os quais se tropeça tanto no silêncio da vida de cada um quanto no estardalhaço das situações e notícias que diariamente trazem o distante e o estranho para dentro de nós No seu conjunto os ensaios propõem itinerários possíveis para o percurso indicado pelo título sugerem que a reflexão teórica a abordagem histórica e a análise textual constituem trajetos seguros e paisagens sedutoras na tão necessária travessia do mundo da leitura à leitura do mundo e seu viceversa A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA Se por não sei que excesso de socialismo ou barbárie todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto uma é a disciplina literária que devia ser salva pois todas as ciências estão presentes no monumento literário Mudamse os tempos mudamse as vontades sonetava Camões pela janela do século XVI E o mesmo constatamos nós em esferas mais baixas examinando ainda que sem o talento do poeta meia dúzia de livros didáticos ou paradidáticos de literatura Figurinos e modas não faltam O que parece faltar é inspiração e elegância que permitam passar da máxi à míni sem mostrar canelas escalavradas nem joelhos sujos E antes que alguém pergunte se se fala da moda ou do texto literário em classe saibase que a epígrafe de Barthes é salvoconduto para tomar do universo da moda as primeiras metáforas O que fazer com ou do texto literário em sala de aula fundase ou devia fundarse em uma concepção de literatura muitas vezes deixada de lado em discussões pedagógicas Estas de modo geral afastam os problemas teóricos como irrelevantes ou elitistas diante da situação precária que dizse espera o professor de literatura numa classe de jovens A precaric ¹ Versão anterior deste texto foi apresentada em mesaredonda sobre Literatura e Ensino organizada em Porto Alegre pelo Goethe Institute PUCRS e Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul e com o título O texto literário na sala de aula posteriormente publicado no Boletim da ALBS Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul no 283 p 237 2 BARTHES R Aula São Paulo Cultrix 1980 p 18 ambigüidade o meiotom a conotação sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpretação como se consomem pipocas e refrigerantes De modo geral não se pode e talvez nem se deva fugir a alguns encaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura por exemplo a inscrição do texto na época de sua produção uma vez que textos assim contextualizados nos dão acesso a uma historicidade muito concreta e encarnada à qual se cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor outro caminho a inscrição no texto do conjunto dos principais juízos críticos que sobre ele se foram acumulando fundamental para fazer o aluno vivenciar a complexidade da instituição literária que não se compõe exclusivamente de textos literários mas sim do conjunto destes mais todos os outros por estes inspirados outro exemplo ainda a inscrição do e no texto no e do cotidiano do aluno entendendo que este cotidiano abrange desde o mundo contemporâneo no que essa expressão tem intencionalmente de vago e de amplo até os impasses individuais vividos por cada um nos arredores da leitura de cada texto Se o professor não conhece tais impasses e provavelmente não os conhece nem precisa conhecêlos a vivência que tem de seus impasses e a forma como diferentes textos dialogam com tais impasses são suficientes para sugerir comentários perguntas e atividades que encaminhem nessa direção o trabalho com o texto Numa última perspectiva o desencontro literaturajovens que explode na escola parece mero sintoma de um desencontro maior que nós professores também vivemos Os alunos não lêem nem nós os alunos escrevem mal e nós também Mas ao contrário de nós os alunos não estão investidos de nada E o bocejo que oferecem à nossa explicação sobre o realismo fantástico de Incidente em Antares ou sobre a metalinguagem de Memórias póstumas de Brás Cubas é incômodo e subversivo porque sinaliza nossos impasses Mas sinalizandoos ajuda a superálos Pois só superandoos é que em nossas aulas se pode cumprir da melhor maneira possível o espaço de liberdade e subversão que em certas condições instaurase pelo e no texto literário longo e árduo atividade exigida leitura obrigatória expressões cinzentas e duras em harmonia com uma escola como a brasileira amarga e curtida por políticas educacionais equivocadas A função desse professor bemsucedido confinase ao papel de propagandista persuasivo de um produto a leitura que sob a avalanche do marketing e do merchandising corre o risco de perder ao menos em parte sua especificidade A compreensão desse estado de coisas parece fundamental ilumina o contexto escolar brasileiro no qual discussões sobre e propostas para usos do texto literário em classe podem transformarse em armadilha para o professor que sentindose fragilizado busca respostas imediatas para seus problemas concretos As propostas transformamse em armadilha quando patrocinam discussões das quais se sai com as técnicas debaixo do braço e confiante na terapêutica Técnicas milagrosas para convívio harmonioso com o texto não existem e as que assim se proclamam são mistificadoras pois estabelecem uma harmonia só aparente mantendo intacto quando já instalado o desentroncmentre leitor e texto Vários professores ouvidos na pesquisa da editora Abril têm sugestões a fazer Tratase geralmente de propostas que somam ao idealismo ingênuo o imediatismo das soluções enlatadas sugestões bemintencionadas sem dúvida que reduzem o atrito e aumentam a digestibilidade da aula mas lidam superficialmente com a questão resolvendo o problema pelo seu contorno passando ao largo das zonas profundas de conflito os livros deveriam ser mais dinamizados e rejeitados seria preciso levar obras literárias até os alunos de um maneira inteligente interessante e proveitosa seria importante ter um audiovisual de leitura 5 Mas ouvir professores é tarefa de amor como dizia Bilac a propósito de estrellas tarefa de amor pois talvez o professor seja peça secundaria na escola de hoje e consequentemente sua voz se faça ouvir com timidez no que respeita aos destinos do texto literário em classe Não parece que o que fazer com c Ver nota 5 o texto literário na sala de aula seja ainda de sua competência Já faz alguns anos que decidir isso é da competência de editoras livros didáticos e paradidáticos muitos dos quais se afirmaram como quase monopolizadores do mercado escolar na razão direta em que tiraram dos ombros dos professores a tarefa de preparar as aulas O que há então para o professor é um script de autoria alheia para cuja composição ele não foi chamado leitura jogralizada testes de múltipla escolha perguntas abertas ou semiabertas reescritura de textos resumos comentados são alguns dos números mais atuais do espetáculo que ao longo do território nacional mestres menos ou mais treinados estreiam para plateias às vezes desatentas às vezes rebeldes quase sempre desinteressadas sobrando a seção de queixas e reclamações para congressos seminários cursos de atualização e congêneres ou então pesquisas como a que aqui está sendo comentada Talvez não se tenha refletido ainda o bastante sobre alguns traços que modernas pedagogias e certos modelos de escola renovada imprimiram à educação principalmente ao ensino de literatura Nesse sentido urge discutir por exemplo o conceito de motivação porque é em nome dele que a obra literária pode ser completamente desfigurada na prática escolar Propor palavras cruzadas sugerir identificação com uma ou outra personagem dramatizar textos e similares atividades que manuais escolares propõem é periférico ao ato de leitura ao contato solitário e profundo que o texto literário pede Ou o texto dá um sentido ao mundo ou ele não tem sentido nenhum E o mesmo se pode dizer de nossas aulas O texto em sala de aula é geralmente objeto de técnicas de análise remotamente inspiradas em teorias literárias de extração universitária Mas se no âmbito universitário a teoria literária pode ainda preservar uma semântica geral do texto na transposição das ditas teorias para o contexto didático esse sentido maior costuma adelgaçarse e rarefazerse a ponto de ficar quase irreconhecível7 Na escola anulase a 7 CE AMARAL Emília O ensino de literatura no segundo grau Dissertação de mestrado mimeo IFIUnicamp 1986 LAPOLO M Leitura e literatura mais que uma rima e menos que uma solução In ZILBERMAN R SILVA K TInodromo dia orgs Leitura perspectivas interdisciplinares São Paulo Ática 1988 um problema talvez seja mera representação contemporânea de uma crise muito maior e muito mais antiga faz tempo que não se sabe qual é a formação necessária ao professor de língua materna porque também não se tem claro a função da escola no que se refere à competência linguística que o aluno deve dominar ao abandonar os bancos escolares Neste tempo nosso fértil em discussões várias o assunto está embaralhadíssimo Circulam com sucesso crenças como a de que o professor não deve corrigir o texto dos alunos que ele deve deixar o aluno escrever como fala que a escola deve respeitar o dialeto do aluno que redação não deve ter nota e outras similares afirmações e negações E todas e cada uma delas tomadas fora do contexto em que foram formuladas e aplicadas a toque de caixa em atividades que variam de exercícios propostos por livros escolares a metodologias desenvolvidas em cursos relâmpago ficam fora do lugar Imobilizamse em crenças por um lado insuficientes para romper o autoritarismo compacto do aparelho escolar E por outro inadequadas para satisfazer as expectativas que a comunidade alimenta em face da escola3 Não se advoga aqui evidentemente o retorno às listas de verbos e plurais irregulares nem a volta às redações do tipo Uma lágrima ao cair da tarde O que se sugere é que a rapidez com que o ensino da Língua Portuguesa se desvencilhou de tais práticas e absorveu outras por ter ocorrido no bojo de um movimento maior de projetos educacionais e políticos talvez parcialmente gorados pode ter travestido de populismo o que na origem era autêntica vontade democrática Hoje os tempos são outros menos eufóricos e mais amadurecidos Podemos então na colheita dos primeiros resultados e das primeiras perplexidades tentar corrigir os rumos procurando resgatar no novo percurso o já tantas vezes adiado projeto de democratização e qualificação da educação brasileira Nesse sentido e com esses objetivos o primeiro passo é a inserção histórica das questões educacionais inclusive da 3 Relativamente a tais expectativas ver SOARES Magda B As condições sociais da leitura uma reflexão com contraponto In ZILBERMAN R SILVA L Theodoro de orgs Leitura perspectivas interdisciplinares São Paulo Ática 1988 Trinta anos depois 186364 outro documento sublinha o descaso pelo ensino da língua materna e da leitura e registra a baixa remuneração do magistério Um pai ao levar seu filho ao colégio recomenda que não se gaste tempo com o estudo de Português que todos sabem que estude o Francês e o Latim porque lhe disseram que a gramática portuguesa estudavase na leitura O menino escreverá em português sim mas no português que aprendeu com sua ama concordará o verbo do singular com o sujeito do plural e cometerá os maiores disparates Como exigir que o país se honre com larga cópia de brilhantes escritores se a matériaprima de toda arte de escrever o padrão idioma lhes foi negada pela própria sociedade que inicialmente lhes reclama o fruto de uma semente que ela não lançou à terra Exijase pois o estudo da Língua Portuguesa familiarizemse os alunos com o correto dizer dos que falaram e escreveram a língua e teremos removido uma grande dificuldade6 quais são os homens que entre nós se ocupam do magistério Ou antes é este entre nós uma profissão Não Nenhum homem que dispõe de um certo cabedal de conhecimento deixa ocupações muitíssimo mais vantajosas para se dar a uma vida inglória e penosa a um sacerdócio todo de obnegação como o magistério7 Outro texto prefácio de um livro escolar editado em 1870 endossa as críticas ao ensino da leitura e da língua materna sublinhando a inexistência de material didático adequado a maior parte dos meninos aprendem a ler sem livros servindose principalmente nas localidades centrais ou pouco consideráveis dos cartilhas do Pe Inácio de bilhetes e cartas às vezes oh Deus com que letra e ortografia ou de gazetas que seus pais lhes fornecem ou de velhos aules pelo comum indecifráveis que os próprios mestres lançam dos tabeliães do lugar E não é por alsic que os nossos meninos geralmente falando saem das escolas aos 13 e 14 anos de idade no mais lastroso estado de ignorância sem o hábito de pensarem e sem ligarem o mínimo valor ao que lêem8 Vem de 187879 e de alémmar um último testemunho aqui convocado o fragmento de uma carta na qual o autor de uma cartilha portuguesa sugere que a adoção de sua obra poderia solucionar os problemas educacionais brasileiros 1 Eu tenho um Método como sabes que na edição para o Brasil dedico ao chároche desse estado Já esta circunstância pedia da parte de teus compatriotas alguma atenção comigo Ora a isso acresce a singular reputação do Método e sendo tu o que és na repartição da Instrução Pública dessa província e meu amigo deviaste lembrar de mim e de ti e desse público a quem tal Método tanto podia utilitzar Faz tu o que eu faria no teu lugar e já te indiquei Envia a um homem de letras ou reconhecidamente competente a tomar conhecimento deste processo de ensino que as despesas bem cabem nas forças da província e depois verás que todos abençoarão a despesa e a missão Fazes um bom serviço público Doíte destas crianças atormentadas pela ignorância e pelo caminho onde levaram a ti e a mim na leitura e na escrita o mestre é um demônio que nos inspira horror e a escola um verdadeiro inferno Dói também os milhões de analfabetos que lá há de haver como ainda cá De modo que o amor dos homens e o amor do progresso te convido a este empenho e estou que em ti querendo facilmente conseguirás a resolução de todos9 A viagem por esses textos mais antigos sugere que não estamos sozinhos e nem somos poucos ao contrário os educadores que nos falam pelos textos transcritos contam que somos herdeiros de uma tradição educacional pobre e improvisada a qual precisa ser o contexto de qualquer avaliação do que se tem feito ou dito até agora Estabelecido esse chão histórico para a questão mais ampla da formação do professor é tempo de se levantarem hipóteses que na forma antipática de prérequisitos podem mapear o terreno sugerindo algumas práticas valores e conteúdos essenciais à formação do professor O professor de Português deve dispor de uma noção ampla de linguagem que inclua seus aspectos sociais psicológicos biológicos antropológicos e políticos Ele deve ser usuário competente da modalidade culta da Língua Portuguesa Deve nesse sentido ser uma espécie de poliglota precisa dominar competentemente várias modalidades de linguagem de forma que se disser nós vai e se escrever paçarinho irá fazêlo por opção consciente e não por desconhecimento de outras opções O professor de Português deve estar familiarizado com uma leitura bastante extensa de literatura particularmente da brasileira da portuguesa e da africana de expressão portu 9 DEUS João de gucsa Frequentador assíduo dos clássicos sua opção pelos contemporâneos pelas crônicas curtas ou pelos textos infantis deve ser quando for o caso mera preferência Em outras palavras o professor de Português pode não gostar de Camões nem de Machado de Assis Mas precisa conhecêlos entendêlos e ser capaz de explicálos O professor de Português deve estar familiarizado com a história do ensino da Língua Portuguesa no Brasil com a história da alfabetização da leitura e da literatura na escola brasileira Pois só assim poderá perceberse num processo que não começa nem se encerra nele e poderá no mesmo gesto tanto dar sentido aos esforços dos educadores que o precederam como ainda sinalizar o caminho dos que o sucederão No que respira especificamente à literatura infantojuvenil não parece que sua inclusão como disciplina no currículo de formação de professores de qualquer grau seja isoladamente uma solução não há varinhas de condão muito embora recentemente a literatura infantil talvez por falar tanto de fadas pareça querer atribuirse a função de resolver os problemas de leitura da escola brasileira No entanto embora sua inclusão como disciplina no currículo que forma professores de primeiro grau e no de Letras que forma os professores desses professores não vá por si só produzir efeitos milagrosos é importante no diaadia do currículo iniciará o professor no estudo específico de um ramo da produção cultural que freqüenta assiduamente suas classes Mas para que a inclusão da literatura infantojuvenil em currículos escolares cumpra eficientemente tal papel outras providências se fazem igualmente necessárias É essencial por exemplo compreender que a literatura infantojuvenil é um produto tardio da pedagogia escolar que ela não existiu desde sempre que ao contrário só se tornou possível e necessária e teve portanto condições de emergir como gênero no momento em que a sociedade através da escola necessitou dela para burilar e fazer cintilar nas dobras da persuasão retórica e no cristal das sonoridades poéticas as lições de moral e bons costumes que pelas mãos de Perrault as crianças do mundo moderno começaram a aprender É também fundamental que se entenda que a noção de criança alterase com o tempo que a criança da qual falava Rousseau não é a mesma para a qual escrevia Perrault e que esta por sua vez não é a criança para a qual Edmond de Amicis escreveu Cuore a qual a seu turno é diferente do pimpolho para o qual Collodi escreveu Pinocchio e assim indefinidamente como na Quadrilha de Drummond em que João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que etc etc etc no rodopio sem fim das cirandas Traduzindo a historicidade dessa noção de criança para o panorama da infância brasileira e dos livros a ela destinados cumpre ao professor de Língua Portuguesa entender que a criança em quem Jansen pensava ao traduzir clássicos infantis para a editora Lacemert era diferente da criança para a qual Olavo Bilac compôs suas Poesias infantis esta por sua vez não se confundia com a criança para a qual Monteiro Lobato criou o Sítio do Picapau Amarelo e nenhuma delas com a criança para a qual Francisco Marins escreveu a saga de TaquaraPoca a qual também não se confunde com a criança que lê e se identifica com O gênio do crime de João Carlos Marinho Assumir essa noção de infância como construção histórica sempre retomada implica perceber que a noção de criança que assumem os educadores de cada época tem tanto ou nada a ver com pimpolhos de carne e osso quanto os raios de sol têm a ver com as formulações dos físicos sobre a luz importa que ambas as noções no caso de criança e de luz funcionem isto é produzam os resultados esperados quando transformadas em premissas Como funcionaram cada uma a seu tempo as imagens de criança que a literatura infantil brasileira assumiu e pôs em circulação ao longo de sua constituição enquanto modalidade cultural Assim inscritas na história as formulações apressadas que fazem das crianças anjos ou demônios começam a mostrar os materiais e andaimês de sua construção entre os quais destacamse disciplinas como a Pedagogia a Psicologia a Biologia e outras senhoras E se é verdade que o educador não precisa assumir integralmente nenhuma dessas noções precisa conhecêlas todas para posicionarse frente a elas discutilas sempre de forma a poder reconhecer quando uma ou outra se manifesta nas entrelinhas de propostas de alfabetização ou de projetos de leitura que lhe são oferecidos no meio de acervos de literatura infantil ou cursos de reciclagem Historizada a criança leitora virtual da literatura infantil falta ainda historizar o jovem leitor virtual da chamada literatura juvenil Ao conceito de jovem cabem as mesmas considerações feitas em torno da noção de criança e mais algumas Por exemplo o que separa a literatura infantil da juvenil De novo a resposta aponta para construções Tanto a criança à qual se destina a literatura infantil é uma construção quanto o jovem ao qual se destina a literatura juvenil é outra construção ambas sociais E na condição de satélites de construções sociais tanto o infantil de uma quanto o juvenil de outra são conceitos instáveis o que é literatura infantil em determinado contexto pode ser juvenil em outro e viceversa São essas parece as premissas a partir das quais se pode discutir o papel da literatura infantil e juvenil na construção de um currículo para a formação de professores Discussão sempre recomeçada dado que leitura literatura educação e educadores são expressões que recobrem conceitos e noções assustadoramente provisórios De cuja provisoriedade aliás se constrói sua estabilidade sua natureza sua maneira de ser que é o que se discute quando se discute currículo e a importância dentro dele de uma ou de outra disciplina II1 Sois da Pátria esperança faqueira Branca nuvem de um róseo porvir Do futuro levais a bandeira Hasteada na frente a sorrir Mocidade eia avante eia avante Que o Brasil sobre vós ergue a fé Esse imenso colosso gigante Trabalhai por erguêlo de pé2 O jovem leitor virtual da literatura juvenil bem como a criança leitora virtual da literatura infantil são construções da história Em face dessa historicidade não tem sentido atribuirse universalidadeobjetividadeimanência a tais categorias Não foi sempre que tais categorias existiram muito embora as pessoas tenham sempre tido sete dez e quinze anos O reconhecimento de diferentes fases ao longo da vida e a distribuição das populações por tais faixas é de um lado fruto do progressivo estudo do comportamento responde por outro pelo agrupamento de pessoas em torno de certas características comuns que coletivizandolhes a identidade alojamnas num lugar social mais seguro É possível por exemplo reconhecer o processo pelo qual se inventou a infância como categoria social usando de suas diferenças biofisiopsicológicas para atribuir ao ente assim mos eufóricos junto com os primeiros longplays para as vitrolas que se chamavam hifís No mesmo pacote vinham também do irmão do Norte modelos de rebeldia a partir daí consentida e aceita como marca jovem James Dean e Elvis Presley são a juventude sadicamente transviada que o balanço das horas de Bill Halley e seus Cometas inaugura como marca de juventude Por esse tempo as categorias dos que lidavam com a segmentação dos menores em diferentes faixas etárias eram muito menos sofisticadas do que as que hoje orquestramos Mas nem por serem mais rudimentares as daquele tempo e nem por se respaldarem as nossas nos prometidos rigores da Psicologia Pedagogia e Biologia uma ou outra são menos ou mais eficientes Cumprem todas a função para a qual existem traçar consolidar matizar e redefinir o roteiro pelo qual se pauta a construção do imaginário dos valores dos comportamentos dos sentimentos e atitudes que definem esta ou aquela faixa etária Naqueles idos a inclusão de um livro na lista dos recomendados para esta ou aquela faixa etária ocorria a posteriori a faixa etária era obtida a partir da média de idade dos consulentes de bibliotecas cujas fichas indicavam terem lido e apreciado determinado livro Se é verdade que na época havia menos livros estes eram sob todos os pontos de vista menos descartáveis do que hoje sendo a previsão de comportamentos e expectativas fundamental na produção industrial de mercadorias que é o modo contemporâneo de produção da literatura infantil e juvenil de novo o que se vê é a adequação de ambos os processos a cada um de seus momentos Das pioneiríssimas atividades de Lenira Fraccarolli à frente das bibliotecas infantis paulistanas4 ao catálogo de publicações infantis e juvenis de uma editora contemporânea de sucesso o percurso que se contempla é o modo de produção dos livros infantis e juvenis É o trânsito de um modo capitalista incipiente para um mais desenvolvido É na esteira dessa especialização progressiva de mercadorias e de mercados que adquire nitidez maior a noção de literatura juvenil e que se entende a dimensão sobretudo mercadológica dos livros voltados para jovens qual é a imagem de jovem em circulação nos meios que consomem literatura juvenil Entre os espelhos que refletem essa imagem destacamse os catálogos das editoras as bibliografias as resenhas capas orelhas e similares Um bom catálogo vai muito além de divulgar os títulos que encerra além de envolver maquiar e marcar o produto que anuncia o catálogo acaba construindo uma das imagens pela qual seu produto fica conhecido Ou seja no caso dos livros as informações que o catálogo fornece a respeito das obras que nele constam transformamse quando o usuário do catálogo transformase em leitor do livro nas categorias que prioritariamente o leitor procurará e com grande chance encontrará no livro Por isso as coloridas e geralmente bem diagramadas páginas de um catálogo são documento muito importante para o estudo de livros ensinando no caso dos livros juvenis que juvenil é o texto que consta de catálogos de editoras voltados para o inventário da produção juvenil daquela editora Ou seja com o mesmo direito que Mário de Andrade usou para dizer conto é tudo aquilo que autor achar que é conto podese dizer que juvenil é toda obra que assim for considerada pelo seu editor A complexidade crescente da indústria editorial moderna exige compatibilização de demanda e produção orientando uma pela outra criando uma em função da outra reforçando uma e otimizando outra são essas providências que garantem a sobrevivência no mercado Assim um livro que aspira ao circuito escolar é circundado no catálogo que deve promovêlo junto aos professores de um conjunto de informações que só constam no catálogo por corresponderem à imagem que os editores fazem do que é e do que não é relevante para o professor que adotará o livro Vêse isso por exemplo no catálogo de literatura juvenil da editora Moderna que informa esse catálogo os livros estão apresentados com um resumo elucidativo claro ao conteúdo indicação das séries a partir das quais o livro pode ser lido faixa de idade a partir da qual o livro pode ser bem compreendido e apresentação dos principais temas que o texto aborda5 No mesmo sentido um catálogo da editora Melhoramentos é também bastante explícito relativamente às funções que pretende cumprir definese como instrumento prático para orientar e informar a todos aqueles que lidam com o livro e necessitam adequálo às faixas interessadas e ao nível de leitura de seu público Para atingirmos este objetivo é facilitar o manuseio organizamos várias seções Literatura Infantil Atividades Didático e Paradidáticos6 Assim em grande número de catálogos manifestase invejável ainda que discutível nitidez de fronteiras entre diferentes gêneros no interior do conjunto de modalidades que circulam pelo espaço escolar a compartimentalização acaba sacramentando as subdivisões que propõe e acaba transformandose em categorias de leitura para os usuários do dito catálogo ou seja diferentes profissionais da leitura Na medida entretanto em que no catálogo de obras jovens pode repetirse a folha de abertura do catálogo de infantis da mesma editora fica sugerido que os percursos da literatura infantil e da juvenile pelo menos até certo ponto superpõemse E superpõemse exatamente no caminho de seus intermediários quais sejam professores pedagogos e bibliotecários que estão na encruzilhada na qual crianças e jovens transformamse em alunos e leitores transformamse em consumidores compulsórios Os efeitos de generalização que nesse percurso sofre a categoria leitores parecem dispensar comentários sua distribuição ao longo de determinados segmentos sugere que a escola é o grande entreposto dessa mercadoria e que seu imposto é a escolarização do leitor o que gera escolarização da leitura e do texto E por contágio escolarização da noção de jovem7 Mas a aprendizagem que os catálogos patrocinam vai ainda além Observase por exemplo que os livros só em casos raros são anunciados individualmente Agrupados em séries e coleções unificados em último caso pela faixa de escolaridade a que se destinam os pacotes são emblema da necessária racionalização do processo de produção A qualidade de um título responde pela qualidade dos outros a relevância de um tema contagia o tema dos outros livros o interesse por um texto pode deflagrar o interesse por outros Em termos de investimentos tais medidas delineiam um movimento de otimização de chocolates a automóveis passando pelo livro a produção em série é a marca da produção industrializada Muitas vezes no entanto o elemento unificador de uma série em relação às demais é mais sofisticado do que o mero agrupamento de títulos aconchegados para esta ou aquela faixa de escolaridade Em alguns casos a unificação de títulos em séries fazse em torno e a pretexto de uma particularidade que à falta de melhor termo poderíamos chamar de estrutural como ocorre por exemplo com a série Alternativa apresentada pelo catálogo juvenil da editora Melhoramentos A Série Alternativa parte para uma nova idéia em literatura criar uma situação que permite ao leitor participar ativamente do desfecho da história Os livros da série especialmente escritos por autores consagrados de literatura juvenil têm como principal característica oferecer a opção entre dois finais e ainda convidar o leitor a propor um terceiro escrevendo ele mesmo o desfecho ou apresentando soluções segundo suas próprias emoções despertadas pelo que acabou de ler8 Algumas das expressões constantes do texto acima a partir do título da coleção repercutem positivamente frisando o caráter inovador da coleção que parece gravitar na órbita de formulações de Teoria Literária contemporâneas da polifonia de Bakhtin à obra aberta de Umberto Eco quem estiver familiarizado com discussões acadêmicas sobre arredores do texto literário encontrará no texto com que o catálogo anuncia a coleção semelhanças e parentescos Reconhecerá um certo ar de família parentesco distante é verdade talvez filhos ilegítimos mas parentes Mas o parentesco não elide as diferenças Pois polifonia explícita e abertura frontal acabam configurando ingerência autoritária primário via série depois via professor e finalmente via texto no que era solidão de leitura obrigatoriedade de pluralismo no que era liberdade do leitor O texto é ainda pródigo em expressões que apontam não só para a modernidade da experiência mas também para o respeito aos leitores afinal o texto que apresenta a série Alternativa sugere participação ativa oferecendo opções de leitura e instigando o leitor a escrever ele mesmo o desfecho numa aparente ruptura da hegemonia de quem escreve sobre quem lê Esta catadupa de modernidade apregoada proporciona ainda uma outra informação subsidiária a de que os textos que integram tal série são todos escritos por autores consagrados da literatura juvenil o que garante a margem de segurança necessária à experimentação avaliando por tabela a existência do gênero literatura juvenil tão consistente que tem até autores consagrados São assim múltiplas e insubstituíveis as lições dos catálogos Estudálos e discutilos não conduz evidentemente a tercear armas com a indústria editorial Tratase sim e urgentemente de entendêla e de aprender a lidar com ela entre outras razões porque ela já agora necessária Esfinge de nossos dias ela nos espreita em cada uma das muitas dobras e dos muitos avessos dos generosos projetos que engendramos em que nos envolvemos que reivindicamos em prol da leitura e dos livros A indústria nos espreita e nos desafia como a esfinge Ou me decifras ou te devoro Pois é Carecemos de pistas para a charada para decifrandoa escaparmos com o máximo de decoro e de dignidade possíveis do ritual de devoração que nos reserva papel de iguaria Indigesta mas digerível É preciso decifrar a esfinge E só então antropofagicamente devorála OS LEITORES ESSES TEMÍVEIS DESCONHECIDOS Se o autor real deve ser considerado como ambíguo e misterioso perdido na história parece igualmente verdade que o leitor real perdido na história contemporânea não é menos misterioso nem às vezes irrelevante É na posição do leitor que se encontram as credenciais mais fortes para quem quer discutir o perfil do indivíduo que livro aberto nas mãos no silêncio de sua leitura pergunta ao escritor que não pode esquivarse da resposta trouxese a chave Com ou sem chave leitor e escritor são faces da mesma moeda não obstante as quedasdebraço em que às vezes ambos se confrontam Quem quer que já tenha algum dia rabiscado maltraçadas colocase no papel de alguém que tem de cativar seus leitores Pois o leitor como o freguês do botequim parece que tem sempre razão Do aluno obrigado a escrever uma redação que lhe garanta nota mínima na prova ao festejado autor de bestsellers milionários o trazer ou não a chave é senha para cativar leitores tanto o professor que encomenda a redação quanto o público que deve consumir o romance ambos precisam encontrar no texto que leêm o que nele foram buscar se encontraram mais do que esperavam melhor para eles se encontraram menos pior para o autor que pode ter perdido no desencanto do desencontro seu precioso leitor Da adequação ao tema à excitação das cenas eróticas do suspense sobre quem matou Roger Ackroyd à perfeição das frases e concordâncias a frustração das expectativas do leitor tem preço alto a indiferença do público e a nota baixa se equivalem como gesto soberano de o leitor dizer ao escriba não não trouxeste a chave Assim sendo leitores desfrutam de imenso poder ainda que sejam extremamente voláteis mas não obstante essa impalpabilidade o autor precisa crer na existência desses evanescentes seres de óculos e mais ainda crer que há vida inteligente por detrás dos óculos Não crer nesse impalpável ser supralinguístico faz os escritores definharem e até morrerem Eu por exemplo creio firmemente na existência de tais seres ou seja acredito que disponho de leitores que os tenho de diferentes tipos e confesso que prefiro os mais visíveis aqueles que efetivamente leem o que escrevo A existência desses leitores de carne e osso manifestase de diferentes maneiras sendo a mais concreta de todas expressa em cifrões e cifrinhas tornase indiscutível a existência de leitores quando se sabe que cerca de 10 por cento do que eles pagam quando compram livros vão para os bolsos dos escritores Magros bolsos Cidadãos sabidamente econômicos os autores podem com tal verba no fim do ano financiar uma pizza média para a família brindando no chope que a acompanha a generosa fidelidade dos leitores que financiam tão frugal repasto Benditos leitores Tais leitores que algum desafeto da laboriosa classe dos escritores poderia reduzir à categoria de compradoresconsumidores de livros vão às vezes além dessa existência grosseiramente econômica Sobem na vida e ganham por assim dizer o estatuto de leitores mais íntimos são aqueles que numa aula numa palestra ou numa carta abordam o escritor perguntando concordando referindo citando Dizendo em resumo que leem Desses leitoresinterlocutores de carne e osso os que discordam são dignos do maior apreço Os que reclamam então são os preferidos muito embora não sejam necessariamente os pretendidos escrevese afinal para que se concorde com o que se escreve Ao escrever não importa se resenha de jornal redação de escola texto para congresso capítulo para livro ou até mesmo uma prova para alunos temse a intenção de convencer os leitores do que se diz e da qualidade e da adequação do texto em que se diz o que se diz Com tal objetivo o escritor faz a finesse e a justiça de expor aos leitores seus melhores argumentos tentando transformálos assim em interlocutores e comparsas os quais tanto mais se respeita quanto mais se lhes dão piropos palmadas e piscadelas de olhos ingredientes fundamentais do pacto que escritores e leitores celebram desde que o mundo passou a circular em folhas impressas reunidas em livros vendidos em lojas especializadas No entanto por mais que através de gracinhas ou graça nas o autor tente tornarse íntimo de seus leitores fazendoos crer que compartilham de sua intimidade tal esforço talvez não apague nem atenue a distância que separa autores de leitores o leitor é irmão mas é hipócrita Mesmo quando um autor se lê lêse com olhos viciados num ato de leitura quase incestuoso é de antemão convivente com o que disse escrevendo Élhe proscrito como autor do texto que lê o distanciamento a surpresa o diálogo Como autor élhe vedado o gesto que sela a suprema liberdade do leitor fechar o livro Como autor élhe vedado desligar o micro empurrar a máquina fechar a caneta abandonar o lápis tem de cumprir até o fim sua luta com as palavras com a falta delas com o calor com a música do vizinho e a televisão das crianças com o prazo do editor e finalmente com o leitor que sempre o ameaça com suas prerrogativas de abandono definitivo do texto No entanto por mais que o narcisismo dos escribas possa comprarse em intermináveis considerações autogratificantes sobre eu meus leitores que podem nada mais ser do que projeções deles escritores confio aos gentis leitores a tarefa de se explicarem ou se demitirem e no espaço que resta emigro para considerações outras feitas agora do ponto de vista de leitora particularmente do ponto de vista de leitora cativa e profissional de textos que tematizam leitura literatura livros infantis e juvenis no contexto da escola brasileira de hoje Como leitora assídua de tais textos ocupo posição muito mais confortável posso como já disse fechar o livro quando quiser Mas posso sobretudo extrair da fragilidade aparente dessa posição de quem usualmente não tem acesso à palavra e consequentemente parece não ter direito à voz a imensa força do silêncio e da solidão Solidão e silêncio no entanto talvez só aparentes Pois desconfio e meus botões compartilham desta desconfiança que os textos que tematizam leitura no contexto escolar não têm leitores individuais pois na condição de leitores profissionais somos só coletivo Ou melhor dizendo encostamos nossa solidão e nossa identidade na identidade e na solidão de milhares centenas milhões de criaturas que comigo e conosco integram o segmento de público para o qual escrevem os que escrevem sobre tais assuntos Como membro de um hipotético clube de leitores profissionais posto que anônimos fica interessante conversar sobre seus estatutos pressupostos e regulamentos discutindo os direitos e os deveres dos associados e o regulamento da agremiação Todos nós membros desse clube somos leitores muito especiais Nosso parentesco ultrapassa idiossincrasias como gostarmos de Machado de Assis e não gostarmos de Sidney Sheldon Aparentamonos pela força de nossos empregos pelo prestígio de nosso compromisso com textos e livros pela aura da confiança e expectativa que a comunidade deposita em nós no que tange à leitura Dizendo de outra forma e temperando as palavras com dose generosa de otimismo aparentamonos pela posição que ocupamos no sistema cultural constituindo uma espécie de corporação de leitores oficiais confraria que dispõe de autoridade e razoável poder em assuntos de leitura e de linguagem Somos em uma palavra profissionais da leitura esta polêmica senhora que nos reúne em tão concorridos saraus E porque somos ou vá lá gostamos de pensar que somos avaliastas arautos mediadores e intermediários dos textos que almejam circular na escola e nos seus arredores transformamonos em alvo dos que pretendem as mãos os olhos e os bolsos das crianças e jovens já igualmente desindividualizados na categoria leitoresdelivrosinfantisoujuvenis que aguardam de nossas recomendações oficiais e conversas oficiosas o sinal verde Sinal que também aguardam crianças jovens e mestres de ambos para que lendo tais livros sagremse leitores Assim atingir esse leitorado público consumidor infantil ou juvenil que a escola se incumbe de arremgetar reunir e homogeneizar em torno de uma categoria qualquer préleitores ou préadolescentes quinta série ou segundo grau supõe em primeira instância atingirnos a nós A nós a quem cabe a decisão sobre o que é melhor mais adequado mais desejável mais indicado para este ou aquele contingente de jovens acidental e circunstancialmente sob nossa influência e responsabilidade É essa responsabilidade que nos transforma de leitores em uma espécie de atravessadores num mercado organizado em função de uma clientela que mantém relações enviesadas com a mercadoria que compra é para legitimar e avalizar tal viés que precisamos ser seduzidos não só pelo texto que indicamos para nossos pupilos mas pelo texto que falando sobre eletexto apresentao divulgao promoveo em uma palavra pelo texto que o vende isto é catálogos livros do professor apresentações de coleção e similares É pois fundamental que compreendamos o papel de leitor que tais textos nos reservam E para tal compreensão precisamos contemplar à luz clara do meiodia o retrato de nós mesmos que esses textos apresentam Em outras palavras a imagem com que tais textos nos representam corre o risco de afivelarse ao nosso rosto como máscara deixando nossa face na sombra E que imagem de leitor tais textos apresentam como nossa Para responder à questão temse de considerar que para seduzir o leitor há que pôrse em seu lugar antecipando suas expectativas suas reações Ou seja o escritor interessado em seduzir o outro tem de construir hipóteses relativas ao leitor que deseja seduzir Dentre tais hipóteses algumas são mais importantes do que outras E dentre as mais importantes salientamse as que respondem a questões que quem almeja a sedução tem de responderse 1 que imagem estea outroa tem de si mesmoa 2 que imagem estea outroa gostaria que eu tivesse delea Enquanto como leitores a história nos reserva o papel de seduzidosas e não de sedutores como detetives de um bom livro policial vamos em busca não já do criminoso mas da vítima nós mesmos professores e educadores envolvidos com a leitura na imagem que de nós traça o material didático e paradidático que pretende com nosso apoio e aval chegar aos consumidores escolares Mas é difícil que nos reconheçamos como vítimas por que desconfiaríamos de uma fotografia que nos representa como professores modernos sinceramente empenhados em motivar a leitura dos jovens levemente desconfiados do papel dos clássicos em tal empresa profundamente insatisfeitos com o autoritarismo de avaliações sistemáticas e rigorosas de atividades de leitura comprometidos com o prazer e não com o dever da leitura informados e convencidos da importância da imaginação e da fantasia na formação do jovem e sobretudo honestamente comprometidos com um projeto de educação que conduza à leitura crítica do mundo Por que desconfiaríamos de tão belo retrato Sorrimos de beatitude na contemplação de tão simpático retrato somos nós mesmos tão mal pagos tão despreparados tão assoberbados de aulas Reconhecemonos nessa eficientíssima moderna e simpática figura Sim e não Somos e não somos Para dialectizar esse hamletiano ser e não ser suspendase por instantes a gratificante contemplação desse nosso gene rosíssimo retrato e perguntese ou sobretudo respondase quem o tirou de que ponto de vista com que tipo de máquina com que finalidade e para que álbum Se as respostas a tais questões podem congelar um pouco o sorriso que brota da contemplação da foto elas também fazem aceitar com naturalidade as eventuais rugas e cabelos brancos que o retrato por ser retocado acabou omitindo Pois o retrato acima apresentado é a nossa imagem tal como ela nos é apresentada por quem nos vende os livros que devemos vender aos alunos Vendas já se vê muito pouco metafóricas certamente a partir de um ponto qualquer transformam em consumidores pagantes aqueles leitores tão inofensivamente virtuais de que falamos quando academicamente falamos de leitores Mas tal imagem lisonjeira um pouco inverídica porque muito retocada certamente se constrói com material cunhado em situações nas quais diferentes escalões de profissionais de leitura constroem e afinam a linguagem com a qual falando de leitura falam de si mesmos construindo sua identidade de leitoresprofissionais E se muitas vezes nessa linguagem figura com destaque uma retórica salvacionista e apocalíptica é nela que se encontram os elementos que ideologicamente rearranjados transformam livros leituras e leitores em mercadorias como qualquer outra tão mercadoria que cumpre vendêla e comprála É exatamente para que a vendamos com eficiência que comissão antecipadamente paga nosso retrato é traçado de forma tão lisonjeira apresentado como ficção do rosto o que é perfil desejado do produto fixando como expressão dos olhos o que é rótulo de embalagem E evidentemente contagiando o produto com a qualidade do agente de vendas ofuscado e emudecido pela surpresa de verse retratado em cores e formas tão favoráveis Catálogos de editoras quartas capas e contracapas de coleções infantis e juvenis orelhas e apresentações de livros didáticos e paradidáticos são as galerias de onde nos contem plam esses incríveis retratos de nós mesmos Que se são sedutores e é inevitável que o sejam não precisam pela força da sedução que exercem fecharnos os olhos para eventuais discrepâncias entre o retrato e seu modelo Ou seja há que indagarse face a cada material que recebemos para eventual adoção Eu sou esse mesmo que está aí representado Se eu sou assim tão bom criativo responsável competente e interessado é necessário que este livro venha me dizer isso Este material que me declara interessado competente responsável criativo é o material que um educador com tais predicados elegeria para trabalhar É claro que não se descarta a hipótese de que a resposta a todas essas questões seja afirmativa e que no solitário diálogo com nossos botões nos consideremos competentes reconheçamos em uma ou outra peça publicitária o direito de proclamar essa nossa competência e mais ainda que achemos este ou aquele livro muito bom e que o transformemos em instrumento de nossa proclamada competência Em princípio tudo isso é possível É deve mesmo ser verdadeiro em certos casos Mas não sempre nem em todos os casos E é essa dúvida que torna oportuno que em regra geral como leitores tenhamos uma saudável desconfiança face a qualquer máscara de leitor assim ou assado que nos queiram impingir E que na esteira de Cecília Meireles a contemplação no espelho que nos põem na mão seja solitária forma única de buscar resposta menos provisória à pergunta funda mental em que espelho ficou perdida a minha face1 POESIA UMA FRÁGIL VÍTIMA DA ESCOLA1 Para a criança como para o adulto a eternidade é um sonho inconfessado mas vigilante2 Parecem antigas as desavenças entre poetas e o uso que a escola costuma fazer da poesia São desavenças tão antigas que em 1904 na apresentação de suas Poesias infantis Olavo Bilac já alude à precariedade dos textos poéticos de que dispu nha a infância de seu tempo Falando dos medos que o assalta vam a propósito de seu livro frisa o receio de que o seu fosse um livro ingênuo demais ou o que seria pior um livro como tantos há por aí falso cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a creduli dade das crianças fazendoas ter medo de coisas que não existem Em certos livros de leitura que todos conhecemos os autores querendo evitar o apuro do estilo fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação Uma poesia infantil conheço eu longa que não tem um só verso certo3 Na década seguinte o editor de Alma infantil de Francisca Júlia e Júlio da Silva faz diagnóstico semelhante ao do pocta as nossas escolas do estado estão invadidas de livros medíocres A maior parte deles são escritos em linguagem incorreta onde por vezes ressalta o calão popular e o termo chulo Esses livros pois em vez de educar as crio ças guiamnhes o gosto pelas coisas belas e elevadas viciamnos desde cedo familiarizandoas com as formas dialetais mais plebéias 1 Este texto foi originalmente apresentado na 36a reunião da SBPC em São Paulo em 1984 e reformulado foi publicado na revista Gazeta teoria e prática ano III p 1925 1984 2 MEIRELES Cecília Problemas da literatura infantil 2 ed São Paulo Summus 1979 p 33 3 BILAC Olavo Poesias infantis 17 ed Rio de Janeiro Francisco Alves 1949 p 1 Verdade é que poucos de nossos escritores didáticos pouquíssimos mesmo têm fora desta especialidade uma sólida repercussão nos etros1 Mais tarde um pouco a voz acatada de Alceu Amoroso Lima constata a baixa qualidade dos versos infantis apontando também o anacronismo estético da poesia destinada à infância Não será novidade nenhuma dizer que é excessivamente escassa a nossa poesia infantil Todos os professores se queixam disso E basta percorrer um pouco a nossa paupérrima literatura de crianças para nos convencermos de que no gênero o que há é pouco e raramente bom é preciso dizer desde logo que toda a poesia dos nossos mais recentes livros escolares bem como o gosto poético da maioria de professores inspetores e autores ainda não saiu do Parnasianismo Têm um certo ar vário ou muito outros em relação às correntes de poesia recente e hoje dominantes5 As citações acima revelam unanimidade de julgamento de três instâncias da instituição literária o escritor o editor e o crítico Contemplando o panorama da literatura infantil brasileira nos arredores de seu início dispensamlhe todos o mesmo veredito implacável Ao longo do tempo que nos separa da publicação dos versos bilacquianos o panorama da poesia infantil brasileira parece ter sofrido consideráveis alterações6 Tais alterações no entanto parecem não ter sido suficientes para invalidar os desencontros e entreveros que marcam o relacionamento literatura e escola e em particular o relacionamento poesia e escola ao tempo dos depoimentos acima transcritos Sendo ainda hoje pobre o repertório disponível para a seleção dos textos que integram os livros escolares não é de estra 4 JÚLIA F SILVA J da Alma infantil Rio de Janeiro s ed 1912 sp Para uma reflexão sobre o significado de tais prefácios enquanto manifestação da nascente e já agressiva indústria do livro escolar consultar LAJOLO M Usos e abusos da literatura no século Bilac e a literatura escolar na República Velha Rio de Janeiro Globo 1982 p 5462 5 LIMA Alceu Amoroso Poesia infantil In Estudos 1a série Rio de Janeiro Ed Centro D Vital sd p 114 6 Sobre a atual situação da poesia infantil brasileira consultar CUNHA Maria Antonieta Antunes Poesia na escola São Paulo Descubra 1976 LAJOLO M ZILBER R B Literatura infantil brasileira história histórias São Paulo Ática 1984 Para um levantamento da poesia infantil mais recente consultar Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil 19651974 São Paulo Brasilia Melhora mentosINI e Bibliografia analítica da literatura infantil e juvenil publicada no Brasil 19751978 Porto Alegre Mercado Aberto 1984 de inserção da literatura na vida escolar uma vez que a prática de leitura patrocinada pela escola é dirigida planejada limitada no tempo e no espaço Tais atributos tornam a leitura escolar bastante afastada da individualidade solidão e gratuidade que caracterizam a leitura prevista pelas teorias da literatura que desconsideram em suas reflexões as condições institucionais nas quais ocorre a leitura dos textos de cuja literariedade elas se ocupam As teorias da literariedade imanente no entanto não podem ser inteiramente descartadas elas viabilizam a sistematização da leitura tão essencial para trabalhos coletivos e dirigidos como é o da leitura que a escola patrocina Por outro lado são as mesmas teorias que permitem a identificação de elementos que latentes no texto se atualizam mediante a leitura Não é entretanto qualquer leitura nem qualquer leitor que atualiza essa virtualidade Tampouco a virtualidade do literário se atualiza da mesma forma com diferentes leitores ou em diferentes leituras de um mesmo leitor A atualização da literariedade em latência depende de certa interação do texto com cada um de seus leitores É assim que embora as teorias da imanência e da objetividade da literariedade não sejam suficientes nem por isso elas deixam de levantar elementos fundamentais para uma teoria que conceba a literatura como interação É fecunda por exemplo a discussão jakobsoniana da literariedade a partir de determinadas ocorrências de linguagem para Jakobson bem como para boa parte dos teóricos de linhagem estruturalista e formalista a manifestação da função poética decorre de determinada manipulação dos elementos de linguagem No entanto o mesmo gesto que postula a natureza linguística dos elementos que respondem pela função poética reconhece também que a manifestação da função poética realizase sempre de maneira histórica isto é de forma diferente em diferentes momentos ou em diferentes leituras do mesmo poema revelandose diferente para diferentes leitores George Steiner a partir do quadro Le philosophie lisant de Chardin analisa de forma belíssima diferentes concepções do exercício da leitura em tempos antigos e modernos STEINER George The uncommon reader Bennington Coll 1978 25 Assim da mesma forma que se reconhece certa especificidade do texto literário postulamse para viabilizar a hipótese de que o literário resulte de determinada forma de interação entre leitor e texto prérequisitos para que a leitura se configure como literária para o leitor Na medida em que os elementos de que se constitui a especificidade do poema estão na linguagem e na medida em que a linguagem é uma construção da cultura para que ocorra a interação entre o leitor e o texto e para que essa interação constitua o que se costuma considerar uma experiência poética é preciso que o leitor tenha possibilidade de percepção e reconhecimento mesmo que inconscientes dos elementos de linguagem que o texto manipula Em outras palavras leitor e texto precisam participar de uma mesma esfera de cultura O que estou chamando de esfera de cultura inclui a língua e privilegia os vários usos daquela língua que no correr do tempo foram constituindo a tradição literária da comunidade à qual o leitor pertence falante daquela língua na qual o poema foi escrito Retomando agora os motivos pelos quais teorias interacionistas contribuem mais significativamente para a discussão do relacionamento entre literatura e escola podese incluir entre as funções da escola o aumento progressivo e paulatino da familiaridade do aluno com textos que ampliem seu horizonte de expectativas numa perspectiva de familiaridade crescente com esferas de cultura cada vez mais complexas que incluem no limite aqueles textos que tendo a sanção dos canais competentes configuram a literatura Por isso a mera inclusão de textos tidos como bons e superiores entre os textos escolares não soluciona nenhuma das faces da crise de leitura Pois a presença de um excelente texto num manual pode ficar sem a contrapartida qual seja o texto tido como bom pode ser diluído pela perspectiva de leitura que a escola patrocina através das atividades com que ela circunda a leitura Para ilustrar esse ponto de vista vamos estudar o caso do poema de Cecília Meireles O vestido de Laura que freqüenta com certa assiduidade manuais escolares 26 Esse texto aparentemente satisfaz os requisitos de qualidade é assinado por um dos poetas maiores da literatura brasileira é extraído de um livro infantil irrestritamente apontado pela crítica especializada como excelente e finalmente é um texto que suporta sem concessões leituras e análises que tentem com os instrumentos específicos da teoria e da crítica literárias dar conta de sua especificidade estética Eis o poema O vestido de Laura é de três babados todos bordados O primeiro todinho todinho de flores de muitas cores No segundo apenas borboletas voando num fino bando O terceiro estrelas estrelas de renda talvez de lenda O vestido de Laura vamos ver agora sem mais demora Que as estrelas passam borboletas flores perdem suas cores Se não formos depressa acabouse o vestido todo bordado e florido O vestido de Laura tem sete estrofes compostas de três versos cada uma que alternam de maneira irregular seis cinco e quatro sílabas com exceção da última estrofe cujo derradeiro verso tem sete sílabas As rimas são constantes entre os versos dois e três As quatro primeiras estrofes unificamse pelo seu tom descritivo o verbo da primeira estrofe é de ligação atribuindo ao vestido a propriedade de babados As estrofes II III e IV são apostas à estrofe I cada uma delas retoma um dos babados especificandoo a partir de detalhes de sua aparência os babados cuja existência é declarada na estrofe I são progressiva e individualmente retomados e retrabalhados nas estrofes II III e IV Observase no entanto que apesar desse movimento de especificação progressiva o poema mesmo nessas estrofes que detalham pormenores do vestido guarda a imprecisão a mobilidade e a sugestividade que parecem constituir traço dominante na poesia de Cecília Meireles Esse caráter sugestivo se constrói por exemplo pela intensa sonoridade das estrofes desse bloco as rimas as repetições de oclusivas na estrofe I a reiteração léxica na estrofe II e a nasalidade da estrofe III criam sensorialmente a impressão e magia do mundo de Cecília Meireles Essa sugestividade que se entrega ao leitor sem mediação alguma configurase também no nível sintático do texto não há nexo sintático explícito entre a estrofe I e as três que a seguem em relação apositiva Além disso a elipse do verbo nestas estrofes compõe um movimento de atenuação como se a enunciação das qualidades de cada babado nascesse ao ritmo fugaz dos movimentos amplos de um vestido No plano interno de cada estrofe poderíamos observar ainda que a relação sintática entre suas partes vai progressivamente se atenuando os versos O primeiro todinhotodinho de flores embora com fortes traços de oralidade consistem enunciado coeso do ponto de vista da gramática tradicional esta coesão se enfraquece no entanto na estrofe III em que os versos No segundo apenasborboletas voando sugerem a dissipação do babado e o fortalecimento de seus desenhos e praticamente desaparece ou fica apenas implícita no verso O terceiro estrelas em que a ausência de qualquer nexo prepositivo substituído pela vírgula completa o esgarçamento das formas de predicação Na estrofe V o poema muda de figurino e a voz do poeta fica explícita a forma imperativa é clara e o comando vamos ver rompe o clima de descrição impressionista das estrofes anteriores e instaura outra atmosfera E com ela outra etapa do poema Cf DAMASCO D Poesia do sensível e do imaginário In MEIRELES Cecília Obra poética 3 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1972 Observase que o compromisso das atividades sugeridas é com elementos exteriores e secundários ao poema não trabalham com estruturas internas e transformam a leitura numa atividade reprodutora e repetitiva em tudo homóloga às funções que a escola como instituição social tende a cumprir Antes que se indague se alunos eou professores do primeiro grau têm condições de desenvolver uma análise como a esboçada vale dizer que não mas que isso não tem importância alguma O reconhecimento e a nomeação dos processos formais agenciados por um texto não são fundamentais para que o dito texto seja fruído pelo leitor Familiaridade com processos formais é da competência se não do especialista ao menos do professor de literatura de segundo grau Se assim não fosse a fruição da poesia estaria proscrita a todos aqueles que nunca passaram por um curso de Letras Não é pois objetivo deste texto reivindicar que as questões propostas para trabalho de um poema em classe privilegiam este ou aquele elemento de sua constituição formal fundamentandose numa ou noutra teoria literária O objetivo é sugerir que as atividades de leitura propostas ao aluno quando este se debruça sobre um texto literário têm sempre de ser centradas no significado mais amplo do texto significado que não se confunde com o que o texto diz mas reside no modo como o texto diz o que diz Nesse sentido é necessário que os elementos do texto selecionado como gerador de atividades levem o aluno a observar mais de perto procedimentos realmente relevantes para o significado geral do texto O que não parece ser o caso dos exercícios transcritos Recorrendo a um objeto tão prosaico quanto um vestido Cecília Meireles fala da efemeridade Efemeridade do quê De tudo em geral e em particular das coisas efêmeras que tocam aquele leitor particular no momento específico da leitura do poema O quê Desde o recreio que acabou até o amor que se foi E como no limite o tema da efemeridade toca no da morte a urgência do comando vamos agora vamos depressa se vale de estrelas que passam borboletas que voam e flores que murcham para metaforizar o contínuo processo de perda que é a vida LIVRO DIDÁTICO E LÍNGUA PORTUGUESA PARCERIA ANTIGA E MAL RESOLVIDA AEIOU dabliú dabliú Na cartilha da Juju Juju A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Há dez anos na cartilha A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Escreve sal com cêcedilha AEIOU de Noel Rosa e Lamartine Babo Em meados do século XIX a disciplina Língua Portuguesa não fazia parte do currículo da escola brasileira situação que desagradava alguns educadores Entre os que protestavam estava Manuel Frasão Vergonha terão nossos vindouros quando recorrendo às estatísticas da instrução pública virem que um semnúmero de moços têm sido reprovados em idiomas estranhos que aliás conheciam sofrivelmente ao passo que uma só vez não consta que alguém deixasse de matricularse por desconhecer o pátrio idioma Pretendendo irritar o regulamento francês e encontrando a exigência da língua francesa com exclusão do portuguesa impuseram a língua francesa excluirar a portuguesa A crítica de Frasão sugere que em pleno Segundo Reinado leitura e redação de texto em língua materna não desfrutavam ainda da importância curricular que para tais atividades insinuava o paulista Martim Francisco Ribeiro de Andrada em projeto encaminhado aos constituintes de 1823 Quarto ao ensino da arte de exprimir e desenvolver as idéias digo que suas regras se devem conformar com os efeitos que dela se requerem Na antiguidade tempo em que se desconhecia a imprensa e havia mister de persuadir e seduzir os povos pelo dom da palavra esta arte se reduzia meramente a ensinar o modo de bem falar Depois da invenção da imprensa mudaram as circunstâncias escreveuse nos negócios particulares imprimiuse nos negócios públicos e destarte decidiramse as questões e à proporção que cresciam os tuxes de uma nação cresceu também a facilidade de espalhar raticamente as idéias por meio da impressão portanto a arte de escrever discursos é a verdadeira retórica dos modernos e o eloquência de um discurso é o de um livro feito para ser entendido por todos os espíritos A vista disso em que vem a constituir esta arte considerada como parte de um ensino público Em escrever uma memória ou parecer com clareza método e simplicidade em desenvovêlas razões com ordem e precisão evitando de um lado a negligência ou afetação e de outro a exageração ou o mau gosto Na Constituinte de 1823 livro didático escola professores e leitura estruturavam momentosas polémicas Os legisladores ao discutirem leitura e livro didático inscreveram a discussão no contexto geral da precariedade que herdada da Colônia vai persistir por muito tempo os requisitos que Ribeiro de Andrada inventaria para os professores desciam a tais minúcias que o quadro resultante é de completo despreparo do magistério cinto no primeiro ano como nos dois seguintes deste curso de instrução o professor deve ter em vista amostrarse no método de ensino e fazerse corresponder instituirse no modo de responder às perguntas e dificuldades que questões que o menino possa lhe propor analisar escrupulosamente as palavras inseridas no compêndio a fim de dar ao discípulo idéias precisas delas não se esquecendo de empregar as palavras técnicas que geralmente fazem cotados não só porque a linguagem filosófica é mais exata do que a vulgar mas também porque iguais vocábulos exprimem noções mais precisas designam objetos mais distintos e correspondem a idéias de mais fácil análise As atas das sessões constituintes pelo teor e calor das discussões que registram apontam tal despreparo como crônico e desalentadoramente irremediável o estado de atraso em que se acha desgraciosamente a educação no Brasil fará com que se formos o exigir de um professor de primeiro ensino do qual depende a felicidade dos cidadãos requisitos maiores não teremos professores Outro legislador responsabiliza os baixos salários pela falta e despreparo dos professores de que serve isso se os ordenados dos mestres são tão escassos que a maior parte das escolas se acham fechadas Dáse 120000 por ano a um homem que com menor trabalho pode fazer o duplo em qualquer ramo de comércio em pescarias etc É pois sombria a infraestrutura em que o assunto livro didático cruza com leitura escrita e Língua Portuguesa como preocupação dos primeiros legisladores brasileiros que discutiam o sistema escolar a ser implantado no Brasil Odorico Mendes sugere para livros de leitura a Constituição e alguns clássicos da língua Tem por melhor que os meninos leiam estes livros do que se lênenças velhas e obras outrinárias rançosas que nada valem enquanto Lino Coutinho pondera que para leitura é preciso atender não só à escolha de doutrinas como à linguagem Lembra a vida de Frei Bartolomeu dos Mártires e coisas de Jacinto Freire de Andrade pois livros escritos com exatidão escolha e pureza de linguagem O ensino se conta deve ser mecânico O de gramática deve se limitar às declinações dos nomes e conjugação dos verbos regulares e irregulares de criação conhecimento dos agentes dos verbos ou as ligações dos casos Não obstante tais discussões datarem da década de vinte do século passado e nela as questões de ensinoaprendizagem de língua materna virem pelo viés da questão do livro didático o desabafo de Frasão nos anos sessenta sugere que só muito paulatinamente a Língua Portuguesa ganhou o espaço do currículo escolar e que mesmo transformada em disciplina era insatisfatório o modo pelo qual se processava seu ensino E parece permanecer insatisfatório por longos anos A permanência da situação nos primeiros anos da República manifestase no rigoroso julgamento com que Rui Barbosa define como calamitoso o resultado do ensino do vernáculo na escola brasileira Isentando de culpa os professores atribui parcela grande da responsabilidade ao livro didático e à política educacional os mestres são os menos culpados nesta imbecilização oficial da mocidade Deste enorme pecado contra a Pátria e contra a humanidade a responsabilidade cabe quase toda à péssima direção do ensino popular aos métodos aos livros adotados num sistema em que a adoção importa de fato um verdadeiro privilégio Tendo por tribuna o Congresso Nacional e respaldado no que de mais moderno havia em Linguística e Pedagogia Rui Barbosa aponta a baixa qualidade do livro didático criticando também os métodos de ensino de língua materna Nestas críticas o leitor de hoje pode reconstituir fragmentos dos conceitos de linguagem a que Rui Barbosa adere como quando por exemplo referese particularmente ao trabalho mecânico de memorização que no programa da instrução elementar se classificia sob o nome de gramática Que o ensino da língua não se confunda com o ensino da gramática não é lícito contestar Mas nem a classificação mesmo da gramática se pode estender a esta tecnologia de obs trações inúteis que aliás suplício inútil ca infância na escola conscreve a mais larga parte no plano de estudos primários11 Com admirável intuição lingüística Rui Barbosa vincula a inadequação do ensino patrocinado pela escola brasileira do século passado ao fato de a escola lidar com língua materna como se esta estrangeira fosse Todo o menino que vem sentarse nos bancos de uma escola traz consigo sem consciência de tal o conhecimento prático aos princípios da linguagem o uso dos gêneros e dos números das conjugações e sem senti distingue as várias espécies das palavras12 No mesmo fim de século que assistiu à Abolição e à República de outros pontos de vista outras vozes confirmam o desencontro entre métodos objetivos e clientela da disciplina Língua Portuguesa aumentando o desconsolo da situação José Veríssimo e Sílvio Romero intelectuais ativos na cultura do entreséculos referendam Rui Barbosa inscrevendo a reflexão sobre a inadequação dos métodos na concretude da evocação do diaadia escolar Registra José Veríssimo Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 foram sempre em livros estrangeiros Eram portugueses e absolutamente alhe os ao Brasil os primeiros livos que li E assim foi sem dúvida para toda a minha geração Acahaddíssimas são as melhorias desse triste estado de coisas e cinqa hoje a maioria dos livros de leitura se não são estrangeiros pela orgem sãono pelo espírito Os nossos livros de excertos é cos autores porugeses que os vão buscar e autores cuja clássica e hoje ossoleta linguagem o acesse mal amanhado preparatroirio de português mal compreese São os fres Lus de Sousas os Lucenas os Bernardes os Herníso Mendes e credo o classicismo português que lemos nas nossos discos de Língua que aliás começa a tomar nos programas o nome de língua nacional Pois se pretende sic ao meu ver erradamente começar o estudo da língua pelos clássicos autores brasileiros tratando coisas brasileiras não poderiam fornecer relevantes passagens1 Não é diferente o depoimento de Sílvio Romero praticamente contemporâneo de José Veríssimo 11 Idem ibidem p 224 12 Idem ibidem p 225 13 VERÍSSIMO José 18571916 A educação nacional Rio de Janeiro Francisco Alves 1906 p 46 Apud ZILBERMAN R TAJOLO M Um Brasil para crianças 2 ed São Paulo Global 1988 p 271 Livro didático e Língua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 57 Ainda alcancei o tempo em que nas aulas de primeiras letras aprendiase a ler em velhos aulos velhus sentenças fornecidas pelos cartórios dos escrivões fosseses Histórias detestáveis e er ladrôrhas na sua impertinente bondidade eramos ministrados nestes pacíferntos cartapácios Eram como clavas a nos esmagar o senso estrético emroutecer o raciocínio e estragar o caráter As sentenças menescr tas eram securadadas por impressos vulgares inócio es próprios para o audren a destruição Era o ler por ler ser incentivo sem préstimo sem estímtos nenhuns14 Se é assim sombrio o panorama das práticas de leitura escolar no Brasil do século passado não são menos desoladores os registros das práticas de leitura vigentes fora da escola em trecho autobiográfico relativo aos anos quarenta do século passado quando frequentava a Academia de Direito de São Paulo José de Alencar relata dificuldade de acesso a livros sugerindo que leitura e livros do lado de fora das paredes escolares no Brasil de seu tempo eram coisa rara talvez como decorrência do caráter problemático da presença da língua portuguesa e leitura no quadro da educação formal Naque tempo o comércio dos livros era como ainda hoje artigo de luxo todavia apesar de mais baratos as cores literárias tinham menor circulação Proviha isso da escassez das comunicações com a Europa e do maior rar da de livros e gabinetes de leitura Cada estudante porém levava consigo a modesta provisão que juntara durante as férias e cujo uso entrava logo para a comunhão escolástica Assim corresceria São Paulo às honras e sede de uma academia tornandose o centro do movimento literário15 Os testemunhos de educadores e intelectuais fazem coro a depoimentos de viajantes estrangeiros que confirmam a raridade dos livros e da leitura no país das jandeias nas frondes verdes da carnaúba Henry Koster inglês que perambulou pelo Brasil logo depois da chegada de D João VI registra 14 ROMERO Sílvio 18511914 O professor Carlos Jausen e as leituras das classes primárias In Estudos de literatura contemporânea Págsnas deúteis Apud ZILBERMAN R TAJULO M Op cit p 265 15 ALENCAR José de Como é por que sou romancista Adaptação ortográfica de Carlos de Acquino Pereira Campinas Pontes 1990 p 38 31 curiosas reações que o ato de ler provocava reações que apontam para a fragilidade e insuficiência das práticas de leitura aqui vigentes alguns de meus vizinhos tanto em Itamaracá quanto em Jaguaribe entravam às vezes enquanto eu estava lendo e echavam estranho que eu achasse prove nesta atividade Eu me lembro de um homem que dizia O senhor não é um padre portanto por que o senhor lê O senhor está lendo um breviário Em outra ocasião contaramme que eu tinha graça da forma de um homem muito santo porque esava sempre lendo16 Descomprometidos com o modelo católico de colonização portuguesa e sem papas na língua viajantes ingleses retratam o Brasil dos arredores da Independência como uma sociedade onde as luzes não chegaram a acenderse ou se se acenderam foram clarão efêmero que não ultrapassou a arcádia dos malogrados inconfidentes mineiros Luccock outro inglês ao relatar conversas com brasileiros ao longo de uma viagem pelo sertão mineiro sublinha o isolamento cultural do Brasil Nesta nossa terra nunca se ouviu até agora sobre guerras européias nem se supunha até recentemente que houvesse outros povos na terra além de portugueses e espanhóis além do Gerlio 17 Dãose pois as mãos educadores e escritores legisladores e viajantes ao longo do século XIX à precariedade do sistema escolar e ao espaço reservado à Língua Portuguesa correspondia fora da escola prática de leitura rarefeita e esgarçada Irresolvida a questão se arrasta e se agrava Em 1888 o assunto livro didático entremeandose a amargas evocações da escola aflora da passagem no romance O Ateneu de Raul Pompéia Entre as lembranças da vida escolar de Sérgio vivida sob a batuta de Aristarco Argolo de Ramos nome ficcional de Abílio César Borges o Barão de Macaúbas educador do 16 KOSTER H Travels in Brazil London 1817 Tradução minha 17 LUCCOCK John Notes on Rio de Janeiro and the southern parts of Brasil taken during a residence of ten years in that country from 1808 to 1818 London Printed for Manuel Leigh in the Strand 1820 p 3823 Tradução minha Livro cicático e língua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 59 Império Raul Pompéia pela boca do narrador Sérgio relata modos pouco ortodoxos de produção do livro didático que têm pontos comuns com situações e práticas que vivemos hoje O Dr Aristarco Argolo de Ramos da conhecida família do Visconde de Ramos do Norte chegada o Império com o seu renome de pedagogo Eram boletins de propaganda pelas províncias conferências em diversos pontos da cidade a pedidos e sustância atocando a imprensa dos lugarejos COIXÕES sobretucos de livros elementares fabricados às pressas com o esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos caixas e mais caixas de livros cortados em Leipzig funcionando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão de capas azuis róseas amarelas em que o nome de Aristarco inteiro e sonoro ofereciase ao pasmo venerado dos esfarelados de alfabeto dos coríns da Pátria Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos de a corrente gratuita espontânea irresistível E não havia senso aceitar farinha doce ela marca para o pão do espírito E engordavam as letras à força daquele póo Um benemérito Não admira que em dias de gala crítica ou nacional festas do colégio ou recepções do coro o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de pedraria opulentemente a nobreza de todos os honoríficos oerloques18 O mesmo Barão de Macaúbas reaparece como personagem na autobiografia de Graciliano Ramos nascido em 1892 nas secas e ensolaradas Alagoas Graciliano retrata em Infância obra editada em 1945 os percalços de uma meninice sofrida na qual os livros escolares em particular os de Abílio César Borges o Barão de Macaúbas são lembrança dolorida Um grosso volume escuro cartorrogem severa Nas folhas delgadas ircorlóveis as letras fervilhavam míldas e as ilustrações avultavam num papel brilhante como gastro de lesma ou catarro seco Principiei a leitura de má vontade E logo enterrei na história de um menino vadia que dirigindose à escola se rebravava a conversa com os passarinhos e recebia deles opiniões suaves e bons conselhos Passarinho queres tu brincar comigo Forma de perguntar esquisita pensei E o animal eio atarefado na construção de um ninho excitouse de maneira ainda mais confusa Ave sabia e modesta que se confessava trabalhadora em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do dever Em seguida vieram outros irracionais igualmente bemintencionados e bemtalentess Havia ar moscezinha que morava na parede de uma chamine e voava à toa desobecendo às ordens maternas Tanto voou que afinal caiu no fogo 18 POMPÉIA Raul O Ateneu 3 ed São Paulo Melhoramentos 1963 p 3 32 Estes dois contos me infringiram com o Barão de Macaúbas Examineilhe o retrato e assaltaramme presságios funestos Um tipo de barbas espessas corno os do mestre rural visio anos atrás Camaraceco cabeludo E perverso Perverso com a mosca inocente e perverso com os leitores19 Esta escola de Graciliano Ramos dá foros de veracidade à tão verossímil escola ficcionalmente criada por Raul Pompéia perdida nos confins da Pátria esfaimada de alfabeto e inundada pelos livros escolares do Barão de Macaúbas cuja produção O Ateneu relata tão desencantadamente E serve de magro consolo no caso de Graciliano a idéia de que uma tão dolorosa iniciação nas letras não matou em casulo o talento do futuro escritor No entanto mais desoladora da que a frequência com que depoimentos amargos como o do mestre Graça se repetem é a certeza de que na tradição brasileira escola leitura e escrita são experiências que só afloram em relatos de vidas vividas no pólo hegemônico de cultura Só fala de livros quem tem a intimidade de ter nascido em meio a eles Os que falam de livros de leituras e de escolas falam com o àvontade de quem pertence à classe que se apossa de livros de leitura e de escrita desde o berço E como perversamente o registro da história passa pela escrita são poucas tênues e fugazes as chances de resgate da história da cultura escrita escrita da perspectiva dos despossuídos dela O que levanta questão maior se todos os depoimentos lamentam a precariedade da presença de livros e de leitura dentro e fora da escola na vida dos bemnascidos o que esperar das relações que com a escrita e a leitura mantinham brasileiros pobres Se encarada de frente esta questão continua a aturdir educadores que nela tropeçam por isso a reflexão sobre semelhanças e diferenças entre as situações vividas por professores de ontem e de hoje pode ser sugestiva20 19 RAMOS Graciliano Infância 17 ed Rio de Janeiro Record 1981 p 1267 20 Em Analfabetismo no Brasil da ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista ou de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas Paraguay Filipas Madalenas Anas Genebras Apolinárias e Gracias até os Severinas BrasíliaSão Paulo INEPF Cortez 1989 Ana Maria Araújo Freire discute a história da leitura da perspectiva dos despossuídos dela Em Cultura de massa e cultura popular leituros operárias PorópolisVozes 1981 Edeze Bosi discute a questão da leitura literária de operárias paulistas Se Manuel Frasão Rui Barbosa Sílvio Romero José de Alencar e seus pares parecem antecipar em suas críticas e queixas nossas queixas e críticas para evitar identificaões precipitadas vale notar que razões objetivos e modos de realizarse do ensino de língua materna na escola não foram sempre os mesmos e portanto como dizia o Machado de D Casmurro se o rostó é igual a fisionomia é diferente Um dos aspectos que parece unificar os diferentes modelos e crises por que passou o ensino de língua materna na escola brasileira é que sua função foi sempre concebida como modelar quer o modelo fosse de língua quer fosse de valores e comportamentos Se hoje a pedagogia oficial tende a envolver a censura a certos livros em razões de natureza técnica o caráter seletivo da vontade ou do poder que adota certos livros e não outros configura movimento mais sofisticado do que aquele que por exemplo expulsos os jesuítas no século XVIII proibiu sua pedagogia o que incluía os livros didáticos nela inspirados mesmo para disciplinas aparentemente tão pouco polêmicas quanto o Grego o Latim e a Retórica Laerte Ramos de Carvalho estudando as reformas pombalinas na instrução pública registra que Corretamente escreveu o DiretorGeral proibir o ensino pelos antigos métodos Os professores que teimavam em ensinar pela Arte do Pe Alvarez com o auxílio dos delitos livros proibidos eram recolhidos à prisão e obrigados a assinar um termo no qual juravam que nunca mais se ocupariam do ensino de Latim no Reino e seus domínios Os livros proibidos fossem pertencentes à biblioteca dos professores fossem das livrarias eram recolhidos e algumas vezes queimados21 Se a proscrição dos livros jesuíticos ilustra os cuidados do sistema com os temidos contramodelos a prescrição dos livros escolares e infantis de Olavo Bilac ilustra o endosso aos modelos desejados Ao dedicarse à tarefa de compor livros para a infância brasileira Olavo Bilac parece ter funcionado como anteparo ideológico da classe que com a República assumia o poder político correspondente ao poder econômico 21 CARVALHO Laerte Ramos de As reformas pombalinas da instrução pública São Paulo SaraivaEdusp 1978 p 1261 de que já dispunha As campanhas de educação em curso nos anos 8090 do século passado são parte do projecto de modernização capitalista que o regime republicano e o fim da escravatura pareciam afiançar Fazendo conviver diferentes fases da modernização do modo de produção cultural entre os quais se incluem os livros escolares e infantis as últimas décadas do século XIX são significativas Assim como República e Abolição constituíram ajustes políticos e econômicos necessários às novas formas da vida brasileira a passagem de um modo artesanal e amadorístico de produzir livros escolares para um mais planificado e regido pela eficiência manifesta na vida cultural a mesma transição No fim do século explodem questões fulcrais da relação entre livros escola e produção cultural a profissionalização do intelectual e a correspondente implantação e desenvolvimento de mecanismos praxes e acordos que regulando as relações do escritor com o capital e com o mercado modernizam a inserção social da produção cultural assim engendrada Por isso o tempo de Olavo Bilac e seus parceiros é tão decisivo para a compreensão de nosso tempo Eles assistiram à criação do gênero viveram a préhistória do livro didático brasileiro que a partir de meados do nosso século assume sem rebuços a dimensão de mercadoria para a qual se vocacionava desde que nasceu e que hoje vivemos plenamente E exatamente por vivermos tão plenamente os complexos caminhos por onde envereda a produção contemporânea do livro didático encontramos ouvidos para ouvir vozes que dissonantes festejam o mesmo livro didático que outras vozes aupam e vaiam Patativa do Assaré por exemplo envolve em róseo saudoso a evocação de seus primeiros livros escolaresEu nasci aqui no mato Vivi sempre a trabalhar Neste meu pobre recôlo Eu não pude estudar No verde de minha idade Só tive a felicidade De dá um pequeno ensaio in dois livro do inscrito Evitando os trilhadosísimos caminhos da crítica aos conteúdos esta obra se ocupa da política que envolve o livro didático acompanhando seus desdobramentos os quais se relacionam diretamente com as condições de produção e consumo desse material Essa abordagem imprime à questão perfil mais complexo e por isso mesmo mais instigante Não tem sentido a denúncia simplória do recorte ideológico dominante burguês conservador ou elitista deste ou daquele livro didático deste ou daquele autor acusações de parcialidade ideológica rimam e soam tão ingênuas quanto proclamações de neutralidade ideológica Talvez por isso A política do livro didático tenha tido carreira comercial menos espetaculosa do que outros trabalhos que caçam fantasmas com fogos de artifício Ir afinal na pista das diferentes políticas que desembocam no rendoso filão dos livros escolares tornase cardápio indigesto para um público habituado a dictas mais leves João Batista e seus coautores apontam que o didático representa fatia bastante considerável dos livros produzidos e consumidos no país que datam de 1938 os primeiros esforços brasileiros de centralização das providências relativas ao livro de escola que inúmeras instâncias federais e estaduais já foram encarregadas dele CNLD CELD COLTED INL FENAME FLE são algumas das siglas que os escândalos no setor são a norma e que em meio a tantas discussões sempre recomeçadas vozes de bom senso disseram que com professores capazes a rejeição dos maus títulos seria espontânea O livro se encerra propondo uma pauta para o debate privilegiando nela o binômio centralizaçãodescentralização e salientando a necessidade de envolvimento dos professores em todas as instâncias de vez que como bem dizem os autores não há lei nem supervisão que obrigue um professor a usar material com o qual não esteja à vontade e sobre cuja adoção não tenha sido consultado é a tal voz do bom senso Por centrar no professor a questão do livro didático A política do livro didático retoma reencaminha e arremata a discussão do ensino de escrita e de leitura de língua e de literatura Ao retomála politizaa inscrevendo a análise dos conteúdos do livro didático em seu modo de produção e circulação e para adotando seus livros garantir um nada desprezível mercado para obras infantis3 De Bilac para nossos dias mudaram bastante os conteúdos educativos pelos quais a escola se responsabiliza Mudaram também comportamentos atitudes sentimentos e valores veiculados pela literatura mantendose todavia inalterada a relação de dependência entre literatura infantil e escola A modernização econômica refez traduzindo em modos de produção sofisticados e em divulgação mais agressiva a antiga aliança econômicoideológica sempre celebrada entre a sala de aula de um lado e histórias e poesias infantis de outro Hoje em dia o sucesso da dobradinha manifestase por exemplo nas tiragens dos livros infantis sempre superiores às dos livros não infantis em suas freqüentes reedições em seu escoamento mais rápido e seguro4 A divulgação dos atraentes e coloridos volumes é eficaz e diretamente dirigida para o professor a adesão do mestre a um ou outro título é essencial dado que se traduz na adoção que multiplica as vendas É preciso que os livros sejam adotados quer essa adoção ocorra no varejo da leitura daquele livro pelos vinte trinta quarenta alunos daquele professor quer ocorra no atacado da inclusão do dito livro nos acervos com os quais órgãos governamentais cumprem sua função de prover bibliotecas escolares O significativo aumento da população escolar alterou o modo de produção dessa rendosa mercadoria favorecendo a profissionalização do escritor voltado para esse público profissionalização esta muito mais viável que a do escriba não voltado para a clientela escolar onde se concentra a fatia maior de vendas do livro infantil e juvenil Também índice de modernização do gênero é a garra de boa parte dos escritores voltados para o público não adulto na consolidação do escrever livros como profissão exigem contratos melhores profissionalizam a relação com os editores através de agentes literários e dada a importância do planejamento gráfico no gênero infantil envolvemse em várias etapas da transformação de seus originais em livros A aguda consciência que têm de seu trabalho como produto e como mercadoria manifestase ainda no zelo com que tentam preservar seus direitos muito frequentemente ameaçados pela inclusão gratuita e não autorizada de textos seus em antologias e livros didáticos Outro indício sugestivo da renovação da aliança literatura infantilescola é a efetiva mobilização dos escritores para crianças quase todos participam de campanhas e eventos comprometidos com a difusão da leitura comparecendo maciçamente a congressos simpósios e seminários e principalmente visitando amiúde escolas onde discutindo seus livros incentivam seu consumo Em tudo isso e mais ainda na sua articulação com instituições voltadas para a leitura infantil no estado de São Paulo CELIJU Academia de Literatura Infantil e Juvenil Fundação para o Livro Escolar em nível nacional Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil Fundação de Assistência ao Estudante e por menor e mais frágil que seja o poder decisório de tais instituições o que se encontra é uma comunidade de escritores profissionalmente conscientes de sua importância peso e função dentro das instituições culturais e que do ponto de vista de mobilização articulamse com o perfil econômico atual da sociedade brasileira de forma mais adequada que seus companheiros que não escrevem para o público infantil No entanto os mesmos fatores que entrelaçam literatura infantil e escola e que eventualmente respondem pela modernidade desse segmento da produção cultural brasileira são também responsáveis pelo descompasso digamos estético entre a literatura infantil e a não infantil Tomando por parâmetro a produção literária brasileira contemporânea não infantil os livros para crianças parecem conservadores pagando com o que se poderia chamar de compromisso pedagógico seu ingresso no aparelho escolar Esta vocação pedagógica e inevitavelmente conservadora da literatura infantil não constitui opção consciente de seus autores configura antes a linguagem do gênero cuja força pode ser avaliada pela sua permanência ao longo de seu quase um século de história no Brasil5 e pela constatação de que o pragmatismo pedagógico é o traço que submerge primeiro nos momentos de ruptura como ocorre em O livro de Berenice de João Carlos Marinho metalinguagem dos impasses do gênero aprisionado entre uma tradição integrada e um desejo apocalíptico No interior das histórias e poesias mais antigas o protagonista era modelo acabado da criança que a escola se propunha formar como em Através do Brasil Olavo Bilac e Manuel Bonfim 1910 e Saudade Thales de Andrade 1918 6 Da mesma forma a sociedade brasileira contemporânea encontra na literatura infantil atual modelos condizentes com os valores e comportamentos liberais e tolerantes incorporados pela escola brasileira de hoje Assim as crianças perguntadeiras e maluquinhas a rebeldia contra o arbítrio exagerado a consciência ecológica a defesa das minorias temas recorrentes nos livros infantis de hoje mantêm com a escola contemporânea articulação homóloga à que em seu tempo mantinham com a escola de antanho outros temas o ama com fé e orgulho a terra em que nasceste bilacquiano o projeto ruralista de Thales de Andrade e as histórias da conquista do Oeste que proliferaram contemporaneamente à construção de Brasília no Planalto Central Além de refletirse internamente na adesão do texto à ideologia escolar e externamente no apoio da escola à circulação do gênero a interrelação literatura infantilescola manifestase ainda externamente ao texto mas internamente ao livro na extensão aos livros infantis e juvenis de tratamento didático semelhante ao dispensado aos textos incluídos em manuais de Comunicação e Expressão 5 Cf LAJOLO Marisa ZILBERMAN Regina Literatura infantil brasileira história histórias São Paulo Ática 1984 6 Sobre os compromissos ideológicos dessa produção ver LAJOLO M Usos e abusos da literatura na escola Bilac e a literatura escolar na República Velha Rio de Janeiro Globo 1982 Até os anos cinquentasessenta era prática corrente a utilização de textos literários como pretexto para exercícios gramaticais7 a partir daí no entanto o mesmo sopro de modernização que sancionou a produção de textos críticos e contestadores na esteira do prestígio crescente da Lingüística varreu do horizonte a análise sintática de estrofes camonianas Surgiram em seu lugar atividades mais condizentes com o processo geral de modernização por que passavam sociedade e escola brasileiras O primeiro momento de liberação do texto literário da gramática aguda coincidiu com a adesão a uma espécie de modelo simplificado de análise literária questionários a propósito de personagens principais e secundários identificação de tempo e espaço da narrativa escrutínio estrutural do texto Com pequenas alterações esse modelo persiste até hoje convivendo agora com propostas de leitura que desembocam em desencadeado ativismo Entre as atividades hoje mais frequentemente sugeridas para despertar e desenvolver o gosto quase sempre chamado de hábito pela leitura encontramse a transformação do texto narrativo em roteiro teatral e subseqüente encenação a reprodução em cartazes ou desenhos do tema da história ou de personagens do livro a criação a partir de sucata de objetos ou colagens de alguma forma relacionados à história as pesquisas que aprofundam algum tópico que o texto aborda o prosseguimento da história sua reescritura com alteração do ponto de vista entrevista real ou simulada com autor ou personagens do livro jogral ou coro falado quando se trata de poemas e tantas outras familiares a quem tem intimidade com a literatura infantil A freqüência com que essas atividades são sugeridas em fichas de leitura encartes suplementos e similares só se compara à sofreguidão com que quando ausentes são solicitadas pelos caros mestres às voltas com a árdua tarefa não só de fazer com que seus alunos leiam mas principalmente de fazer alguma coisa com o que seus alunos efetivamente leram A inclusão de sugestões de atividades em livros destinados ao público infantil já foi interiorizada como necessidade pelos professores que as solicitam quando não as encontram no livro que escolhem para seus alunos Até hoje a editora não preparou nenhuma ficha de leitura ou ficha de interpretação do Gênio do Crime como é uso em outros livros dados em classe a pedido meu Acho que tais fichas delimitam a apreciação do livro e a uniformizam Nas visitas que tenho feito em classe desde 1969 encontrei ótimos professores que segundo seu critério e segundo o adiantamento da classe adotam este ou aquele tipo de trabalho muitos excelentes e originais Não é minha intenção impor um método de trabalho sobre O Gênio do Crime Os professores que já experimentaram seus métodos particulares devem continuar o fazêlo O método ideal de exercício surge sempre da conjunção do modo de ser do professor com o modo de ser da classe coisa pessoalíssima e que uma ficha de leitura não pode prever Acontece que a editora há vários anos continua recebendo solicitações para que O Gênio do Crime venha acompanhado de uma ficha de leitura Atendendo a estes pedidos elaborei as seguintes alternativas ao método de trabalho8 O depoimento de João Carlos Marinho registra o momento em que os professores delegam a terceiros o planejamento das atividades de leitura que desenvolverão com seus alunos Se na origem dessa distorção está o despreparo do magistério seu achatamento salarial a precariedade das condições de seu exercício profissional reconhecer tudo isso não diminui a gravidade do fato de que a leitura patrocinada pela escola de hoje parece sofrer de uniformização Essa uniformização no entanto pode passar despercebida pois muitas vezes vem embrulhada em propostas que em nome de uma leitura lúdica e criativa gerenciam o envolvimento com o texto imergindo a leitura em atividades que apenas simulam criação e fantasia Ao lermos a história do Capitão Argo e sua nave prateada no planeta das árvores chamejantes que o Fausto Cunha inventou e que naturalmente vai interessar e muito aos préadolescentes podemos convidar o pessoal para embarcar numa nave imaginária e viver suas próprias peripécias Para isso precisamos pensar o espaço da viagem O espaço propriamente dito os possíveis itinerários o local da decolagem e aterrissagem o raciocínio da viagem e assim por diante Tiramos as cadeiras da sala de aula se possível ou as colocamos para um canto Limpo o chão embarcamos em nossas naves individuais ou em pequenos grupos SIC e nelas soltamos a nossa fantasia num vão realmente sem limites A nave espacial flutua e o nosso corpo flutua e nos leva a espaços desconhecidos e a mil aventuras9 Sem atenção para níveis metafóricos do texto e da leitura essa proposta referencializa e banaliza o ato de ler Condena à pobreza da improvisação teatral sugerida a viagem de cada leitor embarcao numa nave necessariamente pobre ao confinarse ao espaço mesmo sem carteiras de uma sala de aula empobrece a viagem ao cristalizála num itinerário prévio ao encolhêla a uma duração definida Não se trata evidentemente de dizer que tais atividades são desaconselháveis prejudiciais más em si mesmas Nada em si mesmo é bom ou mau O problema é que atividades sugeridas indiferenciadamente para muitos milhares de alunos distribuídas em pacotes endereçados a anônimos e despreparados professores passam a representar a varinha mágica que transformará crianças mal alfabetizadas e sem livros disponíveis em bons leitores Favorecem ainda a crença de que sua realização operará o milagre de transformar os professores em orientadores de leitura fazendo vista grossa à sua pouca familiaridade com livros não questionando sua leitura quantitativa e qualitativamente muito pobre deixando intocada sua estranheza face a práticas mais significativas da linguagem Na rotina de tais atividades camuflamse riscos sérios de alienação da leitura Aí sim tais atividades são más desaconselháveis prejudiciais Da perspectiva da indústria de livros o investimento em atividades de leitura desse tipo pode assegurar a fidelidade do professor a seus produtos uma vez que roteiros atividades fichas de leitura e seus congêneres promovem obliquamente o produto livro através de uma estratégia que capitaliza a insegurança e o despreparo do professor Da perspectiva dos professores o endosso acrítico de tais atividades parece sugerir que a internalização da burocracia e tecnocracia da escola brasileira posterior a setenta é a manifestação contemporânea da velha aliança sempre recelebrada entre literatura e escola Já da perspectiva estatal a instauração de uma política de leitura escolarada na dilusão apressada e superficial pela via de cursos treinamentos e publicações de tais atividades improvisadas sempre no nível da precariedade das condições materiais da educação brasileira não só descompromete o estado das responsabilidades pela qualidade do ensino como reforça o caráter reprodutor da escola na medida em que tira da responsabilidade do professor em diálogo com seus alunos e com suas leituras o planejamento das atividades de leitura em que vai engajarse com sua classe É nesse diálogo que as atividades de leitura adquirem sentido e podem agora sim tornarse práticas significantes Libertado da imposição delas o professor pode voluntariamente retornar a elas para senhor de sua disciplina e de seu curso selecionar aquelas em que mais acredita descartar outras nas quais não aposta reformular todas balizandoas pelo que conhece de seus alunos e da leitura deles pelo que conhece de língua linguagem e de literatura pelo que entende por ensino por leitura e por escrita e particularmente pelo que entende por ensinar Português no Brasil de hoje Para muito além das queixas eou bravatas que geralmente pontilham discussões sobre leitura e literatura infantil é preciso que se entenda essa antiga interrelação da literatura com a escola como histórica e social E que também se entenda que não se proclama nem se decreta por mais vontade que se tenha e por mais rebeldia que se ponha na voz a independência de um segmento da produção cultural das estruturas nem das instituições pelas quais tal produção circula e em cujo código encontra seu significado Tais são as premissas que precisam balizar projetos que objetivem efetiva democratização e qualificação das práticas sobretudo escolares de leitura no Brasil Os projetos precisam abrirse com a crítica da inevitável participação nos rituais de apropriação da literatura infantil pela escola e viceversa que os professores lutem por uma formação competente regular e supletiva que os liberte da tutela de cursos efêmeros e do paternalismo autoritário de receitas de leituras apostas a livros que os autores se mobilizem no sentido de fazerem frente à escolarização de seus textos e que os demais envolvidos nós todos discutamos nos circuitos bastidores e arrabaldes da literatura infantil o caráter histórico da organicidade institucional dos livros infantis refinando categorias para a compreensão dessa historicidade que também nos envolve cumprindo assim de forma mais crítica o papel que nos cabe e que ninguém cumprirá por nós 2 LEITURAS DO MUNDO MACHADO DE ASSIS UM MESTRE DE LEITURA1 Todo artista aspira a ser lido Não existe correspondência particular de um artista que consideramos experimental de Joyce a Montale que não mostre como aquele autor mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas de seu próprio leitor comum e atual aspirava a formar um futuro leitor particular capaz de entendêlo e de saboreálo sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendêlo apreciálo e amálo2 Em Contos fluminenses obra com que Machado de Assis estréia em volume em 1870 o leitor comparece não poucas vezes tratado sempre com deferência e educação na boca do que se poderia chamar de um narrador cordial O conto de abertura do livro Miss Dollar traz o leitor para dentro do texto já na primeira linha Érø conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar p 273 1 Este texto foi originalmente apresentado na mesaredonda 150 anos de Machado de Assis no XXXVI Seminário do GEL e posteriormente e com alterações no GT de Leitura e Literatura Infantil durante o IV Encontro Nacional da ANPOLL Ambos os eventos ocorreram em 1989 2 Eco Umberto O texto o prazer e o consumo In Sobre os aspectos e outros ensaios 2 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira sd p 100 3 O número entre parênteses indica a página da edição consultada ASSIS Machado de Obra completa Org Afrânio Coutinho Rio de Janeiro José Aguilar 1962 v II e III A essa benevolente alusão à conveniência narrativa seguemse considerações sobre os deveres de um narrador que desembocam em elogio à objetividade economia e racionalidade de recursos narrativos sem a apresentação de Miss Dollar ser o o leitor obrigado a process digressões que encheriam o papel sem adiatar a ação Não há hesitação possível vou apresentarlhes Miss Dollar p 27 Enganase no entanto a boafé de quem acreditar nessas promessas ao contrário do que arregaora o narrador entregase à volúpia de imaginar diferentes e variados tipos de leitores cujas previsões sobre a identidade da personagem título ela antecipa e desmente valendose da autoridade narratorial Começa refutando a imagem de Miss Dollar como uma inglesa pálida e degada escassa de carnes e de sangue p 27 creditada à imaginação de um rapaz dado ao gênio melancólico p 27 Linhas abaixo o texto inventa um outro leitor atribuindo a este a imagem de uma Miss Dollar robusta americana vertendo sangue pelas veias formas arredondadas olhos vivos e ardentes mulher feita refeita perfeita p 27 No parágrafo subsequente o mesmo imaginoso narrador investiga as expectativas de um outro tipo de leitor daquele que tendo já passada a segunda mocidade tem à sua frente uma velhice sem recursos para quem então a Miss Dollar do conto deve ser boa inglesa de cinqüenta anos dotada com alguns mi lúbricos esterlinos e que aportando ao Brasil em procura de assento para escrever um romance realizasse um romance verdadeiro casando com o leitor alucido p 27 Vêse que o narrador de Miss Dollar dispõe de galeria inesgotável de leitorespersonagens que faz desfilar pelo texto ao antecipar uma vez mais interpretações para a personagemtítulo ele convoca uma outra imagem de leitor que lisonjeiramente qualifica de mais esperto do que os outros p 28 e cuja esperteza parece consistir na interpretação de Miss Dollar como brasileira de quatro costados p 28 vindo seu nome à conta de sua riqueza Miss Dollar que dizer as coisas que a rapariga é rica p 28 É só depois dessa célere multiplicação de leitores imaginários incessantemente extraídos de sua algibeira que para alívio dos leitores de carne e osso o narrador cumpre finalmente sua promessa e desvela a identidade de Miss Dollar A Miss Dollar de romance não é o menina romântica nem a mulher robusta nem a velha literata nem a brasileira rica Miss Dollar é uma cadelinha gaga p 28 Essa assídua convocação do leitor prossegue pelo resto do conto mesmo quando o texto já navega desenvolvido as águas desatadas da narração O narrador qualifica com frequência o leitor de quem e com quem fala organizando hierarquicamente a galeria de leitores que constrói Se a moldura escolhida para os quadros da galeria for o contexto sóciohistórico da literatura machadiana a visita à galeria pode constituir lance sugestivo para o esboço de uma história social da leitura na segunda metade do século XIX brasileiro4 Em tal galeria ocupa o patamar mais baixo o leitor superficial cuja interpretação o narrador desqualifica sem rebuços O leitor superficial concluirá daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico Não era p 28 A ele seguese seu antípoda o leitor grave Algum leitor grave encontrará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles Provarei com isso que tem pouca crítica do mundo p 32 Mais adiante o narrador arrasta para cena outra casta de leitores os conspícuos Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse assim tão assíduo no caso de uma senhora exposta às condições do mundo p 36 4 Para uma história social da leitura no Brasil ver LAJOLO M ZILBERMAN R A leitora naifista São Paulo Brasiliense 1991 Como se vê mesmo estreante Machado já orquestra e embaralha os fios da ficção e da realidade transformando leitores em personagens tematizando e encenando os caminhos do envolvimento do leitor com a matéria narrada Como no caso do romancetexto que uma das presuntivas Miss Dollar pretendia escrever em trânsito para o romancevida o envolvimento amoroso da mesma presuntiva Miss Dollar com o virtual leitor pobretão do texto de Machado o percurso se cumpre sempre Essa metalinguagem constante amplifica ao máximo o miseenabyme da obra e guarda nas suas entrelinhas a ironia implacável que alguns anos e obras depois cairá com olímpica indiferença sobre a cabeça dos leitores de Brás Cubas Não se trata aqui evidentemente de discutir se o Machado de Brás Cubas já estava dentro do de Miss Dollar ou se este foi mudado naquele por efeito de algum caso incidente seria ocioso discutir isso leitor apressado O fato é que depois de tantas convocações para o interior de um texto que lhe discute as expectativas o leitor brasileiro do século passado que teve sob os olhos esta Miss Dollar estava pelas mãos seguríssimas do narrador machadiano educandose na leitura literária A constância da metalinguagem através da qual Machado a pretexto de seus leitores mas sobretudo para eles tematiza o ato de leitura em curso inscreve no texto uma espécie de pedagogia da leitura que não destoa do contexto brasileiro das últimas décadas do século passado quando o necessário fortalecimento do sistema cultural era bandeira assumida por todos os intelectuais É entre esses intelectuais que o em geral politicamente discreto Machado na pele do colaborador da imprensa carioca também milita em prol das letras nacionais Já em abril de 1858 nas páginas de A Marmota um Machado de dezenove anos pedia providências que defendessem o teatro brasileiro 5 Em sua Bibliografia de Machado de Assis J Galante de Souza registra não ter encontrado publicação deste texto anterior a Contos iluminados obra saída à luz em fevereiro de 1870 e composta de contos publicados no Journal das Famílias entre 1864 e 1869 acusado pela cultura francesa de carregação fazendo ver a necessidade de texto ilegível e um tratado sobre direitos de representação reservados com um opêndice e um pronto sobre traduções dramáticas p 788 O artigo revela um Machado bastante atento à República das Letras familiarizado com suas tretas e mutretas fazendose portavoz de reivindicações em prol da cultura brasileira Na berlinda o teatro ao qual Machado vai dedicarse com empenho cada vez maior como autor tradutor e crítico ao longo dos anos sessenta Não se trata pois de palpites de um curioso Em 1858 Machado não tinha ainda publicado nenhuma peça e assim sendo não advogava em causa própria mas já escrevia sobre teatro e nessa época o teatro era o palco onde se definiam os rumos da cultura nacional o que emprestava autoridade a sua voz A crítica de Machado enumera argumentos que justificam o imposto sugerido As tentativas neoufresçar diante deste czariniato de bastidores imoral e vergonhoso pois que tende a obstruir os progressos da arte A tradução é o elemento dominante neste caso que deveria ser a praça santa onde a arte pelos hábitos de seus criações falasse às turbas entusiasmadas e delirantes Transplantar uma composição francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entende de letra redonda O que provém daí O que se está vendo A arte tornouse uma indústria e é parte mecida de operações bemsucedidas sem dúvida o nosso teatro é uma fábula uma utopía p 788 9 Não é essa a única ocasião em que Machado dedicase a inventariar obstáculos à produção artística brasileira Ainda em 1858 o mesmo Machado reconhece o gigantismo e a complexidade da questão da cultura nacional admitindo implicitamente o traço quixotesco de propostas fiscais como a sua no país que um pouco mais tarde 1874 no calor de uma polêmica sobre direitos autorais José de Alencar chamaria de país do monopólio6 6 Cf FARA João Roberto José de Alencar e o teatro São Paulo PerspectivaEdusp 1987 Em formulação aguda e precisa neste outro texto de 58 Machado como que se penitencia dos arroubos retóricos do texto anterior saturado de boas intenções mas também inchado de urcas santas lábios de oráculo e turbas delirantes Machado aponta agora com sobriedade notável o impasse maior da produção cultural em uma sociedade como a brasileira atrasada e anacrônica É mais fácil regenerar uma nação que uma literatura Para esta não há gestos do Ipiranga as modificações operamse vagarosamente e não se chega em um só momento a um resultado p 787 Novo artigo de Machado oito anos depois em 1866 insiste ainda uma vez no mesmo problema na Semana Literária do muito mais popular Diário do Rio de Janeiro o discurso machadiano sofre reajustes e incide sobre a literatura A trajetória desses artigos de Machado do teatro para a literatura parece oposta à da cultura nacional que no decênio de sessenta assistia à migração para o teatro de expoentes das letras como Macedo e Alencar7 empenhados ambos aparentemente em substituir a raridade e esquivança do público de romances pelo calor dos aplausos de platéias lotadas Neste artigo de 1866 Machado reclama de uma tempestade literária abaixo de zero queixa bastante compreensível tendo em conta que afora Casamento no arrabalde de Franklin Távora o panorama das letras brasileiras parece ter sido desolador nesse ano principalmente considerando as expectativas criadas pela publicação de Iracema no ano anterior 1865 Analisando a questão Machado atribui a pobreza da oferta literária à falta de gosto formado no espírito público e ao correr da crônica tempra seu desencanto com análise mais sofisticada dos elementos envolvidos na produção literária e que contribuem para seu desalento 7 É numerosa a produção teatral de Alencar e Macedo nos anos finais de 50 e nos primeiros anos da década seguinte É a seguinte a cronologia do teatro de Alencar no período em questão A noite de São João 1857 Vera e quartana 1857 O alemão familiar 1858 As asas de um anjo 1860 Mãe 1862 A expiação 1867 O juruá 1875 para Macedo a cronologia é O cego 1849 Cubó 1852 O fantasma branco 1856 O primo da Califórnia 1858 O sacrifício da Inocência 1859 Lavo e calandras 1860 O novo Otelo 1863 Lisbela 1863 A torre em extinção 1863 Machada de Assis um mestre de leitura e quando pensamos entre nós nessa posição excêntrica chamada editor se os escritores conseguem err carregarlo por meio de um contrato da impressão de seus coras é claro que o editor não pode oferecer vantagem aos poetas eles sim por isso é razão de que a venda do livro é problemática e difícil A opinião que deveria suspenso o livro darlhe vez corcálo enfim no Ceprídio moderno esse como os heróis de Tácito brilha pela ausência Há um círculo limitado de leitores a concorrência é quase nula e os livros aparecem e morrem nas livrarias Não dizemos que isso ocorra com todos os livros nem com todos os autores mas a regra geral é esta p 841 Reencontrase nesse texto de 1866 o mesmo Machado que oito anos antes apontava a precariedade das condições de existência e desenvolvimento do teatro brasileiro ele continua atento às condições necessárias para a produção cultural e documenta agora a pobreza da infraestrutura disponível para o desempenho das Letras no Segundo Império Em crônica de 1895 para A Semana um agora já editadíssimo Machado de Assis mestre e patrono das letras brasileiras também elas já às vésperas da institucionalização numa Academia que iria desfrutar do beneplácito do Estado continua acompanhando com atenção gestos e rituais que selam o destino das Letras no Brasil Replonta no texto um discreto otimismo e uma ainda mais discreta gratidão que afloram quando Machado registra trâmites da legislação sobre direitos autorais o Sr Senedor Romiro Barcelos achou entre os seus cuidados um momento para pedir que entrasse na ordem do dia o projeto de Direitos autorais O senhor presidente do Senado de pronto acordo incluiu o projeto na ordem do dia Resta que o Senado correspondendo à iniciativa de um e à boa vontade de outro vote e conclua a lei p 668 Ainda em 1895 e nas páginas da mesma A Semana o tema retorna quando Machado discute a falta de leitura no Brasil Agora sem presidentes do Senado no horizonte desaparece o otimismo Em seu lugar erguese a ironia fina metonimicamente apoiada no deslocamento de leitura na paisagem cultural brasileira deslocamento que se agrava mais ainda quando somado ao registro do sotaque francês da cultura em circulação Que pouco se lê a este tempo é o que muita gente afirma há longos anos é o que occeocana de dizer um bibliônaro na Revista Brasileira Este porém AS AVENTURAS DE NGUNGA NA ESCOLA E NA LEITURA Não posso matar o meu texto com a arma do outro Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto Invento outro texto Interfiro descrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade As aventuras de Ngunga obra de Pepetela tem o apelo das obras feitas no calor da hora escrita que foi nas manhãs de dez dias debaixo de uma árvore numa carteira da mata na frente Leste O texto produzido nessas condições foi divulgado pela primeira vez em 1973 a partir dos 300 exemplares mimeografados pelo MPLA que circularam de forma sorrateira entre os combatentes pela libertação de Angola Se esse modo de produção é incomum para um livro a história que ele conta é bem mais trivial são os conflitos e experiências temores e amores que vive o protagonista Ngunga órfão de treze anos cujos pais foram surpreendidos pelos inimigos um dia nas lavras Os inimigos já se sabe são os tugas e os amigos também já se sabe são os combatentes os povos dos kimbos o mestreescola e para tudo ser como deve o próprio narrador Versão anterior deste texto foi publicada em 1983 no número 1 de EPA Estudos Portugueses e Africanos IEL Unicamp Rui Manuel Cinco vezes onze Poemas em novembro União dos Escritores Angolanos 1985 Pepetela José As aventuras de Ngunga São Paulo Ática 1983 Nas citações os números entre parênteses indicam a página desta edição Corruptela de turtuga portugueses forma pejorativa de referirse aos portugueses colonialistas As aventuras de Ngunga na escola e na leitura As condições de produção do livro seu públicoalvo e a militância política de seu autor fazem com que essa obra de sua concepção à sua circulação constitua projeto que estabelece entre o político e o literário o pacto de solidariedade firmado na tradição ocidental moderna em momentos de alteração social profunda O interesse que esse livro de Pepetela desperta entretanto não se deve apenas ao fato de ele fazer parte de um projeto político que confia à escrita a pedagogia revolucionária não é original nem necessariamente interessante a criação de um texto literário para difusão de um projeto político Quantos projetos similares ao de Pepetela não se encontram na tradição literária européia que em vários momentos abriu espaço para o cruzamento do estético com o político Para não recuar muito aquém do século passado nem ir muito além da pátriamãe fiquese com a belíssima exortação de Antero de Quental ao poeta Erguete pois soldado do Futuro E dos raios de luz do sonho puro Sonhador faze a espada do combate Pepetela pode pois invocar em seu favor o precedente de Antero que estará em excelente companhia Longe de constituir uma solução no entanto o precedente de Antero levanta uma questão interessante pois o interesse que o livro de Pepetela desperta nasce exatamente dessa falta de originalidade do projeto que parece ter presidido à sua elaboração Tratase de um precedente branco ocidental e português a cultura portuguesa inscrevese na européia na qual se inventaram livros escolas leitura literatura e todos os etcéteras de que se ocupam letrados aquém e além da Taprobana Curiosamente no entanto livros não obstante serem mídia privilegiada da cultura burguesa não por acaso também européia no nascimento costumam ser concebidos como efficientíssimos agentes de contracultura de resistência cultural e até mesmo como arma revolucionária Quental Antero de Sonetos 3 ed Lisboa Sá da Costa 1968 DO MUNDO DA LEITURA PARA A LEITURA DO MUNDO Que pirueta dialética permite então conciliar no mesmo saco gatos tão distintos como burguesia e revolução socialista liberalismo e libertação cultura letrada e contracultura É exatamente o que se pergunta a esse Pepetela de Ngunga supondose que Angola Pepetela e seu Ngunga sejam outros gatos de outríssimos sacos Serão A questão começa na observação de que As aventuras de Ngunga constitui de certa forma versão africana contemporânea de antigos projetos gerados e executados na velha Europa do século XIX Por exemplo na Itália e na França que no fim do século passado fizeram circular com exemplar eficiência os textos de Cuore e de Le tour de la France par deux garçons cimento precioso na argamassa patriótica dos projetos nacionais então em curso Tanto a obra italiana quanto a francesa são ao mesmo tempo romances de formação e obras de consolidação de unidade nacional Surgiram ambas em momentos de crise de suas respectivas sociedades O livro de De Amicis engajase no projeto de unificação italiana e o de G Bruno revigora o ânimo nacional francês seriamente abalado pela derrota militar diante da Alemanha A simpatia de que tais projetos estéticopedagógicos gozam junto às elites letradas findusiècle é grande É tanta a simpatia que o projeto atravessa os mares já dantes navegados e aporta ao Brasil onde Olavo Bilac e Manuel Bonfim engajamse na bemsucedida empresa de produzirem um similar nacional o famosíssimo Através do Brasil lido e relido por muitas e muitas gerações patrióticas Assim com Pepetela o projeto refaz a travessia atlântica na rota das caravelas e continuando a gozar de credibilidade recoloca a questão será que um projeto cuja versão primeira serviu de consolidação da ideologia liberal burguesa inclusive em seus desdobramentos colonialistas pode ser impunemente reciclado cem anos depois nas tropicais florestas e cidades de uma Angola às vésperas da libertação E se pode a que preço Logo à primeira visita percebese que em comum com os projetos anteriores o livro de Pepetela tem um protagonista criança Se na cultura ocidental a infância é a fase da vida marcada por fragilidade e insegurança traços que desde Perrault constituem prato cheio para a sensibilidade de leitores igualmente ocidentais fica por saberse se o solitário Ngunga produz impacto similar na sensibilidade de seus leitoresalvo a população de Angola envolvida na guerra de libertação Outro traço que aproxima o livro de Pepetela de seus modelos europeus é a orfandade do protagonista No livro francês a perda dos pais coincide com a perda da nacionalidade e as crianças então duplamente órfãs abandonam a AlsáciaLorena zona de ocupação alemã e fogem para a França em busca dos remanescentes da família Não é preciso dizer que recuperam ao mesmo tempo ambas pátria e família Quando o leitor termina o livro os meninos já são crescidos proprietários pais de família e supõese felizes para sempre na melhor tradição do conto de fadas de origem igualmente européia O Ngunga de Pepetela sofre a mesma carência dupla de pais e de pátria e embora em seu horizonte não haja parentes a procurar tendo o colonialismo como agente de sua orfandade sua busca de sobrevivência solitária e autosuficiente coincide com a busca do povo angolano do estatuto novo de nação independente Novamente Pátria e Família com maiúsculas identificamse Ecoam pois no projeto de Pepetela fragmentos de outras ideologias de terras outras e sobretudo de outros tempos Parece que Angola começa tudo de novo refazendo no projeto de sua literatura o percurso de institucionalização cumprido por literaturas européias Mas talvez a semelhança resida mais nos óculos do que no objeto contemplado pode tratarse de olhos e óculos treinados a reduzirem tudo a seu código de origem Mas como nem mesmo Machado sabia se o que tinha mudado era ele o Natal ou ambos registrese apenas a tentação e o risco de ler as literaturas do Terceiro Mundo inclusive a verdeamarela com olhos e gosto educados nas produções culturais do Primeiro Mundo Riscos e tentações crescem e tropeçam na constatação a propósito desse Pepetela de que são os modelos do Primeiro Mundo os padrões aos quais recorre o escritor deste Mundo Número Três quando se debruça sobre sua folha em branco Pois é Há que dizerse no entanto que se Ngunga vem na esteira de vários romances educativos ocidentais ele também ostenta algumas feições autônomas A começar pela linguagem que é simplíssima nada de períodos longos de parágrafos maciços de subordinações encadeadas Em vez disso muitos diálogos e quando é necessária a intervenção do narrador o registro dela não difere do de seus narrados Tratase de uma linguagem que guarda marcas fortes da oralidade das narrativas populares sugerindo uma recepção de texto que se afasta da recepção livresca escolar ocidental e que dá sentido emergencial e menos pitoresco àquele modo de produção sob as árvores e sob o sol Reforçando a oralidade os capítulos são sempre muito curtos e frequentemente se fecham de forma lapidar com frases que evocam fórmulas rituais de encerramento de narrativas populares Assim foi o teste do nascimento de Lumongo o primeiro filho de Kayro de Maria p 9 Foi assim que Ngunga deixou a Seção e seus amigos Voltaria a visitálos prometia ele com vontade de chorar p 27 É através dessa preservação da oralidade que o livro de Pepetela afastase dos modelos europeus e recupera seu horizonte de cultura terceiromundista em cujo contexto começa a esgarçarse a hegemonia dos já aludidos traços europeus e ocidentais de seus modelos literários De Amicis G Bruno e mesmo nosso Olavo Bilac não conhecem meiostons O quadro de valores que suas narrativas endossam e propagam tem a nitidez das ortodoxias acima de qualquer suspeita bem e mal certo e errado adulto e criança são mundos estanques que jamais se interpenetram No Pepetela de Ngunga ao contrário a nuance o meiotom e a ambigüidade estão presentes o tempo todo fecundando o texto Idade e orfandade do protagonista que já se viu serem ponto comum entre o romance angolano e obras de outras tradições culturais são tratadas diferentemente por Pepetela No livro de Bilac por exemplo a condição infantil é sistematicamente reprimida pois é rebelde às exigências do real social e histórico sendo jogo prazer e brincadeiras sempre controlados em nome de um valor mais alto que se alevanta o dever o trabalho o estudo Mais ainda não é sempre o paternal narrador bilacquiano quem em Através do Brasil comete o infanticídio o irmão mais velho assume o papel repressor o que sugere que em projetos pedagógicos bemsucedidos o abafamento da infância acaba incorporado pela própria criança O fato de os irmãos serem dois tanto no livro francês quanto no brasileiro como que facilita a escalonada e paulatina substituição do sercriança pelo sergentegrande cabendo ao primogênito iniciar o caçula nas sucessivas e dolorosas fases de maturidade É nesse aspecto que o solitário Ngunga ganha muitos pontos em comparação a outros heróis juvenis ocidentais Na voz de seus vários interlocutores Ngunga ora é criança demais ora demasiado crescido para ser dono de sua vontade Assim manipulada a condição infantil tornase presa de fácil dominação Mas Ngunga resiste e nessa sua resistência traço original do livro em face dos similares europeus e brasileiros está o traço maior de solidariedade a que esse livro convida seus leitores Em seu longo itinerário de conquista da maturidade que nas circunstâncias específicas angolanas equivale a tornarse militante na luta pela libertação do país Ngunga preserva a noção de liberdade individual e lhe dói sempre a injustiça de um mundo organizado e gerido por adultos autoritários mesmo quando esses adultos são pioneiros eou guerrilheiros Todos os adultos eram assim egoístas Ele Ngunga nada possuía Não tinha uma coisa era essa força dos brasis E essa força ele oferecia aos outros trabalhando na lavra para arranjar o com da dos guerilheiros O que ele tinha oferecia Era generoso Mas os adultos Só pensavam ne es Até mesmo um chefe do povo escolhido pelo Movimento para dirigir o povo Estava certo p 15 Mavinga foi ter com os mais velhos Ngunga ficou a olhar o velho Cripoya muito vaidoso ao lado do Comandante que ao Kavxi Lus exp crodotores todos eles e nomeados pelo Moviment por dirigir o povo p 54 A defesa da infância se faz explicitamente no elogio de Ngunga ao professor União O camarada professor é copaz de ser cindo um bocadb crionça não sei Por isso dinda é bom Mas também é mau Com o Crivicula foi mau Não devia mcrdálo embora p 30 A desconfiança em face do mundo adulto transparece tambéem no pouco entusiasmo com que Ngunga encara a escola Em conversa com o Comandante Mavinga o ideal escolar adulto e ocidental na origem não parece seduzir muito o menino que defende o aprendervivendoefazendo em lugar da aprendizagem institucionalizada da escola Ngunga tu és pequeno demais para ser guerilheiro Aqui já te disse que não podes ficar Andar só como fazes não é bcm Jm dia vai acontecerte uma coisa má E não estás a aprender cado Como Estou a ver novas terras novos rios novas pessoas Cico c que falam Estou a aprender Não é a mesma coisa Numo escola aprendes mais E assim vos connecer o professor Já viste um professor p 20 Para todos os efeitos o ponto de vista do comandante e do narrador leva a melhor e Ngunga vai efetivamente para a escola A lição que ele lá aprende entretanto é a lição de solidariedade e lealdade ficando a alfabetização para mais tarde e assim mesmo só tolerada como instrumento para a causa maior a da libertação de Angola se soubesse escrever podia meter um bilhete nc celda de União e combina rem juntos a fuga Mas pouco se interessara por aprender só gostava mesmo de passear Pela primeira vez Ngunga desação co professor cue lhe dizia que um homem só pode ser livre se ceixer de ser ignorante p 37 Também ao contrário dos romances de formação ociden tais o final do livro de Pepetela não coincide com nenhuma restauração universal de equilíbrio Ngunga não recupera os pais happyend de Atrazés do Brasil em que era falsa a notícia da morte do pai dos meninos e tampouco seu pais consolidase como independente Ngunga como protagonista desa Parece de cena e as talas finais do livro são do narrador que se dirige diretamente ao leitor exortandoo a descobrir e culti var o Ngunga que cada um tem dentro de si O desaparecimento de Ngunga é voluntário e como solu cão narrativa aproximase muito do antológico desapareci mento de Ceci e Peri no olho da palmeira o menino desaparece na selva e desaparecendo ressurge como mito O que não sendo uma rima pode bem ser uma solução Solução narrativa que textualiza com os impasses vivi dos pela literatura angolana leitura escrita e escola Práticas e instituições impostas pelo colonizador a partir de certo pon to elas tornamse essenciais para a libertação do jugo colo nial cabendo à literatura expressão simbólica a tal passagem e a nós profissionais da leitura desenvolvimento das catego rias críticas que dêem conta de tal movimento favorecendo a elaboração de uma teoria e de uma história da leitura espe cífica das regiões do planeta onde ela chegou na esteira de pro jectos coloniais LOBATO UM DOM QJIXOTE NO CAMINHO DA LEITURA Já viste Reinações de Narizinho Vou falar na edi tora que te mandem Dei também Alice no País das Maravilhas e Robinson tudo na mesma semana E ontem falei no Rádio com a filhinha do Octales a Cleo uma menina que é um encanto de desembaraço Dialogamos inventadamente sobre o que nos veio à cabeça e todos gostaram2 A década que se abre em 1930 é difícil para Lobato que de Nova York cm 91 desabafa com a irmã declarandose encalacrado em dívidas Hás de crer que acabo de cometer um dos maiores erros de minha vida Entrei no Stock Excnange com todos os recursos que pude reunir certo de fazer fortuna Errei o bote Em vez de ganhar já perdi metade do meu cap tal e estou ameaçado a perder o resto e ainda devendo alguma coisa Estou em arranjos com o Octales para vender o resto das ações que tenho na companhia se isso se der estarei habi tado a receltar o perd de tal vez sai ganhando Seria uma operação muito difícil meses atrás mas com a escassez absoluta de dinheiro que anda em São Paulo creio que este passo falhe falhando tenho de sair perdendo3 Em maio do mesmo ano e ainda de Nova York ele anuncia ao amigo Fomoura as providências relativas a suas precárias finanças e que se traduzem em proposta feita à edi tora Nacional escrevi ao Octales propondo uma série de novos livros infantis que ele ande qucrerco publicar en troca de ele me custear os despescos da coerça do Egger Caso ele ace ile irá converson com você para combinar o pagamento do que já forneceste e Teca Minha moeda sempre é livro sic e vamos ver agora se reizz o moedc os livros en estado policial que tenho na cobega4 O envolvimento de Lobato retornado ao Brasil em 1931 com a campanha do petróleo prolonga o tempo das vacas magras e faz com que sua sobrevivência dependa cada vez mais dos livros infantis que escreve e das traduções que faz Destacamse aqui as obras cuja temática por interessar à escola ou por desfrutar do prestígio dos clássicos garante circulação ampla e recompensa financeira para um quase insolvente Lobato que em novembro de 1933 anuncia a Anísio Teixeira Emilia no pais da gramática Estou escrevendo Emilia no país da gramática Está estupendo Indo agora fiz a entrevista de Emilia ne qualidade de repórter do Grito do Picapau Amarelo um jornal que ela vai fundar no sítio com o Venerabilissimo Verbo SER que ela trata respeitosamente de Vossa Senhoria Está tão persóstica Anísio que você não magia5 Em 15 de agosto do ano seguinte em carta a Viana Lobato alude ao sucesso do livro A minha Emilia está realmente um sucesso entre os crianças e os professores Sisto dizer que tirei uma edição inicial de 20000 e o Octales está com medo que não aguente o reste do ano Só aí ro Ro 4000 vendidas num mês Mas a critico se Teto não sarcbeu o significação da obra Vale como significação de que há caminhos novos para o ensino das matérias obrstras Numa escola que visiei o criação da me rodeou com grandes festas e me pediram Iça o Emilia do pai da arritmética Esse pedido espontâneo esse grito dalma da criança não está indicando um caminho O livro con o temas torturo os pobres crianças e ne entanto poderie diverrilos como a gramática da Emilia co está fazendo Todas os erros sodiam tomar se una pândega una tarra infantil A química a física a biologia a geografia prestamse imenscmente porové ideam passa as dimensões objetuais do livro em questão e textualizase o teor clássico castiço e castilho da linguagem assusta os ouvintes não obstante a propaganda de Dona Benta Dona Benta começou a ler Num lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrarme vivia não há muito um fidalgo dos de lança em cabido adarga antiga e gojoso corredor Crê exclamou Emília Se o livro traíço é nessa perfeição de língua até logo Vou brincar de esconder com o Quindim Lança em cabido adarga antiga galgo corredor Não entendo estas viscondessas não p 11 Ameaçada de perder seu público Dona Benta recua e concilia esta obra está escrito em alto estilo rico de todas as perfeições e sutilezas de forma razão pela qual se tornou clássica Mas certo vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária er vez de ler vou contar a história com palavras minhas Isso berrou Emília Com palavras suas e de tia Nastácia e minhas também e de Narizinho e de Pedrinho e de Ribicó Os viscondes que falem arrequezado lá entre eles Nós que não somos viscondes nem viscondessas queremos estilo de claro de ovo bem transparente que não dê trabalho para ser entendido p 12 A idéia dessa leitura ao alcance de todos não é novidade na obra de Lobato Já em seu livro inaugural as Reinações de Narizinho ele encenara no sítio do Picapau Amarelo a propósito de Pinocchio proposta de leitura bastante similar A roda de Dona Benta ler era boa Lia diferente dos livros Como quase todos os livros de crianças que há no Brasil são muito sem graça cheios de termos do tempo de onça ou só usados em Portugal a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil que não existe por exemplo lume lá fogo onde estava lixeira lia varanda E sempre que dava com um botouo ou comeuo lia botou sie comeu sie e era o dobro mais interessante Como naquele dia os personagens eram da fábula Dona Benta começou a aumentar a voz de um ratinho galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procura de farrapos e assim o Pinocchio inventou uma vizinha de taquara rachada que era direito como o boneco devia ficar1 1 Reinações de Narizinho 7 ed São Paulo Brasiliense 1987 p 199200 Dona Benta leitora experiente toma a si a tarefa de apontar à sua platéia os elementos necessários ao fortalecimento da vocossimilhança da compreensão do envolvimento Ao narrar por exemplo o encontro de D Quixote com o jovem chicoteado pelo amo ela sugere categorias pelas quais sua audiência pode reconhecerse na personagem Num ândice estive no ponto de onde vinham os gritos Que vê lá um menino assim um pouco maior do que Pedrinho agarrado a um tronco de árvore e a receber uma tremenda sova de correião p 28 Assim pelos expedientes de sua leitura Dona Benta favorece o envolvimento que amarra o leitor ao texto e o envolve Os resultados não se fazem esperar Ao fim do episódio quando Dona Benta relata a ironia com que o amo diz ao menino espancado vai agora atrás do tal defensor dos inocentes e pedelhe que te cure o lombo Ah Ah Ah p 30 Narizinho não se contém E o menino foi indagou Narizinho denoda com a brutalidade do homem p 31 dando a deixa para Pedrinho Pois eu iria disse Pedrinho Fugiu e só ia pelo mundo até encontrar de novo D Quixote e tentarlo para rachar os baderneiros de dança e briga com a onça p 32 O episódio cala fundo em todos inclusive em Emília que sonha que o malvado patrão do André apareceu no sítio p 45 O viver vidas alheias promessa sedutora e irresistível da leitura de ficção é aqui encenado à maravilha não faltando sequer a ruptura do envolvimento ou seja o retorno ao real no caso patrocinado por Emília Ao fim do episódio a boneca chama a atenção de Pedrinho para o fato de que rachar baderneiros de alto a baixo só com a espada uma vez que lança é só para espetar Multiplicamse assim passagens nas quais Lobato cifra questões de leitura a partir de situações de leitura vividas pelas personagensleitoras e que podem conjugiar os leitoresleitores De leitores de papeletinta a leitoresdecarneeosso o projeto se encorpa ao longo do livro reforçandose em uma confissão de Pedrinho relativa a uma leitura aparentemente feita sem a interferência de adultos ia ser uma vez que caiu em casa aquele livrinho da história de Carlos Magno e dos doze pares da França Comecei a ler e fui me esquentando me esquentando até que não pude mais Minha cabeça virou fiquei assim com o de D Quixote Convincime de que eu era o próprio Rodolfo Fui lá no quarto das calculações e tirei aquela espada que pertenceu ao velho tio Encarnações e molheia no rego bem amoladinha E quando a senhora sou com tia Nastácia e Narizinho para visitar o compadre Teodorico ah que regalia Corri ao moral e não vi ninguém pé de milho na minha frente Só vi mourões AN Caí em cima deles de espada que foi uma beleza Destróios completamente Não ficou um só Que coisa gostosa Nastácia gritou Dona Benta Venho ver quem nos esgangalhou o milharal Foi Pedrinho p 1023 À semelhança do que sucedera por ocasião dos serões nos quais Dona Benta contava às crianças a história de Peter Pan cuja tradução adaptada de Lobato é de 1930 quando a sombra cortada de Peter Pan sugere a Emília picotar a sombra de tia Nastácia também nesse D Quixote a boneca não fica imune à loucura do protagonista Emília continuava a dar viracambotas Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança e começou a espetar todo o mundo E botou um cinceiro de estan na cabeça dizendo que era o elmo de Mambrino Por fim inventou re Visconde dizendo que era Rocinante p 154 Dona Benta foi vaqueira pela panela e de fato viu as cistripúlmas que Emília e tal Ribicó estava fazendo no quintal Vestidinho de cavaleiroandante toda cheia de armaduras ao corpo e de elmo na cabeça avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste fazendo a bicharada fugir com pavor no maior grito Até o galo que era um canijó valente correra e esconderse dentro de um cícico Dona Berta gritoulhe várias vezes que paresse com aquilo Tudo inútil A parece fora tomada dum verdadeiro delírio de heroísmo p 1801 Tampaoco falta ao livro a idéia de que ouvir a história de D Quixote não é a mesma coisa que lêla e lêla na íntegra cabendo também a Dona Benta chamar a atenção das crianças para a diferença entre originais e suas adaptações É uma lástima disse Dona Benta eu estar contando só a parte aventureira da história do cavaleiro do Maroto Um dia quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais aceita pela cultura haveremos de ler o outro inteira nesta tradução dos dois viscondes que é ótima p 212 A tradução em questão é a do visconde de Castilho e visconde de Azevedo apresentados por Dona Benta no começo dos serões O visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa É considerado um dos melhores clássicos isto é um dos que escreveram em estilo mais perfeito Quem quiser saber a porcujês a fundo deve lêlo e também Herculano Camilo e outros p 11 Para quem estranha essa adesão consentida aos clássicos o prosseguimento da conversa sobre adaptação traz outros elementos de surpresa prosseguindo a defesa da superioridade da leitura de obras integrais Dona Benta discute o desencontro entre a tradução de Castilho e a recepção dela pelo pessoal do sítio É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora Hoje usamos a linguagem mais simplificada possível como o de Machado de Assis que é o nosso grande mestre Os escritores portugueses que chamamos clássicos usavam uma forma menos singela mais cheia de termos próprios mais rica mais interpolada p 22 Mais adiante um pouco e face à geral condenação da norma culta pela audiência do sítio que através da boca de Emília acusa o estilo clássico de dar dor de cabeça e constituir uma charada Dona Benta explica Para vocês meus filhos que estão começando a chegar com a língua já eu entendo o período perfeitamente sem nenhuma dificuldade p 213 A relação de Dona Benta com a cultura é assumidamente uma relação mais complexa mais aprofundada mais antiga e que assim se proclama sem falsos escrúpulos de um igualitarismo enganoso O que parece sugerir que entre um iniciador de leitura e os iniciandos ou entre um professor e seus alunos não se deve estabelecer nenhum nivelamento por baixo Dona Benta como todo e qualquer leitor competente aliás como todo e qualquer usuário competente da língua escrita e oral é poliglota isto é transita com facilidade do estilo clássico de Castilho para o estilo coloquial de sua platéia Mas tem plena consciência de que ambas as modalidades são diferentes e que sua responsabilidade como iniciadora de jovens na prática de leitura é leválos até o classicismo de Castilho Em outra passagem do livro vêm à tona as expectativas da escola em face da leitura dos jovens Conversando com Emília que atribui sua crise de loucura à revolta contra tanta besteira que há no mundo Dona Benta retruca Lá vem você com as palavras plebeias Muitas professoras Emília criticam esse seu modo desbocado de falar Besteira Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie Use expressão mais culta Diga por exemplo notice p 195 Como os anos trinta são o tempo em que Lobato usa da pena para sobreviver o quanto essa sobrevivência depende da aprovação das senhoras professoras é fácil de imaginar a partir do que vivemos hoje quando a escola decreta se a personagem do romance juvenil pode ou não fumar maconha pode ou não ficar embriagada se pode dizer merda ou deve dizer droga A completa conversão de Emília que ao fim do episódio adere a formas menos quixotescas de protesto parece atestar já ao tempo de Lobato a forte dependência da literatura juvenil da escola Assim nesse D Quixote das crianças o leitor encontra material bastante rico para reflexão sobre questões de leitura de leitura dos clássicos da adequabilidade de certas linguagens a certos públicos do papel a ser representado pelo adulto responsável pela iniciação dos jovens na leitura e mais miudezas Naqueles pacatos anos trinta ainda sem roteiros de leitura fichas de atividades sugestões de trabalhos sem notas de rodapé nem glossários Dona Benta patrocina a seus ouvintes as experiências e as discussões de leitura necessárias ao amadurecimento deles fazendo a ponte entre algumas questões nossas contemporâneas diante de leitura escrita e escola e o encaminhamento que tais questões tiveram em outro momento de nossa história cultural TECENDO A LEITURA Um galo sozinho não tece uma manhã ele precisará sempre de outros galos De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã desde uma teia tênue se vá tecendo entre todos os galos O poema de João Cabral sugere uma bela concepção de leitura os galos que tecem a manhã evocam os leitores que tecem o significado dos textos com que se deparam ao longo da vida Tecendo a manhã conota artesanato solidariedade e diálogo construindo uma metáfora que sublinha aspectos relevantes para uma reflexão sobre o papel da leitura numa sociedade democrática Fica pois a tecelagem prática ancestral de fiar de tingir e de urdir os fios de entrelaçálos em tecidos matriz metafórica da leitura Ao longo da história a arte de tecer deslocanas hoje barulhentas indústrias têxteis onde o antigo tecelão por participar apenas de uma das etapas da produção perde o sentido da totalidade tanto do objeto que produz como do processo pelo qual o objeto é produzido À semelhança da história da tecelagem a modernização ininterrupta do modo de produção do livro a partir de Gutenberg tornou possível e mesmo necessária a massificação da leitura trazendo para o horizonte dela o risco de alienação de fracionamento e esgarçamento do significado do texto e do ato de ler A atividade da leitura que em suas origens era individual e reflexiva em oposição ao caráter coletivo volátil e irrecuperável da oralidade de poetas e contadores de histórias transformouse hoje em consumo rápido do texto em leitura dinâmica que para ser lucrativa tem de envelhecer depressa gerando constantemente a necessidade de novos textos O ato de ler foi de tal forma se afastando da prática individual que a tarefa que hoje se solicita de profissionais da leitura como professores bibliotecários e animadores culturais é exorcizar em o risco da alienação muito embora eles possam acabar constituindo elo a mais na longa e agora inevitável cadeia de mediadores que se interpõem entre o leitor e o significado do texto Esse papel de intermediário pode afastar da prática docente o artesanato que a leitura exige O que se reserva aos professores de hoje a partir inclusive de sua formação profissional é a divulgação de livros a decifração de significados a intermediação e o patrocínio do consumo de textos impressos É só muito incidentalmente e como que por acréscimo a iniciação de jovens na leitura talvez porque em nossa tradição cultural a leitura como prática coletiva só exista muito esgarçadamente Tomar consciência das ambigüidades desse papel pode ser o primeiro passo para mudanças qualitativas nos projetos e práticas de leitura particularmente as escolares que ocorrem em diferentes circuitos da cultura brasileira a começar da ruptura da cadeia de alienações em que se insere a prática escolar da leitura no Brasil de hoje A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados Mas se a leitura literária é uma modalidade de leitura cumpre não esquecer que há outras e que essas outras desfrutam inclusive de maior trânsito social Cumpre lembrar também que a competência nessas outras modalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderia chamar de capital cultural de uma sociedade e conseqüentemente responsável pelo grau de cidadania de que desfruta o cidadão Numa sociedade como a nossa em que a divisão de bens de rendas e de lucros é tão desigual não se estranha que desigualdade similar presida também à distribuição de bens culturais já que a participação em boa parte destes últimos é mediada pela leitura habilidade que não está ao alcance de todos nem mesmo de todos aqueles que foram à escola Mas ler no entanto é essencial E não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada dos requintes da ciência e da técnica da filosofia e da arte literária A própria sociedade de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagem escrita e chega por vezes a transformar em consumo o ato de ler os rituais da leitura e o acesso a ela Assim no contexto de um projeto de educação democrática vem à frente a habilidade de leitura essencial para quem quer ou precisa ler jornais assinar contratos de trabalho procurar emprego através de anúncios solicitar documentos na polícia enfim para todos aqueles que participam mesmo que à revelia dos circuitos da sociedade moderna que fez da escrita seu código oficial Mas a leitura literária também é fundamental É a literatura como linguagem e como instituição que se confiam os diferentes imaginários as diferentes sensibilidades valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute simbolicamente seus impasses seus desejos suas utopias Por isso a literatura é importante no currículo escolar o cidadão para exercer plenamente sua cidadania precisa apoderarse da linguagem literária alfabetizarse nela tornarse seu usuário competente mesmo que nunca vá escrever um livro mas porque precisa ler muitos Como a manhã que no poema de João Cabral se perfazia pelo entrelaçamento do canto de muitos galos também a leitura principalmente a literária parece constituir um tecido ao mesmo tempo individual e coletivo Cada leitor na individualidade de sua vida vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que ao longo da história de um texto este foi acumulando Cada leitor tem a história de suas leituras cada texto a história das suas Leitor maduro é aquele que em contato com o texto novo faz convergir para o significado deste o significado de todos os textos que leu É conhecedor das interpretações que um texto já recebeu é livre para aceitálas ou recusálas e capaz de sobrepor a elas a interpretação que nasce de seu diálogo com o texto Em resumo o significado de um novo texto afasta afeta e redimensiona o significado de todos os outros Desse ponto de vista a história da literatura de um povo é a história das leituras de que foram objeto os livros que integram o corpus dessa literatura No entanto se o texto literário mais do que qualquer outro oportuniza leituras divergentes há também o risco de que o peso e a autoridade das leituras de que ele foi objeto ao longo da história silenciem as outras tantas leituras que ele virtualmente pôde e pode suscitar em outros leitores Nesse sentido história e teoria literárias quando transformadas em argumento de autoridade quer como justificativa para a inclusão de determinado texto ou autor no currículo escolar quer como endosso de interpretação deste ou daquele texto podem ser paralisantes Entre a interpretação sancionada pela comunidade intelectual e a interpretação livre do leitor anônimo reside o equilíbrio difícil em que precisa moverse o professor de leitura e de literatura Apostando assim numa concepção de leitura que a vê ao mesmo tempo como instituição e como prática coletiva parece que se pode privilegiar a reflexão sobre a natureza e o percurso social da leitura deixando em plano secundário discussões sobre metodologias e estratégias que em nome dela leitura costumam ser incorretamente vistas como os elementos determinantes do famoso e reclamadamente ausente interesse dos jovens pela leitura Se algumas metodologias e estratégias propostas para o desenvolvimento da leitura parecem enganosas por trilharem caminhos equivocados o engano instaurase no começo do caminho a partir do diagnóstico do declínio ou da inexistência do hábito de leitura entre os jovens Espalilhada em hábito a leitura tornase passível de rotina de mecanização e automação semelhant a certos rituais de higiene e alimentação só para citar áreas nas quais o termo hábito é pertinente Tanto o diagnóstico ausência ou declínio do hábito de leitura quanto a terapia estratégias de motivação para a leitu ra sugerem alienação do modo de leitura patrocinado numa sociedade como a nossa o que também se revela no léxico de controle social e de automação com que se discute a formação do professor reciclagem treinamento estratégias hábitos Os caminhos precisam ser outros A discussão sobre leitura principalmente sobre a leitura numa sociedade que pretende democratizarse começa dizendo que os profissionais mais diretamente responsáveis pela iniciação na leitura devem ser bons leitores Um professor precisa gostar de ler precisa ler muito precisa envolverse com o que lê E esse não é infelizmente o perfil comum do professor Pesquisa recente feita entre professores de primeiro grau e bibliotecários de Campinas e do Recife mostrou como o repertório de leitura desses profissionais é desolador constituído a maior parte das vezes por bestsellers tão antigos quanto Fernando Capelo Gaivota O menino do dedo verde e O pequeno príncipe ou pelo que se poderia chamar de clássicos escolares como A moreninha Iracema e A escrava Isaura A precariedade da situação que essa pobreza de repertório indica é grave E a gravidade aumenta quando se sabe que para muito além do conhecimento mecânico de metodologias e técnicas de desenvolvimento da leitura a formação de um leitor exige familiaridade com grande número de textos É preciso pois que haja espaço para leitura nos cursos destinados a profissionais de leitura Se afirmar isso soa redundante cumpre lembrar que em tais cursos a ênfase fica geralmente por conta da prescrição de títulos e do treinamento em atividades como fazer cartazes recortar figuras dramatizar textos fazer jogos Atividades interessantes e que podem realmente tornar mais agradável o tempo de escola mas que são inócuas quanto ao papel que representam na interação leitorlivro que é afinal aquilo em que a leitura consiste É importante frisar também que a prática de leitura patrocinada pela escola precisa ocorrer num espaço de maior liberdade possível A leitura só se torna livre quando se respeita ao menos em momentos iniciais do aprendizado o prazer ou a aversão de cada leitor em relação a cada livro Ou seja quando não se obriga toda uma classe à leitura de um mesmo livro com a justificativa de que tal livro é apropriado para a faixa etária daqueles alunos ou que se trata de um tema que interessa àquele tipo de criança a relação entre livros e faixas etárias entre faixas etárias interesses e habilidades de leitura é bem mais relativa do que fazem crer pedagogias e marketing Menos ou mais sofisticados os exercícios que sob o nome de interpretação compreensão ou entendimento do texto costumam sucederse à leitura são quase sempre exercícios que sugerem ao aluno que interpretar compreender ou entender um texto atividades que podem muito bem definir o ato de leitura é repetir o que o texto diz O que é absolutamente incorreto Sorry como diz o samba é triste mas é realidade e apenas severidade e rigor permitem perceber que escola e professor são talvez os únicos pontos de ruptura da leitura alienada e consumista E rigor e severidade de análise sugerem também que para que ocorra a ruptura é preciso uma guinada radical nos rumos que norteiam as políticas de leitura atualmente em prática O mecenato do Estado através do provimento de bibliotecas o patrocínio empresarial que esporadicamente doa livros a uma ou outra escola a ação do Estado na formação de professores constituem instâncias à que se deve pode e tem de recorrer Recorrer a elas no entanto é preciso que se aprenda a fazer frente ao paternalismo de que geralmente se reveste a atuação de tais instâncias para o que é preciso que as associações profissionais conquistem espaço crítico e que através delas a comunidade docente passe a ter voz e voto na política cultural e educacional brasileira O modelo capitalista de nossa sociedade e nossa condição de país dependente não deixam abertos outros caminhos Mas descaminhos há muitos Relativamente à leitura nosso desgoverno e nossa imaturidade política parecem manifestarse às vezes através de uma rivalidade de competências bibliotecários escritores professores primários secundários e universitários parecem desculparse cada um de ser o que é e de não ser o outro O resultado é o descarte numa equivocada condenação da competência exatamente daquilo que por ser atributo da cultura e do saber permite a passagem do discurso à ação da leitura à vida e para encerrar retornando ao texto de abertura do canto de galo à luz da manhã Índice Onomástico Abreu e Lima 19n Abril Educação editora 12n 13 14 Academia de Literatura Infantil e Juvenil 68 Ackroyd Roger 34 Aguerra Carlos Artur 63 Alencar José de 57 61 81 82 Alice no País das Maravilhas 94 Alma infantil 41 Alvarez Padre 61 Amaral Emília 15n Amicis Edmond de 23 88 90 Andersen 96 Andrada Marlim Francisco Ribeiro de 53 Andrade Carlos Drummond de 23 51 66n Andrade Jacinto Freire de 54 55 Andrade M 49n Andrade Mário de 29 Andrade Thales de 69 Ariès Philippe 26n Aritmética da Emília 97 Assaré Patativa do 62 63 65 Assis Machado de 8 22 36 61 77 80 81 82 83 84 85 90 102 O Ateneu 58 59 60 Através do Brasil 69 88 91 93 As aventuras de Ngunga 86 88 90 91 Azevedo visconde de 102 Babo Lamartine 52 Bakhtin M 31 Barbosa José Juvêncio 63n Barbosa Rui 55 56 61 65 Barcelos Senador Ramiro 83 Barthes Roland 11 Bernardes P Manuel 56 Bernardes Maria Thereza Caribby Crescenti 19 Bilac Olavo 14 23 41 42n 61 62 66 67 69 88 90 91 Bolívar Simón 19 Bomény Helena Maria Bousquet 63 Bonfim Manuel 69 88 Borges Abílio César barão de Macaúbas 20n 58 59 60 Bosi Ecléa 60n Branco Camilo Castelo 102 Bruno G 88 90 Caminha Adolfo 17n Camões Luís de 11 22 Carvalho Filisberto de 63 Carvalho Laerte Ramos de 61 Casamento na arrabalde 82 Castilho visconde de 102 103 Ceci e Peri 93 CELD Comissão Estadual do Livro Didático 64 CELIJU Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil 68 Cervantes Miguel de 97 99 Chardin Jean Baptist Siméon 44n CNLD Comissão Nacional do Livro Didático 64 Collodi Carlo 23 COLTEF Comissão Nacional do Livvo Técnico e Didático 64 58 Índice onomástico 111 Contos de Conan Dover 96 Contos fluminenses 77 80 Coutinho Afrânio 77n Covinho Lino 54 Cunha Fausto 71 Cunha Maria Antonieta Antunes 42n Cure 23 68 Damasceno D 47 Dean James 28 Deus João de 21n Diário do Rio de Janeiro 82 Dietzsch Mary Julia M 19n Dom Casmurro 61 Dom Quixote das crianças 97 101 103 Doyle A Conan 96 Eco Umberto 31 77n Emília no país da gramática 95 96 A ervona Larama 108 FAF Fundação de Assistência ao Estudante 68 Faria João Roberto 81n FENAME Fundação de Material Escolar 64 Fernão Capelo Gaivota 108 Ferreira Octales Marcondes 94 95 96 97 Fish S 43 FLE Fundação para o Livro Escolar 64 68 Fontoura da Silveira Cândido 94 Fraccarolli Lenira 28 França Dr A F 19n Frasão Manuel José Pereira 20n 52 53 55 61 65 Freire Ana Maria Araújo 60n Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil 68 O genio da crime 23 71 Geografia de Dona Benta 97 Gibson Walter 33n Gomes Antônio Carlos 25n Grimm 96 Guimarães Sonia Dantas Pinto 63 Gutenberg 105 Hallewell Lawrence 67n Herculano Alexandre 102 História das invenções 97 História do mundo para crianças 97 História social da criança e da família 26n O homem invisível 96 Hollywood 27 Inácio Padre 20 INL Instituto Nacional do Livro 64 Incidente em Antares 16 Infância 59 60 Iracema 82 108 Jakobsson Roman 43 44 Jansen Carlos 23 57n João VI D 57 Jornal das Famílias 80 Joyce James 77 Júlia Francisca 41 42n Khede Sonia S 67n Koster Henry 57 58n Laemmert editora 23 Lajolo Marisa 15n 19n 42n 56n 57n 67n 69n 70n 79n 85n 88n Lancaster José 19 Lima Alceu Amoroso 42 O livro da jungle 96 O livro de Berenice 69 Lobato Monteiro 8 23 94 95 96 97 98 99 100 101 103 Luccock John 53 Lucena Pe João de 56 Macaúbas barão de v Abílio César Borges Macedo Joaquim Manuel de 82 Marinho João Carlos 23 69 71 Marins Francisco 23 A Mornuta 80 Martins Maria Helena 19n Mártires Frei Bartolomeu dos 54 Meireles Cecília 40 41n 45 47 50 Melhoramentos editora 30 31 58 112 Do Mundo da Leitura para a Leitura do Mundo Melo Neto João Cabral de 104 106 Memórias póstumas de Brás Cubas 16 80 85 Mendes Odorico 54 O menino do dedo verde 108 Miss Dollar 77 80 84 85 Moacir Primitivo 53 Moderna editora 29 Montalc Eugenio 77 Morais L M 49n A moreninha 108 MPJA Movimento Popular pela Libertação de Angola 86 Nacional editora 95 97 Nunes Cassiano 95 Octales v Octales Marcondes Ferreira Oliveira João Batista Araújo e 63 64 Pepetela José 8 86 87 88 89 90 91 92 O pequeno príncipe 108 Pereira Carlos de Aquino 57n Perrault Charles 22 23 89 96 Pessoa Fernando 12 13 Peter Pan 101 Le philosophe lisant 44n Pinocchio 23 98 Pinto Fernão Mendes 56 O poço do Visconde 97 Poesias infantis 23 41 A política do livro didático 63 64 Polyana moça 96 Pompéia Raul 58 59 60 65 Presley Elvis 28 Quadrilha 23 Quental Antero de 87 Ramos Graciliano 7 59 60 65 Rangel Godofredo 96 Reinações de Narizinho 94 98 Revista Brasileira 83 Robinson Crusoe 94 Romero Silvio 56 57n 61 Rosa João Guimarães 7 65 Rosa Noel 52 Rousseau JJ 23 Rui Manuel 86 Saldiva Associados 13 Sampaio Bittencourt 25n Saudade 69 A Semana 83 Serões de Dona Benta 97 Sheldon Sidney 36 Silva E Theodoro da 15n 18n Silva Júlio da 41 42n Soares Magda B 18n Sousa Frei Luís de 56 Souza J Galante de 80 Steiner George 44 Tácito 83 Távora Franklin 82 Teixeira Anísio 95 Tompkins Jane 33n Le tour de la France par deux garçons 88 Veríssimo José 56 O vestido de Lazara 45 46 48 49 Viana Francisco José de Oliveira 95 Vidas secas 7 Wells H G 96 Zillcerman Regina 15n 18n 19n 42n 56n 57n 69n 70n 79n Zola E 17 mundo da leitura na escola Seus tópicos essenciais são o livro didático a literatura infantil e juvenil as práticas escolares de leitura o currículo a formação e o preparo dos professores Em análises consistentes derivadas de grande capacidade teórica e de longa prática de observação Marisa Lajolo sempre mediante exemplos concretos questiona uma série de valores e funções atribuídos à literatura infantojuvenil na escola Esse questionamento no entanto não procura fechar portas e sim abrilas trata de repor soluções e práticas Desse modo a autora avança sugestões e estimula a reflexão de todos os interessados em tema e prática tão importantes Na segunda parte do livro a leitura do mundo ocupa o primeiro plano graças à análise de textos literários que investigam a leitura o leitor a escola a iniciação à leitura É assim que Miss Dolar de Machado de Assis As aventuras de Ngunga de José Pepetela e D Quixote das crianças de Monteiro Lobato trazem iluminações exemplares sobre as questões discutidas na primeira parte Essa concatenação é mais uma das qualidades também exemplares de Do mundo da leitura para a leitura do mundo Sua análise do universo cultural brasileiro incorpora dados e situações econômicosociais sem incorrer em simplismos ou reduções Neste livro que versa sobre o amplo sentido do termo leitura o estilo da autora claro e elegantemente descontraído unese ao vigor de sua análise para formar um todo isto é um texto que convence e conquista