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MARISA LAJOLO DO MUNDO DA LEITURA PARA A LEITURA DO MUNDO ste é um livro necessário Necessário para professores de 1 e 2 grau para educadores críticos e escritores historiadores e bibliotecários Tratase de uma reflexão abrangente e aguda sobre a leitura na escola com tudo quanto essa atividade implica dentro da realidade cultural brasileira Em sua primeira parte o livro aborda o EDITOR Fernando Paixão ASSISTÊNCIA EDITORIAL Mário Videla PREPARAÇÃO DE TEXTO Renato Nicolai EDIÇÃO DE ARTE MOTOS Milton Takeda COORDENAÇÃO GRÁFICA Jorge Okura COMPOSIÇÃO Maria Inês Rodrigues PAGINAÇÃO EM VÍDEO Eliana Ap Fernandes Santos CAPA Ary Normanha ISBN 85 08 04383 x 1993 Todos os direitos reservados Editora Ática SA Rua Barão de Iguape 110 CEP 01507960 Tel PABX 011 2789722 Caixa Postal 8635 End Telegráfico Bomlivro Fax 011 2774116 São Paulo SP Cecília Canalle Regina Zilberman e Pedro Bandeira em exercício de amizade leram generosamente os originais Pela leitura e pelos palpites a autora agradece assumindo no entanto integral responsabilidade pela teimosia que impediu completo aproveitamento das sugestões feitas SUMÁRIO Introdução 7 1 NO MUNDO DA LEITURA A leitura literária na escola 11 Literatura infantojuvenil fada madrinha de um currículo em crise ou gê ero descartável para um leitor em trânsito 17 I 17 II 25 Os leitores esses temíveis desconhecidos 33 Poesia uma frágil vítima da escola 41 Livro didático e Língua Portuguesa parceria antiga e mal resolvida 52 Literatura infantil e escola a escolarização do texto 66 2 LEITURAS DO MUNDO Machado de Assis um mestre de leitura 77 As aventuras de Ngunga na escola e na leitura 86 Lobato um Dom Quixote no caminho da leitura 94 Tecendo a leitura 104 Índice onomástico 110 INTRODUÇÃO Ninguém nasce sabendo ler aprendese a ler à medida que se vive Se ler livros geralmente se aprende nos bancos da escola outras leituras se aprendem por aí na chamada escola da vida a leitura do vôo das arribações que indicam a seca como sabe quem lê Vidas secas de Graciliano Ramos independe da aprendizagem formal e se perfaz na interação cotidiana com o mundo das coisas e dos outros Como entre tais coisas e tais outros incluemse também livros e leitores fechase o círculo lêse para entender o mundo para viver melhor Em nossa cultura quanto mais abrangente a concepção de mundo e de vida mais intensamente se lê numa espiral quase sem fim que pode e deve começar na escola mas não pode nem costuma encerrarse nela Do mundo da leitura à leitura do mundo o trajeto se cumpre sempre realizandose inclusive por um viceversa que transforma a leitura em prática circular e infinita Como fonte de prazer e de sabedoria a leitura não esgota seu poder de sedução nos estreitos círculos da escola Aposto nisso e constitui uma espécie de profissão de fé nessa aposta o que tenho discutido ao longo dos eventos que motivaram os textos aqui reunidos Mundo da leitura leitura do mundo onde acaba um e começa a outrra Talvez os limites sejam esgarçados aquela terceira margem do rio de que fala Guimarães Rosa Muito embora estritamente entrelaçados na vida real mundo da leitura e leitura do mundo distinguemse aqui invocando a temporária suspensão do real que os livros patrocinam como forma de iluminar e fecundar o retorno ao real em cada parte do livro predomina um deles DO MUNDO DA LEITURA PARA A LETURA DO MUNDO A primeira parte é constituída de ensaios mais direta e ostensivamente relacionados ao mundo de papel impresso de escola de alunos e professores de livro didático de literatura infantil e juvenil Currículo formação de professores práticas escolares de leitura particularmente de leitura literária formas de inserção de livros escolares e de leitura em diferentes momentos do sistema cultural brasileiro são as portas de ingresso para as questões e reflexões que incidem sobre diferentes aspectos do mundo da leitura Na segunda parte a leitura do mundo entra mais ostensivamente em cena trazida para a berlinda pela análise de algumas representações que leitura escola e literatura encontram em diferentes textos literários Machado de Assis José Pepetela e Monteiro Lobato são por assim dizer casos que resolvem de modo positivo e legitimado pela história literária o que se discutiu e problematizou nos textos da primeira parte Em seus textos afloram diferentes projetos de educação de leitores de alfabetização de leitura dos clássicos de cambulhada com histórias de amor de guerra e de loucura Os textos comentados nos introduzem em mundos com os quais se tropeça tanto no silêncio da vida de cada um quanto no estardalhapo das situações e notícias que diariamente trazem o distante e o estranho para dentro de nós No seu conjunto os ensaios propõem itinerários possíveis para o percurso indicado pelo título sugerem que a reflexão teórica a abordagem histórica e a análise textual constituem trajetos seguros e paisagens sedutoras na tão necessária travessia do mundo da leitura à leitura do mundo e seu viceversa A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA Se por não sei que excesso de socialismo ou barbárie todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino exceto uma é a disciplina literária que devia ser salva pois todas as ciências estão presentes no monumento literário Mudamse os tempos mudamse as vontades sonetava Camões pela janela do século XVI E o mesmo constatamos nós em esferas mais baixas examinando ainda que sem o talento do poeta meia dúzia de livros didáticos ou paradidáticos de literatura Figurinos e modas não faltam O que parece faltar é inspiração e elegância que permitam passar da máxi à míni sem mostrar canelas escalavradas nem joelhos sujos E antes que alguém pergunte se se fala da moda ou do texto literário em classe saibase que a epígrafe de Barthes é salvoconduto para tomar do universo da moda as primeiras metáforas O que fazer com ou do texto literário em sala de aula fundase ou devia fundarse em uma concepção de literatura muitas vezes deixada de lado em discussões pedagógicas Estas de modo geral afastam os problemas teóricos como irrelevantes ou elitistas diante da situação precária que dizse espera o professor de literatura numa classe de jovens A precariedade de tal situação costuma ser resumida nos clichês e pre Versão anterior deste texto foi apresentada em mesaredonda sobre Literatura e Ensino organizada em Porto Alegre pelo Goethe Institute PUCRS e Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul e com o título O texto literário na sala de aula posteriormente publicado no Boletim da ALBS Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul no 283 p 237 BARTHES R Aula São Paulo Cultrix 1980 p 18 conceitos que afloram quando vêm à baila temas que relacionam jovem leitura professor escola literatura e similares como sugerem as falas abaixo3 outros alunos por não terem hábito ou gosto pela leitura infelizmente a maioria só lêem se obrigados Outros ainda a minoria não lêem nem obrigados sic muitos não lêem com a desculpa de que não têm empo sendo que para assistir TV sempre dispõem de tempo o nosso estudante só faz determinada atividade se exigida e bem est mudada Do contrário se entregam sic à preguiça de ler Mesmo corque eles acham cansativo ter de ficar parados a ler muitas vezes histórias que estejam agradando Só a leitura e o incentivo pelos bons autores sic poderá melhorar a reda ção dos alunos cada vez mais pobre e restrite pelo TV Os textos acima colhidos em diferentes escolas poderiam ser assinados por mestres do Oiapoque ao Chuí O que surge nas linhas e entrelinhas dos quatro depoimentos é um proles sor que se crê investido da função sagrada de guardião do tem plo lá dentro o texto literário cá fora os alunos na porta ele o mestre sem saber se entra ou se sai ou se melhor mesmo é que a multidão se disperse O problema é que os rituais de iniciação propostos aos neófitos não parecem agradar o texto literário object do zelo e do culto razão de ser do templo é objecto de um nem sem pre discreto mas sempre incómodo desinteresse e enfado dos fiéis infidelíssimos aliás que não pediram para ali estar Talvez venha desse desencontro de expectativas que a lingua gem pela qual se costuma falar do ensino de literatura destile o amargor e o desencanto de prestação de contas deveres tarefas e obrigações como as falas acima ilustram Para pasmo geral dos paroquianos menos informados no entanto Fernando Pessoa com a sabedoria de quem guarda rebanhos solidarizase com as ovelhas rebeldes O poetapastor proclama seu tédio perante qualquer contexto que subtraia do texto sua carga máxima de mito e de ruptura 3 Os textos de professores foram extraídos de pesquisa feita pela Abril Educação como parte da promoção da Série Literatura Comentada lançada nacionalmente em 1981 7 A leitura literária na escola Ai que prozar Não cumprir um dever ler um livro para le E não o fazer Ler é vergonha Estudar é nota Coisa doida Sem interesse O rio corre sem o mal Sem edição origina E a brisa essa De tão naturalmente marinol Como tem terras não tem pressa Livros são papeis pintados com tinta Estudar é uma coisa em que está indiscrita A distinção entre nada e coisa nenhuma4 Como já se viu dicção oposta à de Pessoa é a que ressoa nas vozes ouvidas na pesquisa da editora Abril E curiosa mente é uma voz tão marcial quanto amarga a que reponte nos testemunhos dos mestres aparentemente satisfeitos com seu desempenho face aos papéis pintados com tinta Motivemos a classe a ler a ler sempre poucos são os comentários de falta de interesse talvez porque repito sempre o slogan quem não lê mal fala mal ouve mal vê Leem porque eu incentivo muito e às vezes até dramatizo o assunto resumi damente para que o aluno se interesse mais por leitura Após um trabalho árduo e longo o hábito de leitura parece ter sido implantado5 As falas acima revelam a consciência tranquila do dever cumprido proclamam o sucesso da terapêutica cuja violência no entanto parece deixar cicatrizes até na voz do terapeuta o vocabulário é repassado de obrigações e cobranças trabalho 4 PESSOA Fernando Liberdade In Obra poética 5 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar p 188 5 Ver nota 3 Para constatar os resultados desta pesquisa com outra consultar Sal diva Associadas Propaganda Ltda Estudo motivacional sobre hábitos de leitu ra realizada em 1987 para a Câmara Brasileira do Livro e Associação Paulista de Fabricantes de Papel e Celulose São Paulo Câmara Brasileira do Livro 1988 longo e árduo atividade exigida leitura obrigatória expressões cin zentas e duras em harmonia com uma escola como a brasi leira amarga e curtida por políticas educacionais equivocadas A função desse professor bemsucedido confinase ao papel de propagandista persuasivo de um produto a leitura que sob a avalanche do marketing e do merchandising corre o risco de perder ao menos em parte sua especificidade A compreensão desse estado de coisas parece fundamen tal ilumina o contexto escolar brasileiro no qual discussões sobre e propostas para usos do texto literário em classe podem trans formarse em armadilha para o professor que sentindose fra gilizado busca respostas imediatas para seus problemas con cretos As propostas transformamse em armadilha quando patrocinam discussões das quais se sai com as técnicas debaixo do braço e confiante na terapêutica Técnicas milagrosas para convívio harmonioso com o texto não existem e às que assim se proclamam são mistificadoras pois estabelecem uma har monia só aparente mantendo intacto quando já instalado o desencontro entre leitor e texto Vários professores ouvidos na pesquisa da editora Abril têm sugestões a fazer Tratase geralmente de propostas que somam ao idealismo ingênuo o imediatismo das soluções entla dadas sugestões bemintencionadas sem dúvida que reduzem o atrito e aumentam a digestibilidade da aula mas lidam super ficialmente com a questão resolvendo o problema pelo seu con torno passando ao largo das zonas profundas de conflito os livros deveriam ser mais dinamicos e exigidos seria preciso levar obras literárias até os alunos de uma maneia inte ligente interessante e proveitosa seria importante ter um audiovisual de leitura 6 Mas ouvir professores é tarefa de amor como dizia Bilac a propósito de estrelas tarefa de amor pois talvez o professor seja peça secundária na escola de hoje e conseqüentemente sua voz se faça ouvir com timidez no que respeita aos desti nos do texto literário em classe Não parece que o que fazer com c Ver nota 3 ambigüidade o meiotom a conotação sutis demais para uma pedagogia do texto que consome técnicas de interpreta ção como se consomem pipocas e refrigerantes De modo geral não se pode e talvez nem se deva fugir a alguns encaminhamentos mais tradicionais no ensino da literatura por exemplo a inscrição do texto na época de sua pro dução uma vez que textos assim contextualizados nos dão acesso a uma historicidade muito concreta e encarnada à qual se cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor outro caminho a inscrição no texto do conjunto dos principais jú rios críticos que sobre ele se foram acumulando fundamental para fazer o aluno vivenciar a complexidade da instituição literária que não se compõe exclusivamente de textos literários mas sim do conjunto destes mais todos os outros por estes inspirados outro exemplo ainda a inscrição do e no texto no e do cotidiano do aluno entendendo que este cotidiano abrange desde o mundo contemporâneo no que essa expressão tem intencio nalmente de vago e de amplo até os impasses individuais vivi dos por cada um nos arredores da leitura de cada texto Se o professor não conhece tais impasses e provável mente não os conhece nem precisa conhecêlos a vivência que tem de seus impasses e a forma como diferentes textos dia logam com tais impasses são suficientes para sugerir comentá rios perguntas e atividades que encaminhem nessa direção o trabalho com o texto Numa última perspectiva o desencontro literaturajovens que explodiu na escola parece mero sintoma de um desencon tro maior que nós professores também vivemos Os alunos não lêem nem nós os alunos escrevem mal e nós tam bém Mas ao contrário de nós os alunos não estão investi dos de nada E o bocejo que oferecem à nossa explicação sobre o realismo fantástico de Incidente em Antares ou sobre a metalin guagem de Memórias póstumas de Brás Cubas é incômodo e sub versivo porque sinaliza nossos impasses Mas sinalizando os ajuda a superálos Pois só superandoos é que em nossas aulas se pode cumprir da melhor maneira possível o espaço de liberdade e subversão que em certas condições instaura se pelo e no texto literário LITERATURA INFANTOJUVENIL FADA MADRINHA DE UM CURRÍCULO EM CRISE OU GÊNERO DESCARTÁVEL PARA UM LEITOR EM TRÂNSITO1 I Hoje não há que fiar em moças pobres ou ricas Todas elas sabem mais do que nós outros Leem Zola estudam anatomia humana e tomam cerveja nos cafés Então as tais normalistas benzaas Deus são verdadeiras doutoras de borla e capelo em negócio de namoros Sei de uma que foi encontrada pelo professor de história natural a debuxar um grandíssimo falo com todos os seus petrechos2 A importância da literatura infantojuvenil como disci plina a ser incluída no currículo de formação do professor é parte da questão da formação do professor de língua materna Pois o problema da literatura infantojuvenil se é que é 1 Versão anterior deste texto foi apresentada no Encontro para Professores do Curso de Habilitação Específica de 2o Grau para o Magistério organizado pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação voltado para o tema O desafio da leitura e u contribuição da literatura infantil Posteriormente e com o título A formação do pro fessor e a literatura infantojuvenil foi publicado no caderno Idéias 5 Leitura caminhos da aprendizagem São Paulo FDE 1988 p 2934 2 CAMINHA Adélia A anatomia São Paulo Ática 1985 p 556 um problema talvez seja mera representação contemporânea de uma crise muito maior e muito mais antiga faz tempo que não se sabe qual é a formação necessária ao professor de língua materna porque também não se tem claro a função da escola no que se refere à competência linguística que o aluno deve dominar ao abandonar os bancos escolares Neste tempo nosso fértil em discussões várias o assunto está embaralhadíssimo Circulam com sucesso crenças como a de que o professor não deve corrigir o texto dos alunos que ele deve deixar o aluno escrever como fala que a escola deve respeitar o dialeto do aluno que redação não deve ter nota e outras similares afirmações e negações E todas e cada uma delas tomadas fora do contexto em que foram formuladas e aplicadas a toque de caixa em atividades que variam de exercícios propostos por livros escolares a metodologias desenvolvidas em cursos relâmpago ficam fora do lugar Imobilizamse em crenças por um lado insuficientes para romper o autoritarismo compacto do aparelho escolar E por outro inadequadas para satisfazer as expectativas que a comunidade alimenta em face da escola Não se advoga aqui evidentemente o retorno às listas de verbos e plurais irregulares nem a volta às redações do tipo Uma lágrima ao cair da tarde O que se sugere é que a rapidêz com que o ensino da Língua Portuguesa se desvencilhou de tais práticas e absorveu outras por ter ocorrido no bojo de um movimento maior de projetos educacionais e políticos talvez parcialmente gorados pode ter travestido de populismo o que na origem era autêntica vontade democrática Hoje os tempos são outros menos eufóricos e mais amadurecidos Podemos então na colheita dos primeiros resultados e das primeiras perplexidades tentar corrigir os rumos procurando resgatar no novo percurso o já tantas vezes adiado projeto de democratização e qualificação da educação brasileira Nesse sentido e com esses objetivos o primeiro passo é a inserção histórica das questões educacionais inclusive da 3 Relativamente a tais expectativas ver SOARES Magda B As condições sociais da leitura uma reflexão eom contraponto In ZUBERMAN R SILVA L Theodoro da orgs Leitura perspectivas interdisciplinares São Paulo Ática 1988 19 que subjaz ao título desse texto o que a história nos mostra a respeito do papel da literatura infantojuvenil na formação do professor Qual é a história da formação do professor e da literatura infantojuvenil na tradição educacional brasileira Em que ponto tais histórias se cruzam Como a epígrafe que traz para este texto olhares que encararam maliciosamente as normalistas são muitos os textos que contribuem para o conhecimento da prática educacional brasileira mais antiga Menos ou mais desencontrados do nosso aqui e agora muitos desses textos são incrivelmente atuais e podem conferir espessura histórica ao modo de ser da prática educacional brasileira que vivenciamos hoje O primeiro desses documentos vem de 1835 e compara a política educacional brasileira com a dos países vizinhos da América Os três sérios contestaram por onde deviam acabar retiraram das ciências menores sem cuidar da instrução primária Bolívar pelo contrário antes de reformar as universidades convidou ao célebre José Lancaster para estabelecer uma escola normal e divulgar o seu método de ensino muito fazendolhe presente de 20 mil pesos 24 contos de réis do seu próprio pecúlio para gastos de viagem e oferecerdolhe um grande subsídio durante sua residência Deixou lá um vivório em toda a república de muitos homens antes a divulgar a instrução elementar Dizemos agora o que se tem feito no Brasil a este respeito Temos muitos advogados muitíssimas cirurgias e muitos mais aspirantes e lugares na magistratura e sem encarço todos os dias pedimos a Deus os livre que a nossa honra a nossa vida a nossa fazendo passem por semejantes mãos A classe mais útil a classe mais interessante aquela que constitui o Estado jaz toda no mais completo ignorância queremos cadeiras e mais cadeiras cursos e mais cursos prebendas e mais prebendas e não temos uma escola normal 4 4 Cf LOPONO M ZUBERMAN R A leitura raffeita São Paulo Brasiliense 1991 idem Literatura infantil brasileira história e história São Paulo Ática 1991 BERNARDES Maria Thereza Cauby Crescenti Mulheres de ontam Rio de JaneiroSéc XIX São Paulo T A Queiroz 1988 DIETZSO Mary Julia M Cartilhas a negação do leitor In MARTINS Maria Helena org Questões de linguagem São Paulo Contexto 1991 ABREU E LIMA Baseação histórico político e literário do Brasil ou análise crítica do projeto do Dr A L França Niterói 1882 p 72 20 Trinta anos depois 186364 outro documento sublinha o descaso pelo ensino da língua materna e da leitura e registra a baixa remuneração do magistério Um pai ao levar seu filho ao colégio recomenda que não se gaste tempo com o estudo de Português que todos sabem que estudé o Francês e o Latim porque lhe disseram que a gramática portuguesc estudiase na leitura O menino escreverá em português sim mas no portugues que aprendeu com sua ama concordará o verbo do singular com o sujeito do plural e cometerá os maiores disparates Como exigir que o país se horre com larga cópia de brilhantes escritores e a matériaprima de toda arte de escrever o próprio idioma hês foi negado pela própria sociedade que insistentemente lhes reclama o fruto de uma semente que ela não lançou à terra Exijase pois o estudo da Língua Portuguesa familiariZemse os alunos com o correto dizer dos que estudaram e escreveram a língua e teremos removido uma grande dificuldade quais são os homens que entre nós se ocupam do magistério Ou antes é este entre nós uma profissão Não Nenhum horten que dispõe de um certo cabedal de conhecimento deixa ocupações muitíssimo mais vantajosas para se daí a uma vida inglória e penosa a um sacerdócio todo de abnegação como o magistério Outro texto prefácio de um livro escolar editado em 1870 endossa as críticas ao ensino da leitura e da língua materna sublinhando a inexistência de material didático adequado a maior parte dos meninos aprendem a ler sem livros servindose principalmente nas localidades centrais ou pouco consideráveis das cartilhas do Pe Inácio de bilhetes e cartas às vezes oh Deus com que letra e ortografia ou de gazetas que seus pais lhes fornecem ou de velhos altes pelo comum indecifráveis que os próprios mestres elocram dos tabeliães do lugar E não é por alsic que os nossos merinos geralmente falando saem das escolas aos 13 e 14 anos de idade no mais lastroso estado de ignorância sem o hábito de pensarem e sem ligarem o mínimo valor ao que lêem Vem de 187879 e de alémmar um último testemunho aqui convocado o fragmento de uma carta na qual o autor de uma cartilha portuguesa sugere que a adoção de sua obra poderia solucionar os problemas educacionais brasileiros 6 FRASÃO Manuel José Pereira Cartas do professor da mgz Rio de Janeiro Typ Paula Brito 186364 p 179 7 Idem ibidem p 22 8 BORGES Abílio César Terceiro livro de leitura para uso da infância brasileira Bruxelas 1870 21 Eu tenho um Método como sabes que na edição para o Brasil dedicado ao churé desse estado Já esta circunstância pedia da parte de teus compatriotas alghum atenção comigo Ora a isso acresce a singular reputação do Método e sendo tu o que és na repartição da Instrução Pública dessa província e meut amígo deviaste lembrar de mim e de ti e desse público a quem tal Método tanto podia utilizar Faz tu o que eu faria no teu lugar e já te indiquei Envia a um homem de letras ou reconhecidamente competente a tomar conhecimento desse processo de ensino que as despesas bem cabem nas forças da província e depois verás que todos abençoarão a despesa e a missão Fazes um bom serviço público Doíte destas crianças atormentadas pela ignorância e pelo caminho onde levaram a ti e a mim na leitura e na escrita o mestre é um demônio que nos inspira horror e a escola um verdadeiro inferno Dai também os milhões de analfabetos que lá há de haver como ainda cá De modo que o amor dos homens e o amor do progresso te convido a este empenho e estou que em tu querendo facilmente conseguirás a resolução de todos9 A viagem por esses textos mais antigos sugere que não estamos sozinhos e nem somos poucos ao contrário os educadores que nos falam pelos textos transcritos contam que somos herdeiros de uma tradição educacional pobre e improvisada a qual precisa ser o contexto de qualquer avaliação do que se tem feito ou dito até agora Estabelecido esse chão histórico para a questão mais ampla da formação do professor é tempo de se levantarem hipóteses que na forma antipática de prérequisitos podem mapear o terreno sugerindo algumas práticas valores e conteúdos essenciais à formação do professor O professor de Português deve dispor de uma noção ampla de linguagem que inclua seus aspectos sociais psicológicos biológicos antropológicos e políticos Ele deve ser usuário competente da modalidade culta da Língua Portuguesa Deve nesse sentido ser uma espécie de poliglota precisa dominar competentemente várias modalidades de linguagem de forma que se disser não vai e se escrever paçarinho irá fazêlo por opção consciente e não por desconhecimento de outras opções O professor de Português deve estar familiarizado com uma leitura bastante extensa de literatura particularmente da brasileira da portuguesa e da africana de expressão portu 9 DEUS João de mos culturais junto com os primeiros longplays para as vitrolas que se chamavam hifis No mesmo pacote vinham também do irmão do Norte modelos de rebeldia a partir daí consentida e aceita como marca jovem James Dean e Elvis Presley são a juventude sadicamente transviada que o balanço das horas de Bill Halley e seus Cometas inaugura como marca de juventude Por esse tempo as categorias dos que lidavam com a segmentação dos menores em diferentes faixas etárias eram muito menos sofisticadas do que as que hoje orquestramos Mas nem por serem mais rudimentares às daquele tempo e nem por se respaldarem as nossas nos prometidos rigoros da Psicologia Pedagogia e Biologia uma ou outra são menos ou mais eficientes Cumprem todas a função para a qual existem traçar consolidar matizar e redefinir o roteiro pelo qual se pauta a construção do imaginário dos valores dos comportamentos dos sentimentos e atitudes que definem esta ou aquela faixa etária Naqueles idos a inclusão de um livro na lista dos recomendados para esta ou aquela faixa etária ocorria a posteriori a faixa etária era obtida a partir da média de idade dos consumidores de bibliotecas cujas fichas indicavam terem lido e apreciado determinado livro Se é verdade que na época havia menos livros estes eram sob todos os pontos de vista menos descartáveis do que hoje sendo a previsão de comportamentos e expectativas fundamental na produção industrial de mercadorias que é o modo contemporâneo de produção da literatura infantil e juvenil de novo o que se vê é a adequação de ambos os processos a cada um de seus momentos Das pioneiríssimas atividades de Lenira Fraccarolli à frente das bibliotecas infantis paulistanas ao catálogo de publicações infantis e juvenis de uma editora contemporânea de sucesso o percurso que se contempla é o modo de produção dos livros infantis e juvenis É o trânsito de um modo capitalista incipiente para um mais desenvolvido É na esteira dessa especialização progressiva de mercadorias e de mercados que adquire nitidez maior a noção de literatura juvenil e que se entende a dimensão sobretudo mercadológica dos livros voltados para jovens qual é a imagem do jovem em circulação nos meios que consomem literatura juvenil Entre os espelhos que refletem essa imagem destacamse os catálogos das editoras as bibliografias as resenhas capas orelhas e similares Um bom catálogo vai muito além de divulgar os títulos que elenca além de envolver maquiar e marcar o produto que anuncia o catálogo acaba construindo uma das imagens pela qual seu produto fica conhecido Ou seja no caso dos livros as informações que o catálogo fornece a respeito das obras que nele constam transformamse quando o usuário do catálogo transformase em leitor do livro nas categorias que prioritariamente o leitor procurará e com grande chance encontrará no livro Por isso as coloridas e geralmente bem diagramadas páginas de um catálogo são documento muito importante para o estudo de livros ensinando no caso dos livros juvenis que juvenil é o texto que consta de catálogos de editoras voltados para o inventário da produção juvenil daquela editora Ou seja com o mesmo direito que Mário de Andrade usou para dizer conto é tudo aquilo que autor achar que é conto podese dizer que juvenil é toda obra que assim for considerada pelo seu editor A complexidade crescente da indústria editorial moderna exige compatibilização de demanda e produção orientando uma pela outra criando uma em função da outra reforçando uma e otimizando outra são essas providências que garantem a sobrevivência no mercado Assim um livro que aspira ao circuito escolar é circundado no catálogo que deve promovêlo junto aos professores de um conjunto de informações que só constam no catálogo por corresponderem à imagem que os editores fazem do que é e do que não é relevante para o professor que adotará o livro Vêse isso por exemplo no catálogo de literatura juvenil da editora Moderna que informa nesse catálogo os livros estão apresentados com um resumo elucidativo quanto ao conteúdo indicação das séries a partir das quais o livro pode ser lido faixa de idade a partir da qual o livro pode ser bem compreendido e apresentação dos principais temas que o texto aborda No mesmo sentido um catálogo da editora Melhoramentos é também bastante explícito relativamente às funções que pretende cumprir definese como instrumento prático para orientar e informar a todos aqueles que lidam com o livro e necessitam adequálo às faixas interessadas e ao nível de leitura de seu público Para atingirmos este objetivo é facilitar o manuseio organizamos várias seções Literatura Infantil Atividades Didática e Paradidáticos Assim em grande número de catálogos manifestase inevitável ainda que discutível nitidez de fronteiras entre diferentes gêneros no interior do conjunto de modalidades que circulam pelo espaço escolar a compartimentalização acaba sacramentando as subdivisões que propõe e acaba transformandose em categorias de leitura para os usuários do dito catálogo ou seja diferentes profissionais da leitura Na medida entretanto em que no catálogo de obras juvenis pode repetirse a folha de abertura do catálogo de infantis da mesma editora fica sugerido que os percursos da literatura infantil e da juvenil pelo menos até certo ponto superpõemse E superpõemse exatamente no caminho de seus intermediários quais sejam professores pedagogos e bibliotecários que estão na encruzilhada na qual crianças e jovens transformamse em alunos e leitores transformamse em consumidores compulsórios Os efeitos de generalização que nesse percurso sofre a categoria leitores parecem dispensar comentários sua distribuição ao longo de determinados segmentos sugere que a escola é o grande entreposto dessa mercadoria e que seu imposto é a escolarização do leitor o que gera escolarização da leitura e do texto E por contágio escolarização da noção de jovem Mas a aprendizagem que os catálogos patrocinam vai ainda além Observase por exemplo que os livros só em casos raros são anunciados individualmente Agrupados em séries e coleções unificados em último caso pela faixa de escolaridade a que se destinam os pacotes são emblema da necessária racionalização do processo de produção A qualidade de um título responde pela qualidade dos outros a relevância de um tema contagia o tema dos outros livros o interesse por um texto pode deflagrar o interesse por outros Em termos de investimentos tais medidas delineiam um movimento de otimização de chocolates a automóveis passando pelo livro a produção em série é a marca da produção industrializada Muitas vezes no entanto o elemento unificador de uma série em relação às demais é mais sofisticado do que o mero agrupamento de títulos aconselhados para esta ou aquela faixa de escolaridade Em alguns casos a unificação de títulos em séries fazse em torno e a pretexto de uma particularidade que à falta de melhor termo poderíamos chamar de estrutural como ocorre por exemplo com a série Alternativa apresentada pelo catálogo juvenil da editora Melhoramentos A Série Alternativa parte para uma nova idéia em literatura criar uma situação que permite ao leitor participar ativamente do desfecho da história Os livros da série especialmente escritos por autores consagrados da literatura juvenil têm como principal característica oferecer a opção entre dois finais e ainda convidar o leitor a propor um terceiro escrevendo ele mesmo o desfecho ou apresentando soluções segundo suas próprias emoções despertadas pelo que acabou de ler Algumas das expressões constantes do texto acima a partir do título da coleção repercutem positivamente frisando o caráter inovador da coleção que parece gravitar na órbita de formulações de Teoria Literária contemporâneas da polifonia de Bakhtin à obra aberta de Umberto Eco quem estiver familiarizado com discussões acadêmicas sobre arredores do texto literário encontrará no texto com que o catálogo anuncia a coleção semelhanças e parentescos Reconhecerá um certo ar de Mas a aprendizagem que os catálogos patrocinam vai ainda além Observase por exemplo que os livros só em casos raros são anunciados individualmente Agrupados em séries e coleções unificados em último caso pela faixa de escolaridade a que se destinam os pacotes são emblema da necessária racionalização do processo de produção A qualidade de um título responde pela qualidade dos outros a relevância de um tema contagia o tema dos outros livros o interesse por um texto pode deflagrar o interesse por outros Em termos de investimentos tais medidas delineiam um movimento de otimização de chocolates a automóveis passando pelo livro a produção em série é a marca da produção industrializada Muitas vezes no entanto o elemento unificador de uma série em relação às demais é mais sofisticado do que o mero agrupamento de títulos aconselhados para esta ou aquela faixa de escolaridade Em alguns casos a unificação de títulos em séries fazse em torno e a pretexto de uma particularidade que à falta de melhor termo poderíamos chamar de estrutural como ocorre por exemplo com a série Alternativa apresentada pelo catálogo juvenil da editora Melhoramentos A Série Alternativa parte para uma nova idéia em literatura criar uma situação que permite ao leitor participar ativamente do desfecho da história Os livros da série especialmente escritos por autores consagrados da literatura juvenil têm como principal característica oferecer a opção entre dois finais e ainda convidar o leitor a propor um terceiro escrevendo ele mesmo o desfecho ou apresentando soluções segundo suas próprias emoções despertadas pelo que acabou de ler Algumas das expressões constantes do texto acima a partir do título da coleção repercutem positivamente frisando o caráter inovador da coleção que parece gravitar na órbita de formulações de Teoria Literária contemporâneas da polifonia de Bakhtin à obra aberta de Umberto Eco quem estiver familiarizado com discussões acadêmicas sobre arredores do texto literário encontrará no texto com que o catálogo anuncia a coleção semelhanças e parentescos Reconhecerá um certo ar de família parentesco distante é verdade talvez filhos ilegítimos mas parentes Mas o parentesco não elide as diferenças Pois polifonia explícita e abertura frontal acabam configurando ingerência autoritária primero via série depois via professor e finalmente via texto no que era solidão de leitura obrigatoriedade de pluralismo no que era liberdade do leitor O texto é ainda pródigo em expressões que apontam não só para a modernidade da experiência mas também para o respeito aos leitores afinal o texto que apresenta a série Alternativa sugere participação ativa oferecendo opções de leitura e instigando o leitor a escrever ele mesmo o desfecho numa aparente ruptura da hegemonia de quem escreve sobre quem lê Esta catadupa de modernidade apregoada proporciona ainda uma outra informação subsidiária a de que os textos que integram tal série são todos escritos por autores consagrados da literatura juvenil o que garante a margem de segurança necessária à experimentação avaliando por tabela a existência do gênero literatura juvenil tão consistente que tem até autores consagrados São assim múltiplas e insubstituíveis as lições dos catálogos Estudálos e discutilos não conduz evidentemente a terceiras armas com a indústria editorial Tratase sim e urgentemente de entendêla e de aprender a lidar com ela entre outras razões porque ela já agora necessária Esfinge de nossos dias ela nos espreita em cada uma das muitas dobras e dos muitos avessos dos generosos projetos que engendramos em que nos envolvemos que reivindicamos em prol da leitura e dos livros A indústria nos espreita e nos desafia como a esfinge Ou me decifras ou te devoro Pois é Carecemos de pistas para a charada para decifrandoa escaparmos com o máximo de decoro e de dignidade possíveis do ritual de devoração que nos reserva papel de iguaria Indigesta mas digerível É preciso decifrar a esfinge E só então antropofagicamente devorála lêem o que nele foram buscar se encontraram mais do que esperavam melhor para eles se encontraram menos pior para o autor que pode ter perdido no desencanto do encontro seu precioso leitor Da adequação ao tema à excitação das cenas eróticas do suspense sobre quem matou Roger Ackroyd à perfeição das crases e concordâncias à frustração das expectativas do leitor tem preço alto a indiferença do público e a nota baixa se equivalem como gesto soberano de o leitor dizer ao escriba não não trouxeste a chave Assim sendo leitores desfrutam de imenso poder ainda que sejam extremamente voláteis mas não obstante essa impalpabilidade o autor precisa crer na existência desses evanescentes seres de óculos e mais ainda crer que há vida inteligente por detrás dos óculos Não crer nesse impalpável ser supralinguístico faz os escritores definharem e até morrerem Eu por exemplo creio firmemente na existência de tais seres ou seja acredito que disponho de leitores que os tenho de diferentes tipos e confesso que prefiro os mais visíveis aqueles que efetivamente lêem o que escrevo A existência desses leitores de carne e osso manifestase de diferentes maneiras sendo a mais concreta de todas expressa em cifrões e cifrinhas tornase indiscutível a existência de leitores quando se sabe que cerca de 10 por cento do que eles pagam quando compram livros vão para os bolsos dos escritores Magros bolsos Cidadãos sabidamente econômicos os autores podem com tal verba no fim do ano financiar uma pizza média para a família brindando no chope que a acompanha a generosa fidelidade dos leitores que financiam tão frugal repasto Benditos leitores Tais leitores que algum desafeto da laboriosa classe dos escritores poderia reduzir à categoria de compradoresconsumidores de livros vão às vezes além dessa existência grosseiramente econômica Sobem na vida e ganham por assim dizer o estatuto de leitores mais íntimos são aqueles que numa aula numa palestra ou numa carta abordam o escritor perguntando concordando referindo citando Dizendo em resumo que leem Dessas leitoresinterlocutores de carne e osso os que discordam são dignos do maior apreço Os que reclamam então são os preferidos muito embora não sejam necessariamente os pretendidos escrevese afinal para que se concorde com o que se escreveu Ao escrever não importa se resenha de jornal redação de escola texto para congresso capítulo para livro ou até mesmo uma prova para alunos temse a intenção de convencer os leitores do que se diz e da qualidade e da adequação do texto em que se diz o que se diz Com tal objetivo o escritor faz a finesse e a justiça de expor aos leitores seus melhores argumentos tentando transformálos assim em interlocutores e comparsas os quais tanto mais se respeita quanto mais se lhes dão piropos palmadas e piscadelas de olhos ingredientes fundamentais do pacto que escritores e leitores celebram desde que o mundo passou a circular em folhas impressas reunidas em livros vendidos em lojas especializadas No entanto por mais que através de gracinhas ou graça nas o autor tente tornarse íntimo de seus leitores fazendoos crer que compartilham de sua intimidade tal esforço talvez não apague nem atenue a distância que separa autores de leitores o leitor é irmão mas é hipócrita Mesmo quando um autor se lê lêse com olhos viciados num ato de leitura quase incestuoso é de antemão convivente com o que disse escrevendo Élhe proscrito como autor do texto que lê o distanciamento a surpresa o diálogo Como autor élhe vedado o gesto que sela a suprema liberdade do leitor fechar o livro Como autor élhe vedado desligar o micro empurrar a máquina fechar a caneta abandonar o lápis tem de cumprir até o fim sua luta com as palavras com a falta delas com o calor com a música do vizinho e a televisão das crianças com o prazo do editor e finalmente com o leitor que sempre o ameaça com suas prerrogativas de abandono definitivo do texto No entanto por mais que o narcisismo dos escribas possa comprarse em intermináveis considerações autogratificantes sobre eu meus leitores que podem nada mais ser do que projeções deles escritores confio aos gentis leitores a tarefa de se explicarem ou se demitirem e no espaço que resta emigro para considerações outras feitas agora do ponto de vista de leitora particularmente do ponto de vista de leitora cativa e profissional de textos que tematizam leitura literatura livros infantis e juvenis no contexto da escola brasileira de hoje Como leitora assídua de tais textos ocupo posição muito mais confortável posso como já disse fechar o livro quando quiser Mas posso sobretudo extrair da fragilidade aparente dessa posição de quem usualmente não tem acesso à palavra e consequentemente parece não ter direito à voz a imensa força do silêncio e da solidão Solidão e silêncio no entanto talvez só aparentes Pois desconfio e meus botões compartilham desta desconfiança que os textos que tematizam leitura no contexto escolar não têm leitores individuais pois na condição de leitores profissionais somos só coletivo Ou melhor dizendo encostamos nossa solidão e nossa identidade na identidade e na solidão de milhares centenas milhões de criaturas que comigo e conosco integram o segmento de público para o qual escrevem os que escrevem sobre tais assuntos Como membro de um hipotético clube de leitores profissionais posto que anônimos fica interessante conversar sobre seus estatutos pressupostos e regulamentos discutindo os direitos e os deveres dos associados e o regulamento da agremiação Todos nós membros desse clube somos leitores muito especiais Nosso parentesco ultrapassa idiossincrasias como gostarmos de Machado de Assis e não gostarmos de Sidney Sheldon Aparentamonos pela força de nossos empregos pelo prestígio de nosso compromisso com textos e livros pela aura da confiança e expectativa que a comunidade deposita em nós no que tange à leitura Dizendo de outra forma e temperando as palavras com dose generosa de otimismo aparentamonos pela posição que ocupamos no sistema cultural constituindo uma espécie de corporação de leitores oficiais confraria que dispõe de autoridade e razoável poder em assuntos de leitura e de linguagem Somos em uma palavra profissionais da leitura esta polêmica senhora que nos reúne em tão concorridos saraus E porque somos ou vá lá gostamos de pensar que somos avalistas arautos mediadores e intermediários dos textos que almejam circular na escola e nos seus arredores transformamonos em alvo dos que pretendem as mãos os olhos e os bolsos das crianças e jovens já igualmente desindividualizados na categoria leitoresdelivrosinfantisoujuvenis que aguardam de nossas recomendações oficiais e conversas oficiosas o sinal verde Sinal que também aguardam crianças jovens e mestres de ambos para que lendo tais livros sairemse leitores Assim atingir esse leitorado público consumidor infantil ou juvenil que a escola se incumbe de arregimentar reunir e homogeneizar em torno de uma categoria qualquer préleitores ou préadolescentes quinta série ou segundo grau supõe em primeira instância atingirnos a nós A nós a quem cabe a decisão sobre o que é melhor mais adequado mais desejável mais indicado para este ou aquele contingente de jovens acidental e circunstancialmente sob nossa influência e responsabilidade É essa responsabilidade que nos transforma de leitores em uma espécie de atravessadores num mercado organizado em função de uma clientela que mantém relações enviesadas com a mercadoria que compra é para legitimar e avaliar tal viés que precisamos ser seduzidos não só pelo texto que indicamos para nossos pupilos mas pelo texto que falando sobre eletexto apresentao divulgao promoveo em uma palavra pelo texto que o vende isto é catálogos livros do professor apresentações de coleção e similares É pois fundamental que compreendamos o papel de leitor que tais textos nos reservam E para tal compreensão precisamos contemplar à luz clara do meiodia o retrato de nós mesmos que esses textos apresentam Em outras palavras a imagem com que tais textos nos representam corre o risco de afivelarse ao nosso rosto como máscara deixando nossa face na sombra É que imagem de leitor tais textos apresentam como nossa Para responder à questão temse de considerar que para seduzir o leitor há que pôrse em seu lugar antecipando suas expectativas suas reações Ou seja o escritor interessado em seduzir o outro tem de construir hipóteses relativas ao leitor que deseja seduzir Dentre tais hipóteses algumas são mais importantes do que outras E dentre as mais importantes salientamse as que respondem a questões que quem almeja a sedução tem de responderse 1 que imagem estea outroa tem de si mesmoa 2 que imagem estea outroa gostaria que eu tivesse delea Enquanto como leitores a história nos reserva o papel de seduzidosas e não de sedutores como detetives de um bom livro policial vamos em busca não já do criminoso mas da vítima nós mesmos professores e educadores envolvidos com a leitura na imagem que de nós traça o material didático e paradidático que pretende com nosso apoio e aval chegar aos consumidores escolares Mas é difícil que nos reconheçamos como vítimas por que desconfiaríamos de uma fotografia que nos representa como professores modernos sinceramente empenhados em motivar a leitura dos jovens levemente desconfiados do papel dos clássicos em tal empresa profundamente insatisfeitos com o autoritarismo de avaliações sistemáticas e rigorosas de atividades de leitura comprometidos com o prazer e não com o dever da leitura informados e convencidos da importância da imaginação e da fantasia na formação do jovem e sobretudo honestamente comprometidos com um projeto de educação que conduz à leitura crítica do mundo Por que desconfiaríamos de tão belo retrato Sorrimos de beatitude na contemplação de tão simpático retrato somos nós mesmos tão mal pagos tão despreparados tão assoberbados de aulas Reconhecemonos nessa eficientíssima moderna e simpática figura Sim e não Somos e não somos Para dialetizar esse hamletiano ser e não ser suspendase por instantes a gratificante contemplação desse nosso gene Os leitores esses temíveis desconhecidos rosíssimo retrato e perguntese ou sobretudo respondase quem o tirou de que ponto de vista com que tipo de máquina com que finalidade e para que álbum Se as respostas a tais questões podem congelar um pouco o sorriso que brota da contemplação da foto elas também fazem aceitar com naturalidade as eventuais rugas e cabelos brancos que o retrato por ser retocado acabou omitindo Pois o retrato acima apresentado é a nossa imagem tal como ela nos é apresentada por quem nos vende os livros que devemos vender aos alunos Vendas já se vê muito pouco metafóricas certamente a partir de um ponto qualquer transformam em consumidores pagantes aqueles leitores tão inofensivamente virtuais de que falamos quando academicamente falamos de leitores Mas tal imagem lisonjeira um pouco inverídica porque muito retocada certamente se constrói com material cunhado em situações nas quais diferentes escalões de profissionais de leitura constroem e afinam a linguagem com a qual falando de leitura falam de si mesmos construindo sua identidade de leitoresprofissionais E se muitas vezes nessa linguagem figura com destaque uma retórica salvacionista e apocalíptica é nela que se encontram os elementos que ideologicamente rearranjados transformam livros leituras e leitores em mercadorias como qualquer outra tão mercadoria que cumpre vendêla e comprála É exatamente para que a vendamos com eficiência que comissão antecipadamente paga nosso retrato é traçado de forma tão lisonjeira apresentado como ficção do rosto o que é perfil desejado do produto fixando como expressão dos olhos o que é rótulo de embalagem E evidentemente contagiando o produto com a qualidade do agente de vendas ofuscado e emudecido pela surpresa de verse retratado em cores e formas tão favoráveis Catálogos de editoras quartas capas e contracapas de coleções infantis e juvenis orelhas e apresentações de livros didáticos e paradidáticos são as galerias de onde nos contemplam esses incríveis retratos de nós mesmos Que se são sedutores e é inevitável que o sejam não precisam pela força da sedução que exercem fecharnos os olhos para eventuais discrepâncias entre o retrato e seu modelo Ou seja há que indagarse face a cada material que recebemos para eventual adoção Eu sou esse mesmo que está aí representado Se eu sou assim tão bom criativo responsável competente e interessado é necessário que este livro venha me dizer isso Este material que me declara interessado competente responsável criativo é o material que um educador com tais predicados elegeria para trabalhar É claro que não se descarta a hipótese de que a resposta a todas essas questões seja afirmativa e que no solitário diálogo com nossos botões nos consideremos competentes reconhecemos em uma ou outra peça publicitária o direito de proclamar essa nossa competência e mais ainda que achemos este ou aquele livro muito bom e que o transformemos em instrumento de nossa proclamada competência Em princípio tudo isso é possível E deve mesmo ser verdadeiro em certos casos Mas não sempre nem em todos os casos E é essa dúvida que torna oportuno que em regra geral como leitores tenhamos uma saudável desconfiança face a qualquer máscara de leitor assim ou assado que nos queiram impingir E que na esteira de Cecília Meireles a contemplação no espelho que nos põem na mão seja solitária forma única de buscar resposta menos provisória à pergunta fundamental em que espelho ficou perdida a minha face1 POESIA UMA FRÁGIL VÍTIMA DA ESCOLA1 Para a criança como para o adulto a eternidade é um sonho inconfessado mas vigilante2 Parecem antigas as desavenças entre poetas e o uso que a escola costuma fazer da poesia São desavenças tão antigas que em 1904 na apresentação de suas Poesias infantis Olavo Bilac já alude à precariedade dos textos poéticos de que dispunha a infância de seu tempo Falando dos medos que o assaltavam a propósito de seu livro frisa o receio de que o seu fosse um livro ingénuo demais ou o que seria pior um livro com tantos hó por cá falso cheio de histórias maravilhosas e tolas que desenvolvem a credulidade das crianças fazendoas ter medo de coisas que não existem Em certos livros de leitura que todos conhecemos os autores querendo evitar o apuro do estilo fazem períodos sem sintaxe e versos sem metrificação Uma poesia infantil conheço eu longa que não tem um só verso certo3 Na década seguinte o editor de Alma infantil de Francisca Júlia e Júlio da Silva faz diagnóstico semelhante ao do poeta as nossas escolas do estado estão invadidas de livros mediocres A maior parte deles são escritos em linguagem incorreta onde por vezes ressalta o coloquial popular e o termo chulo Esses livros pois em vez de educar as crianças guiamnas o gosto pelas coisas belas e elevadas viciamnas desde cedo familiarizandoas com as formas dialetais mais plebéias Verdade é que poucos de nossos escritores didáticos pouquíssimos mesmo têm fora desta especialidade uma sólida repercussão nas letras4 Mais tarde um pouco a voz atacada de Alceu Amoroso Lima constata a baixa qualidade dos versos infantis apontando também o anacronismo estético da poesia destinada à infância Não será novidade nenhuma dizer que é excessivamente escassa a nossa poesia infantil Todos os professores se queixam disso É custa percorrer um pouco a nossa paupérrima literatura de crianças para nos convencermos de que no gênero o que há é pouco e raramente bom é preciso dizer desde logo que toda a poesia dos nossos mais recentes livros escolares bem como o gosto poético da maioria de professores inspetores e autores ainda não saiu do Parnasianismo Têm um excesso de rigor ou rintz anos em relação às correntes de poesia recente e hoje dominantes5 As citações acima revelam unanimidade de julgamento de três instâncias da instituição literária o escritor o editor e o crítico Contemplando o panorama da literatura infantil brasileira nos arredores de seu início dispensamlhe todos o mesmo veredito implacável Ao longo do tempo que nos separa da publicação dos versos bilacquianos o panorama da poesia infantil brasileira parece ter sofrido consideráveis alterações6 Tais alterações no entanto parecem não ter sido suficientes para invalidar os desencontros e entreveros que marcam o relacionamento literatura e escola e em particular o relacionamento poesia e escola ao tempo dos depoimentos acima transcritos Sendo ainda hoje pobre o repertório disponível para a seleção dos textos que integram os livros escolares não é de estra nhar que seja atribuída à baixa qualidade desses textos parcela grande da responsabilidade pelo perfil duplo da tão debatida crise de leitura ela é ao mesmo tempo qualitativa é pequeno o número de livros que circula entre os estudantes e qualitativa o modo de leitura que a escola patrocina parece inadequado Postulado o desencontro entre de um lado as expectativas qualitativas e quantitativas que alimentam educadores em relação à leitura dos jovens e de outro a prática de leitura em vigor nas escolas fortalecese a hipótese de que a solução do problema reside na exigência de qualidade do texto oferecido à criança Ledo engano Qualidade de texto é imprescindível mas não é tudo As relações entre literatura e escola e conseqüentemente entre leitura e escola são sutis e complexas e não se resolvem por uma melhor seleção de textos quaisquer que sejam os critérios dessa seleção e mesmo que ela seleção privilegie critérios estéticos Algumas teorias da literatura tendem a considerar a especificidade literária de um texto como imanente postulando a possibilidade de identificação e isolamento do ou dos elementos que dão conta da literariedade do texto em que se manifestam É para onde apontam por exemplo as formulações de Roman Jakobson7 relativas à função poética e que se encontram diluídas e simplificadas em vários manuais escolares contemporâneos Tais teorias no entanto talvez não sejam as que mais contribuam para a discussão sistemática e fundamentada das relações entre leitura literatura e escola Para isso as teorias que incluem na noção de literariedade o leitor e a prática de leitura são mais adequadas Dentre estas podese destacar a de S Fish8 que inscreve a literariedade de um texto na experiência de leitura Levar em conta a interação leitortexto para discutir literatura parece dar conta de forma mais adequada do modo JAKOBSON R Linguística e poética In Linguística e poética 3 ed São Paulo Cultrix 1970 p 11862 8 FISH S Is there a text in this class The authority of interpretive communities Cambridge Harvard University Press 1980 de inserção da literatura na vida escolar uma vez que a prática de leitura patrocinada pela escola é dirigida planejada limitada no tempo e no espaço Tais atributos tornam a leitura escolar bastante afastada da individualidade solidão e gratuidade que caracterizam a leitura prevista pelas teorias da literatura que desconsideram em suas reflexões as condições institucionais nas quais ocorre a leitura dos textos de cuja literariedade elas se ocupam As teorias da literariedade imanente no entanto não podem ser inteiramente descartadas elas viabilizam a sistematização da leitura tão essencial para trabalhos coletivos e dirigidos como é o da leitura que a escola patrocina Por outro lado são as mesmas teorias que permitem a identificação de elementos que latentes no texto se atualizam mediante a leitura Não é entretanto qualquer leitura nem qualquer leitor que atualiza essa virtualidade Tampouco a virtualidade do literário se atualiza da mesma forma com diferentes leitores ou em diferentes leituras de um mesmo leitor A atualização da literariedade em latência depende de certa interação do texto com cada um de seus leitores É assim que embora as teorias da imanência e da objetividade da literariedade não sejam suficientes nem por isso elas deixam de levantar elementos fundamentais para uma teoria que conceba a literatura como interação É fecunda por exemplo a discussão jakobsoniana da literariedade a partir de determinadas ocorrências da linguagem para Jakobson bem como para boa parte dos teóricos de linhagem estruturalista e formalista a manifestação da função poética decorre de determinada manipulação dos elementos de linguagem No entanto o mesmo gesto que postula a natureza linguística dos elementos que respondem pela função poética reconhece também que a manifestação da função poética realizase sempre de maneira histórica isto é de forma diferente em diferentes momentos ou em diferentes leituras do mesmo poema revelandose diferente para diferentes leitores George Steiner a partir do quadro Le philosophie lisant de Chardin analisa de forma belíssima diferentes concepções do exercício da leitura em tempos antigos e modernos STEINER George The uncommon reader Bennington Coll 1978 25 Assim da mesma forma que se reconhece certa especificidade do texto literário postulamse para viabilizar a hipótese de que o literário resulte de determinada forma de interação entre leitor e texto prérequisitos para que a leitura se configure como literária para o leitor Na medida em que os elementos de que se constitui a especificidade do poema estão na linguagem e na medida em que a linguagem é uma construção da cultura para que ocorra a interação entre o leitor e o texto e para que essa interação constitua o que se costuma considerar uma experiência poética é preciso que o leitor tenha possibilidade de percepção e reconhecimento mesmo que inconscientes dos elementos de linguagem que o texto manipula Em outras palavras leitor e texto precisam participar de uma mesma esfera de cultura O que estou chamando de esfera de cultura inclui a língua e privilegia os vários usos daquela língua que no correr do tempo foram constituindo a tradição literária da comunidade à qual o leitor pertence falante daquela língua na qual o poema foi escrito Retomando agora os motivos pelos quais teorias interacionistas contribuem mais significativamente para a discussão do relacionamento entre literatura e escola podese incluir entre as funções da escola o aumento progressivo e paulativo da familiaridade do aluno com textos que ampliem seu horizonte de expectativas numa perspectiva de familiaridade crescente com esferas de cultura cada vez mais complexas que incluem no limite aqueles textos que tendo a sanção dos canais competentes configuram a literatura Por isso a mera inclusão de textos tidos como bons e superiores entre os textos escolares não soluciona nenhuma das faces da crise de leitura Pois a presença de um excelente texto num manual pode ficar sem a contrapartida qual seja o texto tido como bom pode ser diluído pela perspectiva de leitura que a escola patrocina através das atividades com que ela circunda a leitura Para ilustrar esse ponto de vista vamos estudar o caso do poema de Cecília Meireles O vestido de Laura que freqüenta com certa assiduidade manuais escolares 26 Esse texto aparentemente satisfaz os requisitos de qualidade é assinado por um dos poetas maiores da literatura brasileira é extraído de um livro infantil irrestritamente apontado pela crítica especializada como excelente e finalmente é um texto que suporta sem concessões leituras e análises que tentem com os instrumentos específicos da teoria e da crítica literárias dar conta de sua especificidade estética Eis o poema O vestido de Laura é de três babados todos bordados O primeiro todinho todinho de flores de muitas cores No segundo apenas borboletas voando num fino bando O terceiro estrelas estrelas de renda talvez de lenda O vestido de Laura vamos ver agora sem mais demora Que as estrelas passam borboletas flores perdem suas cores Se não formos depressa acabouse o vestido todo bordado e florido O vestido de Laura tem sete estrofes compostas de três versos cada uma que alternam de maneira irregular seis cinco e quatro sílabas com exceção da última estrofe cujo derradeiro verso tem sete sílabas As rimas são constantes entre os versos dois e três As quatro primeiras estrofes unificamse pelo seu tom descritivo o verbo da primeira estrofe é de ligação atribuindo ao vestido a propriedade de babados As estrofes II III e IV são apostas à estrofe I cada uma delas retoma um dos babados especificandoo a partir de detalhes de sua aparência os babados cuja existência é declarada na estrofe I são progressiva e individualmente retomados e retrabalhados nas estrofes II III e IV Observase no entanto que apesar desse movimento de especificação progressiva o poema mesmo nessas estrofes que detalham pormenores do vestido guarda a imprecisão a mobilidade e a sugestividade que parecem constituir traço dominante na poesia de Cecília Meireles Esse caráter sugestivo se constrói por exemplo pela intensa sonoridade das estrofes desse bloco as rimas as repetições de oclusivas na estrofe I a reiteração léxica na estrofe II e a nasalidade da estrofe III criam sensorialmente a impressão e magia do mundo de Cecília Meireles Essa sugestividade que se entrega ao leitor sem mediação alguma configurase também no nível sintático do texto não há nexo sintático explícito entre a estrofe I e as três que a seguem em relação apositiva Além disso a elipse do verbo nestas estrofes compõe um movimento de atenuação como se a enunciação das qualidades de cada babado nascesse ao ritmo fugaz dos movimentos amplos de um vestido No plano interno de cada estrofe poderíamos observar ainda que a relação sintática entre suas partes vai progressivamente se atenuando os versos O primeiro todinho todinho de flores embora com fortes traços de oralidade consistem enunciado coeso do ponto de vista da gramática tradicional esta coesão se enfraquece no entanto na estrofe III em que os versos No segundo apenas borboletas voando sugerem a dissipação do babado e o fortalecimento de seus desenhos e praticamente desaparece ou fica apenas implícita no verso O terceiro estrelas em que a ausência de qualquer nexo prepositivo substituído pela vírgula completa o esgarçamento das formas de predicação Na estrofe V o poema muda de figurino e a voz do poeta fica explícita a forma imperativa é clara e o comando vamos ver rompe o clima de descrição impressionista das estrofes anteriores e instaura outra atmosfera E com ela outra etapa do poema Cf DAMASCENO D Poesia do sensível e do imaginário In MEIRELES Cecília Obra poética 3 ed Rio de Janeiro Nova Aguilar 1972 27 Este segundo conjunto de estrofes destoa do anterior a partir de sua configuração sintática as estrofes VI e VII iniciamse por conjunções respectivamente que e se sendo a primeira explicativa e a segunda condicional Com isso o relacionamento sintático delas com a estrofe V da qual dependem é muito mais rígido do que a simples justaposição que unia as estrofes do primeiro segmento do poema Concomitantemente a esta alteração na estrutura sintática do texto também ocorre interrupção brusca no clima inicial de sonho e deslumbramento em que o poema imergia seus leitores Se não bastasse a subordinação sintática para orquestrar a substituição do sonho pelo comando notase também na organização da estrofe V a inversão da sequência verboobjeto O vestido de Lauravamos ver agora antepondo o objeto ao verbo diverge da prática linguística mais difundida que é a pósposição do objeto direto a seu verbo Como tal inversão não se justifica nem por métrica nem por rima o contexto do qual emerge um possível significado é o progressivo enrijecimento da estrutura do poema já manifestado em outros níveis delineiase assim extrema coerência entre esse procedimento e a ruptura da sugestividade e encantamento em que se embebiam as estrofes anteriores Em poucas palavras a racionalidade subjacente à atitude de comando que domina esse segundo momento do poema manifestase em todos os seus níveis Na estrofe VI a retomada em sequência invertida dos elementos enumerados ao longo das estrofes II III e IV reforça a reversão de expectativas A recuperação em sequência simetricamente inversa de elementos dispersos nas estrofes anteriores reinstaura a totalidade do vestido que se refaz na última estrofe do poema Todas as observações acima que constituem uma possível abordagem do texto são de natureza técnica e assinalam alguns dos elementos através dos quais esse poema constitui um poema e não outra coisa Eleencam elementos que podendo ser considerados como pertinentes à natureza poética de O vestido de Laura poderiam ser trabalhados caso se desejasse apontar alguns dos elementos que manipulam linguística e imageticamente a sensibilidade de seus leitores Mas não é isso nem nada que se lhe assemelhe que ocupa os exercícios propostos pelo manual escolar que transcreve o poema e cuja ilustração e exercícios transcrevemse a seguir VAMOS ENTENDER MELHOR A POESIA 1 A poesia fala de uma borboleta um vestido um babado 2 Cubra e complete O vestido de Laura 3 Escreva os versos da poesia de acordo com os desenhos 1 O primeiro todinho todinho de flores de muitas cores 2 No segundo apenas borboletas voando num fino bando 3 O terceiro estrelas estrelas de renda talvez de lenda 4 Complete Se não formos depressa acabouse o vestido todo bordado e florido EXPRESSÃO ARTÍSTICA Recite em coro falado a poesia O vestido de Laura Cf MORAIS LM NUNES M Mundo mágica comunicação e expressão 1 gram inse 2 São Paulo Ática 1983 Observase que o compromisso das atividades sugeridas é com elementos exteriores e secundários ao poema não trabalham com estruturas internas e transformam a leitura numa atividade reprodutora e repetitiva em tudo homóloga às funções que a escola como instituição social tende a cumprir Antes que se indague se alunos eou professores do primeiro grau têm condições de desenvolver uma análise como a esboçada vale dizer que não mas que isso não tem importância alguma O reconhecimento e a nomeação dos processos formais agenciados por um texto não são fundamentais para que o dito texto seja fruído pelo leitor Familiaridade com processos formais é da competência se não do especialista ao menos do professor de literatura de segundo grau Se assim não fosse a fruição da poesia estaria proscrita a todos aqueles que nunca passaram por um curso de Letras Não é pois objetivo deste texto reivindicar que as questões propostas para trabalho de um poema em classe privilegiem este ou aquele elemento de sua constituição formal fundamentandose numa ou noutra teoria literária O objetivo é sugerir que as atividades de leitura propostas ao aluno quando este se debruça sobre um texto literário têm sempre de ser centradas no significado mais amplo do texto significado que não se confunde com o que o texto diz mas reside no modo como o texto diz o que diz Nesse sentido é necessário que os elementos do texto selecionado como gerador de atividades levem o aluno a observar mais de perto procedimentos realmente relevantes para o significado geral do texto O que não parece ser o caso dos exercícios transcritos Recorrendo a um objeto tão prosaico quanto um vestido Cecília Meireles fala da efemeridade Efemeridade do quê De tudo em geral e em particular das coisas efêmeras que tocam aquele leitor particular no momento específico da leitura do poema O quê Desde o recreio que acabou até o amor que se foi E como no limite o tema da efemeridade toca no da morte a urgência do comando vamos agora vamos depressa se vale de estrelas que passam borboletas que voam e flores que murcham para metaforizar o contínuo processo de perda que é a vida LIVRO DIDÁTICO E LÍNGUA PORTUGUESA PARCERIA ANTIGA E MAL RESOLVIDA AEIOU dabliú dabliú Na cartilha da Juju Juju A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Há dez anos na cartilha A Juju já sabe ler A Juju sabe escrever Escreve sal com cêcedilha AEIOU de Noel Rosa e Lamartine Babo Em meados do século XIX a disciplina Língua Portuguesa não fazia parte do currículo da escola brasileira situação que desagradava alguns educadores Entre os que protestavam estava Manuel Frasão Vergonha terão nossos vindouros quando recorrendo às estatísticas da Instrução Pública virem que um semnúmero de moços têm sido reprovados em idiomas estranhos que aliás conheciam sofregamente ao passo que uma só vez não consta que alguém deixasse de matricularse por desconhecer o pátrio idioma Pretendendo irritar o regulamento francês e encontrando a exigência da língua francesa com exclusão do portuguesa impuseram a língua francesa excluiram a portuguesa A crítica de Frasão sugere que em pleno Segundo Reinado leitura e redação de texto em língua materna não destruíam ainda da importância curricular que para tais atividades insinuava o paulista Martim Francisco Ribeiro de Andrada em projeto encaminhado aos constituintes de 1823 Quanto ao ensino da arte de exprimir e desenvolver as idéias digo que suas regras se devem conformar com os efeitos que dela se requerem Na antigüidade tempo em que se desconhecia a imprensa e havia mister de persuadir e seduzir os povos pelo dom da palavra esta arte se reduzia meramente a ensinar o modo de bem falar Depois da invenção da imprensa mudaram as circunstâncias escreveuse nos negócios particulares imprimisse nos negócios públicos e destarté decidiramse as questões e à proporção que cresciam os usos de uma nação cresceu também a facilidade de espalhar racioncmente as idéias por meio da impressão portanto a arte de escrever discussões é a verdadeira retórica dos modernos e o eloqüência de um discurso é o de um livro feito para ser entendido por todos os espíritos A vista disso em que vem a constituir este arte considerada como parte de um ensino público Em escrever uma memória ou parecer com clareza método e simplicidade em desenvolver as razões com ordem e precisão evitando de um lado a negligência ou afetação e de outro a exageração ou o mau gosto Na Constituinte de 1823 livro didático escola professores e leitura estrclavam momentosas polêmicas Os legisladores ao discutirem leitura e livro didático inscreveram a discussão no contexto geral da precariedade que herdada da Colônia vai persistir por muito tempo os requisitos que Ribeiro de Andrada inventaria para os professores descesm a tais minúcias que o quadro resultante é de completo despreparo do magistério cnto no primeiro ano como nos dois seguintes deste curso de instrução o professor deve ter em vista amestrase no método de ensino e fazerse compreender instituirse no modo de responder às pequenas dificuldades de questões que o menino possa lhe propor analisar escrupe eamente as palavras inseridas no compêndio a fim de dar ao discípulo idéias precisas delas não se esquecendo de empregar as palavras técnicas que geralmente fecem cotadas não só porque a linguagem filosófica é mais exata do que a vulgar mas também porque iguais vocábulos exprimem noções mais precisas designam objetos mais distintos e correspondem a idéias de mais fácil análise As atas das sessões constituintes pelo teor e calor das discussões que registram apontam tal despreparo como crônico e desalentadoramente irremediável o estado de atraso em que se acha desgraciosamente a educação no Brasil fará com que se formos o exigir de um professor de primeiro ensino do qual depende a felicidade dos cidadãos requisitos maiores não teremos professores Outro legislador responsabiliza os baixos salários pela falta e despreparo dos professores de que serve isso se os ordenados dos mestres são tão escassos que a maior parte das escolas se acham fechadas Dáse 120000 por ano a um homem que com menor trabalho pode fazer o duplo em qualquer ramo de comércio em pescarias etc É pois sombria a infraestrutura em que o assunto livro didático cruza com leitura escrita e Língua Portuguesa como preocupação dos primeiros legisladores brasileiros que discutiam o sistema escolar a ser implantado no Brasil Odorico Mendes sugere para livros de leitura a Constituição e alguns clássicos da língua Tem por melhor que os meninos leiam estes livros co que sérlencias velhas e obras outrinárias ransosses que nada volern enquanto Lino Courtinho pondera que para leitura é preciso atender não só à escolha de doutores como à linguagem Lembra a vida de Frei Bartolomeu dos Mártires e coisas de jacinto Freire de Arocede pois livros escritos com exaustão escolha e pureza de linguagem O ensino se conta deve ser mecânico O de gramática deve se limitar às declinações dos nomes e conjugação dos verbos regulares e irregulares da criação cobrados os agentes os verbos ou as ligações dos casos Não obstante tais discussões datarem da década de vinte do século passado e nela as questões de ensinoaprendizagem de língua materna virem pelo viés da questão do livro didático o desabafo de Frasão nos anos sessenta sugere que só muito paulatinamente a Língua Portuguesa ganhou o espaço do currículo escolar e que mesmo transformada em disciplina era insatisfatório o modo pelo qual se processava seu ensino E parece permanecer insatisfatório por longos anos A permanência da situação nos primeiros anos da República manifestase no rigoroso julgamento com que Rui Barbosa define como calamitoso o resultado do ensino do vernáculo na escola brasileira Isentando de culpa os professores atribui parcela grande da responsabilidade ao livro didático e à política educacional os mestres são os menos culpados nesta imbecilização oficial da mocidade Deser enorme pecado contra a Pátria e contra a humanidade a responsabilidade cabe quase toda à péssima direção do ensino popular aos métodos aos livros adotados num sistema em que a adoção importa de fato um verdadeiro privilégio Tendo por tribuna o Congresso Nacional e respaldado no que de mais moderno havia em Lingüística e Pedagogia Rui Barbosa aponta a baixa qualidade do livro didático criticando também os métodos de ensino de língua materna Nestas críticas o leitor de hoje pode reconstituir fragmentos dos conceitos de linguagem a que Rui Barbosa adere como quando por exemplo referese particularmente ao trabalho mecânico de memorização que no programa da instrução elementar se classificia sob o nome de gramática Que o ensino da língua não se confunde com o ensaio da gramática não é lícito contestar Mas tem a qualificação mesma de gramática se pode estender a esta tecnologia de obs com admirável intuição lingüística Rui Barbosa vincula a inadequação do ensino patrocinado pela escola brasileira do século passado ao fato de a escola lidar com língua materna como se esta estrangeira fosse Todo o menino que vem sentarse nos bancos de uma escola traz consigo sem consciência de tal o conhecimento prático aos princípios da linguagem o uso dos gêneros e dos números das conjugaçãoes e sem senti r distingue as várias espécies de palavas 12 No mesmo fim de século que assistiu à Abolição e à República de outros pontos de vista outras vozes confirmam o desencontro entre métodos objetivos e clientela da disciplina Língua Portuguesa aumentando o desconsolo da situação José Veríssimo e Sílvio Romero intelectuais ativos na cultura do entreséculos referendam Rui Barbosa inscrevendo a reflexão do diaadia escolar Registra José Veríssimo Os meus estudos feitos de 1867 a 1876 0rom sempre em livros estrangeiros Eram portugueses e absolutamente alhe cs ao Brasil os primeiros livs que li E assim foi sem dúvida para toda a minha geração Acarhadíssimas são es melhorias desse triste estado de coisas e cinqa hoje a maioria dos livros de leitura se não são estrangeiros pela origem sãono pelo espírito Os nossos livros de excertos é cos autores portugleses que os vão buscar e a autores cuja clássica e hoje osasleta lingugem 9 goesse mal camarhado preparatcriano de português mal coercece São os fre s Lu s de Sousas os Lucenas os Bernardes os Fernão Mendes e todo o classicisro português que lemos nas nossos diosses de Língua que aliás começa a tomar nos programas o nome de língua nacional Pois se pretende sic ao meu ver erradamente começar o estudo da língua pelcs clássicos autores brasileiros tratados coisas brasileiras não poderiam fornecer relevantes passagens 13 Não é diferente o depoimento de Sílvio Romero praticamente contemporâneo de José Veríssimo curiosas reações que o ato de ler provocava reações que apontam para a fragilidade e insuficiência das práticas de leitura aqui vigentes alguns de meus vizinhos tanto em Itamaracá quanto em Jaguaribe entravam às vezes enquanto eu estava lendo e achavam estranho que eu achasse prazer nesta atividade Eu me lembro de um homem que dizia O senhor não é um padre portanto por que o senhor lê O senhor está lendo um breviário Em outra ocasião contaramme que eu tinha graça no a forma de um homem muito santo porque estava sempre lendo16 Descomprometidos com o modelo católico de colonização portuguesa e sem papas na língua viajantes ingleses retratam o Brasil dos arredores da Independência como uma sociedade onde as luzes não chegaram a acenderse ou se se acenderam foram clarão efêmero que não ultrapassou a arcádia dos malogrados inconfidentes mineiros Luccock outro inglês ao relatar conversas com brasileiros ao longo de uma viagem pelo sertão mineiro sublinha o isolamento cultural do Brasil Nesta nossa terra nunca se ouviu até agora sobre guerras européias acredito se supunha até recentemente que houvesse outros povos na terra além de portugueses e espanhóis além do Gerlio I 17 Dãose pois as mãos educadores e escritores legisladores e viajantes ao longo do século XIX à precariedade do sistema escolar e ao espaço reservado à Língua Portuguesa correspondia fora da escola prática de leitura rarefeita e esgarçada Irresolvida a questão se arrasta e se agrava Em 1888 o assunto livro didático entremeandose a amargas evocações da escola aflora da passagem no romance O Ateneu de Raul Pompéia Entre as lembranças da vida escolar de Sérgio vivida sob a batuta de Aristarco Argolo de Ramos nome ficcional de Abílio César Borges o Barão do Macaúbas educador do Império Raul Pompéia pela boca do narrador Sérgio relata modos pouco ortodoxos de produção do livro didático que têm pontos comuns com situações e práticas que vivemos hoje O Dr Aristarco Argolo de Ramos da conhecida família do Visconde de Ramos do Norte era do Império com o seu renome de pedagogo Eram boletins de propaganda pelas províncias conferências em diversos pontos da cidade a pedidos à sustância chocando a imprensa dos lugares colixões sobretucos de livros elementares fabricados às pressas com o esbaforido concurso de professores prudentemente anônimos caixões e mais caixões de livros cortados em Leipzig funcionando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão de capas azuis róseas amarelas em que o nome de Aristarco iateiro e sonoro ofereciase ao pasmo venerado dos esfaimados do alfabeto das cortinas da Pátria Os lugares que os não procuravam eram um belo dia surpreendidos ca e recente gratuita espontânea irresistível E não havia senso aceitar farinha doce ela marca para o pão do espírito E engradeciam as letras à força daquele pólo Um benemérito Não admiro que em dias de cola ritma ou nacional festos do colégio ou recepções do coro o largo peito do grande educador desaparecesse sob constelações de pedraria opulenrend a nobreza de todos os honoríficos oerloques18 O mesmo Barão de Macaúbas reaparece como personagem na autobiografia de Graciliano Ramos nascido em 1892 nas secas e ensolaradas Alagoas Graciliano retrata em Infância obra editada em 1945 os percalços de uma meninice sofrida na qual os livros escolares em particular os de Abílio César Borges o Barão de Macaúbas são lembrança dolorida Um grosso volume escuro cartorrogent severa Nas folhas delgadas ircolábveis as letras fervilhavam miúdas e as ilustrações avultavam num papel brilhante como castro de lesma ou catarro seco Principei a leitura de má vontade E logo emprerei na história de um menino vadia que dirigindose à escola se retraiava a conversa com os passarinho e recebia deles opiniõesThusudas e bons conselhos Passarinho queres tu brincar comigo Forma de perguntar esquisito pensei E o animalzinho atarefado na construção de um ninho exprimiase de maneira ainda mais confusa Ave sabia e modesta que se confessava trabalhadores em excesso e orientava o pequeno vagabundo no caminho do dever Em seguida vinrom outros irracionais igualmente bemintencionados e bemtalentes Havia a mosceirinha que morava na parede de uma chaminé e voava às tos desobedecendo às ordens maternas Tanto voou que afinal caiu no fogo melhores profissionalizam a relação com os editores através de agentes literários e dada a importância do planejamento gráfico no gênero infantil envolvemse em várias etapas da transformação de seus originais em livros A aguda consciência que têm de seu trabalho como produto e como mercadoria manifestase ainda no zelo com que tentam preservar seus direitos muito frequentemente ameaçados pela inclusão gratuita e não autorizada de textos seus em antologias e livros didáticos Outro indício sugestivo da renovação da aliança literatura infantilescola é a efetiva mobilização dos escritores para crianças quase todos participam de campanhas e eventos comprometidos com a difusão da leitura comparecendo maciçamente a congressos simpósios e seminários e principalmente visitando amiúde escolas onde discutindo seus livros incentivam seu consumo Em tudo isso e mais ainda na sua articulação com instituições voltadas para a leitura infantil no estado de São Paulo CELIJU Academia de Literatura Infantil e Juvenil Fundação para o Livro Escolar em nível nacional Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil Fundação de Assistência ao Estudante e por menor e mais frágil que seja o poder decisório de tais instituições o que se encontra é uma comunidade de escritores profissionalmente conscientes de sua importância peso e função dentro das instituições culturais e que do ponto de vista de mobilização articulamse com o perfil econômico atual da sociedade brasileira de forma mais adequada que seus companheiros que não escrevem para o público infantil No entanto os mesmos fatores que entrelaçam literatura infantil e escola e que eventualmente respondem pela modernidade desse segmento da produção cultural brasileira são também responsáveis pelo descompasso digamos estético entre a literatura infantil e a não infantil Tomando por parâmetro a produção literária brasileira contemporânea não infantil os livros para crianças parecem conservadores pagando com o que se poderia chamar de compromisso pedagógico seu ingresso no aparelho escolar 69 Esta vocação pedagógica e inevitavelmente conservadora da literatura infantil não constitui opção consciente de seus autores configura antes a linguagem do gênero cuja força pode ser avaliada pela sua permanência ao longo de seu quase um século de história no Brasil e pela constatação de que o pragmatismo pedagógico é o traço que submerge primeiro nos momentos de ruptura como ocorre em O livro de Berenice de João Carlos Marinho metalinguagem dos impasses do gênero aprisionado entre uma tradição integrada e um desejo apocalíptico No interior das histórias e poesias mais antigas o protagonista era modelo acabado da criança que a escola se propunha formar como em Através do Brasil Olavo Bilac e Manuel Bonfim 1910 e Saudade Thales de Andrade 1918 Da mesma forma a sociedade brasileira contemporânea encontra na literatura infantil atual modelos condizentes com os valores e comportamentos liberais e tolerantes incorporados pela escola brasileira de hoje Assim as crianças perguntadeiras e maluquinhas a rebeldia contra o arbítrio exagerado a consciência ecológica a defesa das minorias temas recorrentes nos livros infantis de hoje mantêm com a escola contemporânea articulação homóloga à que em seu tempo mantinham com a escola de antanho outros temas o ama com fé e orgulho a terra em que nasceste biaquiano o projeto ruralista de Thales de Andrade e as histórias da conquista do Oeste que proliferaram contemporaneamente à construção de Brasília no Planalto Central Além de refletirse internamente na adesão do texto à ideologia escolar e externamente no apoio da escola à circulação do gênero a interrelação literatura infantilescola manifestase ainda externamente ao texto mas internamente ao livro na extensão aos livros infantis e juvenis de tratamento didático semelhante ao dispensado aos textos incluídos em manuais de Comunicação e Expressão 38 interessar e muito aos préadolescentes podemos convidar o passseio para embarcar numa nave imaginária e viver suas próprias peripécias Para isso precisamos pensar o espaço da viagem O espaço propriamente dito os possíveis itinerários o local da decolagem e aterrissagem e o percurso da viagem e assim por diante Tiramos as cadeiras da sala de aula se possível ou as deslocamos para um canto Limpo o chão embarcamos em nossas naves individuais ou em pequenos grupos SIC e nelas soltamos a nossa fantasia num vão realmente sem limites A nave espacial flutua e o nosso corpo flutua junto e nos leva a espaços desconhecidos e a mil aventuras Sem atenção para níveis metafóricos do texto e da leitura essa proposta referencializa e banaliza o ato de ler Condena à pobreza da improvisação teatral sugerida a viagem de cada leitor embarcao numa nave necessariamente pobre ao confinarse ao espaço mesmo sem carteiras de uma sala de aula empobrece a viagem ao cristalizála num itinerário prévio ao encolhêla a uma duração definida Não se trata evidentemente de dizer que tais atividades são desaconselháveis prejudiciais mais em si mesmas Nada em si mesmo é bom ou mau O problema é que atividades sugeridas indiferenciadamente para muitos milhares de alunos distribuídas em pacotes endereçados a anônimos e despreparados professores passam a representar a varinha mágica que transformará crianças mal alfabetizadas e sem livros disponíveis em bons leitores Favorecem ainda a crença de que sua realização operará o milagre de transformar os professores em orientadores de leitura fazendo vista grossa à sua pouca familiaridade com livros não questionando sua leitura quantitativa e qualitativamente muito pobre deixando intocada sua estranheza face a práticas mais significativas da linguagem Na rotina de tais atividades camuflamse riscos sérios de alienação da leitura Aí sim tais atividades são más desaconselháveis prejudiciais Da perspectiva da indústria de livros o investimento em atividades de leitura desse tipo pode assegurar a fidelidade 71 coisa com o que seus alunos efetivamente leram A inclusão de sugestões de atividades em livros destinados ao público infantil já foi interiorizada como necessidade pelos professores que as solicitam quando não as encontram no livro que escolhem para seus alunos Até hoje a editora não preparou nenhuma ficha de leitura ou ficha de interpretação do Gênio do Crime como é uso em outros livros dados em classe a pedido meu Acho que tais fiches delimitam a apreciação do livro e a uniformizam Nas visitas que tenho feito em classe desde 1969 encontrei ótimos professores que segundo seu critério e segundo o adiantamento da classe adotam este ou aquele tipo de trabalho muitos excelentes e originais Não é minha intenção impor um método de trabalho sobre O Gênio do Crime Os professores que já experimentaram seus métodos particulares devem continuar a fazêlo O método ideal de exercício surge sempre da conjunção do modo de ser do professor com o modo de ser da classe coisa pessoalíssima e que uma ficha de leitura não pode prever Acontece que a editora há vários anos continua recebendo solicitações para que O Gênio do Crime venha acompanhado de uma ficha de leitura Atendendo a estes pedidos elaborei as seguintes alternativas ao método de trabalho O depoimento de João Carlos Marinho registra o momento em que os professores delegam a terceiros o planejamento das atividades de leitura que desenvolverão com seus alunos Se na origem dessa distorção está o despreparo do magistério seu achatamento salarial a precariedade das condições de seu exercício profissional reconhecer tudo isso não diminui a gravidade do fato de que a leitura patrocinada pela escola de hoje parece sofrer de uniformização Essa uniformização no entanto pode passar despercebida pois muitas vezes vem embrulhada em propostas que em nome de uma leitura lúdica e criativa gerenciam o envolvimento com o texto imergindo a leitura em atividades que apenas simulam criação e fantasia 37 Até os anos cinqüentasessenta era prática corrente a utilização de textos literários como pretexto para exercícios gramaticais a partir daí no entanto o mesmo sopro de modernização que sancionou a produção de textos críticos e contestadores na esteira do prestígio crescente da Linguística varreu do horizonte a análise sintática de estrofes camonianas Surgiram em seu lugar atividades mais condizentes com o processo geral de modernização por que passavam sociedade e escola brasileiras O primeiro momento de liberação do texto literário da gramática aguda coincidiu com a adesão a uma espécie de modelo simplificado de análise literária questionários a propósito de personagens principais e secundários identificação de tempo e espaço da narrativa escrutínio estrutural do texto Com pequenas alterações esse modelo persiste até hoje convivendo agora com propostas de leitura que desembocam em desenfreado ativismo Entre as atividades hoje mais freqüentemente sugeridas para despertar e desenvolver o gosto quase sempre chamado de hábito pela leitura encontramse a transformação do texto narrativo em roteiro teatral e subseqüente encenação a reprodução em cartazes ou desenhos do tema da história ou de personagens do livro a criação a partir de sucata de objetos ou colagens de alguma forma relacionados à história as pesquisas que aprofundam algum tópico que o texto aborda o prosseguimento da história sua reescritura com alteração do ponto de vista entrevista real ou simulada com autor ou personagens do livro jogral ou coro falado quando se trata de poemas e tantas outras familiares a quem tem intimidade com a literatura infantil A frequência com que essas atividades são sugeridas em fichas de leitura encartes suplementos e similares só se compara à sofreguidão com que quando ausentes são solicitadas pelos caros mestres às voltas com a árdua tarefa não só de fazer com que seus alunos leiam mas principalmente de fazer alguma Tais são as premissas que precisam balizar projetos que objetivem efetiva democratização e qualificação das práticas sobretudo escolares de leitura no Brasil Os projetos precisam abrirse com a crítica da inevitável participação nos rituais de apropriação da literatura infantil pela escola e viceversa que os professores lutem por uma formação competente regular e supletiva que os liberte da tutela de cursos efêmeros e do paternalismo autoritário de receitas de leituras apostas a livros que os autores se mobilizem no sentido de fazerem frente à escolarização de seus textos e que os demais envolvidos nós todos discutamos nos circuitos bastidores e arrabaldes da literatura infantil o caráter histórico da organicidade institucional dos livros infantis relembrando categorias para a compreensão dessa historicidade que também nos envolve cumprindo assim de forma mais crítica o papel que nos cabe e que ninguém cumprirá por nós 2 LEITURAS DO MUNDO MACHADO DE ASSIS UM MESTRE DE LEITURA1 Todo artista aspira a ser lido Não existe correspondência particular de um artista que considerarmos experimental de Joyce a Montale que não mostre como aquele autor mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas de seu próprio leitor comum e atual aspirava a formar um futuro leitor particular capaz de entendêlo e de saboreálo sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendêlo apreciálo e amálo2 Em Contos fluminenses obra com que Machado de Assis estréia em volume em 1870 o leitor comparece não poucas vezes tratado sempre com deferência e educação na boca do que se poderia chamar de um narrador cordial O conto de abertura do livro Miss Dollar traz o leitor para dentro do texto já na primeira linha É razo conveniente ao romance que o leitor ficasse muito tempo sem saber quem era Miss Dollar p 27 3 1 Este texto foi originalmente apresentado na mesaredonda 150 anos de Machado de Assis no XXXVI Seminário do CEL e posteriormente e com alterações no GT de Leitura e Literatura Infantil durante o IV Encontro Nacional da ANPOLL Ambos os eventos ocorreram em 1989 2 Eco Umberto O texto o prazer e o consumo In Sobre as espelhos e outros ensaios 2 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira sd p 100 3 O número entre parênteses indica a página da edição consultada Assis Machado de Obra completa Org Afrânio Coutinho Rio de Janeiro José Aguilar 1962 v II e III A essa benevolente alusão à conveniência narrativa seguemse considerações sobre os deveres de um narrador que desembocam em elogio à objetividade economia e racionalidade de recursos narrativos sem o apresentação de Miss Dollar ser o o leitor obriado a process digessões que encheriam o papel ser odiatar e ação Não há hesitação possível vou apresentarlhes Miss Dollar p 27 Enganase no entanto a boafé de quem acreditar nessas promessas ao contrário do que arregoara o narrador entregase à volúpia de imaginar diferentes e variados tipos de leitores cujas previsões sobre a identidade da personagem título ela antecipa e desmente valendose da autoridade narratorial Começa refutando a imagem de Miss Dollar como uma inglesa pálida e degada escassa de carnes e de sangue p 27 creditada à imaginação de um rapaz dado ao gênio melancólico p 27 Linhas abaixo o texto inventa um outro leitor atribuindo a este a imagem de uma Miss Dollar robusta americana vertendo sangue pelos doces formas arredondadas olhos vivos e ardentes mulher feita refeita perfeita p 27 No parágrafo subsequente o mesmo imaginoso narrador investiga as expectativas de um outro tipo de leitor daquele que tendo já passado a segunda mocidade tem à sua frente uma velhice sem recursos para quem então a Miss Dollar do conto deve ser boca inglesa de cinquenta anos dotada com alguns m livros esterilnos e que aportando ao Brasil em procura de assnsno para escrever um romance realizasse um romance verdadeiro casando com o leitor diluida p 27 Vêse que o narrador de Miss Dollar dispõe de galeria inesgotável de leitorespersonagens que faz desfilar pelo texto ao antecipar uma vez mais interpretações para a personagemtítulo ele convoca uma outra imagem de leitor que lisonjeiramente qualifica de mais esperto do que os outros p 28 e cuja esperteza parece consistir na interpretação de Miss Dollar como brasileira de quatro costados p 28 vindo seu nome à conta de sua riqueza Miss Dollar quer dizer coisas que a rapariga é rica p 28 É só depois dessa célebre multiplicação de leitores imaginários incessantemente extraídos de sua álgebra que para alívio dos leitores de carne e osso o narrador cumpre finalmente sua promessa e desvela a identidade de Miss Dollar A Miss Dollar de romance não é a menina romântica nem a mulher robusta nem a velha literata nem a brasileira rica Miss Dollar é uma cadelinha grega p 28 Essa assídua convocação do leitor prossegue pelo resto do conto mesmo quando o texto já navega desenvolvido as águas desatadas da narração O narrador qualifica com frequência o leitor dê quem e com quem fala organizando hierarquicamente a galeria de leitores que constrói Se a moldura escolhida para os quadros da galeria for o contexto sóciohistórico da literatura machadiana a visita à galeria pode constituir lance sugestivo para o esboço de uma história social da leitura na segunda metade do século XIX brasileiro4 Em tal galeria ocupa o patamar mais baixo o leitor superficial cuja interpretação o narrador desqualifica sem rebuços O leitor superficial conclui daqui que o nosso Mendonça era um homem excêntrico Não era p 28 A ele seguese seu antípoda o leitor grave Algum leitor grave encontrará pueril esta circunstância dos olhos verdes e esta controvérsia sobre a qualidade provável deles Provarei com isso que ler pouca crítica de mundo p 32 Mais adiante o narrador arrasta para cena outra casta de leitores os conspícuos Algum leitor conspícuo desejaria antes que Mendonça não fosse assim tão assíduo no caso de uma senhora exposta às caúnis do mundo p 36 4 Para uma história social da leitura no Brasil ver LAJOS M ZILBERMAN R A leitura na infância São Paulo Brasiliense 1991 Como se vê mesmo estreante5 Machado já orquestra e embaralha os fios da ficção e da realidade transformando leitores em personagens tematizando e encenando os caminhos do envolvimento do leitor com a matéria narrada Como no caso do romancetexto que uma das presuntivas Miss Dollar pretendia escrever em trânsito para o romancevida o envolvimento amoroso da mesma presuntiva Miss Dollar com o virtual leitor pobreta do texto de Machado o percurso se cumpre sempre Essa metalinguagem constante amplifica ao máximo o miseenabyme da obra e guarda nas suas entrelinhas a ironia implacável que alguns anos e obras depois cairá com olímpica indiferença sobre a cabeça dos leitores de Brás Cubas Não se trata aqui evidentemente de discutir se o Machado de Brás Cubas já estava dentro do de Miss Dollar ou se este foi mudado naquele por efeito de algum caso incidente seria ocioso discutir isso leitor apressado O fato é que depois de tantas convocações para o interior de um texto que lhe discute as expectativas o leitor brasileiro do século passado que teve sob os olhos esta Miss Dollar estava pelas mãos seguríssimas do narrador machadiano educandose na leitura literária A constância da metalinguagem através da qual Machado a pretexto de seus leitores mas sobretudo para eles tematiza o ato de leitura em curso inscreve no texto uma espécie de pedagogia da leitura que não destoa do contexto brasileiro das últimas décadas do século passado quando o necessário fortalecimento do sistema cultural era bandeira assumida por todos os intelectuais É entre esses intelectuais que o em geral politicamente discreto Machado na pele do colaborador da imprensa carioca também milita em prol das letras nacionais Já em abril de 1858 nas páginas de A Marmota um Machado de dezenove anos pedia providências que defendessem o teatro brasileiro acuado pela cultura francesa de carregação fazendo ver a necessidade de um tratado sobre direitos de representação reservados com um expediente e um imposto sobre traduções dramáticas p 788 O artigo revela um Machado bastante atento à República das Letras familiarizado com suas tretas e mutretas fazendose portavoz de reivindicações em prol da cultura brasileira Na berlinda o teatro ao qual Machado vai dedicarse com empenho cada vez maior como autor tradutor e crítico ao longo dos anos sessenta Não se trata pois de palpites de um curioso Em 1858 Machado não tinha ainda publicado nenhuma peça e assim sendo não advogava em causa própria mas já escrevia sobre teatro e nessa época o teatro era o palco onde se definiam os rumos da cultura nacional o que emprestava autoridade a sua voz A crítica de Machado enumera argumentos que justificam o imposto sugerido As tentativas neofrougetr diante deste caríssimo de bastidores imoral e vergonhoso pois cuse tende a obstruir os progressos da arte A tradução é o elemento cominorte neste caso que deveria ser a cerca santa onde a arte pelos hábitos de seus criados falasse às turbas entusiasmadas e delirantes Transplantar uma composição francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípece que entende de letra redonda O que provém daí O que se está verde A arte tornouse uma indústria e é parte meio ócio de ensinivas bemsucedidas sem dúvida o nosso teatro é uma fábula uma utopia p 738 9 Não é essa a única ocasião em que Machado dedicase a inventariar obstáculos à produção artística brasileira Ainda em 1858 o mesmo Machado reconhece o gigantismo e a complexidade da questão da cultura nacional admitindo implicitamente o traço quixotesco de propostas fiscais como a sua no país que um pouco mais tarde 1874 no calor de uma polêmica sobre direitos autorais José de Alencar chamaria de país do monopólio6 Em formulação aguçada e precisa neste outro texto de 58 Machado como que se penitencia dos artifícios retóricos do texto anterior saturado de boas intenções mas também inchado de áreas santas lábios de oráculo e turbas delirantes Machado aponta agora com sobriedade notável o impasse maior da produção cultural em uma sociedade como a brasileira atrasada e anacrônica É mais fácil regenerar uma nação que uma literatura Para isto não faças tos do Ipiranga as modificações operamse vagarosamente e não se chega em um só momento a um resultadop 787 Novo artigo de Machado oito anos depois com 1866 insiste ainda uma vez no mesmo problema na Semana Literária do muito mais popular Diário do Rio de Janeiro o discurso machadiano sofre reajustes e incide sobre a literatura A trajetória desses artigos de Machado do teatro para a literatura parece oposta à da cultura nacional que no decênio de sessenta assistia à migração para o teatro de expoentes das letras como Macedo e Alencar7 empenhados ambos aparentemente em substituir a raridade e esquivaça do público de romances pelo calor dos aplausos de platéias lotadas Neste artigo de 1866 Machado reclama de uma temperatura literária abaixo de zero queixa bastante compreensível tendo em conta que afora Casamento no arrabalde de Franklin Távora o panorama das letras brasileiras parece ter sido desolador nesse ano principalmente considerando as expectativas criadas pela publicação de Iracema no ano anterior 1865 Analisando a questão Machado atribui a pobreza da oferta literária à falta de gosto formado no espírito público e ao correr da crônica tempera seu desencanto com análise mais sofisticada dos elementos envolvidos na produção literária e que contribuem para seu desalento É numerosa a produção teatral de Alencar e Macedo nos anos finais de 50 e nos primeiros anos da década seguinte É a seguinte a cronologia do teatro de Alencar no período em questão A noite de São João 1857 Vera e spurca 1857 O alemão familiar 1858 As asas de um anjo 1860 Mãe 1862 A expiação 1867 O jurista 1875 para Macedo a cronologia é O cego 1849 Cubé 1852 O fantasma branco 1856 O primo da California 1858 O sacrifício de Isaac 1859 Lavo e calvário 1860 O novo Otelo 1863 Lisbela 1863 A torre em chamas 1863 confirmando a observação dá como uma das causas do desânimo leitor no cumprimento dos livros a forma desigual das secções e a má gosto em suma Creio que assim seja contudo que esta causa entre com outras de sua força Uma destas é a falta de estantes As nossas grandes moradias estão cheias de móveis ricos vários de gosto não há só cadeiras mesas camas mas toda sorte de trastes de adorno fielmente copiados de modelos franceses alguns com o nome original o bijou de salon por exemplo ou rose em língua híbrida como o portebibelots entrase nos grandes cessóticos ficase deslumbrado pela perfeição da obra pelo rico zelo da matéria pela beleza das formas Também se acham lá estantes é vero mas são estantes de música para piano e canto p 6656 Ao leitor mais atento não escapa a leveza da ironia nem a eficiência da retórica que trata a leitura através de estantes que fala de móveis através de predicados geralmente atribuídos a livros perfeição da obra riqueza da matéria beleza da forma e que inscreve a questão da leitura no patamar mais amplo da dependência trazida para o texto nas alusões à francesa do mobiliário mesmo do fabricado pela indústria nacional Ou seja o mesmo Machado que pedia proteção de mercado para o teatro nacional reafirma agora na voz de um intelectual desencantadamente maduro a velha precariedade da infraestrutura para a produção cultural que em relação ao teatro já o preocupava desde 1858 Com tais e tantas credenciais de observador arguto das condições disponíveis para a produção de bens culturais nos brasis de seu tempo tornase muito sugestivo retornando a Miss Dollar observar se e como os modos de produção da escrita e da leitura literária se representam na ficção desse escriba mulato gago epilético pobre e autodidata e que não obstante tudo isso ou será que também por causa disso tudo dominou o panorama letrado brasileiro na segunda metade do século XIX e até sua morte em 1908 Como se viu no conto o respeitável público na figura do leitor e da leitora é freqüentemente convocado para o texto num diálogo narradorleitor em tudo semelhante ao que se derrama por toda a obra machadiana É como se a ficção de Machado textualizasse o que a crítica e a crônica tematizam A ostensiva presença desse leitor quase tão intruso em Miss Dollar como o Brás Cubas de Memórias póstumas nas próprias revestsese entretanto de outros significados se se levar em conta que em diferentes obras é diferente o tratamento dispensado aos leitores pelos narradores machadianos Da cordialidade à impaciência dos piparotes da solidariedade ao distanciamento irônico à medida que a obra de Machado amadurece literariamente e semelhantes às relações autorpúblico as relações narradorleitor vão sofrendo alterações não de todo independentes das alterações por que passava no Brasil o modo de produção dos bens da cultura que como a literatura valiamse da escrita para sua circulação Se a hipótese é plausível ela sugere que os distintos tratamentos que Machado pela boca de seus narradores dispensa a seus leitores articulamse bem com o longo processo sofrido pela obra literária em seu percurso de objeto concebido como destinado à fruição gratuita até seu estatuto de mercadoria Sugere igualmente que tal percurso no caso brasileiro no final do Segundo Reinado e arredores da República desenrolase numa paisagem que parece acumular contradições em ritmo atropelado e dissonante coexistem formas précapitalistas e capitalistas de produção cultural De um lado mecenato de outro imposto sobre traduções e reivindicações de direitos autorais8 E entre ambos iluminando um pelo outro o texto literário de Machado que historicamente inscrito nessa transição parece textualizar a questão encenandoa literariamente pela via da metalinguagem que assim desvela não só o projeto de uma escrita literária mas também seu reverso e sua historicidade qual seja a necessária educação de leitores que dêem conta de tal escrita 8 Cf a propósição de reações de Machado em face de certas alterações sofridas pelo modo de produção de bens culturais no Brasil LAYOLLO M As transações internacionais O Escritor Jornal da União Brasileira de Escritores São Paulo janfev 1987 p 5 AS AVENTURAS DE NGUNGA NA ESCOLA E NA LEITURA Não posso matar o meu texto com a arma do outro Vou é minar a arma do outro com todos os elementos possíveis do meu texto Invento outro texto Interfiro desescrevo para que conquiste a partir do instrumento escrita um texto escrito meu da minha identidade As aventuras de Ngunga obra de Pepetela tem o apelo das obras feitas no calor da hora escrita que foi nas manhãs de dez dias debaixo de uma árvore numa carteira da mata na frente Leste O texto produzido nessas condições foi divulgado pela primeira vez em 1973 a partir dos 300 exemplares mimeografados pelo MPLA que circularam de forma sorrateira entre os combatentes pela libertação de Angola Se esse modo de produção é incomum para um livro a história que ele conta é bem mais trivial são os conflitos e experiências temores e amores que vive o protagonista Ngunga órfão de treze anos cujos pais foram surpreendidos pelos povos inimigos um dia nas lavras Os inimigos já se sabe são os lugas e os amigos também já se sabe são os combatentes os povos dos kimbos o mestreescola e para tudo ser como deve o próprio narrador Versão anterior deste texto foi publicada em 1983 no número 1 de EPA Estudos Portugueses e Africanos IEL Unicamp Rui Manuel Cinco vezes onze Poemas em novembro União dos Escritores Angolanos 1985 Pepetela José As aventuras de Ngunga São Paulo Ática 1983 Nas citações os números entre parênteses indicam a página desta edição Corruptela de portuga portuguêses forma pejorativa de referirse aos portugueses colonialistas As condições de produção do livro seu públicoalvo e a militância política de seu autor fazem com que essa obra de sua concepção a sua circulação constitua projeto que estabelece entre o político e o literário o pacto de solidariedade firmado na tradição ocidental moderna em momentos de alteração social profunda O interesse que esse livro de Pepetela desperta entretanto não se deve apenas ao fato de ele fazer parte de um projeto político que confia à escrita a pedagogia revolucionária não é original nem necessariamente interessante a criação de um texto literário para difusão de um projeto político Quantos projetos similares ao de Pepetela não se encontram na tradição literária européia que em vários momentos abriu espaço para o cruzamento do estético com o político Para não recuar muito aquém do século passado nem ir muito além da pátriamãe fiquese com a belíssima exortação de Antero de Quental ao poeta Erguete pois soldado do futuro E dos raios de luz do sonho puro Sonhador faze a espada do combate Pepetela pode pois invocar em seu favor o precedente de Antero que estará em excelente companhia Longe de constituir uma solução no entanto o precedente de Antero levanta uma questão interessante pois o interesse que o livro de Pepetela desperta nasce exatamente dessa falta de originalidade do projeto que parece ter presidido à sua elaboração Tratase de um precedente branco ocidental e português a cultura portuguesa inscrevese na européia na qual se inventaram livros escolas leitura literatura e todos os etcéteras de que se ocupam letrados aquém e além da Taprobana Curiosamente no entanto livros não obstante serem mídia privilegiada da cultura burguesa não por acaso também européia no nascimento costumam ser concebidos como eficientíssimos agentes de contracultura de resistência cultural e até mesmo como arma revolucionária Quental Antero de Sonetos 3 ed Lisboa Sá da Costa 1968 Que pirueta dialética permite então conciliar no mesmo saco gatos tão distintos como burguesia e revolução socialista liberalismo e liberação cultura letrada e contracultura É exatamente o que se pergunta a esse Pepetela de Ngunga supondose que Angola Pepetela e seu Ngunga sejam outros gatos de outríssimos sacos Serão A questão começa na observação de que As aventuras de Ngunga constitui de certa forma versão africana contemporânea de antigos projetos gerados e executados na velha Europa do século XIX Por exemplo na Itália e na França que no fim do século passado fizeram circular com exemplar eficiência os textos de Cuore e de Le tour de la France par deux garçons cimento precioso na argamassa patriótica dos projetos nacionais então em curso Tanto a obra italiana quanto a francesa são ao mesmo tempo romances de formação e obras de consolidação de unidade nacional Surgiram ambas em momentos de crise de suas respectivas sociedades O livro de De Amicis engajase no projeto de unificação italiana e o de G Bruno revigora o ânimo nacional francês seriamente abalado pela derrota militar diante da Alemanha A simpatia de que tais projetos estéticopedagógicos gozam junto às elites letradas findusiècle é grande É tanta a simpatia que o projeto atravessa os mares já dantes navegados e aporta ao Brasil onde Olavo Bilac e Manuel Bonfim engajamse na bemsucedida empresa de produzirem um similar nacional o famosíssimo Através do Brasil lido e relido por muitas e muitas gerações patrióticas Assim com Pepetela o projeto refaz a travessia atlântica na rota das caravelas e continuando a gozar de credibilidade recoloca a questão será que um projeto cuja versão primeira serviu de consolidação da ideologia liberal burguesa inclusive em seus desdobramentos colonialistas pode ser impunemente reciclado cem anos depois nas tropicais florestas e cidades de uma Angola às vésperas da libertação E se pode a que preço Logo à primeira vista percebese que em comum com os projetos anteriores o livro de Pepetela tem um protagonista criança Se na cultura ocidental a infância é a fase da vida marcada por fragilidade e insegurança traços que desde Perrault constituem prato cheio para a sensibilidade de leitores igualmente ocidentais fica por saberse se o solitário Ngunga produz impacto similar na sensibilidade de seus leitoresalvo a população de Angola envolvida na guerra de libertação Outro traço que aproxima o livro de Pepetela de seus modelos europeus é a orfandade do protagonista No livro francês a perda dos pais coincide com a perda da nacionalidade e as crianças então duplamente órfãs abandonam a AlsáciaLorena zona de ocupação alemã e fogem para a França em busca dos remanescentes da família Não é preciso dizer que recuperam ao mesmo tempo ambas pátria e família Quando o leitor termina o livro os meninos já são crescidos proprietários pais de família e supõese felizes para sempre na melhor tradição do conto de fadas de origem igualmente européia O Ngunga de Pepetela sofre a mesma carência dupla de pais e de pátria e embora em seu horizonte não haja parentes a procurar tendo o colonialismo como agente de sua orfandade sua busca de sobrevivência solitária e autosuficiente coincide com a busca do povo angolano do estatuto novo de nação independente Novamente Pátria e Família com maiúsculas identificamse Ecoam pois no projeto de Pepetela fragmentos de outras ideologias de terras outras e sobretudo de outros tempos Parece que Angola começa tudo de novo refazendo no projeto de sua literatura o percurso de institucionalização cumprido por literaturas européias Mas talvez a semelhança resida mais nos óculos do que no objeto contemplado pode tratarse de olhos e óculos treinados a reduzirem tudo a seu código de origem Mas como nem mesmo Machado sabia se o que teria mudado era ele o Natal ou ambos registrese apenas a tentação e o risco de ler as literaturas do Terceiro Mundo inclusive a verdeamarela com olhos e gosto educados nas produções culturais do Primeiro Mundo Riscos e tentações crescem e tropeçam na constatação a propósito desse Pepetela de que são os modelos do Primeiro Mundo os padrões aos quais recorre o escritor deste Mundo Número Três quando se debruça sobre sua folha em branco Pois é Há que dizerse no entanto que se Ngunga vem na esteira de vários romances educativos ocidentais ele também ostenta algumas feições autônomas A começar pela linguagem que é simplíssima nada de períodos longos de parágrafos maciços de subordinações encadeadas Em vez disso muitos diálogos e quando é necessária a intervenção do narrador o registro dela não difere do de seus narrados Tratase de uma linguagem que guarda marcas fortes da oralidade das narrativas populares sugerindo uma recepção do texto que se afasta da recepção livresca escolar ocidental e que dá sentido emergencial e menos pitoresco àquele modo de produção sob as árvores e sob o sol Reforçando a oralidade os capítulos são sempre muito curtos e frequentemente se fecham de forma lapidar com frases que evocam fórmulas rituais de encerramento de narrativas populares Assim foi o parto do nascimento de Lumocongo o primeiro filho de Cayardo e Maria p 9 Foi assim que Ngunga deixou a Seção e seus amigos Voltaria a visitálos prometia ele com vontade de chorar p 27 É através dessa preservação da oralidade que o livro de Pepetela afastase dos modelos europeus e recupera seu horizonte de cultura terceiromundista em cujo contexto começa a esgarçarse a hegemonia dos já aludidos traços europeus e ocidentais de seus modelos literários De Amicis G Bruno e mesmo nosso Olavo Bilac não conhecem meiostons O quadro de valores que suas narrativas endossam e propagam tem a nitidez das ortodoxias acima de qualquer suspeita bem e mal certo e errado adulto e criança são mundos estanques que jamais se interpenetram No Pepetela de Ngunga ao contrário a nuance o meiotom e a ambigüidade estão presentes o tempo todo fecundando o texto Idade e orfandade do protagonista que já se viu serem ponto comum entre o romance angolano e obras de outras tradições culturais são tratadas diferentemente por Pepetela No livro de Bilac por exemplo a condição infantil é sistematicamente reprimida pois é rebelde às exigências do real social e histórico sendo jogo prazer e brincadeiras sempre controlados em nome de um valor mais alto que se alevanta o dever o trabalho o estudo Mais ainda não é sempre o paternal narrador bilacquiano quem em Através do Brasil comete o infanticídio o irmão mais velho assume o papel repressor o que sugere que em projetos pedagógicos bemsucedidos o abafamento da infância acaba incorporado pela própria criança O fato de os irmãos serem dois tanto no livro francês quanto no brasileiro como que facilita a escalonada e paulatina substituição do sercriança pelo sergentegrande cabendo ao primogênito iniciar o caçula nas sucessivas e dolorosas fases de maturidade É nesse aspecto que o solitário Ngunga ganha muitos pontos em comparação a outros heróis juvenis ocidentais Na voz de seus vários interlocutores Ngunga ora é criança demais ora demasiadamente crescido para ser dono de sua vontade Assim manipulada a condição infantil tornase presa de fácil dominação Mas Ngunga resiste e nessa sua resistência traço original do livro em face dos similares europeus e brasileiros está o traço maior de solidariedade a que esse livro convida seus leitores Em seu longo itinerário de conquista da maturidade que nas circunstâncias específicas angolanas equivale a tornarse militante na luta pela libertação do país Ngunga preserva a noção de liberdade individual e lhe dói sempre a injustiça de um mundo organizado e gerido por adultos autoritários mesmo quando esses adultos são pioneiros eou guerrilheiros Todos os adultos eram assim egoístas Ele Ngunga nada possuía Não tinha uma coisa era essa força dos bracilos E essa força ele cedia a aos outros trabalhando na lavra para arranjar o com da dos guerrilheiros O que ele tinha oferecia Era generoso Mas os adultos Só pensavam neles Até mesmo um chefe do povo escolhido pelo Movimento para dirigir o povo Estava certo p 15 Mavinga foi ter com os mais velhos Ngunga ficou a olhar o velho Cripoya muito vaidoso ao lado do Comandante que ao KaYui Jais exploradores todos eles e nomeados pelo Movimento para dirigir o povo p 54 A defesa da infância se faz explicitamente no elogio de Ngunga ao professor União O camarada professor é capaz de ser ainda um bocado criança não sei Por isso ainda é bom Mas também é mau Com o Crívula foi mau Não devia mordêlo embora p 30 A desconfiança em face do mundo adulto transparece também no pouco entusiasmo com que Ngunga encara a escola Em conversa com o Comandante Mavinga o ideal escolar adulto e ocidental na origem não parece seduzir muito o menino que defende o aprendervivendoefazendo em lugar da aprendizagem institucionalizada da escola Ngunga tu és pequeno demais para ser guerrilheiro Aqui já te disse que não podes ficar Andar só como fazes não é bom Um dia vai acontecerte uma coisa má E não estás a aprender nada Como Estou a ver novas terras novos rios novas pessoas Cigo o que falam Estou a aprender Não é a mesma coisa Numa escola aprendes mais E assim vais conhecer o professor Já viste um professor p 20 Para todos os efeitos o ponto de vista do comandante e do narrador leva a melhor e Ngunga vai efetivamente para a escola A lição que ele lá aprende entretanto é a lição de solidariedade e lealdade ficando a alfabetização para mais tarde e assim mesmo só tolerada como instrumento para a causa maior a da libertação de Angola se soubesse escrever podia meter um bilhete na cela de União e combinarem juntos a fuga Mas pouco se interessara por aprender só gostava mesmo de passear Pela primeira vez Ngunga deu atenção ao professor que lhe dizia que um homem só pode ser livre se deixar de ser ignorante p 37 Também ao contrário dos romances de formação ocidentais o final do livro de Pepetela não coincide com nenhuma restauração universal de equilíbrio Ngunga não recupera os pais happyend de Através do Brasil em que era falsa a notícia da morte do pai dos meninos e tampouco seu país consolidase como independente Ngunga como protagonista desaparece de cena e as falas finais do livro são do narrador que se dirige diretamente ao leitor exortandoo a descobrir e cultivar o Ngunga que cada um tem dentro de si O desaparecimento de Ngunga é voluntário e como solução narrativa aproximase muito do antológico desaparecimento de Ceci e Peri no olho da palmeira o menino desaparece na selva e desaparecendo ressurge como mito O que não sendo uma rima pode bem ser uma solução Solução narrativa que textualiza com os impasses vividos pela literatura angolana leitura escrita e escola Práticas e instituições impostas pelo colonizador a partir de certo ponto elas tornamse essenciais para a libertação do jugo colonial cabendo à literatura expressão simbólica a tal passagem e a nós profissionais da leitura desenvolvimento das categorias críticas que dêem conta de tal movimento favorecendo a elaboração de uma teoria e de uma história da leitura específica das regiões do planeta onde ela chegou na esteira de projetos coloniais LOBATO UM DOM QUIXOTE NO CAMINHO DA LEITURA Já viste Reinações de Narizinho Vou falar na editora que te mandem Dei também Alice no País das Maravilhas e Robinson tudo na mesma semana E ontem falei no Rádio com a filhinha do Octales a Cleo uma menina que é um encanto de desembaraço Dialogamos inventadamente sobre o que nos veio à cabeça e todos gostaram A década que se abre em 1930 é difícil para Lobato que de Nova York em 91 desabafa com a irmã declarandose encalacrado em dívidas Hás de crer que acabo de cometer um dos maiores erros de minha vida Entrei no Stock Exchange com todos os recursos que pude reunir certo de fazer fortuna Errei o bole Em vez de ganhar já perdi metade do meu capital e estou ameaçado a perder o resto e ainda devendo alguma coisa Estou em arranjos com o Octales para vender o resto das ações que tenho na companhia e se isso se der estarei habilitado a recobrar o perdão e talvez sair ganhando Seria uma operação muito difícil meses atrás mas com a escassez absoluta de dinheiro que anda em São Paulo creio que este passo falhe falhando tenho de sair perdendo Em maio do mesmo ano e ainda de Nova York ele anuncia ao amigo Fontoura as providências relativas a suas precárias finanças e que se traduzem em proposta feita à editora Nacional escrevi ao Octales propondo uma série de novos livros infantis que ele onde quiserco publicar em troca de ele me custear os despesos da edição do Egger Caso ele aceite irão conversar com você para combinar o pagamento do que já forneceste a Teca Minha moeda sempre o livro sic e vamos ver agora se realizo a moeda os livros em estado potencial que tenho na cabeça O envolvimento de Lobato retornado ao Brasil em 1931 com a campanha do petróleo prolonga o tempo das vacas magras e faz com que sua sobrevivência dependa cada vez mais dos livros infantis que escreve e das traduções que faz Destacamse aqui as obras cuja temática por interessar à escola ou por desfrutar do prestígio dos clássicos garante circulação ampla e recompensa financeira para um quase insolvente Lobato que em novembro de 1933 anuncia a Anísio Teixeira Emília no país da gramática Estou escrevendo Emília no país da gramática Está estupendo Indo agora fiz a entrevista de Emília na qualidade de repórter de Grito do Picapau Amarelo um jornal que ela vai fundar no sítio com o Venerabilíssimo Verbo SER que ela trata respeitosamente de Vossa Serenícia Está tão persistente Anísio que você não imagina Em 15 de agosto do ano seguinte em carta a Viana Lobato alude ao sucesso do livro A minha Emília está realmente um sucesso entre as crianças e os professores Basta dizer que tive uma edição inicial de 20000 e o Octales está com medo que não aguente o resto do ano Só aí no Rio 4000 vendidas num mês Mas o crítico Secco não percebeu o significado da obra Vele como significação de que há caminhos novos para o ensino das matérias obstruídas Numa escola que vi sei a criançada me rodeou com grandes festas e me pediram Faça a Emilia do país da aritmética Esse pedido espontâneo esse grito dalma da criança não está indicando um caminho O livro como o temos tortura os pobres crianças e não entanto poderic diverílos como a gramática da Emília o está fazendo Todos os livros sadíam tomar se uma pândega uma terra infantil A química a física a biologia a geografia prestamse imensamente porque ideam com coisas concretas O mais difícil era a gramática e a aritmética Fiz a primeira e vou tentar a segunda O resto fica canja Em carta anterior a Godofredo Rangel 26630 Lobato já insistia na literatura como fonte de renda especificando a literatura infantil ao lado do jornalismo como gênero economicamente rentável rentabilidade ainda mais assegurada pela adesão ao gênero paradidático à tradução e à adaptação sabe que estou em véspera de ressuscitar literariamente A famosa comissão vem vindo e terei de ocuparme em livro ou jornal Só me volto para as letras quando o bolso se esvazia e agora em vez de pegar milhões de dólares perdi alguns milhares no bolso Resultado literatura around the corner E se não me sai logo uma tacada em que tenho grandes esperanças boto livro Rangel boto jornalismo boto literatura infantil mas se sai esbolada então adeus Minerva Sabe que concentrei um Robinson Octales encomendome e fixio em cinco dias um recorde 183 páginas em cinco dias inclusive um domingo cheio de visitas e partidas de xadrez Na carta além da sugestão de que certos gêneros literários são mais rentáveis Lobato alude indiscretamente a um modo de produção pouco recomendável livro feito entre duas partidas de xadrez e uns dedos de conversa Esse modo de produção atabalhoado em que tempo ou texto é dinheiro é também mencionado em carta a Rangel de 16 de junho de 1934 Tenho empregado as manhãs a traduzir e a um globo Imagine só a batedeira de janeiro até hoje Grimm Andersen Percuft Contos de Conan Doyle O homem invisível de Wells e Polyanna moça O livro do jungle E cinco Fiz Emília no país da gramática Tudo isso sem faltar ao meu trabalho diário no CIO Petróleos do Brasil com amiudadas visitas ao poço do Aracuaú Positivo mente não sei explicar como procuro lenite sem atropelar meu trem normal de vida Assim na década de trinta Lobato antecipa a carência de livros paradidáticos tal como os conhecemos hoje E ele que já tinha temperado a mão em História do mundo para crianças 1933 dedicase a partir de 35 a várias matérias do currículo escolar a Aritmética de Emília é de 1935 mesmo ano da Geografia de Dona Benta e da História das invenções Vêm em 1937 os Serões de Dona Benta e O poço do Visconde obras em que o mesmo projeto informativo que norteia seus paradidáticos coexist e com o projeto político que custou não poucos dissabores a Lobato entre os quais o ser desadotado em escolas católicas desastre terrível para quem tem nos livros o ganhapão da família É pois a década de trinta que vê um empobrecido Lobato apontando lápis e planejando livros para sobreviver E foi provavelmente no bojo de um de seus projetos previamente combinados com Octales da Companhia Editora Nacional que em 1936 lança seu D Quixote das crianças Nesse livro encontrase um projeto de leitura de tradução e de adaptação É o leitor de hoje em particular o educador preocupado com questões de leitura pode encontrar nesse Quixote respostas para questões que permeiam seu diaadia escolar e que abrangem desde a crucial pergunta que livro indicar até a questão de os clássicos serem ou não adequados a tal ou qual faixa etária Pois Lobato encara e discute tudo isso A inadequação dos clássicos no original para um público culturalmente imaturo já fica sugerida na engenharia necessária para tornar portátil o D Quixote passo primeiro para tornálo legível O texto relata que Dona Benta no início deste mesmo dia começou a ler para os meninos a história do valente fidalgo da Mancha Como fosse livro grande demais um verdadeiro martírio a 1 de peso de uma arroba Pedrinho teve de fazer uma armação de tábuas que servisse de suporte Diante daquela imensidade sentouse Dona Benta com a criançada em redor Tratavase de um Cervantes em tradução portuguesa do século passado e a inadequação entre obra e público ultra passa as dimensões objetuais do livro em questão e textualizase o teor clássico castiço e castilho da linguagem assusta os ouvintes não obstante a propaganda de Dona Benta Dona Benta começou a ler Num lugar da Mancha de cujo nome não quero lembrarme vivia não há muito um fidalgo dos de lança em cabido adarga antiga e galgo corredor Crê exclamou Emília Se o livro inteiro é nessa perfeição de língua até logo Vou brincar de esconder com o Quindim Lança em cabido adarga antiga galgo corredor Não entendo estas viscondezas não p 11 Ameaçada de perder seu público Dona Benta recua e concilia esta obra está escrita em alto estilo rico de toques as perfeições e sutilezas de forma razão pela qual se tornou clássica Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária em vez de ler vou contar a história com palavras miúdas Isso berrou Emília Com palavras suaves e de tó Nastácia e muitas também e de Narizinho e de Pedrinho e de Robicó Os viscondes que falem arrevazado lá entre eles Nós que não somos viscondes nem viscondessas queremos estilo de clara de ovo bem transparente que não dê trabalho para ser entendido p 12 A idéia dessa leitura ao alcance de todos não é novidade na obra de Lobato Já em seu livro inaugural as Reinações de Narizinho ele encenara no sítio do Picapau Amarelo a propósito de Pinocchio proposta de leitura bastante similar A roda de Dona Benta ler era boa Lia diferente dos livros Como quase todos os livros de crianças que há no Brasil são muito sem graça cheios de termos do tempo de onça ou só usados em Portugal a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do Brasil de hoje onde estava por exemplo lume lá fogo onde estava janela lia varanda E sempre que dava com um botouo ou comeuo lia botou só comeu só e a coisa é dobro mais interessante Como naquele dia os personagens eram da Itália Dona Benta começou a arredar a voz se um italiano galinheiro que às vezes aparecia no sítio em procure de frangos e assim o Pinocchio inventou uma vizinha de taquara rechada que era direitinho como o boneco devia figurar11 11 Reinações de Narizinho 7 ed São Paulo Brasiliense 1957 p 199200 Dona Benta leitora experiente toma a si a tarefa de apontar à sua platéia os elementos necessários ao fortalecimento da vcrrossimilhança da compreensão do envolvimento Ao narrar por exemplo o encontro de D Quixote com o jovem chicoteado pelo amo ela sugere categorias pelas quais sua audiência pode reconhecerse na personagem Num dique estava no ponto de onde vinher os gritos Que via lá um menino assim um pouco maior do que Pedrinho agarrado a um tronco de árvore e a receber uma tremendo sova de correia p 28 Assim pelos expedientes de sua leitura Dona Benta favorece o envolvimento que amarra o leitor ao texto e o envolve Os resultados não se fazem esperar Ao fim do episódio quando Dona Benta relata a ironia com que o amo diz ao menino espancado vai agora atrás do tal defensor dos inocentes e pedelhes que te cure o lombo Ah Ah Ah p 30 Narizinho não se contém E o menino foi indagou Narizinho dobrada com a brutalidade co homem p 31 dando a deixa para Pedrinho Pois eu ia disse Pedrinho Fugiu e saiu pelo mundo até encontrar de novo D Quixote e fazêlo para rachai os balancetes de disco e brincos com a lança p 32 O episódio cala fundo em todos inclusive em Emília que sonha que o malvado patrão do André apareceu no sítio p 45 O viver vidas alheias promessa sedutora e irresistível da leitura de ficção é aqui encenado à maravilha não faltando sequer a ruptura do envolvimento ou seja o retorno ao real no caso patrocinado por Emília Ao fim do episódio a boneca chama a atenção de Pedrinho para o fato de que rachai burrilamontes de alto a baixo só com a espada uma vez que lança é só para espetar Multiplicamse assim passagens nas quais Lobato cifra questões de leitura a partir de situações de leitura vividas pelas personagensleitores e que podem conjugiar os leitoresleitores De leitores de papeletinta a leitoresdecarneeosso o projeto se encorpa ao longo do livro reforçandose em uma confissão de Pedrinho relativa a uma leitura aparentemente feita sem a interferência de adultos ia se tranque em que caiu em casa aquele livrinho da história de Carlos Magno e dos doze pares da França Comecei a ler e fui me esquentando me esquentando até que não pude mais Minha cabeça virou fiquei assim como o de D Quixote Convencime de que eu era o próprio Rodão Fui lá do quarto das cactulações e tirei aquele espada que pertenceu ao velho tio Encerrabodes e moleien no redoio bem amoladinha E quando a senhora sou com tia Nastácia e Narizinho para visitar o compadre Teodorico ah que regiclo Corri co um haral e rác vi neneum pé de milho na minha frente Só vi mouros Ah Caier cima deles de espada que foi uma beleza Destroceios completamente Não fico um só Que coisa gostosa Nastácia gritou Dona Benta Venho ver quem nos escangalhou o milhoal Foi Pedrino p 1023 À semelhança do que sucedera por ocasião dos serões nos quais Dona Benta contava às crianças a história de Peter Pan cuja tradução adaptada de Lobato é de 1930 quando a sombra cortada de Peter Pan sugere a Emília picotar a sombra de tia Nastácia também nessa D Quixote a boneca não fica imune à loucura do protagonista Emília continuava e deu viracambotas Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse que era lança e começou a espetar todo o mundo E botou um cizneiro de atá no cabeca dizendo que era o elmo de Mambrino Por fim mentou re Visconde dizendo que era Rocinante p 154 Dona Benta foi clássica pela panela e de fato viu os cístriplulas que Emília e tal Robicó estava fazendo no quintal Vestidinha de cavaleiroandante toda cheia de armaduras até o corno e de elmo na cabeça avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste fazendo a bicharada fugir cum pavor no maior griterio A fé é galo que era um canjão valente correra e esconderse dentro de um ciscão Dona Benta gritoulhe várias vezes que parasse com aquilo Tudo inútil A aconteceu fora tomada dum verdadeiro delírio de heroísmo p 1801 Tampouco falta ao livro a idéia de que ouvir a história de D Quixote não é a mesma coisa que lêla e lêla na íntegra cabendo também a Dona Benta chamar a atenção das crianças para a diferença entre originais e suas adaptações É uma lástima disse Dona Benta eu estar conhecendo só a parte aventuresca da história do cavaleiro do Marco Um dia quando vocês crescerem e tiverem a inteligência mais aberta pela cultura haveremos de ler o outro inteira nesta tradução dos dois viscondes que é ótima p 212 A tradução em questão é a do visconde de Castilho e visconde de Azevedo apresentados por Dona Benta no começo dos serões O visconde de Castilho foi dos maiores escritores da língua portuguesa É considerado um dos melhores clássicos isto é um dos que escreveram em estilo mais perfeito Quem quiser saber a português a fundo deve lêlo e também Herculano Camilo e outros p 11 Para quem estranha essa adesão consentida aos clássicos o prosseguimento da conversa sobre adaptação traz outros elementos de surpresa prosseguindo a defesa da superioridade da leitura de obras integrais Dona Benta discute o desencontro entre a tradução de Castilho e a recepção dela pelo pessoal do sítio É que ela está escrita em português que já não é bem o nosso de agora Hoje usamos a linguagem mais simplificada possível como o de Machado de Assis que é o nosso grande mestre Os escritores portugueses que chamamos clássicos usavam uma forma menos singela mais cheia de termos próprios mais rica mais interpolada p 22 Mais adiante um pouco e face à geral condenação da norma culta pela audiência do sítio que através da boca de Emília acusa o estilo clássico de dar dor de cabeça e constituir uma charada Dona Benta explica Para vocês meus filhos que estão começando a lidar com a língua já eu entendo o período perfeitamente sem nenhuma dificuldade p 213 A relação de Dona Benta com a cultura é assumidamente uma relação mais complexa mais aprofundada mais antiga e que assim se proclama sem falsos escrúpulos de um igualitarismo enganoso O que parece sugerir que entre um iniciador de leitura e os iniciandos ou entre um professor e seus alunos não se deve estabelecer nenhum nivelamento por baixo Dona Benta como todo e qualquer leitor competente aliás como todo e qualquer usuário competente da língua escrita e oral é poliglota isto é transita com facilidade do estilo clássico de Castilho para o estilo coloquial de sua platéia Mas tem plena consciência de que ambas as modalidades são diferentes e que sua responsabilidade como iniciadora de jovens na prática de leitura é leválos até o classicismo de Castilho Em outra passagem do livro vêm à tona as expectativas da escola em face da leitura dos jovens Conversando com Emília que atribui sua crise de loucura à revolta contra tanta besteira que há no mundo Dona Benta retruca Lá vem você com as palavras plebéias Muitas professoras Emília criticam esse seu modo desbocado de falar Besteira Isso não é palavra que uma bonequinha educada pronuncie Use expressão mais culta Diga por exemplo rotice p 195 Como os anos trinta são o tempo em que Lobato usa da pena para sobreviver o quanto essa sobrevivência depende da aprovação das senhoras professoras é fácil de imaginar a partir do que vivemos hoje quando a escola decreta se a personagem do romance juvenil pode ou não fumar maconha pode ou não ficar embriagada se pode dizer merda ou deve dizer droga A completa conversão de Emília que ao fim do episódio adere a formas menos quixotescas de protesto parece atestar já ao tempo de Lobato a forte dependência da literatura juvenil da escola Assim nesse D Quixote das crianças o leitor encontra material bastante rico para reflexão sobre questões de leitura de leitura dos clássicos da adequabilidade de certas linguagens a certos públicos do papel a ser representado pelo adulto responsável pela iniciação dos jovens na leitura e mais miudezas Naqueles pacatos anos trinta ainda sem roteiros de leitura fichas de atividades sugestões de trabalhos sem notas de rodapé nem glossários Dona Benta patrocina a seus ouvintes as experiências e as discussões de leitura necessárias ao amadurecimento deles fazendo a ponte entre algumas questões nossas contemporâneas diante de leitura escrita e escola e o encaminhamento que tais questões tiveram em outro momento de nossa história cultural TECENDO A LEITURA Um galo sozinho não tece uma manhã ele precisará sempre de outros galos De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã desde uma teia tênue se vá tecendo entre todos os galos O poema de João Cabral sugere uma bela concepção de leitura os galos que tecem a manhã evocam os leitores que tecem o significado dos textos com que se deparam ao longo da vida Tecendo a manhã conota artesanato solidariedade e diálogo construindo uma metáfora que sublinha aspectos relevantes para uma reflexão sobre o papel da leitura numa sociedade democrática Fica pois a tecelagem prática ancestral de fiar de tingir e de urdir os fios de entrelaçálos em tecidos matriz metafórica da leitura Ao longo da história a arte de tecer dessemboca nas hoje barulhentas indústrias têxteis onde o antigo tecelão por participar apenas de uma das etapas da produção perde o sentido da totalidade tanto do objeto que produz como do processo pelo qual o objeto é produzido À semelhança da história da tecelagem a modernização ininterrupta do modo de produção do livro a partir de Guten 1 Versão anterior deste texto constituiu palestra no 2º COLE no ano de 1983 em Campinas sendo posteriormente sido publicada na revista Leitura Teoria e Prática ano 3 n 3 p 36 1984 2 Melo Neto João Cabral de Tecendo a manhã In Poesias completas 2ª ed Rio de Janeiro J Olympio 1975 p 19 105 borg tornou possível e mesmo necessária a massificação da leitura trazendo para o horizonte dela o risco de alienação de fracionamento e esgarçamento do significado do texto e do ato de ler A atividade de leitura que em suas origens era individual e reflexiva em oposição ao caráter coletivo volátil e irrecuperável da oralidade de poetas e contadores de histórias transformouse hoje em consumo rápido do texto em leitura dinâmica que para ser lucrativa tem de envelhecer depressa gerando constantemente a necessidade de novos textos O ato de ler foi de tal forma se afastando da prática individual que a tarefa que hoje se solicita de profissionais da leitura como professores bibliotecários e animadores culturais é exorcizarem o risco da alienação muito embora eles possam acabar constituindo elo a mais na longa e agora inevitável cadeia de mediadores que se interpõem entre o leitor e o significado do texto Esse papel de intermediário pode afastar da prática docente o artesanato que a leitura exige O que se reserva aos professores de hoje a partir inclusive de sua formação profissional é a divulgação de livros a decifração de significados a intermediação e o patrocínio do consumo de textos impressos E só muito incidentalmente e como que por acréscimo a iniciação de jovens na leitura talvez porque em nossa tradição cultural a leitura como prática coletiva só exista muito esgarçadamente Tomar consciência das ambiguidades desse papel pode ser o primeiro passo para mudanças qualitativas nos projetos e práticas de leitura particularmente as escolares que ocorrem em diferentes circuitos da cultura brasileira a começar da ruptura da cadeia de alienações em que se insere a prática escolar da leitura no Brasil de hoje A literatura constitui modalidade privilegiada de leitura em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados Mas se a leitura literária é uma modalidade de leitura cumpre não esquecer que há outras e que essas outras desfrutam inclusive de maior trânsito social Cumpre lembrar também que a competência nessas outras modalidades de leitura é anterior e condicionante da participação no que se poderia chamar de capital cultural de uma sociedade e conseqüentemente responsável pelo grau de cidadania de que desfruta o cidadão Numa sociedade como a nossa em que a divisão de bens de rendas e de lucros é tão desigual não se estranha que desigualdade similar precise também à distribuição de bens culturais já que a participação em boa parte destes últimos é mediada pela leitura habilidade que não está ao alcance de todos nem mesmo de todos aqueles que foram à escola Mas ler no entanto é essencial E não apenas para aqueles que almejam participar da produção cultural mais sofisticada dos requintes da ciência e da técnica da filosofia e da arte literária A própria sociedade de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagem escrita e chega por vezes a transformar em consumo o ato de ler os rituais da leitura e o acesso a ela Assim no contexto de um projeto de educação democrática vem à frente a habilidade de leitura essencial para quem quer ou precisa ler jornais assinar contratos de trabalho procurar emprego através de anúncios solicitar documentos na polícia enfim para todos aqueles que participam mesmo que à revelia dos circuitos da sociedade moderna que fez da escrita seu código oficial Mas a leitura literária também é fundamental É a literatura como linguagem e como instituição que se confiam os diferentes imaginários as diferentes sensibilidades valores e comportamentos através dos quais uma sociedade expressa e discute simbolicamente seus impassos seus desejos suas utopias Por isso a literatura é importante no currículo escolar o cidadão para exercer plenamente sua cidadania precisa apossarse da linguagem literária alfabetizarse nela tornarse seu usuário competente mesmo que nunca vá escrever um livro mas porque precisa ler muitos Como a manhã que no poema de João Cabral se perfazia pelo entrelaçamento do canto de muitos galos também a leitura principalmente a literária parece constituir um tecido ao mesmo tempo individual e coletivo Cada leitor na individualidade de sua vida vai entrelaçando o significado pessoal de suas leituras com os vários significados que ao longo da história de um texto este foi acumulando Cada leitor tem a história de suas leituras cada texto a história das suas Leitor maduro é aquele que em contato com o texto novo faz convergir para o significado deste o significado de todos os textos que leu É conhecedor das interpretações que um texto já recebeu é livre para aceitálas ou recusálas e capaz de sobrepor a elas a interpretação que nasce de seu diálogo com o texto Em resumo o significado de um novo texto afasta afeta e redimensiona o significado de todos os outros Desse ponto de vista a história da literatura de um povo é a história das leituras de que foram objeto os livros que integram o corpus dessa literatura No entanto se o texto literário mais do que qualquer outro oportuniza leituras divergentes há também o risco de que o peso e a autoridade das leituras de que ele foi objeto ao longo da história silenciem as outras tantas leituras que ele virtualmente pode e pode suscitar em outros leitores Nesse sentido história e teoria literárias quando transformadas em argumento de autoridade quer como justificativa para a inclusão de determinado texto ou autor no currículo escolar quer como endosso da interpretação deste ou daquele texto podem ser paralisantes Entre a interpretação sancionada pela comunidade intelectual e a interpretação livre do leitor anônimo reside o equilíbrio difícil em que precisa moverse o professor de leitura e de literatura Apostando assim numa concepção de leitura que a vê ao mesmo tempo como instituição e como prática coletiva parece que se pode privilegiar a reflexão sobre a natureza e o percurso social da leitura deixando em plano secundário discussões sobre metodologias e estratégias que em nome dela leitura costumam ser incorretamente vistas como os elementos determinantes do famoso e reclama damente ausente interesse dos jovens pela leitura Se algumas metodologias e estratégias propostas para o desenvolvimento da leitura parecem enganosas por trilharem caminhos equivocados o engano instaurase no começo do caminho a partir do diagnóstico do declínio ou da inexistência do hábito de leitura entre os jovens Espalhada em hábito a leitura tornase passível de rotina de mecanização e automação semelhante a certos rituais de higiene e alimentação só para citar áreas nas quais o termo hábito é pertinente Tanto o diagnóstico ausência ou declínio do hábito de leitura quanto a terapia estratégias de motivação para a lei ÍNDICE ONOMÁSTICO Abreu e Lima 19n Abril Educação editora 12n 13 14 Academia de Literatura Infantil e Juvenil 68 Ackroyd Roger 34 Aguerra Carlos Artur 63 Alencar José de 57 61 81 82 Alice no País das Maravilhas 94 Alma infantil 41 Alvarez Padre 61 Amaral Emília 15n Amicis Edmond de 23 88 90 Andersen 96 Andrada Marlim Francisco Ribeiro de 53 Andrade Carlos Drummond de 23 51 66n Andrade Jacinto Freire de 54 55 Andrade M 49n Andrade Mário de 29 Andrade Thales de 69 Aríes Philippe 26n Aritmética da Emília 97 Assaré Patativa do 62 63 65 Assis Machado de 8 22 36 61 77 80 81 82 83 84 85 90 102 O Ateneu 58 59 60 Através do Brasil 69 88 91 93 As aventuras de Ngunga 86 88 90 91 Azevedo visconde de 102 Babo Lamartine 52 Bakhtin M 31 Barbosa José Juvêncio 63n Barbosa Rui 55 56 61 65 Barcelos Senador Ramiro 83 Barthes Roland 11 Bernardes P Manuel 56 Bernardes Maria Thereza Caruby Crescenti 19 Bilac Olavo 14 23 41 42n 61 62 66 67 69 88 90 91 Bolívar Simón 19 Bomény Helena Maria Bousquet 63 Bonfim Manuel 69 88 Borges Abílio César barão de Macaúbas 20n 58 59 60 Bosi Ecléa 60n Branco Camilo Castelo 102 Bruno G 88 90 Caminha Adolfo 17n Canôes Luís de 11 22 Carvalho Filisberto de 63 Carvalho Laerte Ramos de 61 Casamento na arrabaldé 82 Castilho visconde de 102 103 Ceci e Peri 93 CELD Comissão Estadual do Livro Didático 64 CELIJU Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil 68 Cervantes Miguel de 97 99 Chardin Jean Baptiste Siméon 44n CNLD Comissão Nacional do Livro Didático 64 Collodi Carlo 23 COLTEF Comissão Nacional do Livro Técnico e Didático 64 Conteúdo Conan Doyèr 96 Contos fluminenses 77 80 Coutinho Adriano 77n Coutinho Lino 54 Cunha Fausto 71 Cunha Maria Antonieta Antunes 42n Cure 23 88 Damasceno D 47 Dean James 28 Deus João de 21n Diário do Rio de Janeiro 82 Dietzsch Mary Julia M 19n Dom Casmurro 61 Dom Quixote das crianças 97 101 103 Doyle A Conan 96 Eco Umberto 31 77n Emília no país da gramática 95 96 A escrava Isaura 108 FAF Fundação de Assistência ao Estudante 68 Faria João Roberto 81n FENAME Fundação de Material Escolar 64 Fernão Capelo Gaivota 108 Ferreira Octales Marcondes 94 95 96 97 Fish S 43 FLE Fundação para o Livro Escolar 64 68 Fontoura da Silveira Cândido 94 Fraccarolli Lenira 28 França Dr A F 19n Frasséo Manuel José Pereira 20n 52 53 55 61 65 Freire Ana Maria Araújo 60n Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil 68 O gênio da crime 23 71 Geografia de Dona Benta 97 Gibson Walter 33n Gomes Antônio Carlos 251n Grimm 96 Guimarães Sonia Dantas Pinto 63 Gutenberg 105 Hallewell Lawrence 67n Herculano Alexandre 102 História das invenções 97 História do mundo para crianças 97 História social da criança e da família 26n O homem invisível 96 Hollywood 27 Inácio Padre 20 INL Instituto Nacional do Livro 64 Incidente em Antares 16 Infância 59 60 Iracema 32 108 Jakobson Roman 43 44 Jansen Carlos 23 57n João VI D 57 Jornal das Famílias 80 Joyce James 77 Júlia Francisca 41 42n Khede Sonia S 67n Koster Henry 57 58n Laemmert editora 23 Lajolo Marisa 15n 19n 42n 56n 57n 67n 69n 70n 79n 85n 88n Lancaster José 19 Lima Alceu Amoroso 42 O livro da jungle 96 O livro de Berenice 69 Lobato Monteiro 8 23 94 95 96 97 98 99 100 101 103 Luccock John 58 Lucena Pe João de 56 Macaúbas barão de v Abílio César Borges Macedo Joaquim Manuel de 82 Marinho João Carlos 23 69 71 Marins Francisco 23 A Marmota 80 Martins Maria Helena 19n Mártires Frei Bartolomeu dos 54 Meireles Cecília 40 41n 45 47 50 Melhoramentos editora 30 31 58 Melo Neto João Cabral de 104 106 Memórias póstumas de Brás Cubas 16 80 85 Mendes Odorico 51 O menino do dedo verde 108 Miss Dollar 77 80 84 85 Moacir Primitivo 53 Moderna editora 29 Montalc Eugenio 77 Morais L M 49n A moreninha 108 MPJA Movimento Popular pela Libertação de Angola 86 Nacional editora 95 97 Nunes Cassiano 95 Octales v Octales Marcondes Ferreira Oliveira João Batista Araújo e 63 64 Pepetela José 8 86 87 88 89 90 91 92 O pequeno príncipe 108 Pereira Carlos de Aquino 57n Perrault Charles 22 23 89 96 Pessoa Fernando 12 13 Peter Pan 101 Le philosophe lisant 44n Pinocchio 23 98 Pinto Fernão Mendes 56 O poço do Visconde 97 Poesias infantis 23 41 A política do livro didático 63 64 Polyana moca 96 Pompéia Raul 58 59 60 65 Presley Elvis 28 Quadrilha 23 Quental Antero de 87 Ramos Graciliano 7 59 60 65 Rangel Godofredo 96 Reinações de Narizinho 94 98 Revista Brasileira 83 Robinson Crusoe 94 Romero Sílvio 56 57n 61 Rosa João Guimarães 7 65 Rosa Noel 52 Rousseau JJ 23 Rui Manuel 86 Saldiva Associados 13 Sampaio Bittencourt 25n Saudade 69 A Semana 83 Serões de Dona Benta 97 Sheldon Sidney 36 Silva E Theodoro da 15n 18n Silva Júlio da 41 42n Soares Magda B 18n Sousa Frei Luís de 56 Souza J Galante de 80 Steiner George 44 Tácito 83 Távora Franklin 82 Teixeira Anísio 95 Tompkins Jane 33n Le tour de la France par deux garçons 88 Veríssimo José 56 O vestido de Lazara 45 46 48 49 Viana Francisco José de Oliveira 95 Vidas secas 7 Wells H G 96 Zillcman Regina 15n 18n 19n 42n 56n 57n 69n 70n 79n Zola E 17 mundo da leitura na escola Seus tópicos essenciais são o livro didático a literatura infantil e juvenil as práticas escolares de leitura o currículo a formação e o preparo dos professores Em análises consistentes derivadas de grande capacidade teórica e de longa prática de observação Marisa Lajolo sempre mediante exemplos concretos questiona uma série de valores e funções atribuídos à literatura infantojuvenil na escola Esse questionamento no entanto não procura fechar portas e sim abrilas trata de repropor soluções e práticas Desse modo a autora avança sugestões e estimula a reflexão de todos os interessados em tema e prática tão importantes Na segunda parte do livro a leitura do mundo ocupa o primeiro plano graças à análise de textos literários que investigam a leitura o leitor a escola a iniciação à leitura É assim que Miss Dolar de Machado de Assis As aventuras de Ngunga de José Pepetela e D Quixote das crianças de Monteiro Lobato trazem iluminações exemplares sobre as questões discutidas na primeira parte Essa concatenação é mais uma das qualidades também exemplares de Do mundo da leitura para a leitura do mundo Sua análise do universo cultural brasileiro incorpora dados e situações econômicosociais sem incorrer em simplismos ou reduções Neste livro que versa sobre o amplo sentido do termo leitura o estilo da autora claro e elegantemente descontraído unese ao vigor de sua análise para formar um todo isto é um texto que convence e conquista Há no livro Do mundo da leitura para a leitura do mundo de Marisa Lajolo apontamentos de profissionais da educação que afirmam que existe uma precariedade em relação à literatura no meio de jovens Nesse sentido considerando essas ideias como verdadeiras cabe analisar as possíveis motivações dessa dificuldade por exemplo a mediação frágil entre as obras e os leitores Nesse sentido Marisa Lajolo traz durante sua fala no vídeo Leitura suas mediações seus mediadores o conceito de literatura como uma triangulação entre obra público e autores na qual esses três setores interagem mutuamente Para essas relações acontecerem é necessário que haja mediadores Com isso o professor se configura como um mediador entre obra e público uma vez que tem a função de traduzir ou auxiliar o entendimento daquilo que o autor quer expressar na obra para seus alunos Atualmente a função de elaboração de aulas sobre os textos trazidos para ela é terceirizada sendo exercida pelas editoras Com isso há um script ou seja atividades questões interações movimentações relacionadas à obra para que os professores apliquem em sua sala de aula supondo com isso que esses profissionais muitas vezes não conseguem transformar a leitura em conteúdo de aula Essas aulas prontas são expostas pelos professores para alunos que na maior parte dos casos estão completamente desatentos e desinteressados Dessa forma os profissionais de educação tendem a reclamar da situação sem enxergar no entanto que a maior parcela do problema está na forma com que a leitura é estimulada e estudada nas suas aulas Nesse sentido cabe perceber que há falhas na forma que a escola trata a literatura Aqui Marisa Lajolo traz no seu livro algumas orientações tradicionais do ensino dessa área a contextualização da obra na sua época de escrita e publicação a exposição das principais críticas feitas sobre o livro e por último a inserção do cotidiano do aluno em volta da leitura dos textos Esses tópicos são de extrema importância uma vez que apenas através da execução deles e principalmente da última instrução o ensino da literatura se tornará efetivo Nessa perspectiva a autora defende que as vivências individuais dos alunos as quais o professor muitas vezes não sabe e não tem obrigação de saber podem ser utilizadas para relacionar com o conteúdo lido estimulando a execução de atividades comentários que influenciem essa associação no lugar do uso de provas objetivas por exemplo para que haja uma aprendizagem mais significativa da literatura Com isso concluise que o desinteresse e a desatenção dos alunos em relação ao ensino literário denuncia a falha da forma como ele é executado Logo é necessário que haja a visualização desse problema como um todo não só diante da justificativa de que os estudantes têm preguiça de ler para que mudando a metodologia ele seja resolvido