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ALFREDO BOSI Copyright 1992 by Alfredo Bosi ÍNDICE AGRADECIMENTOS Este livro foi escrito em diferentes momentos O seu ponto de partida está nos cursos de Literatura Brasileira que venho ministrando na Universidade de São Paulo desde 1970 Algumas passagens já saíram em versões que alterei a fundo ou apenas retockei A maior parte dos textos porém achavase inédita Cabeme agradecer à Fundação Guggenheim que me concedeu em 1986 uma bolsa para pesquisar em arquivos de Roma e de Lisboa Sou especialmente grato a amigos que me facilitaram o acesso a obras esgotadas ou raras Helena Hirata Jaime Ginzburg José Sebastião Witter Marcus Vinicius Mazzari Almuth Gréssillon Sandra Teixeira Vasconcelos e Eduardo Portella Na pesquisa iconográfica recebi ajuda solicitada a Maureen Bisilliat Ruy Gama Olivier Toni Cláudio Veiga Pe Pedro Américo Maia Aloysio de Oliveira Ribeiro Emmanol Araújo e Sérgio da Costa Franco A Ariovaldo Augusto Peterlini deixou conselhos de exímio latinista a Dora e José Paulo Pacs o presente de lupas providenciais e Viviana a leitura dos primeiros manuscritos a Hermínia Guedes Bernardini a dedicação com que preparou os originais enfim a Éclêa a generosidade de sempre puro orvalho da alma com que acompanhou todos os passos deste trabalho A B 1 COLÔNIA CULTO E CULTURA O novo é para nós contraditoriamente a liberdade e a submissão Ferreira Gullar COLOCULTUSCULTURA Começar pelas palavras talvez não seja coisa vã As relações entre os fenômenos deixam marcas no corpo da linguagem As palavras cultura culto e colonização derivam do mesmo verbo latino colo cujo particípio passado é cultus e o particípio futuro é culturus Colo significo na língua de Roma eu moro eu ocupo a terra e por extensão eu trabalho eu cultivo o campo Um herdeiro antigo de colo é incola o habitante outro é inquilinus aquele que reside em terra alheia Quanto a agricultura é um segundo plano semântico vinculado à ideia de trabalho A ação expressa neste colo no entanto denota sempre alguma coisa em movimento que passa ou passava a matriz de colônia enquanto estrutura A colonização dá um ar de recomeço e arranca a culturas seculares Mas o novo processo não se esgota na reiteração dos esquemas originais há um foco estrutural de domínio há um acréscimo de força que se investe num designio de conquistador emprestandolhe às vezes um timbre épico de risco e aventura A colonização dá um ar de recomeço e arranca a culturas seculares O outro grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar que sempre as sobredetermina Tomar conta de sentido básico de colo importa não só em cuidar mas também em mandar Nem sempre é verdade o colonizador será a si mesmo como a um simples conquistador entanto buscará passar aos descendentes a imagem do desbravador do povo intitulada ao mesmo pioneiro feriu já Sabese que em 1556 quando já se difundia pela EuropaERTA a lendasover da colonização ibérica decretase na Espanha a proibição do uso das palavras conquistador e conquistadores que se assinal de a sociedade que produzindo o público isto é colonos O surto de poderosos estruturas políticas na Antiguidade foi conforme aquelas verdades complexas imperiais que se seguiram a Roma História como progresso das técnicas e desenvolvimento das forças produtivas Cultura aproximase então de uma distânciae às vezes polemica de cultus O presente se torna como instrumento potencialidade de futuro Acentuase a função da produtividade que requer um domínio sistemático do homem sobre a matéria e sobre outros homens A cultura não se confunde com a manipulação direta dos objetos e do outro com fins práticos vale aqui a distinção universal entre magia e devoção o culto em si na sua pureza enquanto alheio às instâncias de poder que dele se apropriam significa o respeito pela alteridade das criaturas pela sua transcendência o desejo de ultrapassar os confines do próprio ego e vencer com as forças da alma as angústias da existência carnal e finita for permitida uma comparação com o que aconteceu com o idealismo neoplatonico no seu encontro com o cristianismo diria que assim como o Logos precisa fazerse e habitar entre nós para manifestarse e doando pleno aos homens também a razão contemporânea vai a procura da encerramento da socialização no desejo de suportar o já velho projeto ilustrado salvandoo do risco de involuir para aquela filosofia estética da Razão de que se queixava o insuspeito Mannheim em de pôrse irresponsavelmente a serviço do capital e da máquina burocrática A inteligência dos povos excoloniais tem motivos de sobra e experiência acumulada para considerar uma futura paideia ideal e móvel que se tenha como verdadeira um futuro para as nações pobres Quantos aos mártires religiosos conservados pelas comunidades neoliticas em geral podemos aventurar algumas conjecturas A assistência aos mortos cuja origem remonta a idade paleolitica deve ter adquirido uma significação mais profunda na idade neolitica No caso de vários grupos neoliticos na realidade não se descobriu inteiro algum Mas em geral os mortos eram sepultados cuidadosamente em tumbas edificadas ou escavadas que agrupadas em cemitérios próximos aos povoados eram cavadas perto das casas individuais Normalmente proviase ao morto de utensilios ou armas vasilhas com comida e bebida e artigos de tocador No Egito préhistórico os vasos funerários eram pintados com figuras de animais e objetos É de presumir que tenham o mesmo significado mágico das pinturas figuras talhadas nas cavernas dos caçadores da idade paleolitica cular a todas as sociedades humanas Novas terras novos bens abremse à cobiça dos inícios Reativase o impto predatório e mercantil que leva à aceleração econômica na matriz em termos de uma acumulação de riqueza em geral rápida e grave de consequências para o sistema de trocas internacional Podese calcular o que significou para a burguesia europeia em pleno mercantilismo a maciça exploração açucareira e mineira da América Latina Se o aumento na circulação de mercadorias se traduz em progresso não resta dúvida de que a colonização do Novo Mundo atuou como um agente modernizador da rede comercial europeia durante os séculos XVI XVII e XVIII Nesse contexto a economia colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos na longa fase que media entre a agonia do feudalismo e o surto da Revolução Industrial Duas citações de Karl Marx parecemme aqui obrigatórias O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América a cruzada de extermínio escravização e sequestro nas minas da população aborígene o comércio da conquista e o saque das Índias Orientais a conversão do continente africano em zona de caça de escravos negros são todos fatos que assinalam os albores da era de produção capitalista Estes processos idológicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação originária Atrás deles pisando em suas pegadas vem a geraçã O contemporâneo do ciclo das conquistas ibéricas não ignoram a extensão do crime Frei Bartolomeu de Las Casas dominicano publicou em Sevilha a Breve relação de la destrucción de las Indias 1552 onde estima em 15 milhões o número de índios mortos entre 1492 e 1542 É um seu provável leitor o primeiro dos humanistas leigos Michel de Montaigne deixou no Livro II dos Ensaios 1588 estas palavras de fogo Quem põem a pós à tal preço o dinheiro e a mercancia e o tráfego Tantas cidades arrasadas tantas nações exterminadas tantos milhões de homens passados ao fio de espada e a mais rica e bela parte do mundo conturbada pelo depósito das pimenta mecânicas vitórias Jamais a ambição jamais as inimizadas públicas empurraram os homens uns contra os outros a tão horríveis hostilidades e calamidades tão miseráveis A barbárie ecológica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras entre nós tanto na zona canavieira quanto no sertão da bacia do de ficionado ao papel de clérigo que fez das monarquias democratas da América como capitalistas e que elas sejam capitalistas isto se baseará no fato de eles existir como anomalias em um mercado mundial baseado no trabalho livre A rigor o termo anomalia aplicado por Marx ao regime dos latifúndios escravistas americanos pressupõe a vigência de uma norma nomos ou lei exemplar que no caso era o modo de produção capitalista da Inglaterra nos meados do século XIX modo cuja preconização foi precisamente a passagem compulsória do servo ao trabalho assalariado Na cabeça do parágrafo citado Marx afirma categórico A produção de capitalistas e trabalhadores assalariados é portanto um produto fundamental do processo pelo qual o capital se transforma em valores A longa vida de um sistema de trabalho não assalariado nas fazendas do Brasil e do Sul dos Estados Unidos parecia ao autor de O capital em plena segunda metade do século XIX como algo aberrante uma sobrevida feita a extinguirse em face do crescimento mundial das forças produtivas abertamente capitalistas Entretanto o objetivo é conhecer a situação interna e peculiar das formações colonizadas a verdade nua é que a anomalia durou longamente e vincou fundo a nossa existência social e psicológica Além de Marx em outro contexto Os horrores bárbaros civilizados do sob A DIALÉTICA DO CUIDADO DA CULTURA NA CONDIÇÃO COLONIAL O que pesa e importa quando se pesquisa a vida colonial brasileira como código de valores e significados é justamente essa complexa aliança de um sistema agrário voltado para a máquina econômica europeia com uma condição doméstica tradicional quando não francamente arcaica nessos mores e nas suas políticas Distingo os termos sistema e condição para marcar nitidamente as notas desse aspecto que parece justo e consonante a alguns ouvidos mas dissonante e desafiando a outros Por sistema entendo uma totalmente articulada objetivamente O sistema colonial como realidade histórica de longa duração tem sido objeto de análises estruturais de fôlego como o fizeram com tônicas diversas Caio Prado Jr Nelson Werneck Sodré Celso Furtado Fernando Novais Maria Sylvia Carvajal Franco e Jacob Gorender para citar apenas alguns de seus mais estudiosos A vida econômica nos três primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil trouxese por meio de mecanismos que podem ser quantificados pois se traduziam em números de produção e circulação isto é em fontes de força de trabalho Muito antes de se pensar em história quantitativa o poeta Gregório de Matos em um século XVII falava em maquina mercante à letra nua de mercadorias expressão que se tornaram por metonímia estendendo a toda a engrenagem comercial vigente na Colônia A formação do sistema exigiramse reciprocamente tráfego e senzala monopólio e monocultura No plano internacional determinouse o ciclo de fluxo e refluxo da mercadoria colonizada na linha das flutuações de mercado e sob o império da concorrência entre os Estados metropolitanos Em suma a reprodução do sistema no Brasil e seu nexo como as economias centrais curvaram a frente e o verso da mesma moeda Quanto ao termo condição ainda experiências mais difusas do que as regularidades da produção e do mercado Condição toca em modos os quais eu virei e sobreviver Falase naturalmente em condição humana não se diz apenas sistema humano E não por acaso A condição senhoral era a condição escrava expunham um desenvolvimento de papéis no sistema produtivo objeto de uma análise funcional na economia do açúcar mas não se reduziram ao exercício das ações correspondentes a essas mesmas políticas Condição traz em si as múltiplas formas concretas da existência interposta e subjetiva a memória e o sonho as marcas do cotidiano no coração e na mente o modo de nascer de comer de morrer de dormir de amar de chorear de rezar de cantar de mover e ser sepultado O discurso orgânico se produz entre as ações de empresas colonizadora sendo muitas vezes preferido pelos seus próprios agentes É o escrito da anátema que descobriu o Brasil Pero Vaz de Caminha É o senhor do engenho e cristãonovo Gabriel Soares de Sousa informante preciso e precioso etonnant no juízo de Alfred Métraux que escreve com a mão da massa É o conhecido minuciosamente e empenhado nos Diálogos das grandezas do Brasil É Antonil que oculto sob este anagrama é a si mesmo chamadodiscretamente Anônimo Toscano acabou contando indiscreto onde se achavam e quanto valiam os nossos recursos em Cultura e opulência do Brasil exemplo de mente pragmática e moderna a quem a roupera de inacia no impediu de entrar fundo nos meandros contábeis da produção colonial É enfim o bispo magnato Azeredo Coutinho que de forma em pleno limiar do século XIX a manutenção do regime escravista para maior segurança do whatever pernambucano e da Côrte lusa Em todos manifestase da lisamente e proposito de explorar organizar e mandar não sendo critério pertinente para uma divisão de águas a condição de leigo ou de religioso de quem escreve Outro discurso de fundo ético précapitalista resiste nas do mesmo sistema mercantil e embora viva dos seus excendentes na pena de altos burocratas nobres e religiosos não se mostra muito grato à fonte que paga o ócio e lhe poupa os cuidados do negócio preferindo ver mais colonos a sede de lucro e a falta de desespero cristão É a mensagem que se depende das sátiras mortais de Gregório de Matos e Guerta contra o mercador estrangeiro o sagaz Bricho e contra o usurário nogo que alardeia avós aristocráticos o fidalgo caramur A advertência sombria que sai das homilias de Antôni Vieira barrocamente indica entre a defesa dos bens negócios e a condenação dos abusos escravistas que eram a almas desses mesmos negócios É o sentimento que oscila no Uraguai de Basílio da Gama entre a glorificação das armas coloniais com Gomes Freire de Andrade à testa instaurador do novo pacto entre as potências alémmar e a petrificação dos selvagens rebeldes além os únicos seres dignos de entar o canto da liberdade E escrita colonial não é um todo uniforme realiza não só um gesto de saber prático afim às diversas exigências do mercado ocidental como também o seu contraponto onde se fundem obscuros nós de uma humanidade naturaliter christiana e valores de liberdade a equidade que a mesma ascensão burguesa estava lenicimento Onde vislumbramos acenos contraideológicos descobrimos que o presente está ou sob o olhar do passado ou voltado para um futuro ideal um olhar que se irradia do culto ou da cultura