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CAMPOS V20 N2 pp 155174 juldez2019 155 A R T IG O S CAMPOS V20 N2 JULDEZ2019 Cavaleiros em Tempos de Glória uma análise etnográfi ca da história do vaqueiro do Nordeste Renan Martins Pereira Introdução Em fevereiro de 2016 para a elaboração da minha dissertação de mestrado iniciei uma pesquisa de campo no município de Floresta1 sertão de Itaparica Pernambuco que resultou em uma etnogra fi a sobre os vaqueiros do município com foco nas suas relações com a memória e os animais Pereira 2017 Nesse trabalho pretendi analisar como os habitantes do município no que se refere ao tema do vaqueiro sertanejo e sua história2 deparamse frequentemente com um dilema Em Floresta ninguém diz O vaqueiro não existe mais3 Uma afi rmação como essa não me foi dita em momento algum Pelo contrário quando se recorre a alguém e lhe faz qualquer pergunta sobre o tema de imediato se afi rma que Floresta é a capital do vaqueiro O curioso é que simultaneamente a isso pode surgir da boca de alguém a seguinte expressão O vaqueiro está desaparecendo ou O va queiro desaparecerá Segundo meus interlocutores o que os levam a se interrogar a respeito da existência do vaqueiro ou de sua suposta desaparição futura é que hoje em dia são raros os homens que se dedicam ao campo4 1 Floresta está localizada na mesorregião do São Francisco e na microrregião do Sertão de Itaparica distante 439 km da capital do estado Recife Segundo dados do IBGE2016 sua população estimada é de 32152 habitantes 2 A partir de eixos analíticos e temáticas específi cas poucas etnografi as têm sido produzidas nos últimos anos a respeito do vaqueiro sertanejo por exemplo Aires 2008 e Lopes 2016 3 Termos em itálico correspondem a expressões nativas Frases entre aspas simples representam transcrições diretas da fala nativa e frases entre aspas duplas representam citações de autores acompanhadas de referência bibliográfi ca 4 Campo signifi ca a parte não cercada da caatinga É o território onde nasce e vive o rebanho criado solto no mato que em certos períodos necessita ser recrutado para fi ns de manutenção e vigília de vaqueiros e criadores A forma verbal campear é no que se refere às atividades do vaqueiro sinônimo de procurar capturar e dominar na espacialidade do campo os animais selvagens Criadores são de modo geral quaisquer pessoas que criam gado caprino ovino bovino ou equino Mas criador se distingue de vaqueiro sujeito hábil na arte de capturar os animais indomáveis Entre os animais as diferenças básicas consistem em quatro termos convencionais criação reba nho de caprinos e ovinos criatório de gado referese apenas ao gado bovino animal sempre o gado equino e criatório totalidade do rebanho de todas as espécies 156 CAMPOS V20 N2 juldez2019 cuidando do rebanho próprio ou do patrão e sobretudo hábeis na arte de capturar as reses selvagens na caatinga As razões para tanto segundo eles é que as secas5 os cercados e as subsequentes mudanças na natureza dos animais e no ambiente têm levado o sertão a uma nova modulação ecológica na qual dizem não é possível ser vaqueiro como no tempo dos antigos Apesar disso há os que se dizem e se consideram vaqueiros sem no entanto serem reconhecidos como vaqueiros de verdade É o caso por exemplo de vaqueiros de vaquejada vaqueiros de pega de boi6 vaqueiros de festa assim como crianças jovens e adultos que vestem a indumentária de couro apenas para desfi lar em missas e cavalarias ou para correr em vaquejadas Mobilizando a memória para se po sicionarem no presente dizem Essa é a nossa tradição Meu pai e meu avô foram vaqueiros Eu não trabalho no campo mas tenho sangue de vaqueiro7 Diante disso o objetivo principal deste artigo é analisar o que é historicamente o vaqueiro ser tanejo para a literatura nacional que denominarei de saber ofi cial e para os saberes de meus interlo cutores que denominarei de saber local8 a fi m de entender como cada um desses saberes constroem uma estabilização imagética e conceitual do passado que se concretiza neste caso na fi gura do vaqueiro de verdade original e autêntico Minha hipótese nesse sentido é que o vaqueiro sertanejo não é uma mera resistência histórica coberta de regionalismos e tradicionalismos como sustentam por exemplo as célebres teses sobre o Nordeste brasileiro Barroso 1956 1912 Menezes 1970 1937 Andrade 1986 1963 Cascudo 1956 e 2005 1939 Prado Junior 2006 1945 Furtado 2007 1959 Mello 2011 1985 Em contrapartida sugiro que ser vaqueiro tal como os meus interlocutores a entendem é uma posição disputada em constante transformação e que se expressa de maneira simultaneamente histórica e contemporânea Na primeira seção o objetivo é analisar o que signifi ca para o saber local e o saber ofi cial a verda de histórica do vaqueiro sertanejo Na segunda seção procuro analisar a partir de um acontecimento etnográfi co específi co o estatuto do passado na construção e na defi nição da originalidade e da auten ticidade do vaqueiro de verdade Na terceira seção analisarei como a verdade histórica do vaqueiro se 5 Categoria em destaque via de regra pela sua complexidade histórica pelos quase um século e meio de intervenção estatal em vias de combater e mitigar as secas na região semiárida do Nordeste pelos diferentes signifi cados que recebe tanto pelas populações locais quanto pela literatura nacional e ainda podemos dizer pelas diversas possibilidades de entendêla e classifi cála desde as relações dos sertanejos com a terra a memória o tempo as águas e os animais as quais não são o objetivo deste artigo mas que receberão um debate mais aprofundado no que se refere à questão das secas na última seção 6 O termo pega de boi corresponde à prática tradicional do vaqueiro de derrubar o gado na caatinga em velocidade para fi ns de manu tenção e vigília do rebanho Desta prática de trabalho foi derivada uma outra a pega de boi no mato Também chamada contemporanea mente de vaquejada a pega de boi no mato ou pega de boi na caatinga é uma competição em que um conjunto de vaqueiros a vaqueirama corre à procura do gado para derrubálo e capturálo visando o festejo a comemoração e a premiação 7 Quanto à correlação temática entre sangue e memória não é minha pretensão desenvolver neste artigo uma análise da relação entre esses dois importantes temas antropológicos Carsten 2013 Temas que inclusive são objetos de investigação de Marques 2013 e Mar ques e Villela 2016 no sertão de Pernambuco além de tema central para Sanjurjo 2013 em sua etnografi a sobre o passado ditatorial argentino 8 Não proponho uma adesão à hermenêutica de Geertz para tratar de pontos de vista e descrições nativas tais como no sentido con ferido por ele a partir das noções por exemplo de descrição densa 1978 e saber local 1997 1983 Aqui para a defi nição do que chamo de saber local inspirome nas ideias de saberes localizados de Haraway 1995 1988 e de etnografi as do particular de Abu Lughod 1991 Em resumo o que as duas autoras defendem é que falar do outro é produzir narrativas acerca de nossa familiarização com ele É preciso registrar particularizações em vez de diferenciações entre sujeito e objeto É preciso deixar de produzir generalizações que distanciem e isolem os outros de nós mesmos Considerar o particular segundo AbuLughod 1991 é não recorrer à homoge neidade à coerência e à atemporalidade CAMPOS V20 N2 juldez2019 157 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE fundamenta na noção de tradição constantemente mobilizada pelos meus interlocutores de pesquisa Na quarta seção trabalharei analiticamente as relações históricas entre vaqueiros e fazendeiros E na quinta e última seção analisarei como as relações ecológicas com os animais e as caatingas se transfor maram ao longo do tempo em virtude das secas e dos cercados resultando em uma imediata transforma ção na vida de vaqueiro Por fi m concluo que a história do vaqueiro do Nordeste só pode ser entendida etnografi camente a partir de estratégias contemporâneas de reconstrução dos acontecimentos através principalmente da memória e da habilidade retórica de meus interlocutores de conferirem verdade ao que viveram Verdade histórica Segundo a literatura nacional Cascudo 2005 1939 1956 Menezes 1970 1937 Mello 2011 1985 o modelo pastoril do Nordeste deu origem à particularidade da sociedade sertaneja Os obje tivos do saber ofi cial foram os de compreender os signifi cados de certas tipologias humanas conectadas a uma totalidade social ao meio natural e aos valores morais todos eles infl uentes na constituição das subjetividades das morfologias físicas e dos costumes A defesa de seus autores por uma totalidade parece depender de um método comparativo capaz de dar dimensões classifi catórias a partir das quais se chegaria à singularidade histórica da pecuária nordestina e do perfi l psicológicosocial do homem pecuário do Nordeste Mello 2011 1985 47 Segundo o saber ofi cial é fundamental para se compreender a sociedade sertaneja ou o Ou tro Nordeste tal como formulado por Menezes 1970 1937 que o seu sistema econômico seja contrastado com o que lhe antecedeu e o originou o ciclo da canadeaçúcar como denomina Mello 2011 1985 4243 Comparar assemelhar e diferenciar o sistema das lavouras e dos engenhos com o pastoreio seria para alguns pensadores um modo de classifi car dois modelos econômicos fundantes de uma única sociabilidade histórica Tal abordagem divide em duas vertentes a economia colonial Como um jogo de estereótipos nas palavras de Herzfeld 2008 1997 essa abordagem estabiliza dois processos históricos que segundo Cascudo são dois dois tipos de cultura 1956 2728 contí nuos complementares e por vezes a imagem reversa um do outro De um lado temse a produção açucareira do litoral defi nida a partir de prerrogativas como o coletivismo das relações sociais o trabalho escravo a exportação de monocultura e o seu contato per manente com o Velho Mundo De outro lado resultante do primeiro tipo temse o modelo pastoril dos sertões ao qual é creditado por exemplo o individualismo das relações sociais No litoral segundo a literatura o poder político era centralizado e os trabalhadores se identifi cavam como grupos No pastoreio em contrapartida as relações políticas eram mais fl uidas e disper sas e as pessoas estavam à sorte de suas próprias leis e geografi camente isoladas Mello 2011 1985 51 Disso resultam outras de suas características a saber o trabalho livre executado pela mãodeobra nativa mantida pelo absenteísmo de fazendeiros e boiadeiros que delegavam a seus vaqueiros o poder sobre a propriedade e a função de abastecer o litoral com a carne do gado portanto economia não exportadora 158 CAMPOS V20 N2 juldez2019 No entanto a polarização entre dois tipos de cultura parece se esgotar em si mesma como jus tifi cativa sociológica uma vez que só serviu em grande medida para defi nir tipos sociais geográfi cos e humanos encerrados em meras abstrações analíticas Se olharmos detidamente para o que disse Cas cudo 1956 acerca da indústria açucareira podemos imediatamente verifi car a seguinte conclusão Desta indústria que é fórmula de aglutinação coletivista o canto será sempre uníssono e coral a mentalidade surge condicionada aos interesses imediatos do grupo humano a que pertence o trabalhador O ciclo da canadeaçúcar não pode produzir o cangaceiro o cantador de pandeiro e de viola o improvisador o dançarino solista o artesão independente o cavalariano afoito o beato aliciante o jagunço o fanático Cascudo 1956 27 Com sua tática polarizadora e comparativa o saber ofi cial notou aliás que a pecuária nordestina produziu diversas singularidades inexistente nas lavouras e nos engenhos entre elas o poder dado aos vaqueiros pelos seus patrões Fazendeiros e boiadeiros faziam com que seus vaqueiros ao tomar conta das terras e dos rebanhos obtivessem maior prestígio se comparado ao de outros trabalhadores como por exemplo almocreves tangerinos moradores meeiros lavradores agricultores e mesmo ao de ou tros vaqueiros que não eram os responsáveis diretos pela propriedade e pelo rebanho bovino selvagem mas sim pelos rebanhos de bode pelo gado leiteiro domesticado e cercado ou pelos animais de carga Percebese portanto que o vaqueiro que tinha poder sobre os trabalhadores e cuidava do reba nho selvagem ganhava maior notoriedade e prestígio que os demais no contexto da economia pastoril Ou seja alguns recebiam o poder de comandar o conjunto de trabalhadores de uma propriedade e ou tros se tornavam conhecidos segundo meus próprios interlocutores por terem sido corajosos valentes ou bons vaqueiros ao se destacarem na lida com o gado na caatinga9 Na chave das relações de trabalho entre vaqueiros e fazendeiros as análises de Medrado 2012 sobre o sertão da Bahia se assemelham com as minhas no sentido de que no sertão de Pernambuco o prestígio dos vaqueiros resulta também tal como na região analisada pela autora de dois contextos 1 das relações de cumplicidade e confi ança entre vaqueiros e fazendeiros e 2 das relações dos vaqueiros com o gado 2012 157158 Curiosamente a esse respeito Cascudo 1956 formulou uma outra imagem desta vez focaliza da nitidamente na fi gura do vaqueiro dandonos o contorno romantizado de um personagem históri co único O ciclo do gado determina o individualismo do seu participante Dálhe a noção imediata de inde pendência de improvisação de autonomia de livre arbítrio de arrojo pessoal Fundada a fazenda o vaqueiro antigamente um escravo fi cava senhor do gado da casa dos cavalos responsável pelas iniciativas imediatas para defender os animais entregues à sua energia Movimentase livremente 9 No sertão de Pernambuco a lida se refere à relação diária e ao trabalho cotidiano com o gado bovino Para o conjunto de atividades relacionadas à manutenção do rebanho dizse lida do gado De forma substantiva lida e poucas vezes em sua forma verbal lidar ela se refere portanto à conformação de uma série de atividades da fazenda de empreendimentos voltados à manutenção do rebanho mas também ao ato de zelar a propriedade sua vegetação seus cercados seus recursos hídricos as moradas etc A isso tudo então dáse o nome de lida da fazenda Portanto lida e lidar sua forma verbal que às vezes irá aparecer aqui signifi cam de um modo geral um tipo de relação De um lado relações possíveis de serem travadas com o gado bovino na lida do gado ou na lida com o gado e de outro relações travadas no contexto da vida no campo o complexo geral ao qual a lida da fazenda faz parte CAMPOS V20 N2 juldez2019 159 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE nos plainos dos tabuleiros e caatingas no galope árduo do seu cavalo de fábrica caçando as reses tresmalhadas ou ariscas Cascudo 1956 27 Interessante é que não só da perspectiva do autor mas também da de meus interlocutores foi exatamente por meio das relações livres épicas e aventurosas dos vaqueiros com os animais na caatinga que uns se destacavam mais que outros na lida com o gado bravio Obedecendo a estrita função de vendê lo a pedidos do patrão os vaqueiros de verdade segundo me diziam eram homens do campo que sabiam as técnicas de capturálo e apartálo10 tornandose renomados e afamados por serem habilidosos em sua empreitada Portanto é dessa demonstração de técnica e de agilidade que no tempo dos antigos alguns homens eram mais prestigiados mais vaqueiros e não menos mais corajosos do que outros É importante recorrer a esse tipo de caracterização histórica pois os vaqueiros desta pesquisa como veremos ao longo deste artigo também acionam caracterizações e generalizações bastante pa recidas com as de Cascudo Quando conversava com alguns vaqueiros de verdade em Floresta estes recorriam em suas narrativas a certas artimanhas para se diferenciarem na posição de antigos vaquei ros ou vaqueiros velhos dos vaqueiros mais novos vaqueirinhos ou vaqueiros modernos11 Dentro desse contexto de maneira geral é dado maior notoriedade e prestígio aos vaqueiros que diziam ter vivido no tempo em que fora possível criar gado brabo solto na caatinga em campos indivisos partilhados por homens e animais na época em que os vaqueiros não conheciam como quer Cascudo a imagem do limite 1956 13 mais ainda no tempo em que era possível que o patrão confi asse no vaqueiro e este nos trabalhadores que compunham a mãode obra humana da fazenda Para melhor entender o esta tuto do passado na defi nição de vaqueiro de verdade trarei em seguida um acontecimento etnográfi co Original e autêntico Em Floresta quando a palavra vaqueiro é evocada dáse a ela um contexto preciso a vida de vaqueiro no campo No entanto quando se procura por esse vaqueiro vivendo e labutando no campo muitas vezes se ouve o seguinte questionamento Mas será que isso ainda existe Dois interlocutores Quirino e Nilda sugeriram a mim visitar uma determinada propriedade a Fazenda Mãe dÁgua bastante conhecida em Floresta Eles sabiam que lá havia vaqueiros trabalhando com o gado na produção de queijo inclusive a maior produtora de Floresta e também o melhor quei jo segundo eles mas seria improvável encontrar vaqueiros na lida com o gado brabo Embora tenham sugerido a mim que seria de grande valia conhecêla alertaramme que na Fazenda Mãe dÁgua eu poderia verifi car uma outra perspectiva Mas não exatamente a perspectiva do vaqueiro do campo Para Nilda e Quirino a vontade de realizar uma pesquisa sobre o vaqueiro trabalhando diaria mente na lida com o gado difi cultavam os meus objetivos O próprio advérbio de tempo ainda na pergunta do primeiro parágrafo desta seção demonstra que a vida de vaqueiro no campo parecia ser um modo de vida pretérito por vezes pouco claro na percepção de muitos de meus interlocutores 10 O ato de separar as reses de uma propriedade das propriedades vizinhas se chama apartação Cascudo 2005 1939 11 A maioria do material de campo que recolhi foram relatos narrativas e conversas que estabeleci com vaqueiros antigos Não recolhi material sufi ciente com vaqueiros mais novos ou vaqueiros de vaquejada que me permitisse contrastar analiticamente neste artigo as pers pectivas destes com as daqueles 160 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Sendo assim interrogueime Se já me disseram que Floresta é a capital do vaqueiro por que a difi culdade de encontrar uma fazenda onde ainda hoje existam homens trabalhando como vaqueiros O que signifi ca exatamente Floresta ser a capital do vaqueiro diante da própria difi culdade de encon trálos aos arredores do município Por conta disso perguntei a Nilda e a Quirino se por outro lado nas pegas de boi no mato outra modalidade em que o vaqueiro sertanejo se expressa seria possível estabelecer alguns contatos relevantes de pesquisa já que são práticas na de vida de muitos vaqueiros fl orestanos Os dois compreendiam que seria interessante pesquisar as pegas de boi no mato os festejos e a sua dinâmica e muito provavelmente encontraria ali vaqueiros de verdade ou vaqueiros antigos Mas em contrapartida o que acontece nas pegas de boi e nos festejos não é segundo Nilda autêntico e original Ela inclusive chegou a dividir entre sagrado e profano respectivamente o antigo o original e autêntico vaqueiro da lida e o atual por exemplo o vaqueiro de festa aliás tentou comparálos de modo a esta bilizar uma oposição um contraste A pega de boi é uma outra visão uma outra perspectiva uma outra dinâmica Está mais vinculada à bebedeira e à mulherada Eu acho que é mais interessante você ir atrás do vaqueiro autêntico original tradicional Para Nilda e Quirino quando se fala do vaqueiro sertanejo tratase enfaticamente e em primei ro lugar do vaqueiro vaqueiro mesmo o vaqueiro da lida e do campo Nas palavras de Nilda o sujeito autêntico e original do tempo de minha infância Desse sujeito histórico Nilda não tinha atualmente muito conhecimento mas ele próprio enquanto imagem do passado possibilitoua resgatar de suas memórias algumas percepções e lembranças da época em que nas propriedades de suas famílias exis tiam vaqueiros lidando diretamente com o rebanho de gado bovino Minutos depois de nossa conversa Nilda me dera a cópia de um capítulo de um livro chamado Tipos e Aspectos do Brasil organizado pelo IBGE Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística do qual ela tirara uma cópia do texto Vaqueiro do Nordeste sob a autoria da geógrafa Maria Fagundes de Souza Doca IBGE 1956 167170 Estávamos sentados no sofá da entrada de sua casa e em poucos minutos ela começou a lêlo por inteiro linha por linha almejando mostrar o que era o vaqueiro do ponto de vista de alguém que estudou o tema uma especialista no assunto O pequeno artigo além de conter uma representativa imagem explicava o que seria de fato segundo Nilda o vaqueiro tradicional O argumento geral do artigo é que a economia a natureza e a cultura estão imbricadas conjuntamente como suporte analíticodescritivo do heroico e honesto tipo sertanejo como quer a geógrafa em seu texto Tanto neste artigo quanto nos argumentos do saber ofi cial economia natureza e cultura são fatores externos que condicionam os indivíduos a ações e a conhecimentos condizentes com uma reali dade empírica previamente dada e que sobre ela resta aos indivíduos agirem conforme os resultados de suas relações com o ambiente a partir de seus artifícios econômicos e culturais isto é a partir de condi cionamentos fl exionados pelas necessidades de subsistência do vaqueiro em um meio onde ora se luta contra as intempéries naturais ora se reproduz os costumes das tradições e do cotidiano de trabalho Esse argumento que se pode ver nos livros e na retórica do saber ofi cial também está repercu tido nas palavras dos mais renomados vaqueiros fl orestanos O grande vaqueiro Antônio Balbino por CAMPOS V20 N2 juldez2019 161 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE exemplo apresentou no contexto de uma pega de boi no mato a sua perspectiva histórica a respeito dos vaqueiros de antigamente os quais em sua fala estão refl etidos como caboclo brabo homi bruto12 um índio Eis abaixo trecho de um diálogo que estabeleci com o interlocutor Como é ser vaqueiro Suscitei a questão esperando que ele me dissesse de alguma forma o que signifi cava para ele ser vaqueiro hoje em dia e não tal como ele apresentará a seguir de forma bastante curiosa o que foi o vaqueiro há muito tempo atrás Ele respondeu Os vaqueiros de antigamente eram uns homi bruto um índio um caboclo brabo não sabe Eles só aprenderam aquilo que aprenderam a fazer Mas só aprenderam aquilo O vaqueiro não sabia de nada não tinha estudo de nada Tinha deles que não sabia nem assinar a primeira letra do nome Mas com a inteligência que Deus deu a ele ele aprendeu tudo pegar o boi amarrar seguir tanger o boi bem direitinho colocar no curral dar de comer ao boi manso Ele aprendeu tudo com aquilo que Deus lhe deu pois ele não teve quem ensinasse a ele o homi bruto Foi na vaqueja da Fazenda São Pedro que Antônio Balbino logo após pegar um boi e botálo no curral deu a mim sua breve análise Interceptado por um de meus colegas que sugeriu a ele que expusesse a mim algumas refl exões sobre o vaqueiro sertanejo o que signifi ca sêlo e qual a diferença do vaqueiro de outrora para o de hoje percebese que ao fazêlo o vaqueiro apresentou de saída um exercício mnemônico composto por uma refl exão quase mítica uma origem Enquanto conversávamos rapidamente ainda em seu cavalo e afoito para correr e derrubar outra rês Antônio não se disse mais vaqueiro13 do que os vaqueiros mais novos que estavam ao seu redor em bora pudesse contar mais histórias do que eles Para os colegas que o arrodeavam ele sim é considerado um vaqueiro de verdade Ele tinha conhecimento da vida do campo e viveu no tempo em que para ser vaqueiro precisavase de mais coragem do que hoje Assim foi conferido a ele na sua relação com os demais a posição de vaqueiro corajoso e catingueiro14 Se a minha pesquisa era sobre o vaqueiro sertanejo nada mais compreensível do ponto de vista de meus interlocutores que um grande vaqueiro corajoso e catingueiro fosse recrutado para que me desse a honra de suas palavras Dos aproximadamente cento e cinquenta vaqueiros que estavam na vaquejada da Fazenda São Pedro curioso foi o modo como me levaram primeiramente em direção a Antônio Balbino em detrimento de tantos outros vaqueiros que naquele exato momento compu nham um grande coletivo a vaqueirama A justifi cativa para tanto é precisa Antônio Balbino era um vaqueiro de verdade Suas palavras não seriam quaisquer palavras mas as palavras de um vaqueiro véio Se analisarmos as célebres teses do saber ofi cial até agora explicitadas podemos perceber res sonâncias entre elas e a própria visão de Antônio Balbino Em ambas o vaqueiro nordestino aparece 12 Algumas palavras aparecerão sob o formato não convencional da ortografi a portuguesa dando destaque à sua importância estética na fala nativa principalmente nas narrativas e nas histórias de vaqueiro 13 Para uma refl exão do termo vaqueiro também sendo designado como adjetivo cf Medrado 2012 127 No meu caso e no da autora ser mais vaqueiro é quando um sujeito é melhor e mais verdadeiro do que outros tendo como atributo diferencial a de ser um bom vaqueiro 14 Catingueiro é o vaqueiro que tem maior domínio sobre o território e os animais no contexto de suas carreiras corridas a cavalo atrás do gado 162 CAMPOS V20 N2 juldez2019 como um elemento aculturado resultante das políticas coloniais do contato do branco colonizador com o gentio durante a penetração do gado nos sertões do Nordeste como consta no artigo apresen tado por Nilda O que se poder concluir até aqui é que tanto o saber ofi cial quanto as visões de Nilda e de Antônio Balbino dão pistas do que seja o vaqueiro original autêntico e tradicional As visões de meus interlocutores confl uem com o saber ofi cial e com as imagens clássicas da literatura nacional sobre o vaqueiro nordestino No momento de minha conversa com Nilda por exemplo enquanto ela lia linha por linha da quele artigo senti que pude dividir algumas de minhas refl exões com uma interlocutora que não co nhecia muito bem a realidade de vida dos vaqueiros como ela mesma afi rmou várias vezes mas que no entanto a respeito desse universo tinha algumas generalizações provenientes das reminiscências do tempo de sua infância da fazenda de sua família e das leituras que fi zera De um lado um universo para mim totalmente desconhecido Do outro um universo recrutado por Nilda a partir da imagem que construiu para si mesma em torno de uma originalidade Desde a prévia discussão entre dois desconhecedores daquele universo percebi que ela e eu acabávamos por igualmente compartilhar pressuposições ancoradas na perspectiva de uma suposta tradição e cultura do vaqueiro Eu compartilhava com ela portanto seus modos de reifi car e essencializar elementos também generalizados pela literatura e pelo saber ofi cial Aliás minha interlocutora exigia de mim por assim dizer a posição etnográfi ca se quiser mos de um antropólogo culturalista conforme a sua sugestão em privilegiar como recorte analítico sujeitos que se defi nem e são defi nidos pelos outros pela sua autenticidade Por mais que eu pudesse discordar na posição de antropólogo de sua visão totalizante em perceber a cultura e a tradição como imperativos da realidade observada o que estava sendo apresentado a mim por outro lado era a séria perspectiva de uma interlocutora refl etindo a respeito das diferenças entre sujeitos e contextos sociais dados por ela como radicalmente díspares embora às vezes confundidos uns com os outros a saber o vaqueiro da lida no campo e o vaqueiro de festa nas vaquejadas A seguir vejamos o que signifi ca essa noção de tradição mobilizada constantemente pelos inter locutores de pesquisa Vaqueiro simbólico e passado referencial A tradição sugere que a memória e o passado têm um estatuto importante na construção histó rica do vaqueiro sertanejo tanto no discurso da literatura quanto no discurso nativo Na literatura a expansão da pecuária pelos sertões como vimos na primeira seção ganha maior centralidade analítica à medida que os autores produzem tipologias únicas de um passado mais remoto o período colonial Na memória de meus interlocutores por sua vez o retrospecto é menor O tempo dos antigos não alcança o recorte temporal do Brasil colônia No máximo meus interlocutores fl exionavam lembranças contex tualizadas na primeira metade do século XX É válido destacar que a maioria dos vaqueiros velhos que conheci tinham entre 60 e 90 anos de idade Quando falavam do tempo dos antigos na maioria das vezes datavam os acontecimentos ocorri CAMPOS V20 N2 juldez2019 163 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE dos depois dos anos de 1930 ou 40 Época em que segundo diziam a lida da fazenda estava moldada sob a confi guração de poucos cercados chuvas mais frequentes e com muito gado brabo Ao mesmo tempo também resgatavam histórias e comentários feitos por seus pais e avós indo a um recorte tem poral mais amplo e a um jogo de perspectivas capaz de introduzilos em espacialidades e temporalida des que não viveram mas sobre as quais poderiam discorrer abertamente Enfi m tratase de uma imagem do vaqueiro nordestino que em certas circunstâncias representa o recorte temporal de cada um dos saberes De um lado a literatura e o saber ofi cial desenhando os sentidos do Estadonação de sua história e do seu desenvolvimento e de outro lado os meus interlo cutores e o saber local refl etindo a respeito da tradição cruzandoa por diversas vezes com o próprio discurso ofi cial Nesse sentido é importante notar nesses recortes temporais o modo como tanto a literatura quanto os sertanejos reifi cam uma espécie de vaqueiro simbólico ou representativo15 que dá sentido à história nacional para o saber ofi cial e também à tradição sertaneja ou à história de Floresta para o saber local De saída é preciso deixar claro que não quero com o termo simbólico remeter a uma noção de estrutura simbólica que vem a se distinguir como terceiro termo de uma relação entre o imaginário e seu oposto o real tal como o fez o estruturalismo segundo a visão de Deleuze 1974 1972 307 Na verdade simbólico está no nível da representação apenas provisoriamente A sua própria re presentatividade se esgota como haverei de mostrar no fi m deste artigo quando vamos em direção a outras formulações a novos problemas O que há de representativo no vaqueiro simbólico tem algo de generalizador na medida em que meus interlocutores universalizam determinada verdade histórica Dessa maneira o simbólico só é analiticamente produtivo se quisermos compreender os processos de reifi cação Herzfeld 2008 1997 que os sertanejos e a literatura ofi cial fazem do passado Para avançarmos na análise dessa distinção vejamos as imagens abaixo 15 Usarei o termo simbólico para fazer referência ao vaqueiro nordestino reifi cado pela literatura principalmente quando esta vai debater o papel dele na pecuária colonial mas também para fazer referência ao vaqueiro verdadeiro reifi cado pelo saber local No entanto usarei o termo segundo os sentidos conceituais dados por Lalande 1967 1927 em seu dicionário fi losófi co Para o autor simbólico se refere ao uso de símbolos ou àquilo que constitui e fabrica um símbolo representativo de algo de algum objeto por exemplo idem 939 Neste caso ser o símbolo de uma coisa ou representar com um símbolo alguma coisa idem 940 é mais ou menos o modo como a reifi cação dos interlocutores tem relações diretas com a imagem estanque ou referencial do vaqueiro como parte de uma história de um passado de uma tradição 164 CAMPOS V20 N2 juldez2019 A imagem à esquerda é a capa de um livro de José Norberto Macedo 1952 que como o título mesmo já indica fala das fazendas de gado no Vale do São Francisco A outra ao lado direito é o va queiro do Nordeste representado no artigo do livro que Nilda Ferraz como demonstrei na seção ante rior utilizou para me asseverar que o homem ali representado era o vaqueiro de verdade Na primeira imagem é interessante notar que ao tratarse da pecuária nordestina tema abrangente que envolve uma série de questões personagens e contextos a representação imediata para a capa do livro seja exatamente a do cavaleiro que na caatinga lida com o gado selvagem tal a importância desse recorte imagético para estancar a história de fazendas boiadeiros e vaqueiros Na imagem à direta mais uma vez é o próprio o vaqueiro tradicional original e autêntico que Nilda Ferraz concluiu ser um dos sím bolos de sua tradição Os próprios vaqueiros ao falarem do passado da tradição e do tempo dos antigos traziam em suas narrativas uma série de valores históricos econômicos e morais que defi niam a vida de vaqueiro do passado como algo único simbólico remetendose a um modo de vida do qual sentem saudade Segun do diziam difi cilmente a vida de vaqueiro se realizaria hoje com a glória de outrora Suas lembranças os tornavam tão saudosistas quanto o próprio folclorista Câmara Cascudo que em sua obra de 1956 Tradições Populares da Pecuária Nordestina nos dá a seguinte ideia Imagem 01 Capa que demonstra a relação inextrincável do cavaleiro com o boi Imagem 02 Vaqueiro do artigo lido por Nilda Ferraz CAMPOS V20 N2 juldez2019 165 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE Apesar de tudo a fazenda é o mundo fi el ao seu passado Não se revela imediatamente a uma per gunta de repórter para a revista ilustrada Existe tempo para a intimidade para a confi ança para a confi dência Depois fi case sabendo que aquele é mundo encantado e bem diferente do pensa mento inicial Os animais as árvores velhas os caminhos os recantos o recorte dos serrotes têm histórias explicações etiológicas fabulário crônica Há uma multidão de heróis que jamais darão à História a honra de uma visita Vaqueiros de outrora carreiros admiráveis rastejadores infalíveis aboiadores de voz mágica feiticeiros maiores que Merlino amores dedicações sacrifícios raptos valentias gente bonita enamorada e boa tudo morto mas presente e ressuscitando nas vozes evo cadoras e doces vivem realmente e participam da existência funcional presente Daria livro mas há o pudor religioso de não obrigar aquele mundo a entrar para o bojo da garrafa de Salomão nem achatálo numa página infi el às luzes e cores realmente possuídas Cascudo 1956 16 Se nas palavras do autor os sertanejos se renovariam sendo fi éis à história reproduzindoa e mantendoa intacta a despeito das transformações outros autores sustentaram a prerrogativa de que os costumes e os valores concernentes à lide pastoril não iriam sobreviver com o processo de modernização Prado Jr 2006 1945 por diversas razões a introjeção sistematizada do capitalismo a instauração de novas tecnologias produtivas as divisas e a Lei de Terras de 1850 que instituiu a propriedade privada no Brasil os cercamentos e os limites dividindo os campos outrora compartilhados etc A moderni zação resultaria na imediata perda do protagonismo do vaqueiro nordestino como sujeito econômico ou então o vaqueiro se tornaria recalcitrante e reprodutor de seus velhos costumes e crenças encerrado na esfera social retrógrada em que vive Prado Junior 2006 1945 Ribeiro 1995 Mello 2011 1985 Ora é nesse sentido que a literatura e o saber ofi cial apresentam os seus próprios limites para o entendimento da noção nativa de tradição justamente porque sua iniciativa é a de congelar os coletivos os indivíduos e as relações sociais em tipologias pretéritas e além disso de enquadrálos em modelos sem antes prestar a devida atenção ao que se atualiza refazse e muitas vezes escapa aos próprios en quadramentos analíticos Ao desconsiderar por completo as atividades por meio das quais os vaqueiros se atualizam e resistem o saber ofi cial relega ao passado a singularidade histórica do vaqueiro e passa simultaneamente a interpretar o presente como mera reprodução social Em contrapartida os vaqueiros entre os quais realizei pesquisa de campo diziam que o mundo da fazenda é um contexto muito distinto do que já foi um dia Para eles o passado não se fi deliza no presente Aliás o tempo pretérito a tradição e a memória são na verdade pontos de partida para avaliar quem é ou não é vaqueiro quem o foi de fato ou quem ainda o será A esse respeito apresentarei na seção seguinte algumas refl exões com o intuito de avançar a proposta aqui pretendida demonstrar a efi ciência da verdade histórica e da tradição do vaqueiro tentando entendêlas como pontos de diferen ciação e de atualização Para isso antes é preciso analisar historicamente como os vaqueiros se diferen ciavam entre si e de seus patrões 166 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Vaqueiros e fazendeiros Outra possível generalização do saber ofi cial é a ideia de que sempre houve uma relação de con fi ança de lealdade e de reciprocidade entre fazendeiro e vaqueiro Cascudo 1956 2728 Mello 2011 1985 50 De um lado o vaqueiro como o trabalhador estimado no qual o patrão deve confi ar De outro o fazendeiro a quem o vaqueiro deveria respeitar por lhe distribuir como moeda de troca pres tígio político e parcela de seu rebanho Nessa lógica o fazendeiro foi sempre visto como o elemento dominante da relação Nas palavras de Euclides da Cunha 1927 1902 os vaqueiros estariam sujei tos a uma servidão inconsciente Por sua vez contrário a essa prerrogativa o trabalho de Joana Medrado 2012 intitulado Terra de Vaqueiros dedicase com exclusividade à análise histórica das relações entre vaqueiros e fazendeiros em seu caso na comarca de Jeremoabo sertão da Bahia indo além da estagnação do vaqueiro como subserviente aos domínios políticos regionais A autora parte da hipótese de que mais do que lealdade confi ança e dominação os vaqueiros detinham os seus próprios meios de resistência de manutenção e de recriação do prestígio e de sua cultura política 2012 36 Em geral a autora demonstra a partir do signifi cado do vaqueiro como fi gura leal e obediente que a literatura clássica sempre lhe rogou uma imagem positiva romântica e saudosista idem 126127 Também em Floresta aparece essa imagem positiva associada ao vaqueiro Por meio das inúme ras qualidades morais concentradas em uma única fi gura a interlocutora Nilda Ferraz por exemplo referenciava os autênticos e originais vaqueiros do passado como os reais sujeitos de sua tradição No meandoos às vezes como personagem e dandolhes certa positividade histórica os meus interlocutores extraíam refl exões e asserções sobre quem era ou não vaqueiro à medida que cristalizavam como sim bólico e representativo os sujeitos do passado imagem pungente em suas memórias ao lembrarem do tempo em que existia muito gado brabo nas fazendas de seus antepassados familiares e amigos Nesse sentido para os sertanejos entre os quais realizei pesquisa a imagem histórica do vaqueiro serve para pensar a posição do outro e refl etir sobre si mesmos e o próprio passado Inclusive a imagem simbólica do vaqueiro é um artifício estratégico para pensar a história local a de Floresta e a de suas famílias e a história nacional na forma de tradição e de cultura assim como para criar certas virtudes a respeito da singularidade de seus costumes enquanto sertanejos ou vaqueiros de verdade além de conferir positividade a determinados valores e personagens históricos o vaqueiro simbólico como o antigo homem do campo sujeito corajoso honrado e leal A singularidade do vaqueiro que imediatamente remete ao seu desbravamento e à sua liberdade de ação pelos campos indivisos é o elemento que o conecta diretamente ao passado à tradição e por tanto à verdade histórica mas também ao presente à sua contemporaneidade Se o vaqueiro é sempre o sujeito que tem coragem e agilidade para capturar uma rês bravia no campo tal atitude ainda hoje é a que mais o diferencia de toda a sorte de pessoas que se dizem vaqueiros mas nunca cumpriram as funções um dia necessárias O gosto pelo passado reformula o que é o vaqueiro hoje e o que exatamente ele não é mais A ideia de um vaqueiro simbólico que busquei construir com a ajuda da literatura e do saber local serve no mínimo de medida avaliativa e de matriz purifi cadora que a partir de um gra CAMPOS V20 N2 juldez2019 167 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE diente qualifi cativo e conceitual faz os interlocutores desta etnografi a botarem em níveis distintos de importância os tipos de vaqueiros existentes em sua realidade Assim é possível defender neste artigo a ideia de que tanto para a literatura quanto para os ser tanejos tanto para o saber ofi cial quanto para o saber local é possível investir certas qualidades refl e xões temporalidades e características que fazem do vaqueiro do Nordeste uma singularidade histórica Embora se possa vêlo sob diversas formas o verdadeiro vaqueiro será sempre o homem do campo que um dia exerceu funções e teceu sentimentos referentes a outra temporalidade O vaqueiro simbólico da história nacional ligado ao que convencionei chamar aqui de verdade histórica é portanto sui generis e a sua autenticidade resulta das estratégias de essencialização que meus interlocutores conduzem por meio de uma poética social Herzfeld 2005 1997 Segundo este autor a poética social é um método de análise das contradições sociais e de seus efeitos subsequentes diante da formalização estatal que como um equalizador das variabilidades repercutidas no seio da intimidade cultural voltase sempre à construção de essencialismos e de verdades na vida cotidiana idem 54 Embora as refl exões do saber ofi cial e do saber local estejam contornadas de generalizações e de impressões às vezes de cunho naturalista e culturalista Barroso 1930 1912 Cascudo 1956 Mello 2011 1985 foram elas próprias que notaram a prevalência dos vaqueiros como sujeitos históricos únicos disputando entre si a posição de ser vaqueiro e buscando ascensão e prestígio sociais É justa mente nesse sentido que para Medrado 2012 por exemplo o vaqueiro foi uma espécie de bilíngue que transitava por diversos meios e situações Tecendo árduas críticas às perspectivas clássicas que cari caturaram o vaqueiro nordestino como incondicionalmente leal e fi el ao dono da fazenda a autora notou que mais do que reprodutores de valores e de costumes e obedientes a uma totalidade social os vaqueiros no seio de suas relações com chefes e terceiros buscavam a todo instante obter prestígio e fl exibilizar a sua própria posição Um dos principais traços a distinguilo tanto no seio da classe dominante quanto entre os traba lhadores em geral era a capacidade que ele demonstrava de transitar livremente entre o mundo do dono da fazenda e aquele dos trabalhadores tornandose bilíngue experiente na arte de deco difi car normas de comportamento por vezes opostas Por isso mesmo o vaqueiroadministrador atuava como portavoz dos interesses de um ou de outro grupo No entanto essa condição de bilíngue longe de amortecer o confl ito entre as classes como o termo pode sugerir fazia do vaqueiro alguém que tinha mais elasticidade e noção do funcionamento social e que podia apro veitar as frestas de comunicação em proveito próprio Medrado 2012 127128 Desse ponto de vista os vaqueiros historicamente foram uma massa de trabalhadores da qual eles próprios buscavam muitas vezes se destacar não só porque lhes delegavam poder político mas porque exerciam funções variadas e circulavam por diversos meios Ao analisar processos civis e criminais da comarca de Jeremoabo entre o período de 1880 a 1900 a historiadora se deparou com várias categorias de vaqueiro descobrindose na difi culdade de unifi car o vaqueiro em uma única categoria analítica a saber vaqueiroadministrador vaqueiroprocurador vaqueiroinspetor de quarteirão e vaquei roguarda de tropa Medrado 2012 9091 168 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Há igualmente neste caso etnográfi co a impossibilidade de comprimir em uma única defi nição e imagem todas as características valores e atributos dos vaqueiros entre os quais realizei pesquisa de campo vaqueiros de verdade vaqueiros de vaquejada vaqueiros de pega de boi vaqueiros de festa vaquei rinho vaqueiros antigos vaqueiros velhos Por esse motivo a fórmula do vaqueiro simbólico tal como mobilizada pelo saber ofi cial e pelo saber local em especial na terceira seção deste artigo demonstra agora o seu próprio limite analítico Apesar de o vaqueiro ainda ser passível de generalizações analíticas por outro lado como veremos na seção seguinte o vaqueiro não depende apenas de si mesmo e de suas relações históricas com o outro mas também de suas relações históricas com os animais e as caatingas Modulação ecológica rebanho seca e cerca Como vimos em face de seu protagonismo econômico histórico e político a literatura notou que o vaqueiro é o refl exo da sociedade sertaneja No entanto de modo mais específi co ela assim o interpretou como um mito de origem associado à inegável vitalidade histórica que segundo Medrado 2012 contribuiu muito para a propagação de uma imagem positiva associada ao vaquei ro 2012 127 um mito de origem formulado pelas táticas do saber ofi cial que concentram nele quase toda a totalidade da cultura pastoril Mas suas táticas fi zeram também o processo inverso Viu na pastorícia o surgimento da própria singularidade humana como se na fi gura do vaqueiro estivessem refl etidas de uma só vez várias das virtudes do homem sertanejo Para Darcy Ribeiro 1995 em O povo brasileiro a economia pastoril por exemplo conformou também um tipo particular de população com uma subcultura própria a sertaneja marcada por sua especialização ao pastoreio por sua dispersão espacial e por traços característicos identifi cáveis no modo de vida na organização da família na estruturação do poder na vestimenta típica nos folguedos estacionais na dieta na culinária na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo Ribeiro 1995 338 É nesse sentido que meus interlocutores de pesquisa me disseram algo parecido com as conclu sões de Darcy Ribeiro os vaqueiros e a economia pastoril foram a gênese de uma formação histórica Mais do que isso vaqueiros e bois constituíram conjuntamente uma única e só realidade Ao longo do tempo os vaqueiros aprenderam e aprimoraram a função de laborar com o gado estabeleceram com o animal uma relação específi ca e a partir disso fundaram um modo de vida particular o da pastorí cia Engajandose em seu trabalho e evoluindo com ele os vaqueiros investiam suas energias em certa modulação ecológica antigamente caracterizada pelo uso comum das terras e pela natureza bravia do animal bovino e superavam de diversas formas a obrigação com o patrão e os costumes básicos Como demonstrado na segunda seção para o vaqueiro Antônio Balbino os vaqueiros de an tigamente eram uns homi bruto um índio um caboclo brabo Importante observar nessa fala que além da manifestação bruta do animal bovino o vaqueiro em sua origem também foi bruto um homi bruto Vale notar igualmente que brabo e bruto neste caso aparecem como sinônimos um do outro Frequentemente o termo brabo se refere ao animal bravio pouco ou nada domesticado feroz selva gem portanto bruto Caso diferente do gado manso ao qual se investe outros afetos e práticas como o CAMPOS V20 N2 juldez2019 169 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE carinho Os bois e vacas tidos como mansos são seres plenamente domesticados Já o gado brabo é sem pre aquele que se caça no sentido de capturálo e descobrilo em meio à caatinga ou que se apropria para demarcálo com ferro e sinal para simbolizálo como propriedade de alguém que pertence a uma localidade a uma fazenda com o intuito de que os outros não o roubem16 Por fi m vale notar que para destacar a ferocidade de um boi ou de uma vaca poucas vezes se utiliza o termo brabo Dizse com mais especifi cidade que a rês é valente qualidade de animais que além de bruto ou brabo porque criado solto e portanto bicho que nunca via gente enfrentam o vaqueiro desafi amno e exigem dele a coragem São animais que não apenas fogem mas brigam e lutam contra os humanos tratei disso noutros lugares Pereira 2016 2017 Ora na percepção de Antônio Balbino portanto não só o gado era bruto como o próprio vaqueiro também o era A partir de seu esforço mnemônico percebese o surgimento de uma instân cia máxima de passado diretamente conectada a um ponto indeterminado no tempo porém o mais longínquo possível Uma espécie de exegese que segundo Benjamin não se preocupa com o encadea mento exato de fatos determinados mas com a maneira de sua inserção no fl uxo insondável das coisas 1985 1936 209 Neste caso tratase de um recorte temporal abstrato capaz de indicar que boi e homem estiveram sempre lado a lado igualáveis em termos de brutalidade e braveza A autenticidade do vaqueiro sendo o resultado imediato de sua natureza primeira e a singularidade histórica da relação entre vaqueiro e boi uma verdade última estagnada na imagem do vaqueiro de verdade talvez porque agora emprestando aqui as palavras de Soares no sistema da pecuária nordestina era o gado que criava o homem ao invés do homem criar o gado 1968 38 Contudo pretendo avançar essa conclu são do autor Na fala de Antônio Balbino vaqueiro e boi criaramse um a partir do outro mutuamente Os vaqueiros se transformaram em outra coisa a partir do que puderam aprender com os animais É dessa outra coisa em que se transformaram que os vaqueiros de hoje se espelham e são ao mesmo tempo julgados por outrem porque dela se aproximam e ao mesmo tempo se diferenciam Em sua instância máxima de passado os vaqueiros deixaram de ser o que eram para se tornarem algo que hoje corrobora justamente a seleção de alguns poucos vaqueiros vaqueiro mesmos Segundo os mais velhos os vaquei ros de hoje não valorizam a mesma perspectiva do passado porque não sabem como era viver no tempo em que o bicho era bruto e não via gente No tempo em que o bicho era criado solto no mato Assim há uma concepção genealógica de que boi e vaqueiro estão engajados desde os primórdios uma verdade histórica fl exionada pela singularização de um encontro interespecífi co posteriormente modifi cado pelos cercamentos e pela delimitação das terras por uma nova modulação ecológica que repaginou no sertão do Nordeste os campos por onde transitavam homens e animais Uma transforma ção ecológica capaz de modifi car inclusive não só a natureza dos animais mas também a dos humanos 16 Ao ato de inscrever nas orelhas dos animais caprinos ovinos e bovinos o sinal de seu proprietário na orelha direita e o sinal da propriedade na orelha esquerda este último chamado de mourão dáse o nome de assinar Ferrar por sua vez é demarcar com ferro o símbolo da propriedade e do proprietário no corpo da rês às vezes também no gado equino No lombo direito de um boi ou de uma vaca queimase o ferro que denomina a pessoa do proprietário normalmente com as iniciais do nome e no lombo esquerdo queimase o ferro que constitui o carimbo de sua propriedade geralmente um símbolo indicador do nome da fazenda Sobre a importância dos sinais e ferros na vida rural sertaneja cf Barroso 1930 1912185191 e Medrado 2012 95 sobre sinais e ferros também na mesma região no que tange à questão da família e do parentesco cf Marques 2002 142 268 e Villela 2004 224225 170 CAMPOS V20 N2 juldez2019 No século XX segundo Cascudo 1956 veio decorrentemente o cercado de arame a cerca divisória mudando ou dando à psicologia sertaneja outro matiz Quando o vaqueiro conhecia os limites de sua jurisdição pelas divisas quase inexistentes travessões que a caatinga cobrira lugares onde um paudarco existira agora deparava a fronteira fechada com aqueles fi os eriçados e hostis E as cancelas as porteiras de passagem mul tiplicaramse Antigamente iase num livre galope léguas e léguas numa ilusão de terra comum indominada e virgem de posse O arame deu ao vaqueiro pela primeira vez a impressão domina dora da posse alheia a imagem do limite Cascudo 1956 13 Contudo os cercados por si só não bastam Outro fator transformativo são as secas À época da minha pesquisa de campo em 2016 os meus interlocutores falavam especialmente da seca contempo rânea que desde pelo menos os anos de 201112 afeta ainda hoje o sertão pernambucano Juntos cer cados e secas segundo eles foram capazes de transformar historicamente a vida de vaqueiro noutra coisa que não a verdadeira vida no campo e de transformar a natureza do rebanho em outra coisa que não a do gado brabo Juntos as secas e os cercados foram dois elementos centrais para justifi car a difi culdade de reproduzir manter zelar e criar o rebanho Em suma o sistema de divisão de terras e os cercados domesticaram o animal doravante mais perto e mais preso Ademais por conta das estiagens o gado deixou ser o objeto central de investimento Da perspectiva dos sertanejos o boi vem perdendo o seu protagonismo não só como resultado de uma confi guração espacial mas porque é inviável mantêlo vivo nas secas tendo que modifi car completa mente a lida na fazenda e a vida cotidiana no campo Sendo assim a mutualidade entre boi e homem sistematizada no passado parece ressurgir mais como falta do que presença mais como nostalgia do que verdade empírica Analiticamente isso signifi ca que os homens que na austeridade da seca atual lutam para manter seu rebanho vivo dedicamse à atividade de pegar o pouco de gado brabo existente e aliás não se enver gonham em se dizerem vaqueiros diante do outro provam por si mesmos pela sua história e pelo seu estilo de vida que a sua posição é resultado de relações concretas com o passado de um dia ter estado no lugar certo e no tempo certo Na medida do possível exercer as atividades que singularizam a vida no campo acaba portanto reforçando ainda mais a verdade histórica do vaqueiro do Nordeste pois são justamente esses homens que ao se dizerem vaqueiros difi cilmente serão contrariados ou postos à prova publicamente de que eles não os são Dentro de uma série de elementos avaliativos mobilizados pelos meus interlocutores de pesquisa constatase o seguinte é justamente por meio da estabilização imagética do passado que a verdade do vaqueiro vem à tona E é com ela que em geral eles qualifi cam alguém como mais vaqueiro do que outros principalmente quando se trata de um vaqueiro que exerce as atividades que devem ser exercidas e quando se diz ter vivido em um contexto que lhe atribui auten ticidade trabalhando com o gado na fazenda eou pegando gado brabo no mato Portanto mais uma vez viver e se dedicar na medida do possível à vida no campo não é apenas reproduzir um tipo de vida datado que ainda hoje resistiria às intempéries e às transformações sociais tal como querem a literatura clássica e o saber ofi cial Para o caso aqui analisado tratase em contrapar tida de preservar não só um modo de vida mas o próprio desejo de ser vaqueiro de pensálo da forma CAMPOS V20 N2 juldez2019 171 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE como sempre foi e da forma como ainda é possível conduzilo a partir de suas relações com os outros mas também de suas relações com os animais e caatinga Mesmo diante das transformações ocorridas no sistema pastoril sertanejo a essencialização de um tipo de vida que não se pode mais exercer tal como um dia se fez é o ponto de conexão do uni verso do vaqueiro com a sua verdade histórica Isto é as constantes infl exões retóricas que servem para fi xar uns e não outros na posição de vaqueiro ou que servem para diminuir a posição de uns em relação à de outros a partir de um gradiente qualifi cativo e conceitual trazem nesta análise a fórmula de uma nostalgia estrutural que não por acaso vem a ser um dos fi os de ligação das pessoas com a verdade Herzfeld 2005 1997 Especifi car o que é ser vaqueiro é portanto medir o seu lugar e o do outro na autenticidade na originalidade e na tradição É estabilizar um modo de vida que diversas vezes aparece como a mais pura e verdadeira Todavia tentar encontrar esse modo vida puro e verdadeiro isto é tentar encontrar os vaqueiros de verdade pelo menos da forma como me descreveram Nilda e Quirino na segunda seção deste artigo levoume de imediato a pessoas que viviam na cidade com outros empregos que não o de vaqueiro e vivendo de outras maneiras que não a da vida no campo Aspectos que por incrível que pareçam não os retiravam da posição de ser vaqueiro de verdade por morarem na cidade e por não mais exercerem a profi ssão de vaqueiro Por seu turno os vaqueiros véios atestavam a todo instante o seu prestígio de verdadeiro vaqueiro mostrandome entre outros coisas que a sua vida já foi um dia muito distinta da que é hoje Mostrandome que o passado e a memória por eles mobilizadas são a prova de que são de fato e de direito vaqueiros vaqueiros mesmo Conclusão Ora se a história e o modo como a literatura e o saber ofi cial tratou as transformações sociais do pastoreio importam na análise elaborada neste artigo elas só são importantes no limite de suas próprias descrições uma vez que os próprios vaqueiros e o saber local esgotam as problematizações do saber ofi cial ao demonstrarem que embora seus modos de existência sejam muitos distintos dos tempos de outrora os vaqueiros continuam existindo sob novas relações reinventandose e recriando o regime da lida da fazenda da vida de vaqueiro e da vida no campo Existir como vaqueiro e ao mesmo tempo se distinguir de seus contemporâneos que se dizem vaqueiros mas só frequentam vaquejadas pegas de boi e festejos por exemplo provam e atestam ao outro não o que eles próprios são mas o que foi historicamente o vaqueiro nordestino o que ele ainda é o que ele signifi ca e quais os diversos modos de caracterizálo ao longo do tempo Se muitos tiveram a clareza de defi nir o que signifi ca ser vaqueiro baseandose por exemplo em livros e em fundamentos teóricos sobre a cultura sertaneja e a tradição outros no entanto por sua vez os vaqueiros da lida demonstraram o que signifi ca ser vaqueiro com base no que é hoje possível investir e reelaborar na vida de vaqueiro mesmo sob a modulação ecológica das secas e dos cercados Dessa forma temse o seguinte quadro geral uns nos guiando à compreensão do que é o vaqueiro da 172 CAMPOS V20 N2 juldez2019 perspectiva da tradição outros os próprios vaqueiros demonstrando a nós o que a literatura não é capaz de explicar Afi nal o que signifi ca ser vaqueiro no tempo presente E mais ainda embora já se tenha suposto o seu fi m há bastante tempo por que o vaqueiro não desapareceu Da perspectiva de meus interlo cutores o passado não é somente um recorte histórico prévio e imutável Além de certas maneiras de qualifi car diferenciar e identifi car a si mesmo no tempo a história do vaqueiro do Nordeste depende de um conjunto complexo de estratégias contemporâneas de reconstrução dos acontecimentos através principalmente da memória e da habilidade retórica de conferirem verdade ao que viveram Renan Martins Pereira é Mestre em Antropologia pelo PPGASUFSCar e doutorando na mesma instituição É pesquisador do Grupo Hybris Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de poder confl itos e socialidades da USP e UFSCar Bolsista Capes Referências bibliográficas ABULUGHOD Lila 1991 Writing Against Culture In R G Fox org Recapturing Anthropology working in the present Santa Fe School of American Research Press AIRES Francisco J F 2008 O espetáculo do cabromacho um estudo sobre os vaqueiros nas vaquejadas do Rio Grande do Norte Dissertação de Mestrado PPGAS UFRN Natal RN ANDRADE Manoel Correia de 1986 1963 A Terra e o Homem do Nordeste 5ºed São Paulo Ed Atlas BARROSO Gustavo 1956 1912 Terra de Sol Natureza e Costumes do Norte Rio de Janeiro Francisco Alves BENJAMIN Walter 1985 1936 O narrador considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In W Benjamin Obras escolhidas Magia e técnica arte e política São Paulo Brasiliense 3ºed CARSTEN Janet org 2013 Blood will out essays on liquid transfers and fl ows Chichester Wiley Blackwell CASCUDO Luís da Câmara 1956 Tradições populares da pecuária nordestina Rio de Janeiro Serviço de Informação Agrícola 2005 1939 Vaqueiros e Cantadores Folclore poético do sertão do Ceará Paraíba Rio Grande do Norte e Pernambuco São Paulo Edusp CUNHA Euclides 1927 1902 Os Sertões 10ª ed Rio de Janeiro Livraria Francisco Alvez DELEUZE Gilles 1974 1972 Em que se pode reconhecer o estruturalismo In François Châtelet org História da Filosofi a vol 8 O Século XX Rio de Janeiro Ed Zahar FURTADO Celso 2007 1959 Formação Econômica do Brasil São Paulo Companhia das Letras GEERTZ Cliff ord 1978 1973 A interpretação das culturas Rio de Janeiro Zahar CAMPOS V20 N2 juldez2019 173 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE 1997 1983 O saber local novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis RJ Vozes HARAWAY Donna 1995 1988 Saberes localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos Pagu 5 0741 HERZFELD Michael 1997 2008 Intimidade Cultural poética social no EstadoNação Lisboa Edições 70 IBGE 1956 Tipos e Aspectos do Brasil Excertos da Revista Brasileira de Geografi a Rio de Janeiro Ministério da Fazenda LALANDE André 1967 1927 Vocabulario Técnico y Crítico de la Filosofía Buenos Aires El Ateneo LOPES Camilo Antônio Silva 2016 Vaqueiros seleiros carreiros e trançadores uma etnografi a com coisas pessoas e signos Tese de doutorado Campinas SP PPGCSUnicamp MACEDO José Norberto 1952 Fazendas de gado no Vale do São Francisco Rio de Janeiro Ministério da Agricultura MARQUES Ana Claudia 2013 Founders ancestors and enemies Memory family time and space in the Pernambuco Sertão JRAI 19 4 716733 2002 Intrigas e Questões vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco Rio de Janeiro RelumeDumará UFRJ Núcleo de Antropologia da Política VILLELA Jorge L M 2016 Le Sang et la Politique La production de la famille dans les joutes electorales au sertão de Pernambouc Brésil Anthropologica 58 291301 MEDRADO Joana 2012 Terra de Vaqueiros relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia 1880 1900 Campinas SP Editora da Unicamp MENEZES Djacir 1970 1937 O Outro Nordeste Rio de Janeiro Artenova MELLO Frederico P de 2011 1985 Guerreiros do Sol violência e banditismo no Nordeste Brasileiro São Paulo A Girafa PEREIRA Renan Martins 2016 Dominação e Confi ança vaqueiros e animais nas pegas de boi do sertão de Pernambuco Teoria e Cultura 11 6380 2017 Rastros e Memórias etnografi a dos vaqueiros do sertão Floresta PE Dissertação de Mestrado São CarlosSP PPGASUFSCar PRADO JUNIOR Caio 2006 1945 História Econômica do Brasil São Paulo Brasiliense RIBEIRO Darcy 1995 O povo brasileiro A formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras SANJURJO Liliana 2013 Sangue Identidade e Verdade memórias sobre o passado ditatorial argentino Tese de Doutorado CampinasSP PPGASUnicamp SOARES Renan Monteiro 1968 Aspectos sociológicos da pecuária nordestina Recife Imprensa Universitária UFPE VILLELA Jorge Mattar 2004 O povo em armas violência e política no sertão de Pernambuco Rio de Janeiro Relume Dumará 174 CAMPOS V20 N2 juldez2019 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE Resumo Neste artigo desenvolvo algumas questões abordadas na minha dissertação de mestrado so bre os vaqueiros do município de Floresta sertão de Itaparica PE A partir delas pretendo analisar como os meus interlocutores se deparam frequentemente com um dilema Em Floresta muitos de seus habitantes avaliam e questionam o futuro de vaqueiros de verdade cavaleiros hábeis na arte de captu rar o gado selvagem na caatinga ao passo em que imagens discursos e práticas de vaqueiros de hoje ganham força e vitalidade em missas festas e vaquejadas onde são celebrados o prestígio de homens do passado os seus maiores feitos e suas memórias contribuindo aliás para novas possibilidades de ser vaqueiro Por essa razão examino como as narrativas locais e a literatura nacional constroem uma estabilização imagética e conceitual do passado articulando temporalidades e espacialidades em que o vaqueiro nordestino se expressa de maneira simultaneamente histórica e contemporânea Palavraschave Memória Sertão Vaqueiro História Pernambuco HORSEMEN IN TIMES OF GLORY AN ETHNOGRAPHIC ANALYSIS OF THE HIS TORY OF THE BRAZILIAN NORTHEAST COWBOY Abstract In this article I develop some of the issues addressed in my Master s thesis about the co wboys of the municipality of Floresta sertão of Itaparica PE I intend to analyze how my interlocutors are oft en faced with a dilemma In Floresta many of its inhabitants evaluate and question the future of true cowboys horsemen skilled in capturing wild cattle in the caatinga vegetation at the same time as images speeches and practices of todays cowboys gain strength and vitality at religious celebrations parties and vaquejadas where the prestige of the ancients their greatest deeds and their memories are celebrated contributing by the way to new possibilities of being a cowboy For this reason I examine how local narratives and national literature construct an imaginary and conceptual stabilization of the past articulating temporalities and spatialities in which the cowboys of Brazilian Northeastern expres ses itself both historically and contemporaneously Keywords Memory Sertão Cowboy History Pernambuco RECEBIDO 20092019 APROVADO 02022020
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CAMPOS V20 N2 pp 155174 juldez2019 155 A R T IG O S CAMPOS V20 N2 JULDEZ2019 Cavaleiros em Tempos de Glória uma análise etnográfi ca da história do vaqueiro do Nordeste Renan Martins Pereira Introdução Em fevereiro de 2016 para a elaboração da minha dissertação de mestrado iniciei uma pesquisa de campo no município de Floresta1 sertão de Itaparica Pernambuco que resultou em uma etnogra fi a sobre os vaqueiros do município com foco nas suas relações com a memória e os animais Pereira 2017 Nesse trabalho pretendi analisar como os habitantes do município no que se refere ao tema do vaqueiro sertanejo e sua história2 deparamse frequentemente com um dilema Em Floresta ninguém diz O vaqueiro não existe mais3 Uma afi rmação como essa não me foi dita em momento algum Pelo contrário quando se recorre a alguém e lhe faz qualquer pergunta sobre o tema de imediato se afi rma que Floresta é a capital do vaqueiro O curioso é que simultaneamente a isso pode surgir da boca de alguém a seguinte expressão O vaqueiro está desaparecendo ou O va queiro desaparecerá Segundo meus interlocutores o que os levam a se interrogar a respeito da existência do vaqueiro ou de sua suposta desaparição futura é que hoje em dia são raros os homens que se dedicam ao campo4 1 Floresta está localizada na mesorregião do São Francisco e na microrregião do Sertão de Itaparica distante 439 km da capital do estado Recife Segundo dados do IBGE2016 sua população estimada é de 32152 habitantes 2 A partir de eixos analíticos e temáticas específi cas poucas etnografi as têm sido produzidas nos últimos anos a respeito do vaqueiro sertanejo por exemplo Aires 2008 e Lopes 2016 3 Termos em itálico correspondem a expressões nativas Frases entre aspas simples representam transcrições diretas da fala nativa e frases entre aspas duplas representam citações de autores acompanhadas de referência bibliográfi ca 4 Campo signifi ca a parte não cercada da caatinga É o território onde nasce e vive o rebanho criado solto no mato que em certos períodos necessita ser recrutado para fi ns de manutenção e vigília de vaqueiros e criadores A forma verbal campear é no que se refere às atividades do vaqueiro sinônimo de procurar capturar e dominar na espacialidade do campo os animais selvagens Criadores são de modo geral quaisquer pessoas que criam gado caprino ovino bovino ou equino Mas criador se distingue de vaqueiro sujeito hábil na arte de capturar os animais indomáveis Entre os animais as diferenças básicas consistem em quatro termos convencionais criação reba nho de caprinos e ovinos criatório de gado referese apenas ao gado bovino animal sempre o gado equino e criatório totalidade do rebanho de todas as espécies 156 CAMPOS V20 N2 juldez2019 cuidando do rebanho próprio ou do patrão e sobretudo hábeis na arte de capturar as reses selvagens na caatinga As razões para tanto segundo eles é que as secas5 os cercados e as subsequentes mudanças na natureza dos animais e no ambiente têm levado o sertão a uma nova modulação ecológica na qual dizem não é possível ser vaqueiro como no tempo dos antigos Apesar disso há os que se dizem e se consideram vaqueiros sem no entanto serem reconhecidos como vaqueiros de verdade É o caso por exemplo de vaqueiros de vaquejada vaqueiros de pega de boi6 vaqueiros de festa assim como crianças jovens e adultos que vestem a indumentária de couro apenas para desfi lar em missas e cavalarias ou para correr em vaquejadas Mobilizando a memória para se po sicionarem no presente dizem Essa é a nossa tradição Meu pai e meu avô foram vaqueiros Eu não trabalho no campo mas tenho sangue de vaqueiro7 Diante disso o objetivo principal deste artigo é analisar o que é historicamente o vaqueiro ser tanejo para a literatura nacional que denominarei de saber ofi cial e para os saberes de meus interlo cutores que denominarei de saber local8 a fi m de entender como cada um desses saberes constroem uma estabilização imagética e conceitual do passado que se concretiza neste caso na fi gura do vaqueiro de verdade original e autêntico Minha hipótese nesse sentido é que o vaqueiro sertanejo não é uma mera resistência histórica coberta de regionalismos e tradicionalismos como sustentam por exemplo as célebres teses sobre o Nordeste brasileiro Barroso 1956 1912 Menezes 1970 1937 Andrade 1986 1963 Cascudo 1956 e 2005 1939 Prado Junior 2006 1945 Furtado 2007 1959 Mello 2011 1985 Em contrapartida sugiro que ser vaqueiro tal como os meus interlocutores a entendem é uma posição disputada em constante transformação e que se expressa de maneira simultaneamente histórica e contemporânea Na primeira seção o objetivo é analisar o que signifi ca para o saber local e o saber ofi cial a verda de histórica do vaqueiro sertanejo Na segunda seção procuro analisar a partir de um acontecimento etnográfi co específi co o estatuto do passado na construção e na defi nição da originalidade e da auten ticidade do vaqueiro de verdade Na terceira seção analisarei como a verdade histórica do vaqueiro se 5 Categoria em destaque via de regra pela sua complexidade histórica pelos quase um século e meio de intervenção estatal em vias de combater e mitigar as secas na região semiárida do Nordeste pelos diferentes signifi cados que recebe tanto pelas populações locais quanto pela literatura nacional e ainda podemos dizer pelas diversas possibilidades de entendêla e classifi cála desde as relações dos sertanejos com a terra a memória o tempo as águas e os animais as quais não são o objetivo deste artigo mas que receberão um debate mais aprofundado no que se refere à questão das secas na última seção 6 O termo pega de boi corresponde à prática tradicional do vaqueiro de derrubar o gado na caatinga em velocidade para fi ns de manu tenção e vigília do rebanho Desta prática de trabalho foi derivada uma outra a pega de boi no mato Também chamada contemporanea mente de vaquejada a pega de boi no mato ou pega de boi na caatinga é uma competição em que um conjunto de vaqueiros a vaqueirama corre à procura do gado para derrubálo e capturálo visando o festejo a comemoração e a premiação 7 Quanto à correlação temática entre sangue e memória não é minha pretensão desenvolver neste artigo uma análise da relação entre esses dois importantes temas antropológicos Carsten 2013 Temas que inclusive são objetos de investigação de Marques 2013 e Mar ques e Villela 2016 no sertão de Pernambuco além de tema central para Sanjurjo 2013 em sua etnografi a sobre o passado ditatorial argentino 8 Não proponho uma adesão à hermenêutica de Geertz para tratar de pontos de vista e descrições nativas tais como no sentido con ferido por ele a partir das noções por exemplo de descrição densa 1978 e saber local 1997 1983 Aqui para a defi nição do que chamo de saber local inspirome nas ideias de saberes localizados de Haraway 1995 1988 e de etnografi as do particular de Abu Lughod 1991 Em resumo o que as duas autoras defendem é que falar do outro é produzir narrativas acerca de nossa familiarização com ele É preciso registrar particularizações em vez de diferenciações entre sujeito e objeto É preciso deixar de produzir generalizações que distanciem e isolem os outros de nós mesmos Considerar o particular segundo AbuLughod 1991 é não recorrer à homoge neidade à coerência e à atemporalidade CAMPOS V20 N2 juldez2019 157 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE fundamenta na noção de tradição constantemente mobilizada pelos meus interlocutores de pesquisa Na quarta seção trabalharei analiticamente as relações históricas entre vaqueiros e fazendeiros E na quinta e última seção analisarei como as relações ecológicas com os animais e as caatingas se transfor maram ao longo do tempo em virtude das secas e dos cercados resultando em uma imediata transforma ção na vida de vaqueiro Por fi m concluo que a história do vaqueiro do Nordeste só pode ser entendida etnografi camente a partir de estratégias contemporâneas de reconstrução dos acontecimentos através principalmente da memória e da habilidade retórica de meus interlocutores de conferirem verdade ao que viveram Verdade histórica Segundo a literatura nacional Cascudo 2005 1939 1956 Menezes 1970 1937 Mello 2011 1985 o modelo pastoril do Nordeste deu origem à particularidade da sociedade sertaneja Os obje tivos do saber ofi cial foram os de compreender os signifi cados de certas tipologias humanas conectadas a uma totalidade social ao meio natural e aos valores morais todos eles infl uentes na constituição das subjetividades das morfologias físicas e dos costumes A defesa de seus autores por uma totalidade parece depender de um método comparativo capaz de dar dimensões classifi catórias a partir das quais se chegaria à singularidade histórica da pecuária nordestina e do perfi l psicológicosocial do homem pecuário do Nordeste Mello 2011 1985 47 Segundo o saber ofi cial é fundamental para se compreender a sociedade sertaneja ou o Ou tro Nordeste tal como formulado por Menezes 1970 1937 que o seu sistema econômico seja contrastado com o que lhe antecedeu e o originou o ciclo da canadeaçúcar como denomina Mello 2011 1985 4243 Comparar assemelhar e diferenciar o sistema das lavouras e dos engenhos com o pastoreio seria para alguns pensadores um modo de classifi car dois modelos econômicos fundantes de uma única sociabilidade histórica Tal abordagem divide em duas vertentes a economia colonial Como um jogo de estereótipos nas palavras de Herzfeld 2008 1997 essa abordagem estabiliza dois processos históricos que segundo Cascudo são dois dois tipos de cultura 1956 2728 contí nuos complementares e por vezes a imagem reversa um do outro De um lado temse a produção açucareira do litoral defi nida a partir de prerrogativas como o coletivismo das relações sociais o trabalho escravo a exportação de monocultura e o seu contato per manente com o Velho Mundo De outro lado resultante do primeiro tipo temse o modelo pastoril dos sertões ao qual é creditado por exemplo o individualismo das relações sociais No litoral segundo a literatura o poder político era centralizado e os trabalhadores se identifi cavam como grupos No pastoreio em contrapartida as relações políticas eram mais fl uidas e disper sas e as pessoas estavam à sorte de suas próprias leis e geografi camente isoladas Mello 2011 1985 51 Disso resultam outras de suas características a saber o trabalho livre executado pela mãodeobra nativa mantida pelo absenteísmo de fazendeiros e boiadeiros que delegavam a seus vaqueiros o poder sobre a propriedade e a função de abastecer o litoral com a carne do gado portanto economia não exportadora 158 CAMPOS V20 N2 juldez2019 No entanto a polarização entre dois tipos de cultura parece se esgotar em si mesma como jus tifi cativa sociológica uma vez que só serviu em grande medida para defi nir tipos sociais geográfi cos e humanos encerrados em meras abstrações analíticas Se olharmos detidamente para o que disse Cas cudo 1956 acerca da indústria açucareira podemos imediatamente verifi car a seguinte conclusão Desta indústria que é fórmula de aglutinação coletivista o canto será sempre uníssono e coral a mentalidade surge condicionada aos interesses imediatos do grupo humano a que pertence o trabalhador O ciclo da canadeaçúcar não pode produzir o cangaceiro o cantador de pandeiro e de viola o improvisador o dançarino solista o artesão independente o cavalariano afoito o beato aliciante o jagunço o fanático Cascudo 1956 27 Com sua tática polarizadora e comparativa o saber ofi cial notou aliás que a pecuária nordestina produziu diversas singularidades inexistente nas lavouras e nos engenhos entre elas o poder dado aos vaqueiros pelos seus patrões Fazendeiros e boiadeiros faziam com que seus vaqueiros ao tomar conta das terras e dos rebanhos obtivessem maior prestígio se comparado ao de outros trabalhadores como por exemplo almocreves tangerinos moradores meeiros lavradores agricultores e mesmo ao de ou tros vaqueiros que não eram os responsáveis diretos pela propriedade e pelo rebanho bovino selvagem mas sim pelos rebanhos de bode pelo gado leiteiro domesticado e cercado ou pelos animais de carga Percebese portanto que o vaqueiro que tinha poder sobre os trabalhadores e cuidava do reba nho selvagem ganhava maior notoriedade e prestígio que os demais no contexto da economia pastoril Ou seja alguns recebiam o poder de comandar o conjunto de trabalhadores de uma propriedade e ou tros se tornavam conhecidos segundo meus próprios interlocutores por terem sido corajosos valentes ou bons vaqueiros ao se destacarem na lida com o gado na caatinga9 Na chave das relações de trabalho entre vaqueiros e fazendeiros as análises de Medrado 2012 sobre o sertão da Bahia se assemelham com as minhas no sentido de que no sertão de Pernambuco o prestígio dos vaqueiros resulta também tal como na região analisada pela autora de dois contextos 1 das relações de cumplicidade e confi ança entre vaqueiros e fazendeiros e 2 das relações dos vaqueiros com o gado 2012 157158 Curiosamente a esse respeito Cascudo 1956 formulou uma outra imagem desta vez focaliza da nitidamente na fi gura do vaqueiro dandonos o contorno romantizado de um personagem históri co único O ciclo do gado determina o individualismo do seu participante Dálhe a noção imediata de inde pendência de improvisação de autonomia de livre arbítrio de arrojo pessoal Fundada a fazenda o vaqueiro antigamente um escravo fi cava senhor do gado da casa dos cavalos responsável pelas iniciativas imediatas para defender os animais entregues à sua energia Movimentase livremente 9 No sertão de Pernambuco a lida se refere à relação diária e ao trabalho cotidiano com o gado bovino Para o conjunto de atividades relacionadas à manutenção do rebanho dizse lida do gado De forma substantiva lida e poucas vezes em sua forma verbal lidar ela se refere portanto à conformação de uma série de atividades da fazenda de empreendimentos voltados à manutenção do rebanho mas também ao ato de zelar a propriedade sua vegetação seus cercados seus recursos hídricos as moradas etc A isso tudo então dáse o nome de lida da fazenda Portanto lida e lidar sua forma verbal que às vezes irá aparecer aqui signifi cam de um modo geral um tipo de relação De um lado relações possíveis de serem travadas com o gado bovino na lida do gado ou na lida com o gado e de outro relações travadas no contexto da vida no campo o complexo geral ao qual a lida da fazenda faz parte CAMPOS V20 N2 juldez2019 159 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE nos plainos dos tabuleiros e caatingas no galope árduo do seu cavalo de fábrica caçando as reses tresmalhadas ou ariscas Cascudo 1956 27 Interessante é que não só da perspectiva do autor mas também da de meus interlocutores foi exatamente por meio das relações livres épicas e aventurosas dos vaqueiros com os animais na caatinga que uns se destacavam mais que outros na lida com o gado bravio Obedecendo a estrita função de vendê lo a pedidos do patrão os vaqueiros de verdade segundo me diziam eram homens do campo que sabiam as técnicas de capturálo e apartálo10 tornandose renomados e afamados por serem habilidosos em sua empreitada Portanto é dessa demonstração de técnica e de agilidade que no tempo dos antigos alguns homens eram mais prestigiados mais vaqueiros e não menos mais corajosos do que outros É importante recorrer a esse tipo de caracterização histórica pois os vaqueiros desta pesquisa como veremos ao longo deste artigo também acionam caracterizações e generalizações bastante pa recidas com as de Cascudo Quando conversava com alguns vaqueiros de verdade em Floresta estes recorriam em suas narrativas a certas artimanhas para se diferenciarem na posição de antigos vaquei ros ou vaqueiros velhos dos vaqueiros mais novos vaqueirinhos ou vaqueiros modernos11 Dentro desse contexto de maneira geral é dado maior notoriedade e prestígio aos vaqueiros que diziam ter vivido no tempo em que fora possível criar gado brabo solto na caatinga em campos indivisos partilhados por homens e animais na época em que os vaqueiros não conheciam como quer Cascudo a imagem do limite 1956 13 mais ainda no tempo em que era possível que o patrão confi asse no vaqueiro e este nos trabalhadores que compunham a mãode obra humana da fazenda Para melhor entender o esta tuto do passado na defi nição de vaqueiro de verdade trarei em seguida um acontecimento etnográfi co Original e autêntico Em Floresta quando a palavra vaqueiro é evocada dáse a ela um contexto preciso a vida de vaqueiro no campo No entanto quando se procura por esse vaqueiro vivendo e labutando no campo muitas vezes se ouve o seguinte questionamento Mas será que isso ainda existe Dois interlocutores Quirino e Nilda sugeriram a mim visitar uma determinada propriedade a Fazenda Mãe dÁgua bastante conhecida em Floresta Eles sabiam que lá havia vaqueiros trabalhando com o gado na produção de queijo inclusive a maior produtora de Floresta e também o melhor quei jo segundo eles mas seria improvável encontrar vaqueiros na lida com o gado brabo Embora tenham sugerido a mim que seria de grande valia conhecêla alertaramme que na Fazenda Mãe dÁgua eu poderia verifi car uma outra perspectiva Mas não exatamente a perspectiva do vaqueiro do campo Para Nilda e Quirino a vontade de realizar uma pesquisa sobre o vaqueiro trabalhando diaria mente na lida com o gado difi cultavam os meus objetivos O próprio advérbio de tempo ainda na pergunta do primeiro parágrafo desta seção demonstra que a vida de vaqueiro no campo parecia ser um modo de vida pretérito por vezes pouco claro na percepção de muitos de meus interlocutores 10 O ato de separar as reses de uma propriedade das propriedades vizinhas se chama apartação Cascudo 2005 1939 11 A maioria do material de campo que recolhi foram relatos narrativas e conversas que estabeleci com vaqueiros antigos Não recolhi material sufi ciente com vaqueiros mais novos ou vaqueiros de vaquejada que me permitisse contrastar analiticamente neste artigo as pers pectivas destes com as daqueles 160 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Sendo assim interrogueime Se já me disseram que Floresta é a capital do vaqueiro por que a difi culdade de encontrar uma fazenda onde ainda hoje existam homens trabalhando como vaqueiros O que signifi ca exatamente Floresta ser a capital do vaqueiro diante da própria difi culdade de encon trálos aos arredores do município Por conta disso perguntei a Nilda e a Quirino se por outro lado nas pegas de boi no mato outra modalidade em que o vaqueiro sertanejo se expressa seria possível estabelecer alguns contatos relevantes de pesquisa já que são práticas na de vida de muitos vaqueiros fl orestanos Os dois compreendiam que seria interessante pesquisar as pegas de boi no mato os festejos e a sua dinâmica e muito provavelmente encontraria ali vaqueiros de verdade ou vaqueiros antigos Mas em contrapartida o que acontece nas pegas de boi e nos festejos não é segundo Nilda autêntico e original Ela inclusive chegou a dividir entre sagrado e profano respectivamente o antigo o original e autêntico vaqueiro da lida e o atual por exemplo o vaqueiro de festa aliás tentou comparálos de modo a esta bilizar uma oposição um contraste A pega de boi é uma outra visão uma outra perspectiva uma outra dinâmica Está mais vinculada à bebedeira e à mulherada Eu acho que é mais interessante você ir atrás do vaqueiro autêntico original tradicional Para Nilda e Quirino quando se fala do vaqueiro sertanejo tratase enfaticamente e em primei ro lugar do vaqueiro vaqueiro mesmo o vaqueiro da lida e do campo Nas palavras de Nilda o sujeito autêntico e original do tempo de minha infância Desse sujeito histórico Nilda não tinha atualmente muito conhecimento mas ele próprio enquanto imagem do passado possibilitoua resgatar de suas memórias algumas percepções e lembranças da época em que nas propriedades de suas famílias exis tiam vaqueiros lidando diretamente com o rebanho de gado bovino Minutos depois de nossa conversa Nilda me dera a cópia de um capítulo de um livro chamado Tipos e Aspectos do Brasil organizado pelo IBGE Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística do qual ela tirara uma cópia do texto Vaqueiro do Nordeste sob a autoria da geógrafa Maria Fagundes de Souza Doca IBGE 1956 167170 Estávamos sentados no sofá da entrada de sua casa e em poucos minutos ela começou a lêlo por inteiro linha por linha almejando mostrar o que era o vaqueiro do ponto de vista de alguém que estudou o tema uma especialista no assunto O pequeno artigo além de conter uma representativa imagem explicava o que seria de fato segundo Nilda o vaqueiro tradicional O argumento geral do artigo é que a economia a natureza e a cultura estão imbricadas conjuntamente como suporte analíticodescritivo do heroico e honesto tipo sertanejo como quer a geógrafa em seu texto Tanto neste artigo quanto nos argumentos do saber ofi cial economia natureza e cultura são fatores externos que condicionam os indivíduos a ações e a conhecimentos condizentes com uma reali dade empírica previamente dada e que sobre ela resta aos indivíduos agirem conforme os resultados de suas relações com o ambiente a partir de seus artifícios econômicos e culturais isto é a partir de condi cionamentos fl exionados pelas necessidades de subsistência do vaqueiro em um meio onde ora se luta contra as intempéries naturais ora se reproduz os costumes das tradições e do cotidiano de trabalho Esse argumento que se pode ver nos livros e na retórica do saber ofi cial também está repercu tido nas palavras dos mais renomados vaqueiros fl orestanos O grande vaqueiro Antônio Balbino por CAMPOS V20 N2 juldez2019 161 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE exemplo apresentou no contexto de uma pega de boi no mato a sua perspectiva histórica a respeito dos vaqueiros de antigamente os quais em sua fala estão refl etidos como caboclo brabo homi bruto12 um índio Eis abaixo trecho de um diálogo que estabeleci com o interlocutor Como é ser vaqueiro Suscitei a questão esperando que ele me dissesse de alguma forma o que signifi cava para ele ser vaqueiro hoje em dia e não tal como ele apresentará a seguir de forma bastante curiosa o que foi o vaqueiro há muito tempo atrás Ele respondeu Os vaqueiros de antigamente eram uns homi bruto um índio um caboclo brabo não sabe Eles só aprenderam aquilo que aprenderam a fazer Mas só aprenderam aquilo O vaqueiro não sabia de nada não tinha estudo de nada Tinha deles que não sabia nem assinar a primeira letra do nome Mas com a inteligência que Deus deu a ele ele aprendeu tudo pegar o boi amarrar seguir tanger o boi bem direitinho colocar no curral dar de comer ao boi manso Ele aprendeu tudo com aquilo que Deus lhe deu pois ele não teve quem ensinasse a ele o homi bruto Foi na vaqueja da Fazenda São Pedro que Antônio Balbino logo após pegar um boi e botálo no curral deu a mim sua breve análise Interceptado por um de meus colegas que sugeriu a ele que expusesse a mim algumas refl exões sobre o vaqueiro sertanejo o que signifi ca sêlo e qual a diferença do vaqueiro de outrora para o de hoje percebese que ao fazêlo o vaqueiro apresentou de saída um exercício mnemônico composto por uma refl exão quase mítica uma origem Enquanto conversávamos rapidamente ainda em seu cavalo e afoito para correr e derrubar outra rês Antônio não se disse mais vaqueiro13 do que os vaqueiros mais novos que estavam ao seu redor em bora pudesse contar mais histórias do que eles Para os colegas que o arrodeavam ele sim é considerado um vaqueiro de verdade Ele tinha conhecimento da vida do campo e viveu no tempo em que para ser vaqueiro precisavase de mais coragem do que hoje Assim foi conferido a ele na sua relação com os demais a posição de vaqueiro corajoso e catingueiro14 Se a minha pesquisa era sobre o vaqueiro sertanejo nada mais compreensível do ponto de vista de meus interlocutores que um grande vaqueiro corajoso e catingueiro fosse recrutado para que me desse a honra de suas palavras Dos aproximadamente cento e cinquenta vaqueiros que estavam na vaquejada da Fazenda São Pedro curioso foi o modo como me levaram primeiramente em direção a Antônio Balbino em detrimento de tantos outros vaqueiros que naquele exato momento compu nham um grande coletivo a vaqueirama A justifi cativa para tanto é precisa Antônio Balbino era um vaqueiro de verdade Suas palavras não seriam quaisquer palavras mas as palavras de um vaqueiro véio Se analisarmos as célebres teses do saber ofi cial até agora explicitadas podemos perceber res sonâncias entre elas e a própria visão de Antônio Balbino Em ambas o vaqueiro nordestino aparece 12 Algumas palavras aparecerão sob o formato não convencional da ortografi a portuguesa dando destaque à sua importância estética na fala nativa principalmente nas narrativas e nas histórias de vaqueiro 13 Para uma refl exão do termo vaqueiro também sendo designado como adjetivo cf Medrado 2012 127 No meu caso e no da autora ser mais vaqueiro é quando um sujeito é melhor e mais verdadeiro do que outros tendo como atributo diferencial a de ser um bom vaqueiro 14 Catingueiro é o vaqueiro que tem maior domínio sobre o território e os animais no contexto de suas carreiras corridas a cavalo atrás do gado 162 CAMPOS V20 N2 juldez2019 como um elemento aculturado resultante das políticas coloniais do contato do branco colonizador com o gentio durante a penetração do gado nos sertões do Nordeste como consta no artigo apresen tado por Nilda O que se poder concluir até aqui é que tanto o saber ofi cial quanto as visões de Nilda e de Antônio Balbino dão pistas do que seja o vaqueiro original autêntico e tradicional As visões de meus interlocutores confl uem com o saber ofi cial e com as imagens clássicas da literatura nacional sobre o vaqueiro nordestino No momento de minha conversa com Nilda por exemplo enquanto ela lia linha por linha da quele artigo senti que pude dividir algumas de minhas refl exões com uma interlocutora que não co nhecia muito bem a realidade de vida dos vaqueiros como ela mesma afi rmou várias vezes mas que no entanto a respeito desse universo tinha algumas generalizações provenientes das reminiscências do tempo de sua infância da fazenda de sua família e das leituras que fi zera De um lado um universo para mim totalmente desconhecido Do outro um universo recrutado por Nilda a partir da imagem que construiu para si mesma em torno de uma originalidade Desde a prévia discussão entre dois desconhecedores daquele universo percebi que ela e eu acabávamos por igualmente compartilhar pressuposições ancoradas na perspectiva de uma suposta tradição e cultura do vaqueiro Eu compartilhava com ela portanto seus modos de reifi car e essencializar elementos também generalizados pela literatura e pelo saber ofi cial Aliás minha interlocutora exigia de mim por assim dizer a posição etnográfi ca se quiser mos de um antropólogo culturalista conforme a sua sugestão em privilegiar como recorte analítico sujeitos que se defi nem e são defi nidos pelos outros pela sua autenticidade Por mais que eu pudesse discordar na posição de antropólogo de sua visão totalizante em perceber a cultura e a tradição como imperativos da realidade observada o que estava sendo apresentado a mim por outro lado era a séria perspectiva de uma interlocutora refl etindo a respeito das diferenças entre sujeitos e contextos sociais dados por ela como radicalmente díspares embora às vezes confundidos uns com os outros a saber o vaqueiro da lida no campo e o vaqueiro de festa nas vaquejadas A seguir vejamos o que signifi ca essa noção de tradição mobilizada constantemente pelos inter locutores de pesquisa Vaqueiro simbólico e passado referencial A tradição sugere que a memória e o passado têm um estatuto importante na construção histó rica do vaqueiro sertanejo tanto no discurso da literatura quanto no discurso nativo Na literatura a expansão da pecuária pelos sertões como vimos na primeira seção ganha maior centralidade analítica à medida que os autores produzem tipologias únicas de um passado mais remoto o período colonial Na memória de meus interlocutores por sua vez o retrospecto é menor O tempo dos antigos não alcança o recorte temporal do Brasil colônia No máximo meus interlocutores fl exionavam lembranças contex tualizadas na primeira metade do século XX É válido destacar que a maioria dos vaqueiros velhos que conheci tinham entre 60 e 90 anos de idade Quando falavam do tempo dos antigos na maioria das vezes datavam os acontecimentos ocorri CAMPOS V20 N2 juldez2019 163 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE dos depois dos anos de 1930 ou 40 Época em que segundo diziam a lida da fazenda estava moldada sob a confi guração de poucos cercados chuvas mais frequentes e com muito gado brabo Ao mesmo tempo também resgatavam histórias e comentários feitos por seus pais e avós indo a um recorte tem poral mais amplo e a um jogo de perspectivas capaz de introduzilos em espacialidades e temporalida des que não viveram mas sobre as quais poderiam discorrer abertamente Enfi m tratase de uma imagem do vaqueiro nordestino que em certas circunstâncias representa o recorte temporal de cada um dos saberes De um lado a literatura e o saber ofi cial desenhando os sentidos do Estadonação de sua história e do seu desenvolvimento e de outro lado os meus interlo cutores e o saber local refl etindo a respeito da tradição cruzandoa por diversas vezes com o próprio discurso ofi cial Nesse sentido é importante notar nesses recortes temporais o modo como tanto a literatura quanto os sertanejos reifi cam uma espécie de vaqueiro simbólico ou representativo15 que dá sentido à história nacional para o saber ofi cial e também à tradição sertaneja ou à história de Floresta para o saber local De saída é preciso deixar claro que não quero com o termo simbólico remeter a uma noção de estrutura simbólica que vem a se distinguir como terceiro termo de uma relação entre o imaginário e seu oposto o real tal como o fez o estruturalismo segundo a visão de Deleuze 1974 1972 307 Na verdade simbólico está no nível da representação apenas provisoriamente A sua própria re presentatividade se esgota como haverei de mostrar no fi m deste artigo quando vamos em direção a outras formulações a novos problemas O que há de representativo no vaqueiro simbólico tem algo de generalizador na medida em que meus interlocutores universalizam determinada verdade histórica Dessa maneira o simbólico só é analiticamente produtivo se quisermos compreender os processos de reifi cação Herzfeld 2008 1997 que os sertanejos e a literatura ofi cial fazem do passado Para avançarmos na análise dessa distinção vejamos as imagens abaixo 15 Usarei o termo simbólico para fazer referência ao vaqueiro nordestino reifi cado pela literatura principalmente quando esta vai debater o papel dele na pecuária colonial mas também para fazer referência ao vaqueiro verdadeiro reifi cado pelo saber local No entanto usarei o termo segundo os sentidos conceituais dados por Lalande 1967 1927 em seu dicionário fi losófi co Para o autor simbólico se refere ao uso de símbolos ou àquilo que constitui e fabrica um símbolo representativo de algo de algum objeto por exemplo idem 939 Neste caso ser o símbolo de uma coisa ou representar com um símbolo alguma coisa idem 940 é mais ou menos o modo como a reifi cação dos interlocutores tem relações diretas com a imagem estanque ou referencial do vaqueiro como parte de uma história de um passado de uma tradição 164 CAMPOS V20 N2 juldez2019 A imagem à esquerda é a capa de um livro de José Norberto Macedo 1952 que como o título mesmo já indica fala das fazendas de gado no Vale do São Francisco A outra ao lado direito é o va queiro do Nordeste representado no artigo do livro que Nilda Ferraz como demonstrei na seção ante rior utilizou para me asseverar que o homem ali representado era o vaqueiro de verdade Na primeira imagem é interessante notar que ao tratarse da pecuária nordestina tema abrangente que envolve uma série de questões personagens e contextos a representação imediata para a capa do livro seja exatamente a do cavaleiro que na caatinga lida com o gado selvagem tal a importância desse recorte imagético para estancar a história de fazendas boiadeiros e vaqueiros Na imagem à direta mais uma vez é o próprio o vaqueiro tradicional original e autêntico que Nilda Ferraz concluiu ser um dos sím bolos de sua tradição Os próprios vaqueiros ao falarem do passado da tradição e do tempo dos antigos traziam em suas narrativas uma série de valores históricos econômicos e morais que defi niam a vida de vaqueiro do passado como algo único simbólico remetendose a um modo de vida do qual sentem saudade Segun do diziam difi cilmente a vida de vaqueiro se realizaria hoje com a glória de outrora Suas lembranças os tornavam tão saudosistas quanto o próprio folclorista Câmara Cascudo que em sua obra de 1956 Tradições Populares da Pecuária Nordestina nos dá a seguinte ideia Imagem 01 Capa que demonstra a relação inextrincável do cavaleiro com o boi Imagem 02 Vaqueiro do artigo lido por Nilda Ferraz CAMPOS V20 N2 juldez2019 165 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE Apesar de tudo a fazenda é o mundo fi el ao seu passado Não se revela imediatamente a uma per gunta de repórter para a revista ilustrada Existe tempo para a intimidade para a confi ança para a confi dência Depois fi case sabendo que aquele é mundo encantado e bem diferente do pensa mento inicial Os animais as árvores velhas os caminhos os recantos o recorte dos serrotes têm histórias explicações etiológicas fabulário crônica Há uma multidão de heróis que jamais darão à História a honra de uma visita Vaqueiros de outrora carreiros admiráveis rastejadores infalíveis aboiadores de voz mágica feiticeiros maiores que Merlino amores dedicações sacrifícios raptos valentias gente bonita enamorada e boa tudo morto mas presente e ressuscitando nas vozes evo cadoras e doces vivem realmente e participam da existência funcional presente Daria livro mas há o pudor religioso de não obrigar aquele mundo a entrar para o bojo da garrafa de Salomão nem achatálo numa página infi el às luzes e cores realmente possuídas Cascudo 1956 16 Se nas palavras do autor os sertanejos se renovariam sendo fi éis à história reproduzindoa e mantendoa intacta a despeito das transformações outros autores sustentaram a prerrogativa de que os costumes e os valores concernentes à lide pastoril não iriam sobreviver com o processo de modernização Prado Jr 2006 1945 por diversas razões a introjeção sistematizada do capitalismo a instauração de novas tecnologias produtivas as divisas e a Lei de Terras de 1850 que instituiu a propriedade privada no Brasil os cercamentos e os limites dividindo os campos outrora compartilhados etc A moderni zação resultaria na imediata perda do protagonismo do vaqueiro nordestino como sujeito econômico ou então o vaqueiro se tornaria recalcitrante e reprodutor de seus velhos costumes e crenças encerrado na esfera social retrógrada em que vive Prado Junior 2006 1945 Ribeiro 1995 Mello 2011 1985 Ora é nesse sentido que a literatura e o saber ofi cial apresentam os seus próprios limites para o entendimento da noção nativa de tradição justamente porque sua iniciativa é a de congelar os coletivos os indivíduos e as relações sociais em tipologias pretéritas e além disso de enquadrálos em modelos sem antes prestar a devida atenção ao que se atualiza refazse e muitas vezes escapa aos próprios en quadramentos analíticos Ao desconsiderar por completo as atividades por meio das quais os vaqueiros se atualizam e resistem o saber ofi cial relega ao passado a singularidade histórica do vaqueiro e passa simultaneamente a interpretar o presente como mera reprodução social Em contrapartida os vaqueiros entre os quais realizei pesquisa de campo diziam que o mundo da fazenda é um contexto muito distinto do que já foi um dia Para eles o passado não se fi deliza no presente Aliás o tempo pretérito a tradição e a memória são na verdade pontos de partida para avaliar quem é ou não é vaqueiro quem o foi de fato ou quem ainda o será A esse respeito apresentarei na seção seguinte algumas refl exões com o intuito de avançar a proposta aqui pretendida demonstrar a efi ciência da verdade histórica e da tradição do vaqueiro tentando entendêlas como pontos de diferen ciação e de atualização Para isso antes é preciso analisar historicamente como os vaqueiros se diferen ciavam entre si e de seus patrões 166 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Vaqueiros e fazendeiros Outra possível generalização do saber ofi cial é a ideia de que sempre houve uma relação de con fi ança de lealdade e de reciprocidade entre fazendeiro e vaqueiro Cascudo 1956 2728 Mello 2011 1985 50 De um lado o vaqueiro como o trabalhador estimado no qual o patrão deve confi ar De outro o fazendeiro a quem o vaqueiro deveria respeitar por lhe distribuir como moeda de troca pres tígio político e parcela de seu rebanho Nessa lógica o fazendeiro foi sempre visto como o elemento dominante da relação Nas palavras de Euclides da Cunha 1927 1902 os vaqueiros estariam sujei tos a uma servidão inconsciente Por sua vez contrário a essa prerrogativa o trabalho de Joana Medrado 2012 intitulado Terra de Vaqueiros dedicase com exclusividade à análise histórica das relações entre vaqueiros e fazendeiros em seu caso na comarca de Jeremoabo sertão da Bahia indo além da estagnação do vaqueiro como subserviente aos domínios políticos regionais A autora parte da hipótese de que mais do que lealdade confi ança e dominação os vaqueiros detinham os seus próprios meios de resistência de manutenção e de recriação do prestígio e de sua cultura política 2012 36 Em geral a autora demonstra a partir do signifi cado do vaqueiro como fi gura leal e obediente que a literatura clássica sempre lhe rogou uma imagem positiva romântica e saudosista idem 126127 Também em Floresta aparece essa imagem positiva associada ao vaqueiro Por meio das inúme ras qualidades morais concentradas em uma única fi gura a interlocutora Nilda Ferraz por exemplo referenciava os autênticos e originais vaqueiros do passado como os reais sujeitos de sua tradição No meandoos às vezes como personagem e dandolhes certa positividade histórica os meus interlocutores extraíam refl exões e asserções sobre quem era ou não vaqueiro à medida que cristalizavam como sim bólico e representativo os sujeitos do passado imagem pungente em suas memórias ao lembrarem do tempo em que existia muito gado brabo nas fazendas de seus antepassados familiares e amigos Nesse sentido para os sertanejos entre os quais realizei pesquisa a imagem histórica do vaqueiro serve para pensar a posição do outro e refl etir sobre si mesmos e o próprio passado Inclusive a imagem simbólica do vaqueiro é um artifício estratégico para pensar a história local a de Floresta e a de suas famílias e a história nacional na forma de tradição e de cultura assim como para criar certas virtudes a respeito da singularidade de seus costumes enquanto sertanejos ou vaqueiros de verdade além de conferir positividade a determinados valores e personagens históricos o vaqueiro simbólico como o antigo homem do campo sujeito corajoso honrado e leal A singularidade do vaqueiro que imediatamente remete ao seu desbravamento e à sua liberdade de ação pelos campos indivisos é o elemento que o conecta diretamente ao passado à tradição e por tanto à verdade histórica mas também ao presente à sua contemporaneidade Se o vaqueiro é sempre o sujeito que tem coragem e agilidade para capturar uma rês bravia no campo tal atitude ainda hoje é a que mais o diferencia de toda a sorte de pessoas que se dizem vaqueiros mas nunca cumpriram as funções um dia necessárias O gosto pelo passado reformula o que é o vaqueiro hoje e o que exatamente ele não é mais A ideia de um vaqueiro simbólico que busquei construir com a ajuda da literatura e do saber local serve no mínimo de medida avaliativa e de matriz purifi cadora que a partir de um gra CAMPOS V20 N2 juldez2019 167 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE diente qualifi cativo e conceitual faz os interlocutores desta etnografi a botarem em níveis distintos de importância os tipos de vaqueiros existentes em sua realidade Assim é possível defender neste artigo a ideia de que tanto para a literatura quanto para os ser tanejos tanto para o saber ofi cial quanto para o saber local é possível investir certas qualidades refl e xões temporalidades e características que fazem do vaqueiro do Nordeste uma singularidade histórica Embora se possa vêlo sob diversas formas o verdadeiro vaqueiro será sempre o homem do campo que um dia exerceu funções e teceu sentimentos referentes a outra temporalidade O vaqueiro simbólico da história nacional ligado ao que convencionei chamar aqui de verdade histórica é portanto sui generis e a sua autenticidade resulta das estratégias de essencialização que meus interlocutores conduzem por meio de uma poética social Herzfeld 2005 1997 Segundo este autor a poética social é um método de análise das contradições sociais e de seus efeitos subsequentes diante da formalização estatal que como um equalizador das variabilidades repercutidas no seio da intimidade cultural voltase sempre à construção de essencialismos e de verdades na vida cotidiana idem 54 Embora as refl exões do saber ofi cial e do saber local estejam contornadas de generalizações e de impressões às vezes de cunho naturalista e culturalista Barroso 1930 1912 Cascudo 1956 Mello 2011 1985 foram elas próprias que notaram a prevalência dos vaqueiros como sujeitos históricos únicos disputando entre si a posição de ser vaqueiro e buscando ascensão e prestígio sociais É justa mente nesse sentido que para Medrado 2012 por exemplo o vaqueiro foi uma espécie de bilíngue que transitava por diversos meios e situações Tecendo árduas críticas às perspectivas clássicas que cari caturaram o vaqueiro nordestino como incondicionalmente leal e fi el ao dono da fazenda a autora notou que mais do que reprodutores de valores e de costumes e obedientes a uma totalidade social os vaqueiros no seio de suas relações com chefes e terceiros buscavam a todo instante obter prestígio e fl exibilizar a sua própria posição Um dos principais traços a distinguilo tanto no seio da classe dominante quanto entre os traba lhadores em geral era a capacidade que ele demonstrava de transitar livremente entre o mundo do dono da fazenda e aquele dos trabalhadores tornandose bilíngue experiente na arte de deco difi car normas de comportamento por vezes opostas Por isso mesmo o vaqueiroadministrador atuava como portavoz dos interesses de um ou de outro grupo No entanto essa condição de bilíngue longe de amortecer o confl ito entre as classes como o termo pode sugerir fazia do vaqueiro alguém que tinha mais elasticidade e noção do funcionamento social e que podia apro veitar as frestas de comunicação em proveito próprio Medrado 2012 127128 Desse ponto de vista os vaqueiros historicamente foram uma massa de trabalhadores da qual eles próprios buscavam muitas vezes se destacar não só porque lhes delegavam poder político mas porque exerciam funções variadas e circulavam por diversos meios Ao analisar processos civis e criminais da comarca de Jeremoabo entre o período de 1880 a 1900 a historiadora se deparou com várias categorias de vaqueiro descobrindose na difi culdade de unifi car o vaqueiro em uma única categoria analítica a saber vaqueiroadministrador vaqueiroprocurador vaqueiroinspetor de quarteirão e vaquei roguarda de tropa Medrado 2012 9091 168 CAMPOS V20 N2 juldez2019 Há igualmente neste caso etnográfi co a impossibilidade de comprimir em uma única defi nição e imagem todas as características valores e atributos dos vaqueiros entre os quais realizei pesquisa de campo vaqueiros de verdade vaqueiros de vaquejada vaqueiros de pega de boi vaqueiros de festa vaquei rinho vaqueiros antigos vaqueiros velhos Por esse motivo a fórmula do vaqueiro simbólico tal como mobilizada pelo saber ofi cial e pelo saber local em especial na terceira seção deste artigo demonstra agora o seu próprio limite analítico Apesar de o vaqueiro ainda ser passível de generalizações analíticas por outro lado como veremos na seção seguinte o vaqueiro não depende apenas de si mesmo e de suas relações históricas com o outro mas também de suas relações históricas com os animais e as caatingas Modulação ecológica rebanho seca e cerca Como vimos em face de seu protagonismo econômico histórico e político a literatura notou que o vaqueiro é o refl exo da sociedade sertaneja No entanto de modo mais específi co ela assim o interpretou como um mito de origem associado à inegável vitalidade histórica que segundo Medrado 2012 contribuiu muito para a propagação de uma imagem positiva associada ao vaquei ro 2012 127 um mito de origem formulado pelas táticas do saber ofi cial que concentram nele quase toda a totalidade da cultura pastoril Mas suas táticas fi zeram também o processo inverso Viu na pastorícia o surgimento da própria singularidade humana como se na fi gura do vaqueiro estivessem refl etidas de uma só vez várias das virtudes do homem sertanejo Para Darcy Ribeiro 1995 em O povo brasileiro a economia pastoril por exemplo conformou também um tipo particular de população com uma subcultura própria a sertaneja marcada por sua especialização ao pastoreio por sua dispersão espacial e por traços característicos identifi cáveis no modo de vida na organização da família na estruturação do poder na vestimenta típica nos folguedos estacionais na dieta na culinária na visão de mundo e numa religiosidade propensa ao messianismo Ribeiro 1995 338 É nesse sentido que meus interlocutores de pesquisa me disseram algo parecido com as conclu sões de Darcy Ribeiro os vaqueiros e a economia pastoril foram a gênese de uma formação histórica Mais do que isso vaqueiros e bois constituíram conjuntamente uma única e só realidade Ao longo do tempo os vaqueiros aprenderam e aprimoraram a função de laborar com o gado estabeleceram com o animal uma relação específi ca e a partir disso fundaram um modo de vida particular o da pastorí cia Engajandose em seu trabalho e evoluindo com ele os vaqueiros investiam suas energias em certa modulação ecológica antigamente caracterizada pelo uso comum das terras e pela natureza bravia do animal bovino e superavam de diversas formas a obrigação com o patrão e os costumes básicos Como demonstrado na segunda seção para o vaqueiro Antônio Balbino os vaqueiros de an tigamente eram uns homi bruto um índio um caboclo brabo Importante observar nessa fala que além da manifestação bruta do animal bovino o vaqueiro em sua origem também foi bruto um homi bruto Vale notar igualmente que brabo e bruto neste caso aparecem como sinônimos um do outro Frequentemente o termo brabo se refere ao animal bravio pouco ou nada domesticado feroz selva gem portanto bruto Caso diferente do gado manso ao qual se investe outros afetos e práticas como o CAMPOS V20 N2 juldez2019 169 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE carinho Os bois e vacas tidos como mansos são seres plenamente domesticados Já o gado brabo é sem pre aquele que se caça no sentido de capturálo e descobrilo em meio à caatinga ou que se apropria para demarcálo com ferro e sinal para simbolizálo como propriedade de alguém que pertence a uma localidade a uma fazenda com o intuito de que os outros não o roubem16 Por fi m vale notar que para destacar a ferocidade de um boi ou de uma vaca poucas vezes se utiliza o termo brabo Dizse com mais especifi cidade que a rês é valente qualidade de animais que além de bruto ou brabo porque criado solto e portanto bicho que nunca via gente enfrentam o vaqueiro desafi amno e exigem dele a coragem São animais que não apenas fogem mas brigam e lutam contra os humanos tratei disso noutros lugares Pereira 2016 2017 Ora na percepção de Antônio Balbino portanto não só o gado era bruto como o próprio vaqueiro também o era A partir de seu esforço mnemônico percebese o surgimento de uma instân cia máxima de passado diretamente conectada a um ponto indeterminado no tempo porém o mais longínquo possível Uma espécie de exegese que segundo Benjamin não se preocupa com o encadea mento exato de fatos determinados mas com a maneira de sua inserção no fl uxo insondável das coisas 1985 1936 209 Neste caso tratase de um recorte temporal abstrato capaz de indicar que boi e homem estiveram sempre lado a lado igualáveis em termos de brutalidade e braveza A autenticidade do vaqueiro sendo o resultado imediato de sua natureza primeira e a singularidade histórica da relação entre vaqueiro e boi uma verdade última estagnada na imagem do vaqueiro de verdade talvez porque agora emprestando aqui as palavras de Soares no sistema da pecuária nordestina era o gado que criava o homem ao invés do homem criar o gado 1968 38 Contudo pretendo avançar essa conclu são do autor Na fala de Antônio Balbino vaqueiro e boi criaramse um a partir do outro mutuamente Os vaqueiros se transformaram em outra coisa a partir do que puderam aprender com os animais É dessa outra coisa em que se transformaram que os vaqueiros de hoje se espelham e são ao mesmo tempo julgados por outrem porque dela se aproximam e ao mesmo tempo se diferenciam Em sua instância máxima de passado os vaqueiros deixaram de ser o que eram para se tornarem algo que hoje corrobora justamente a seleção de alguns poucos vaqueiros vaqueiro mesmos Segundo os mais velhos os vaquei ros de hoje não valorizam a mesma perspectiva do passado porque não sabem como era viver no tempo em que o bicho era bruto e não via gente No tempo em que o bicho era criado solto no mato Assim há uma concepção genealógica de que boi e vaqueiro estão engajados desde os primórdios uma verdade histórica fl exionada pela singularização de um encontro interespecífi co posteriormente modifi cado pelos cercamentos e pela delimitação das terras por uma nova modulação ecológica que repaginou no sertão do Nordeste os campos por onde transitavam homens e animais Uma transforma ção ecológica capaz de modifi car inclusive não só a natureza dos animais mas também a dos humanos 16 Ao ato de inscrever nas orelhas dos animais caprinos ovinos e bovinos o sinal de seu proprietário na orelha direita e o sinal da propriedade na orelha esquerda este último chamado de mourão dáse o nome de assinar Ferrar por sua vez é demarcar com ferro o símbolo da propriedade e do proprietário no corpo da rês às vezes também no gado equino No lombo direito de um boi ou de uma vaca queimase o ferro que denomina a pessoa do proprietário normalmente com as iniciais do nome e no lombo esquerdo queimase o ferro que constitui o carimbo de sua propriedade geralmente um símbolo indicador do nome da fazenda Sobre a importância dos sinais e ferros na vida rural sertaneja cf Barroso 1930 1912185191 e Medrado 2012 95 sobre sinais e ferros também na mesma região no que tange à questão da família e do parentesco cf Marques 2002 142 268 e Villela 2004 224225 170 CAMPOS V20 N2 juldez2019 No século XX segundo Cascudo 1956 veio decorrentemente o cercado de arame a cerca divisória mudando ou dando à psicologia sertaneja outro matiz Quando o vaqueiro conhecia os limites de sua jurisdição pelas divisas quase inexistentes travessões que a caatinga cobrira lugares onde um paudarco existira agora deparava a fronteira fechada com aqueles fi os eriçados e hostis E as cancelas as porteiras de passagem mul tiplicaramse Antigamente iase num livre galope léguas e léguas numa ilusão de terra comum indominada e virgem de posse O arame deu ao vaqueiro pela primeira vez a impressão domina dora da posse alheia a imagem do limite Cascudo 1956 13 Contudo os cercados por si só não bastam Outro fator transformativo são as secas À época da minha pesquisa de campo em 2016 os meus interlocutores falavam especialmente da seca contempo rânea que desde pelo menos os anos de 201112 afeta ainda hoje o sertão pernambucano Juntos cer cados e secas segundo eles foram capazes de transformar historicamente a vida de vaqueiro noutra coisa que não a verdadeira vida no campo e de transformar a natureza do rebanho em outra coisa que não a do gado brabo Juntos as secas e os cercados foram dois elementos centrais para justifi car a difi culdade de reproduzir manter zelar e criar o rebanho Em suma o sistema de divisão de terras e os cercados domesticaram o animal doravante mais perto e mais preso Ademais por conta das estiagens o gado deixou ser o objeto central de investimento Da perspectiva dos sertanejos o boi vem perdendo o seu protagonismo não só como resultado de uma confi guração espacial mas porque é inviável mantêlo vivo nas secas tendo que modifi car completa mente a lida na fazenda e a vida cotidiana no campo Sendo assim a mutualidade entre boi e homem sistematizada no passado parece ressurgir mais como falta do que presença mais como nostalgia do que verdade empírica Analiticamente isso signifi ca que os homens que na austeridade da seca atual lutam para manter seu rebanho vivo dedicamse à atividade de pegar o pouco de gado brabo existente e aliás não se enver gonham em se dizerem vaqueiros diante do outro provam por si mesmos pela sua história e pelo seu estilo de vida que a sua posição é resultado de relações concretas com o passado de um dia ter estado no lugar certo e no tempo certo Na medida do possível exercer as atividades que singularizam a vida no campo acaba portanto reforçando ainda mais a verdade histórica do vaqueiro do Nordeste pois são justamente esses homens que ao se dizerem vaqueiros difi cilmente serão contrariados ou postos à prova publicamente de que eles não os são Dentro de uma série de elementos avaliativos mobilizados pelos meus interlocutores de pesquisa constatase o seguinte é justamente por meio da estabilização imagética do passado que a verdade do vaqueiro vem à tona E é com ela que em geral eles qualifi cam alguém como mais vaqueiro do que outros principalmente quando se trata de um vaqueiro que exerce as atividades que devem ser exercidas e quando se diz ter vivido em um contexto que lhe atribui auten ticidade trabalhando com o gado na fazenda eou pegando gado brabo no mato Portanto mais uma vez viver e se dedicar na medida do possível à vida no campo não é apenas reproduzir um tipo de vida datado que ainda hoje resistiria às intempéries e às transformações sociais tal como querem a literatura clássica e o saber ofi cial Para o caso aqui analisado tratase em contrapar tida de preservar não só um modo de vida mas o próprio desejo de ser vaqueiro de pensálo da forma CAMPOS V20 N2 juldez2019 171 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE como sempre foi e da forma como ainda é possível conduzilo a partir de suas relações com os outros mas também de suas relações com os animais e caatinga Mesmo diante das transformações ocorridas no sistema pastoril sertanejo a essencialização de um tipo de vida que não se pode mais exercer tal como um dia se fez é o ponto de conexão do uni verso do vaqueiro com a sua verdade histórica Isto é as constantes infl exões retóricas que servem para fi xar uns e não outros na posição de vaqueiro ou que servem para diminuir a posição de uns em relação à de outros a partir de um gradiente qualifi cativo e conceitual trazem nesta análise a fórmula de uma nostalgia estrutural que não por acaso vem a ser um dos fi os de ligação das pessoas com a verdade Herzfeld 2005 1997 Especifi car o que é ser vaqueiro é portanto medir o seu lugar e o do outro na autenticidade na originalidade e na tradição É estabilizar um modo de vida que diversas vezes aparece como a mais pura e verdadeira Todavia tentar encontrar esse modo vida puro e verdadeiro isto é tentar encontrar os vaqueiros de verdade pelo menos da forma como me descreveram Nilda e Quirino na segunda seção deste artigo levoume de imediato a pessoas que viviam na cidade com outros empregos que não o de vaqueiro e vivendo de outras maneiras que não a da vida no campo Aspectos que por incrível que pareçam não os retiravam da posição de ser vaqueiro de verdade por morarem na cidade e por não mais exercerem a profi ssão de vaqueiro Por seu turno os vaqueiros véios atestavam a todo instante o seu prestígio de verdadeiro vaqueiro mostrandome entre outros coisas que a sua vida já foi um dia muito distinta da que é hoje Mostrandome que o passado e a memória por eles mobilizadas são a prova de que são de fato e de direito vaqueiros vaqueiros mesmo Conclusão Ora se a história e o modo como a literatura e o saber ofi cial tratou as transformações sociais do pastoreio importam na análise elaborada neste artigo elas só são importantes no limite de suas próprias descrições uma vez que os próprios vaqueiros e o saber local esgotam as problematizações do saber ofi cial ao demonstrarem que embora seus modos de existência sejam muitos distintos dos tempos de outrora os vaqueiros continuam existindo sob novas relações reinventandose e recriando o regime da lida da fazenda da vida de vaqueiro e da vida no campo Existir como vaqueiro e ao mesmo tempo se distinguir de seus contemporâneos que se dizem vaqueiros mas só frequentam vaquejadas pegas de boi e festejos por exemplo provam e atestam ao outro não o que eles próprios são mas o que foi historicamente o vaqueiro nordestino o que ele ainda é o que ele signifi ca e quais os diversos modos de caracterizálo ao longo do tempo Se muitos tiveram a clareza de defi nir o que signifi ca ser vaqueiro baseandose por exemplo em livros e em fundamentos teóricos sobre a cultura sertaneja e a tradição outros no entanto por sua vez os vaqueiros da lida demonstraram o que signifi ca ser vaqueiro com base no que é hoje possível investir e reelaborar na vida de vaqueiro mesmo sob a modulação ecológica das secas e dos cercados Dessa forma temse o seguinte quadro geral uns nos guiando à compreensão do que é o vaqueiro da 172 CAMPOS V20 N2 juldez2019 perspectiva da tradição outros os próprios vaqueiros demonstrando a nós o que a literatura não é capaz de explicar Afi nal o que signifi ca ser vaqueiro no tempo presente E mais ainda embora já se tenha suposto o seu fi m há bastante tempo por que o vaqueiro não desapareceu Da perspectiva de meus interlo cutores o passado não é somente um recorte histórico prévio e imutável Além de certas maneiras de qualifi car diferenciar e identifi car a si mesmo no tempo a história do vaqueiro do Nordeste depende de um conjunto complexo de estratégias contemporâneas de reconstrução dos acontecimentos através principalmente da memória e da habilidade retórica de conferirem verdade ao que viveram Renan Martins Pereira é Mestre em Antropologia pelo PPGASUFSCar e doutorando na mesma instituição É pesquisador do Grupo Hybris Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de poder confl itos e socialidades da USP e UFSCar Bolsista Capes Referências bibliográficas ABULUGHOD Lila 1991 Writing Against Culture In R G Fox org Recapturing Anthropology working in the present Santa Fe School of American Research Press AIRES Francisco J F 2008 O espetáculo do cabromacho um estudo sobre os vaqueiros nas vaquejadas do Rio Grande do Norte Dissertação de Mestrado PPGAS UFRN Natal RN ANDRADE Manoel Correia de 1986 1963 A Terra e o Homem do Nordeste 5ºed São Paulo Ed Atlas BARROSO Gustavo 1956 1912 Terra de Sol Natureza e Costumes do Norte Rio de Janeiro Francisco Alves BENJAMIN Walter 1985 1936 O narrador considerações sobre a obra de Nikolai Leskov In W Benjamin Obras escolhidas Magia e técnica arte e política São Paulo Brasiliense 3ºed CARSTEN Janet org 2013 Blood will out essays on liquid transfers and fl ows Chichester Wiley Blackwell CASCUDO Luís da Câmara 1956 Tradições populares da pecuária nordestina Rio de Janeiro Serviço de Informação Agrícola 2005 1939 Vaqueiros e Cantadores Folclore poético do sertão do Ceará Paraíba Rio Grande do Norte e Pernambuco São Paulo Edusp CUNHA Euclides 1927 1902 Os Sertões 10ª ed Rio de Janeiro Livraria Francisco Alvez DELEUZE Gilles 1974 1972 Em que se pode reconhecer o estruturalismo In François Châtelet org História da Filosofi a vol 8 O Século XX Rio de Janeiro Ed Zahar FURTADO Celso 2007 1959 Formação Econômica do Brasil São Paulo Companhia das Letras GEERTZ Cliff ord 1978 1973 A interpretação das culturas Rio de Janeiro Zahar CAMPOS V20 N2 juldez2019 173 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE 1997 1983 O saber local novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis RJ Vozes HARAWAY Donna 1995 1988 Saberes localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos Pagu 5 0741 HERZFELD Michael 1997 2008 Intimidade Cultural poética social no EstadoNação Lisboa Edições 70 IBGE 1956 Tipos e Aspectos do Brasil Excertos da Revista Brasileira de Geografi a Rio de Janeiro Ministério da Fazenda LALANDE André 1967 1927 Vocabulario Técnico y Crítico de la Filosofía Buenos Aires El Ateneo LOPES Camilo Antônio Silva 2016 Vaqueiros seleiros carreiros e trançadores uma etnografi a com coisas pessoas e signos Tese de doutorado Campinas SP PPGCSUnicamp MACEDO José Norberto 1952 Fazendas de gado no Vale do São Francisco Rio de Janeiro Ministério da Agricultura MARQUES Ana Claudia 2013 Founders ancestors and enemies Memory family time and space in the Pernambuco Sertão JRAI 19 4 716733 2002 Intrigas e Questões vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco Rio de Janeiro RelumeDumará UFRJ Núcleo de Antropologia da Política VILLELA Jorge L M 2016 Le Sang et la Politique La production de la famille dans les joutes electorales au sertão de Pernambouc Brésil Anthropologica 58 291301 MEDRADO Joana 2012 Terra de Vaqueiros relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia 1880 1900 Campinas SP Editora da Unicamp MENEZES Djacir 1970 1937 O Outro Nordeste Rio de Janeiro Artenova MELLO Frederico P de 2011 1985 Guerreiros do Sol violência e banditismo no Nordeste Brasileiro São Paulo A Girafa PEREIRA Renan Martins 2016 Dominação e Confi ança vaqueiros e animais nas pegas de boi do sertão de Pernambuco Teoria e Cultura 11 6380 2017 Rastros e Memórias etnografi a dos vaqueiros do sertão Floresta PE Dissertação de Mestrado São CarlosSP PPGASUFSCar PRADO JUNIOR Caio 2006 1945 História Econômica do Brasil São Paulo Brasiliense RIBEIRO Darcy 1995 O povo brasileiro A formação e o sentido do Brasil São Paulo Companhia das Letras SANJURJO Liliana 2013 Sangue Identidade e Verdade memórias sobre o passado ditatorial argentino Tese de Doutorado CampinasSP PPGASUnicamp SOARES Renan Monteiro 1968 Aspectos sociológicos da pecuária nordestina Recife Imprensa Universitária UFPE VILLELA Jorge Mattar 2004 O povo em armas violência e política no sertão de Pernambuco Rio de Janeiro Relume Dumará 174 CAMPOS V20 N2 juldez2019 CAVALEIROS EM TEMPOS DE GLÓRIA UMA ANÁLISE ETNOGRÁFICA DA HISTÓRIA DO VAQUEIRO DO NORDESTE Resumo Neste artigo desenvolvo algumas questões abordadas na minha dissertação de mestrado so bre os vaqueiros do município de Floresta sertão de Itaparica PE A partir delas pretendo analisar como os meus interlocutores se deparam frequentemente com um dilema Em Floresta muitos de seus habitantes avaliam e questionam o futuro de vaqueiros de verdade cavaleiros hábeis na arte de captu rar o gado selvagem na caatinga ao passo em que imagens discursos e práticas de vaqueiros de hoje ganham força e vitalidade em missas festas e vaquejadas onde são celebrados o prestígio de homens do passado os seus maiores feitos e suas memórias contribuindo aliás para novas possibilidades de ser vaqueiro Por essa razão examino como as narrativas locais e a literatura nacional constroem uma estabilização imagética e conceitual do passado articulando temporalidades e espacialidades em que o vaqueiro nordestino se expressa de maneira simultaneamente histórica e contemporânea Palavraschave Memória Sertão Vaqueiro História Pernambuco HORSEMEN IN TIMES OF GLORY AN ETHNOGRAPHIC ANALYSIS OF THE HIS TORY OF THE BRAZILIAN NORTHEAST COWBOY Abstract In this article I develop some of the issues addressed in my Master s thesis about the co wboys of the municipality of Floresta sertão of Itaparica PE I intend to analyze how my interlocutors are oft en faced with a dilemma In Floresta many of its inhabitants evaluate and question the future of true cowboys horsemen skilled in capturing wild cattle in the caatinga vegetation at the same time as images speeches and practices of todays cowboys gain strength and vitality at religious celebrations parties and vaquejadas where the prestige of the ancients their greatest deeds and their memories are celebrated contributing by the way to new possibilities of being a cowboy For this reason I examine how local narratives and national literature construct an imaginary and conceptual stabilization of the past articulating temporalities and spatialities in which the cowboys of Brazilian Northeastern expres ses itself both historically and contemporaneously Keywords Memory Sertão Cowboy History Pernambuco RECEBIDO 20092019 APROVADO 02022020